crimes literários capítulo 7 t. v. r. barbosa em josalba fabiana do santos carlos magno gomes ana...

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Josalba Fabiana do Santos; Carlos Magno Gomes; Ana Leal Cardoso (Organizadores) CAPÍTULO 7 de REGISTROS LITERÁRIOS MEMÓRIAS E CRIMES - CRUZ TUA, DÉBITO NOSSO: PACTO DO CRIME Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa........................................... 139 Costumes antigos............................................................................................................................ 140 O caso grego do matricídio de Clitemnestra................................................................................... 146 Referências .................................................................................................................................... 157 CRUX TUA, DEBITA NOSTRA: PACTUM SCELERIS CRUZ TUA, DÉBITO NOSSO: PACTO DO CRIME Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa (UFMG) Ea natura est omnis confessionis ut demens esse videatur qui confitebur de se. Brocardo latino 1 Nosso ensaio pretende demarcar um tópos literário no matricídio perpetrado por Orestes na tragédia Electra, de Eurípides. Vamos nos concentrar na busca da fama advinda da assunção da autoria de um crime hediondo. 2 Paralelamente, mostramos que a mesma estratégia conforma uma canção brasileira de Vicente Celestino intitulada "Coração Materno". De passagem, indicamos a manutenção do tópos antigo nas culturas brasileira, francesa e outras. Adiantamos, porém, que o fato de recorrer a uma tragédia para discutir o matricídio não se deve a nossa especialidade acadêmica, mas, sobretudo, porque o teatro grego trágico é, desde a sua constituição e os estudos de Aristóteles na 1 "Tal é a natureza de toda confissão que parece ser demente quem confessará sobre si". Agradeço ao prof. Matheus Trevizam por todas as orientações quanto ao uso do latim, bem como pelas traduções das frases aqui utilizadas. 2 O crime de Orestes e Electra, à luz da legislação contemporânea, seria um crime hediondo, e estaria previsto na Lei nº 8.072/90 sob a forma de homicídio qualificado, ou assassinato cometido à traição mediante dissimulação, previsto no artigo 121, § 2º , nº IV: à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido.

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Capítulo que pretende demarcar um tópos literário no matricídio perpetrado por Orestes na tragédia Electra, de Eurípides. Vamos nos concentrar na busca da fama advinda da assunção da autoria de um crime hediondo

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  • Josalba Fabiana do Santos; Carlos Magno Gomes; Ana Leal Cardoso (Organizadores) CAPTULO 7 de REGISTROS LITERRIOS MEMRIAS E CRIMES - CRUZ TUA, DBITO NOSSO: PACTO DO CRIME Tereza Virgnia Ribeiro Barbosa...........................................139 Costumes antigos............................................................................................................................ 140

    O caso grego do matricdio de Clitemnestra................................................................................... 146

    Referncias .................................................................................................................................... 157

    CRUX TUA, DEBITA NOSTRA: PACTUM SCELERIS

    CRUZ TUA, DBITO NOSSO: PACTO DO CRIME

    Tereza Virgnia Ribeiro Barbosa (UFMG)

    Ea natura est omnis confessionis ut demens

    esse videatur qui confitebur de se. Brocardo latino1

    Nosso ensaio pretende demarcar um tpos literrio no matricdio perpetrado por

    Orestes na tragdia Electra, de Eurpides. Vamos nos concentrar na busca da fama

    advinda da assuno da autoria de um crime hediondo.2 Paralelamente, mostramos que a

    mesma estratgia conforma uma cano brasileira de Vicente Celestino intitulada

    "Corao Materno". De passagem, indicamos a manuteno do tpos antigo nas culturas

    brasileira, francesa e outras. Adiantamos, porm, que o fato de recorrer a uma tragdia

    para discutir o matricdio no se deve a nossa especialidade acadmica, mas, sobretudo,

    porque o teatro grego trgico , desde a sua constituio e os estudos de Aristteles na

