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Língua Portuguesa – Redação – 3º bimestre Crônica Página 1 de 21 Colégio Integral – série 8º ano – 2014 1 Crônica 1 Crônica – definição e usos Você já deve ter encontrado, em jornais diários, textos em que o autor parte de uma experiência pessoal, quase sempre a observação de um fato cotidiano, a partir do qual ela- bora uma reflexão mais geral. Esses textos exemplificam um gênero discursivo chamado CRÔNICA. Leia o texto a seguir: Entre quatro paredes Saí para dar uma volta, outro dia, e notei uma coisa. Fazia um tempo glorioso – melhor impossível, e com toda probabilidade o último do gênero a se ver por estas bandas durante muitos meses gelados –, no entanto quase todos os carros que passavam estavam com os vidros fechados. Todos aqueles motoristas tinham ajustado o controle de temperatura de seus veículos hermeticamente fechados para criar um clima interno idêntico ao que já existia no mundo exterior, e me ocorreu então que, no que se refere ao ar fresco, os americanos perderam de vez a cabeça, ou o senso de proporção, ou alguma outra coisa. Ah sim, de vez em quando eles saem para experimentar a novidade de estar ao ar livre – fazem um piquenique, digamos, ou passam o dia na praia, ou num parque de diversões –, mas esses são acontecimentos excepcionais. De maneira geral, boa parte dos americanos acostumou-se de tal forma à ideia de passar o grosso da vida numa série de ambientes com clima controlado que a possibilidade de uma alternativa não lhes passa mais pela cabeça. Por isso fazem suas compras em shoppings fechados e vão de carro até esses shop- pings com as janelas do carro fechadas e a ar-condicionado ligado mesmo quando o tempo está ótimo, como nesse dia. Trabalham em escritórios onde não poderiam abrir as janelas mesmo que quisessem – não que alguém fosse querer, claro. Quando saem de férias, em geral viajam numa casa-reboque imensa, que lhes permite saborear a natureza sem na ver- dade se expor a ela. Cada vez mais, quando vão a um evento esportivo, o jogo é realizado num estádio fechado. Dê uma volta a pé por praticamente qualquer bairro americano, agora no verão, e não verá nenhuma criança andando de bicicleta ou jogando bola, porque estão todas dentro de casa. Tudo o que você vai ouvir é o zumbido uniforme dos aparelhos de ar- condicionado.

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Língua Portuguesa – Redação – 3º bimestre

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Crônica 1

Crônica – definição e usos

Você já deve ter encontrado, em jornais diários, textos em que o autor parte de uma

experiência pessoal, quase sempre a observação de um fato cotidiano, a partir do qual ela-

bora uma reflexão mais geral. Esses textos exemplificam um gênero discursivo chamado

CRÔNICA.

Leia o texto a seguir:

Entre quatro paredes

Saí para dar uma volta, outro dia, e notei uma coisa. Fazia um tempo glorioso – melhor

impossível, e com toda probabilidade o último do gênero a se ver por estas bandas durante

muitos meses gelados –, no entanto quase todos os carros que passavam estavam com os

vidros fechados.

Todos aqueles motoristas tinham ajustado o controle de temperatura de seus veículos

hermeticamente fechados para criar um clima interno idêntico ao que já existia no mundo

exterior, e me ocorreu então que, no que se refere ao ar fresco, os americanos perderam de

vez a cabeça, ou o senso de proporção, ou alguma outra coisa.

Ah sim, de vez em quando eles saem para experimentar a novidade de estar ao ar livre

– fazem um piquenique, digamos, ou passam o dia na praia, ou num parque de diversões –,

mas esses são acontecimentos excepcionais. De maneira geral, boa parte dos americanos

acostumou-se de tal forma à ideia de passar o grosso da vida numa série de ambientes com

clima controlado que a possibilidade de uma alternativa não lhes passa mais pela cabeça.

Por isso fazem suas compras em shoppings fechados e vão de carro até esses shop-

pings com as janelas do carro fechadas e a ar-condicionado ligado mesmo quando o tempo

está ótimo, como nesse dia. Trabalham em escritórios onde não poderiam abrir as janelas

mesmo que quisessem – não que alguém fosse querer, claro. Quando saem de férias, em

geral viajam numa casa-reboque imensa, que lhes permite saborear a natureza sem na ver-

dade se expor a ela. Cada vez mais, quando vão a um evento esportivo, o jogo é realizado

num estádio fechado. Dê uma volta a pé por praticamente qualquer bairro americano, agora

no verão, e não verá nenhuma criança andando de bicicleta ou jogando bola, porque estão

todas dentro de casa. Tudo o que você vai ouvir é o zumbido uniforme dos aparelhos de ar-

condicionado.

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Cidades do país inteiro deram ultimamente de construir o que chamam de skywalks –

passarelas fechadas e climatizadas, claro – ligando todos os prédios do centro. Na minha

cidade natal, Des Moines, no estado de Iowa, a primeira “calçada no céu” foi construída uns

25 anos atrás, entre um hotel e uma loja de departamentos, e fez tamanho sucesso que logo

foram surgindo outras. Hoje já é possível andar por quase um quilômetro no centro de Des

Moines, em qualquer direção, sem nunca botar o pé lá fora. Todas as lojas que ficavam no

nível da rua mudaram-se para o primeiro andar, onde agora trafegam os pedestres. Hoje em

dia, as únicas pessoas que se veem nas ruas de Des Moines são os bêbados e os empre-

gados de escritórios, que saem para fumar um cigarro. A rua tornou-se uma espécie de pur-

gatório, um lugar para onde você é expulso.

Existem até clubes formados por gente que troca o terno pelo abrigo de ginástica e

passa a hora do almoço fazendo caminhadas rápidas e saudáveis ao longo de uma trilha

com quilometragem marcada nos skywalks. Jamais lhes passaria pela cabeça fazer uma

coisa dessas ao ar livre. Clubes semelhantes, integrados por aposentados, podem ser vistos

em todos os shoppings do país. São pessoas, compreenda, que marcam encontro nos

shoppings não para fazer compras e sim para fazer seus exercícios diários.

