criminalizaÇÃo de direitos humanos · prof. dr. joão ricardo wanderley dornelles rio de janeiro...

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES MESTRADO EM DIREITO CRIMINALIZAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA PÓS-CONSTITUIÇÃO DE 1988 Carolina da Silva Barboza Lima VERA MALAGUTI BATISTA Rio de Janeiro 2005

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

MESTRADO EM DIREITO

CRIMINALIZAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA PÓS-CONSTITUIÇÃO DE 1988

Carolina da Silva Barboza Lima

VERA MALAGUTI BATISTA

Rio de Janeiro 2005

UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

MESTRADO EM DIREITO

CRIMINALIZAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS A experiência brasileira pós-Constituição de 1988

Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Direito, área de Ciências Penais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito, sob a orientação da Professora Doutora Vera Malaguti Batista

Rio de Janeiro 2005

Lima, Carolina da Silva Barboza Criminalização de Direitos Humanos: A experiência brasileira pós-Constituição de 1988 / Carolina da Silva Barboza Lima. Rio de Janeiro. Universidade Candido Mendes, Mestrado em Direito, 2005. 157 pp., 31 cm. Orientador: Vera Malaguti Batista Dissertação (Mestrado) – UCAM, Mestrado em Direito, 2005. Referências Bibliográficas, f. 151 1. criminologia 2. política carcerária 3. violência.

UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

MESTRADO EM DIREITO

CRIMINALIZAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA PÓS-CONSTITUIÇÃO DE 1988

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito, submetida à aprovação da Banca Examinadora composta pelos seguintes membros: _____________________________ Orientador: Profa. Dra. Vera Malaguti Batista _____________________________ Prof. Dr. Nilo Bastista _____________________________ Prof. Dr. João Ricardo Wanderley Dornelles Rio de Janeiro 2005

A Deus, “Rendei graças ao Senhor,

porque ele é bom e a sua misericórdia dura para sempre.”

Salmo 107:1

Agradecimentos

À minha orientadora Vera Malaguti Batista, principalmente pelo incentivo e por toda a sua genialidade exposta com doçura e simplicidade. Orientadora mais amiga, mais companheira. Ao Prof. Nilo Batista, pela oportunidae dada a todos nós – alunos desse Mestrado – de compartilharmos um pensamento crítico, de estudo aprofundado, em um momento em que opor-se ao gigantismo do sistema penal tem merecido condenação. Obrigada pela coragem que a todos nós inspira e conforta. Ao Prof. João Ricardo Dornelles, que por seus escritos nos aprofunda na difícil defesa dos direitos humanos, na academia e fora dela. Aos funcionários da Secretaria do Mestrado, representados pela Verônica, cujo sorriso nos é muito caro. Aos colegas de Mestrado, em especial Gisela França, Luciana Senise e Cairo Ítalo, para quem sempre estarei à disposição. É bom ter amigos. Aos amigos João de Almeida e João Luiz da Silva Almeida, pela grande amizade e palavras de incentivo, e pelos livros. Aos amigos Luiz Carlos Rodrigues da Costa, Gerson Nicácio e Alberto Moreira, pelo apoio e carinho dispensado à minha família. À Lívia Albudane Moreira, mais uma irmã que a vida me deu. Nem a distência nos separa. Apoio sempre presente. Aos irmãos da Igreja Pentecostal de Nova Vida, em especial Daniela e Denise, Renata, Nelma e Renato, Beth e Evandro. E também à irmã Gerda. Aos pastores e bispos da Igreja Pentecostal de Nova Vida, instrumentos de Deus em minha vida, em especial ao Pastor Hélio Lopes Filho, cujas conversasinspiraram esta dissertação. À família do meu noivo, Regina, Silvio, Silvia e Zic, Lígia e Cristiano, com carinho. Aos meus cunhados Edson Ferreira de Souza e João Pedro Chaves de Valladares Pádua, por completarem minha família com tanta alegria, respeito e carinho. Edson músico de Deus. João genialidade que nos surpreende. Às minhas irmãs Luciana e Fernanda. Sempre as amarei, parte de mim, orgulho meu. Ao meu noivo Ricardo, presente de Deus em minha vida. Com quem divido meus sonhos, com quem sonho junto. Feliz quando vencemos juntos as provações da vida. Confiança e carinho. Ao meu pai Welton Kelly, cujos exemplos e histórias de vida serviram de base para construir quem sou hoje. À minha mãe Fátima Vieira, meu porto seguro, dívida eterna, amor eterno e incondicional. Minha grande companheira. À minha avó Zelma, espero um dia ter sua santidade e poder te encontrar na glória.

O público percebia que a causa estava bem clara, que a dúvida era impossível, que os debates seriam apenas mera formalidade, estando mais que demonstrada a culpabilidade do acusado. Penso que não havia dúvida nem mesmo para as senhoras que aguardavam com tamanha impaciência absolvição do interessante acusado. Mais ainda, parece-me que elas se sentiriam aflitas diante de uma culpabilidade menos evidente, porque isso teria diminuído o efeito do desenlace, quando se absolvesse o criminoso. O estranho é que todas as senhoras acreditaram na absolvição quase até o último minuto. “Ele é culpado, mas vão absolvê-lo por humanidade, em nome das idéias” etc. Dostoiévski, Os irmãos Karamázov

RESUMO

O texto constitucional brasileiro de 1988 anuncia um Estado Democrático de

Direito, cuja base é o reconhecimento e a proteção de Direitos Humanos. Apesar

de tal programa,a inflação legiferante, motivada por uma cultura do medo, que

mascara a busca pela manutenção de uma ordem, tem criminalizado condutas

inicialmente descritas como de uma ordem, tem criminalizado condutas

inicialmente descritas como puro exercício de direitos humanos. Tal situação só

tem demonstrado que, apesar de um discurso adjetivado de Estado Democrático

de Direito, efetiva-se um verdadeiro Estado de Exceção, em prol da já conhecida

segurança nacional ou manutenção da ordem. Tudo isto culmina na afirmação de

que vivemos em um paradoxo que só pode ser resolvido pela extinção do sistema

penal ou dos direitos humanos. Como os direitos humanos são inerentes à própria

condição humana, sobrou a abolição do sistema penal.

ABSTRACT

The 1988 brazilian constitutional text proclaims a Democratic State of Law,

whose base is the Human Rights recognition and protection. In spite of such

program, the legislative inflation, induced bay a culture of fear, which masks the

quest for the maintenance of an order, has criminalized demeanors initially

described as pure human rights exercise. Such situation has only been

demonstrating that, although a speech qualified as a Democratic State of Law, a

true State of Exception comes to fulfillment, in behalf of the well known national

security or the maintenance of order. It all ends with the assertion that we live in a

paradox that can only be solved through the extinction of the criminal system or

of the human rights. Since the human rights are inherent to the human condition

itself, only the abolition of the criminal system is left.

RESUMÉ

Le texte constitutionel bresilien de 1988 announce un État Démocratique du

Droit, dont la base est la reconnaissance et la protection des Droits Humaines.

Malgré ce programme, l’inflation legislative, motivée par une culture du peur, qui

obscurcit la recherche pour la manutention d’une orre, a criminalizé des conduites

anteriurment décrites comme des exercices des droits humaines. Cette situation

montre seulement que, en dépit de ce discours caracterize comme de L’État

Démocratique du Droit, ce que s’établit c’ést un État d’Exception en faveur de la

déjà connu sécurité nationale ou de la manutention de l’ordre. Tout ça implique

l’affirmation que nous vivons un paradoxe qu’on peuve seulement résoudre par

l’extinction ou du systéme penal, ou des droits humaines. Comme les droits

humaines son propres de la condition humaine, s’impose l’abolition du système

penal.

ESTRATTO

Il testo costituzionale brasiliano di 1988 annuncia uno Stato Democratico di

Diritto, la cui base è il riconoscimento e la protezione dei Diritti Umani.

Nonostante tale programma, l’inflazione legiferante, motivata da una cultura di

paura, la quale maschera la ricerca per la manutenzione di un’ordine, ha

criminalizato le condotte inizialmente descritti come il puro esercizio dei diritti

umani. Tale situazione ha soltanto dimostrato che, nonostante un discorso

aggettivato di Stato Democratico di Diritto, occorre un vero Stato d’Eccezione, a

favore della già conosciuta sicurezza nazionale o manutenzione dell’ordine. Tutto

ciò termina nell’affirmazione di che viviamo nell paradosso che può essere

soltanto risolto dall’estinzione del sistema penale o dei diritti umani. Come I

diritti umani sono inerenti alla stessa condizione umana, è restata l’abolizione del

sistema penale.

SUMÁRIO 1. Introdução ..................................................................................................... 13 1.1. Apresentação .............................................................................................. 13 1.2. Objeto......................................................................................................... 18 1.3. Marco Teórico ............................................................................................ 19 1.4. Estrutura do Trabalho.................................................................................. 21 2. Direitos Humanos ......................................................................................... 23 2.1. Um conceito inicial de vida ........................................................................ 23 2.2. Um conceito tradicional de direitos humanos .............................................. 25 2.3. A dignidade da pessoa humana ................................................................... 26 2.4. A juridificação da liberdade ........................................................................ 28 3. Estado Democrático de Direito ou Estado de Exceção.................................... 34 3.1. Estado de Direito ........................................................................................ 34 3.2. Democracia................................................................................................. 35 3.3. Estado de Exceção ...................................................................................... 36 4. Criminalização exacerbada e direcionada....................................................... 41 4.1. A comunidade............................................................................................. 41 4.2. A sociedade ex(in)cludente ......................................................................... 46 4.3. A globalização como forma de ex(in)clusão................................................ 87 5. A conjuntura brasileira de exclusão e o movimento democrático (de exceção)..95 5.1. Resumo da conjuntura brasileira ................................................................. 97 5.2. A função da criminalização também no Brasil............................................108 5.3. Modelos de intervenção penal no Brasil .....................................................114 5.4. Uma proposta de restrição criticada............................................................118 5.5. A realidade e o discurso da democracia (exceção) brasileira.......................134 6. Conclusões ..................................................................................................145 7. Bibliografia...................................................................................................153

1

Introdução

1.1 Apresentação

A Constituição de 1988 estabeleceu um marco histórico em nosso

ordenamento jurídico. Como afirmam os constitucionalistas, a nossa Constituição

é programática, ou seja, ela traz um programa, que se propõe implementar. E

começa no artigo 1º., no qual encontramos o conceito de Estado Democrático de

Direito além de seus fundamentos. Dentre estes, a dignidade da pessoa humana,

os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Segue

em seus enunciados estabelecendo os limites fundamentais, tais como a

construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da

marginalização, a redução de desigualdades sociais e regionais e a promoção do

bem de todos, sem preconceitos de qualquer origem, raça, sexo, cor, idade e

quaisquer outras formas de discriminação. Como um de seus princípios erige a

prevalência dos direitos humanos (BRASIL, 1988).

Diferente dos textos constitucionais anteriores, há uma mudança topográfica

destas normas principiológicas e principalmente do elenco de direitos e garantias

fundamentais. A partir de 1988, o programa trazido pela norma constitucional se

inicia com os direitos fundamentais1. Traz rol extenso, ao qual atribui aplicação

imediata, composto de setenta e três dispositivos, além de reconhecer a existência

e garantir a proteção de outros decorrentes do regime e dos princípios adotados

1 Não nos propomos a estabelecer diferenças entre direitos fundamentais e direitos humanos, tal como a doutrina jurídica germânica estabelece, conforme se verá adiante. COMPARATO, 2003, pp. 57-62.

pela Constituição, ou daqueles constantes de tratados internacionais em que a

República Federativa do Brasil seja parte (BRASIL, 1988).

De acordo com emenda constitucional recente, publicada em 31 de

dezembro de 2004, temos uma preocupação maior com os direitos humanos,

admitindo a incorporação de tratados como normas equivalentes às emendas

constitucionais. Tal reforma permite uma maior segurança à matéria, vez que, no

sistema anterior, as regras relativas a direitos humanos oriundas de tratados

internacionais introduzidas em nosso ordenamento jurídico, alcançavam status de

norma infraconstitucional, podendo ser livremente alterada pelo Poder

Legislativo. Hoje, tais regras podem incorporar a Constituição e, salvo a edição de

nova lei fundamental, estariam protegidas pela imutabilidade garantida pelas

normas constitucionais relativas ao processo legislativo de reforma e revisão de

seu próprio texto (BRASIL, 2004).

O interesse pelo tema objeto deste trabalho, nasceu de um estudo das

normas constitucionais, atrelado a um esforço acadêmico e profissional de

manutenção da atualização das normas editadas, num momento em que se verifica

verdadeira inflação2. Ao estudante ou profissional do direito, que atue em

qualquer ramo, não é dada a possibilidade de atualização simplesmente por meio

de códigos editados anualmente. A cada dia, um conjunto novo de leis entra no

ordenamento jurídico, alguns com eficácia imediata, outros submetidos à vacatio

legis, que prorroga o início da vigência da norma. De qualquer forma, a

atualização hoje é constante e, muito mais, diária. E quando se trata de norma

penal, constante e criteriosa, mormente por verificarmos em normas de caráter 2 Em 1988 foram editadas sessenta e duas leis ordinárias. Em 2005, duzentas e cinqüenta e uma. BRASIL. Presidência da República. Legislação. Leis ordinárias. 1988 e 2005. Disponível em: <https:www.planalto.gov.br>. Acesso em: 12 mar. 2005.

extrapenal novas figuras típicas, ou normas de extensão de tipos já previstos.

Podemos afirmar que, após a Constituição de 1988, tivemos aproximadamente

quinhentos novos dispositivos penais com o efeito de aumentar o poder de punir

do Estado3.

Nasceu também de um interesse pessoal por temas ligados à crítica do

sistema penal, que teve como marco inicial simpósios com a presença de Amilton

Bueno de Carvalho, Lenio Luiz Streck e James Tubenchlack. Não é novidade que

o estudo universitário no Brasil é informado por princípios positivistas, dando ao

aluno nada mais do que um conhecimento das espécies normativas e da sua

aplicação meramente dogmática. Inquietação e insatisfação com este estudo

simplista levaram-nos a buscar outras visões acerca deste Direto Penal que se

coloca ao discente. Conhecer uma alternativa, orienta-nos em oposição ao sistema

instituído.

Ao lado desta preocupação acadêmica, cresceu também uma influência de

ordem religiosa, com base nos ensinamentos cristãos acerca do perdão e da

igualdade, como formas de construção de uma sociedade livre e justa, e da

colocação em um segundo plano da figura do pecado, com uma formação

protestante, de estudo bíblico aprofundado.

Encontram-se no Evangelho de Mateus – capítulo 22, versículos 37 e 39 –

os dois grandes mandamentos: “amar o Senhor de todo o teu coração, de toda a

tua alma e de todo o teu entendimento e amarás o teu próximo como a ti mesmo”.

O segundo nos coloca diretamente debruçados sobre o tema deste trabalho. Os

mandamentos que se preocupam com a vedação de condutas e comportamentos 3 Pesquisa realizada em leis ordinárias no sítio eletrônico da Presidência da República. BRASIL. Presidência da República. Legislação. Leis ordinárias. 1988 e 2005. Disponível em: <https:www.planalto.gov.br>. Acesso em: 12 mar. 2005.

são substituídos, em Jesus, pelos valores igualdade e fraternidade (A BÍBLIA

SAGRADA, 1993, p. 31).

Ademais, àqueles que acreditam, durante o Sermão do Monte, Jesus nos dá

alguns ensinamentos que podemos transpor aos nossos princípios de ordenamento

jurídico. Como não fazer associação das regras de Estado de Direito que

subemetem o Estado também ao princípio da legalidade, com o versículo 2 do

capítulo 7 do Evangelho segundo Mateus (A BÍBLIA SAGRADA, 1993, p. 9),

“pois, com o critério que julgardes, sereis julgados; e, com a medida com que

tiverdes medido, vos medirão também”. Assim, transpondo para conceitos

firmados hoje, podemos afirmar que devemos, a contrario senso, nos utilizar das

mesmas premissas que servem aos julgamentos das classes vulneráveis para com

os que a ela não pertencem.

Importante salientar que esta formação religiosa não é aquela mesma

relatada por Delumeau, acerca do medo. Ao contrário, uma formação religiosa

que tem muito mais a ver com um Jesus Cristo remidor e um Deus misericordioso

do que aquele a que se socorria a igreja para justificar os períodos de peste. Esta

visão nos impede de classificar, segundo Delumeau, os culpados (leprosos,

judeus, estrangeiros, marginalizados) (DELUMEAU, 1989, pp. 131-147). E da

mesma forma abandonado está qualquer tipo de flagelo, qualquer tipo de

sacrifício para comprovação do arrependimento. A relação é pessoal com Deus, o

julgamento é vedado (tanto da conduta do outro, como do outro mesmo), e o

arrependimento vale de per si (independente de qualquer sacrifício, pois para nós,

bastou o sacrifício do Cristo, não nos resta qualquer sacrifício próprio).

Em virtude disso, aquela difusão, a que se refere Delumeau (DELUMEAU,

1989, p. 407), dos medos, seja através da imprensa, seja através do teatro

religioso, das gravuras ou pregações nas Igrejas, perde totalmente o seu sentido

dentro do nosso referencial religioso.

Partindo desta base pessoal, pudemos nos sensibilizar com o espaço que o

direito penal possui na sociedade. Não somente por ser o estatuto jurídico que

originariamente se afirma como limitador do poder punitivo do Estado, como

também pelo seu reconhecimento, e colocação atual, como remédio para todos os

males sociais.

A partir dos anos oitenta, no contexto de implantação nacional de aquilo que

se propõe ser um Estado Democrático de Direito, vemos que a preocupação com

um aumento da violência criminal ganhou relevo e se coloca num ponto central de

olhares da sociedade. É um novo mito que se vai construindo, um novo inimigo. É

como afirma Vera Malaguti Batista, acerca da transição do autoritarismo para o

Estado Democrático de Direito, operada pela transferência do inimigo terrorista,

comum à ditadura, para o inimigo traficante (BATISTA, V.M., 1998, p. 32). Ou,

de um modo geral, para o criminoso.

Mantem-se aquela ideologia da segurança nacional, de manutenção da

ordem, pois “Toda a arquitetura legal e física do sistema penal na República

brasileira é erigida para dar conta dos novos excluídos da ordem republicana, sob

o olhar lombrosiano e positivista”.(BATISTA, V.M., 1998, p. 121)

1.2 Objeto

Como já foi apontado anteriormente, de forma mais vaga, o objeto de estudo

desta dissertação é a criminalização de condutas igualmente consideradas direitos

humanos. Apoiada numa inflação legislativa, aparentemente desenfreada, que

aponta para uma direção só: a construção de um novo inimigo da sociedade na

transição para um Estado Democrático de Direito. A construção desse inimigo

que avança e atropela o exercício de direitos já reconhecidos.

O que se pretende apontar é o conflito que se estabelece num momento pós

Constituição Federal de 1988 e o aumento do número das figuras típicas penais.

Trata-se de evidenciar o contra-senso real entre o movimento de política criminal

legiferante adotado e a construção de um Estado Democrático de Direito.

Pode-se afirmar que, como já dito, a Constituição Federal de 1988 impõe

um marco histórico no Brasil. Ela incorpora direitos fundamentais relevando a sua

importância. Constrói regras de hermenêutica e de aplicação que colocam, ainda

que num plano abstrato, os direitos e garantias fundamentais em um patamar

superior4. Esta é a demonstração de um programa de construção de um verdadeiro

Estado Democrático de Direito.

No entanto, podemos compilar o crescimento de um Estado Penal

(WACQUANT, 2003, pp. 27-33), que erigiu aproximadamente quinhentas

normas penais criminalizadoras, incluindo-se aí normas que simplesmente

4 Importante se faz uma pequena transcrição dos dispositivos originais da Constituição, Art. 5º. §1º. As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. §2º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, u dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Art. 60. §4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV – os direitos e garantias individuais. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

aumentaram a pena, ou agravaram de qualquer forma a situação dos acusados em

geral e também aquelas que trouxeram uma extensão dos tipos penais originais.

Desta forma, nosso foco central está em analisar criticamente a

compatibilidade entre o Estado Democrático de Direito que se afirma na

Constituição de 1988 e o Estado Penal que se vem construindo desde a sua

publicação em 05 de outubro do mesmo ano, buscando os conflitos que estas duas

formas apresentam, e apontando a real criminalização do exercício de direitos

humanos.

Reconhecer a existência de tantas espécies de direitos humanos, sua

aplicação imediata e a sua irrevogabilidade é elemento estruturante de um Estado

Democrático de Direito. Criminalizar de forma desenfreada condutas é

característica de um Estado Penal, marcado por um recrudescimento de um

Estado que se insurge contra os governados.

1.3 Marco Teórico

Iniciamos este trabalho com um olhar oriundo da América Latina, um olhar

que, “graças a Deus”, é oriundo daquele significado que nos reporta Zaffaroni,

haver ultrapassado muitos riscos

haver nascido (isto é, não ter sido abortado), haver sido alimentado adequadamente, haver superado ou escapado das doenças infantis com seqüelas incapacitantes, haver conseguido alfabetizar-se e, ainda mais, haver ascendido aos níveis médios e superior do ensino, haver escapado das ameaças à vida adulta que os fenômenos naturais catastróficos representam, a violência política e não-política, não haver “desaparecido”, etc., e outro sem-número de fatores cujo conjunto compõem o milagre que coloca tal indivíduo numa situação extremamente privilegiada (Zaffaroni, 2001, p. 154).

Apontar de onde parte o nosso olhar sobre o tema apresentado é

extremamente relevante para o que se pretende demonstrar. Enquanto a escola

liberal clássica do direito penal e a criminologia positivista analisam a figura do

criminoso, colocando como seu objeto central de estudo, nosso estudo se orienta

por outro ponto. (BARATTA, 2002, pp. 30-32)

Reconhecemos uma função seletiva e classista da justiça penal apontada por

Alessandro Baratta:

No que se refere ao direito penal abstrato (isto é, à criminalização primária), isto tem a ver com os conteúdos, mas também com os “não-conteúdos” da lei penal. O sistema de valores que neles se exprime reflete, predominantemente, o universo moral próprio de uma cultura burguesa-individualista, dando a máxima ênfase à proteção do patrimônio privado e orientando-se, predominantemente, para atingir as formas de desvio típicas dos grupos socialmente mais débeis e marginalizados (BARATTA, 2002, p. 176).

Orientamo-nos por um enfoque baseado na criminologia crítica que procura

salientar o processo de criminalização, que não é só um dos maiores causadores

da extinção de qualquer proposta de direitos iguais, como também mantenedor

das diferenças de forma a incluir uma classe dentro deste sistema excludente do

modelo capitalista. E aqui, poderemos afirmar, a discrepância entre o modelo

ditado pela lei fundamental, e a aplicação legislativa infraconstitucional das

práticas penais.

É também indispensável transcrever a lição de Lola Anyar de Castro, em

sua proposta de fundar um limite neste crescimento do Estado Penal.

Por tratarse de un cosa tan delicada como es la manipulación de actitudes, valores, personalidades, por una parte; y de la implantación de un orden predeterminado sobre un conglomerado, por la otra, la siguiente cuestión ética se presenta como una condición necesaria: ¿cómo pensamos que debe ser una sociedad? ¿cuál es el orden que queremos? Es decir, no solamente: ¿cómo queremos que se comporten las personas? Sino también: ¿cómo queremos que sean el orden, el

control, el Estado, el Poder? ¿Cuál es el grado de felicidad, de satisfacción, y de emancipación general que este orden debe procurar? Como la Constitución es la base definitoria de un sistema político, y por ende, del tipo de democracia a que se aspira, es en este instrumento jurídico donde deben diseñarse los lineamientos básicos del control social. El tema de un control social alternativo, y que por lo tanto no signifique opresión, sino liberación, está estrechamente ligado no sólo a una particular concepción de la criminología, sino básicamente de la democracia. Como esta concepción es variable según el sistema político, un control social alternativo debe interrogarse primero sobre éste. En todo caso, Política Criminal es, esencialmente, y simple y llanamente, política. Por eso es tan importante imponer su presencia en el ámbito constitucional. (CASTRO, 2003, p. 62)

1.4 Estrutura do Trabalho

Para a análise do objeto deste trabalho, partiremos de uma simples proposta

de conceituação de direitos humanos, de molde a não trabalhar com um conceito

completamente indeterminado. Será sucintamente demonstrado o tema, que por si

só é tema de inteiras monografias.

Em um segundo momento será indispensável a verificação do que vem a ser

um Estado Democrático de Direito, e de Direito Constitucional. Estabelecer-se-á,

também de forma sucinta o que Giorgio Agamben vem definindo como Estado de

Exceção. Não nos satisfaremos com uma definição legal de Estado Democrático

de Direito, assim como também não se satisfaz Agamben, e sim com um Estado

Democrático de Direito efetivamente aplicado.

E assim, analisaremos o conflito que se estabelece entre o reconhecimento

de direitos humanos, direitos fundamentais, por um Estado Democrático de

Direito Constitucional, e um aumento inflacionário e sem limites da quantidade de

normas criminalizadoras. Teremos, sobretudo, como marco temporal o Brasil em

sua proposta de transição para um Estado Democrático de Direito Constitucional

programado pela Constituição de 1988, e assim, pela edição de novas leis penais

subseqüentes.

Indispensável por certo se faz analisar doutrinariamente, de forma crítica,

como têm se comportado a política criminal de uma forma geral. É certo que

temos absorvido muito do discurso internacional, quer por imposição política,

quer por aderência doutrinária.

Mas o tema central de nosso trabalho, e isso já está consignado, é como tem

convivido, a um só tempo, e num mesmo ordenamento jurídico, o brasileiro,

regras programáticas de exceção com regras programáticas de democracia e de

proteção a direitos humanos. E, portanto, como podem regras de exceção

ultrapassar os limites colocados pela conquista da positivação de direitos

humanos, tipificando como crime o exercício de um direito inerente à dignidade

da pessoa humana.

2 Direitos Humanos e Conceituação

A noção de direitos humanos é antiga, podendo-se dizer que ela é

contemporânea à civilização, através da dignidade da pessoa humana, na luta

contra todas as formas de dominação, exclusão e opressão. O reconhecimento

desses valores básicos encontra referência e orientação no pensamento ocidental,

que nos lega para a conceituação jurídica contemporânea de direitos humanos a

premissa de que eles são inerentes a cada ser humano e inalienáveis que

antecedem os direitos do Estado; ao mesmo tempo, que o poder estatal deriva da

vontade do povo; e, inclusive, que a justiça prima sobre o direito estatal positivo

(TRINDADE, 2003, pp. 33-35).

2.1 Um conceito inicial de vida

Os gregos trabalhavam com dois termos que designavam vida: zoé - para o

simples fato de viver biologicamente, e bíos – forma de viver própria de um

indivíduo ou um grupo. O homem é um animal que concentra em si os dois

termos. Não só tem vida biológica como tem uma forma de viver própria, através

da linguagem, que se relaciona com conceitos de justo e injusto, bem e mal, e não

simplesmente prazer e dor, como nos relembra Giorgio Agamben (AGAMBEN,

2002, pp. 9-10).

Como bem nos resume Vera Malaguti Batista (BATISTA, V. M., 2002, p.

385), com o surgimento da polis, a vida simples é excluída, reservando-se apenas

à vida doméstica. Aquela já não tinha mais importância, como passa a ter a vida

política – adjetivada de qualificada em oposição à vida simples.

Mas não podemos tratar, em vista de direitos, apenas da bíos. A zoé, a

vida nua, também ingressa no mundo político, e, portanto, na esfera de tratamento

do direito. E não apenas de tratamento, mas na esfera de incidência, de controle

pelo Estado. E Agamben se remete a Foucault, estudando as técnicas políticas,

pelas quais o Estado integra o cuidado da vida nua, da vida natural, e das

tecnologias do eu, por um processo de subjetivação, que leva o indivíduo a

vincular-se, por sua própria consciência, a um poder de controle externo.

Estabelece-se, desta forma, um duplo vínculo político, individuação e totalização

das estruturas de poder externo. Mas conclui por si que, o poder se vincula

diretamente a vida nua, sendo a vida nua o núcleo originário da esfera política

(AGAMBEN, 2002, pp. 11-14).

Houve uma politização da vida humana, indispensável em virtude do

capitalismo, que necessitava do controle disciplinar do biopoder, como relembra

Vera Malaguti, em referência a Foucault, aqui também abordado (BATISTA,

V.M., 2002, p. 385).

Tratamos aqui, tal como Agamben, a existência humana, objeto de

proteção dos direitos humanos, como a junção entre a vida nua e a vida politizada.

Junção essa se caracteriza, para nós, como indivisível, eis que uma implica na

outra. O homem não “vive simplesmente”, mas “vive” e também “vive

politicamente”.

Assim, ao mesmo tempo em que o processo disciplinador do Estado transforma o ser humano em seu objeto, um outro processo é detonado no nascimento da democracia moderna, em que cada homem, como ser humano, se apresenta não mais como objeto mas como sujeito do poder político. Esses processos que se opõem e convergem, se referem à vida nua, o novo corpo biopolítico da humanidade (BATISTA, V.M., 2002, pp. 386-387).

Esta é uma característica da modernidade, que junta poder e vida e nua, e

no ocidente tem se operado por uma exclusão (inclusão) da vida nua. É o homo

sacer. Figura que só é incluída no ordenamento jurídico pela sua exclusão. Essa

simultaneidade de exclusão/inclusão vida nua/vida política se transforma no plano

da legalidade em lei/exceção.

2.2 Um conceito tradicional de direitos humanos

Indispensável trabalhar sobre um tema sem apresentar-lhe um conceito.