    1 "Tal a natureza de toda confisso que parece ser demente quem confessar sobre si". Agradeo ao prof. Matheus Trevizam por todas as orientaes quanto ao uso do latim, bem como pelas tradues das frases aqui utilizadas. 2 O crime de Orestes e Electra, luz da legislao contempornea, seria um crime hediondo, e estaria previsto na Lei n 8.072/90 sob a forma de homicdio qualificado, ou assassinato cometido traio mediante dissimulao, previsto no artigo 121, 2 , n IV: traio, de emboscada, ou mediante dissimulao ou outro recurso que dificulte ou torne impossvel a defesa do ofendido.

  • Potica (1453a), a narrativa ideal para observar os crimes familiares, o foco de nossa

    pesquisa.

    Costumes antigos

    Sobre o substrato do mito representado no teatro, pode-se notar facilmente que

    os gregos (como tantas outras comunidades do mundo antigo) eram prioritariamente

    governados por costumes ao invs do que hoje entendemos e caracterizamos como leis.

    En la Antigua Atenas es evidente que "ley" no implica nada semejante a lo que podemos concebir nosotros en los inicios del siglo XXI ni a lo que conceba un romano de la poca republicana: esta idea que hoy parece elemental pas desapercibida durante dcadas por numerosos juristas y helenistas. En la actualidad nuestro concepto de "ley", incluso para aquel que ningn contacto tiene con las disciplinas vinculadas al mundo jurdico, supone un texto fijo, obligatorio, preciso, que regula nuestras conductas. La ley, para cualquier persona que alguna vez haya experimentado un acontecimiento judicial, es algo que se impone, que el juez interpreta y que todos debemos conocer de antemano para identificar conductas ilcitas y promover su castigo amparados en el derecho escrito que esbozamos en defensa de nuestro planteo. (...) nada de esto es aplicable cuando nos dedicamos al estudio del derecho de Atenas. En la concepcin ateniense las leyes no constituyen nunca algo que se impone en forma directa para cada circunstancia, sino que se limitan a presentar una mera serie de pautas; no se "aplican" sino que sirven como evidencias para proporcionar un conjunto de bases, ms o menos slidas, en el ataque y la defensa configurados a travs de los alegatos ante los tribunales de la ciudad (Johnstone, 1999: 23). Todo enfrentamiento jurdico se funda as en un uso activo y constante de las tcnicas del lenguaje de all lo inescindible de las nociones de derecho y retrica a lo largo de todo el mundo clsico y en una confianza ciega en sus posibilidades como instrumento eficaz para promover conductas en los otros. (BUIS, 2003, p. 13)

    evidente que na Atenas antiga "lei" no significa coisa alguma semelhante ao que podemos entender, nos incios do sculo XXI, nem ao que entendia um romano da poca republicana; ideia que hoje parece elementar e que passou despercebida durante dcadas por numerosos juristas e helenistas. Na atualidade, o nosso conceito de "lei", mesmo para aqueles que no tm qualquer contato com as disciplinas relacionadas com o mundo jurdico, supe um texto fixo, obrigatrio, exato, que regula a nossa conduta. A lei, para qualquer pessoa que haja experimentado um processo judicial, algo que se impe, que o juiz interpreta e que todos devemos conhecer de antemo para identificarmos condutas ilcitas e promover a punio que planejamos amparados no direito escrito para a exposio de nossa defesa. (...) nada disto aplicvel quando nos dedicamos ao estudo do direito em Atenas. Na concepo ateniense as leis nunca so algo que se impe de forma direta em cada circunstncia, mas antes uma serie de diretrizes e no se "aplicam", mas funcionam como evidncias que proporcionam um conjunto de bases, mais ou menos slidas, no ataque e na defesa configurados atravs acusaes nos tribunais da cidade (Johnstone, 1999: 23). Todos enfrentamento legal baseado no uso constante e ativo das tcnicas da linguagem, da a indissolubilidade entre as noces de direito e de retrica em todo o mundo clssico e ainda uma confiana cega em suas possibilidades como ferramenta eficaz para promover condutas nos outros. (BUIS, 2003, p. 13)

