crÍtica À teoria do trabalho imaterial a partir da crÍtica À divisÃo dos trÊs paradigmas...

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1 CRÍTICA À TEORIA DO TRABALHO IMATERIAL A PARTIR DA CRÍTICA À DIVISÃO DOS TRÊS PARADIGMAS PRODUTIVOS Vinícius Oliveira Santos Mestrando em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas Bolsista do CNPq Resumo: A produção teórica principal do que aqui chamamos de recente teoria do trabalho imaterial, difundida principalmente por Antonio Negri, Maurizio Lazzarato, Michael Hardt, tem como um de seus fundamentos a apreensão da dinâmica produtiva de acordo com a sucessão dos paradigmas econômicos. A transição de um paradigma a outro seria determinado pelo número de trabalhadores agregados no setor primário (agricultura e extração), secundário (fabril) ou terciário (serviços). Daí decorre a compreensão do trabalho imaterial (situado, segundo esses autores, no setor terciário) enquanto uma forma de atividade laborativa que rompe com os elementos do trabalho material, típicos do setor secundário. Não haveria, portanto, correlações necessárias entre as formas materiais e imateriais de trabalho. A presente pesquisa almeja empreender, a partir da crítica à visão dos três setores, uma crítica à compreensão que desarticula o trabalho material do trabalho imaterial usando como peça fundamental as teorizações de Karl Marx e de alguns autores marxistas que apontam para uma visão imbricada entre tais formas de trabalho. Aqui, os conceitos de capital industrial, processo de produção, trabalho produtivo e trabalho improdutivo, assumem importância central para a crítica a ser feita, que desmistifica o modo pelo qual a categoria trabalho é delineada pela recente teoria do trabalho imaterial. Introdução Os elementos aqui expostos constituem parte de uma pesquisa teórica desenvolvida entre 2008-2010 sob a orientação do Prof. Edilson José Graciolli, atrelada ao Grupo de Pesquisa Trabalhadores, Sindicalismo e Política. Os resultados foram apresentados quase integralmente, sob a forma de monografia, como quesito para obtenção do título de bacharel na Universidade Federal de Uberlândia, sob o título O debate atual acerca da correlação entre as categorias de materialidade e imaterialidade do trabalho: uma introdução à análise crítica. No referido trabalho, buscamos sistematizar a contribuição de diferentes autores cujas teorizações balizam o debate contemporâneo sobre a relação entre trabalho material/imaterial. De um lado, analisamos autores alinhados às premissas teórico- metodológicas de Karl Marx, e de outro, apreciamos a vertente que nomeamos de recente teoria do trabalho imaterial 1 . 1 Recente aqui em dois sentidos: cronologicamente, por ser posterior às formulações de Karl Marx a partir da qual autores contemporâneos utilizaram para realizar algum avanço na análise do trabalho imaterial; e recente

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CRÍTICA À TEORIA DO TRABALHO IMATERIAL A PARTIR DACRÍTICA À DIVISÃO DOS TRÊS PARADIGMAS PRODUTIVOS

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  • 1CRTICA TEORIA DO TRABALHO IMATERIAL A PARTIR DA CRTICA DIVISO DOS TRS PARADIGMAS PRODUTIVOS

    Vincius Oliveira SantosMestrando em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas

    Bolsista do CNPq

    Resumo: A produo terica principal do que aqui chamamos de recente teoria do trabalho imaterial, difundida principalmente por Antonio Negri, Maurizio Lazzarato, Michael Hardt, tem como um de seus fundamentos a apreenso da dinmica produtiva de acordo com a sucesso dos paradigmas econmicos. A transio de um paradigma a outro seria determinado pelo nmero de trabalhadores agregados no setor primrio (agricultura e extrao), secundrio (fabril) ou tercirio (servios). Da decorre a compreenso do trabalho imaterial (situado, segundo esses autores, no setor tercirio) enquanto uma forma de atividade laborativa que rompe com os elementos do trabalho material, tpicos do setor secundrio. No haveria, portanto, correlaes necessrias entre as formas materiais e imateriais de trabalho. A presente pesquisa almeja empreender, a partir da crtica viso dos trs setores, uma crtica compreenso que desarticula o trabalho material do trabalho imaterial usando como pea fundamental as teorizaes de Karl Marx e de alguns autores marxistas que apontam para uma viso imbricada entre tais formas de trabalho. Aqui, os conceitos de capital industrial, processo de produo, trabalho produtivo e trabalho improdutivo, assumem importncia central para a crtica a ser feita, que desmistifica o modo pelo qual a categoria trabalho delineada pela recente teoria do trabalho imaterial.

    Introduo

    Os elementos aqui expostos constituem parte de uma pesquisa terica desenvolvida

    entre 2008-2010 sob a orientao do Prof. Edilson Jos Graciolli, atrelada ao Grupo de

    Pesquisa Trabalhadores, Sindicalismo e Poltica. Os resultados foram apresentados quase

    integralmente, sob a forma de monografia, como quesito para obteno do ttulo de

    bacharel na Universidade Federal de Uberlndia, sob o ttulo O debate atual acerca da

    correlao entre as categorias de materialidade e imaterialidade do trabalho: uma

    introduo anlise crtica. No referido trabalho, buscamos sistematizar a contribuio de

    diferentes autores cujas teorizaes balizam o debate contemporneo sobre a relao entre

    trabalho material/imaterial. De um lado, analisamos autores alinhados s premissas terico-

    metodolgicas de Karl Marx, e de outro, apreciamos a vertente que nomeamos de recente

    teoria do trabalho imaterial1.

    1 Recente aqui em dois sentidos: cronologicamente, por ser posterior s formulaes de Karl Marx a partir da qual autores contemporneos utilizaram para realizar algum avano na anlise do trabalho imaterial; e recente

  • 2As conceituaes da recente teoria do trabalho imaterial giram em torno,

    principalmente, de autores italianos que designaram a si mesmos como neomarxistas.

    Maurizio Lazzarato (2001d), em um artigo intitulado Trabalho autnomo, produo por

    meio de linguagem e General Intellect, atribui corrente operasta italiana a elaborao

    do conceito de trabalho imaterial, ampliada, posteriormente, por seus continuadores dos

    quais o prprio Lazzarato faz parte. O operasmo italiano, segundo Giuseppe Cocco (2001)

    uma escola de pensamento cuja produo terica foi ligada ao neomarxismo italiano no

    final da dcada de 1950 e incio de 1970, tendo Antonio Negri como um de seus principais

    articulistas.