Não nos propomos aqui a fechar o conceito de direitos humanos – proposta que

nos pareceria extremamente audaciosa. Podemos, contudo, apresentar algumas

colocações sobre o tema.

Abstraímo-nos de teorias positivistas ou do reconhecimento de um direito

natural, a uma porque reconhecemos que direitos humanos fogem ao campo do

direito objetivo, e a duas porque o fundamento máximo dos direitos humanos são

a própria condição humana.

E aqui, entendemos os direitos humanos como aqueles inerentes ao

homem como tal. Trabalhamos também partindo do ponto em que parte Maria

Lúcia Karam quando trabalha sobre o tema, ou seja, à luz de Baratta, entendendo

os direitos humanos como as necessidades reais fundamentais, como

desenvolvido por Lola Aniyar de Castro, “tomando elementos de uma análise e

uma discussão racionais dos conhecimentos da biologia, da ética e da

cultura”(KARAM, 1991, p. 143).

O problema é estabelecer qual é a natureza humana, o que nos levaria a

desvendar a nossa própria essência. E a natureza humana apresenta uma diferença

à dos outros animais. É ela mortal, uma vez que o homem deve ser reconhecido

individualmente, tendo sua história identificável desde o nascimento até a morte.

O homem, em virtude de sua capacidade de produzir coisas, de inovar, é único. O

homem é mortal, apesar de imortais, possivelmente, seus feitos(ARENDT, 2004,

p. 28).

É possível questionarmos essa possibilidade de se conceituar direitos

humanos pela ausência de um único fundamento que seja absoluto. Um

fundamento que se preste a todos os direitos que possamos dizer sejam espécies

de direitos humanos e que torne irresistível a sua proteção. Hannah Arendt se

dirige, então, a conceituar a condição e a natureza humanas, estabelecendo as

distinções entre o homem e os outros animais.

A ilusão dos jusnaturalistas foi buscar este fundamento absoluto, como

afirma Norberto Bobbio, apontando a natureza do homem. O problema está na

vagueza da expressão – direitos humanos – que nos leva a uma classe variável e

heterogênea. Nesse caso, pode se apontar como solução a possível adoção de

vários fundamentos (BOBBIO, 2004, p. 35-43).

Não nos parece correto. Direitos são sempre de homens. É o homem o

sujeito de direitos. A expressão então se coloca sem sentido. Ms devemos

solucionar este problema analisando o que vem a ser objeto de proteção disto que

se pode chamar de ramo do direito.

2.3 A dignidade da pessoa humana

A Constituição brasileira de 1988 reconhece a dignidade da pessoa

humana, mas, como deveria ser, não estabelece nenhum conceito.

Apesar do conceito de dignidade da pessoa humana ser um conceito que se

possa dizer cultural, como afirma Boaventura de Sousa Santos, ele é elemento

indispensável ao conceito de direitos humanos. Os direitos humanos são inerentes

ao indivíduo (SANTOS, B.S., 2003, pp. 429-458).

Ora, desde básicos conceitos religiosos, verificamos que o homem é

distinto dos outros animais – é ele dotado, ao mesmo tempo, de natureza espiritual

e terrena, além de naturalmente incompleto, necessitando sempre do outro. O

valor atribuído à pessoa humana encontra lugar na Bíblia, que descrevendo a

origem humana identifica o homem como ponto alto da criação, e a própria vida

como sagrada, mais que tudo no mundo. E mais, ao sacralizar a vida e torná-la

intocável, cada vida, reconhece o homem, cada homem, como um ser único

(LAFER, 1988, p. 124).

Na filosofia o fundamento apontado seria a racionalidade, como

característica a distinguir o homem dos demais animais. Na ciência, por fim, a

dignidade humana é afirmada, inicialmente, pela descoberta do processo de

evolução dos seres vivos em que podemos vislumbrar uma orientação finalística –

a transformação biológica até a conclusão, o homem. Homem individual, que

guarda distinções dos outros de usa espécie, tal como se verifica pela descoberta

do DNA (ácido desoxirribonucléico). Tal desenvolvimento, não é apenas

biológico – como para os outros seres vivos – mas cultural, graças ao quê é

possível a interferência sobre as outras espécies vivas (COMPARATO, 2003, pp.

1-36).

Seja como for, se a pessoa é a fonte e medida de todos os valores, ou seja,

se o próprio homem, e não a divindade ou natureza de modo geral, é o

fundamento do universo ético. A história nos ensina que o reconhecimento dessa

verdade só foi alcançado progressivamente, e que a sua tradução em termos

jurídicos jamais será concluída, pois ela não é senão o reflexo do estado de

permanente inacabamento do ser humano. Não existe uma dignidade estática, o

que existe é uma dignidade que se possa dizer mínima. De toda forma é a

integralidade da dignidade que devem proteger as regras de direitos humanos.

E é importante firmar que uma duplicidade de conceitos também podemos

encontrar já no título da Declaração de Direitos do homem e do cidadão. Os dois

termos designam duas realidades autônomas ou formam um sistema unitário?

Uma simples leitura da declaração de 1789 mostra que é a vida nua o objeto de

proteção e, mesmo, de fonte de direito. Contudo, podemos afirmar, na medida em

que o homem constitui o fundamento do cidadão, os direitos lhe são atribuídos

(AGAMBEN, 2002, pp. 133-135).

2.4 A juridificação da Liberdade

A concepção ocidental, que opera quase como uma religião em países

como os Estados Unidos, de democracia e de direitos humanos visa a garantir, de

modo mais abrangente a liberdade, e assim, se identifica com os ideais iluministas

dos direitos liberais. Podemos até concluir que os direitos humanos consideram o

homem como um ser que já nasce para a vida e para o sistema jurídico,

independente de sua vontade. Mas surge o problema da justificação dos direitos

humanos, que nos dão conta da busca de um conceito que seja uniforme. Não nos

satisfazem mais a justificação divina, nem a natural (FLICKINGER, 2004, pp. 97-

99).

Hans-Georg Flickinger reconhece nos ensinamentos de Thomas Hobbes

uma argumentação capaz de deduzir os direitos fundamentais a partir de um

estado de liberdade anterior ao direito, e um direito que teria a função de permitir

um convívio social, através de um contrato originário que levasse ao

reconhecimento de direitos à integridade pessoal dos demais. Esta idéia parte do

pressuposto de que os contratantes eram inicialmente livres. E livres para

estabelecer limitações ao próprio exercício destas liberdades daí por diante. Tais

limitações, contudo, não serviriam para aniquilar a liberdade, mas para assegurá-

la a todos – o que marca a diferença entre uma liberdade meramente existencial e

uma liberdade articulada nos termo de um direito liberal (FLICKINGER, 2004,

pp. 99-100).

A questão da liberdade, distingue Hannah Arendt em dois momentos

distintos. A família e a política. Se falarmos em família como um momento pré-

político, que nada tem a ver com o “caótico” estado natural, ser livre significava

não estar sujeito às necessidades da vida ou ao comando do outro. Não podemos

nos esquecer, todavia, que, a família era e sempre foi uma instituição política

(ENGELS, 1978, pp. 29-91). Ocorre que modernamente, afirma a autora

(ARENDT, 2004, pp. 44-46), as esferas social e política não guardam tamanha

diferença e a sua liberdade será exercida também na família.

Ocorre que esta simples consagração da liberdade, implementando,

inclusive, a igualdade, faz-nos esquecer do terceiro ideal da revolução francesa: a

fraternidade. Fraternidade ou solidariedade, presas a um conceito de justiça social,

não se bastam pela proteção das liberdades, num primeiro momento. Essa simples

preocupação com a liberdade não responde ao possível desequilíbrio material ou

social que daí possa resultar (FLICKINGER, 2004, pp. 101-105).

Ademais, podemos colocar a liberdade em um grau de importância menor

que outros direitos. É como nos orienta Bauman. A comunidade é um paraíso

perdido ou ainda esperado, que nos cobra um preço – a liberdade. Se por um lado

ela nos dá segurança, ela nos retira a liberdade. E só reconhece o homem enquanto

ser humano com segurança e liberdade. Ora, a liberdade, encarada sob a

perspectiva meramente individual, não basta em si mesma. Apesar de se afirmar o

reconhecimento de vantagens – e por que não dizer de direitos? – apenas àqueles

que a conquistaram por mérito é ela uma verdade, ela não é toda verdade. A falta

da comunidade retira o sentido da liberdade como fator de realização de uma vida

satisfatória. Os direitos do homem não são tão somente a liberdade. Garantias de

uma vida em comunidade são assim igualmente indispensáveis (BAUMAN, 2003,

pp. 40-59).

Interessante e oportuno se faz a análise de Freud acerca d’ “O mal estar na

civilização”, partindo da noção de que o homem persegue a felicidade e assim

permanecer (FREUD, 1997, p.24).Para Freud a definição de felicidade é a

satisfação de necessidades represadas em alto grau. A felicidade é difícil de ser

experimentada, e a infelicidade muito mais fácil.

A justiça social, simplesmente, como horizonte último foi abandonada em

favor de um padrão de direitos humanos. E agora os princípios não podem deixar

de ser formais e abertos, estando, inclusive, sempre aberta a renegociação. Pela

sua busca à universalidade, o conjunto de direitos humanos está sempre aberto a

traçar novas linhas. Incluímos além dessa universalidade, também, a sua

atemporariedade, que permite a sua mutabilidade também em razão do tempo.

Bauman conceitua-os como o “direito a ter a diferença reconhecida e a

continuar diferente sem temor de reprimendas e punição”. É claro. Trabalha ele

dentro da comunidade, e dentro da comunidade o que se necessita assegurar é a

diferença. E assim, num primeiro momento podemos enquadrá-los como direitos

individuais, que, entretanto, são apenas reconhecidos quando conquistados de

forma coletiva, u seja, através de uma intensa construção comunitária. Se o objeto

construído será bom, isto ó a experiência nos dirá, e, portanto, será possível a seu

renegociação (BAUMAN, 2003, pp. 69-81).

Norberto Bobbio aponta uma alteração no reconhecimento dos direitos do

homem. Ele aponta inicialmente, não mais para a liberdade, mas para a igualdade,

que agora é proclamada como condição fundamental. Ademais, por uma

declaração de direitos estes são alçados a uma categoria nova, dotada da qualidade

de serem oponíveis aos homens e aos poderes públicos. Protegidos pelo Estado e

também contra o Estado (BOBBIO, 2000, pp. 484-485).

Ao fugir da fundamentação dos outros direitos do homem na liberdade, a

declaração se coaduna com o fato dos homens não nascerem livres, propriamente,

mas deverem ser tratados como livres, e também iguais, não reconhecendo um

fato, mas prescrevendo um direito.

Bobbio trabalha também com a distinção entre a doutrina do direito

natural, como já visto, e a doutrina dos direitos naturais. O jusnaturalismo

tradicional reconhecia na lei natural um regra de conduta que tinha por

destinatário o soberano, principalmente, a quem se impunham deveres de exercer

o poder rejeitando alguns princípios morais. Ocorre que a esse dever não

correspondia nenhum direito do súdito em fazer cumprir o Estado seu dever. Em

um segundo momento surge o direito de resistência, que, contudo, não tem o

condão de fazer-se cumprir o dever. Então não podemos sequer reconhecer, até

aqui, um verdadeiro direito ao súdito. O último passo, em direção à moderna

doutrina dos direitos naturais reconhece a existência de deveres do soberano em

virtude, simplesmente, dos direitos dos súditos (BOBBIO, 2000, pp. 468-488).

Hoje, podemos também dizer que liberdade e igualdade não merecem as

mesmas definições de três séculos atrás. Liberdade meramente negativa, ou seja,

de se fazer ou não determinadas coisas sem impedimento, hoje se vê somada a

uma autonomia, dar leis a si próprio, coadunando-se com a idéia de leis

intimamente desejadas e internamente estabelecidas. Esta a primeira ampliação do

conceito de liberdade. A segunda se deu pela transmutação para uma concepção

positiva de liberdade, isto é, capacidade jurídica e material de tornar concretas as

abstratas possibilidades garantidas pelas constituições liberais. E aqui se vê o

Estado como instrumental e não final. Daí a liberdade (BOBBIO, 2000, pp. 489-

490).

O princípio da igualdade também deve ser atualizado, afirmando não mais

pura e simplesmente o tratamento do mesmo modo a todos de sua classe. Todos

os homens são iguais em dignidade e direitos. Todos devem ser, como já visto,

livres e iguais no gozo dessa liberdade. Adere-se a isto, como forma de sua

implementação substancial, o conceito e igualdade social, importando esta em

mesmas oportunidades, que se concretiza com o reconhecimento de direitos

sociais, ou seja, as pretensões ou exigências das quais derivam expectativas

legítimas que os cidadãos têm, como indivíduos isolados, independentes dos

outros, mas como indivíduos sociais que vivem, e não podem deixar de viver, em

sociedade com outros indivíduos.

Então podemos reconhecer que os direitos humanos não são produto da

natureza, mas da civilização humana, sendo reconhecidos, tradicionalmente em

três momentos: liberdade, direitos políticos e direitos sociais. Serão, portanto,

obrigatoriamente, objeto de defesa contra toda forma de poder – físico, político ou

social –, de forma a garantir a vida, a liberdade e a segurança social.

De toda forma, pretendemos trabalhar com o conceito de direitos humanos

perfilhado também por Nilo Batista, dentre tantos outros como vimos, que

simplesmente os conceitua como sendo direitos que toda pessoa humana possui,

independente de qualquer qualidade especial.

A idéia principal de direitos humanos é que toda pessoa tem certos direitos que o Estado não pode tirar nem deixar de conceder: vida, trabalho, remuneração digna, aposentadoria, instrução, liberdade, manifestação de pensamento, livre associação e reunião, etc. (BATISTA, N., 1990, p. 159).

3

Estado Democrático de Direito ou Estado de Exceção

Cresce, em todos os ambientes – acadêmicos, políticos – o discurso pelo

Estado Democrático de Direito. A imposição de limites ao estado é defendida, e

não qualquer imposição de limites, mas aquela que se destina a fins plurais. O

problema está muito menos no discurso. O problema é identificar se estamos ou

não num Estado Democrático de Direito.

No discurso internacional de proteção aos Direitos Humanos consideram-

se os seguintes elementos como essenciais à democracia: a existência de

instituições de garantia aos direitos humanos, um poder executivo e legislativo

periodicamente eleito com respeito pela vontade popular, separação dos poderes,

existência de instituições adicionais de controle, pluralismo ideológico, liberdade

de associação, satisfação das necessidades humanas básicas, fiscalização,

exigência de responsabilidade das autoridades, acesso à justiça, liberdade de

imprensa e respeito pelos direitos das minorias (TRINDADE, 1999, p. 205).

3.1 Estado de Direito

O Estado, desde a figura do implacável Leviatã de Hobbes, até hoje, é o

detentor do poder, da possibilidade de fazer prevalecer sua vontade. O

jusnaturalismo criou uma técnica da liberdade, de forma a deter o seu

extravasamento de poder. Foi movida por este raciocínio que nasceu a primeira

noção de Estado de Direito. E isto nasceu em face das liberdades individuais

afirmadas na Revolução Francesa. Daí para a democracia necessários foram

outros derramamentos de sangue, além do constitucionalismo do século XIX, já

que a burguesia, detentora da revolução do século XVIII, pretendia manter os

privilégios a ela compatíveis, resumidos, basicamente, na idéia de Estado Liberal

(BONAVIDES, 1996, pp. 41-45).

O Estado de Direito, para Bobbio, seria o momento em que surgem os

chamados direitos públicos, caracterizados como direitos do homem que se

operam na esfera das relações de poder entre príncipes e súditos (BOBBIO, 2004,

pp. 75-78).

Na esfera penal, parecia haver uma justificativa para a não submissão do

Estado a leis, que seria a ausência de uma concepção adequada do relacionamento

necessário entre punição e crime. Relação esta tanto proporcional quanto

funcional, ou seja, a pena se apresenta como uma forma de colocação do

indivíduo no local onde o poder quer. Não punir, nem ressocializar, ou qualquer

discurso que se queira afirmar (RUSCHE, 1999, p. 100).

O direito de punir do Estado, do soberano, viria a ser mais do que fazer

respeitar os direitos de cada um. O castigo é identificado também como uma

vingança de uma afronta à pessoa do rei. A preocupação é simplesmente com o

triunfo da lei.

3.2 Democracia

A definição de democracia que ganhou popularidade foi a lincolniana de

que é governo do povo, para o povo e pelo povo (BONAVIDES, 2002, p. 267).

Para Bobbio o fundamento de uma sociedade democrática é o pacto de

não-agressão de cada um com todos os outros e o dever de obediência às decisões

coletivas tomadas com base nas regras do jogo de comum acordo preestabelecidas

(BOBBIO, 2000, pp. 384-386). Este pacto, entretanto, deve ser mantido e

garantido por um poder, que é o Estado.

Entre todas as expressões utilizadas para definir a democracia, Bobbio

prefere “poder em público”. É a clareza das decisões que possibilita o exercício

do controle sobre o poder. A prestação de contrapor quem o exerce. Interessante é

observar o conceito de democracia ideal afirmado pelo cientista político, e

intangível, por duas razões. A primeira está na verificação de que, diferente do

que afirma a Declaração Universal dos Direitos do Homem, os homens não são

livres e iguais, apenas aspiram vir sê-lo. A segunda está em que a democracia

parte do reconhecimento da autonomia de todos os indivíduos. Quanto a esta

segunda razão já podemos concluir que um Estado Penal em crescimento

pressupõe o inverso, ou melhor, cresce pois reconhece a incapacidade do

indivíduo auto-regular-se, ou da intenção, pura e simples, de regular o indivíduo

independente de sua autonomia (BOBBIO, 2000, pp. 386-428).

E, como se verá, na posição do Estado fora da democracia, muito bem se

apresenta o confinamento solitário e sem trabalho do que com o trabalho

carcerário, que podia ser considerado como indulgente, especialmente pelo fato

dos prisioneiros nutrirem expectativas de privilégios e recompensas, em vez da

disciplina, pura e simples (RUSCHE, 1999, pp. 168-181).

3.3 Estado de Exceção

A questão do Estado de Direito – e também do Estado Democrático – está

no triângulo entre poder, direito e verdade. Foucault afirma que não é possível

exercer poder sem uma certa omissão da verdade. Nós somos obrigados pelo

poder a confessar verdades que serão a lei que transmite e reproduz, ainda que em

parte, os efeitos do poder. O direito parece ter sido construído a pedido do poder

(real) nas sociedades ocidentais. Quer para mostrar a forma jurídica do exercício

desse poder. Quer para mostrar a necessidade da imposição de limites a esse

poder (FOUCAULT, 2004, p. 179).

Utilizamo-nos da definição de direito como ele realmente o é, um

procedimento de sujeição, de dominação. Sujeição a um bem público, em nome

do qual se exerce o governo, quer seja, essencialmente, obediência à lei, através

do exercício dos encargos que são atribuídos aos súditos, da prática dos ofícios a

que são destinados, respeito a ordem estabelecida (FOUCAULT, 2004, pp. 191-

284).

O Estado de exceção é uma questão que se coloca ou como fruto dos

períodos de crise política (e não jurídica) com medidas excepcionais de natureza

jurídica, paradoxalmente, ou como estado de exceção que se liga e abandona o

direito. É a instauração de uma guerra civil legal que permite a eliminação física,

e não só política e social, de adversários políticos e categorias inteiras de

cidadãos. Esta prática é, então, comum, inclusive entre os chamados estados

democráticos. Como não afirmado, mas colocado, esse deslocamento de uma

medida excepcional, e sobretudo política, para uma técnica de governo coloca o

estado de exceção entre a democracia e o absolutismo, uma vez que não abandona

o direito, nem é um direito especial, tal como o direito da guerra, mas cria para si

uma definição e um limite do direito, que aplica e se submete (AGAMBEN, 2004,

pp. 11-13).

O estado de exceção, como intermédio entre democracia e absolutismo,

não possui a separação de poderes, incomum só a um estado democrático,

firmando a chamada “ditadura constitucional”. Constitucional, pois, apesar de não

democrático, ele se torna a regra, a lei, paradigma constitutivo da ordem jurídica,

como afirma Agamben. Poderes amplos ao executivo, justificados pelo

fundamento da defesa da constituição democrática (AGAMBEN, 2004, pp. 17-

20).

O que se questiona no estado de exceção que se desvela é a sua

semelhança com o direito de resistência, que se coloca como uma resistência a

atitudes extrajurídicas exercidas pelo estado contra o cidadão. O princípio

democrático da divisão dos poderes, que pressupõe, não só a separação dos

poderes, mas o controle recíproco entre estes poderes, de forma a limitá-los, cai

por terra no estado de exceção, no qual verificamos esta divisão esquecida

(AGAMBEN, 2004, pp. 21-33).

O estado de exceção, indubitavelmente, funda-se na teoria da necessidade,

da luta pela subsistência (aqui) do próprio estado. A necessidade que se limita em

extrair um caso particular da aplicação literal da lei, mas que num estado

autoritário serve, como já foi dito, como técnica de governo. Voltamos aí ao já

referido bem público, objeto maior de proteção da lei, e de indefinível limite e

conceituação. E se a lei não serve a proteção deste dito bem público, que se altere

a lei, conforme a necessidade. Surge como uma lacuna que a lei não pode

resolver, como uma “fratura essencial” entre a norma que se destina a manter a

ordem e o bem público e a aplicação da própria norma. O estado de exceção é,

portanto, embora ilegal, jurídico e constitucional, concretizado pela criação de

novas normas (AGAMBEN, 2004, pp. 40-49).

Não pretendemos fazer aqui qualquer distinção entre estado de exceção,

estado de sítio e ditadura, apenas nos preocupamos com a articulação paradoxal

entre direito e exceção, como suspensão da ordem jurídica para a sua própria

manutenção. A anomia para assegurar a normatização real.

E só se pode adjetivá-lo de estado de exceção pois o poder que se exerce

excede aos direitos constitucionalmente previstos. Ultrapassa os limites a ele

impostos, justificando-se na supremacia do bem comum, inclusive sobre a

observância da norma, que não mais vem, efetivamente, lograr protegê-lo. Rompe

o ordenamento jurídico para salvá-lo. Mormente quando se define o bem comum,

ou o bem público, com a manutenção da ordem jurídica (AGAMBEN, 2004, pp.

67-74).

Giorgio Agamben promove um diálogo entre Carl Schmitt e Walter

Benjamin, a respeito do tema. Se por um lado Benjamin defende que o direito não

se compatibiliza com a existência de uma violência fora do direito, por outro lado,

Schmitt conclui que a violência no direito se inclui por sua própria exclusão.

E mais. Schmitt critica a figura de um Estado de Exceção que se pretende

regular por lei, com o objetivo de garantir algum direito ou liberdade. E Benjamin

responde com a apresentação da situação real em que se vive. E a discussão parte

para a relação entre violência e direito. E a violência pura e simples, identificada

por Benjamin, jamais pode ser reconhecida nunca é simplesmente um meio de se

obter um fim, mas um meio e um fim em si mesma. O próprio exercício da

violência como fim.

O direito, por sua vez, pode ser considerado como um instrumento e

também como meio. Também como aquilo que não é eterno, mas que se apresenta

no tempo depois do início e que não chega ao fim. O direito não pode ser o fim

do estado. O estado de exceção coloca o direito como fim (AGAMBEN, 2004,

pp. 83-98).

4 Criminalização exacerbada e direcionada

Vários são os motivos que levam ao crescimento do Estado Penal. Não é

por acaso. A ausência de um sentimento de comunidade em que estamos todos

(ou a maioria) imersos, a sociedade de exclusão que se processa num sistema

bulímico, que inclui para imediatamente excluir, e que se potencializa com essa

tal globalização.

4.1 A comunidade

Jock Young inicia sua análise sobre a sociedade com uma descrição do

mundo que parece ser o desejo de todos, envolvidos em uma tal nostalgia. Os

“anos dourados” do pós-guerra na América do Norte e na Europa (YOUNG,

2002, p. 20). Tratava-se de uma era de inclusão que foi seguida pela revolução

cultural do final dos anos 1960 e dos anos 1970, em que o individualismo, a

diversidade e a desconstrução dos valores aceitos tomam lugar. Era a

conformidade seguida da desordem.

Em seu dizer, era mais uma sociedade que via “o outro” não como um

inimigo, via-o como alguém que devia ser socializado, reabilitado, curado até

ficar “como nós”. Esse “outro” é minoria, é distinto, alguém a quem faltam os

valores e, ontologicamente, um confirmador dos nossos valores, sujeito à

inclusão.

Mas como relembra bem Bauman, poucos se lembram o porquê da criação

do estado do bem estar social. O estado pretendia reabilitar os temporariamente

excluídos, protegendo-os do medo de perder as suas aptidões no meio do

processo. Instituições como a previdência social eram consideradas rede de

segurança, e a comunidade assumia a responsabilidade de garantir empregos aos

desempregados, saúde para todos. E isto funcionava muito bem pois o estado do

bem estar não funcionava como uma caridade, mas como um direito de todos.

Isso pode ser verdade quando há emprego a oferecer, necessidades de

recursos à previdência que se apresentavam como temporários. Não há mais

aquele número de empregos. E um crescente número da população nunca mais

reingressará na produção (BAUMAN, 1998, p. 51).

Assim, a comparação que João Ricardo Dornelles (DORNELLES, 2003,

p. 19) fez entre as sociedades baseadas no Welfare State (Estado Providência) e a

sociedade neoliberal está em que se para aquelas o paradigma era o da segurança

social, para esta o novo paradigma é o da insegurança.

É aí que se pode retornar à noção de comunidade, ela nos alude a uma

coisa boa. Um lugar confortável e aconchegante. Local seguro. Mas, qualquer que

seja a escolha, alguma coisa se perde, neste caso, a liberdade. A segurança e a

liberdade são valores que devem ser equilibrados sempre. Uma alta limitação da

liberdade soa sempre como insegurança causada por quem deveria guardá-la.

Uma alta limitação da segurança em prol da liberdade, vai sempre resultar em

limitação da liberdade (BAUMAN, 2003, p. 10).

Originariamente, a comunidade é fruto do entendimento, que não é nem

procurado, nem construído. Precede a todos acordos e contratos, uma vez que se

baseia no sentimento daqueles que se unem e que a faz permanente. Se o ponto de

partida é o conflito, o objetivo poderia ser o afastamento do conflito. E

permaneceríamos em luta constante para manter este conflito fora. A partir do

momento em que o ponto de partida é o sentimento recíproco de manter-se unido,

não há contra o que lutar para afastar. A permanência se impõe (BAUMAN, 2003,

pp. 7-39).

O homem é o único ser que tem consciência da sua mortalidade. O homem

é o único que vive à sombra da morte. Então, este é um conflito pungente, que

precisa de alguma solução, mas que em si pode se apresentar como o inexorável.

Então ele foi capaz de pensar em algo que torna a sua existência permanente. Tal

permanência encontrou uma resposta. A comunidade, traduzida para Bauman em

nação. A mortalidade individual é substituída pela imortalidade da nação. E isto

se faz por uma condição indispensável, a adesão a padrões e observância de

limites (BAUMAN, 2000, pp. 40-43).

Alguns requisitos lhe são indispensáveis, tais como as lealdades humanas,

a distinção (entre os de dentro e os de fora), a pequenez (densidade de

comunicação interna) e a auto-suficiência (indispensável para que os choques com

os de fora não venha a se tornar efetiva).

É preciso então preservar a imortalidade da comunidade, ou da nação.

Muros são construídos para proteger a comunidade, e como não estamos

falando de algo que se coloca num plano estritamente material, muros são

colocados dentro e fora da comunidade, de forma a protegê-la inclusive daqueles

que em um dado momento possam ainda estar dentro dela.

Como veremos ao analisar a globalização, todos esses muros são

insustentáveis face à informática. A circulação imediata e em grandes distâncias

derruba essas barreiras. Com a diferença escancarada, o entendimento não mais

ocorre e a unidade precisa ser construída. Ela não é mais ponto de partida.

E algo que se pode nos apontar como sinal deste falecimento da

comunidade é o crescimento ou a expansão do que é nação. A nação hoje não

pode, por questões espaciais restritas, ser restringida. É o que veremos quando

analisarmos a globalização como instrumento de exclusão.

Se por um lado a imortalidade da comunidade se coloca como remédio à

mortalidade individual, no momento em que a comunidade não funciona mais

como ponto de partida, é o individualismo que servirá como base desta mesma

comunidade.

Pode soar um tanto estranho, mas é isso mesmo. O individualismo serve

como base para a manutenção de comunidades. E isto porque a individualização

operou a troca. A troca da liberdade pela segurança, em vistas dos conflitos

ameaçadores. Mas não a liberdade de todos. Há a chance de desfrutar da liberdade

sem pagar o preço da insegurança. O arranjo capitalista foi capaz de criar uma

dualidade: emancipação de uns e coerção para outros. Se não é possível

compatibilizar amplamente liberdade e segurança a todos, concede-se liberdade e

segurança a uns, e restrições sob ameaça a outros, o que substitui a compreensão

natural.

É certo que todo preço é pago por alguém. Que na sociedade é muito raro

todos se sacrificarem em prol de todos. Isto não seria compatível com o

individualismo. E isto porque, atrelado ao individualismo existe o poder. O

exercício do poder, por si só, não gera a sua autolimitação, mas ao contrário,

obriga uns a se submeterem a vontade de poucos, e para o benefício (muitas

vezes) desses poucos.