Da última vez que estive em Des Moines, encontrei um velho amigo da família. Ele esta

de abrigo de ginástica e me disse que acabara de sair do clube do shopping Valley West.

Estávamos em abril e o tempo era esplêndido. Perguntei-lhe porque o clube não usava um

dos muitos belos e enormes parques da cidade.

“No shopping não tem chuva, não tem frio, não tem morro e não tem trombadinha”, ele

respondeu sem hesitar.

“Mas não existe nenhum trombadinha em Des Moines”, eu respondi.

“Exato”, ele concordou sem pestanejar. “E sabe por quê? Porque não tem ninguém na

rua para roubar.” Balançou a cabeça enfaticamente, como se eu não tivesse pensado nisso,

como de fato não tinha. [...]

Enquanto me achava ali parado, um passarinho derrubou sobre o dedão do meu sapa-

to esquerdo qualquer tipo de coisa que você em geral não gosta muito que um passarinho

derrube. Olhei do céu para o sapato e de volta para o céu.

“Muito obrigado”, eu disse, e, creia-me, eu falei de coração.

(BRYSON, Bill. Crônicas de um país bem grande. Trad. De Beth Vieira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Fragmento)

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Agora que você já leu o texto, responda as questões a seguir:

1. a) Que acontecimento desencadeou o texto de Bill Bryson?

b) Por que o autor julgou tal acontecimento digno de nota?

2. a) Transcreva, do início do texto, as passagens em que o autor deixa claro estar partindo

de uma observação pessoal.

b) Que elementos desses trechos caracterizam como particular a observação feita?

3. a) No 2º parágrafo, podemos identificar um trecho em que o autor começa a refletir sobre

o significado mais geral que o fato observado por ele pode ter. Identifique essa passagem.

b) Podemos afirmar que essa passagem recria, para o leitor do texto, o início de um raciocí-

nio analítico realizado por Bill Bryson. Explique.

4. a) Em que momento fica evidente que a observação particular torna-se uma reflexão mais

geral sobre os hábitos do povo americano?

b) Que elementos dessa passagem denotam a mudança de perspectiva (de particular para

mais geral) observada no texto?

Releia:

Por isso fazem suas compras em shoppings fechados e vão de carro até esses shoppings com

as janelas do carro fechadas e a ar-condicionado ligado mesmo quando o tempo está ótimo, como

nesse dia. Trabalham em escritórios onde não poderiam abrir as janelas mesmo que quisessem –

não que alguém fosse querer, claro. Quando saem de férias, em geral viajam numa casa-reboque i-

mensa, que lhes permite saborear a natureza sem na verdade se expor a ela.

5. a) Que relação de sentido o parágrafo acima estabelece com o trecho final do 3º parágra-

fo? Explique.

b) Em termos formais, que expressão marca o estabelecimento dessa relação de sentido?

c) Que tipo de “orientação de leitura” essa expressão fornece ao leitor do texto?

6. a) No 5º parágrafo, Bill Bryson passa a falar dos skywalks. O que são essas estruturas?

b) De que modo o exemplo dos skywalks se relaciona com a questão tematizada no texto?

Releia:

A rua tornou-se uma espécie de purgatório, um lugar para onde você é expulso.

7. Por que, no contexto da reflexão apresentada, Bill Bryson faz essa afirmação?

ANÁLISE DO TEXTO

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8. a) O texto termina com a retomada da perspectiva particular com que havia começado.

Que fatos são relatados pelo autor nesse momento?

b) Podemos afirmar que, apesar de Bill Bryson retomar um tom mais pessoal, o texto não se

desvia da reflexão central. Por quê?

c) Como pode ser entendido o “Muito obrigado” que o autor dirige ao passarinho?

Os grandes jornais, de circulação diária, e as revistas semanais costumam reservar um

espaço fixo para a publicação de CRÔNICAS.

CRÔNICA é um gênero discursivo no qual, a partir da observação e do relato de fatos cotidi-

anos, o autor manifesta sua perspectiva subjetiva, oferecendo uma interpretação que revela

ao leitor algo que está por trás das aparências ou não é percebido pelo senso comum. Nes-

se sentido, é finalidade da crônica revelar as fissuras do real, aquilo que parece invisível pa-

ra a maioria das pessoas, ajudando-as a interpretar o que se passa à sua volta.

No texto de Bill Bryson, acompanhamos o processo de exposição de um comportamen-

to característico do povo americano – a opção por viver em ambientes climatizados, envoltos

por uma falsa “natureza” –, a partir da observação de um fato aparentemente banal: em um

dia de verão, o autor constata que as pessoas dentro dos carros que circulavam pela rua,

mantinham os vidros fechados e o ar-condicionado ligado.

Esse procedimento ilustra o princípio desencadeador da crônica:

a observação do real com olhos investigativos, que desejam não só “registrar” uma cena

(corriqueira ou surpreendente, não importa), mas sempre ir além do que tal cena ilustra, para

buscar seu significado mais geral em relação ao comportamento humano.

Como gênero, a crônica tem raízes na história e na literatura. Durante o período das

grandes descobertas, quando as pessoas ainda descobriam territórios misteriosos nos qua-

tro cantos do mundo e se aventuravam nas explorações marítimas, era comum haver sem-

pre um cronista que acompanhava essas expedições. Sua função era clara: narrar os acon-

tecimentos de modo cronologicamente organizado. Naquele momento, portanto, fazer

uma crônica significava registrar, de modo fiel, uma série de fatos ordenados no tem-

DEFINIÇÃO E USO

UM POUCO DE HISTÓRIA...

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po. A finalidade da crônica, nesse caso, era preservar a memória dos acontecimentos e, por

isso, aproximava-se da história.