    Desta vertente, a maior parte das obras voltadas analise do trabalho imaterial foi

    escrita, segundo Cocco, tendo em vista: o debate francs sobre reestruturao produtiva,

    crise do fordismo e transformaes do trabalho (COCCO, 2001, p. 7). Mais frente

    veremos o sentido que os operastas e seus sucessores fornecem a estes elementos. Por

    hora cabe apenas elucidar que as profundas transformaes ocorridas principalmente na

    dcada de 1970 foram o substrato emprico por onde a recente teoria do trabalho imaterial

    foi desenvolvida. importante lembrar que os autores tomaram como campo emprico a

    chamada Terceira Itlia (regio que agrega Milo, Turim, Bolonha, Florena, Veneza,

    Gnova etc.) onde existem vrios grupos de pequenas empresas que adotam a inovao

    contnua e o uso de mtodos flexveis de produo.

    O que podemos verificar com essas teorizaes, um processo de repulsa teoria

    marxiana intensificado no limiar da reestruturao produtiva em questo, tendo como

    suposta justificativa a reduo dos postos de trabalho industriais. Esta reestruturao da

    produo teve como uma das muitas conseqncias a diminuio de empregos formais no

    setor fabril e expanso de outras formas de trabalho, entre elas um aumento das atividades

    dotadas de maior dimenso intelectual (ANTUNES, 2005, p. 63). Na presena destes

    fenmenos nasceu a recente teoria do trabalho imaterial, marcada por diversas rupturas

    com a base terica marxiana, buscando fornecer um novo material terico para explicar o

    que os autores chamam como o novo tipo de trabalho: o trabalho que no produz uma

    mercadoria palpvel, material, mas tem como resultado um servio, uma informao etc.,

    cujos representantes principais so Antonio Negri, Maurizio Lazzarato, Michael Hardt e,

    no meio acadmico brasileiro, Giuseppe Cocco. Nos seus apontamentos, a teoria marxiana

    foi declarada defasada em muitos de seus elementos fulcrais (como por exemplo, a teoria

    por no conceberem formas de trabalho imaterial anterior ao processo de ps-modernizao econmica, como veremos.

  • 3do valor), pois o trabalho nos termos marxistas estaria sendo substitudo por um novo

    regime de produo comandado pelo trabalho imaterial. (HARDT; NEGRI, 2002, p. 225).

    Neste artigo analisaremos criticamente um dos pilares da recente teoria do trabalho

    imaterial: o pressuposto da diviso entre trs setores da economia (agricultura, indstria e

    servios) e as implicaes decorrentes na compreenso do capitalismo atual enquanto um

    modelo oriundo do processo de ps-modernizao econmica, na qual domina o trabalho

    imaterial. O processo a que os autores se referem diz respeito reestruturao produtiva

    intensificada na dcada de 1970. Por isso, torna-se necessrio uma apreciao acerca dos

    sentidos da reestruturao produtiva, que indicar a viso fragmentria dos trs setores

    produtivos. Tentaremos desvendar as conseqncias tericas oriundas nesse tipo de

    anlise. Levantaremos pontos de crtica a estes elementos com base na teoria social de Karl

    Marx e de alguns autores marxistas.

    1. O processo de ps-modernizao econmica e os sentidos da reestruturao

    produtiva segundo a recente teoria do trabalho imaterial.

    Nesta primeira seo do artigo abordaremos as questes concernentes viso

    fragmentada dos trs setores da economia (agricultura, fbrica e servios) nos autores da

    recente teoria do trabalho imaterial, dos quais Antonio Negri, Mauricio Lazzarato, Michael

    Hardt e Giuseppe Cocco so os principais expoentes para o que nos propusemos analisar.

    Explicitaremos o movimento atravs da qual as formas de produo dominantes tornaram-

    se preponderantemente imateriais e situadas no setor tercirio da economia segundo a

    matriz terica em questo. O movimento a que referimos foi resultado da reestruturao

    produtiva intensificada na dcada de 1970. Por este motivo, o presente item perpassa,

    sistematicamente, pelos sentidos da reestruturao uma vez que nesta apreciao tornar-se-

    evidente a viso dicotmica entre as diferentes fases do capitalismo nos autores que nos

    incumbimos verificar. Estes elementos, conforme veremos, possuem alguns limites que

    sero criticados neste trabalho, em momento oportuno.

    No polmico livro Imprio, Hardt e Negri (2002) afirmam que domina na

    configurao econmica atual o ciclo de ps-modernizao econmica. Este processo

    resultaria na abertura de novo paradigma econmico marcado pela preponderncia dos

    servios e da manipulao da informao, o chamado setor tercirio, na economia: um

    sintoma dessa mudana est patente nas alteraes quantitativas no emprego. (HARDT;

    NEGRI, 2002, p. 306, destaques nossos). Os autores preconizam que a concentrao do

  • 4contingente de trabalhadores em torno do trabalho na agricultura (setor primrio), ou do

    trabalho industrial que para eles corresponde a trabalho fabril - (setor secundrio), ou

    do trabalho como servio (setor tercirio), revelaria a entrada no respectivo paradigma. A

    transio do setor primrio para o secundrio nomeado por eles como o processo de

    modernizao da economia, e, a do secundrio para o tercirio, recebe o ttulo de ps-

    modernizao produtiva. A insero neste novo paradigma foi resultado de um processo de

    reestruturao produtiva, a saber: a passagem do fordismo ao ps-fordismo (ou sociedade

    ps-industrial) e inaugura a produo do trabalho imaterial. Como percebemos, na viso

    dos autores, h uma ntida fragmentao dos paradigmas produtivos a partir da qual a

    entrada na era da dominncia do setor tercirio na economia teve como movimento

    balizador a reestruturao produtiva nos idos de 1970. Por estas razes, nossa proposta de

    anlise deve partir da anlise da viso que privilegia a diviso da economia em trs setores,

    mas sem se contentar com ela. A apreciao que faremos deve indicar quais mecanismos

    incidiram influncia fulcral na transio do setor secundrio para o setor tercirio. Segundo

    os autores analisados nesse item do artigo, estes mecanismos so os mesmos que

    implodiram a reestruturao produtiva que mencionamos acima. necessrio, portanto,

    que vejamos mais de perto como se deu, segundo essa vertente terica, o processo de

    reestruturao produtiva que implantou o modelo ps-fordista a partir dcada de 1970, que

    marcaria o incio fenomnico do chamado capitalismo cognitivo e a suposta

    preponderncia do setor tercirio na produo.