Para que alguém suporte o peso, algumas limitações ao exercício do poder

são abandonadas. Para Dornelles (DORNELLES, 2003, p. 19), a legalidade

formal, como referência para as ações do poder público é uma delas. Não

podemos nos afirmar dentro de um Estado de Direito. E aqui seguimos o

entendimento trazido por Geraldo Prado, ao referenciar Paulo Bonavides, no

sentido de que “o direito ou liberta ou não é direito” (PRADO, Geraldo O

processo penal das formações sociais do capitalismo pós-industrial e globalizado

e o retorno à prevalência da confissão – subsistência da tortura aos novos meios

invasivos de busca de prova e à pena negociada. in KARAM, 2005, p. 157).

Bauman afirma que a democracia pode, na visão da comunidade, ser

conceituada como a prática de quebrar os limites à liberdade e também a arte da

autolimitação. Seria uma reação dialética da política entre a liberdade e a

autolimitação. A aversão a este autolimite exige um preço, o sofrimento. Mas este

sofrimento, curiosamente, não tende a provocar uma ação em contrário, mas o

medo e a insegurança que inibem a assunção de ações coletivas, em comunidade,

ou efetivamente em sua busca (BAUMAN, 2000, pp. 12-13).

Ocorre que uma nova tendência surge, para criar um novo sentimento de

comunidade, já que o sentimento natural já não era possível. Acreditava-se em

criar comunidade ao redor do ambiente de trabalho, através do investimento em

padrões morais e religiosos e na confiança no patrão. A comunidade é

indispensável para o sentimento de segurança, para a estabilidade. Se ela não é

possível concretamente, constrói-se um cenário, um ambiente, em que pelo menos

a sensação é de comunidade, como mais uma forma de controle, ao lado da

coerção. É a construção crença de que a liberdade é acessível a todos.

Tal problema se firma também pelo sentimento, não mais de comunidade,

mas por um sentimento de que não há nada de lucrativo para viver-se em

comunidade. Aqueles que já possuem a liberdade, sem necessitar da comunidade,

desprezam-na, por sua total dispensabilidade, uma vez que conquistaram o que

precisam sem pensar nos recursos que perdem ou ganham caso submetam á

comunidade. Nunca, entretanto, esta fuga é individual. Os isolados tendem a

juntar-se em grupos, dentro dos quais se erigem regras e padrões de

comportamento estritos. A diferença que se coloca é a esfera de territorialidade

desses grupos, que não mais excluem fisicamente, mas culturalmente (BAUMAN,

2003, pp. 40-55).

A solidão e o medo fora de uma comunidade induzem a sua procura,

enquanto no espaço à sua promessa. A única comunidade que hoje podemos

pensar é uma comunidade com medo, suspeita e ódio. Se é que a isso se pode

chamar de comunidade. A amizade, a solidariedade e a cumplicidade foram

abandonados por um individualismo, onde só o medo é possível (BAUMAN,

2000, p. 22). E o medo é o fator que integra.

4.2 A sociedade ex(in)cludente

A afirmação de que o direito penal possui uma função de proteção do

cidadãos de forma a minimizar a violência (FERRAJOLI, 2002, pp. 372-373),

falece no momento em que se verifica quão poderoso instrumento de controle de

massas excluídas é a prisão. Ou de que podem ser configuradas as penas como

instrumento de minimização da violência e de tutela dos mais fracos contra

ataques arbitrários dos mais fortes, desaparece quando o mais forte é quem decide

o que deve ser criminalizado e como deve ser encaminhado o processo de

criminalização.

Num Estado de Direito, impõem-se limites ao Estado em sua face penal.

Limites que numa situação de emergência ou exceção são desprezadas sem muita

insurgência. Como afirma Ferrajoli, na emergência sobrepõem-se razões de estado

a razão jurídica como critério informador do direito e do processo penal. A

salvaguarda do Estado é o bem maior no direito de emergência. O Direito penal

de exceção designa uma legislação de exceção em relação à Constituição (a

lembrarmos documento político justificante do Estado, e que, portanto, apresenta

seus limites e instrumentos de poder) e também uma jurisdição degradada em

relação a essa mesma legislação (FERRAJOLI, 2002, p. 650).

Depois da revolução cultural veio a crise econômica. A esquerda ressalta

esta e a direita aquela. Outros, como Eric Hobsbawn – como cita Jock Young –

consignam ambos os processos sem ligá-los intelectualmente. São duas partes de

um processo. Num primeiro momento cresce o individualismo e num segundo,

dá-se o processo de exclusão social, decorrente das tentativas de controlar a

criminalidade resultante das circunstâncias transformadas e da natureza

excludente do próprio comportamento anti-social.

A sociedade excludente da modernidade recente cultua a diferença através

de ideais de diversidade de estilos de vida, mas não consegue enfrentar as

diferenças de interesses materiais existentes entre cidadãos, e por isso os exclui.

Foi o germe do individualismo que fez crescer a demanda pela cidadania

mais plena, notada pela disparidade entre os mercados de trabalho primário e

secundário. Resumido pelo autor como um movimento ao mesmo tempo de

aspiração ascendente e expectativa descendente.

É certo que não podemos olvidar das lições de que na automação do

trabalho, na criação de programas de computador extremamente capazes, toda

uma camada de administradores foi eliminada, engendrando uma insegurança

com a qual não estava a sociedade preparada para lidar.

Vivemos numa meritocracia composta por um mosaico no qual se

apresentam duas pistas de corrida. No mercado de trabalho primário as

recompensas são distribuídas segundo um plano, havendo sempre a possibilidade

de rebaixamento para a segunda pista, na qual as recompensas são

substancialmente inferiores. Nesta segunda pista também existe a possibilidade de

um rebaixamento, para uma área de exclusão, como mero espectador, com a

existência de barreiras e policiamento pesado, vedando o acesso à corrida.

Esta cultura meritocrática tem o efeito de gerar uma cultura de intolerância

e imputabilidade aos transgressores. Assim, tanto a violência criminosa como sua

resposta punitiva, sugere o autor, procedem da mesma fonte, o deslocamento no

mercado de trabalho.

É um maneira de manutenção de uma determinada ordem social. Ordem

social que precisa ser defendida relacionada com a idéia de crime como “patologia

social”, que precisa, de certa forma, ser “curada” (DORNELLES, 2003, pp. 20-21).

Entretanto, esta meritocracia não possui regras retas. Alguns são

extremamente mais premiados do que outros. Não há uma padronização. O

resultado é um sentimento de injustiça e arbitrariedade (YOUNG, 2002, pp. 22-27).

Percebendo a irrelevância de sua escolaridade, os jovens rapazes excluídos

da corrida mobilizam seus únicos recursos, a força física, para a formação de

gangues e criam uma subcultura de resistência contra a escola e o mundo mais

amplo das classe média. os excluídos criam também divisões ente eles mesmos,

com freqüência de bases étnicas, muitas vezes quanto à parte da cidade em que

moram, ou equipe de futebol a que se torce. Isso cria problemas de insegurança e

intranqüilidade a outros membros da comunidade. Esta é a dialética da exclusão

em curso.

É a contraposição que está presente em discursos como o das “janelas

quebradas”, em que se faz a distinção entre as “pessoas respeitáveis” e as

“pessoas da rua”. Como faz referência George L. Kelling e Catherine M. Coles,

defendendo a teoria das “janelas quebradas” (KELLING et alii, 1997, p. 17).

Processo de inclusão também são respondidos nesta sociedade com

violência. Jock Young se refere à inclusão da mulher no mercado e a repercussão

que esta inclusão da mulher no mercado e a repercussão que esta inclusão gera até

no seio familiar. É ocaso da ameaça do status de ditador incontestado homem que

se vê questionado pela nova posição da mulher. A violência está aumentada no

mesmo momento em que a mulher está menos tendente a tolerá-la. parte da

violência, como se evidencia, decorre também da inclusão (YOUNG, 2002, p. 31).

Como visto, na modernidade recente o outro desviante está em toda parte.

As culturas são plurais e se sobrecruzam e entrecruzam. Devido à insegurança

ontológica, uma base segura procura ser criada, é necessário estabelecer os limites

da virtude e do vício. A exclusão social produz crise de identidade, e uma das

reações é o compromisso com o passado. Agora o molde não é a tolerância, é a

restrição.

O aumento rápido destas taxas de criminalidade alimenta o medo público

do crime e gera padrões de comportamento de evitação. Resulta também num

aumento da população encarcerada, numa resposta, talvez equivocada, de

controlar a criminalidade. Barreiras outras que não as dos presídios são erguidas,

como a construção de shopping centers, parques privados, de forma a prevenir ou

administrar o crime. A indústria da segurança, cuja tarefa é a de exclusão, se torna

uma das mais importantes áreas de crescimento( YOUNG, 2002, pp. 33-40).

Como afirma Bauman, estudando a fragilidade dos laços humanos, as

pessoas estão cansadas e fatigadas de suas condições de vida. E assustadas pela

precariedade de seus destinos tendem a procurar pela justificativa mais fácil e

rápida de suas agruras. A preocupação não é pela mais eficiente. Parecem estar

cegas, acolhendo-se do “poste de luz mais próximo” (BAUMAN, 2004, pp. 143).

Este poste, hoje, é o poste da lei e da ordem, que faz uma contraposição ao que

afirma ser a ameaça da escuridão, qual seja, o forasteiro que traz o crime, o

criminoso. E assim, sua luz seria capaz de manter-nos todos a salvo, uma vez que

ela encarcera este criminoso ou deporta o forasteiro5.

5 Talvez não estejamos acostumados com a idéia da deportação, nem com a idéia do forasteiro. Entretanto, apesar de tratarmos especificamente da conjuntura brasileira, como tema central de nosso estudo, não podemos deixar de fazer uma breve alusão a esta situação, que aqui não é comum, mas por todos ouvida em jornais e outros meios.

Necessário se faz manter aquela ordem6, hoje projetada, artificial. A tarefa

está em separar os de dentro e os de fora. É o que Bauman chama de expurgar a

ambivalência. A ordem somente será mantida quando for possível distinguir

perfeitamente entre as duas pontas, excluindo por completo qualquer

ambivalência. E aí se incluem todos os consumidores e excluem-se os

consumidores falhos, qualquer que seja o grau de sua falha no consumo. Não há

meio termo. A ordem é mantida a este custo. E maior é o número dos que estão

fora do que os que estão dentro(BAUMAN, 1999 (b), p. 33).

A ambivalência tratada por Bauman é aquela zona limítrofe entre o

consumidor pleno e o consumidor falho. Este consumidor que se situa no limite

também é considerado inimigo. Todo aquele que puder ser fonte geradora de

desequilíbrio será considerado um inimigo à ordem.

Todo processo de ordem é seletivo. Opera como uma dona de casa que

tentando manter sua casa limpa, segrega, separa, exclui, extirpa, e “amarra dentro

do saco” o lixo. A sociedade segrega, separa, exclui e extirpa todo aquele que

igualmente ao lixo da dona de casa não lhe é mais útil (ou mesmo nunca o foi)

(BAUMAN, 2004, pp. 148-149). De um lado coloca para fora todos aqueles que a

seu ver são considerados lixo humano. De outro mantém aqueles que, segundo

seus critérios, são aproveitáveis. E definir quem está dentro e quem está fora é um

6 Interessante notar o título do livro e de seus capítulos de George Kelling e Catherine Coles, definindo a teoria das janelas quebradas. Fixing Broken Windows: restoring order and reducing crime in our communities – título cuja tradução livre pode ser “consertando janelas quebradas: restaurando a ordem e reduzindo a criminalidade em nossas comunidades”. Disorder, “Broken Windows”, and Serious Crime – primeiro capítulo cuja tradução livre pode ser “Desordem, ‘Janelas Quebradas’, e Crime Sério. The Growth of Disorder – segundo capítulo, cuja tradução livre pode ser “O crescimento da desordem”. E Taking Back the Streets: Restoring Order in Baltimore, San Francisco, and Seattle – cuja tradução livre pode ser Tomando de volta as ruas: Restaurando a ordem em Baltimore, São Francisco e Seattle.

processo de segurança. Se a sociedade não precisa de todos para se manter

economicamente, estas “sobras” humanas não podem ter outro destino que não

serem lançadas fora.

Jock Young prevê um futuro terrível: a uma porque a demanda de mão-de-

obra desqualificada ou semiqualificada diminui em todos os países do primeiro

mundo, a duas porque a tecnologia se coloca como instrumento de eliminação de

muitos empregos de baixa qualificação. os distúrbios esporádicos no primeiro

mundo são muito significativos. Isto diminui o número daqueles consumidores

plenos(YOUNG, 2002, p. 40).

A necessidade de transmitir a dispersão humana por razões de trabalho e

lazer, torna muito difícil isolar populações diferentes, fazendo o cordão sanitário

de controle incapaz de proteger o “homem honesto” contra o crime e a desordem.

Por isso, criminaliza-se tudo. Toda pequena “janelinha”, ligeiramente danificada,

merece, por estes padrões um reparo enérgico. Quiçá ser fechada com cimento,

tapada definitivamente. Excluída. Ela é a pequena janela, que, se nos mantivermos

inertes em relação a ela, amanhã uma porta poderá ser quebrada, uma parede e

depois todo o prédio demolido. Tudo que foge ao padrão é uma ameaça.

Ao lado desta dispersão encontramos outro fator, qual seja a disseminação

de crimes cometidos não pelo “outro”, e sim por membros “respeitáveis” da classe

trabalhadora. É difícil criar a idéia de um “outro” desviante. Este é um problema

que apenas fazemos alusão, mas que leva a alguma reflexão breve. Não se levanta

muito a discussão introspectiva, no sentido de analisar em algum momento se não

seria o Estado que estaria criminalizando condutas antes suportadas. Ou se essa

sua criminalização não seria o meio adequado de prover a ordem pretendida.

O autor clama por políticas que “partam da margem e vão tão longe

quanto aceitável” e não políticas que “partam do centro e vão tão longe quanto

caridoso”. A nostalgia é um sonho impossível.

Se os estranhos são as pessoas que não se encaixam no mapa

cognitivo, moral ou estético do mundo – num desses mapas, em dois

ou em três; se eles, portanto, por sua simples presença, deixam turvo

o que deve ser transparente, confuso o que deve ser uma coerente

receita para a ação, e impendem a satisfação de ser totalmente

satisfatória; se eles poluem a alegria com a angústia, ao mesmo

tempo em que fazem atraente o futuro proibido; se, em outras

palavras, eles obscurecem e tornam tênues as linhas de fronteira que

devem ser claramente vistas; se, tendo feito tudo isso, geram a

incerteza, que por sua vez dá origem ao mal-estar de se sentir perdido

– então cada sociedade produz esses estranhos. Ao mesmo tempo em

que traça suas fronteiras e desenha seus mapas cognitivos, estéticos e

morais, ela não pode senão gerar pessoas que encobrem limites

julgados fundamentais para a sua vida ordeira e significativa, sendo

assim acusadas de causar a experiência do mal-estar como a mais

dolorosa e menos tolerável (BAUMAN, 1998, p. 27).

A hipótese de que o progresso seria acompanhado pelo declínio da

criminalidade e da incivilidade foi frustrada por duas crises: o fracasso do

programa “Grande Sociedade” da administração Lyndon B. Johnson de

construção do fim da pobreza, da discriminação e da criminalidade e a crise das

penalidades, que se estendeu por rebeliões nos presídios (sempre).

O debate sobre a criminalidade se difunde, assim como os contornos

destas se confundem. A criminologia acadêmica foi afetada pela problemática

empírica do crime e pelo grande debate no mundo.

Jock Young afirma que para entender o desenvolvimento da criminologia

é preciso situá-la no contexto dos problemas exteriores da criminalidade e das

correntes políticas e sociais da época. Tendo por certo que muitas vezes os

intelectuais trabalham para justificar as atitudes tomadas por aqueles que os

empregam e que estão no poder7. Apesar disso é possível encontrar uma

criminologia acadêmica que se ponha a parte disto tudo.

Importante se faz, para analisar a situação de exclusão tratada pelo autor

inglês, a um momento anterior a afirmação da criminologia. Essa análise da

criminologia pode ser vislumbrada como faz Pedro Tórtima, trabalhando a

questão da criminologia como aporte ideológico justificador da hegemonia de

importantes extratos sociais detentores do poder, voltando um pouco no tempo,

especificamente dentre da Escola Positiva, que se apresentava moderna e ao

mesmo tempo conservadora. Moderna por expurgar mecanismos ultrapassados,

mas conservadora posto que um projeto atrelado a interesses de classes e com

valores que rodeavam o estado social. Trabalhavam com uma mensagem

científica, que tornava difícil, não discutir as leis, mas discutir a exatidão da

ciência, que deveria se colocar a favor de uma classe(TÓRTIMA, 2002, pp. 1-5).

A proposta era atar a ciência ao direito, de forma a conceder a esta

elementos. Pretendiam descobrir na figura do criminoso causas relacionadas com

aspectos físicos, influência dos meios biológicos, genéticos e geográfico, que

levavam em consideração até o tipo de alimentação e a temperatura. Aqueles

revolucionários possuíam características degenerativas muito próximas dos

criminosos, e, portanto, seu atuar não era fundamento em uma consciência

política, mas por esta anormalidade. O discurso penalista nas classes excluídos os

7 Sobre o tema, trataremos, ainda que brevemente, em nossa conclusão, inspirados por Joel Rufino dos Santos em seu Épuras do Social: como podem os intelectuais trabalhar para os pobres.

fatores de determinação que levavam o indivíduo a enveredar-se pela prática de

crimes.

A criminologia era acionada contra a sociedade, de forma geral, e contra

os trabalhadores, em particular, através de fórmulas e cálculos científicos,

estudando crimes e os criminosos, e implicitamente classificar os criminosos em

potencial dentre estes. Grande facilidade surge em classificar prostitutas e

epiléticos em categorias à parte que ameaçavam a ordem, a paz e o bem público.

Os ideólogos do final do século XIX e das primeiras décadas do século

XX, envoltos num clima de guerra de classes, direcionaram suas armas a um

rígido enquadramento penal da militância revolucionária. E com isso, as teorias

raciais vão ganhando mais força através de um discurso técnico científico num

mundo permeado por práticas autoritárias.

Tratando da distinção entre as Escolas Clássicas e Positiva, na

criminologia, estabelece a distinção entre o livre arbítrio – presente na primeira e

ausente na segunda. E para a Escola positiva tal argumentação interessa pois

reconhece que são fatores físicos, biológicos e atávicos que atuam de forma a

gerar o comportamento do homem criminoso. A criminologia representa,

portanto, esta forma de legitimar o Estado através de canais ideológicos próprios.

Assim, o crime passa a ser uma manifestação violenta e anti-social,

sintoma de um ser doente, que necessita de tratamento. Trabalha-se, assim, com

um problema de defesa social, contra criminosos temíveis que deveriam ser

segregados à prisão para tranqüilidade pública. Toda essa temática de defesa

social ganha força na Europa, e a Escola Positiva limita qualquer espectro de

argumentação ao determinismo, que não admite defesa daqueles que eram alvo

dos poderes constituídos (TÓRTIMA, 2002, pp. 40-57).

Além dos aspectos biológicos, causas sociais passam a ter importância

como fatores desencadeadores dos delitos humanos e criminais. Reconhecem-se

os fatores geográfico, topográfico, geológico e sazonal, freqüentemente com

determinantes.

A questão da pena se apresenta como um dos temas contraditórios da

criminologia lombrosiana, que ainda está no imaginário atual. A pena não deve

ser adaptada ao crime mas o criminoso. Isto faria sentido se só os “doentes”

cometessem crimes, e como é cediço, um homem considerado normal poderia ser

levado à prática delituosa. O ponto mais alto da criminologia era colocar a

personalidade do delinqüente como questão central, descartando a gravidade do

delito (TÓRTIMA, pp. 71-77).

Analisando uma situação específica, Vera Malaguti Batista aponta a

criminalização do adolescente pobre e a investigação do meio em que se criou o

jovem, tudo para dar conta de uma arquitetura legal e física do sistema penal no

Brasil, sob orientação lombrosiana e positivista (BATISTA, V.M., 1998, pp. 121-

123).

A Escola Positiva se serviu, e muito, do darwinismo social, que apesar de

pregar uma evolução das espécies, serviu de instrumento ao conservadorismo. Isto

gerou enormes dúvidas nos pensadores e estudiosos, em face de sua utilização

como elemento justificador de idéias conservadoras (TÓRTIMA, 2002, pp. 104-

107).

Mas voltando à análise da criminologia mais atual a taxa de crimes

registrados tem assistido a um aumento considerável, o que produziu um impacto

sobre as teorias de causalidade, abriu uma crise no sistema de justiça criminal

devido ao aumento da demanda experimental sofrida por ele e promoveu

qualitativamente a criminalidade como problema na escala de prioridades do

público. Podemos verificar que os aumentos da criminalidade e deram, não tanto

por um aumento real, mas por um aumento das respostas governamentais e do

público à criminalidade. por vezes interesses do sistema da justiça criminal, e

outras como metáfora de ansiedades sociais mais amplas, sem relação com a

criminalidade.

Outra causa do aumento das taxas oficiais de criminalidade dá-se também

pela revelação de cifras que, até então, eram ocultas. A criminalidade é

extremamente mais disseminada do que as estatísticas oficiais, quanto mais de

acordo com o tipo de crime cometido. Ademais a disseminação de cifras ocultas

pode revelar que a criminalidade não está afeta às classes. Não se exclui a análise

de classe. Ocorre que certos tipos de crimes invisíveis, especialmente s violentos,

são muito menos ligados a estrutura de classes do que tradicionalmente se supõe.

A problematização do crime tem sido outro fator de estudo da

criminologia. Se antes o positivismo acreditava que desvio leva a controle social,

passou-se a acreditar no inverso. O crime não é mais uma coisa objetiva que lá

está, o desvio não é inerente num item de comportamento, mas é aplicado a ele

pela avaliação humana. Isto muda com o tempo em razão da sensibilidade do

público à violência. A criminalidade está problematizada e a distinção que se

coloca não é mais entre crime/não crime, é sim ente conduta tolerada e conduta

criminalizada.

Outro fator a ser analisado pela criminologia é a universalidade do crime e

a seletividade da justiça. Tradicionalmente vê-se a criminalidade como se

estivesse concentrada na parte mais baixa da estrutura de classes. “O crime é

muito mais disseminado do que sugere o estereótipo do criminoso, e o sistema de

justiça criminal seleciona “amostragens” particulares cuja base não é aleatória,

mas o próprio estereótipo” (YOUNG, 2002, p. 71). Assim, uma primeira onda do

revisionismo apontou para a natureza endêmica da criminalidade. A segunda

onda, de orientação feminista, põe a baixo qualquer teoria quando e fala em taxa

de infratoras mulheres (YOUNG, 2002, pp. 61-71).

Quanto à problematização da punição e da culpabilidade, pode se afirmar

que à medida que aumenta o montante de crimes, surgem problemas imediatos

acerca de como lidar com isto burocraticamente. O aumento do número de crimes

gera um aumento do número de detenções, representando um aumento do

ingresso potencial no sistema de justiça criminal. Como reação a este aumento de

despesas, busca-se uma fração mais “eficiente”, lançando-se a rede onde é mais

propício encontrar o peixe. Categorias são adjetivadas de suspeitas. Cria-se uma

seletividade da culpa, baseada em gerência de riscos. assim, a justiça que ele

recebe não é mais resultado de uma culpa individual e punição proporcional, mas

de um processo negociado, resultante de pressões políticas ou burocráticas.

Interessante é a dupla justificativa da existência do direito penal – e do

sistema penal como um todo – presente em dupla proteção, a uma proteção da

vítima contra um eventual ofensor mais forte – que, segundo essa afirmativa

estaria inibido de agir, e a duas proteção do ofensor contra a vingança da vítima

que deixaria nas mãos do ofensor (FERRAJOLI, 2002, pp. 270-271).

Isto funciona muito bem no plano da teoria até o momento em que não são

criminalizados direitos fundamentais. Enquanto se discursa o direito penal

enquanto simples proteção a direitos fundamentais, dificilmente se logra

convencer qualquer um do contrário. Ocorre que a pretexto de proteger uns

direitos fundamentais outros são criminalizados.

E mais, a pretexto de proclamar a busca pela ordem (pela convivência

pacífica e harmônica), o direito penal se coloca como instrumento de restauração

desta ordem. Hoje, parece haver um consenso de que a vida em comunidade,

dotada de ordem e convivência segura é concebida como o direito fundamental.

Como já vimos, o conceito de direito fundamental, ou de direitos humanos, é

extremamente volátil, admitindo-se, para muitos, uma impossibilidade de

tipificação.

Cada vez mais, o simples fato de ser pobre é encarado como crime, e

empobrecer é a predisposição ao crime.

Como há disseminação da criminalidade, a busca das causas é menos

atraente e a criminologia administrativa explica a criminalidade como o resultado

inevitável de uma situação em que o estado universal da imperfeição humana é

apresentado como oportunidade para condutas erradas. Trata-se de um discurso

excludente que busca prever o problema e excluir ou isolar o desviante.

Na esteira do que já foi dito, a privação relativa que gera o mal-estar pode

se manifestar de muitas maneiras, o crime é uma delas. A combinação letal é a

privação relativa e individualismo, que leva os descontentes a gerarem as “selvas

hobbesianas” do pobres urbanos, “um universo em que seres humanos vivem lado

a lado mas não como seres sociais”.

Tratando do declínio do último terço do século XX, Jock Young traz as

idéias congruentes da direita e da esquerda. Foi possível ao capitalismo sustentar-

se inicialmente pois vinha ele impregnado de uma atmosfera herdada do passado.

Quando esta atmosfera começou a erodir, com ela também começou a erodir o

capitalismo. Uma sociedade de mercado não pode existir sem os valores e

relacionamentos “não mercado”.

Ocorre que valores como a ordem e a disciplina são hoje desnecessários na

medida em que o trabalho também é desnecessário. O problema é que o impacto

da desordem é negligenciável. O desempenho econômico permanece inalterável,

apesar da criminalidade. Então temos aqui um paradoxo, uma demanda popular

crescente de lei e ordem num tempo em que é declinante a necessidade de lei e

ordem no sistema.

Qual é a relação entre criminalidade e déficit? Quanto aos bens materiais,

não é a sua falta total que conduz à criminalidade, a privação relativa sim é causa.

O segundo déficit é o declínio da força da família e da comunidade, que se

encontra em todas as classes sociais, sendo portanto possível de adequação com as

novas taxas de criminalidade. O problema é que se retira a motivação da equação.

A terceira suposta área de déficit é o declínio dos valores que já vimos.

Não há nenhuma correlação direta entre níveis de criminalidade e de

encarceramento. E isto se vê na criminologia quando vemos autores – como faz

referência Jock Young a Cavadino e Digman na Inglaterra – que trabalham a crise

das prisões sem tocar na crise da criminalidade (YOUNG, 2002, p. 80).

A exclusão não se baseia num simples aumento da intolerância. As

cidades estão muito abertas à diversidade e diferença, base do estilo de vida. As

sociedades modernas consomem diversidade. O que estão menos inclinadas a

suportar é a dificuldade, são pessoas difíceis e classes perigosas, contra as quais se

constroem muros de defesa.

A atualidade é o risco, não mais a diferença. Não há preocupação com a

criminalidade, mas em minimizar os danos. Isto reflete o fato de os riscos terem

aumentado tanto para os indivíduos como para as coletividades. O “outro” está em

toda parte.

A demanda cada vez maior por lei e ordem pode ser vista com

tranqüilidade e segurança. A insegurança é causada também por um novo estilo de

vida em que não se investe em comunidades, em informação dos vizinhos. Há

uma reserva. Ademais os meios de comunicação exibem imagens da

criminalidade, o que se apresenta como um dos fatores na avaliação do risco

público (YOUNG, 2002, pp. 80-104).

O sujeito vive consternado pelo risco. A situação de normalidade é a

atenção. Não há uma tranqüilidade autêntica que lhe permita relaxar quanto à

situação de risco. Com efeito, o medo do crime é encarado de forma autônoma em

relação à criminalidade. Mas não há uma relação unívoca entre risco e medo.

A maior consciência do risco pelo público integra processos

essencialmente progressivos e democráticos, tais como o ambientalismo, um

maior repúdio da violência, como pelo feminismo e militância dos direitos civis.

É interessante salientar que quando se fala que a sociedade exclui e expele

seus membros é ela e não o Estado. O poder atravessa toda sociedade. Desta

forma é que se busca compreender o fenômeno.

Devemos, então, analisar as duas justificativas à prática do crime. A

exclusão cultural e a exclusão econômica. Já vimos que estas visões ignoram a

subjetividade do cidadão e não dão conta de estatísticas tais como a baixa taxa de

criminalidade entre mulheres e os crimes do colarinho branco. A pobreza não é

uma variável isolada, encontra-se num complexo de variáveis sociais e culturais

interdependentes. Por exemplo, devemos falar que numa sociedade que pressiona

pelo sucesso, há a tendência de se eliminar a coerção social efetiva sobre os meios

para atingir tal fim. Assim o autor adere ao pensamento de Merton de que o crime

é resultado da adesão a uma cultura de sucesso e individualismo (YOUNG, 2002,

pp. 111-125).

Esta é uma sociedade que ele se propõe chamar de bulímica, posto que

inclui uma massa de pessoas através da educação, mídia e participação no

mercado, e as exclui quando não dá conta de todos e tem de deixar alguns para

trás. E para compensar esta discrepância, dá-se uma ênfase ainda maior à

identificação cultural. Segue-se a este rito uma exclusão mais draconiana, o

sistema de justiça criminal, focado nos guetos e que por fim repele.

Prefaciando o livro de Loïc Wacquant, Vera Malaguti Batista já nos inicia

no objetivo da obra que é demonstrar a transformação pela qual passou o Estado

americano, partindo de um Estado criativo a um Estado disciplinar, que

criminaliza as misérias, para isso mudando o enfoque dos serviços sociais a

instrumentos de vigilância e controle das novas classes perigosas. Foi a

substituição de um estado-providência para um Estado-penal que visa conter de

forma punitiva categorias deserdadas, agora, de vez, abandonadas pelas políticas

sociais (WACQUANT, 2003, pp. 10-20).