  • Assim, na ausncia formal de leis escritas e promulgadas, a justia grega era

    sinnimo de precedente (HYDE, 1918, p. 319), ou seja, a sociedade guiava-se por

    regras e hbitos recebidos de seus pais (PLATO, Leis, 680a). Acrescente-se que, no

    caso que vamos estudar, a morte de Clitemnestra por Orestes e Electra, seus filhos,

    nesse caso especfico, o matricdio, muito razoavelmente interpretado como um ato de

    justia de reparao, conduta que se permite ao filho homem e herdeiro legtimo para

    recuperar o patrimnio e poder paterno e restabelecer a antiga ordem da casa. Matar a

    me nesse sentido no passava de um negcio privado (CHIESI, 2011) cuja punio

    seria o castigo de ser perseguido vida afora pelas Ernias, com suas cruis mordidas de

    remorso, se o morto (ou a morta) tivesse fora e prestgio para tanto, isto , para fazer

    sair dos nferos, do reino de Hades, as vingadoras dos crimes consanguneos.

    Todavia, no bastasse a justia de reparao, preciso acrescentar tambm

    que, como se sabe atravs das tragdias, a cultura grega constri para a posteridade

    personagens-mulheres abominveis, adlteras, criminosas, perdulrias e fteis cuja

    eliminao do cotidiano coletivo seria um benefcio geral.3 Com efeito, a literatura

    oferece inmeros atenuantes para que os filhos possam matar suas mes nas mais

    diversificadas situaes.

    Em que pese os crimes dos filhos, na Grcia do sculo V a.C., em Atenas,

    sobrepesam de modo mais intenso aqueles das esposas, que praticam-nos em lcido

    desespero e com a inteno de desfazer os laos de famlia. Tudo decorre de um dado

    cultural. De forma bem ampla, poderamos afirmar que nesta sociedade, o casamento

    era a forma mais concreta da manuteno (ou renovao) dos , casas que

    constituiam o poder legislativo da cidade. Entretanto, quando examinamos mais

    detidamente a instituio que determinava a unio de casais de sexos distintos, v-se

    que o que os impelia no era o desejo, mas a procriao. Nada mais natural, pois, para

    os antigos, o amor como uma doena (THEODOROU, 1991, p. 198-219):

    . Recordemo-nos de Fedra na tragdia euripidiana Hiplito (v. 391-397):

    , . , . , ,

    .

    no que me vi ferida de amor, para melhor suport-lo, espiava. Disso, ento, comecei por

    calar-me e encobrir a doena. , pois f nenhuma h na lngua, que, por

    juzos forasteiros, ensina remdios, mas de ruindade dela mesma se enche. A, por segundo, combatente, decidi a

    3 evidente que estas personagens-mulheres sustentam a arte trgica. Paradoxalmente, se a sua excluso na sociedade diz-se um benefcio, para a arte, por outro lado, o seu apagamento de nosso imaginrio seria uma perda inextimvel. Assim, tais mulheres - feitas essencialmente de linguagem - so um patrimnio literrio.

  • . , , ,

    .

    demncia bem suportar; na sensatez. E ento, por tais, j que tresmalhei

    sem vencer Cpris, morrer pareceu-me a melhor - ningum me conteste - soluo.

    E se, como se v, amor e paixo so males, para o bem-estar da comunidade e a gerao

    de mantenedores de riquezas e posies sociais (BUIS, 2003, p. 14), convm que as

    unies sejam realizadas de forma bem ponderada. Talvez isso explique a falta de um

    termo especial para esta instituio que hoje chamamos de "casamento". Sobre o

    funcionamento desta aliana, ou melhor, deste contrato, entre os gregos existem muitos

    pontos obscuros. Um deles nos interessa particularmente, visto se vincular questo

    lexical: os termos definidores das unies entre homens e mulheres so imprecisos.