    De acordo com as idias de Giuseppe Cocco (2001), na dcada em questo, duas

    grandes tendncias profundas eram observveis, isto , havia um duplo processo que estava

    diretamente relacionado mudana de paradigma produtivo (do secundrio ao tercirio) na

    dcada em questo. De um lado, o investimento macio em tecnologias de automao que

    promoveu processos de externalizao e descentralizaes produtivas. (COCCO, 2001,

    p. 19). A segunda grande tendncia percebida naquela dcada foi o processo que Negri

    (1991) chama de autonomia operria marcado pela nova estrutura de classe cujos

    contornos no diziam respeito s formas de dualizao classificatria (marxistas, diga-se

    de passagem) dos operrios fordistas, mas sim, aos trabalhadores do novo regime de

    acumulao, isto , o operrio social em vez do operrio massa do taylorismo

    (COCCO, 2001, p. 20).

    Desses dois movimentos, em primeiro lugar analisaremos a tendncia que diz

    respeito s caractersticas tcnicas e organizacionais da reestruturao. Feito isso,

    pormenorizaremos a questo da autonomia operria, que est relacionada, seguindo a

  • 5classificao de Negri, Lazzarato, Hardt e Cocco, a uma nova subjetividade. o que

    explicitaremos a partir de agora.

    Negri e Hardt (2004) j haviam formulado, de forma breve, questo da

    descentralizao tpica da era da produo imaterial ps-fordista: a fbrica no pode mais

    ser concebida como o lugar paradigmtico da concentrao do trabalho e da produo;

    processos de trabalho se moveram para fora das paredes da fbrica para investirem toda a

    sociedade. (HARDT; NEGRI, 2004, p. 9). No entanto, esses autores no aprofundam com

    quais meios tcnicos tornou-se possvel a descentralizao. O autor que sistematiza com

    mais clareza o carter tcnico da reestruturao produtiva que marcou o processo de um

    paradigma ps-fordista sob a base terica dos autores da recente teoria do trabalho

    imaterial Giuseppe Cocco.

    A insero de novas tecnologias de informao e comunicao (NTIC) na viso de

    Cocco teve importncia central na transformao do regime de acumulao baseado na

    grande indstria e na emergncia de novas formas produtivas que era na verdade um

    deslocamento da prpria funo produtiva para as atividades imateriais (COCCO;

    SILVA; GALVO, 2003, p. 7).

    Segundo Antonella Corsani (2003) as NTIC por serem tecnologias cognitivas e

    relacionais permitem a valorizao sobre as qualidades de conhecimento do trabalhador.

    Neste contexto, o conhecimento e a inovao manifestam-se enquanto fora produtiva

    central da produo: em vez da produo de mercadorias por meio de mercadorias, a era

    ps-fordista, que simultaneamente ps-industrial, compreende a produo de

    conhecimentos por meio de conhecimentos. Essa valorizao do conhecimento peculiar ao

    novo modo de produo no altera sua natureza geral mesmo quando atrelada

    produo de mercadorias materiais.

    Por no ser possvel quantificar materialmente o resultado desse tipo de trabalho, e

    aqui j se distanciando de Marx, um lugar-comum da vertente terica analisada nesse

    item afirmar que o novo paradigma produtivo, onde domina o trabalho imaterial, rompeu

    com as antigas formas de trabalho assalariado. Este um dos pressupostos centrais do que

    os autores chamam de capitalismo cognitivo. Percebamos que a passagem do fordismo ao

    ps-fordismo considerada em termos de uma ruptura com a forma anterior de

    acumulao. Sobre esse assunto Corsani afirma: desincorporados de qualquer suporte

    material, os conhecimentos desequilibram as teorias do valor, tanto a marxista quanto a

    neoclssica (CORSANI, 2003, p. 28). A teoria do valor teria uma base material e

    quantitativa e, por tal motivo, estaria superada no capitalismo cognitivo.

  • 6Prosseguindo com a teorizao de Giuseppe Cocco, Gerardo Silva e Alexander

    Galvo, os autores tambm explicitam que a inovao no depende to-somente dos

    aspectos tecnolgicos (COCCO; SILVA; GALVO, 2003, p. 13), mas evolvem aspectos

    organizacionais do ciclo da produo. Na nova forma de produo social, isto , produo

    comandada pelo trabalho imaterial, haveria um processo de interao redes-redes. Neste

    modelo organizacional e institucional, empresas e instituies trocariam informaes,

    conhecimentos e aprendizados entre si de modo que as inovaes necessrias s atividades

    produtivas so alteradas incessantemente.

    Nos elementos levantados em Cocco, a reestruturao produtiva da dcada de 1970

    foi tratada no aspecto da mudana tecnolgica e organizacional. Indicamos a dupla

    tendncia que explicitamos no incio da exposio do presente item nos falta considerar

    pressupostos que subsidiem o carter poltico da reestruturao e que reflita sobre as

    influncias e presses ensejados pela a organizao da classe trabalhadora, cuja luta

    culminou na alterao da estrutura produtiva.

    Em termos, esta lacuna pode ser preenchida a partir das teorizaes conjuntas de

    Hardt e Negri (2002 e 2004). De fato, os autores conseguem extrair a partir de Marx o

    motor das grandes mudanas nos paradigmas produtivos na ordem do capital: colocar

    rdeas na tendncia queda na taxa de lucro, maximizao da extrao de mais-valia, e a

    tentativa de ampliar a dominao sobre a classe trabalhadora. Sobre o ltimo aspecto, que

    diz respeito ao movimento poltico das bruscas alteraes no mbito produtivo, dizem os

    autores:

    Lutas proletrias constituem em termos reais, ontolgicos o motor do desenvolvimento capitalista. Elas obrigam o capital a adotar nveis de tecnologia cada vez mais altos, e dessa maneira transformam os processos de trabalho. As lutas foram o capital continuamente a reformar as relaes de produo e transformar as relaes de dominao. (HARDT; NEGRI, 2002, p. 228).

    Mediante o quadro de lutas operrias que marcou a dcada de 1960 e 1970, Hardt e

    Negri demonstram que dois caminhos se abriram para o capital. O primeiro deles, que

    tinha limitada eficcia (HARDT; NEGRI, 2002, p. 288) foi a opresso repressiva. Essa

    estratgia conservadora buscava restabelecer o controle do capital sobre a fora de trabalho

    reconstruindo um sistema hierrquico atravs do uso repressivo da tecnologia. Entretanto,

    as transformaes tecnolgicas inseridas neste contexto no permitiam que o mesmo

    controle rgido do taylorismo/fordismo fosse exercido. Imediatamente um segundo

    caminho foi aberto: o caminho da opo reativa. Neste caminho, na capacidade criativa

  • 7dos trabalhadores da poca que reside a transformao que o capital ser forado a

    adotar no futuro. O poder dessa capacidade criativa, nas palavras dos autores, dita os

    termos e a natureza da transformao e inventa, efetivamente, as formas sociais e

    produtivas (HARDT; NEGRI, 2002, p. 289). Essa a chave principal para entendermos a

    reestruturao produtiva e o ps-fordismo nos autores analisados.