Até o século XIX, era comum encontrar crônicas que apresentavam essa estrutura bá-

sica. Não se tratava mais, é claro, de registrar os acontecimentos de uma expedição, mas

sim os fatos cotidianos. Grandes escritores brasileiros, como José de Alencar e Machado de

Assis, celebrizaram-se como cronistas de seu tempo. Como os cronistas eram muitas vezes

romancistas ou poetas, o parentesco da crônica com a literatura se estreitou.

Aos poucos, porém, as crônicas foram sofrendo algumas modificações significativas.

Em lugar, por exemplo, de registrarem vários acontecimentos típicos de uma sociedade, os

Trecho da carta de Pero Vaz de Caminha

A partida de Belém foi – como Vossa Alteza sabe, segunda-feira 9 de

março. E sábado, 14 do dito mês, entre as 8 e 9 horas, nos achamos entre as

Canárias, mais perto da Grande Canária. E ali andamos todo aquele dia em

calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês,

às dez horas mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, a saber

da ilha de São Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto.

Na noite seguinte à segunda-feira amanheceu, se perdeu da frota Vasco

de Ataíde com a sua nau, sem haver tempo forte ou contrário para poder ser!

Fez o capitão suas diligências para o achar, em umas e outras partes.

Mas... não apareceu mais!

E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-

feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais

de terra, estando da dita Ilha – segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670

léguas – os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mare-

antes chamam botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo-de-

asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam fura-

buchos.

Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber,

primeiramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras

mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte

alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!

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cronistas passaram a relatar um único fato

(ou vários fatos que ilustrassem uma ten-

dência comum) e, a partir desse relato, a

tecer comentários mais gerais sobre como

o acontecimento apresentado podia ser

interpretado.

Quando essa transformação se con-

solidou, a crônica assumiu a estrutura e a

finalidade que ainda hoje apresenta. Escri-

to para ser publicado em jornais, esse gê-

nero discursivo se define por ser cla-

ramente opinativo. Em meio a notícias e

reportagens, em que deve prevalecer uma

perspectiva imparcial, a crônica oferece

um contraponto para o leitor. Torna-se

uma espécie de avesso da notícia: em lu-

gar da objetividade e da imparcialidade

que caracterizam aquele gênero, a crônica se define como subjetiva, opinativa, pessoal.

As crônicas circulam, em sua maior parte, no espaço jornalístico. Dessa forma, há crô-

nicas em jornais diários que, geralmente, contam com espaço e autor fixo.

Também é possível encontrá-las em revistas. Quando isso acontece, elas costumam

aparecer no início, como uma “introdução” às notícias da semana; ou no fim da revista, co-

mo uma “conclusão”, um espaço para o leitor refletir sobre algum dos muitos acontecimentos

que viraram notícia naquele período.

Muitas publicações especializadas, como revistas para adolescentes, público feminino,

dentre outras, também reservam um espaço para os cronistas.

O que se costuma observar é que, quanto mais geral for a abordagem jornalística do

veículo no qual a crônica se insere, maior tende a ser a liberdade dos escritores na hora de

decidirem o que irão tematizar em suas crônicas.

A crônica e o estilo individual

A crônica é um gênero discursivo que

permite a manifestação de estilos individu-

ais, por ser um texto inspirado em um o-

lhar subjetivo para acontecimentos cotidia-

nos. No Brasil, houve um crescimento na

produção de crônicas a partir da década de

1950.

Autores como Carlos Drummond de

Andrade, Rubem Braga, Paulo Mendes

Campos, Fernando Sabino, Rachel de Quei-

roz, Carlos Heitor Cony, Otto Lara Resende,

além de promoverem a popularização do

gênero, também estabeleceram seus esti-

los de modo claro e, com isso, conquista-

ram leitores fiéis.

CONTEXTO DE CIRCULAÇÃO

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Os livros também são um meio de circulação bastante comum para as crônicas. Ge-

ralmente os autores reúnem um conjunto de textos que julgam mais representativos da sua

obra e dos tempos em que vivemos e os publicam sob a forma de livro.

A estrutura da crônica não segue um padrão fixo, mas apresenta algumas linhas gerais

que costumam ser seguidas pela maior parte dos autores. Vamos analisá-la a partir do e-

xemplo seguinte:

Gente boa

Li outro dia um artigo sobre monges budistas,

freiras de clausura e essa gente toda que medita com fre-

quência. Estudos provaram que eles têm mais desen-

volvida a parte do cérebro que percebe o aspecto lu-

minoso das coisas. Enxergam mínimas virtudes, têm

mais compaixão e sabem amar com desprendimento.

Há sete anos passei um mês em Myanmar, a antiga

Birmânia, e lembro-me de sentir nitidamente que aque-

la gente era melhor do que eu. Havia harmonia e be-

nevolência na expressão das pessoas. Eu acordava

predisposta para o bem, não porque seja de fato boa,

mas porque era o que se esperava de mim. Ninguém

na rua imaginava que eu pudesse dar um golpezinho,

enganar ou pensar algo crítico enquanto sorria gen-

tilmente. A delicadeza ali está por toda parte e aponta

para o que há de mais puro na gente, umas belezas

emboloradas foram brotando feito susto de dentro dos

meus egoísmos. Por lá não há, ou não havia na época, o

hábito de televisão a qualquer hora, nem sequer existia TV

por satélite, e a cultura mantinha-se, assim, preservada de

costumes ocidentais. Não vi uma pessoa vestindo calça je-

ans, nem eu mesma, que rapidamente aprendi a amarrar

ESTRUTURA

O ponto de partida para

a crônica é uma observa-

ção de caráter mais pes-

soal: no caso, a autora

começa a falar sobre um

artigo que leu sobre pes-

soas que meditam com

frequência.

As conclusões apresen-

tadas no texto evocaram

uma outra experiência

pessoal: uma viagem

feita há 7 anos para

Myanmar.