    Assim, definiria apenas uma situao de prtica da copula carnalis; um

    acordo formal, a partir da concesso de um dote, celebrado entre o pai da noiva e o

    pretendente; a demanda de uma tutela a uma herdeira sem parentela

    imediata. Nesse ltimo caso, mesmo que a herdeira j fosse "casada", ela poderia ser

    requisitada pelo tutor, parente mais prximo dela ainda que a proximidade fosse

    bastante remota. Em qualquer uma dessas aes, a lgica que prevalecia era a de

    submisso da mulher ao homem. (HARRISON, 1968, p. 7-11; BUIS, 2003, p. 15).

    Acrescente-se que ao marido cabia o direito absoluto de repudiar sua mulher (BUIS,

    2003, p. 20).

    Restam, no entanto, algumas questes (que no vamos resolver aqui, mas que

    nos ajudam a pensar): qual seria o nome de uma unio com vistas a gerar uma famlia

    contra a qual poder-se-ia cometer um crime? O que realmente seria um casamento, uma

    vez que no h sequer o termo geral para tal conceito e tampouco aqueles termos que

    hoje utilizamos para os parceiros de uma unio estvel tais como "marido" e "esposa"?

    Se nas unies os parceiros eram simplesmente /homem e /mulher

    (HARRISON, 1968, p. 1) e da mulher era exigida a submisso, quais os atenuantes para

    supostos crimes familiares? Este problema nos diz respeito porque tange acusaes que

    se anulam sob a designao de crimes de reparao, a saber, aqueles que se baseiam na

    justa defesa da honra e crimes de sucesso e direito de herana, isto , aqueles que

    concernem ao de filhos contra suas mes acerca de bens deixados pelos pais. Barry

    S. Strauss (1993, p. 77), no estudo dessa prtica em textos literrios e de oradores em

    tribunais, afirma que

    A son inherited many things from his father, among them: his property, his debts, his reputation, and his friendships and enmities. While a father lived, his son (if he was old

  • enough) was expected to help him fight his battles, whether military or legal. As Kreon says in Antigone, men pray to have obedient sons at home who fight the enemy back in kind and honor the friend as much as their father does (641644). It only stands to reason, then, that a good son should continue these battles after the fathers death. Perhaps the most famous case in ancient Greek culture of the avenging son is Orestes, who did not shrink from killing his own mother Klytaimnestra, as well as her lover Aigisthos, in order to avenge his father Agamemnon. (...) Orestes quest for vengeance is not entirely altruistic; as he frequently states, one of his primary aims is to regain his patrimony (e.g. Aesch. Cho. 300301, Eum. 754760). The sources often demonstrate the belief on the part of a father or son that, sentiment aside, the generations have no practical choice but to maintain solidarity (e.g. Lys. 20.35). Os filhos herdavam muitas coisas de seus pais, entre elas: sua propriedade, suas dvidas, sua reputao e suas amizades e inimizades. Enquanto o pai vive, esperava-se que seus filhos (se o filho atinge a idade para tanto) o ajudassem em suas disputas, fossem elas militares ou jurdicas. Como diz Creonte na Antgona, "os homens desejam ter filhos obedientes em casa, que lutem contra os inimigos de forma condizente e honrem e os amigos tanto quanto seu pai o faz." (v. 641-644). Desse modo, o mais lgico que um bom filho continue as batalhas familiares aps a morte do pai. O caso mais famoso na cultura grega antiga de um filho vingador , provavelmente, Orestes, que no recua diante da tarefa de matar a sua prpria me Clitemnestra juntamente com seu amante Egisto, para vingar Agammnon. (...) A busca de Orestes por vingana no inteiramente altrusta; como ele mesmo afirma frequentemente, um de seus principais objetivos recuperar seu patrimnio (por exemplo, em squilo, Coforas, v. 300-301 e Eumnides, v. 754-760). As fontes demonstram regularmente a crena tanto por parte de pai quanto por parte do filho que o sentimento deve ser posto de lado e que as geraes no tm outra escolha prtica seno manter a solidariedade nestes casos (por exemplo Lsias 20, 35).