    Em outros termos, esse segundo caminho indica que o capital teve que enfrentar a

    nova produo de subjetividade do proletariado (HARDT; NEGRI, 2002, p. 290)

    concedendo um sistema produtivo concebido previamente pelos prprios operrios que vo

    alm das formas de dominao e explorao anteriores.

    O incio dessa transio se deu ainda no que eles chamam de regime disciplinar,

    onde comearam as lutas contra o sistema fordista cuja limitao e rigidez j no

    conseguia conter as necessidades e os desejos dos jovens (HARDT; NEGRI, 2002, p.

    294) que se concentraram num processo de recusa ao programa fixo de produo.

    Em outra obra (Hardt; Negri, 2004, p. 274-275), os mesmos tericos pormenorizam

    essa recusa do trabalho, que marca a passagem para a nova fase de relaes sociais,

    passvel de ser constatada por alguns fatores tais como, em primeiro lugar, a recusa

    individual do trabalho nos moldes fordistas; e, em segundo lugar, uma recusa em massa da

    relao entre trabalho abstrato da fbrica taylorista.2

    A recusa ao trabalho em questo criou novas formas de mobilidade e flexibilidade,

    novos estilos de vida (HARDT; NEGRI, 2002, p. 295). Esse momento de contestao foi

    a ocasio em que foram concebidas as formas e demonstradas as necessidades que

    apontavam a possibilidade de um novo paradigma produtivo.3 Segundo os autores, a

    mudana que promoveu a passagem do fordismo ao ps-fordismo:foi antecipada pelo surgimento de uma nova subjetividade [...] foi impulsionada, de baixo para cima, por um proletariado cuja composio j tinha mudado. O capital no precisou inventar um novo paradigma porque o momento realmente criativo j tinha ocorrido. (HARDT; NEGRI, 2002, p. 296).

    Fica claro que segundo a concepo de Antonio Negri e Michael Hardt, o sentido

    da alterao do paradigma produtivo que abriu s portas ao ps-fordismo no inferido

    mediante a necessidade imanente de o capital alterar sua composio orgnica, elevando o

    capital constante custa do capital varivel, com vistas intensificao do controle do

    2 Essa recusa se proliferou em milhes de prticas dirias: Era o estudante universitrio que experimentava o LSD, em vez de procurar emprego; era a jovem que no queria casar e constituir famlia etc. (HARDT, NEGRI 2002, p. 295).3 Os movimentos anteviram a conscincia capitalista de uma necessidade de mudana paradigmtica na produo, e ditaram sua forma e sua natureza. (Ibdem)

  • 8potencial de reivindicao dos trabalhadores como queriam os autores marxistas. Ao

    contrrio, segundo os autores, a transio para o que alguns chamam de automao flexvel

    teve como fulcro a prvia concepo desse sistema produtivo por parte dos trabalhadores

    somada s lutas para implant-lo, almejando uma maior capacidade de escolha no processo

    de trabalho.

    Os trabalhadores usaram a era disciplinar, e acima de tudo seus momentos de

    dissidncia e suas fases de desestabilizao poltica [...] para ampliar os poderes sociais do

    trabalho e redesenhar o conjunto das necessidades e desejos aos quais os salrios e o bem-

    estar social tiveram de responder. (HARDT; NEGRI, 2002, p. 293). Conseqentemente,

    foram fornecidas respostas criativas incumbidas de organizar um novo modo de

    produo" (HARDT; NEGRI, 2004, p. 274) (Isto , um modo de produo distinto do

    modo de produo capitalista). Este novo modo caracterizado por trs respostas: 1) pela

    automao na fbrica, 2) pelas relaes sociais produtivas computadorizadas, e 3) pelo

    regime de consumo controlado pelo fluxo monetrio privilegiando as corporaes. Porm,

    os autores afirmam que tais respostas no obtiveram xito enquanto dominao

    propriamente capitalista, uma vez que o resultado desse complexo de interaes

    intensificou a desproporo entre a reestruturao e a da nova subjetividade da classe

    trabalhadora.4

    A nova subjetividade, resultado do capitalismo, mas a ele avesso, seria, na

    perspectiva de Negri e Hardt, o elemento que, por meio da recusa do trabalho, estimulou

    a ltima grande reestruturao produtiva. Por mais estranha que parea a questo proposta

    por autores que se denominam neomarxistas, a subjetividade operria que disseminou a

    recusa do trabalho fez com que tais trabalhadores fugissem das fbricas negando a

    rigidez hierrquica fordista. O esvaziamento do processo produtivo incidiu de maneira

    forosa sobre os patres obrigando-os a adotar novas tecnologias e mtodos de trabalho

    para que fosse possvel empregar a produo com menos fora de trabalho, acatando, sem

    resistncia as atitudes da nova subjetividade. justamente essa a acepo de Lazzarato:

    isso ocorreu [...] comme si l impratif conomique les avait obligs se plier aux

    conditions dautonomie et de coopration de la composition de classe."5 (LAZZARATO,

    1992, s/p). Os capitalistas, aqui, teriam se curvado mediante a reivindicao operria da

    4 Amorim preconiza que as formulaes da teoria do trabalho imaterial esto relacionadas forma como compreendem a formao da classe qual pertencem. (AMORIM, 2009, p. 147).5 [...] como se o imperativo econmico tivesse os obrigado a dobrar-se ante as condies de autonomia e cooperao da composio de classe Traduo nossa.

  • 9recusa do trabalho. Logo, na teoria do grupo de autores em questo, a inovao tem sua

    gnese no desenvolvimento dos indivduos. (LESSA, 2005, p. 46).

    As teses da recusa do trabalho preconizam que esta postura de embate diante o

    capitalismo da era fordista inaugurou um novo modo de produo (NEGRI, 1991, p.

    XXV apud LESSA) distinto do modo de produo capitalista. uma luta da classe

    trabalhadora contra os imperativos que a obrigavam a trabalhar.

    Tendo em vista esses elementos, quais seriam as diferenas essenciais entre o

    fordismo e o ps-fordismo de acordo com o pensamento de Negri, Lazzarato, Hardt e

    Cocco? Tentaremos responder a questo nos pargrafos que se seguem.