O exemplo das pessoas

citadas no artigo e também

das muitas outras observa-

das na viagem à Myanmar

é o ponto de partida para o

desenvolvimento da refle-

xão pessoal que a autora

deseja fazer.

A conclusão apresen-

tada no texto lido, aliás, já

antecipa o que será o ponto

central da crônica de Maitê

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panos na cintura para fazer saia igual à das moças de lá – se

amarrar diferente vira saia de homem. A única infiltração de

hábito ocidental que se percebe é um pouco de cinema e,

mesmo assim, os filmes são quase sempre indianos. Quem

chega ali vindo de um mundo em que tudo se consegue por

força, fica perplexo diante dos meninos e meninas que esco-

lhem passar, às vezes, três anos de sua adolescência buri-

lando o espírito em monastérios budistas, no preparo para a

vida adulta. Saem sabendo tudo de abnegação, genero-

sidade, da importância do silêncio, do não julgamen-

to... Sabem pouco ou nada de sexo, drogas e rock’n

roll. E conseguem viver sem isso, rindo! Não pretendo

fazer o relato sentimentaloide da pureza de um povo simples

e isolado do mundo, mas é que a virtude precisa mesmo

de exercício para se manter espontânea, e aquele povo,

sei lá por quê, parece achar essa prática importante. [...]

Tenho consciência de que um dia fui melhor do

que hoje – quando eu era mais simples. A vida foi se

sofisticando, me deixando esperta e mais apta para o

jogo social. Tive ganhos com isso mas perdi algo de

genuíno que me diferenciava. Fui perdendo, no corre-

corre do “fiz, faço, aconteço”, o que me aproximava de

uma experiência particular e única – e melhor eu acho.

Felizmente nada é irreversível e não preciso ir morar

em Myanmar pra resgatar minhas virtudes distantes.

Posso fazer isso do meu apartamento em Copacabana

– não é mais poderoso que a firmeza de uma intenção.

Mas aí... Cadê a firmeza? (PROENÇA, Maitê. Entre ossos e a escrita. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.

p. 99-100. (Fragmento).

De modo geral, o princípio organizador da crônica é o movimento reflexivo que

parte de uma experiência única, particular, pontual e vai ampliando a abrangência do

Proença: pessoas que se

dedicam à meditação, em

sofrer a influência da

cultura ocidental que

estimula a competição e

o consumo, são pessoas

melhores, que vivem em

harmonia.

O desenvolvimento do

tema da crônica continua

sendo atravessado pela

experiência particular,

pessoal da autora.

Da observação do povo

de Myanmar, Maitê conclui

algo muito importante sobre

os seres humanos em ge-

ral: a virtude precisa

mesmo de exercício para

manter-se espontânea.

Ou seja, bondade exige

prática. E só existe ação

continuada da generosida-

de, da aceitação do outro

faz com que as pessoas

realmente aprendam a

viver em harmonia.

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que foi vivido ou observado para alcançar um significado mais geral, que ecoe a expe-

riência de diferentes pessoas.

A reação frequente dos leitores aos textos de seus cronistas preferidos é uma prova de

que, de fato, há muito a ser aprendido sobre o comportamento humano a partir da observa-

ção e análise dos fatos cotidianos.

A linguagem utilizada na crônica é marcada por certa informalidade. Como se tra-

ta de um texto para publicação, espera-se que as regras do português escrito culto se-

jam seguidas, mas admite-se a presença de algumas marcas de oralidade.

Essa aparente contradição é facilmente explicada: por trazer sempre uma perspecti-

va fortemente subjetiva, a crônica configura-se como um gênero discursivo no qual se

espera a presença de um “eu”. É essa perspectiva mais pessoal que introduz algumas

notas de informalidade ao texto.

Minha adolescência

A história de minha adolescência é a história de minha doença.

Adoeci aos dezoito anos quando estava fazendo o curso de enge-

nheiro-arquiteto na Escola Politécnica de São Paulo. A moléstia não

me chegou sorrateiramente, como costuma fazer, com emagrecimen-

to, febrinha, um pouco de tosse, não: caiu sobre mim de supetão e

com toda a violência, como uma machadada de Brucutu. Durante

meses, fiquei entre a vida e a morte. Tive de abandonar para sempre

os estudos. Como consegui com os anos levantar-me desse abismo

de padecimentos e tristezas é coisa que me parece a mim e aos que me conheceram então

um verdadeiro milagre. Aos trinta e um anos, ao editar meu primeiro livro de versos, A cinza

das horas, era praticamente um inválido. Publicando-o, não tinha de todo a intenção de inici-

ar uma carreira literária. Aquilo era antes o meu testamento - o testamento da minha adoles-

cência. Mas os estímulos que recebi fizeram-me persistir nessa atividade poética, que eu

LINGUAGEM

OUTROS EXEMPLOS...

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exercia mais como um simples desabafo dos meus desgostos íntimos, da minha forçada

ociosidade. Hoje vivo admirado de ver que essa minha obra de poeta menor - de poeta rigo-

rosamente menor - tenha podido suscitar tantas simpatias.

Conto estas coisas porque a minha dura experiência implica uma lição de otimismo e

confiança. Ninguém desanime por grande que seja a pedra no caminho. A do meu parecia

intransponível. No entanto, saltei-a. Milagre? Pois então isso prova que ainda há milagres.

BANDEIRA, Manuel. Minha adolescência. In: Crônicas para jovens. Seleção, prefácio e notas bibliográficas

Antonieta Cunha. São Paulo, Global, 2012.