    Em caso de morte, o primeiro sucessor de direito era um dos seus filhos

    legtimos, isto , um dos filhos de uma cidad, e, diferentemente de outras culturas, o

    direito de primogenitura no era base da sucesso (HARRISON, 1968, p. 130). O ponto

    interessante para pensarmos a disputa da autoria do crime de matricdio entre dois

    irmos, ainda que um deles fosse mulher.

    No que diz respeito me de Orestes, a rainha Clitemnestra, que mata

    Agammnon, seu marido, que chega de Troia com a jovem Cassandra, para aquele que

    considere motivao a traio do companheiro, bom lembrar que tal hiptese, para os

    atenienses, no existe. Os atenuantes para uma mulher matar um homem seriam apenas

    a violncia sexual ou a seduo (HARRISON, 1968, p. 13 e 36). Por conseguinte,

    Clitemnestra no teria libi algum para matar o consorte. Alis, certo que os

    atenienses costumavam ser monogmicos; entretanto, ao que parece, no havia

    proibio da bigamia ou poligamia; Clias, por exemplo, foi "casado" simultaneamente

    com a me e a filha de Ismacos; Scrates tambm usufruiu de duas mulheres ao

    mesmo tempo, Xantipa e Mirto; Eurpides, o autor de Electra, igualmente. Deste modo,

    a um homem ateniense era perfeitamente lcito ter uma mulher e fazer filhos em outra

    (HARRISON, 1968, p. 12-16).

  • O caso grego do matricdio de Clitemnestra

    Na Electra euripidiana, quando a esposa de Agammnon expulsa o filho de casa

    e constrange a filha a unir-se a um homem rstico, temos configurada uma situao

    suspeitosa. Banido, Orestes poderia perder-se no mundo ou mesmo morrer. Quanto

    filha, atrelada a um campnio rude, ela efetivamente no seria capaz de gerar um

    vingador legtimo do seu pai. Exposta deste modo a questo da sucesso, Clitemnestra

    acaba por abrir precedentes para uma reparao. No nos alonguemos muito; digamos

    somente que o enredo da pea justifica o matricdio perpetrado de modo a isentar os

    filhos de Agammnon de qualquer possibilidade de punio e ainda de garantir-lhes a

    honra de terem praticado um ato merecedor de prmio insigne. A cruz deles, a

    obrigao de matar a prpria me, um dever glorioso. A dor gerada nesses jovens pelo

    crime que lhes foi imposto como reparao dbito moral da sociedade.

    Evidentemente, nesta situao, o outro problema decorrente que j antecipamos,

    a possvel rivalidade entre os irmos, dever ser controlado na pea por dois

    mecanismos: o distanciamento do ato e a celebrao de uma unio. Em primeiro lugar, o

    distanciamento. De fato, tal disputa acabaria por se tornar uma monstruosidade se

    Eurpides no nos indicasse um procedimento de distanciamento bsico para evitar a

    transformao dos dois atridas em facnoras. O poeta ensina aquilo que j se sabe: o que

    os olhos no veem o corao no sente. Em outras palavras: se quiser matar sua me,

    tampe os olhos. No caso especfico em tela, Orestes efetivamente cobre as meninas dos

    olhos (v. 1221) com seu manto para no contemplar o prprio feito. Electra no se

    protege assim e, deste modo, torna-se mais vulnervel na assuno da autoria do crime.