    No capitalismo industrial, que, segundo eles existiu desde a poca de Marx at o

    esgotamento do modelo fordista, o espao da produo de mercadorias era rgido e

    delimitado pelo o cho-de-fbrica. Aqui, a hierarquia reinava absoluta. Como ainda no

    havia iniciado o processo de descentralizao que indicamos anteriormente, a existncia da

    fbrica estava separada da sociedade. O capitalista nesse perodo dominava a produo

    com mos de ferro. Ao contrrio, o que se observa na era da ps-modernizao econmica

    onde reina a produo imaterial que a estrita delimitao fordista no pde ser aplicada

    pelo fato de que nas configuraes do sistema de trabalho atual a produo no se encontra

    restrita fbrica e, forado pelas circunstncias o capitalista teve que conceder um

    processo de produo diferente, ditado pela libert quil est oblig de r-introduire 6

    (LAZZARATO, 1992, s/p).

    A empresa e a economia tpicas do sistema ps-industrial so fundadas sobre o

    tratamento da informao cujo centro no seria a produo de mercadorias, mas sim, a

    comercializao e a financeirizao (LAZZARATO, 2001a, p. 44). Agora, h a

    preocupao central com a produo e o consumo da informao. A empresa ps-

    industrial, ao contrrio da fordista:[...] mobiliza importantes estratgias de comunicao e de marketing para reaprender a informao (conhecer a tendncia do mercado) e faz-la circular (construir um mercado). [...] Parece ento que a mercadoria ps-industrial o resultado de um processo de criao que envolve tanto o produtor quanto o consumidor. (LAZZARATO, 2001a, p. 44)

    A reestruturao da dcada de 1970, que procedeu a referida presso operria, no

    promoveu nenhuma mudana na organizao da produo7, uma vez que de acordo com 6 Liberdade que foi obrigado a reintroduzir. Traduo nossa.7 Esta transformao comeou a manifestar-se de maneira evidente no curso da dcada de 1970, isto , na primeira fase da reestruturao, quando as lutas operrias e sociais, opondo-se retomada da iniciativa capitalista, consolidaram os espaos de autonomia conquistados [...] A subordinao desses espaos de autonomia e organizao do trabalho imaterial s grandes indstrias (processo de recentralizao) no curso

  • 10

    Hardt e Negri (2002) o momento criativo do que veio a ser tal reorganizao produtiva j

    tinha ocorrido. A essncia da ps-modernizao econmica seria, portanto, operria e no

    capitalista.

    Na mesma linha de pensamento, Maurizio Lazzarato nega que a passagem do

    fordismo ao ps-fordismo esteja vinculada ao processo de valorizao do capital conforme

    as suposies marxistas:Le passage dune forme de coopration une autre nest pas li tellement aux changements technologiques et aux lois dvolution du mode de production capitaliste, mais plutt la modification de la subjectivit collective ouvrire qui a lieu par la lutte et lorganisation. (LAZZARATO, 1992, s/p) 8

    Percebemos ento uma ruptura de carter incisivo na qual Lazzarato, Negri, Hardt e

    Cocco em relao a Marx, que tinha a compreenso de que todos os meios para

    desenvolver a produo redundam em meios de dominar e explorar o produtor (MARX,

    2008a, p. 749) caracterizando um avano do capital sobre o trabalho.

    Do ponto de vista da vertente terica que estamos nos ocupando, o desemprego

    constatado no limiar da transio para o ps-fordismo no foi conseqncia dessa

    reestruturao, mas sim, foi, somado luta dos trabalhadores para um espao de trabalho

    mais livre, a causa dela. Os operrios se recusaram a submeter-se s antiquadas formas de

    trabalho e tinham a perspectiva de entrar no regime regulado pela fbrica social.

    (HARDT; NEGRI, 2002, p. 294). As teses dos marxistas que viam nesse fenmeno um

    processo de ao do capital para retomar os patamares de lucro estariam completamente

    equivocadas.

    O tipo de trabalho que pode ser a inserido , sobretudo, o trabalho imaterial, uma

    vez que a estrutura produtiva no est mais pautada pela rigidez e quantificao do que

    produzido no mbito da empresa contempornea (at porque, segundo a teoria que estamos

    analisando, o contedo informacional do trabalho imaterial no passvel de

    quantificao). O surgimento do trabalho imaterial na produo9 aparece como emanao

    direta do processo de ps-modernizao econmica, embora a concepo organizacional

    desse tenha sido fruto de um momento criativo anterior prpria reestruturao, por

    parte dos trabalhadores. A anlise dessa forma de trabalho, segundo Cocco (2001, p. 8),

    fornece uma contribuio para a compreenso do novo regime de acumulao instaurado. da fase de reestruturao sucessiva (emergncia do modo de produo ps-fordista) no muda, mas reconhece e valoriza a nova qualidade do trabalho. (NEGRI; LAZZARATO, 2001, p. 27)8 A passagem de uma forma de cooperao outra no vinculada tanto s mudanas tecnolgicas e s leis de evoluo do modo de produo capitalista, mas antes na modificao da subjetividade coletiva operria que teve lugar na luta e na organizao. Traduo nossa.9 Por esfera produtiva os autores compreendem a atividade industrial que seria sinnima a atividade fabril.

  • 11

    Fundamentalmente, no item que se segue, sero expostas as caractersticas essenciais do

    trabalho imaterial.

    2. Os pontos de crtica em relao recente teoria do trabalho imaterial

    Desde a sua Contribuio crtica da economia poltica, um livro freqentemente

    relegado pelos leitores, Karl Marx j havia apontado um elemento que embasa o que aqui

    vamos expor. Segundo ele o resultado a que chegamos no que a produo, a

    distribuio, a troca, o consumo, so idnticos, mas que todos eles so membros de uma

    totalidade, diferenas em uma unidade. (MARX, 2008, p. 255, destaques nossos). A

    correlao necessria entre os vrios momentos do complexo mercantil capitalista

    mencionada por Marx indica uma viso distinta dos tericos da recente teoria do trabalho

    imaterial e, ao mesmo tempo, fornece base para a crtica que faremos aqui. Em outro

    momento fica mais explicita seu no alinhamento na viso da diviso dos trs setores

    (agricultura e extrao, indstria e servios), que pode ser provado pelo seu conceito de

    industrial: industrial aqui no sentido de abranger todo ramo de produo explorado

    segundo o modo capitalista (MARX, 2008b, p. 62, destaques nossos). Portanto, quando

    Marx fala em indstria, ele est mencionando algum ramo apoderado pela produo

    capitalista. O sentido de indstria nos moldes marxianos utilizado de uma forma mais

    ampla do que a viso corrente atualmente, que concede ao termo indstria o mesmo

    significado de fbrica.