O momento mais inesquecível

Quando, aos dezoito anos, adoeci de tuberculose pulmonar, não foi à maneira românti-

ca, com fastio e rosas na face pálida. A moléstia “que não perdoava” (naquele tempo não

havia antibióticos) caiu sobre mim como uma machadada de Brucutu. Fiquei logo entre a

vida e a morte. E fiquei esperando a morte. Mas ela não vinha. Durante alguns anos andei

pelo interior do Brasil em busca de melhoras. Pude assim verificar a verdade daquelas duras

palavras de João da Ega: “Não há nada mais reles de um bom clima”. Jacarepaguá, então

ainda silvestre; Campanha, Teresópolis, Quixeramobim, Mendes, eram bons climas, talvez

suportáveis nestes dias de high-fidelity, rádio e televisão. Mas eu tive de aguentá-los sem

outra defesa senão o violão e a leitura, de que não podia abusar. Era natural que pensasse

na Suíça. Pensava. Pensava muito. Tinha medo porém, de ir para tão longe de meu pai.

Porque não tinha medo de morrer, bem entendido, se no transe tivesse na minha mão a mão

de meu pai. Quando a tentação era maior e eu olhava o mapa e via aquele estirão de Ocea-

no Atlântico, que os navios mais rápidos (não havia aviões) levavam duas semanas a atra-

vessar, meu coração murchava. E eu desistia da Suíça.

Uma noite, depois do jantar, eu estava deitado em meu quarto e minha família – meu

pai, minha mãe e minha irmã – conversava na sala de visitas, contígua ao meu quarto, mas

sem comunicação direta (a comunicação se fazia por um corredor). De repente me faltou a

respiração. Fiz um esforço desesperado para recuperar o fôlego. Tive a impressão nítida de

que iria morrer. Ia morrer separado do meu pai, não pelo Oceano Atlântico, mas por uma

simples parede... Foi horrível. Mas foi uma lição. Desde aquele momento compreendi que

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não adianta apreender o futuro. Vivemos anos apreendendo um futuro imaginário que não

acontece; somos surpreendidos por uma desgraça que jamais havíamos pensado. A sabe-

doria está em pôr o coração à larga e entregar a alma a Deus.

No ano seguinte parti para a Suíça. Não morri lá. Não morri com a mão na de meu pai.

Ele é que morreu com a sua na minha. Eis o momento mais inesquecível.

31/01/1957

BANDEIRA, Manuel. O momento mais inesquecível. In: Crônicas para jovens. Seleção, prefácio e notas biblio-

gráficas Antonieta Cunha. São Paulo, Global, 2012.

Reis vagabundos

Juque! o outro não teve tempo de acabar o insulto: um soco bem colocado nos queixos

atirou-o por cima de uma das mesas do bar. No meio da confusão, vidros partidos, bebida

entornada, um garçon (os garçons gostavam dele) encaminhou o agressor para o mictório,

de onde por uma escada de mão se subia a uma soteiazinha, que era depósito de víveres e

bebidas. Isso era novidade para ele. Foi só quando os seus olhos se habituaram à meia es-

curidão do local, que percebeu nas prateleiras as latas de foie gras e mortadela, os queijos,

“and lo! creation widened in man’s view”, a bateria impressionante dos Black Label e dos

White Horse ali ao alcance da mão.

— Eta, sabiá da mata! O sol quando nasce é para todos!

Quebrou o gargalo de uma garrafa numa quina de madeira e o whisky começou a rolar

dentro e fora da boca. Um desperdício de roquefort completou aquela orgia sem mulheres.

Meia hora depois o mesmo garçon que o encaminhara ali, veio avisar que o caminho estava

desimpedido.

Desceu na calada e ganhou a rua. Hep! Rapidez e eficiência. Na rua Treze de Maio

sentiu que não podia esperar. Desacatou o poste de iluminação. Quando estava assim, a

sua ideia fixa era desacatar. Mas tanto era desacatar o ato de provocar um amigo ou desco-

nhecido, como virar uma garrafa inteira de Madeira R ou fazer aquilo no poste, à vista de

toda a gente. “Desacatei! Hep!”

No Ventania apareceu o vice-cônsul, maior do que ele, mais corado do que ele, elegan-

te pra cachorro: “Vil burocrata, espancá-lo-ei na via pública!” Mas espancou o quê, foram

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mas foi beber numa pensão da Lapa, espavorindo as mulheres, afugentando os michês,

hep!, enquanto a pianista feia e velha, única pessoa sem medo, mantinha o pretígio da casa

atacando com bravura o “Zaraza”. Depois o Lamas até às primeiras claridades da manhã.

Só então, porque como a Tristão e Isolda o sol é odioso aos notívagos desta espécie, os

dois deixaram o tradicional café do largo do Machado em busca de abrigo.

O vice-cônsul dormia num velho solar do Segundo Reinado, que ficava para os lados

da Gávea, próximo da lagoa Rodrigo de Freitas. A quebradeira dos herdeiros ajudada pelo

capim reduzira o antigo solar a habitação coletiva e quinze anos deste último regime acaba-

ram arruinando o casarão, hoje desocupado, com exceção de um pequeno quarto no puxa-

do, onde o vice-cônsul se instalara com armas e bagagens. As bagagens eram uma cama

de ferro, uma mesa de pinho não envernizada e uma cadeira de assento de palhinha furado;

a arma era uma só, uma arapuca de passarinhos, cuja utilidade se verá mais adiante. Havia

aos fundos uma boa chácara, onde por favor moravam dois mulatos que não atendiam nun-

ca pelos nomes e sim pelos títulos de sua atividade junto ao vice-cônsul. Eram os secretá-

rios nos 1 e 2.

Até às oito horas houve uma tentativa honesta de sono. Àquela hora o vice-cônsul, que

sempre cochilara um bocadinho, levantou-se da cama e disse sério para o outro: — “Chegou

a hora do ganha-pão!”.

O secretário nº 1 foi despachado para a cidade com uma carta que bem respondida

deveria valer uma nota de vinte. Depois os dois amigos se dirigiram ao fundo da chácara, o

vice-cônsul armou o alçapão, que ficou confiado à vigilância do secretário nº 2, enquanto os

rapazes voltavam para o quarto a fumar os últimos cigarros. O vice-cônsul sabia que o re-

curso não falhava. O ganhapão era seguro.

