crónica ricardo araújo pereira
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RICARDO ARAÚJO PEREIRA
O valor jornalístico que o terá teráHoje, poucas pessoas fazem, mas muita gente terá feito. Quase ninguém disse, mas inúmeros terão dito.
Tenho observado com muito entusiasmo a recente invenção jornalística do terá. Parece que uma notícia deve
responder a seis perguntas, a saber: quem?, o quê?, onde?, como?, porquê? e quando? Foi isso, aliás, que me
afastou do jornalismo. São demasiadas perguntas. Um jornalista encontra-se quase sempre na posição de um
bêbado que acaba de chegar a casa. É curioso que tanto o bêbado como o jornalista tenham de responder mais
ou menos às mesmas perguntas. Obter as respostas é difícil para ambos. O bêbado está pressionado pelo
álcool e o jornalista está pressionado pela realidade, que também inebria e confunde. Estando, em geral, mais
sóbrio que o bêbado, o jornalista inventou o terá. É uma forma habilidosa de não responder à pergunta
"quando?" Funciona assim: "Fulano terá feito uma falcatrua." Quando? No passado. Mas o verbo ter está no
futuro. O que significa que talvez venha a confirmar-se no futuro que sucederam certas coisas no passado.
Hoje, poucas pessoas fazem, mas muita gente terá feito. Quase ninguém disse, mas inúmeros terão dito.
É muito interessante reparar no papel que o terá tem desempenhado nas notícias sobre o acontecimento mais
importante da atualidade. A pesquisa "Sócrates terá", no Google, devolve 19 mil e 300 resultados. Alguns
exemplos: "Sócrates terá usado conta do motorista para depósitos e pagar despesas", "Sócrates terá dito que
iria mobilizar a opinião pública contra a Justiça", "José Sócrates terá recebido um milhão de euros em dinheiro
vivo", "Antigo motorista de José Sócrates terá admitido que depositou dinheiro do ex-primeiro-ministro na sua
conta", "Sócrates terá repartido a fortuna de 25 milhões de euros por seis bancos". O terá permite fazer
perguntas sem colocar um ponto de interrogação no fim. "Sócrates terá repartido a fortuna de 25 milhões por
seis bancos?" passa a "Sócrates terá repartido a fortuna de 25 milhões por seis bancos". O terá garante, até
judicialmente, que a frase anterior ainda não é uma afirmação, mas também deixa claro que já não é uma
pergunta. É uma afirgunta. A afirgunta é um novo género jornalístico que não constitui exatamente uma notícia.
É uma hipótese de notícia. Uma suposição. E quando a afirgunta gera novas afirguntas, transforma-se em
afirmação. Aqueles 25 milhões já foram uma afirgunta. "Sócrates terá 25 milhões". Como os hipotéticos 25
milhões foram hipoteticamente repartidos por seis bancos, deixaram de ser hipotéticos. A afirgunta só admite
uma hipótese de cada vez. Caso contrário, isto deixa de ser jornalismo, e passa a ser uma fantochada sem
qualquer vestígio de rigor.
Consideremos a seguinte frase: "Sócrates terá 60 anos em 2017." É das poucas notícias que podemos dar
acerca de José Sócrates recorrendo ao uso convencional do futuro do verbo ter. É uma informação factual,
verificável e exata. É também extremamente enfadonha. Não faz sonhar. No entanto, a nova utilização do terá,
em teoria, permite avançar com qualquer hipótese, desde que permitida pelas leis da física. Creio que não é
admissível escrever, por exemplo, "Sócrates terá levantado voo depois de agitar os braços com muita força".
Mas "Sócrates terá comprado o Taj Mahal a pronto" é jornalismo. Ora, neste tipo de notícia hipotética, eu sou
fortíssimo. Ter-me-ei (cá está) reformado demasiado cedo. Eu sou a agência Reuters do terá. Sou capaz de
redigir, a partir de casa, um número infinito de peças jornalísticas deste tipo. Contactem-me.
15 de Janeiro de 2015
INSTITUTO DO EMPREGO E FORMAÇÃO PROFISSIONAL, IP DELEGAÇÃO REGIONAL DE LISBOA E VALE DO TEJO CENTRO DE EMPREGO E FORMAÇÃO PROFISSIONAL DA AMADORA
1. Explica a repetição do verbo “terá” no título.
2. Considerando a estrutura da notícia, define as partes em que se responde às perguntas referidas no início do segundo parágrafo.
3. Explica, por palavras tuas, o que é uma “afirgunta”.
4. No terceiro parágrafo, lê-se «É uma hipótese de notícia. Uma suposição».
Acha viável e ético o jornalismo e os jornalistas “venderem” este tipo de notícias?
5. Por que razão, segundo Ricardo Araújo Pereira, o jornalismo vive suposições (releia o último parágrafo)?
6. A ironia, recurso estilístico, é muito utilizada ao longo de toda a crónica. Retira do texto um exemplo de ironia.
7. Qual a crítica subjacente ao jornalismo nesta crónica?
8. Folheia um jornal (impresso ou online) e retira títulos de jornais com o verbo posto em causa por Ricardo Araújo Pereira.