    Podemos ilustrar o exposto citando o que Marx, no livro segundo de O Capital,

    chama de indstria dos transportes: O que a indstria de transportes vende a prpria

    mudana de lugar. O efeito til produzido est inseparavelmente ligado ao processo de

    transporte, isto , ao processo de produo da indstria de transporte. (MARX, 2008b, p.

    255). A indstria de transportes no produz um bem intercambivel no mercado comum de

    mercadorias. Ela vende, por assim dizer, um servio, um resultado imaterial. A

    demonstrao de que Marx ao citar processos de trabalho onde o resultado no um objeto

    palpvel no adota como critrio definidor o fato deste trabalho estar inserido no setor de

    servios, em vez disso, define esse trabalho, no caso da indstria de transportes,

    encontrando-se inserido em um processo de produo, impulsionado pelo capital-

    industrial, ou seja, onde impera as leis de produo do capital: a fora de trabalho, ao

    consumir-se com os demais elementos da produo, cria valor novo, a mais-valia, um valor

  • 12

    excedente, a ser apropriado pelo capital. O processo de trabalho a inscrito tem como

    finalidade a valorizao do capital: produzir mais-valia a lei absoluta desse modo de

    produo (MARX, 2008a, p. 721). Logo, no podemos concordar com as teses de Negri e

    Lazzarato (2001) que afirmam a no possibilidade do trabalho imaterial no se reproduzir

    na explorao da mais-valia.

    proveitoso que nesta altura da explanao terica seja inserida outra categoria

    marxiana indispensvel ao que estamos analisando aqui: a definio de trabalho produtivo

    e trabalho improdutivo. A indstria de transportes, no sentido que descrevemos acima,

    produz mais-valia e, por este motivo, o trabalho que circunscreve este ramo o trabalho

    produtivo. H, todavia, setores que agregam trabalhadores assalariados sem que haja a

    criao da mais-valia. Vejamos a questo mais de perto.

    trabalho produz, para usar a terminologia marxiana, um efeito til, isto , uma

    utilidade, um valor-de-uso. Em contrapartida, segundo Marx (2004) nem todo efeito til,

    mesmo quando desdobrado no seio da sociedade capitalista, carrega em si uma mais-valia.

    O trabalho despendido neste processo , portanto, trabalho improdutivo. O critrio para

    demarcao entre o trabalho produtivo e o trabalho improdutivo fica claro nesta passagem:

    Como o fim imediato e (o) produto por excelncia da produo capitalista a mais-valia, temos que somente produtivo aquele trabalho que ( [sic] e s trabalhador produtivo aquele possuidor da capacidade de trabalho que diretamente produza mais-valia; por isso, s aquele trabalho que seja consumido diretamente no processo de produo com vista valorizao do capital. (MARX, 2004, p. 108, destaques do autor).

    Mas se estamos tratando do trabalho sob a ordem do capital, o agente real do

    processo de trabalho (MARX, 2004 p. 110) no o trabalhador individual, mas sim a

    cooperao de diversas capacidades de trabalho. Desta maneira, amplia-se a gama de

    capacidades de trabalho que se enquadram no conceito de trabalho produtivo: um trabalha

    mais com as mos, outro mais com a cabea, este como diretor, engenheiro, tcnico etc.,

    aquele como capataz, aqueloutro como operrio manual ou at como simples servente

    (MARX, 2004, p. 110) ambos so submetidos ao processo de valorizao do capital, de

    produo e extrao da mais-valia.

    O trabalho improdutivo, por sua vez, a modalidade de trabalho que consumido

    por causa do seu valor de uso e no como trabalho que gera valores de troca; consumido

    improdutivamente (MARX, 2004, p. 111, destaques do autor), em outros termos, no gera

    valor novo, no valoriza o capital, no produz mais-valia, no se converte em parte do

  • 13

    capital varivel. Ele consumido como servio, como utilidade. Daqui podemos afirmar: o

    trabalho que no gera valor improdutivo do ponto de vista do capital, porm,

    extremamente til sua reproduo. Os trabalhos envolvidos na mera mudana de forma

    do valor (que diz respeito venda de mercadorias no comrcio) so, sob esta delimitao,

    trabalhos improdutivos. Sendo assim, por mais que Marx afirme a tendncia do capital

    diminuir o tempo de circulao, no se trata de diminuir a importncia da circulao ou do

    trabalhador improdutivo, pois os trabalhadores da compra e venda realizam funo

    necessria, pois o processo de reproduo tambm abrange funes improdutivas. Trabalha

    como qualquer outra pessoa, mas o contedo de seu trabalho no cria valor nem produto.

    (MARX, 2008b, p. 149).

    Hardt, Negri e Lazzarato incorrem no equivoco de considerar todo trabalho

    imaterial como servio e como no produtor de mais-valia e, deste modo, independente da

    atividade empreendedora capitalista (LAZZARATO; NEGRI, 2001, p. 31). Para anlise

    do modo capitalista de produo este critrio infundado. Em primeiro lugar, pela razo

    evidente de que h trabalhos imateriais que geram valor e mais-valia, como por exemplo, o

    trabalho envolvido na indstria de transportes. Em segundo lugar, mesmo os trabalhos

    imateriais improdutivos no se encontram independentes e livres da atividade capitalista.

    Um exemplo seriam as atividades comerciais que, ao se tornarem complexas sob o

    processo de produo e reproduo capitalista, modificam-se em atividades capitalistas,

    com trabalhadores assalariados cujas jornadas de trabalho tambm so divididas em tempo

    de trabalho excedente e tempo de trabalho necessrio. Alm do que j levantamos, a

    apurao dos conceitos de trabalho produtivo e trabalho improdutivo so teis para a

    desmistificao do carter do trabalho vendido sob a forma de servios: o modo pelo qual

    Negri, Lazzarato e Hardt apresentam o trabalho no setor tercirio faz com que a relao

    social de explorao na qual o modo capitalista de produo erguido apresente-se

    transfigurada.

    Em contraposio a essa vertente, podemos fazer referncia contribuio de Jean

    Lojkine (2002) que percebe a interpenetrao de atividades industriais e atividades

    informacionais de modo que no h expanso de servios sem desenvolvimento

    correlativo da indstria (LOJKINE, 2002, p. 255), inclusive, para citar um exemplo, o

    autor aponta que na Repblica Federal da Alemanha, no perodo entre 1981 e 1986, houve

    um aumento da criao de empregos relacionados siderurgia, que, por se tratar de uma

    atividade fabril, no seria imaterial na designao dos operastas.