Com efeito, três quartos de hora mais tarde o secretário nº 2 entrava da chácara tra-

zendo na mão um bonito bem-te-vi laranjeira. Hep! Seguiu-se o preparo do bem-te-vi. O vi-

ce-cônsul tomou do bichinho, abriu-lhe o bico e deixou cair uma ou duas gotas de aguarden-

te de bagaceira. O passarinho arregalou os olhinhos e ficou firme, empoleirado no dedo indi-

cador do secretário nº 2, como se estivesse hipnotizado.

— Não venda por menos de dez mil-réis!

O secretário ganhou a rua, veio descendo até Voluntários da Pátria, com o bem-te-vi

firme no dedo. Quando passasse por ele um menino acompanhado da mãe, era só oferecer

o “bem-te-vi ensinado”. O passarinho passava para o indicador do menino e enquanto du-

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Crônica 6

Rubem Braga (1913-1990)

foi cronista e jornalista brasi-

leiro. Tornou-se famoso como

cronista de jornais e revistas

de grande circulação no país.

Foi correspondente de guerra

na Itália e Embaixador do

Brasil em Marrocos.

rasse o porrinho seria bem-te-vi ensinado. Era sempre assim e foi assim também daquela

vez.

Quando o secretário nº. 2 voltou com os dez mil-réis do bem-te-vi, o vice-cônsul man-

dou-o comprar ovos, presunto, queijo e cachaça, mais cigarros, e os amigos almoçaram aí

pelas duas da tarde, hep!

BANDEIRA, Manuel. Reis vagabundos. In: Crônicas para jovens. Seleção, prefácio e notas bibliográficas Anto-

nieta Cunha. São Paulo, Global, 2012.

O pavão de Braga

Domingo passado apanhei na banca os meus jor-

nais (numerosos por causa dos suplementos literários,

e agora o jovem Eduardo Portela está-nos obrigando a

comprar também o Jornal do Commercio), voltei para

casa e, lentus in umbra, comecei a leitura pelo Diário

de Notícias, buscando na segunda página do 1º cader-

no, à esquerda, no alto, o palmo de prosa de Rubem

Braga. Mas desta vez não chegava a um palmo, eram

três dedos, mal medidos. E pensei comigo: “O velho

Braga anda preguiçoso”.

Qual não foi a minha surpresa quando principiei a

ler e vi que estava diante de mais uma pequenina obra-

prima desse príncipe da crônica que é o taciturno cida-

dão de Cachoeiro de Itapemirim!

Já tentei explicar um dia a razão da superioridade de Braga sobre todos nós no gênero

por excelência caduco: a crônica. Parece-me que o segredo dele é pôr sempre no que es-

creve o melhor de certa sua inefável poesia. “Os outros cronistas”, ajuntei, “põem também

poesia nas suas crônicas, mas é o refugo, poesia barata, vulgarmente sentimental... A boa,

eles guardam para os seus poemas. Braga, poeta sem oficina montada e que faz poema

uma vez na vida e outra na morte, descarrega os seus bálsamos e os seus venenos na crô-

nica diária.”

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Crônica 7

É isso mesmo. De vez em quando mostra espírito público, escreve sobre Brasília, im-

postos, eleições. Quando a tragicomédia brasileira o enche demais, volta aos dias da infân-

cia em Cachoeira. Ou se Zico está fora, escreve-lhe uma carta puxa-puxa. Ou, muito sim-

plesmente, namora com uma das suas paixões, que, segundo a receita do famoso soneto de

Vinicius, são sempre eternas enquanto duram.

A crônica de domingo era desta última categoria. Braga leu nos livros que as cores da

cauda do pavão, esse “arco-íris de plumas”, não estão nessas plumas: são efeitos de pris-

ma. Muito bem, até aí o que há é didática. Mas a seguir o poeta Braga tira dessa primícia

duas imagens de também luxo imperial como o da cauda do pavão. A primeira é a do artista,

que quando é grande “atinge o máximo de matizes com o mínimo de elementos”; a segunda

é a do amor – do amor dele Braga: de tudo o que esse amor suscita e que esplende, estre-

mece e delira nele, existe de fato o quê? Os dois olhos dele recebendo a luz dos dois olhos

dela...

Obrigado, Braga, por esse pavão magnífico.

[12.Xl.1958]

BANDEIRA, Manuel. O pavão do Braga. In: Crônicas para jovens. Seleção, prefácio e notas bibliográficas An-

tonieta Cunha. São Paulo, Global, 2012.

Produção textual – Atividade 1

Leia:

Estive fazendo um levantamento de todas as baboseiras que me enviaram pela Internet

e observei como elas mudaram a minha existência. Primeiro, deixei de ir a bares, com medo

de me envolver com alguma mulher ligada a alguma quadrilha de ladrões de órgãos que me

roubasse as córneas, me arrancasse os dois rins e me deixasse estirado dentro de uma ba-

nheira de gelo.

Deixei também de ir ao cinema, com medo de me sentar em uma poltrona com seringa

infectada com o vírus da Aids. Depois parei de atender o telefone para evitar que me pedis-

sem para digitar *9, e tivesse minha linha clonada e fosse obrigado a pagar uma conta tele-

fônica astronômica.

Dei o meu celular porque iriam me presentear com um modelo mais novo da Ericsson,

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que nunca chegou. Então tive de comprar outro, mas o abandonei, com medo que as micro-

ondas me dessem câncer no cérebro. Deixei de comer vários alimentos com medo dos es-

trógenos.

Parei de comer galinha e hambúrgueres porque eles não são mais que carne de mons-

tros horríveis, sem olhos, cabeludos e cultivados em um laboratório.

Abandonei o hábito de tomar qualquer coisa em lata para não morrer contaminado pela

urina do rato.

Deixei de ir aos shoppings com medo que sequestrassem minha mulher e a obrigas-

sem a gastar todos os limites do cartão de crédito ou colocassem alguém morto no porta-

malas do automóvel dela.