    Praticado o ato, em uma inverso do usual entre os criminosos, Orestes, tendo protegido

    "as meninas dos olhos", reclama o envolvimento maior. Entre mandantes e executores,

    o jogo de revelar e esconder de si mesmo o crime praticado, de cobrir e descobrir para si

    mesmo a fatdica ao ganha fora, move o crime e instiga justiceiro. Ainda assim, a

    cumplicidade permanece e a disputa pelo merecimento da alcunha de matricida poderia

    recrudecer. Mais uma vez, Orestes precavido e habilmente contorna a situao ao

    oferecer em casamento sua irm Electra ao amigo e tambm cmplice Plades. Se

    Electra, a mentora e mandante do crime, e Orestes, o executor, ambicionavam obter a

    glria de cometer o mais terrvel dos crimes, ficou-se o dito pelo no dito. A mulher,

    pelo casamento declinou.

  • Sem dvida, a situao do passado mtico a saber, buscar a glria atravs do

    crime vem, desde ento, motivando artistas. Por certo valeria a pena discorrer sobre as

    inmeras carnificinas dioniscas com suas mais abjetas descries, aquelas que serviram

    de inspirao para os maiores dramaturgos da literatura ocidental (entre eles

    Shakespeare, o grande). So cenas que depois de concebidas continuam a ser

    espetacularizadas, julgadas, estudadas, lidas e, c entre ns, praticadas! Mas no

    faremos tal. Nosso olhar no incidir sobre tais cenas, nem sobre a cultura e os textos do

    sculo V a.C. na Grcia particularmente. O que nos interessa aqui o matricdio e, para

    falar dele, o caso literrio mais bvio, como afirmamos, seria a Oresteia de squilo,

    trilogia que engloba na primeira pea a famosa fala de uma esposa assassina que assim

    se pronuncia (1388-1394):

    ,

    . , ,

    , , .

    E, como do peito dele cado e estrebuchando fio de sangue jugular esguichasse,

    um rubro chuvisco de orvalho espirra em mim... Cintilo nada menos do que o trigo que,

    por dom de deus, inchado, desponta das espigas. Assim, isto feito, velhice aqui de Argos,

    exultai, eia, exultai, pois eu me glorifico.

    Eis a a materializao da glria criminosa. Mas, na tragdia subsequente, a glria de

    Clitemnestra ser escurecida pelo matricdio impecvel de Orestes, que, nas Eumnides

    de squilo, se beneficia do primeiro jri do arepago e absolvido com base na

    argumentao da deusa Atena, que, advogando em seu favor, aventa ser o crime um

    desagravo e alega que Orestes lavou a honra do rei, seu pai.

    Contudo, o mesmo mito na tragdia Electra, de Eurpides ganha uma colorao

    mais forte. Em squilo, o matricdio de Orestes apresentado (...) como um choque de

    direitos divinos, contraditrios (GIL, 2004, p. 139), Orestes enlouquece, sai desvairado

    e s se recupera por interveno divina, quando Atena corrompe o jri para a

    proclamao da sentena de absolvio. Sfocles demarca o mesmo crime no mbito da

    justia humana amparada por Zeus.4 Eurpides, porm, ousa desacralizar o ato. Em sua

    obra, o sagrado no tem fora de coao e o direito ao poder maior que as leis divinas

    4 GIL, Luis. La vertiente jurdica de la Electra sofoclea The Legal Slope of Sophocles Electra. Cuadernos de Historia del Derecho, 2004, vol. Extraordinario, p. 137-146: (...) como el choque de dos derechos divinos, contradictorios, el de Apolo que ordenaba al hijo dar muerte a los asesinos del padre y el de las Erinias que a su vez imponan la misma pena al matricida, ya no era posible. Esquilo lo haba resuelto de una forma grandiosa en la ltima pieza de su triloga. Orestes sera absuelto de su culpa por el tribunal del Arepago, y las Erinias transformadas en Eumnides velaran, como deidades benevolentes (que eso indica su nuevo nombre) por la prosperidad de Atenas en la Acrpolis. (...) Sfocles pretende enmarcarlo en el mbito de la dike o justicia humana que preside, amparada por el cetro de Zeus, la totalidad de las acciones humanas, no meramente las de carcter religioso.