  • 14

    Sobre a relao mtua entre a atividade fabril e os chamados servios, nos EUA

    ocorreu um fenmeno de enfraquecimento de ambas:

    O desaparecimento de inteiros segmentos da indstria americana, notadamente em ramos de forte valor agregado e altos salrios, acarretou a atrofia de atividades de servios subsidirias da indstria manufatureira (empresas de projetos e engenharia, estabelecimentos financeiros, companhia de seguros, transportes, reparao e manuteno etc.). (LOJKINE, 2002, p. 257).

    Por isso, de acordo com a teoria de Lojkine, a oposio mecanicista entre a

    produo de empregos no setor tercirio e o declnio do setor secundrio, um dos pilares da

    recente teoria do trabalho imaterial, constituiria um fracasso tendo em vista a diviso

    internacional dos pases capitalistas industrializados que permite a transposio da

    atividade industrial para pases com nveis salariais mais baixos. Logo, a reestruturao

    produtiva da dcada de 1970 no pode ser posta, pelas razes expostas, em termos de

    mudana setorial, como colocam Hardt e Negri. E mais: a tese segundo a qual o trabalho

    imaterial teria rompido com as antigas formas de trabalho mostra-se infundada de acordo

    com as inferncias de Lojkine.

    A apurao destes elementos somados contribuio de Marx (2008b) que trata um

    trabalho conhecido como servio inserido em um processo de produo til para a

    desmistificao do carter do trabalho vendido sob essa forma: no h autonomia dos

    chamados servios em relao ao processo de produo. A forma que Negri, Lazzarato e

    Hardt apresentam o trabalho no setor tercirio faz com que a relao social de

    explorao na qual o modo capitalista de produo erguido apresente-se transfigurada.

    Sendo assim, as determinaes essenciais deste fenmeno, que na viso marxista esto

    ligadas ao processo de valorizao do capital, tornam-se camufladas.

    Neste caminho, Eleutrio Prado (2005) indica uma concepo fetichista da teoria de

    Negri, Hardt e Lazzarato. De acordo com ele, estes autores atribuem o carter da

    produtividade do trabalho (trabalho relacionado produo de mais-valia) como estando

    relacionado a resultados materiais. Por atentarem-se simplesmente ao resultado do trabalho

    imaterial eles no apresentaram as relaes sociais fundamentais que so inerentes ao

    processo do trabalho imaterial. Segundo Prado, pouco importa aqui se o valor gerado est

    cristalizado em produtos materiais ou imateriais ou em produtos que tm existncia

    separada ou no do ato de trabalhar (PRADO, 2005, p. 54), pois a condio para que o

    trabalho seja produtivo ao capital , simplesmente, o fato de estar ligado produo de

    valor.

  • 15

    O mesmo autor ainda critica Negri, Hardt, Lazzarato e Cocco por se basearem no

    conceito de regime disciplinar (que, como j vimos, diz respeito rigidez do modelo

    fordista). Prado afirma que a ateno a esta questo fez como que os processos de gnese e

    superao desse modelo produtivo no fossem delineados na teoria.

    Em relao ao trabalho intelectual, as passagens que expressam a independncia

    progressiva da fora de trabalho intelectual e trabalho imaterial em face do domnio

    capitalista (LAZZARATO; NEGRI, 2001, p. 31) so comuns. Desconsideram o modo

    pelo qual o capital absorve o trabalho intelectual:

    Fisiologicamente, cabea e mos so partes de um sistema; do mesmo modo, o processo de trabalho conjuga o trabalho do crebro e o das mos. Mais tarde, se separam e acabam por se tornar hostilmente contrrios. O produto deixa de ser o resultado imediato da atividade do produtor individual para tornar-se produto social, comum, de um trabalhador coletivo, isto , de uma combinao de trabalhadores, podendo ser direta ou indireta a participao de cada um deles na manipulao do objeto sobre incide o trabalho. [...] Para trabalhar produtivamente no mais necessrio executar uma tarefa de manipulao do objeto de trabalho; basta ser rgo do trabalhador coletivo, exercendo qualquer uma das funes fracionrias. (MARX, 2008a, p. 577).

    No h a necessidade de manipulao de um objeto material para que tal trabalho

    seja considerado produtivo, ou que seja absorvido pelo capital. Na acepo de Marx,

    portanto, no processo de produo capitalista no h independncia objetiva do trabalho

    intelectual ali inserido. Por mais que ele esteja separado dos trabalhadores manuais, ele

    pode, conjuntamente com o rgo do trabalhador coletivo exercer funes produtivas. A

    imbricao entre o trabalho que manipula a matria (trabalho material) e o trabalho que

    demanda maior intelectualidade (trabalho imaterial) j est posta desde Marx.

    As teses da recusa ao trabalho nas quais expressam uma pretensa situao onde

    os trabalhadores esvaziaram as fbricas fordistas, de acordo com Lessa, invertem causa e

    efeito tomando a reestruturao produtiva como conseqncia e no causa do

    fechamento de postos de trabalho. (LESSA, 2005, p. 52). Logo, segundo os autores da

    recente teoria do trabalho imaterial, no foi a intensa necessidade de valorizao do capital

    frente a crise e a concorrncia que expulsaram os trabalhadores de seus postos de trabalho.

    No julgamento de Lessa eles no perguntam histria o que ocorreu; antes, proclamam

    histria: deves ter ocorrido de tal ou qual modo (LESSA, 2005, p. 52).

    Lessa ainda critica o contedo idealista da teoria de Negri, Lazzarato e Hardt: estes

    autores teriam atribudo que as idias (no caso, a idia de recusa ao trabalho) determinaram

    o movimento do real imputando o trabalho imaterial. Essa forma de trabalho teria sido algo

  • 16

    previamente estabelecido na conscincia dos trabalhadores. E aqui que Lessa afirma que

    as suposies desses autores seriam um construto puramente axiolgico (LESSA, 2005,

    p. 53). Podemos inferir que esse marxista brasileiro no v nenhum ponto de tangncia

    entre a realidade concreta e a construo terica dos autores da recente teoria do trabalho

    imaterial: trabalho imaterial uma contradio em termos no universo marxiano

    (LESSA, 2005, p.72), pois, para ele, o trabalho sempre material.

    Alm desse fator as teses operastas do trabalho imaterial foram alvo de crticas por

    parte de Lessa por cancelar a contradio entre capital/trabalho e afirmar a identidade entre

    o empreendedor poltico e o operrio social. Por este motivo o autor chega concluso

    de que o trabalho imaterial seria uma fbula.