Eu também doei todas as minhas poupanças à conta de Brian, um menino doente que

estava a ponto de morrer umas 700 vezes no hospital.

E como se não bastasse, terminei acreditando que tudo de ruim e de injusto que me

aconteceu é porque quebrei todas as correntes ridículas que me enviaram e acabei sendo

amaldiçoado, mesmo rezando todos os dias!

Resultado: estou em tratamento psiquiátrico.

(Joelmir Beting)

Você já se deu conta de como estamos? A tecnologia está avançando e de como de-

vemos acompanhar seus passos? Escreva uma CRÔNICA em que você narra, de forma

irônica, uma de suas experiências com um dos frutos da tecnologia.

Organize suas ideias. Procure anotar que tipo de emoção, sentimento, reação ou re-

flexão o assunto da crônica desencadeou em você.

A estrutura da crônica prevê como ponto de partida para o texto a apresentação de

um breve relato que situe o leitor em relação ao fato/ imagem/ comportamento que

desencadeou o processo analítico. Como você fará essa introdução?

A linguagem da crônica admite certa informalidade, mas evite exageros nas marcas

de oralidade. Se você julgar interessante, lembre-se de que é possível estabelecer

uma interlocução com o leitor do texto.

AGORA É A SUA VEZ...

ORIENTAÇÕES

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Crônica 8

A possibilidade de abordar um sem-número de temas faz com que os cronistas escre-

vam sobre os mais variados tópicos. É possível, porém, identificar algumas grandes tendên-

cias no interior desse gênero discursivo. Por essa razão, alguns teóricos propõem uma

“classificação” das crônicas, a depender dos assuntos nelas abordados.

Vejamos algumas delas:

Crônica mundana: trata de fatos ou acontecimentos característicos de uma socieda-

de. É o caso do primeiro texto lido no começo deste material, a crônica Entre quatro

paredes, de Bill Bryson;

Crônica reflexiva: registra a expressão de um estado de espírito do cronista. Veja

um exemplo:

Vitória nossa

O que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia? Não temos

amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque não que-

remos ser tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos, nem aos ou-

tros. Não temos nenhuma alegria que tenha sido catalogada. Temos construído catedrais e

ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmos construímos tememos que sejam

armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida

larga e talvez sem consolo. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro que por amor

diga: teu medo. Temos organizado associações de pavor sorridente, onde se serve a bebida

com soda. Temos procurado salvar-nos, mas sem usar a palavra salvação para não nos en-

vergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reco-

nhecer sua contextura de amor e de ódio. Temos mantido em segredo a nossa morte. Te-

mos feito arte por não sabermos como é a outra coisa. Temos disfarçado com amor nossa

indiferença, disfarçado nossa indiferença com a angústia, disfarçando com o pequeno medo

o grande medo maior. Não temos adorado, por termos a sensata mesquinhez de nos lem-

brarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido ingênuos para não rirmos de nós mes-

mos e para que no fim do dia possamos dizer “pelo menos não fui tolo”, e assim não cho-

rarmos antes de apagar a luz. Temos tido a certeza de que eu também e vocês todos tam-

bém, e por isso todos sem saber se amam. Temos sorrido em público do que não sorrimos

DIFERENTES TEMAS, DIFERENTES CRÔNICAS...

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Crônica 9

quando ficamos sozinhos. Temos chamado de fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido

um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso temos considerado a vitória nossa de cada dia...

(Clarice Lispector)

Crônica humorística: apresenta uma visão irônica ou cômica dos fatos relatados;

Veja um exemplo:

Desabafos de um bom marido

Minha esposa e eu temos o segredo pra fazer um casamento durar: duas vezes por

semana, vamos a um ótimo restaurante, com uma comida gostosa, uma boa bebida, e um

bom companheirismo. Ela vai às terças-feiras, e eu às quintas.

Nós também dormimos em camas separadas. A dela é em Fortaleza e a minha em São

Paulo. Eu levo minha esposa a todos os lugares, mas ela sempre acha o caminho de volta.

Perguntei a ela onde ela gostaria de ir no nosso aniversário de casamento. “Em algum lugar

que eu não tenha ido há muito tempo!” ela disse. Então eu sugeri a cozinha.

Nós sempre andamos de mãos dadas. Se eu soltar, ela vai às compras. Ela tem um li-

quidificador elétrico, uma torradeira elétrica, e uma máquina de fazer pão elétrica. Então ela

disse: “Nós temos muitos aparelhos, mas não temos lugar pra sentar”. Daí, comprei pra ela

uma cadeira elétrica.

Lembrem-se, o casamento é a causa número um para o divórcio. Estatisticamente,

100% dos divórcios começam com o casamento. Eu me casei com a “Sra. Certa”. Só não

sabia que o primeiro nome dela era “Sempre”.

Já faz 18 meses que não falo com minha esposa. É que não gosto de interrompê-la.

Mas tenho que admitir, a nossa última briga foi culpa minha. Ela perguntou: “O que tem na

TV?” E eu disse “Poeira”.

No começo Deus criou o mundo e descansou. Então, Ele criou o homem e descansou.

Depois, criou a mulher.

Desde então, nem Deus, nem o homem, nem Mundo tiveram mais descanso. “Quando

o nosso cortador de grama quebrou, minha mulher ficava sempre me dando a entender que

eu deveria consertá-lo. Mas eu sempre acabava tendo outra coisa para cuidar antes: o ca-

minhão, o carro, a pesca, sempre alguma coisa mais importante para mim.

Finalmente ela pensou num jeito esperto de me convencer. Certo dia, ao chegar em

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Crônica 10

casa, encontrei-a sentada na grama alta, ocupada em podá-la com uma tesourinha de costu-

ra. Eu olhei em silêncio por um tempo, me emocionei bastante e depois entrei em casa.

Em alguns minutos eu voltei com uma escova de dentes e lhe entreguei. “Quando você

terminar de cortar a grama,” eu disse, “você pode também varrer a calçada.”