É necessário afirmar-se que este estado social só outorgou seu apoio em

face da carência residual do mercado de trabalho e da família, possuindo uma

clientela oficial de dependentes de origem popular, operários, desempregados,

assalariados precários e famílias de cor. Entretanto, o Estado providência tinha

como objetivo uma guerra contra pobreza, que foi substituída por uma guerra

contra os pobres, acusados dos maiores males do país, até porque era necessário

conter o fluxo crescente das famílias deserdadas, dos marginais das ruas, dos

jovens desocupados e alienados e a desesperança e a violência8.

Este estado caritativo se substitui pelo Estado Penal e policial,

inicialmente, através de duas medidas. Uma primeira impõe instrumentos de

vigilância e controle destas classes perigosas, através de normas de conduta que

devem ser seguidas por aqueles que buscam o auxílio do Estado. A segunda

medida é o encarceramento que vem se colocando como instrumento de

neutralização das ditas classes perigosas.

Financeiramente, Wacquant demonstra, ocorre uma diminuição do

orçamento destinado à assistência social e uma multiplicação do destinado à

justiça criminal. O encarceramento se torna uma verdadeira indústria, que

8 Interessante o indício que podemos tirar desse discursos na declaração do Presidente da CNBB, em outubro de 2004, sobre o aborto do anencéfalo e a infeliz comparação por ele proposta: “Somos a favor da vida. Se formos matar todos os que achamos que não prestam, vamos dar um sumiço nos pobres”, Dom Geraldo Majella in BRUM, Aline e AZEVEDO, Solange. Sociedade x Supremo: pressionados pela Igreja Católica, ministros contrariam a população e derrubam a liminar que permitia a interrupção da gestação de fetos sem cérebro. Época, n.o 336, p. 69, 25 outubro 2004.

incentiva o setor das indústrias privadas, na medida em que se aumenta a clientela

através da política do “tudo penal”.

No momento em que o Estado Social diminui, ou seja, que o Estado deixa

de exercer suas funções de providência, outras medidas precisam ser tomadas no

sentido do controle social, do controle dos grupos ameaçadores. Necessário se

adiantar que tais condutas ameaçadoras não são necessariamente, desde já,

qualificadas como crime. São condutas que virão a ser criminalizadas em função

de uma reação social por parte daqueles que estão dentro contra os que estão fora

(DORNELLES, 2003, pp. 30-31).

E vejam, o objetivo não é integrar. O que integra ou não um indivíduo é a

mercantilização. Assim, o Estado deixa de se preocupar tanto com medidas de

desenvolvimento social para se preocupar com medidas assistencialistas

neutralizadoras, como afirma Dornelles. O discurso pode até ser de combate à

delinqüência, mas o objetivo é a manutenção da ordem (DORNELLES, 2003, pp.

35-36).

A nova penalogia que se coloca não tem como objetivo reabilitar os

criminosos. Através do aumento da população carcerária, da multiplicação de

instrumentos de vigilância e outros novos ajustes como a utilização de formas

maciças de pré e pós-detenção, é possível gerenciar custos e controlar populações

perigosas. Não é uma resposta ao aumento da criminalidade, mas o deslocamento

da política desenvolvida com determinada população da área social para a penal

(WACQUANT, 2003, p. 32).

O perfil da população submetida a este controle carcerário é o mesmo que

necessitava dos auxílios sociais, os deserdados da classe operária, notadamente os

negros, o que demonstra o seu serviço de regulação da miséria e armazenamento

dos refugos do mercado. Ora, se pertencem a esta classe, aqueles que são

submetidos ao sistema carcerário são também reincidentes deste sistema,

decorrência da característica autofágica da instituição.

Políticas penais neoliberais não possuem outro objetivo que não

disciplinar um determinado grupo adjetivado de “perigoso”, fomentadores da

desordem social. O perigo não é, dentro das regras de mercado, o perigo da

ocorrência do crime, mas da violação da ordem (DORNELLES, 2003, pp. 42-43).

A gestão policial da insegurança social tem como efeito do controle dos

mais pobres a dispersão dos olhares sobre a criminalidade organizada, cujos

estragos são bem mais importantes do que os da delinqüência de rua.

Leis são editadas nos Estados Unidos com o fim de reduzir os

consumidores do sistema penal, impondo a recondução aos subempregos ou ao

abandono, com uma consciência de que os instrumentos de auxílio aos menos

favorecidos economicamente só servem para estimular a ociosidade e manter os

vícios dos habitantes dos guetos, inimigos da sociedade americana que vê seus

recursos “desviados”. Isto reduz o nível dos salários dos desqualificados e

contribui para engrossar os batalhões de trabalhadores miseráveis. O número de

pessoas sem teto, o número de indigentes, de doentes que não recebem

tratamento, deve aumentar. Mas tudo isto gera uma economia, que é desviada para

o encarceramento, melhor dizendo, para a “indústria da repressão criminal”

(WACQUANT, 2003, pp. 33-49).

Para minorar a sensação destes problemas, empresas interessadas no

mercado do encarceramento se oferecem para fornecer os sistemas informáticos

que melhor controlarão esta distribuição dos recursos sociais, fazendo às vezes do

Estado caritativo. Estas empresas, que tutelam os pobres e os prisioneiros, são a

mola deste sistema comercial carcerário-assistencial. Fundem-se as funções de

marcação, correção moral e repressão do Estado, de forma econômica,

interpenetrando o público e o privado.

A partir dos anos sessenta, esta política de controle de pobreza se

estabelece com uma prisão que ocupa a posição central. A figura do estado, vista

por Wacquant, é de um centauro, com uma cabeça liberal aplicada ao tratamento

das causas das desigualdades e um corpo autoritário, de caráter paternalista e

punitivo quanto às conseqüências do abandono do Estado Social.

A prisão tem mais como função na prática – a parte dos debates

acadêmicos sobre a reinserção, a educação ou retribuição – circular o fluxo de

condenados e detentos de forma a minimizar os efeitos ligados ao amontoamento

e mistura de populações díspares em seu interior.

Informação que não chega a opinião pública é a relação que Wacquant

mostra entre aumento da criminalidade e o aumento da população encarcerada.

Não se apresente qualquer relação.

O que mudou neste período não foi a criminalidade, mas a atitude dos poderes políticos em relação às classes pobres consideradas como seu principal foco. Classes junto às quais o Estado penal se encarrega de reafirmar os imperativos do emprego e a contratação das políticas sociais as colocam em situação ainda pior (WACQUANT, 2003, p. 65).

Este aumento da população se dá por um alongamento das penas, o que

explica um endurecimento da política judiciária, pela multiplicação das infrações

que agora motivam o encarceramento fechado, instauração de penas

incompreensíveis para certas causas e a perpetuidade automática no terceiro crime

(three strikes you’re out), além da aplicação da legislação penal adulta aos

menores de dezesseis anos.

Esta função da prisão, de conter as desordens sociais é a explicação para o

inchamento da população carcerária, levando maior número de contraventores

para a prisão, como única resposta do Estado Penal a eles. É um encarceramento

que serve para governar os pobres, que incomodam.

Outra política desenvolvida por este Estado penal, que não se preocupa, de

nenhuma forma, com a reinserção é a criação de bancos de dados – alguns com

acesso pelo setor privado, em especial aos empregadores e locadores de imóveis –

sob afirmação de que terceiros têm o direito de saber “com quem estão lidando”no

momento em que contratam um empregado ou alugam seu imóvel.

Tal medida tem o condão de manter excluído aquele que deveria ser

reinserido, mantendo e até majorando o problema da violência e gerando um

maior número de reincidências (WACQUANT, 2003, p. 70).

Analisando o governo carcerário e seus custos, Wacquant aponta um

aumento desmesurado no orçamento penal, por outro lado, interessa aos políticos

em suas estratégias para eleição. Os custos do encarceramento são pouco

conhecidos, ao contrário das despesas com setores de política social. A prisão é

mais visível que seus custos e do que as vantagens de um Estado social. Além

disso, tratar a pobreza através a criminalização é visto de forma moralmente

positiva.

A prisão passa a ter uma finalidade lucrativa, com a participação do setor

privado, que gera um crescimento acelerado. Com início nos estados do sul, face

ao intenso período escravagista, que gerou um política restrita no campo social e

vasta em matéria penal, tende a se nacionalizar.

Além da privatização, para a redução dos custos aplica-se também uma

política de confinamento da miséria que faz com que os detentos ou suas famílias

arquem com uma parte das despesas de seu encarceramento. Passam o fardo da

manutenção do sistema prisional para aqueles que são o seu alvo.

Uma terceira estratégia se coloca, face à crescente desproporção entre os

meios e a massa de detentos que são confiados às administrações das

penitenciárias, abaixar o nível de vida e de serviços no interior das casas de

detenção. E não há dificuldade em se convencer a população desta necessidade,

uma vez que a sua função não é a reinserção ou reabilitação, mas a neutralização

de seus internos e a expiação através do sofrimento.

Faz mais de uma década que a promessa de ser duro com o crime e mandar criminosos para a morte figura no topo das agendas eleitorais, independente da colocação política do candidato. Para os políticos atuais e aspirantes, a extensão da pena de morte é o bilhete premiado na loteria da popularidade. A oposição à pena capital significa, ao contrário, um suicídio político (BAUMAN, 2000, p. 19).

Difícil, aliás, seria justificar o sustento de um preso de graça com uma

situação melhor do que um assalariado menos favorecido. Por isso, o

encarceramento deve voltar a ser o que era antes, e que nunca deveria ter deixado

de ser, sofrimento. Maltratar os prisioneiros não gera nenhum prejuízo eleitoral.

Ao contrário, deve-se fazer com que a população veja que eles estão pagando suas

dívidas com a sociedade. Os presos não tem direito a voto, assim como os outros

sob tutela penal. Retiram-se benefícios de aposentadoria, assistência alimentar,

acesso à moradia, benefício aos deficientes. E não se vê nenhuma crítica a isto.

Até porque eles não são mais membros da comunidade imaginária da América9.

Wacquant vê a prisão como nova instituição peculiar. A primeira é a

escravidão, que desumanizava os africanos e seus descendentes, criando uma

barreira de casta de caráter racial. A segunda é o “sistema Jim Crow”, de

discriminação e de segregação, com áreas reservadas a brancos e outras a negros

em todos os setores da vida pública e privada. A terceira é o gueto, que mantinha

de forma “segura” os negros afastados dos brancos, e permitia o seu recrutamento

como mão-de-obra barata. A quarta, a prisão, composta de vestígios do negro dos

guetos pelo seu aparato, e que serviu para suprir a sua função (WACQUANT,

2003, pp. 107-114).

Tanto o gueto como a prisão tem a função de confinar a população

estigmatizada, neutralizando a ameaça que faz pesar sobre a sociedade. Daí a

similitude entre um e outro.

O gueto é um dispositivo socioespacial que permite a um grupo estatuário dominante em um quadro urbano desterrar e explorar um grupo dominado portador de um capital simbólico negativo, isto é, uma propriedade corporal percebida como fator capaz de tornar qualquer contato com ele degradante, em virtude daquilo que Max Weber chama de ‘estimação social negativa da honra’. O gueto é uma relação etno-racial de controle e de fechamento composta de quatro

9 “Willie Horton provavelmente fez Michael Dukakis perder a presidência dos Estados Unidos. Antes de concorrer à presidência, Dukakis governou o Massachusetts por dez anos. Foi um dos opositores mais veementes da pena de morte. Também achava que as prisões eram, na maioria, instituições educativas e de reabilitação. Queria que o sistema penal devolvesse aos criminosos sua humanidade perdida e confiscada, preparando os condenados para uma “volta à comunidade”: no seu governo os internos das prisões estaduais tinham permissões para visitar suas casas. Willie Horton não voltou após uma dessas saídas. Em vez disso, estuprou uma mulher. É o que pode acontecer com todos nós quando os liberais de coração mole estão no poder, argumentou o adversário de Dukakis, um firme defensor da pena capital chamado George Bush. Os jornalistas pressionaram Dukakis: “Se Kitty, a sua esposa, fosse estuprada, você seria favorável à pena de morte?” Dukakis insistiu que não iria “glorificar a violência”. Dava adeus à presidência.”(BAUMAN, 2000, p. 19).

elementos de estigma, coação, confinamento territorial e segregação institucional.(WACQUANT, 2003, p. 117)

As prisões também são compostas destes quatro elementos e por isso

capaz de buscar similares objetivos. Entretanto, o que difere das outras

instituições é a ausência de função econômica positiva de recrutamento e de

disciplina da mão-de-obra. A prisão serve apenas para armazenar os

desproletarizados da classe operária negra. Mas hoje, vemos um objetivo

econômico de reduzir a conta carcerária, estendendo ao preso pobre o trabalho

forçado hoje imposto aos pobres livres como norma de cidadania. A prisão serve

então para efetuar uma “limpeza de classe” do espaço público, através do

desenvolvimento de políticas tais como a tolerância zero e vidraça quebrada.

Gera-se muita desconfiança e hostilidade entre a polícia e os nova-iorquinos afro-

americanos e latinos.

A prisão, que supostamente deveria respeitar a lei, é de fato a instituição

fora-da-lei. Local onde não são respeitados os mínimos direitos do homem.

Salo de Carvalho afirma que em sede de execução penal, coloca-se

ingenuamente a culpa no Estado-Administração, olvidando-se de que um sistema

jurídico e político não podem opor ou alterar, isoladamente, qualquer coisa.

Necessário se faz o atuar o titular e daquelas forças políticas e sociais de

solidariedade (CARVALHO, 2003, p. xxi).

Interessante que o direito penal, que para uns pode servir de instrumento

de proteção inclusive ao suposto infrator, a fim de proteger-lhe da vingança

privada de quem o seja mais forte, não garante sua liberdade moral e subjetiva da

transgressão, por censuras morais e estigmas.

Wacquant trata especialmente dos delinqüentes sexuais que são alvo

privilegiado do panoptismo penal. São eles alvo de estigmas particulares e mais

intensos, entregando-os o sistema penal à inquisição permanente e à vingança

aberta ao público através de mecanismos como sistemas de cadastros de mais fácil

acesso à população. Em virtude de casos concretos que geraram grande discussão,

desenvolveram-se políticas de exposição eterna de tais clientes do sistema

carcerário. CD-ROMs, sítios na internet, bancas em feiras populares fornecem os

dados cadastrais desses “criminosos odiosos”, a fim de que a população deles se

proteja10. Em decorrência, séries de direitos fundamentais são violados em prol

desta vigilância coletiva, que apenas aumenta os níveis de sensação de

insegurança. É a instauração de uma segunda pena de infâmia, cuja duração pode

ser o resto da vida. Isto aumenta os riscos de que os condenados comentam novos

crimes – pois não lhes resta outro caminho social – e aumenta o risco de suas

vidas (WACQUANT, 2003, pp. 123-144).

O pobre é mais um diferente. Diferente pois não consome, e não pode se

adequar aos padrões de diferença compatíveis e aceitos pela sociedade que exclui.

Ora, há padrões de diferença aceitos pela sociedade, e que fazem parte de um

discursos aparente de prolação da diversidade. Mas como vimos, a diferença é

vista como um mito. Não é indiscutível que a diversidade seja tão propalada. Ela

10 Interessantes são as informações obtidas no sítio eletrônico oficial do Estado da Flórida, nos Estados Unidos, onde é possível encomendar um catálogo com os nomes dos criminosos sexuais, fazer incluir o nome de um criminoso oficial que qualquer um conheça, mas que não apareça na lista, e pelo qual se informa que o nome só é excluído da lista – acessível pela internet – se durante dez anos após o cumprimento de toda e qualquer espécie de pena – confinamento, supervisão ou sanção – não houver sido, de qualquer forma, detido, o criminoso poderá requerer a remoção do seu nome da referida lista, sabendo-se que a corte tem a discricionariedade para deferir o não. Florida Sexual Offenders and Predators. The Florida departmente of law enforcement. Frequently asked questions. Disponível em: http://www3.fdle.state.fl.us/sopu/faq.asp?PsessionID=253683249 &#Q15. Acesso em: 22 mai. 2005.

surge como um programa na mesma hora que falece como realidade, pois o

mercado conecta e reúne os cidadãos.

A cultura pode ser definida como as várias maneiras através das quais as

pessoas desenvolvem o manejo de problemas do dia-a-dia. As subculturas

referem-se a valores estruturais mais amplos da sociedade, a problemas locais e a

situação de grupos particulares. Todos os seres humanos criam suas próprias

formas subculturais, ocorrem em todo tecido social. Estas enfatizam o conflito e o

poder. A subcultura salienta o individualismo e o consumismo. É a assimilação da

cultura que se vai gerar a experiência da privação relativa, que quando maior pode

gerar a criminalidade.

Analisando a diversidade também é um fator de insegurança e é óbvio que

nesta situação novas estratégias defensivas são erguidas. Instrumentais que

permitam a divisão e separação são colocadas e apresentadas como naturais e

qualquer intercâmbio é caracterizado por cautela.

Se por um lado a demanda é por um mundo em que os indivíduos possam

desenvolver sua diversidade, a realização destas gera insegurança. É uma

contradição que vai além, atinge o conforto da estabilidade e a necessidade que as

pessoas desenvolvessem suas diferenças e tolerassem o desvio. O anseio pela

segurança e pela estabilidade se apresentam em contraposição. O que deve ocorrer

é o enfoque não na diferença como risco, mas no risco em si (YOUNG, 2002, pp.

135-149).

Durante a década de 1960 e início da década 1970, a diferença era tratada

como não-diferença, quer dizer, afirmava-se não haver a diferença. atualmente

reconhece-se a diferença para conferir igualdade de tratamento. Além disso,

essencializar o outro como diferente permite uma segurança ontológica, já que a

diferença do outro não poderá ferir a própria identidade. O outro não irá

contaminar eis que a diferença impõe a distância. A diferença legitima o

privilégio a diferença, mormente em um mundo sustentado pelo argumento da

meritocracia. permite também culpar o outro, o essencialismo é o pré-requisito

para a demonização. Ainda nos permite projetar o que consideramos desagradável

e nos ajuda a acalmar os pesadelos e tornar nossas identidades escolhidas mais

coerentes e bem delineadas.

A crítica que o autor coloca ao essencialismo, inicialmente, é que a noção

de cultura não envolve essências atemporais. ao contrário do que alguns esperam,

a relação entre uma geração e outra, não é de transmissão, ao contrário, é de

revisão. Em segundo, as culturas nunca são formas puras. O corriqueiro é a

manifestação híbrida e não separatista.

A importância da demonização é a colocação dos problemas da sociedade

sobre os ombros do “outro”. Isto inverte a realidade causal, afirma-se que todos os

problemas são devidos aos próprios problemas. E o crime é a moeda forte dessa

demonização, a imputação da criminalidade é parte necessária da exclusão. O

outro precisa estar fora. Contudo, os demônios não são apenas os estranhos que

entram no meio, mas também aqueles que se tornaram estrangeiros, posto que a

imigração não traz um contingente necessário a explicar a criminalidade.

Essa demonização tem três elementos. O distanciamento explica o crime

ou desvio de forma a colocá-lo fora da estrutura de valores da sociedade. A

atribuição a um outro essencialista é afirmar que o desvio é produto de uma

essência desviante inerente ao indivíduo ou ao grupo. A reafirmação da

normalidade advém do fato de que toda anormalidade confirma a normalidade

(YOUNG, 2002, p. 169).

Não é só isso. Há um verso da moeda. A exclusão social ameaça o sentido

de identidade de um indivíduo ou grupo, abrindo-o assim à adoção de essências.

Os atores podem adotar essências para completar a identidade. Por bloquear

oportunidades, a exclusão social pode ser realizadora das aspirações do indivíduo

no sentido de um homem acusado de roubar poder vir efetivamente a roubar em

virtude de ser forçado pela situação de haver poucos meios além deste para ganhar

a vida, o que confirma o prognóstico de ladrão (YOUNG, 2002, pp. 150-175).

Grandes aumentos nas taxas de criminalidade geram um clamor, uma

demanda por soluções rápidas. A política de tolerância zero vem neste bojo. Além

dos Estados Unidos, mais precisamente Nova Iorque, berço da política, outros

países começaram a defender a aplicação de tais medidas severas. O mundo

parecia se encantar com a teoria das janelas quebradas. Tratava-se de varrer as

desordens das ruas. Pretendia inverter a tendência a moderar a definição de

desvio. Em penalogia era a “three strikes and you’re out” que aumentou a taxa de

encarceramento estadunidense.

Informa o autor inglês que a política de tolerância zero não foi aplicada em

Nova Iorque, até porque o custo que esta prática geraria seria elevadíssimo. Além

disso, afirma-se que a política de tolerância zero não está relacionada com a

filosofia das janelas quebradas. As janelas quebradas propõe levar o enfoque da

atuação policial também a crimes menores, até porque são estes os maiores

causadores do sentimento de desconforto da população. Não é um programa de

tolerância zero contra todo tipo de crime.

Podemos concordar com Bauman quando aponta que hoje o principal

instrumento para a criação de agendas de opções é a legislação (BAUMAN, 2000,

pp. 79-82). A lei é adjetivada como a solução para todos os males. Ora a lei é

certamente uma forma de poder que seleciona, num primeiro momento,

entregando ao indivíduo, no seu momento posterior de seleção, as suas opções. E

a aceitação deste modelo começa pela educação, como principal instrumento para

criação deste código de escolha. Ela internaliza as normas.

Importante a internalização das normas. A idéia de ordem passa pela busca

de aceitação de que ela é natural ou normal, apesar de não ser mais aquela

desejável comunidade originária. São criadas determinadas rotinas, determinadas

condutas individuais e grupais aceitas como funcionais e que legitimam a ordem

institucional (DORNELLES, 2003, p. 22).

Bauman afirma que vem crescendo um certo “controle direto” de certas

categorias sociais, que incluem os pobres, ou consumidores frustrados, e de

maneira geral todas as classes potencialmente perigosas. Aos demais, um leque

maior de oportunidades é aberto, com menor interesse das autoridades públicas.

E quanto aos meios de comunicação de massa? A notícia interessante está

no atípico, no anormal e surpreendente. Ao lado temos as agências reivindicantes,

incumbidas do papel de reivindicar e competir pela propriedade dos problemas

sociais; ganham vida convencendo o público de que têm uma solução para o

problema da criminalidade. Quanto ao público, a insegurança ontológica da

pluralidade de valores tem como resposta a necessidade de encontrar definições

seguras de normas, freqüentemente associada ao desejo de retornar as fronteiras

do comportamento a um passado imaginado de civilidade e

previsibilidade(YOUNG, 2002, pp. 181-191).

O problema que surge é uma falácia cosmética que concebe a

criminalidade como um problema superficial suscetível de tratamento tópico. A

criminologia cosmética, que daí decorre, inverte a causalidade, considerando a

criminalidade como causa de problemas para a sociedade. Ocorre que esta

criminalidade cosmética não resiste aos fatos. Há uma perda de locus fixo do

infrator. Os infratores estão em toda parte e a infração se mistura a

comportamentos anti-sociais.

Mas o que significa tolerância zero numa sociedade liberal? Há um

contraste entre a atividade policial intensa, cujo foco são pessoas marginalizadas e

infrações menores, e uma geração de opinião e erudição liberal, cujo objetivo era

minimizar a intervenção social, que implica em penalidade mínima.

Mas o problema não se parece tão fácil de resolver. É complicado

trabalhar com a tolerância zero até para criticá-la sem cair em uma comum

esquizofrenia. Arvorar-se contra a tolerância zero a crimes menos gravosos

exigiria a coerência de assim manter-se quanto à violência doméstica. Não é bem

assim que ocorre. A referida esquizofrenia freqüentemente se manifesta. Este erro

vem em parte de uma crença de que crimes contra a propriedade são dirigidos

apenas contra a burguesia. A ironia está em que os mesmos jovens que cometem

crimes de arrombamento são encontrados praticando atos violentos contra outras

minorias ou outros grupos.

O debate sobre tolerância e demanda crescente de lei e ordem – concomitante ao aumento dos comportamentos intoleráveis – é portanto central para os discursos público e acadêmico (...) De certo

modo, a tolerância zero é uma reação a isto – é uma tentativa de fazer retroceder os níveis de tolerância e, em seu aspecto de policiamento, encerra uma crítica ao liberalismo, que teria supostamente “permitido” que tudo isto acontecesse(YOUNG, 2002, p. 204).

O eficientismo penal, com base na teoria da lei e ordem surgiu como uma

nova forma de direito de emergência, de criminalização de conflitos sociais. É,

como chama Dornelles, uma forma de “fundamentalismo penal criminalizador

dos conflitos sociais”(DORNELLES, 2003, p. 46) surgidos com a globalização e

o modelo neoliberal.

Há um argumento que surge no sentido de que a desordem se prolifera

com o desenvolvimento de um ethos de individualismo e do crescente suporte

legislativo à proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos às expensas da

continuidade.

Para o autor é o contexto social, são os problemas estruturais do sistema

que produzem a taxa de criminalidade. Têm relação com as condições materiais

da sociedade. O sistema de justiça criminal liberal ou conservador não pode ter

mais do que um impacto marginal nas taxas totais de criminalidade. Jock Young

alerta que não basta punir os infratores que quebraram a janela, é preciso consertar

as janelas. Tolerância zero à desigualdade.

Tanto a sociedade inclusiva como a excludente não se sustentam. A

inclusão ocultava as diferenças em face de sua exigência por uniformidade. A

exclusão permitiu a diferença mas caminhou para uma desvalorização do

potencial humano. As desigualdades flagrantes se mantêm e o sistema de justiça

criminal se torna cada vez mais presente. este sistema de justiça criminal não

consegue manter a coesão social. São dois os problemas principais de uma

democracia liberal: distribuição de recompensas de modo útil ao tecido social e

conflito entre os interesses dos indivíduos e o sentido dos fins coletivos. o autor

chama de esfera da justiça e esfera da comunidade.

Como conciliar as duas esferas, ao mesmo tempo, com os conhecimentos

tradicionais da esquerda e da direita. Se por um lado a esquerda abandona a

meritocracia, a direito o interesse coletivo, permitindo a demonização das

minorias.

Como já tivemos a oportunidade de ver, a sociedade meritocrática é aquela

em que o indivíduo, tendo acesso igual ao mercado de trabalho, é recompensado

principalmente segundo seus esforços e habilidades. Há restrições a este sistema,

pois todas as sociedades devem ter um mínimo de sistema de providência. Do

lado oposto à recompensa e ao mérito deve estar a penalidade. esta é a chave do

contrato e da cidadania nos países industriais avançados. Contudo, há dentro dela

uma profunda ironia, pois o “ideal cultural da meritocracia contradiz as estruturas

de desigualdade de riqueza e oportunidade existentes”. Neste mundo, como já

acertado, não é a privação, é a presunção relativa que gera o descontentamento. É

justamente o mecanismo de distribuição de recompensa, que foge aos termos

meritocráticos perfeitos, não sendo nem aleatório, nem estático, que gera o

descontentamento. Só funciona parcialmente.

A esquerda critica esta meritocracia idealizando uma igualdade

substantiva com as igualdades formais de oportunidade e recompensa. Ocorre que

prover empregos para todos na comunidade não é meritocracia. Meritocracia é

alocar os empregos por mérito e distribuir a recompensa em conseqüência disto. O

problema não é ser meritocrática, o problema é o caos da recompensa. Assim, a

ordem social nunca será tranqüila eis que a competição se torna incessante e a

fixação pelo trabalho.

Quanto à manutenção da ordem, então, numa sociedade injusta e desigual,

é preciso treinar os indivíduos para aceitarem o mundo como ele é. A lei vem a

ser instrumento dos poderosos de controle dos despossuídos. Quebrar as leis é

desigualmente distribuído. A disciplina é essencial para manter uma sociedade

ordeira, além da lei.

Ocorre que o nível de exigência que as pessoas têm em relação às suas

vidas mudou. Há uma expectativa crescente de cidadania, um sentido aumentado

de privação relativa e uma demanda de uma vida mais expressiva(YOUNG, 2002,

pp. 218-230).

A questão da criminalidade é extremamente complexa, vai além da

satisfação do emprego alcançado. Pode se propor um justiça social que ajude os

membros vulneráveis, mas não para diminuir a criminalidade. O objetivo deve ser

a necessidade de tais medidas. A criminalidade decorre, também, do próprio

tecido social, todos os elementos têm que se reforçar reciprocamente. A

prevenção do crime deve ser o bônus desta atitude e não o objetivo.

Entretanto, encontramos neste discurso algumas falácias. Há relação entre

criminalidade e justiça social, uma vez que aumentos de riqueza parecem ter

relação direta e não inversa, com a criminalidade. A confusão que se faz em

relação à justiça social estabelece-se entre a privação absoluta e a privação

relativa. A injustiça social pode estar oculta, não percebida pela massa. Então, não

é automático o efeito, ainda mais por existirem certas válvulas de escape políticas

ou religiosas para o mal-estar. Representa admitir-se, conseqüentemente, que o

crime é um traço perene da sociedade, que se manifesta enquanto as pessoas não

sabem ser ordeiras.

Quanto ao controle social, para ser efetivo, deve ser considerado justo. A

força não basta. Sem a motivação o controle é uma explicação insuficiente. Faz

sentido manter a distinção, mas é errado ignorar a interação entre ambas.