    Sobre a relao entre as diferentes formas de trabalho e a extrao de mais-valia,

    Marx afirma: no importa ao processo de criao da mais-valia que o trabalho de que se

    apossa o capitalista seja trabalho simples, trabalho social mdio, ou trabalho mais

    complexo, de peso especfico superior (MARX, 2006, p. 230). Por conseguinte, as

    diferenas qualitativas de trabalho (seja material ou imaterial), quando abstradas de suas

    dimenses concretas, isto , excludas as prprias diferenas qualitativas, torna-se apenas a

    capacidade de dispndio de trabalho humano gerador de valor. esse elemento oculto que

    interessa na produo da mais-valia.

    Para caminharmos concluso do item e indicar o ltimo ponto de crtica, nos

    remetamos seguinte questo, j colocada, em outro contexto, por Graciolli: a questo

    saber se tais mudanas colocaram por terra o estranhamento ou o sofisticaram

    (GRACIOLLI, 2007, p. 22). Em Negri, Lazzarato, Hardt e Cocco o trabalho imaterial

    assume uma posio de superao em relao aos condicionantes degradantes do trabalho

    no capitalismo. Se, a partir de Marx (2004b), o trabalho na sociedade capitalista opera em

    quatro nveis de estranhamento - em relao ao processo (que exterior ao trabalhador), ao

    produto (que no lhe pertence), ao gnero humano (que no estabelece identidade) e ao

    prprio homem (por estranhar-se em relao a si mesmo) -, na vigncia do trabalho

    imaterial todos esses elementos foram destrudos? Seguindo na anlise da perspectiva

    terica abordada neste item, o estranhamento do trabalho, mesmo nas formas imateriais

    de trabalho, encontra-se conservado (Antunes, 2007). Embora o processo de trabalho

    imaterial assuma a aparncia de o trabalhador possuir o controle do processo produtivo e

    pode ser constatado empiricamente que h uma possibilidade maior de escolha essaaparncia de maior liberdade no espao produtivo tem como contrapartida o fato de que as personificaes do trabalho devem se converter ainda mais em personificaes de capital. Se assim no o fizerem, se no demonstrarem essas

  • 17

    aptides, (vontade, disposio, desejo), trabalhadores sero substitudos por outros que demonstrem perfil e atributos para aceitar esses novos desafios. (ANTUNES, 2007, p. 130).

    Logo, o suposto fim da relao de estranhamento no mbito do processo laborativo

    imaterial pode ser contestada pelas prprias aptides que esses trabalhadores devem

    possuir: isso remete ao fato de que o capitalista j cria perspectivas a priori, de modo que

    este j tem em mira resultados e expectativas. No grupo de autores aqui analisados, o

    estranhamento, portanto, se complexificaria mediante as formas de trabalho dos setores

    produtivos com ndices elevadssimos de aplicao tecnolgica.

    Por isso, segundo os tericos partidrios das premissas terico-metodolgicas

    maxianas, o trabalho imediato ainda no cessou de ser a condio de produo da riqueza.

    Para concluir a presente seo, reproduziremos um trecho da contribuio de

    Antunes sintetiza o eixo principal da crtica que os autores marxistas proferem aos tericos

    das teses recentes do trabalho imaterial, que a subordinao desse tipo de trabalho ao

    processo de produo capitalista de valor:

    As novas dimenses e formas de trabalho vm trazendo um alargamento, uma ampliao e uma complexificao da atividade laborativa, de que a expanso do trabalho imaterial exemplo. Trabalho material e imaterial, na imbricao crescente que existe entre ambos, encontram-se, entretanto, centralmente subordinados lgica da produo de mercadorias e de capital. (ANTUNES, 2007, 128).

    Consideraes finais

    Com este artigo, no pretendemos esgotar o debate crtico sobre o trabalho

    imaterial. Pesquisadores de diversas matrizes tericas tm apreendido o tema sob o ponto

    de vista sempre renovado. O presente artigo, apesar de seu carter breve, ambiciona sugerir

    indicaes sobre o tema.

    Procuramos, no primeiro item, perpassar pelos interstcios do que aqui chamamos

    de recente teoria do trabalho imaterial cujos representantes principais so Antonio Negri,

    Michael Hardt, Maurizio Lazzarato e Giuseppe Cocco, clarificando algumas de suas teses

    que apontam a concepo quantitativista do emprego na anlise do trabalho imaterial.

    Conforme vimos, esta vertente terica analisa o trabalho imaterial como resultado da

    reestruturao produtiva da dcada de 1970. A reestruturao teve como fulcro o

    estabelecimento de uma nova subjetividade operria, que teria ditado os rumos do novo

  • 18

    paradigma produtivo cujo desenho teria rompido com vrios elementos do capitalismo. A

    mudana de uma lgica da produo para uma lgica da inovao indicaria a

    preponderncia tendencial crescente do trabalho imaterial na produo. O trabalho

    imaterial cresceria na medida em que o trabalho material se esvaneceria.

    No segundo item indicamos premissas marxianas e alguns avanos marxistas que

    indicam uma articulao necessria entre o trabalho material e o trabalho imaterial. Vimos

    que formas teis de trabalhos que muitos autores compreendem inseridos no setor de

    servios, produzem valor e mais-valia, valorizam o capital. Ao contrrio dos autores do

    item primeiro, que possuem uma concepo unicamente positiva do trabalho imaterial, de

    acordo com os marxistas analisados, predomina nas relaes sociais as formas de

    estranhamento e fetichismo tpicos da sociedade capitalista. A reestruturao produtiva que

    impulsionou o crescimento dos postos de trabalho imateriais intensificou a produo de

    mercadorias enquanto unidade de valor de uso e valor.

    Na nossa compreenso o movimento do real no aponta para uma homogeneizao

    dos processos de trabalho, ao contrrio do que dizem Negri e Lazzarato, mas, indica um

    plano heterogneo e complexo da esfera do trabalho. Esta a viso, acertada em nossa

    opinio, de Antunes (2005, 2007), que alude uma imbricao crescente entre trabalho

    material, imaterial, produtivo, improdutivo etc., que torna a classe-que-vive-do-trabalho

    complexa e heterognea.

    Com o desgnio de concluir o trabalho monogrfico, tendo em vista a negao

    vigncia da teoria da mais-valia, no sistema produtivo contemporneo, por alguns autores,

    pedimos permisso para tomar emprestada e modificar parte de uma expresso gramsciana

    que, embora tenha sido cunhada em outro contexto e dizendo respeito a outros fenmenos,

    a nosso ver, sintetiza os limites tericos da recente teoria do trabalho imaterial no que diz

    respeito correlao oposta entre trabalho material e imaterial: muito fcil se deixar levar

    pelas diferenas exteriores entre trabalho material e imaterial e no ver as semelhanas

    ocultas e os nexos necessrios, mas camuflados.

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