  • no escritas. Deste modo, Orestes e a irm, Electra, assumem a postura de sua me

    Clitemnestra, citada na tragdia esquiliana. Eles se glorificam pelo desagravo

    perpetrado, so , gnios vingadores vivos na terra.

    Do ponto de vista tico, Eurpides d elementos de juzo suficientes para que o

    espectador forme uma ideia clara da situao do personagem, de suas motivaes e de

    seu carter. Mostra o sofrimento do jovem no exlio, a fraqueza moral de Clitemnestra e

    Egisto, a situao ilegal em que se encontra a casa do soberano chacinado. timo; mas

    no iremos somente pelas trilhas gregas. Como indicamos antes, escolhemos refletir

    igualmente sobre a nsia pela glria criminosa em uma cano de Vicente Celestino

    (1937), regravada em 1968, em plena vigncia da ditadura da me ptria, por Caetano

    Veloso.5

    Corao Materno6

    Disse o campnio a sua amada minha idolatrada, diga, o que quer? Por ti vou matar, vou roubar, embora tristezas me causes, mulher. Provar quero eu que te quero, venero teus olhos, teu porte, teu ser, mas diga tua ordem espero, por ti no importa matar ou morrer. E ela disse ao compnio a brincar, se verdade tua louca paixo, parte j e pra mim vai buscar de tua me inteiro o corao. E a correr o campnio partiu, como um raio na estrada sumiu e sua amada qual louca ficou, a chorar na estrada tombou. Chega choupana o campnio, encontra a mezinha ajoelhada a rezar, rasga-lhe o peito o demnio, tombando a velhinha aos ps do altar. Tira do peito sangrando da velha mezinha o pobre corao e volta a correr proclamando: vitria, vitria tem minha paixo!

    Mais em meio da estrada caiu e na queda uma perna partiu e distncia saltou-lhe da mo, sobre a terra o pobre corao. Nesse instante uma voz ecoou: Magoou-se pobre filho meu,

    vem buscar-me filho, aqui estou

    vem buscar-me que ainda sou teu!

    5 http://letras.terra.com.br/caetano-veloso/72711/ Tropiclia ou Panis et Circencis. Lanamento: 1968. Gravadora: Universal. 6 Pode-se ouvir a gravao original de Vicente Celestino com a orquestra RCA Victor, 1937, 78rpm em http://www.youtube.com/watch?v=_B3JKX-mF4U&feature=related

  • A cano trata de um matricdio. Ao que parece, o texto uma verso brasileira

    para uma pequena pea medieval (ou seria uma reescrita do tpos narrado nas tragdias

    gregas?). Certo que o tema resultou em inmeras reescritas, entre elas o poema La

    Glu7 de Jean Richepin, que foi musicado vrias vezes, por Charles Gounod (1918) na

    pera La Glu e por Georges Fragerolles e Gustave Michiels.8 Em verso mais recente

    (1993) o poema foi musicado por Tonio Gmme.9 Tudo isso sem contar com uma

    verso para do hngaro Jzsef Kiss ("Az anyasziv", 1900)10 e outra para o alemo por

    Malkowski (Mutterherz, Berlin, 1932).11 H ainda uma verso do russo Dmitri Kedrin

    (1935) e A balada do corao falante (The Ballad of the Speaking Heart) do poeta

    escocs Hamish Henderson (2005);12 No campo da filmografia, podemos elencar do

    cineasta Henri Fescourt, La Glu (1926), e o remake de Jean Choux (1938) com o

    mesmo nome. Dos modernos, sabemos de duas canes gregas uma de

    (1917) e outra de e Alice Tori (2005).13 Registramos ainda

    uma cano rabe de Yaqob Al-Naseem, Corao de me (2005)14 que, provavelmente,

    recuperou uma poesia do iraniano Iraj Mirza (1874-1926). A histria aparece

    igualmente narrada no filme Spartacus, de Howard Fast (New York, 1951).15

    Como se pode observar, franceses, irlandeses, hngaros, rabes, gregos,

    americanos, germnicos e brasileiros matam suas mes. Na verso original francesa o

    crime instigado por uma mulher que pretende dar o corao da senhora me para seu

    petit chien. A cano de Vicente Celestino suaviza a moa. Ela faz seu pedido por

    brincadeira, num desafio inconsequente ao parceiro. O rapaz, infelizmente, leva a

    brincadeira a srio.