A sociedade meritocrática não resolve o problema, a competição entre os

indivíduos por recompensas, ainda que distribuídas de forma equânime, impede a

paz social. A existência daqueles valores acordados ‘necessária se as pessoas

desejam ajudar umas às outras em tempos de dificuldades e outras condutas

moralmente valorizadas. Assim a sociedade meritocrática precisaria de um pouco

de comunitarismo (YOUNG, 2002, pp. 233-235).

O problema, do outro lado, do que sugerem os comunitaristas é que tudo

se sustenta por um cimento de um acordo básico. E assim a expressão

comunidade, apesar de continuar sendo utilizada, se esvazia. A identidade é

definida de forma exclusiva (para incluir, exclui) e são instáveis. A partir da sua

própria definição como essência, o outro é excluído. Mas isto vem acompanhado

de uma desconstrução destas essências, as culturas repercutem umas às outras,

formando-se e entrecruzando-se. A própria fluidez do mundo engendra isto.

O resultado deste fracasso está em que a identidade é cada vez mais

construída na negação da identidade do outro.

Este processo, todavia, perde força num mundo global em que as

identidades atravessam fronteiras constantemente e mudam para sempre.

Dentro das metrópoles do início do século passado e das megalópoles do

final do século XX, o indivíduo carrega consigo uma consciência de risco e uma

cautela, um distanciamento da confusão moral a sua volta. A cidade é um local de

inúmeros estímulos, e também um lugar de retração e desapego que pode virar

hostilidade. Ao lado disto temos a natureza reservada e indiferente dos cidadãos.

A diversidade cresce às expensas da permissividade da indiferença. Quando se

alcança a hostilidade, a indiferença pode facilmente transbordar em demonização

dos outros culturais.

A cidade é construída para isolar uns dos outros, representa um grande

medo de exposição. As pessoas se reúnem em espaços limitados e devidamente

orquestrados. O que falta é, sem dúvida, comunidade e coesão social. Mas não se

pode deixar de lado o fato de, por muitas vezes, as relações entre as diversas

culturas serem de dominação, o que se torna um empecilho a esta coesão social.

Ademais, certos grupos há que certamente não gostaríamos de reconhecer e

valorizar. Aceitar os skinheads neonazistas.

O descontentamento vem das pessoas mais próximas. os antagônicos

fazem o indivíduo sentir-se mais seguro ontologicamente. Quando os mais

próximos fazem escolhas diferentes, o sentimento de insegurança surge. Afirma o

autor que é o bissexual, e não o transexual, que gera mais insegurança entre os

heterossexuais (YOUNG, 2002, pp. 240-257).

Há duas áreas de injustiça. A redistribuição, em termos de mundo

material, e o reconhecimento, afeto à igualdade ou valorização da diferença

cultural. Quanto à redistribuição pode se trabalhar com o Estado previdenciário

liberal, o que afirma os diferenciais de classe, constituindo as subclasses como

alvo primário de ressentimentos, pois são remédios afirmativos. Em contraste

podem ser sugeridos métodos transformativos através de políticas públicas, não de

esmola, mas de incentivo a estas classes. Quanto ao reconhecimento, remédios

afirmativos há que procuram valorizar as raízes culturais, em contraste os

transformativos buscam desconstruir os binários, os antagonismos.

Os remédios afirmativos, conseqüentemente, geram alívio aos

necessitados, não só marcando este setor da população como também são

experimentados como fator de exclusão social. Nesse caso, experimentando-se a

privação relativa que, por sua vez, acarreta a desordem e freqüentemente resulta

em criminalidade.

Os remédios transformativos, defendidos por social-democratas,

encontram entraves na ineficiência das burocracias políticas. O reparo que Jock

Young faz a estas medidas é a necessidade de conviverem com a meritocracia.

pode atacar os problemas de ressentimento que ocorrem quando as políticas

igualitárias ignoram o esforço. Sem a meritocracia a noção de políticas de

transformação da distribuição criaria exatamente os mesmos problemas de

estigmatização e descontentamento que ela reconhece nas políticas afirmativas. E

mesmo os remédios afirmativos encontram seu tendão de Aquiles na realidade

social do período da modernidade recente, irremediavelmente entrelaçada.

Assimilação e diferenciação são um processo constante de interação.

Há muito para nos preocuparmos. O crescimento do sistema criminal nos

Estados Unidos levou a democracia liberal ao seu limite. A violência é moeda

corrente na cultura americana, o crime violento tornou-se parte normal da vida

americana e o sistema de justiça criminal tornou-se rotineiro (YOUNG, 2002, pp.

267-277).

A partir da cultura da meritocracia, as pessoas alteram seu comportamento

para alcançar algumas recompensas materiais. O controle social localiza-se no

desempenho do trabalho e no status financeiro. o enxugamento do mercado de

trabalho, que se faz acompanhado por um mundo de diversidade moral, contribui

para a insegurança ontológica.

Criar uma sociedade inclusivista de civilidade não significa que intrusões que ameaçam os estilos de vida de outros devam ser tolerados. uma sociedade inclusiva do futuro, que valorize a diversidade humana, faz da tolerância uma virtude central - mas por sua própria natureza, a tolerância tem que ser preservada da intolerância da predação (YOUNG, 2002, p. 281).

Uma completa nostalgia embebeda os políticos que argumentam uma

possível reconstrução da família nuclear para sempre, trazer de volta o pleno

emprego e outras medidas tais facilmente diagnosticadas como impossíveis nesta

modernidade recente, que incluem eliminar a criminalidade pela tolerância zero,

toques de recolher, circuitos fechados de televisão.

O autor deixa claro que discute no livro a verdade a ascensão do

individualismo enfraquecer a catarata da conformidade e de o indivíduo ter mais

chances de ficar descontente com o que vir e que isto provoca aumento da

criminalidade, desordem e disputa. E afirma que, em contrapartida, é falso que

isto seja produto da natureza humana e que o único caminho seja sofrer

realisticamente o mundo (YOUNG, 2002, p. 283).

Contra esta distopia, Jock Young traz quatro argumentos. A tecnologia de

per se não é repressiva, ela depende do contexto político para definir suas

conseqüências. A tradição não vem a ser o essencial para evitar a guerra

hobbesiana de todos contra todos, antes o seu colapso é o prelúdio para a busca de

uma sociedade eqüitativa e inclusiva. O sistema capitalista contém uma semente

de instabilidade que pode ser engendrada pelo mercado, como as demandas pela

meritocracia e auto-realização, mas encontra-se no seu bojo o motor da mudança.

Os instrumentos necessários à demonização do outro se tornaram extremamente

frágeis na modernidade recente, não funcionando como ideologia crível e nem

como retorno nostálgico ao mudo inclusivista do período pós-guerra.

A diferença que podemos colocar entre a democracia liberal e a república,

que nos interessa para o deslinde do tema, está em que, enquanto o liberalismo

trabalha com a figura do “deixar fazer”, a república preocupa-se mais com uma

liberdade individual dentro de uma comunidade que se autofiscaliza, na busca do

bem comum. Se vivemos bem porque não temos os campos de concentração, nem

departamentos de censura, temos prisões lotadas (BAUMAN, 2000, p. 169-175).

A questão com o qual hoje nos deparamos, ou como chama

apropriadamente Marildo Menegat, depois do fim do mundo (MENEGAT, 2003,

p. 244-250), a barbárie, é que não há mais como sustentar este bem comum. Por

certo, uns são capazes de prover suas necessidades com os artifícios que a

sociedade possui, e outros, sem o acesso a estes artifícios, são ineficientes e

inúteis, desprovidos da provisão de suas necessidades. Isto não nos parece

novidade.

A colaboração de Marildo está na denominação do estado das coisas como

barbárie, o que nos permite reconhecer que o contrato social da modernidade

recente se rompeu. A meta não é mais a eliminação de privação absoluta e a

criação de oportunidades em uma sociedade de consenso, é sim evitar a privação

relativa e caminhar na direção de uma sociedade diversa e meritocrática, capaz de

prover identidade e satisfação. Quanto aos métodos de operação, deve ser

construído um novo contrato de cidadania, enfatizando a diversidade, não como

um catálogo de características mas como uma pletora de culturas cambiantes. O

terreno em que a modernidade floresceu sofreu modificações fundamentais e não

é possível voltar ao passado. Criminalidade e intolerância ocorrem quando a

cidadania é obstada, suas causas estão na injustiça e seus efeitos são mais injustiça

e violação de cidadania. A solução deve ser uma nova cidadania, “uma

modernidade reflexiva capaz de manejar os problemas da justiça e da

comunidade, da recompensa e do individualismo, que habitam, o coração da

democracia liberal” (YOUNG, 2002, pp. 282-290).

E para isso não basta reconhecer direitos humanos. Um homem dotado

única e exclusivamente de direitos humanos não existe. Ou ele será dotado de

algo mais, ou nem dos direitos humanos. Há, e só um ingênuo para divergir disto,

indivíduos que não são dotados sequer destes direitos mínimos. Que não são

dotados de nenhum direito. Bauman cita os sem teto (BAUMAN, 2004, p. 154), e

nós poderíamos aqui incluir nestes os sem terra (sem tratarmos especificamente de

seu caso). Ou poderíamos citar os presos ou egressos do sistema prisional. A

todos esses são questionados pela sociedade, inclusive, os direitos humanos11.

Esse é o homo sacer, que não possui direitos, que todos podem livremente

matar sem qualquer possibilidade de punição. É a vida que não vale a pena ser

vivida. Algo que não surgiu somente com Agamben, como já vimos, mas que foi

introduzido por Alfred Hoche e repetido por Karl Binding (BAUMAN, 2004, pp.

11 Podemos nos lembrar do enorme debate e rejeição que se coloca na sociedade quando qualquer organismo internacional faz visita ao Brasil a pretexto de investigar qualquer violação a direitos humanos. É de conhecimento geral o argumento que se levanta, e não raras são as vezes em que podemos ouvir a exclamação: “Direitos humanos só servem para proteger os bandidos”.

157-158), doutrinador de direito penal, que defendia a exclusão da proteção destes

em prol daqueles que possuíam grande valor para a sociedade.

Sem uma mediação adequada para a crise social e a crise de representação

política – que fere a afirmação de uma democracia – faz com que o conflito seja

tratado como “questão de polícia” (DORNELLES, 2003, p. 48), e o direito penal

como instrumento primário de solução de problemas sociais.

Desta forma, o papel da criminologia crítica nos dias atuais não pode se

restringir à análise das doutrinas e ideologias de justificação, tão somente, ou

ainda da análise empírica dos concretos sistemas e ordenamentos penais, mas

também à análise da sociedade como um todo. A análise de quais são (e quais

foram) os sistemas de exclusão utilizados, dentro de uma programação de

exclusão (FERRAJOLI, 2002, p. 277).

Não deve também ignorar a contradição entre a afirmação de direitos

humanos em plano nacional e internacional, com a sua contemporânea restrição

pelo Estado Penal. “O eficientismo, portanto, vai na ‘contra mão’ das convenções

internacionais de proteção dos direitos humanos e dos princípios do

constitucionalismo moderno” (DORNELLES, 2003, p. 51). Disso não devemos

nos afastar, se é possível afirmar que estamos criticando o sistema penal, devemos

sempre buscar suas contradições internas. Os direitos humanos interpenetram o

conteúdo do direito penal, aplicam-se ao sistema penal, eis que funcionam como

limite ao exercício do poder punitivo. Os direitos humanos também possibilitam

(ou mesmo geram) o conflito dentro de uma sociedade excludente. Desta forma,

não podemos esquecer de problematizar a criminalização dos conflitos sociais, em

última análise, dos direitos humanos.

4.3 A globalização como forma de ex(in)clusão

A segurança já não se coloca mais como uma questão nacional. É impossível pensar em comunidade dentro de uma nação. A nação, ou os estados soberanos, não são mais capazes de garantir a segurança.

O problema da insegurança ultrapassa então os limites de um estado e toca

em relações que não pressupõem apenas um “choque interno de classes”, como se

pretendia afirmar. Como nos coloca Wacquant (WACQUANT, 2001, p. 23), as

desordens proporcionadas a partir dos anos 1980 tratam de questões como a

imigração e a privação econômica e as desigualdades sociais crescentes.

A globalização está em moda. Ela traz divisão como também traz união, e

divide enquanto une. Uma parte integrante dos processos de globalização é a

progressiva segregação espacial, separação e exclusão. Causa específica da

preocupação é a progressiva ruptura de comunicação entre as elites

extraterritoriais cada vez mais globais e o restante da população cada vez mais

“localizadas” (BAUMAN, 1999 (a), pp. 7-11).

O capitalismo dos tempos mais atuais tem funcionado como um empecilho

à alteridade. Se antes a dificuldade de transferência impunha este encontro com a

alteridade, nos tempos modernos, graças à mobilidade, qualquer embate travado

contra o capital teria pouca dificuldade em manter-se. Haveria, portanto, menos

situações para impor a diferença ou de aceitar o desafio da comunicação. Antes

disso o capital desmontaria suas tendas e se transferiria para onde não houvesse

qualquer obstáculo. Ademais, obstáculos a esta mobilidade não mais existem. E,

ainda, onde existirem estão sendo apagados, eliminados. “Não há necessidade de

se comprometer se basta evitar” (BAUMAN, 1999 (a), pp. 13-18).

Os meios de comunicação ágeis e, também, baratos diminuíram o contato.

A solidariedade que era ombro a ombro e o combate que era corpo a corpo

desaparecem. O avanço dos meios que permitiram afastar conflitos e

solidariedade mudou essa situação, emancipando-se das restrições naturais do

corpo humano. Ocorre que este espaço moderno planejado deveria ser ordeiro e,

cada vez mais, inclusivo. “A totalidade social devia ser uma hierarquia de

localidades cada vez maiores e mais inclusivas, com a autoridade supra local do

Estado empoleirada no topo, supervisionando o todo e ao mesmo tempo protegida

da violência cotidiana” sobre este espaço, o espaço cibernético da rede de

informática que põe termo às distâncias.

A anulação tecnológica de distâncias emancipa certos seres humanos das

restrições territoriais e torna extraterritoriais certos significados geradores de

comunidade. Não é a todos dada esta mobilidade, e aos que não são móveis para

fora da localidade, quando quiserem, só lhes resta observar a única localidade que

habitam movendo-se sob seus pés.

A necessidade que surge é o isolamento. Como a localidade é despojada

de significado social, ela é reduzida a terreno meramente físico. Precisam também

de segurança no isolamento, invulnerável. As elites escolhem este isolamento e

quem dele pretenda participar deve pagar, caso contrário são postos para “fora da

cerca”, são presos, desviados, quando perambulam fora dos seus limites. O campo

de batalha surge neste território urbano em repostas agressivas, criando daí limites

ao acesso aos guetos, que não vêm a ser interpretadas como o que realmente são,

obediência às regras do jogo territorial, mas como rupturas da lei e da ordem.

O efeito é mutuamente reforçante, o que pode por fim levar à rivalidade

cada vez mais extremada e à hostilidade e ruptura.

Os poderes pré-modernos atravessam algo que chama Bauman de batalha

dos mapas. Era necessário que os poderes constituídos pudessem conhecer e ler

todos os grupos de súditos tornando-os invulneráveis ao controle de cima. Ao

Estado caberia esta função, monopólio buscado, de impor esta visão tida de fato

como certa. A diversidade desnorteante de mapas deveria ser substituída, não por

uma visão universalmente partilhada, mas por uma estrita hierarquia de imagens.

E assim, modernização importava em tornar o mundo habitado legível e percebido

à administração supra comunitária. Possível será a burocracias impondo regras

estritas e rigorosas para as condutas de todos a quem se pretende controlar. O

modelo panóptico apóia-se em suposição bastante semelhante: estrutura-se em um

poder central capaz de vigiar os outros sem se deixar ser visto, desviando os

olhares do poder central, invisível, para as outras alas. Só que o panóptico é um

ambiente criado artificialmente inacessível aos poderes voltados para uma escala

estatal. Era então posto em banho-maria, de qualquer forma remodelando-se o

espaço, ao invés de simplesmente representá-lo.

A proposta seguinte seria planejar a cidade. Não agradava a formação

espacial das cidades fundada em acidentes históricos. O objetivo era a boa

manutenção da lei e da ordem, fugindo do que consideravam o caos. A cidade

perfeita constitui-se da rejeição da história e a demolição de todos os seus

vestígios palpáveis.

A busca na transparência do espacial causou um problema de identidade

quase insolúvel, e a monotonia impessoal e pureza clínica deste espaço

artificialmente construído impediram a possibilidade de negociação. Os homens

não se tornam bons simplesmente seguindo as boas ordens ou os bons planos dos

demais. Até porque este ser evoluído, que habitaria em paz nesta cidade sentiria

falta da alteridade, a necessidade de completar-se pelo outro diferente. A muita

uniformidade alimenta a conformidade, de um lado, e a intolerância do

outro(BAUMAN, 1999 (a), pp. 53-55).

Hoje nos sistemas de dados a situação se distancia do panóptico. Se antes

o panóptico objetivava disciplinas as pessoas, uma conduta monótona e rotineira.

Ninguém poderia escapar. O banco de dados é instrumento de seleção, que na

disciplina diretamente, mas que exclui aqueles que não preenchem as condições

necessárias. Não imobiliza mais, é veículo de mobilidade.

As distâncias desaparecem com meios eletrônicos. O local não existe

como antes. Impossível pretender controlar todos os problemas locais se estes

sofrem interferências vindas do outro lado do planeta. E Bauman indaga, o que

seria ter o controle. A globalização é a nova desordem mundial.

Com esta globalização, com a formação de blocos internacionais fortes, o

tripé da soberania, a auto-suficiência militar econômica e cultural do Estado,

deixa de ser viável. Para preservar e entregar pedaços cada vez maiores de

soberania.

Com este abalo na soberania, os Estados não têm recursos suficientes para

suportar a pressão. Sua função se perde e ele é colocado como mero coadjuvante

na esfera de poder, a mero serviço e segurança para mega empresas. A separação

da economia e da política, a fim de fazer que esta interfira menos naquela,

impossibilita a capacidade de fazer opções coletivamente impositivas e executá-

las.

O que há neste mundo é uma reestratificação mundial do poder de forma a

construir uma nova hierarquia mundial, que, definitivamente, não constrói uma

diversidade de parceiros iguais. Há concentração de capitais, finanças e também

da liberdade de se mover e agir. Até porque, apesar de tristemente e antiético, o

desafio é impedir esta mobilidade de forma a proteger os focos de riqueza e

prosperidade do mundo.

Nossa sociedade é hoje pautada pelo consumo. É uma sociedade de

consumidores, sua mobilidade se realiza pelo consumo. Nem todos são

consumidores e nem todos os consumidores consomem seus desejos, por isso são

imobilizados. Há um mudo de localidade amarrada, daqueles impedidos de se

mover, sujeitos a qualquer alterações em sua localidade. Sofrem uma provação

extremamente penosa quando incitada pela mídia.

Aos que têm grande acesso e mobilidade no consumo, o que falta é tempo.

A sociedade exige um consumo instantâneo a duas maneiras: fornecimento

instantâneo e consumo instantâneo. De modo que imediatamente surge outra

necessidade, imediatamente saciável. Assim, o tempo se torna escasso para estes.

Ao contrário, aos outros há abundância de tempo, nada acontece. Os primeiros,

consumidores, vivem no tempo, o espaço não importa. Os outros, inversamente,

vivem no espaço, que amarra o tempo e os mantém fora do controle para eles.

Essa mobilidade se apresenta inclusive nos embriões da comunidade. A

família. A família, que era originariamente direcionada para promover a

imortalidade numa esfera menor, estava fada ao insucesso, sendo destinada a

durar tanto tempo quanto pretendesse a satisfação dos seus cônjuges.

Há, entretanto, os que se movem por falta de opção. Aqueles que não são

bem recebidos em qualquer lugar e que qualquer lugar lhes parece inóspito. O

receio daqueles que têm a sua mobilidade por opção é converterem-se nesses. E,

em conseqüência, lutam por uma sociedade utópica livre desses viajantes, a quem

Bauman denomina de vagabundos, como com a obsessão com a lei e a ordem, a

criminalização da pobreza e a eliminação dos parasita.

A prisão é a forma mais radical de confinamento espacial. Com o

isolamento é possível comprimir e diminuir a visão do outro. Há essa tendência de

nossa sociedade moderna de das o significado de crime aos atos que cada vez

mais são vistos como indesejados, e de cada vez mais puni-los com a prisão. O

outro é mantido na categoria de estranho, subjugada sua individualidade pessoal.

E o ideal seria o isolamento total. Não se diga que é a realização do panóptico,

que inicialmente fora idealizado como casa de correção, o que temos são quase-

caixões. É um meio de neutralizar uma parcela da população não necessária à

produção e para a qual não há trabalho a se reintegrar.

Se os campos de concentração serviram como laboratórios de uma sociedade totalitária nas quais foram explorados os limites da submissão e servidão e se as casas de correção panópticas serviram como laboratório da sociedade industrial nas quais foram experimentados os limites da ação humana, a prisão de Pelican Bay é um laboratório da sociedade globalizada na qual são testadas as técnicas de confinamento espacial do lixo e do refugo da globalização e explorados os seus limites (BAUMAN, 1999 (a), p. 121).

Bauman percebe que o crescente número de pessoas submetidas à justiça

criminal assinala a idéia de solução institucional como componente da política

criminal em face da crescente necessidade de disciplinar importantes grupos e

segmentos populacionais, o que goza de amplo apoio na opinião pública

(BAUMAN, 1999 (a), pp. 121-123).

Há uma notável transferência de ansiedade. Se num primeiro momento

clássico a ansiedade estava em sugerir uma troca de uma boa parcela da liberdade

pessoal por uma certa medida de segurança coletivamente garantida, hoje opera-se

o inverso.

O combate ao próprio crime dá um excelente espetáculo. O efeito geral é a

preocupação com a segurança pessoal. O que aumenta a popularidade dos

governos são a construção de novas prisões, a redação de novas leis que

multiplicam o número de situações descritas como infrações puníveis com prisão

e o aumento das penas.

A liberdade, pode ser conceituada como uma relação de poder, de poder

agir de acordo com a sua própria vontade e alcançar os resultados que o agir de

acordo com esta vontade, fisicamente, permite. Este conceito, é o mais basilar. E

ele se compatibiliza com a idéia em um primeiro momento. Num momento em

que estamos fora de uma comunidade. E, assim, outras pessoas serão

inevitavelmente excluídas. Mas é necessário, sempre, um critério, para identificar

quem estará fora desta relação de poder

A identidade de hoje também é elemento indispensável para a colocação

na sociedade. Se, por um lado, vivemos num mundo pós moderno no qual há

padrões de vida concorrentes, a sociedade continua uma característica capaz de

dividir e identificar os indivíduos. O consumo. A reprovação no teste do consumo

submete o indivíduo à sua colocação dentro o sistema penal, como forma de

manutenção desta ordem localizada (BAUMAN, 1998, pp. 23-26).

Esta atenção localizada em tornar o ambiente seguro é exatamente o que

pretendem as forças de mercado. É este o papel que resta aos governos. Fazer o

melhor policiamento possível é o que importa aos investidores. Nessa tarefa, um

papel cada vez maior é atribuído à política de confinamento, escolhido não por ser

a melhor forma de combate ao crime, mas pela linguagem da imobilidade. Os

medos da vida são expressos no confinamento. A imobilização é o que pretendem

as pessoas com medo daquelas que lhe podem tolhê-la. Outros meios de pena

parecem clemência indolor e ineficaz. Prisão funciona como meio de imobilização

e também exclusão.

Sabemos que o sistema penal ataca a base e não o topo. Há intenções

seletivas dos legisladores, preocupados com a preservação de determinado tipo de

ordem específica. Mal definidos os crimes do topo da escala são também difíceis

de detectar. Além disso, a vigilância do público é, nestes casos, na melhor das

hipóteses, esporádica, sendo necessária que a fraude seja espetacular. Apesar dos

crimes do colarinho branco poderem ser considerados como causas da

insegurança, jamais podem ser concebidos como ameaça a segurança, vez que os

sofrimentos que causam são menos tangíveis à opinião pública. Por fim, se os

guardiões locais, a elite é global, é translocal, superando os limites de atuação das

polícias localizadas (BAUMAN, 1999 (a), pp. 131-136).

5 A conjuntura brasileira de exclusão e o movimento

democrático (de exceção)

A missão do direito penal sempre foi afirmada como a tutela de bens

jurídicos. O que é uma verdadeira cilada, como nos afirma Salo de Carvalho

(CARVALHO, Salo. A política proibicionista e o agigantamento do sistema penal

nas formações sociais do capitalismo pós-industrial globalizado. in KARAM,

2005, p. 117). A cilada está em que a definição dessa missão acaba por dar a volta

em si mesma. O Direito Penal existe para tutelar os bens jurídicos. Bens jurídicos

são os bens da vida tutelados pelo Direito Penal. Não podemos cair nesta farsa

dogmática. Não podemos afirmar que o bem jurídico é aquilo que é tutelado pelo

direito penal, nem podemos nos permitir tão infantil afirmação.

E mais, tal afirmação é mais infantil quando se coloca como absoluta no

sentido de conter o direito penal instrumentos necessários para a proteção dos

bens jurídicos, enquanto todas as demais “ciências” já se convenceram do

contrário.

Como afirmava Heleno Fragoso (FRAGOSO, in IBCCRIM, 2005, p. 1),

em artigo inédito recentemente publicado IBCCRIM, os princípios inerentes aos

direitos humanos constituem solene mistificação,e nunca foram implementados

face aos impeditivos modelo de segurança nacional e escandalosa distância entre

pobres e ricos e desumana pobreza de extensas faixas da população.

Nazareth Cerqueira (CERQUEIRA, 2001, pp. 33-35) se demonstrava

convencido de que o problema da criminalidade não será resolvido em outra

dimensão senão a dimensão política. O crime não é um fenômeno natural. A sua

definição se estabelece de forma convencional, artificial, que se viabiliza através

de processos políticos. Ao lado disso, sua forma de contenção também depende de

uma estrutura política representada pelo executivo, de um lado – polícia,

Ministério Público e sistema penitenciário –, por outro, pelo Judiciário – justiça

criminal. De igual forma, a criminologia se frustra quando busca, estudando os

criminosos presos, descobrir as causas da criminalidade, sem perceber que o

crime hoje atinge todas as classes. Ricos e sadios cometem crimes. Combater a

criminalidade se torna tarefa difícil quando se trabalho combatendo a macro

criminalidade. Nossos sistemas não foram operacionalizados para tanto.

A criminologia erra quando pretende tratar o crime como um fenômeno

anormal e o criminoso como um ser anormal e dirige as suas condutas para um

setor da sociedade. Ocorre que, reconhecendo que a criminalidade é um fenômeno

social normal, não se divide a sociedade, e todo programa de prevenção deve ser

dirigido para toda sociedade, todas as pessoas podem ser vítimas ou podem vir a

ser delinqüentes. Aí entramos no problema da causalidade, que deve ser deslocado

da causa para a atitude, processo de conhecimento ou de avaliação que, consciente

ou subconscientemente, todos realizamos a respeito de uma escala fundamental de

valores.

5.1 Resumo da conjuntura brasileira

Como afirma João Ricardo Dornelles, “a violência, o arbítrio e a

desigualdade são elementos constitutivos da realidade social brasileira”

(DORNELLES, 2003, p. 75). Nossa tradição escravocrata, nosso extermínio de

indígenas nativos, nossa força contra os brasileiros pobres e imigrantes como

mão-de-obra, e nossa exclusão e marginalização de enorme contingente humano,

marcam a nossa sociedade, nossas opções políticas, forma de governo efetiva,

exteriorizações do poder.

Podemos concordar com Zaffaroni (ZAFFARONI, 2001, pp. 74-78)

quando afirma a posição da prisão nos países marginais no sistema colonial, um

seqüestro menor dentro de um seqüestro maior. Isto se apresenta inclusive como

uma indagação, pois não parece possível, em uma primeira análise, pretender

excluir, dentro do grupo do grupo dos excluídos, a totalidade dos nativos

brasileiros e escravos negros trazidos, um subgrupo merecedor de uma maior

exclusão.

Diferente de nós, Dornelles debruça-se sobre a história da polícia, que nos

serve pois é ela o instrumento para a efetivação do sistema penal da formação

social brasileira. Se por um lado afirmamos defesa de direitos humanos, raras as

vezes em que nossas polícias se orientaram para a proteção destes em suas

práticas5.

5 Não raro se ouve, de professores de Direito Penal pouco atentos as leis formais, a lição de que eventual morte por arma de fogo disparada por policial contra indivíduo sujeito a mandado de prisão é estrito cumprimento do dever legal. Como se houvesse dever legal, na hipótese, em matar. Mas isto não é incomum, e pode ser ouvido em aulas de preparação de nossos futuros juízes, promotores e defensores. Deve sim, como referencia Dornelles às palavras de Nazareth Cerqueira:

Nilo Batista e Raúl Zaffaroni relatam que na conjuntura brasileira

seiscentista não tem lugar para, propriamente, um direito penal público. A

confusão, no sentido de apresentarem-se como um só, entre o público e o privado

tem espaço em função de incipiente burocracia e do escravismo que é

acompanhado por um direito penal doméstico e de resquícios organizativos

feudais que permite esta superexposição entre o eixo jurídico privado e o público.

E apesar do modelo desenhado pelas Ordenações do reino, especialmente as

Manuelinas, as estruturas burocráticas, na prática, não exerciam o poder punitivo

(ZAFFARONI et alii, 2003, pp. 411-488).

Ocorre que esta descentralização do poder punitivo vinha na contramão do

processo histórico de formação dos estados nacionais. Era necessário iniciar este

processo, utilizado, então, a partir do século XVII. A burocracia brasileira

começaria gradualmente a se formar.