Depois disso não me lembro de mais nada. Os médicos dizem que eu voltarei a andar,

mas mancarei pelo resto da vida.

“O casamento é uma relação entre duas pessoas na qual uma está sempre certa e a

outra é o marido...”

(Luis Fernando Veríssimo)

Crônica jornalística: trata periodicamente de aspectos particulares de notícias ou

fatos; pode ser policial, esportiva, política, etc. Veja o exemplo:

Notícia de jornal

Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de cor branca,

30 anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno centro

da cidade, permanecendo deitado na calçada durante 72 horas, para finalmente morrer de

fome.

Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos e comentários, uma ambulância do

Pronto Socorro e uma radiopatrulha foram ao local, mas regressaram sem prestar auxílio ao

homem, que acabou morrendo de fome.

Um homem que morreu de fome. O comissário de plantão (um homem) afirmou que o

caso (morrer de fome) era da alçada da Delegacia de Mendicância, especialista em homens

que morrem de fome. E o homem morreu de fome.

O corpo do homem que morreu de fome foi recolhido ao Instituto Anatômico sem ser

identificado. Nada se sabe dele, senão que morreu de fome.

Um homem morre de fome em plena rua, entre centenas de passantes. Um homem ca-

ído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um

marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa - não é um homem.

E os outros homens cumprem seu destino de passantes, que é o de passar. Durante

setenta e duas horas todos passam, ao lado do homem que morre de fome, com um olhar

de nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar nenhum.

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Passam, e o homem continua morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os

homens, sem socorro e sem perdão.

Não é da alçada do comissário, nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria

de ser da minha alçada? Que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.

E o homem morre de fome. De trinta anos presumíveis. Pobremente vestido. Morreu de

fome, diz o jornal. Louve-se a insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome,

pedindo providências às autoridades.

As autoridades nada mais puderam fazer senão remover o corpo do homem. Deviam

deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros homens. Nada mais puderam fazer

senão esperar que morresse de fome.

E ontem, depois de setenta e duas horas de inanição, tombado em plena rua, no centro

mais movimentado da cidade do Rio de Janeiro, Estado da Guanabara, um homem morreu

de fome.

(Crônica de Fernando Sabino)

Existem várias outras classificações para as crônicas. É claro que essa é apenas uma

referência e, em muitos casos, uma mesma crônica pode apresentar características associ-

adas a mais de um dos tipos identificados acima.

Produção textual – Atividade 2

É bastante comum que as crônicas publicadas nos jornais tenham como ponto de par-

tida a leitura de uma notícia exibida anteriormente no próprio meio e lida pelo cronista. O

autor da crônica demonstra interesse em escrever a respeito de determinado assunto a fim

de extrapolar o campo da mera exposição de um acontecimento e revela um caráter de

questionamento e indagação acerca da vida cotidiana.

A crônica “Notícia de jornal” (página 18), do Fernando Sabino, foi originada a partir da

seguinte notícia de jornal:

Homem morre de fome no centro da cidade

Um homem de cor branca, 30 anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome

ontem, no centro da cidade, depois de ter permanecido por setenta e duas horas deitado na

calçada. Uma ambulância do Pronto Socorro e uma radiopatrulha, chamadas insistentemen-

te por comerciantes instalados nas proximidades, nada fizeram, alegando que o caso fugia

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às suas atribuições, era da alçada da Delegacia de Mendicância. O corpo foi recolhido ao

Instituto Médico Legal, onde aguarda identificação.

(Notícia retirada do livro: Português: uma proposta para o Letramento. Livro 7. Autora: Magda Soares)

Observe que a notícia restringe-se a expor ao leitor qual foi o acontecimento, não há

qualquer tipo de subjetividade, ou seja, de reflexão do autor. Ao contrário do que acontece

na crônica, um texto permeado pelas impressões, ou subjetividades, do cronista Fernando

Sabino, que, ao repetir a frase “um homem morreu de fome”, demonstra sua indignação di-

ante do fato.

Leia a notícia abaixo e, a partir dela, escreva uma crônica em que você apresente ao

leitor suas impressões e opiniões a respeito do tema abordado por ela.

Anunciado no Facebook, tênis da Adidas é considerado racista

Com correntes de borracha, calçado teve a venda suspensa

No mês de junho, a fabricante de materiais esportivos Adidas anunciou em sua página

do Facebook o lançamento de um novo tênis na linha outono-inverno 2012, segundo infor-

mou o jornal “Le Monde”. Desenhado pelo estilista Jeremy Scott Roundhouse, o calçado traz

pulseiras de borracha simulando correntes, que muitos internautas viram como uma referên-

cia à escravidão.

Segundo a CNN, a empresa rapidamente removeu a postagem na página do Facebo-

ok, mas o assunto já havia rodado o globo gerando revolta entre internautas.

“Aparentemente não havia pessoas de cor no departamento de marketing que o apro-

vou”, brinca Rodwell em comentário no site “Nice Kicks”, portal destinado aos lançamentos

de tênis.

A empresa, inicialmente, defendeu o designer, descrevendo seu estilo como “original” e

alegre, mas o fabricante alemão emitiu um comunicado onde pede desculpas aos ofendidos

com o caso e afirma que o modelo não será comercializado.

Fonte: (http://ocadernodarose.blogspot.com.br/2012/09/escreva-uma-cronica-com-base-nesta.html)

Organize suas ideias. Procure anotar que tipo de emoção, sentimento, reação ou re-

flexão o assunto da notícia desencadeou em você.

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ORIENTAÇÕES

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A estrutura da crônica prevê como ponto de partida para o texto a apresentação de

um breve relato que situe o leitor em relação ao fato/ imagem/ comportamento que

desencadeou o processo analítico. Como você fará essa introdução?

A linguagem da crônica admite certa informalidade, mas evite exageros nas marcas

de oralidade. Se você julgar interessante, lembre-se de que é possível estabelecer

uma interlocução com o leitor do texto.