Com a vinda da família real para o Brasil em 1808 e d administração

superior portuguesa, as Ordenações Filipinas serão confirmadas pela Assembléia

Constituinte do Brasil após a independência, passando a conviver com as

primeiras leis penais genuinamente brasileiras.

Em 1824, a Constituição prevê garantias individuais,

entre as quais a liberdade de manifestação do pensamento, a proscrição de perseguições religiosas, a liberdade de locomoção, a inviolabilidade do domicílio e da correspondência, as formalidades exigidas para a prisão, a reserva legal, o devido processo, a absolvição de penas cruéis e da tortura, a intransmissibilidade das penas, o direito de petição, a abolição de privilégios e foro privilegiado (ZAFFARONI, 2001, pp. 422-423)

“efetuar prisões colocando m risco a vida do policial, de terceiros e do próprio criminoso revela incompetência” CERQUEIRA, Carlos Magno Nazareth e Dornelles, João Ricardo Wanderlley. A polícia e os Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Instituto Carioca e Criminologia: Fundação Ford: Freitas Bastos, 1998. apud DORNELLES, João Ricardo Wanderlley. Ob. cit., p. 86.

incompatíveis, em sua maioria, com as Ordenações Filipinas.

A progressão criminalizante do império nos leva a encontrar dois grandes

eixos, a contradição entre o liberalismo e a escravidão e o movimento político de

descentralização e centralização, que se veiculam explicitamente através do poder

punitivo.

Nenhuma das esferas parecia querer abrir mão do poder punitivo. Nilo

Batista e Raúl Zaffaroni relacionam a inobservância do princípio da reserva legal,

exercida desde a polícia até a magistratura que podia, se suspeitasse da prática de

algum crime, cominar penas de multa, prisão ou internação em casa de correção

ou oficinas públicas. De igual forma não se pretendia proscrever penas cruéis,

nela se incluindo os açoites, que eram praticados com freqüência, e assim

previstos em dispositivos normativos, dos mais variado âmbitos do poder, desde

avisos ministeriais até portarias de chefes de polícia. Tudo isto a comprovar a

compatibilidade entre o regime escravista e o projeto liberal.

O problema era centralizar um poder que originariamente era

descentralizado. Era retirar das mãos dos chefes locais, quer sejam os senhores de

engenho, quer sejam outras forças locais, como as assembléias legislativas, o

poder punitivo direto ou indireto. Isto só foi possível, de certa forma, com a

reformulação da guarda nacional, já que quando esta fora criada obedecia ainda a

um modelo descentralizador. O que saltou aos olhos dos autores foi a utilização

do poder punitivo nos movimentos de centralização e descentralização.

São matérias de investigação ainda as influências do Código Criminal de

1830. Acerca da influência francesa há acirrado debate, apesar de em outros

tempos ter sido lugar-comum. A escolha das pensa cominadas, bem como

critérios para cálculo da pena, encontrou alguma orientação no Code.

Comparativamente, os textos encontram similitudes. Quanto à influência de

Bentham, seu prestígio era reconhecido e confirmado pelo fato de ser

correntemente citado nas atas dos trabalhos parlamentares para elaboração do

código imperial, mas se foi realmente onde às doutrinas do código imperial, isto

ainda se discute. Certo é que havia vestígios, através de conceitos subjetivos como

adoçar a pena, ou sensibilidade do ofendido ou do delinqüente. Ao lado de

Jeremias Bentham, Eduardo Livingston teve suas referências nos debates

parlamentares, especialmente quanto aos conceitos de cúmplices e aderentes e do

cardápio das penas propostas.

Pascoal José de Melo Freire, mestre em Coimbra, influi certamente nos

dois autores do projeto do código imperial, José Clemente Pereira e Bernardo

Pereira de Vasconcelos, mas identificar vestígios é algo que, como ensinam Nilo

Batista e Raúl Zaffaroni, pode ser temerário. O código bávaro, elaborado por

Feuerbach, não pode ser indubitavelmente citado como influência, eis que os

elementos citados pelos autores poderiam ser encontrados em outras legislações

da época.

O certo é que as influências lusitanas podem ser encontradas em seus

dispositivos. A constituição de 1824 contemplava os cidadãos. Nestes não

estavam incluídos o escravo ou o homem livre e pobre. Tão somente aqueles a

partir de rendas estipuladas. Direitos para uns.

Já o Código Criminal tinha um alcance maior. O indivíduo por ele

abrangido envolvia todos os segmentos sociais (NEDER, 2000, p. 185). Deveres

para todos. Mas havia discrepâncias entre as penalidades conforma a qualidade do

delinqüente. Privilegiados eram os portadores de diplomas, adjetivados como a

elite por possuírem uma referência intelectual. Desprezados aqueles cuja

contribuição era meramente braçal, a estes punições mais rigorosas6.

O Código de 1890 vem embalado numa transição, entre a sociedade

agrária para uma sociedade que passava por um processo de industrialização.

Assim sendo, o discurso que defendia a inferioridade jurídica do escravismo

sofrerá substituição pela inferioridade biológica. O racismo tem uma explicável

permanência neste discurso penalista. O discurso médico se mistura ao discurso

jurídico-penalista. Antes da proclamação da república, fora convidado o jurista

Batista Pereira para fazer a revisão do Código Criminal, após várias tentativas de

atualização. Ocorre que, antes que ele concluísse seu trabalho, a república foi

proclamada. E, ao contrário do que seria esperado, o mesmo jurista foi convidado

para elaborar o código da república, o que só comprova que nada havia mudado.

Conclui o trabalho em pouco mais de três meses, e sofrendo revisão por uma

comissão que não tomou mais de duas semanas. Foi promulgado em 11 de

outubro de 1890.

Criticado pela rapidez desses procedimentos, mereceria melhor crítica pelo

fato de não se amolar aos anseios da república. Não se direcionava ao controle dos

alvos sociais do sistema penal da Primeira República, o que se deve ao fato de ser

6 Indispensável consignar nestas notas as inúmeras críticas que faz Gizlene Neder ao Código Criminal do Império, elogiado por muitos pela humanidade de suas penas. A autora faz questão de citar, e aqui repetimos, o art. 60 daquele: “Se o réu for escravo, e incorrer em pena, que não seja a capital, ou de galés, será condemnado na de açoites, e, depois de os soffrer, será entregue a seu senhor, que o obrigará a traze-lo com um ferro, pelo tempo, e maneira, que o juiz determinar. O núermo de açoites será fixado na sentença; e o escravo não poderá levar por dia mais de cincoenta”. (NEDER, 2000, p. 192).

apenas uma revisão do dispositivo anterior. Leis extravagantes se multiplicaram

para fazer face aos reclamos, culminando na Consolidação das Leis Penais.

A programação criminalizante da primeira República espelha, com evidência didática, as contradições de um sistema penal que participa decisivamente da implantação da ordem burguesa porém traz consigo, e reluta em renunciar a ela, a cultura da intervenção corporal inerente ao escravismo (ZAFFARONI, 2003, p. 446).

Tratar a ociosidade como crime foi característica do processo de formação

da ordem burguesa no Brasil, como nos relata Gizlene Neder (NEDER, 1995, p.

44). A preocupação estava relacionada com o trabalho, daí a utilização de penas

em estabelecimentos industriais, ou penitenciárias agrícolas.

A criminalização era direcionada a preservação de alguns lugares sociais,

funcionais ou mesmo territoriais. Vemos determinados tipos penais tais como a

capoeiragem, associada à vadiagem, que, como afirma Gizlene Neder “devem ser

remontadas ao “medo do branco”, diante do fim da escravidão e da forma

anteriormente adotada de controle social” (NEDER, 2000, p. 178). Faz referência

a autora ao medo do branco de que o antigo escravo se rebelasse contra seu antigo

senhoria em resposta às práticas de tortura e castigos corporais exercidos

diretamente pelos senhores e por seus capatazes. Após a abolição, o negro era

mais um membro da massa de vulneráveis que deveria ser tutelado, agora por um

motivo especial, não estariam mais submetidos ao senhorio. Era um problema

mais ainda de toda a comunidade.

Com o Código Penal de 1940 não poderia ser diferente. A função de servir

a uma organização da sociedade, como aquela que vinha desde o Brasil Império

entre a centralização e a descentralização, também aqui se verifica, agora como

uma reação ao federalismo exacerbado, acompanhada de uma necessária

reestruturação administrativa. A criminalização da vadiagem é quase um dado

estrutural do capitalismo industrial. A Escola Positiva ganhava cada vez mais

adeptos e seus princípios vinham sendo incorporados de modo a abrir espaço para

uma nova ação da polícia, o que não indica que o Código de 1940 seja a

incorporação destes princípios. Na realidade o Código foi elaborado na conjuntura

em que esta criminologia positivista gozava de grande prestígio, não podendo

fugir a estas influências.

Os dois alvos desta programação criminalizante eram a intervenção

econômica e o subsistema penal da repressão política. A criminalização da usura,

a designação de crimes contra a economia popular, delitos de abuso do poder

econômico, o direito penal do consumo, dentre outros, foram dispositivos criados

para intervir nesta ordem econômica, tal qual pretendia o governo. O outro alvo

era, por excelência, o partido comunista. Ampla reforma da polícia foi realizada,

definição de crimes contra a ordem política e social. Para tanto, proibiam-se a

existência de partidos políticos ou agremiações, criminalizava-se a opinião,

permitia-se pena de morte para crimes políticos (jamais foi executada).

Interessante ressaltar que para os crimes contra a segurança do estado, ser

estrangeiro constituía circunstância agravante (ZAFFARONI et alii, 2003, pp.

465-470).

Durante a ditadura militar o medo da polícia ultrapassou os limites apenas

das chamadas classes vulneráveis, alcançando também alguns segmentos da

classe média e alta (DORNELLES, 2003, p. 79). Serviu como um poderoso

instrumento de controle político, uma vez que o medo se coloca como limite de

ações, e, nesse caso também, limite à resistência. Resistência a um Estado de

Exceção que sobrepunha o interesse público, interesse do poder, aos interesses

coletivos, aos direitos humanos.

Em 1977 , começou o processo de reforma do Código Penal de 1940, que

deu nova forma à execução da pena privativa de liberdade, de forma a se manter

fiel ao modelo clássico de repressão individualizada, pelo qual cada um merecerá

uma pena adequada ao crime que praticou levando, também, em consideração

condições pessoais.

A parte geral do Código de 1940 veio em 1984, entendendo-se que a parte

especial mereceria um outro momento. Inúmeras atualizações foram feitas para

eliminar influências terríveis devidas à conjuntura penalística do momento de sua

edição, como aquelas oriundas do Código Rocco, como por exemplo, o sistema de

medidas de segurança7.

A mesma idéia de 1977 dominou a reforma de 1984, tratando de forma

individual os condenados. O que se pode também identificar nesta época é uma

mudança no discurso da função da pena, deixando de ser mera repressão para se

tornar medida de prevenção. Novo discurso que se adequa ao discurso da

manutenção da ordem. É o direito penal com caráter muito mais mandamental, de

regência das condutas, de forma a compatibilizar-se com a transição do

militarismo para o neoliberalismo (TAVARES, 1997, pp. 49-51).

7 Interessante se faz ressaltar que em 06 de abril de 2001, foi publicada a Lei n. 10.216, que institui um novo modelo assistencial de saúde mental, que teria revogado todo o disposto sobre medidas de segurança, uma vez que extingue os manicômios, tratando os surtos em unidades especiais em hospitais gerais, e fazendo, de resto, acompanhamento ambulatorial. Determinando que a internação somente será aplicável quando restar comprovado que nenhum atendimento extra-hospitalar for suficiente. in https://www.planalto.gov.br/legislacao/leiordinaria/2001, acesso em 22 jul. 2005.

A classe média e a classe alta, no processo de democratização brasileira,

passaram a consolidar, como afirma Dornelles (DORNELLES, 2003, p. 84),

direitos, a exercer sua cidadania, e conquistando liberdade. Já os setores sociais

vulneráveis, estes não participaram do mesmo processo de democratização, ainda

estão imersos em um sistema de políticas autoritárias, de exceção, tendo

diuturnamente seus direitos humanos desrespeitados.

A Constituição de 1988, que se afirma como inaugural de uma ordem

democrática, é inovadora em matéria constitucional penal. Ao contrário da

tradição que impunha limites ao poder punitivo estatal, a Constituição

“democrática” traz uma pauta criminalizante, determinadora de políticas

criminais. E o efeito foi exatamente este.

As representações políticas que influenciam esta normatização encontram

raízes na globalização e no neoliberalismo, que importa compreender sobre as

mutações na estrutura e funcionamento do sistema penal, em especial na

programação criminalizante. Vira-se para o controle dos contingentes humanos

marginalizados pelo neoliberalismo, trabalhando com a distinção entre os delitos

de consumidores ativos, que encontram medidas despenalizadoras, e os delitos

grosseiros dos consumidores falhos, aos quais corresponde a neutralização através

de privações de liberdade.

Tal paradoxo de nossa Constituição permitiu o surgimento de normas que

são de todo modo inconstitucionais. No ano seguinte a sua promulgação, é

publicada lei que admite a prisão para averiguações pelo prazo de 5 dias,

prorrogáveis por mais cinco, em relação ao suspeito de determinados crimes, que

não tenha residência fixa e identidade.

Medidas despenalizadoras, como as que instituíram os juizados especiais

criminais, estaduais e federais, padecem de constrangedora ambigüidade, se por

um lado reconhecem que a pena privativa de liberdade não vem cumprindo o seu

papel de reintegrar o condenado, por outro recomenda o isolamento a criminosos

mais graves. Ao segundo grupo, relembrando, os consumidores falhos, o sistema

se endurece, com a criação de leis hediondas que ampliam penas e restringem

benefícios, leis que a pretexto de investigar o chamado “crime organizado” cria o

juiz inquisidor e outras tantas, inspiradas muitas vezes em projetos eleitoreiros.

Há dois subsistemas penais com regras e procedimentos distintos para

cada um dos grupos, a uns é dado um salvo conduto do sistema penal e dado

outros, a quem o Estado não consegue alcançar com sua magra intervenção num

estado neoliberal, impõe um novo projeto habitacional, a pena.

O poder repressivo se aumenta ainda mais no governo Collor de Mello,

com a criação da hedionda lei de crimes hediondos, de leis penais econômicas

quanto às relações de consumo, organização da seguridade social

É interessante conferir, o que já foi dito na introdução deste trabalho, que

o número de normas penais gravosas cresceu em muito, em relação aos números

da ditadura militar. Nós, democráticos, somos muito mais punitivos do que a

exceção declarada da ditadura.

Na prática, fora do texto constitucional ou legal, era necessário fazer uma

opção de governo, uma opção de como implementar a nova ordem constitucional

afirmadora do valor da dignidade da pessoa humana. João Ricardo Dornelles

(DORNELLES, 2003, p. 3) nos afirma que houve uma politização da questão da

violência criminal nos espaços urbanos. Dois discursos então começam a ganhar

espaço. O modelo de eficientismo penal e o modelo de garantismo constitucional,

como veremos adiante.

Além disso, podemos afirmar que o Brasil também se vê no que hoje se

chama de acumulação de capital pós-moderna, e por isso aponta Vera Malaguti

Batista(BATISTA, V.M., 2005, pp. 52-53) o seu processo funcional, imbuído de

uma opção pela criminalização da pobreza e da conflitividade social, com um

discurso de purificação, apesar de muitas das vezes não com estes termos, mas

sempre com este conteúdo. O criminoso é sempre um mal para a sociedade,

aquele que não é sequer da “nossa espécie”, um “animal selvagem”. E este novo

incluído é “barbarizado” pelo discurso penal.

O capitalismo sempre recorreu ao sistema penal, como afirma Nilo

Batista, para que este lhe garantisse mão-de-obra e para sua manutenção. Não é

novidade brasileira a regulamentação da grave, de forma a quase impedi-la por

concedê-la de forma tão restrita. Na França, em 1815, o delito de greve vinha

tipificado. Exigir por melhores condições de trabalho e salário, com a única arma

pacífica de que possuía o empregado era um crime. “O teorema jurídico era o

mesmo: não trabalhar é ilícito, parar de trabalhar também. Em suma, punidos e

mal pagos”(BATISTA, N., 1990, p. 36).

Parece-nos que estamos conseguindo viver imersos em dois discursos

extremamente conflitante. Se por um lado a caridade como forma de preservação

de direitos humanos faz proliferar um discurso pelos direitos humanos. Faz-se

bem ouvir falar da proteção à criança, ao pobre trabalhador, ao deficiente físico,

em melhores condições de trabalho que permitam o pleno respeito à dignidade da

pessoa humana. Somos bem capazes de virar para o lado e, no mesmo instante,

defendermos discurso com esse completamente incompatível, como majoração

das penas, trabalho forçado aos presos (e quase, se não escravo), a restrição de

todo e qualquer direito ao condenado. É este o paradoxo interno de nossa

democracia.

5.2 A função da criminalização também no Brasil

A fim de implementar a ordem burguesa na formação social brasileira,

dois instrumentos sempre foram de extrema importância, de um lado um aparelho

policial com sua agilidade na defesa da ordem pública, e o aparelho judiciário de

forma tutelar e disciplinar de uma cautelosa repressão. É certo que também outras

ciências estiveram presentes, tais como a medicina legal e a psiquiatria, indicando

o quanto a questão da pena e do controle social se impunham na ordem

institucional preservada (TÓRTIMA, 2002, pp. 109-119).

Dentro de uma sociedade cada indivíduo é direcionado a exercer uma

função, a desenvolver um papel. O desempenho ineficiente ou o não desempenho

do papel decorre de processos de desorganização social e que representam um

desvio. Essas alterações são normais quando ocorrem dentro de um processo e do

desenvolvimento social, obedecendo ao princípio do interesse comum. O quadro

criminal se ocupa desses desvios não institucionalizados, que se põem a serviços

de interesses particulares ou de grupos específicos. A análise interessante que

Nazareth Cerqueira (CERQUEIRA, 2001, p. 36) propõe é que o assaltante vem

exercendo, conforme o esperado, seu papel, e da mesma forma o traficante; o que

assusta é que a parte “sadia” da sociedade não vem desempenhando os papéis com

eficiência causando um desequilíbrio.

A técnica de controle dos excluídos, e isso não é novidade brasileira ou

moderna, é a criminalização, a policização, a vitimização. E com isso introduzir

contradições, proporcionando conflitos dentro da mesma faixa dos excluídos,

como nos afirma Raúl Zaffaroni (ZAFFARONI, 2005, p. 32). O objetivo que

transparece é a velha técnica imperialista de exterminar povos conquistados

fazendo com eles mesmos se ataquem, exterminando-se. Desta forma, o

dominador não “suja suas mãos” ao mesmo tempo em que vê seus objetivos

alcançados, quais sejam a aniquilação do “inimigo” e a concentração da violência

“inimiga” para longe.

Temos uma programação criminalizante, que faz parte da programação

urbana. É como disse Raúl Zaffaroni – em palestra realizada no Rio de Janeiro,

logo depois transformada em livro –, “Embaixo do viaduto, os excluídos,

mutantes” (ZAFFARONI, 2005, p. 33).

E assim, fazendo uma ligação com a questão dos direitos humanos, a

dignidade não é mais vista como finalidade da sociedade, e, portanto, não há uma

preocupação com a proteção dos direitos humanos. E como ressalta Geraldo

Prado, à luz ensinamentos do já citado Paulo Bonavides,

Nosso conceituado constitucionalista adverte quanto aos riscos do deslocamento do valor dignidade da pessoa humana do centro do sistema jurídico para a periferia, onde ficam adormecidas as normas programáticas, embaladas pela artificial sedução das impossibilidades absolutas e dos destinos definitivos (PRADO, 2005, p. 155).

Entretanto, podemos especificamente falar sobre dois dos direitos

humanos erigidos por uma certa política liberal, o valor informação e o valor

liberdade de pensamento.

Havia uma programação criminalizante específica vertida para a repressão

à manifestação política, incorporada na doutrina de segurança nacional. E assim,

outros direitos humanos foram desrespeitados, através de em subsistema penal

que praticava torturas e execuções sumárias de suspeitos ou acusados, ou mesmo

simplesmente sobre mendigos. E tais espécies de execuções vieram a ser

premiadas por um sistema de promoções por bravura na carreira de policiais, que

matavam suspeitos, instituída pelo ex-chefe do DOI-CODI, já depois da

reconstitucionalização em 1988 (ZAFFARONI et alii, 2003, pp. 477-479).

Entretanto, o ideal é seguir as orientações de Dornelles (DORNELLES,

2003, p. 91), que faz referência a alguns direitos humanos e nos orienta em sua

interpretação. Quando em uma favela, não só as casas como também os barracos

devem ser interpretados como domicílios. O comportamento do policial jamais

deve se orientar pela pauta jornalística de que o criminoso não é um ser humano,

não possuindo direitos humanos, portanto, legitimada a violação destes.

O comportamento criminoso envolve a relação de reciprocidade existente

entre o indivíduo como autor e o sistema de ordem legítima e entre o autor e a

vítima. Esquecer da primeira relação é o corriqueiro. E assim, tratando da ordem

legítima, papéis são distribuídos por uma ordem social ou jurídica que corroboram

a construção de uma ordem pública. O que legitima esta ordem – Narareth

Cerqueira cita Weber – é uma livre partilha de crenças comuns, de valores e

regras, o que não implica concordância total e universal, mas o estabelecimento

da mesma de forma democrática. Conflitos devem ser esperados, mas só os mais

graves tratados com severidade (CERQUEIRA, 2001, p. 37-38).

Na conjuntura brasileira atual, em que nem o discurso da ordem militar dá

conta – que exigia do homem o trabalho, através da criminalização da vadiagem, e

assim do costume de andar portando sua carteira de trabalho (não trabalhar era

crime) –, o excluído não é mais o explorado, não é necessário para ser incluído. E

isso reflete no programa do Estado, ruas modernas com vias rápidas, menos

sinais, passagens subterrâneas, evitando cruzamentos. É o que se vê em cidades

mais novas como Brasília.

E entram em crise as classes médias, cujo maior temor hoje não é o medo

de não crescer, o medo da exploração, mas o medo de ser rebaixado. O medo de

ser excluído e nunca mais poder voltar. E como confirma Zaffaroni, “a regressão

na nossa região é notável” (ZAFFARONI, 2005, p. 23).

Os políticos, por sua vez, ficam completamente perdidos em seus

discursos, cheios de promessas com as quais não podem, de fato, se comprometer.

Na distribuição dos papéis, cabe ao Estado distribuir de forma equilibrada os

direitos e deveres dos seus elementos, os cidadãos, e é o conjunto de deveres e

direitos que compõem seu status, sendo o papel social a atualização histórica

desses elementos inscritos na ordem jurídica-social. Dentro da perspectiva de

papéis distribuídos e de que a criminalização de um comportamento decorre de

um conteúdo que fere, ao menos, o mínimo ético-reprovável pela sociedade,

quando há o afrouxamento dos laços morais, o sentimento de reprovação é mais

atenuado e, assim, os fatos tidos como inaceitáveis outrora, hoje podem ser

tolerados. Isto importa em decisão que envolve aquela primeira relação entre o

indivíduo e a ordem jurídica e não entre indivíduo e vítima.

Já não é de hoje, e isso demonstra o estudo realizado por Nazareth

Cerqueira, que a segurança vem sendo tratada com uma submissão aos preceitos

de guerra, com a implantação de uma ideologia militar para a polícia. Isto foi

possível, como aponta, face à ausência de qualquer modelo teórico ou estudo

específico realizado pelas polícias. Foi fácil implantar a Doutrina da Segurança

Nacional na polícia pelos militares, através da criação dos grupos de operações

especiais com o fim de combater guerrilheiros urbanos e militares. E o resultado

desta política foi que não houve diminuição dos crimes e que os padrões de

violência dos criminosos, ao contrário do que parecia se esperar, se agravaram.

Devemos entender a militarização aqui, também, como aquele “poder

militarizador e verticalizador- disciplinar” (ZAFFARONI, 2001, pp. 23-25) sobre

a classe vulnerável, sobre os incômodos à suposta paz social. O poder é exercido

superando os limites da legalidade e da discricionariedade legal, ou seja, vão além

do que a própria lei permite a fim de controlar e disciplinar. Não é exercido

especialmente quando há um crime em especial, em relação a um autor do fato em

especial. O poder militarizador é exercido tutelando as classes vulneráveis,

limitando seus comportamentos e toda a sua vida, em muitos mais do que aquilo

que está previsto na lei. Veja-se que criminalizar, trazer para o bojo do sistema

penal, não pode ser somente a abstrata previsão de um fato como crime, mas todo

o controle social que vem a ser exercido pelo sistema penal.

Ocorre que polícia não é exército, e controle social não é guerra, e não

deveria acreditar estar lidando diariamente com o inimigo que pretende eliminar,

mas com o cidadão (muitas vezes nacional), que de qualquer forma deve ver

respeitados seus direitos oriundos do Estado de Direito que constitucionalmente

os assegura.

E mais. Um problema outro com o qual temos que lidar – e que parece

fazer parte de nossa cultura – é a exigência de um atuar ilícito por parte de nossos

policiais (DORNELLES, 2003, p. 81). Está vulgarizada a idéia de que a atividade

ilícita da polícia por vezes é respaldada num suposto valor social. Matar o

“bandido” não é ilícito. Essa é a nossa corporificação do homo sacer de Agamben

a que fizemos referência.

E transcrevemos o óbvio afirma por Dornelles:

Deve interessar à toda sociedade que a polícia seja civilizada, honesta, realmente cumpra o seu papel constitucional de proteção e segurança, prestando serviços públicos e garantindo os direitos fundamentais e o pleno exercício da cidadania (DORNELLES, 2003, p. 82).

O problema com o qual tem de lidar hoje em dia o Estado Penal é a

afirmada ausência da figura dialética incluído-excluído. Não existe mais a figura

do explorado e do explorador. O que temos hoje é um programa de inclusão

social, todos são incluídos em seus papéis. Enquanto a classe média não está

sendo criminalizada como as classes economicamente já excluídas, tudo está

ainda aceito. O problema crescerá quando depararmo-nos com a realidade, de que

as classes médias estão caindo, e aumentando nossos níveis de pobreza. Como

apresenta Raúl Zaffaroni, em nossa região, a regressão é notável nos últimos anos

(ZAFFARONI in KARAM, 2005, p. 23).

Temos que tomar cuidado com as críticas desveladas em nossa doutrina

básica de direito, não raro podemos encontrar afirmações como a de Sérgio

Demoro Hamilton, no sentido de que

Em nome de um falso humanismo, transforma-se o sagrado direito à liberdade em total libertinagem, onde ao réu são concedidos todos os direitos no curso do processo. O afrouxamento das leis só trará conseqüências trágicas, principalmente, para o cidadão ordeiro, constantemente agredido pela ação de criminosos da pior espécie que gozam de toda sorte de regalias concedidas pelo legislador. Quem viver verá, se é que não está presenciando, desde já, os resultados funestos de tal “política criminal” (HAMILTON, 2002, p. 1).

Isto não é novidade entre nós. Devemos nos alertar para o crescimento de

tais afirmações no meio acadêmico, inclusive, onde raramente há espaço para um

ensino crítico. Onde o futuro profissional do direito é orientado a ser mero

repetidor de doutrinas majoritárias.

5.3 Modelos de intervenção penal no Brasil

O trabalho de João Ricardo Dornelles trata especificamente do tema

problematizando a relação entre a intervenção penal e a relação afirmada entre

“exclusão da cidadania” e “práticas de delitos”. Além disso passa a questionar o

efetivo cumprimento das promessas relativas aos direitos humanos positivados na

conjuntura democrática. Para o referido autor, podemos analisar dois modelos de

intervenção penal:

O modelo do eficientismo penal, com base no discurso “da lei e ordem” e na

militarização das práticas policiais, onde se destaca o uso da força através das

ações repressivas diretas, inclusive lançando mão de ações ilegais e práticas de

terror contra a população em situação de vulnerabilidade; O modelo do garantismo constitucional, baseado no “discurso da cidadania e dos direitos humanos”, buscando articular as medidas imediatas de curto prazo com as medidas de médio e longo prazo…(DORNELLES, 2003, pp. 4-5).

O primeiro modelo de defesa social sintetiza as idéias da criminologia

positivista e do direito clássico, e forma a orientar as políticas repressivas de

combate ao criminoso. Sustentado pelo princípio da legitimidade (CERQUEIRA,

2001, pp. 119-121) levanta a idéia da polícia como braço armado, pois o Estado é

o legítimo detentor do monopólio do uso da força. O crime é encarado como um

mal para a sociedade, e o criminoso um ser negativo e disfuncional do sistema

social, através do princípio do bem e do mal. Esta imagem favorece a violência

policial e sua tolerância pela sociedade, eis que no exercício do bem,

representando a sociedade no enfrentamento do criminoso – do mal.

O criminoso é visto também como uma minoria da sociedade que não

respeita os valores desta, é o princípio da culpabilidade.

O Estado deve defender a sociedade. Ou esta é a imagem que deve ser

passada. É uma necessidade teatral – expressão de Zaffaroni (ZAFARONI in

KARAM, 2005, p. 24). Todo problema social vira problema penal. Esta é a

penicilina de nossos tempos, aquele que parecia o remédio para todos os males.

Algo de trágico acontece, um político defende a pena de morte, ou decide

aumentar o limite para o cumprimento de pena privativa de liberdade, ou se cria

um novo regime de pena, ou um sistema de incomunicabilidade. Qualquer um

pode levantar esta sugestão. Qualquer um pode propor ou discutir sobre o tema8.

A programação criminalizante vai surgindo por força do debate proposto

pela mídia. E no Brasil temos algumas peculiaridades. Leis são criadas para todos,

como vingança de uma mãe a um criminoso, que não vai sofrer os efeitos dessa

lei (graças a alguns princípios que ainda não foram rasgados em nosso estado de

exceção, tal como o da anterioridade da lei penal).

É interessante notar que não se propõe, seriamente, qualquer mudança na

legislação de forma a alterar a administração, porém qualquer fato pode

desencadear a discussão acerca de uma nova lei penal. E muito raramente esta lei

penal virá a descriminalizar condutas – o que ocorre muitas das vezes para

beneficiar aquele que por “equívoco” foi alcançado pela lei penal, mas que não

deveria sê-lo. Ademais, a lei penal não custa caro para ninguém – é o que se

acredita. Ao contrário, ela possibilita uma maior visibilidade àquele político que a

defende (ZAFARONI, 2005, p. 24).

Nas últimas eleições presidenciais, tanto os partidos da oposição, quanto

os partidos da situação defendiam “rigidez” no trato da matéria penal. Todos

queriam criar novas leis penais, o que faz parte de um discurso imediatista de

solução de problemas.

Pelo princípio do fim ou da prevenção, temos os conceitos de prevenção

geral e especial do crime, defendendo a idéia de que a pena prevista na lei

8 Interessante notar-se que quando a questão que está sendo debatida envolve conhecimentos de economia, um professor de economia, ou mesmo um jornalista com dupla formação é chamado. Quando o problema envolve o desabamento de uma construção, um professor de engenharia ou geologia é chamado para oferecer ao público seus conhecimentos especializados. Ao contrário, quando se trata de sistema penal, qualquer um parece estar habilitado. Não se invoca a presença de um sociólogo especializado, de um criminólogo, ou mesmo de advogado professor.

criminal inibiria o cometimento do crime afirmando que a aplicação da pena

ressocializa o criminoso.

O princípio da igualdade defende a idéia de que a lei penal é igual para

todos os autores de crimes, o que se refuta pelo reconhecimento de que há crimes

e criminosos que ficam excluídos do sistema de justiça criminal.

Pelo princípio do interesse social e do delito natural, os crimes definidos

no Código Penal representam a ofensa de interesses fundamentais, de condições

essenciais para a existência de toda a sociedade.

Já pelo modelo prevencionista a preocupação não se coloca

exclusivamente no crime e nos criminosos, outros elementos como a vítima e o

controle social penal passam a ocupar um lugar de destaque. Como se deduz de

seu próprio título, tem-se como mais importante prevenção do que o castigo. O

crime é um problema social e comunitário, nasce na comunidade e nela deve

encontrar soluções positivas. O problema é de todos. Refuta-se a imagem do

criminoso pecador e mau, selvagem e perigoso (CERQUEIRA, 2001, p. 121-123).

Algumas premissas encontra este modelo: o crime é a expressão de um

conflito entre os criminosos, a vítima e a comunidade, a justiça não deve se

preocupar prioritariamente com a prisão, mas com a reparação do dano, e, então,

ao lado de ser resolutiva, deve ser comunicativa, no sentido de propiciar uma

interação mais ativa entre a vítima e o sistema de justiça criminal e entre a vítima

e o criminoso.

Não é também o crime um problema meramente jurídico-penal, é antes de

tudo um problema social. Assunto que interessa toda a comunidade. O criminoso

não é mais um animal, que deve ser excluído da comunidade. O conflito deve ser

encarado sob a perspectiva de garantia do bem-estar social (DORNELLES, 2003,

pp. 99-101).

As políticas de segurança pública nos governos de Leonel Brizola

merecem análise cuidadosa por Nazareth Cerqueira. No primeiro governo

(1983/1987), houve tratamento específico em relação à Justiça e Direitos

Humanos, Segurança e Direitos do Cidadão. Propunha-se que “a mudança de

conduta do governo em relação à comunidade deve começar pelo respeito aos

direitos humanos em todos os níveis, particularmente no que diz respeito à

segurança do cidadão comum” (CERQUEIRA, 2001, p. 165). Vê na ação policial

uma forma de administrar as tensões geradas por causas sociais generalizadas, em

termos de trabalho, alimentação, educação e integração social da população

trabalhadora. Para o governo Brizola, os direitos humanos foram o grande

orientador e limitador as ações policiais.

5.4 Uma proposta de restrição criticada

Nazareth Cerqueira propunha que para construir um modelo participativo

de imposição e manutenção da ordem pública no Rio de Janeiro, era necessário

desenquadrar a segurança pública da Doutrina de Segurança Nacional, e

reestruturar a polícia de forma adequada não ao modelo, ao paradigma militar,

mas um modelo próprio, através de uma nova filosofia. Não é uma guerra, mas

crime a reprimir e prevenir(CERQUEIRA, 2001, p. 47-48).

A acusação que foi lançada contra aqueles que propõem direitos humanos

de criminosos é que estariam despreocupados com as vítimas, além de que o

simples fato de conceder direitos humanos aos criminosos é algo não aceito pela

sociedade. Era esta a bandeira dos partidos que se coligaram no Rio contra o

governo Leonel Brizola, 1983/87. E reconhecia Nazareth Cerqueira que falharam

em sua democratização da polícia, pois não foi possível, naquela época,

ultrapassar a barreira ideológica, nos policiais que resistiram por não entender que

a sua tarefa era prender e não matar (CERQUEIRA, 2001, pp. 49-50).

A Constituição Federal, com um programa de um estado democrático, foi

então acusada de restringir a atividade policial, devido às novas garantias

individuais que ela determina. E duvida-se qual é o melhor regime para a

população, o militar ou o democrático.

Nazareth Cerqueira trabalhava com dois conceitos que não podemos

deixar de lado: a chamada insegurança objetiva, consistente os danos reais

definidos pela freqüência e custos das ocorrências, e a chamada insegurança

subjetiva, danos percebidos com base no medo de ser vitimizado e no custo para a

própria vítima (CERQUEIRA, 2001, p. 51).

Segundo o autor esta última parece ter influenciado a decisão política

relativa às políticas de segurança pública. A insegurança subjetiva dá outra

dimensão ao problema, agiganta-o. Pesquisas referidas pelo autor demonstravam

que se, por um lado, a insegurança objetiva se estabilizava, ou apresentava

declínios em determinados fragmentos, a insegurança subjetiva atingia patamares

bastante agravados.

Para entender isto, não devemos escapar do processo de formação de

opinião pública, dominado pelos meios de comunicação, que, mais do que refletir

a realidade objetiva, acaba refletindo a ideologia e crença daqueles que a

divulgam. E o fazem através de uma receita simples de divulgação do medo,

repetindo a divulgação do fato, aumentando a sua repercussão. Defendendo seus

próprios objetivos, que, naquela época, eram a retirada desta política democrática

do governo.

No que tange à análise dos meios disponibilizados pela Constituição

Federal para a retomada da ordem pública, ou seja, a intervenção federal ou o

estado de defesa, são estes propostas a remilitarização. São instrumentos de

manutenção da ditadura. A concepção militarista é reforçada pelas teses de defesa

social.

Há duas posições quanto ao conflito. Uma primeira vê o conflito

negativamente, sendo que a sociedade é percebida como uma estrutura estável,

devendo o conflito ser eliminado. Para a outra posição, o conflito é próprio da

estrutura e das dinâmicas sociais, servindo como fator de crescimento e vitalidade

nas relações sociais. A partir de então, é possível estabelecer uma noção de ordem

pública autoritária e democrática. Nos regimes totalitários prevalece a idéia de

unanimidade, e exclusão do conflito. No regime democrático deve haver espaço

para o consenso e para o dissenso.

No regime autoritário, fica mais fácil definir o crime nesta perspectiva do

conflito, através do princípio do bem e do mal, e apresentar a sociedade sempre

em dois blocos, o bom e o mal, ficando a critério do poder definir a qualidade dos

agentes, se de um lado o capitalista ou o comunista, se de um lado o bandido ou o

homem de bem. Excluir o bandido da raça humana e negar-lhe os direitos da

pessoa humana é o objetivo ao final alcançado. Definida está a legitimidade da

polícia para castigar, torturar e até matar bandidos. É o direito da polícia

legitimado por muitos setores da sociedade civil.

A nossa Constituição determina alguns princípios: democracia, pluralismo

e dignidade da pessoa humana. E estatui que nas relações, o nosso país será regido

pela prevalência dos direitos humanos.

Tratando a polícia e direitos humanos, Nazareth Cerqueira sintetizou

manual do Centro de Direitos Humanos da ONU, que tentou implantar na polícia

fluminense, e que não teve continuidade por razões políticas. O manual constata

que no exercício da função policial não há espaço para meio termo, ou os direitos

humanos são respeitados ou são violados. Ademais procura trabalhar com

questões trazidas pelos policiais acerca da prática de apresentar-se de forma

diversa das exigências legais ou administrativas, propondo como solução mudar a

ideologia. “Não mais inimigos a combater, e sim diferentes clientes a servir”

(CERQUEIRA, 2001, p. 673).

Devemos nos ater à crítica feita à afirmação de que os criminosos

perderam a cidadania quando afrontaram a lei, ou de que os criminosos são feras,

não são humanos, e, portanto, não podem ter os direitos respeitados. O manual

referido elenca princípios como a igualdade de direitos, inalienabilidade dos

direitos, universalidade dos direitos. Ora, este último nos impede de excluir os

criminosos e os favelados. Aos favelados é certo que se atribuem os mesmo

direitos relativos à inviolabilidade de domicílio, determinado para todos pela

Constituição Federal. Ressaltam-se aspectos éticos dos policiais, no curso das

investigações, tais como a presunção de inocência, respeito à honra e à

privacidade, tratamento digno às vítimas e testemunhas de crime.

No caso brasileiro, o que nos toma é a importância dada ao inquérito,

maior do que à investigação, mais importante o escrivão do que o investigador.

Não temos a formação de bons interrogadores, de bons peritos de local do crime,

devido a um advogadização – como chama Nazareth Cerqueira – da polícia, que

junto com a militarização tem determinado o padrão de incompetência policial. E

assim, a discussão contra os direitos humanos acaba por afastar o debate sobre

este tema ético, técnico e legal (CERQUEIRA, 2001, p. 75).

Ignorando-se os direitos humanos, premiamos os policiais com títulos de

bravura, quando seus adjetivos corretos, em muitos casos, seriam covardes.

Com o definido propósito de promover campanhas de lei e ordem,

discursos do porte de que os direitos humanos só se preocupam com direitos dos

criminosos, esquecendo-se dos direitos das vítimas, ganha força. A mídia e outros

setores interessados no endurecimento penal realçam a violência dos crimes

pequenos, tais como pequenos furtos, deixando ocultados os crimes econômicos,

do poder político, e atentados contra interesses coletivos.

Devemos acrescentar que o mecanismo formal de controle tem o processo

de criminalização primária oriundo das representações do público consumidor em

relação com a imprensa, através de um debate povoado pela banalização festiva

da violência decorrente do excesso de resposta estatal. O Estado pode ser

caracterizado como um vingador, que internalizou o ódio comunitário legitimador

de uma verdadeira política criminal do terror (CARVALHO, 2003, p. xxi).

A criminalidade é um fenômeno sociopolítico, inerente a qualquer tipo de

sociedade. Nega-se a anormalidade do crime e do criminoso. E os instrumentos e

meios utilizados na prevenção devem sofrer ruptura traumática, estabelecendo-se

um relacionamento mais harmonioso e humano entre polícia e sociedade,

preocupando-se em evitar perdas de vidas humanas ou vitimização desnecessária,

buscando-se criar alternativas na área de inteligência policial, administração de

conflitos e negociação.

Nazareth Cerqueira pôde citar os estudos realizados por Eugenio Raúl

Zaffaroni acerca dos direitos humanos nos sistemas penais na América Latina,

com o exame dos defeitos práticos do sistema penal, gerados pelas práticas dos

diferentes grupos humanos que constituem os diferentes setores do sistema de

justiça criminal. Defeitos que acabem sendo disfarçados por aqueles grupos

humanos com a construção de ideologia de justificação públicas e privadas

(CERQUEIRA, 2001, p. 196).

Deve ser superada a idéia de que as declarações de direitos humanos

impõem somente direitos, e não deveres. Vale lembrar que a cada direito

corresponde um dever, que deve ser exercido nos limites impostos para a

realização do direito e do não prejuízo a outros direitos. Isso limita conclusões

largamente apresentadas como as de que os fins justificam os meios ou de que a

crueldade dos criminosos justifica qualquer abuso de poder do sistema penal

como um todo.

Desta forma, propunha Nazareth Cerqueira que deve haver uma relação da

polícia, com o poder civil e com a comunidade, nas atividades de controle da

criminalidade e dos direitos políticos na manutenção da ordem. Em um modelo

democrático, as iniciativas individualizadas devem ser restringidas, de forma a

restringir atividades policiais incompatíveis com o plano de governo, políticas que

não atendam a objetivos da lei e da justiça. E assim a mútua obrigação de prestar

contas. Não se esquecendo do alerta proposto por Nazareth Cerqueira de que é

necessário encontrar formas políticas de assegurar o comprometimento das

autoridades públicas da área da segurança com as políticas de direitos humanos

(CERQUEIRA, 2001, pp. 199-202). Necessária a participação popular que,

afirmava, só é alcançada se há confiança popular, conquistada pelo bom

relacionamento que se dá quando as práticas de ambas se apóiam em um respeito

mútuo.

Num modelo democrático em que são pensados os conflitos como forma

de crescimento, acredita-se mais nos mecanismos de negociação e de persuasão,

podendo-se falar em construção da ordem pública. Não se deve partir do conceito

de manutenção da ordem pública, que determina uma conduta baseada na força,

pensando o conflito social como desordem ou anarquia.

Do outro lado do processo encontramos a execução penal, como o que já

mencionamos anteriormente, que se apresenta num modelo de feições

inquisitoriais. Não só a legislação penal escrita, mas também o modo pelo qual é

ela executada. Trabalha com a reforma moral do apenado, restringe direitos

primários, ao ponto de aniquilá-los e veda qualquer manifestação insurgente

(CARVALHO, 2003, p. xxvi).

Sob um olhar do garantismo na América Latina, Salo de Carvalho coloca

como valores relativos a um processo de legitimação de um Estado Democrático

de Direito, a secularização e a tolerância, dentro de um modelo jurídico-penal

contratualista liberal, tendo em vista as especificidades históricas da ilustração.

Partindo do garantismo, Salo explica que Luigi Ferrajoli propõe, em sua obra

Diritto e Ragione, dois sistemas ideais, dois tipos ideais de Estado e de direito, em

que o garantismo se coloca como modelo de tutela dos direitos fundamentais. De

outro lado, podemos encontrar o saber inquisitorial. Na Inquisição está o modelo

ideal de implantação de regimes totalitários. Portanto é necessário voltar os olhos,

mormente nos países de realidade periférico-marginal, em que suas práticas são

verdadeiras permanências. Surgiu a Inquisição como reação às doutrinas heréticas

que ameaçavam o poder da igreja entre os séculos XII e XIII (CARVALHO,

2003, p. 6-21).

No sistema inquisitorial a análise não recairia sobre fato (pré)determinado

pela lei penal válida mas, ao contrário, dirige-se à personalidade da pessoa,

analisando a integridade da pessoa julgada. E, assim, faz com que o magistrado se

de um comportamento policialesco, preocupando-se antes com a pessoa do réu do

que com as provas do fato, que passavam então, a servir para demonstrar o acerto

da imputação. Assim, a condenação necessitava da confissão, o que fazia com que

fosse ela obtida por qualquer meio, inclusive a tortura. O indiciado é o detentor de

toda verdade histórica, e sua confissão servirá como principal fundamento para a

sentença condenatória.

O autor referencia o final do século XV como um momento de rupturas,

tendo ao lado das invenções técnicas, transformações estruturais de uma ordem

que coloca o homem em libertação, ‘divinização do homem e humanização de

Deus’. O homem surge como a medida de todas as coisas, e o mundo passa por

um processo de secularização que leva ao nascimento da idéia da tolerância. É

interessante a demonstração da relação existente entre esta transformação

estrutural e a descoberta do novo mundo. Um novo mundo que apresenta um

estado natural diferente daquele que se queria impor a velha Europa, e obriga a

revisão destes postulados. Politeísmo, organização social distinta, são algumas das

descobertas (CARVALHO, 2003, pp. 23-25).

Salo de Carvalho trabalha com o momento em que se deu, então, a ruptura

deste estado natural em que o homem vivia em uma relação de igualdade com o

outro, sem estar preso e submetido às marras do Estado (CARVALHO, 2003, pp.

24-35). Analisa Locke, Hobbes, Boètie. Este último critica o estado servil como o

resultado do mau encontro do homem com o Estado. Locke trabalha com o estado

natural de forma diversa, interpretando-o como um estado em que o homem seria

governado pela razão, que lhe imporia os limites necessários ao seu atuar de

forma a não invadir a esfera de individualidade e direitos do outro. Ou apresenta

que, em não vindo a razão, e aí se socorre de Hobbes, Locke reconhece no estado

de natureza um estado de guerra, dominado pelas paixões, pelo instinto e pelo

egoísmo. Ambas as formas iniciais da criação de uma sociedade política, com a

transferência do poder privado ao poder público, saída da barbárie e opção pela

civilidade. Esta concepção se baseia em mito, cuja constatação empírica é

irrelevante.

Dentro do garantismo ilustrado e analisando a distinção entre os

pensamentos de Hobbes e Locke, Bobbio, traz a renúncia ou não de direitos

naturais ou ingerência do Estado na esfera das liberdades. Se para Hobbes há

plena renúncia, para Locke o estado civil e a nomeação da autoridade teriam como

fim a garantia destes direitos. O pacto se constrói como instrumento de direitos e

deveres recíprocos entre o homem e o estado. É isto que possibilita o Estado atuar

para evitar que alguma liberdade seja suprimida, ou que direitos naturais sejam

desrespeitados e lesados. A limitação do poder estatal se apresenta, de acordo com

o consenso, neste sentido.

Interessante salientar que a consciência permanece inteiramente liberta.

Esta não pode sofrer qualquer atuar do Estado. Mesmo se direcionada ao ilícito.

Ao Estado o que interessa é o fato. A tolerância nasce aí como a secularização, a

separação entre os juízos individuais (moral) e externos (direito). Delito não é

mais sinônimo de pecado. Também defendidas por Voltaire, as idéias de Locke

sobre a tolerância ganham relevo no atuar do magistrado, inclusive no que tange à

manipulação probatória.

Necessária então a colocação, que utilizamos para consignar aqui, sobre o

direito de resistência, mecanismo de resistência (propriamente dita) do indivíduo

às ingerências abusivas do Estado. A crise do Estado civil, que passa a aniquilar, e

não preservar, as liberdades e direitos naturais, permite o retorno ao estado

natural. O direito de resistência seria a oposição do indivíduo a um estado civil

que não mais se encontra legitimado. Duas categorias Salo traz de Locke, a

desobediência e a resistência (CARVALHO, 2003, p. 36-44). A resistência é um

agir contra o poder. A desobediência é o descumprimento de uma ordem, uma

atitude passiva. Embora pareçam conceitos opostos, servem ao mesmo fim, desde

que deslegitimado o estado civil.

Analisando a recepção do contratualismo pelo Direito Penal, Salo afirma

que o contrato por ser artificial, e o homem livre e autônomo, este pode a qualquer

momento questionar sua validade. Serve à burguesia, então, como forma de

questionar a hegemonia da nobreza fulcrada no poder político pré-definido por

Deus. Com o abandono das idéias religiosas, e a laicização do direito, o delito não

é mais violação do divino, mas transgressão livre e consciente do homem da

norma jurídica promulgada pelo Estado, e a penalidade retributiva a este

inadimplemento. O programa de intervenção penal é limitado, centrado na tutela

dos direitos individuais, e presume o Estado como um propenso violador destes

direitos da pessoa humana.

É esta concepção defendida por Feuerbach e Marat, como reproduz Salo

de Carvalho, de que o Estado é (pré)destinado à violação dos direitos

fundamentais, necessária sua limitação. Esta é uma visão contratualista que

admite o direito de resistência ao Estado e concebe o delito como ação livre. Esse

direito de resistência nasce quando é descumprida a função do contrato. Não,

então, aquela renúncia a direitos total prevista por Hobbes, Kant e Rousseau, mas

uma preservação de direitos naturalmente inalienáveis, para Locke, Feuerbach e

Marat. Esta concepção contratualista serviria, para este último, a garantir a

igualdade numa sociedade em que os bens da vida são desigualmente distribuídos.

Salo apresenta uma conclusão, referenciando-se em Eugenio Raúl

Zaffaroni, que,

ao irromper o giro metodológico na estrutura de pensamento liberal contratualista, incluindo como direitos fundamentais os direitos sociais, e ao sugerir uma práxis republicana e constitucionalista, Marat antecipa o pensamento ‘liberal-socialista’. Representa, portanto, versão otimizada do garantismo clássico, obscurecido, porém, pelas teorias ilustradas moderadas e pelo pensamento etiológico defensivista vindouro. Não obstante, estrutura a primeira versão da criminologia radical (CARVALHO, 2003, p. 52).

Se o marco do garantismo penal contratualista foi romper o laço entre

direito e moral, hoje a teoria garantista intenta romper outro laço, desvincular

direito e natureza.

A Escola Positivista italiana, já referenciada, advogava um discurso

científico a respeito da inferioridade bio-psico-antropológico do homem

delinqüente. É a relação entre direito e natureza que não permitia duvidar da

superioridade branca européia e das classes dominantes e dos trabalhadores

disciplinados sobre as classes tumultuosas. Essa escola, como vimos, nega

totalmente o livre-arbítrio. O crime não é mais resultado da vontade livre do

indivíduo de transgredir a norma jurídica, mas resultado da influência de

(pré)condições individuais que influem no agir do sujeito, ou seja, as condições

individual, física e social. Perde força o princípio da culpabilidade, que cede lugar

ao a periculosidade – que deve ser tratada. O crime e a criminalidade são, então,

concebidos como um fato natural, o que fragiliza outros dois princípios, o da

legalidade e da jurisdicionalidade. A questão é científica e não legal ou

jurisdicional. O direito penal é do autor, e não do fato-crime, e o que importa é a

modificação deste outro criminoso.

Salo de Carvalho traz-nos o pensamento de Zaffaroni, novamente

consubstanciado em um desenho de uma nova estética do mal, que identifica a

inferioridade humana com a feiúra, concebida de acordo com os padrões ideais

europeus (CARVALHO, 2003, p. 57).

Esta Escola Positiva ganha adeptos no direito penal brasileiro, e foi Nina

Rodrigues, catedrático de Medicina Legal na Faculdade de Direito da Bahia que

se destacou como seu principal divulgador. Mas autores como Clóvis Beviláqua e

Afrânio Peixoto também afirmavam a necessidade de impor freios à miscigenação

racial, analisada através de uma teoria da degeneração.

Tobias Barreto foi quem se manteve fora deste pensamento, direcionando

incisivas críticas, concluindo que as idéias de Lombroso são paradoxais, eis que

retiram a utilidade da função de julgar a partir do momento que reconhecem o

delito como um fato natural e o autor do delito como um doente incorrigível. Ele

foi o pioneiro da resistência à esta ideologia racista e reacionária disfarçada de

ciência na América Latina.

Este pensamento perdeu seu prestígio no período pós-guerra em virtude de

suas conseqüências, mas ganhou feições humanitárias a partir do movimento da

Nova Defesa Social, que identifica os sujeitos perigosos e visa sua reabilitação a

partir de uma preocupação moral de emenda. Foi popularizado por Marc Ancel. O

advento da dogmática serviu para afastar a criminologia, não ousou distanciar-se

das premissas clínicas, mas coloca a criminologia numa mera função de justificar

a pena. Os princípios se erigem da proposta de uma pena-de-defesa, princípios de

defesa social e de incapacitação, de emenda, de intimidação especial e geral e de

retribuição (CARVALHO, 2003, pp. 70-73).

E ganha força pois lança um discurso legitimante do sistema penal num

momento em que, após a Segunda Grande Guerra, havia grandes críticas às

doutrinas jurídico-penais e criminológicas. Muito por conta da falta de capacidade

dos sistemas jurídicos do século XX em efetivar os direitos fundamentais.

Mas o pensamento etiológico se potencializa devido à circunscrição do

direito à esfera da natureza e à concreção substancializa do juízo. Tanto a reação

social quanto o paradigma dos direitos humanos foram individualizados na

prática, gerando um novo discurso baseado na estética do mal. O movimento de

Defesa Social proporciona uma reformulação de modelo etiológico, invertendo o

discurso dos direitos humanos. Nasce uma criminologia administrativa nociva às

garantias e aos direitos fundamentais, assim como aquela de Lombroso, Ferri e

Garófalo. Percebemos isto com as práticas administrativas e judiciais do processo

penal, tendo como permanência o conceito de periculosidade, por exemplo

(CARVALHO, 2003, pp. 76-77).

O programa político-criminal lança suas bases sobre uma revisão teórica

de legalidade penal e processual penal. O pensamento iluminista, concorda Salo

de Carvalho com Ferrajoli, foi o momento mais alto da história da cultura

penalística, uma vez que a ele se deve a formulação mais incisiva da maior parte

das garantias penais e processuais dentro da forma de Estado Constitucional de

Direito (CARVALHO, 2003, pp. 80-81). Propõe-se um saber alternativo à defesa

social, mormente pelos movimentos criminalizados dos discursos de Lei e Ordem,

Tolerância Zero e Esquerda Punitiva. O que vemos hoje é a solidificação de um

Estado Penal, potencializado pelas teses de um estado social mínimo (ou

inexistente) e um estado penal máximo.

Dentro do modelo de direito penal, pode se verificar na denominada

criminalidade contemporânea e num direito penal contemporâneo, devido ao

processo de alta demanda criminalizadora, uma inflação legislativa, que resulta na

perda dos limites substanciais entre ilícitos penais e administrativos. Ocorre que

isto produz uma dupla falência, de um lado manifestada na ineficiência e de outro

na tutela dos indiciados contra as punições injustas.

O principal legado do movimento penal ilustrado consiste na imposição de

vínculos externos de legitimação à lei penal. O princípio da secularização

estabelece o limite da atividade legiferante e um programa de intervenção mínima.

Hoje, com a internalização no sistema constitucionais dos direitos fundamentais,

temos uma nova análise do plano de validade das leis, tendo estes valores

constitucionais como mecanismos de avaliação da substância das novas regras. E

concebe-se um programa político-criminal minimalista como estratégia para

minimizar os direitos e reduzir o impacto penal na sociedade. O garantismo se

coloca como um programa de satisfação de valores substanciais, trabalhando-os

como condições de legitimação jurídica das proibições e das penas, de forma a

minimizar o poder punitivo.

Há matérias sobre as quais sequer a unanimidade pode dispor,

fundamentalmente, à igualdade dos cidadãos perante a lei. A garantia dos direitos

fundamentais não pode ser sacrificada nem em nome do bem comum ou público.

Os direitos fundamentais deveriam ser objeto e o limite do direito penal. E não se

trabalha dentro do garantismo, ou melhor este lança críticas sobre a argumentação

de que a transferência da vingança privada para a vingança coletiva do Estado é o

objeto e objetivo do pacto social. Percebe-se a sanção como tutela do indivíduo

que violou a norma, sendo alternativa à guerra, é uma justificativa da lei do mais

fraco, no momento do crime a parte ofendida, no momento do processo o réu, e

no momento da execução penal o condenado. Frontal oposição com aquela defesa

social.

Ferrajoli, expõe Salo de Carvalho (CARVALHO, 2003, pp. 102-107),

propõe a partir da incorporação pelas normas constitucionais dos direitos

fundamentais, uma revisão das esferas de validade e vigência das normas.

Vigência diz sobre a forma dos atos normativos e validade corresponde ao

significado, é uma questão de coerência ou compatibilidade das normas

produzidas com os valores materiais constitucionais. Isto permite uma análise

acerca de duas visões diferenciadas da democracia: formal substancial. É uma

alteração da teoria do Estado e da democracia. Para uma democracia formal, seus

padrões estão restritos à legalidade formal, enquanto que na democracia

substancial os direitos e garantias fundamentais são dotadas de caráter vinculante,

normas substanciais limitativas ou imperativas do Estado Constitucional de

Direito. Vínculos contra possíveis intenções despóticas ou paternalistas da

maioria.

A idéia de que o Estado é então direcionado ontologicamente à proteção

de direitos fundamentais, permite a afirmação de que esta legitimidade é externa,

delimitando os pressupostos normativos de tolerabilidade do sistema. São os

direitos humanos que propiciam os parâmetros avaliativos do nível de justiça.

O direito se distancia das outras instâncias primárias de controle social,

tais como a família, escola, em razão da sanção, da coerção. Afirma determinados

valores como restrições coercitivas dos bens da vida. Interessante se faz o

apontamento de Salo de Carvalho, de que Max Weber entendia que o Estado

moderno constituir-se-ia numa comunidade humana que reivindicaria o

monopólio da violência física. Então, levanta Salo de Carvalho, a indagação de

Kelsen acerca da diferença do Estado para um bando de saqueadores, trazendo a

solução do problema para o âmbito da legitimidade do poder político, dentro da

concepção garantista, centrada nos direitos humanos (CARVALHO, 2003, pp.

117-118).

A imposição da liberdade de mercado tem produzido um modelo com

tendências autoritárias, que está aparentemente na esfera da economia, mas que

lança seus braços para o sistema penal, porquanto descarta o valor “pessoa

humana”, e faz imperar a lei do mais forte. Ora, a globalização econômica se

relaciona com novos tipos de exclusão social, maximizando o aparato de controle

penal/carcerário. Substitui-se o Estado Previdência por um Estado que Salo de

Carvalho bem denomina de Estado Penitência. Tudo porque alguns lugares devem

ser reservados aos inconvenientes (CARVALHO, 2003, pp. 215-219). O

confinamento é bem uma maneira de neutralizar uma parcela grande da população

que não é necessária à produção e para a qual não há trabalho ao qual reingressar.

5.5

A realidade e o discurso da democracia (exceção) brasileira

No Brasil, vivemos sob o programa do neoliberalismo, cuja base teórica

pode ser definida por uma atuação estatal reservada a áreas em sua atuação é

indispensável à sua manutenção, como define Juarez Tavares em sua crítica ao

crescimento da legislação penal, ou seja, saúde pública, saneamento, educação

básica, segurança (TAVARES, 1997, p. 44). O discurso de que deve o Estado

apenas intervir para proteger o mercado e não no mercado não corresponde à

realidade. O Direito Penal, como instrumento de controle social, serve às leis de

mercado.

Afirma Flavia D’Urso (D’URSO, 2005, p. 15) que “a nossa Constituição é

cidadã, característica, ainda por ora, irreconciliável com a primazia do mercado e

consumidores”, que temos então um programa que prima pela dignidade da

pessoa humana, e não uma simples filiação doutrinária a uma teoria que prima

pelos direitos humanos.

Entretanto, não é novidade que o Direito Penal tem se estabelecido desta

forma, vemos isto desde Rusche e Kirchheimer até Gizlene Neder. Os primeiros

analisando a punição como mecanismo assistente à regulação e controle do

mercado – quando há necessidade de mão-de-obra, a pena das galés, quando há

mão-de-obra excedente, a pena de morte. A segunda, analisa dentro da conjuntura

brasileira, que desde a formação da burguesia nacional se orienta nesse sentido,

manipulando o sistema penal de forma a que este sirva ao mercado, como vimos

pela criação de penitenciárias industriais e colônias agrícolas (NEDER, 1995).

Ademais, tal modelo neoliberal vê apenas como entrave ao pleno

desenvolvimento de seus objetivos, suas políticas, a questão da proteção de

direitos fundamentais. Ainda assim, afirma-se uma democracia.

Tal como afirma Bauman, a democracia liberal é um dos discursos

utópicos, porém um dos mais poderosos. Na realidade se apresenta simplesmente

como um eficaz instrumento de manutenção do Estado como tal. Ela se apresenta

como um discurso poderoso que não sugere a reflexão sobre o problema.

Discussão esta que só surge – quando surge – em situações de dor.

A realidade democrática brasileira é embutida de paradoxos. Numa

conjuntura de discurso programático de uma sociedade formalmente democrática,

permanecem elementos a ela opostos. E mais ainda, são criados elementos

opostos que antes, no estado declarado de exceção, não existiam. A expectativa de

proteção de direitos humanos e de cidadania plena não se realizou. Ao contrário,

um clima de desconfiança e de medo é experimentado pelas classes vulneráveis, a

imensa maioria miserável, de excluídos. Tudo em virtude dos arbítrios e

ilegalidades praticados em nome da ordem (DORNELLES, 2003, p. 111).

O paradigma do organicismo, como ressalta Zaffaroni, de manutenção da

ordem, com o sacrifício de direitos humanos, é antidemocrático (ZAFFARONI,

2001, pp. 48-50). A diferença é pressuposto da democracia e o respeito à

diferença seu fundamento. Manter a ordem implica em eleger elementos da

sociedade que estariam supostamente mais preparados para decidir qual a ordem a

ser preservada e através de quais instrumentos.

Isto tem imposto um limite no processo de democratização. E não podia

deixar de ser diferente. A programação democrática não é o remédio para todas as

arbitrariedades costumeiras à ordem precedente. E ao contrário do que se podia

imaginar, não são os pontos negativos que são definidos como a chave do

problema (DORNELLES, 2003, pp. 121-123). O medo parece fundamentar a

tolerância a estas práticas autoritárias, com o pensamento consolador das classes

dominantes de que a democracia não é capaz de manter a ordem. Ela, democracia,

precisa de um pouco de impureza, arbítrio, para manter a pureza, a ordem.

Como diz Lola Aniyar de Castro, “regímenes que fueron autoritarios

extienden a la democracia, sus viejas maneras de responder” (CASTRO, 2003, pp.

39-40).

A política criminal que combate direitos fundamentais já é nossa

conhecida, inclusive no Brasil, quando convivemos com a política de segurança

nacional, que é baseada na extensão da repressão criminal. Em nome do interesse

público – consubstanciado então na doutrina da segurança nacional – pode-se

criminalizar toda conduta que contenha qualquer ameaça à ordem.

Preocupa-se tal política criminal orientada em manter a ordem e como

resposta ao medo, em primeiro plano, em mostrar a sua efetividade. Atos de

bravura, estatísticas policiais que premiam os policiais, levando em conta o

número de registros de ocorrência que culminam em sentenças penais

condenatórias. O discurso da efetividade na repressão, e não de eventual

identificação do culpado. A visão é funcional de demonstração da efetividade do

sistema (TAVARES, 1997, p. 44).

O modelo que prima pela efetividade, o modelo de disciplina, de

manutenção da ordem, que tem como norte o desaparecimento do medo, não pode

ser dirigido ao tal culpado por aquele específico delito, mas uma classe, a classe

vulnerável, que oportunizam a desordem (TAVARES, 1997, p. 45).

Tudo isto se encaixa muito bem dentro da globalização (BAUMAN, 1999

(a)) e da fragilidade dos laços humanos (BAUMAN, 2004), em que o medo e o

individualismo determinam as regras de convivência. Não é a globalização que

gera esta política criminal, mas todo o sistema adotado de exclusão de

determinada categoria vulnerável, que é excluída da categoria daqueles que

devem ser protegidos, mas sim incluída na categoria daqueles que devem ser

controlados, sob pena de se instaurar o caos, a desordem – tão temidos.

Interessante remontar à lição de Agamben e fazer a relação proposta por

Vera Malaguti Batista (BATISTA, V.M., 2002, p. 387), entre o reconhecimento

de direitos e liberdades formais e uma soberania de exceção, dentro de uma

conjuntura democrática. Se, como nos lembra Vera e Agamben, para Carl Schmitt

soberano é aquele que decide sobre o estado de exceção, hoje a exceção virou a

regra, como instrumento para manutenção de supostas democracias, hoje

colapsadas. Não há como manter a estrutura brasileira, que não dá conta de

resolver o problema da insegurança e do medo.

Adotar práticas de exceção, e uma delas é a criminalização de direitos

humanos, como o foi na ditadura com a liberdade de expressão, informação e

reunião, hoje, tudo permanece nas mãos do direitos penal, que não mais

criminaliza tais direitos, mas outros tantos. Estamos alcançando um patamar em

que a própria liberdade é crime.

Pensar num sistema penal de não discriminação faz-nos esbarrar nos

problemas da sociedade brasileira que profere uma cultura de discriminação,

recente escravidão e crenças teóricas fundadas na interpretação positivista do

controle do crime. O problema se encontra inserido, inclusive (e por que não dizer

principalmente?) nas universidades, onde há uma completa desconsideração pelo

ensino dos direitos humanos.

Não é de hoje que se pode afirmar o ensino (e o ensino jurídico também)

como instrumentos de controle social. Serviu como forma de imposição de uma

disciplina de origens aboslutistas, como nos lembra Gizlene Neder (NEDER,

2000, p. 169).

Podemos tratar de questões tais como a já aventada utilização do direito

penal como solução para todos os males. É tal como nos disse Zaffaroni:

A novíssima legislação penal que vai surgindo, por força da televisão, das

mídias, dos jornais, daqueles que estão reclamando maiores penas, é uma

legislação cada vez mais absurda, que vai criando um novo autoritarismo, que não

é o velho autoritarismo de entre guerras. Não. Não é o fascismo, não é o nazismo,

não é stalinismo. Não. Nem sequer é isso. Aqueles autoritarismos pelo menos

eram coloridos, pelo menos tinham formações, divisas. Não é esse não. Pelo

menos aqueles faziam uma arquitetura neoclássica. Não é esse. Não. É um

autoritarismo bobo, é um autoritarismo descolorido, é um autoritarismo que está

se produzindo quase por inércia. É a expressão mais clara da pulsão de morte, se

falarmos em termos freudianos. É muito mais clara do que a dos velhos

autoritarismos (ZAFFARONI, 2005, p. 26).

Como já dissemos, a dor de uma mãe não pode alterar a legislação penal.

Uma novela de televisão não pode nos convencer que o melhor a cadeia para

aquele indivíduo. É a mesma perplexidade com que inicia Vera Malaguti Batista

seu Difíceis Ganhos Fáceis (BATISTA, V.M., 1998, p. 27), não podemos nos

deixar induzir por um programa de televisão que nos quer convencer de sua

programação criminalizante9.

É uma “programação”10 que inspirada ou oriunda dos países dominantes

criam demandas de criminalização e de um atuar idêntico ao dos personagens

“que aniquilam o mau”, desrespeitando direitos humanos, agindo como

verdadeiros vingadores da sociedade. Isto acaba por produzir o que Zaffaroni

chama de produção de indignação moral que toma parte em todas as classes,

vulneráveis ou não, e que – mais importante – exige um comportamento do estado

(ZAFFARONI, 2001, p. 129).

Podemos afirmar, como o faz Juarez Tavares, que com a falência do

estado previdência, ou estado assistencial, a eficácia do sistema deixa de ser

medida pela qualidade de serviços públicos essenciais em geral, e passa a ser pela

crescente legislação penal – tomada como remédio para o mal da desordem

(TAVARES, 1997, p. 48). O modelo neoliberal não se orienta, de igual forma, por

normas penais de conteúdo proibitivo, mas essencialmente mandamental,

9 Interessante o trocadilho que se pode fazer aqui com a palavra programação. Não é só a grade de horários de um canal de televisão, mas de fato a realização de um objetivo que supera os limites bidimensionais dos aparelhos. É uma visão que se vem impondo. Um discurso que passa a ser da audiência, pois é nela incutido. Através de uma criança brutalmente assassinada por um traficante – morte a todos os traficantes. Através de um jovem da alta sociedade que a família descobre viciado, e que, portanto, deve se submeter à justiça penal terapêutica. São tantos. 10 Uma programação em duplo sentido, ou seja, no sentido da grade de assuntos trazidos pelos canais de televisão, e no sentido de constituir um programar um discurso da realidade, da opinião pública, do bem e do mal, do eficaz e do ineficaz.

determinando qual conduta deve o cidadão tomar para gerir sua própria vida

conforme a ordem a ser respeitada.

Lola Aniyar de Castro afirma que o Estado Penal cresce como técnica de

sobrevivência de um Estado minimalista ou de escassa intervenção. O Estado se

diminui como um todo e, portanto, só lhe resta uma única arma de política social,

ou para impor uma resposta aos grandes problemas sociais, uma maior

repressividade, que não é apenas a via de menor esforço, senão a salvaguarda de

suas últimas funções (de CASTRO, 2003, p. 39).

E ainda, Geraldo Prado, mais uma vez à luz do constitucionalista Paulo

Bonavides, afirma que se abandonarmos de vez o Estado Social, que tem como

suas bases à preocupação com problemas sociais distintos da criminalidade – que

inclui e prioriza um Estado Previdência – podemos estar abandonando de vez a

independência como um país de terceiro mundo em relação às grandes potências

mundiais. Esse é (ou era, ou pode vir a ser) o nosso maior (ou único) trunfo

(PRADO, 2005, pp. 156-157).

Ao verificarmos o que realmente é a violência, partindo inicialmente do

conceito de direitos humanos, como o faz Maria Lúcia Karam, alcançaremos suas

mesmas conclusões, quer sejam, de que a violência não parte de fora do Estado

para atacar a ordem, mas a violência – e não o crime – e que o papel da

criminalidade convencional é insignificante (KARAM, 1991, pp. 166-167).

Também se desfigura o discurso de que a violência parte das classes vulneráveis

que intentam contra a ordem burguesa.

É a classe vulnerável – e por isso adotamos, como os que serviram de base

para esta pesquisa esta designação – os mais violentados em suas reais

necessidades fundamentais (metabolismo, reprodução, bem estar corporal,

crescimento, tratamento e assistência, movimento, segurança).

Não podemos contar mais com as únicas armas que poderiam nos permitir

protestar. Como atenta Zaffaroni, já passamos pela revolução mercantil, pela

industrial e hoje vivemos a tecnocientífica (ZAFFARONI, 2001, pp. 118-121).

Esta torna dispensável a mão-de-obra barata e a disponibilidade de matéria prima.

Estas as nossas únicas armas, que não afetam a todos em nosso continente, mas

primeiramente as classes vulneráveis, com um aumento do percentual da pobreza

absoluta. Nutriente do sistema penal latino-americano.

É exatamente o que muda a economia capitalista. São os quatro aspectos

citados por Rosa Del Olmo (Del OLMO, 2004, p. 44), quanto à nova era

tecnológica – com novas fontes de energia, maquinaria e indústrias –, voltada ao

consumidor doméstico – como se viu nos Estados Unidos –, de concorrência

internacional – daí a questão da globalização – e a necessidade de impor um

Estado interventor com novos padrões políticos. Para a Escola Positivista, como já

foi visto, tal transformação não impõe nenhuma dificuldade a seu discurso – fácil

identificar os povos marginais como inferiores devido as suas distintas e inferiores

condições biológicas.

Estamos a ponto de concordar com Zaffaroni no que tange ao fato de:

…além de demonstrar que nossos sistemas penais marginais violam direitos humanos, revela que tais violações não provêm de nossos sistemas penais periféricos, sendo produto de características estruturais dos próprios sistemas penais. Em resumo, o exercício de poder dos sistemas penais é incompatível com a ideologia dos direitos humanos (ZAFFARONI, 2001, p. 147).

E isto (Del OLMO, 2004, p. 63) se explica pelo próprio exemplo que o

autor nos traz e que por ora ressaltamos (ZAFFARONI, 2001, pp. 148-149).

Impossível compatibilizar com o princípio da liberdade e da igualdade, basilares

aos direitos humanos, a condenação de Jesus Cristo ou de Francisco de Assis, o

primeiro condenado à morte, o segundo a prisão manicomial. Incompatíveis o

princípio da liberdade e o princípio da igualdade com o sistema penal cristalizador

de desigualdades.

Outra criminalização de direitos humanos foi trazida recentemente por

Silvio Luiz Maciel, tratando de Ocupações Urbanas e Direito Penal, quanto ao

direito ao abrigo, como parcela necessária ao respeito à dignidade da pessoa

humana (MACIEL, 2002, pp. 4-5). Pretende o autor que determinados tipos

penais relativos ao direito de posse de imóveis urbanos sejam interpretados de

molde a não criminalizar as condutas daqueles que buscam abrigo em locais

desabitados. Ressalta, por oportuno, que, nesses casos, a atuação estatal desejada

se consubstancia na diminuição das desigualdades.

Rosa Del Olmo sintetizou a explicação da adequação entre a pena

privativa de liberdade em uma sociedade, como a burguesa, com o princípio da

liberdade, basilar dos direitos humanos. Se por um lado representa a ordem, pois

retira da ordem burguesa aquele que a está ameaçando, priva da liberdade àquele

que não quer – segundo seu discurso – ser livre.

O Direito Penal como instrumento de controle social somente pode tender

à eliminação do diferente, que por sua vez é a classe vulnerável, aquele que causa

o medo, aquele capaz de impedir a ordem. Os Direitos Humanos servem como um

programa de liberdade e igualdade. Igualdade no sentido do igual tratamento. E

aqui não se garante o tratamento isonômico, ao qual se refere Aristóteles, em

igualdade para os iguais e desigualdade para os desiguais na medida de sua

desigualdade, interpretada no sentido de liberdade para os inocentes e condenação

aos culpados. Não. Aqui se garante a liberdade e igualdade plena, apenas se

interpretando a diferença no que tange ao mais fraco de forma a elevar suas forças

ao patamar do mais forte. E não de prender este desigual que ameaça o mais forte

que dita o conceito de ordem.

E mais, a contradição, o paradoxo verificados nesta nossa democracia, que

tem se apresentado como verdadeiro estado de exceção, tem se manifestado mais

expressamente no sistema penal. E como afirma Zaffaroni, ainda “Em busca das

penas perdidas”, “quando um conflito é por demais sério, não pode ficar nas mãos

do sistema penal, que defende soluções ilusórias que na realidade produzem

mortes, corrupção e destruição da sociedade” (ZAFFARONI, 2001, p. 220).

As conseqüências da gestão de um sistema penal em contradição à

proteção dos direitos humanos são por demais devastadoras. É certo que o poder,

desde as lições de Montesquieu tem sido defendido através de um discurso de

contradições internas como forma de sua autolimitação. Entretanto, autolimitação

exige uma relação de reciprocidade, entre os dois poderes que se colocam em

conflito. Aqui estamos lidando com o sistema penal de um lado e o exercício de

direitos humanos de outro. Se para todos parece razoável que a defesa dos direitos

humanos se imponha como limitação ao sistema penal, a recíproca não é

verdadeira. O sistema penal não pode figurar como limitador do exercício de

direitos humanos, direitos que são inerentes ao próprio homem, que se não

realizados aniquila-se a dignidade da pessoa humana.

Por tudo isso, entendemos como Nilo Batista que o Estado é o maior autor

de delitos, de crimes (BATISTA, N., 1990, p. 159). O Estado brasileiro se afirma

democrático, e minuciosamente prevê em sua Constituição um programa de

eliminação de pobreza e discriminação.

6 Conclusões: pensamentos à luz da reflexão de Simão Bacamarte

Simão Bacamarte é a personagem das mais intrigantes de nossa literatura.

Cidadão honrado, respeitado e, acima de tudo, temido. Na obra de Machado de

Assis, O Alienista, podemos desfrutar de uma caricatura muito interessante da

argumentação acerca de quem é louco.

Sem pretender fazer qualquer análise literária – a uma por não ser esse o

nosso objeto nesta, a duas por não estarmos devidamente habilitados para tanto –,

distinguimos a história em três momentos. Num primeiro, o médico pretende

identificar a loucura como um desvio da normalidade. E passa a criar categorias

demasiadamente peculiares de forma a encaixar qualquer desviante em uma

dessas categorias. Num segundo momento, eis que a maioria da cidade está

interna em sua Casa Verde, por estar classificada em algum tipo de demência,

pretende ele afirmar que loucos são os que estão do lado de fora, e, por isso,

inverte seus conceitos. Passa a prender todo aquele homem classificado como reto

de coração e juízo. Num terceiro momento, após verificar que todos os homens

são capazes de praticar algum ato de torpeza (o que faze de sua segunda teoria um

fracasso, eis que todos são rapidamente curados, ou que ninguém é louco),

percebe que ele deveria ser o seu real objeto de estudo, único homem que não é

capaz de nenhuma torpeza.

Ademais, podemos contemplar no texto as categorias em que o alienista

encaixa os seus pacientes. São as mais criativas e peculiares possível. Parece-nos

que ele mesmo as cria a medida em que pretende incluir em sua Casa Verde.

Podemos fazer uma análise ingênua pretendendo classificar nossa história

nos três momentos. Partindo da análise de direitos humanos em conflito com o

direito penal, poderíamos afirmar que num primeiro momento estaríamos

procurando os desviantes do direito penal, sem nos preocuparmos com os direitos

humanos. Que num segundo momento, em que vivemos (por hipótese) os direitos

humanos estariam sendo inclusive definidos como crime. E, ainda, sonhar com

um momento em que o direito penal poderia olhar para dentro de si e reconhecer

como ele próprio é o anormal, ou aquele que vem sendo o maior obstáculo para a

proteção dos direitos humanos.

Esta não é a melhor análise. E como já dissemos, é a mais ingênua.

Senão, vejamos. Com toda a certeza, podemos afirmar que o

reconhecimento e a proteção dos direitos humanos, sua tipicidade, e seus

mecanismos de defesa ainda estão sendo construídos. E isso jamais será diferente.

O homem é um ser dinâmico. Os valores que reconhece hoje, amanhã podem não

lhe ser suficientes. Isto é bastante comum. Mundialmente ainda passamos por uma

construção, não só dogmática, do conceito de igualdade. Ainda não se pode dizer

que experimentamos um momento em que o direito penal não feria direitos

humanos, de tal forma a pretender que esta é a primeira teoria de Simão

Bacamarte.

Por outro lado, não podemos jamais afirmar que os direitos humanos são

todos (e só eles) classificados como crimes. Não é e nem nunca foi assim. Esta

seria, conforme nossa analogia a segunda teoria de nosso alienista. Então nunca

estivemos nesse momento.

O que, sem sobra de dúvida, podemos verificar é que vivemos num misto

da primeira e da segunda teoria. Se por um lado afirmamos que os direitos

humanos servem como limitadores do Estado Penal e que o Estado Penal deveria

se utilizar desses mesmos direitos humanos como fonte de orientação na busca

dos bens jurídicos que deveria proteger. Por outro lado, criminalizamos tantas

condutas ao ponto de ultrapassarmos a barreira do que deveria ser protegido e não

criminalizado. O direito por vezes, pode ser crime. Não tomamos sequer este

cuidado.

O paradoxo brasileiro que nos propusemos pesquisar é justamente o

confronto inexorável entre um discurso constitucional de defesa de direitos

humanos através de um Estado Democrático de Direito e um Estado Penal

movido por políticas de exceção – que leva a um agigantamento do sistema penal.

Passamos então a analisar, como base para o enfrentamento da conjuntura

brasileira, como se conceituam Direitos Humanos, Estado Democrático e Estado

de Exceção, além de iniciarmos o enfrentamento da criminalização dentro de um

contexto global, e somente então estudar o momento brasileiro.

A noção de Direitos Humanos abordada por nós se encaixa bem na idéia

de direitos inerentes ao homem em virtude desta sua condição, que o diferencia

dos outros animais, de sua própria condição humana. Tal noção aborda o

entroncamento entre a vida privada e a vida pública, e, em especial a vida nua.

Bem porque a junção entre ambas as caracteriza como indivisíveis, eis que uma

implica na outra. Se o homem vive (biologicamente), sua vida se faz

politicamente.

São, portanto, as necessidades reais fundamentais – que o Estado não pode

tirar –, que englobam não somente o comer, dormir, alimentar-se, saúde. Isto é

sobrevida. Envolve necessidades reais de relação, éticas e culturais, dentro da

idéia de comunidade – espaço onde as diferenças servem para complementação e

o diferente não é indesejado. Mais do que liberdade. Comunidade. E Direitos

Humanos como produto desta civilização humana.

Igualmente se fez necessário identificar diferenças entre o Estado

Democrático de Direito afirmado e o Estado de Exceção vivenciado. Se Estado de

Direito, pura e simplesmente, fundamenta-se na idéia de concentração de poder, a

fim de que este poder seja utilizado para aniquilar conflitos, o Estado

Democrático de Direito se afirma teoricamente como uma limitação do exercício

deste poder, de forma a evitar o arbítrio.

A questão está mais na realidade do que na teoria. Como atua o Estado.

Para isso utilizamo-nos da noção de que Direito é um instrumento de sujeição, de

dominação. A exceção se coloca, teoricamente, como medida indispensável aos

momentos de crise, na teoria da necessidade, da subsistência do próprio Estado.

Dentro de um contexto Democrático, é o Estado de Exceção

inconstitucional, ilegal, arbitrário. Ele excede os poderes constitucionalmente

limitados em prol da manutenção de um Estado, pelo sacrifício de necessidades

fundamentais para o quê o Estado foi constituído, ao menos teoricamente.

O que se precisa confrontar é a idéia de comunidade com a idéia de

sociedade excludente. A comunidade é boa, um lugar confortável e seguro, onde

cedemos a liberdade extremada em prol da segurança, originariamente, através do

puro entendimento, do sentimento recíproco de manter-se unido.

Entretanto, pode surgir a necessidade de proteger esta comunidade, através

da construção de muros que excluem os forasteiros. Nesse momento, a

comunidade deixa de ser originária para ser finalidade. Ela já não existe mais.

O que temos é puramente uma sociedade excludente, que demanda uma

cidadania mais plena, envolvendo uma noção de espaço maior, global. Cidadania

esta reservada tão somente àqueles que podem transitar livremente neste espaço

global. Aos demais, exclusão, ou melhor inclusão fora desta suposta comunidade

moderna, através da violência. E não espacialmente, pois o excluído está em toda

parte. Por certo que não habita, mas está em toda parte.

O fato de habitarem por toda parte impõe instrumentos de exceção do

Estado, embasados em um discurso de lei e ordem. Em que se separa o cidadão

ordeiro do desordeiro. Utilizando critérios que tem relação direta com a diferença

consubstanciada no que classificam como pessoas difíceis ou classes perigosas.

E mais o que se teme é o risco, não a diferença em si. O risco. Pretende-se

minimizar danos, através da manutenção da ordem. E não da proteção das

necessidades fundamentais de todos, mas da criminalização daqueles que

pretendem buscar o suprimento de suas necessidades fundamentais em

desconformidade com a ordem determinada.

Isto se revela na atuação do Estado, que ao invés de direcionar-se ao

atendimento das necessidades básicas, faz crescer sua veia penal. O Estado de

Exceção pretende resolver os conflitos decorrentes de busca por necessidades

fundamentais por aqueles que não os têm minimamente, através de um programa

criminalizante.

Não há outra forma que não aumentar o alcance do Direito Penal,

criminalizando condutas que se encaixem na idéia de risco. Aumentando a

resposta penal às condutas já criminalizadas e criando novos tipos penais que

atinjam as classes perigosas.

Esta idéia é compatível com o sistema capitalista, que tem em seu bojo o

risco das regras de mercado. Então viver num modelo capitalista inclui o risco

temido. Para tanto, necessário um discurso que faça crescer no indivíduo uma

falsa percepção de lugar de proteção dentro do capitalismo, tal lugar é o discurso

da lei e da ordem. Incompatível com o mercado. No mercado não há lei e não há

ordem.

Mormente num capitalismo globalizado, em que vivemos uma segregação

e separação espacial, se partirmos de que há um grupo daqueles que habitam em

toda a parte, e livremente por toda parte transitam, e aqueles que não transitam e

não habitam. Excluídos que precisam ser incluídos, de forma a restaurar a ordem.

Assim, passamos à conjuntura brasileira, onde os discursos de lei e ordem

têm se repetido e a reação crítica também se tem levantado. Temos, portanto, que

o crime não é um fenômeno natural, e sim político.

Após se demonstrar um histórico da conjuntura brasileira, podemos

verificar que sempre fez parte de nosso discurso penalista uma política de

habitação, ou de inclusão, dedicando-se portanto a uma parcela da sociedade, que

tinha uma função que excluía o provimento de suas necessidades fundamentais.

Desta forma, o sujeito qualificado como criminoso tem sua função na

sociedade. Dentro de uma lógica em que não há exclusão, mas inclusão em local

antes desocupado, todos exercem seu papel perfeitamente, e seus lugares são

adequadamente preenchidos.

Alguns precisam praticar condutas escolhidas como ilícitas, e pelos

instrumentos estatais serem alocados no sistema prisional, sustentando o discurso

de exceção pelo qual o sistema penal é capaz de solucionar as crises, e assim

proteger o cidadão honesto do medo.

A noção de dignidade da pessoa humana está reservada para os possíveis

consumidores deste produto ofertado pelo Estado a apenas alguns e não todos, já

que os demais devem receber a resposta criminal que mantém aqueles satisfeitos.

Dignidade se restringe em função de quem está ou não apto a exercê-la.

Aptidão escolhida pela ordem que se pretende construir. Direitos são

ampliados ou restringidos em função de quem os pretende exercer. São até mesmo

criminalizados, sem que haja um discurso velado. O discurso de exceção pretende

afirmar um Estado em que se pretende manter a ordem burguesa.

A proposta criticada que se coloca pelos defensores de direitos humanos,

de melhores condições para todos, de inclusão não na exclusão, mas no

provimento de necessidades fundamentais, que envolvem além daquelas

biológicas as éticas e culturais, fundamenta-se na limitação (até a extinção) dos

direito penal. Pela sua total incompatibilidade com o exercício de direitos

humanos.

Inicialmente se pretenderia ampliar o estudo dos direitos humanos, como

limitadores inexoráveis do direito penal, como inspiração para a prática do

controle social exercido pelo direito penal. E finalmente, concluir-se pela total

impossibilidade de convivência de tais normas, vez que o Direito Penal somente

tende à eliminação do diferente, aquele membro da classe vulnerável que impede

– em seu discurso – que a ordem se estabeleça. Direitos Humanos, por sua vez,

impõem o reconhecimento de diferenças e, acima de tudo, a intangibilidade dessas

diferenças pela propagação do provimento das necessidades fundamentais,

incluindo-se aí as culturais e éticas, que podem, eventualmente ferir o discurso de

ordem.

Pretendemos de alguma forma servir a aclarar a incompatibilidade entre os

dois discursos que mais crescem na sociedade brasileira. De um lado um discurso

criminalizante, punitivo. De outro, um discurso “bonzinho” de proteção aos

direitos humanos. Pretendemos que este trabalho sirva, de forma simples, na luta

contra o Estado de Exceção, que se desvela em olhar mais próximo, no mundo e

no Brasil.

Um dia, pode ser que cheguemos a tal ponto, quando a sociedade, em

todos os seus setores, incluindo os poderes estatais, se auto-analisará e concluirá

que ela própria, que deveria proteger (ou curar os loucos, como o médico Simão

Bacamarte) está por violar os direitos (louca, como o homem Simão Bacamarte).

É como diz o presidente da Câmara de Vereadores de Itaguaí, no conto

(quase novela) de Machado de Assis: “(…) mas se tantos homens em quem

supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado não é o

alienista?” (ASSIS, 1998, p. 49).

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