    7 La glu: Ah ! Que l'amour cause de peine vieille chanson populaire. dition: [s.d.] [S.l.] [s.n.]. Gravao Columbia com interpretao de Yvette Guilbert. Y avait une fois un pauvre gars / Et lonlon laire / Et lonlon la / Y avait une fois un pauvre gars /Qui aimait celle qui ne l'aimait pas./ Elle lui dit : Apporte-moi d'main, / Et lonlon laire / Et lonlon la /Elle lui dit : Apporte-moi d'main, / L' cur de ta mre pour mon chien./ Va chez sa mre et la tue /Et lonlon laire / Et lonlon la / Va chez sa mre et la tue, / Lui prit l' cur et s'en courut/ Comme il courait, il tomba / Et lonlon laire / Et lonlon la / Comme il courait, il tomba / Et par terre, le cur roula./ Et pendant que le cur roulait / Et lon, lon laire, / Et lon, lon la, / Et pendant que le cur roulait, / Entendit le cur qui parlait./ Et le cur disait, en pleurant / Et lonlon laire / Et lonlon la / Et le cur disait, en pleurant : / T'es-tu fait mal, mon enfant? Cf. http://www.jeanrichepin.free.fr/mp3s/guilbert_glu_la.mp3 8 La glu; chante (1920/1922) http://www.jeanrichepin.free.fr/mp3s/polaire_glu_la_1920_1922.mp3; La glu; version parle (1929) http://www.jeanrichepin.free.fr/mp3s/polaire_glu_la_parle_1929.mp3 9 La Glu (1993) http://www.jeanrichepin.free.fr/mp3s/tonio_gemene-la_glu.mp3 10 SULEIMAN, Susan Rubin. Budapest Diary: In Search of the Motherbook. Lincoln: University of Nebraska Press, 1999, p. 138. 11 Cf. Warrior (Davud) & Pone http://www.youtube.com/watch?v=x1mR6pNNCOI 12 http://www.youtube.com/watch?v=5bAZPmgvQn4&feature=related 13 http://www.youtube.com/watch?v=cDB6LloH4VM 14 http://www.youtube.com/watch?v=ZI8j-SjzUxo 15 http://community.sff.gr/topic/7315-%CE%B7%CE%BA%CE%B1%CF%81%CE%B4%CE%B9%CE%AC%CF%84%CE%B7%CF%82-%CE%BC%CE%AC%CE%BD%CE%B1%CF%82/

  • Retomando os pontos para costurar este nosso ensaio: que relao h entre Orestes e um campnio que mata sua me para agradar a namorada? H nestes dois

    matricdios um tpos comum: o tratamento da sensao de poder e da vitria depois do

    crime praticado e a impunidade do assassino. Evidentemente, no estamos afirmando

    que o mito de Orestes narrado na Electra euripidiana recuperado na ntegra na histria

    de Vicente Celestino. Somente o crime se repete; motivo e circunstncias so outros.

    De fato, cada texto nico. E isto nos vale. Em primeiro lugar, na antiguidade o

    que move o criminoso a vingana, a honra e o poder (representado pela disputa ao

    trono de Atreu em Micenas). Na modernidade, instila a atrocidade a paixo por uma

    mulher, sentimento inconcebvel para um grego. Assim, mirando brevemente esse

    contraponto grego e brasileiro, entendemos com Eliot que cada raa tem no apenas

    sua tendncia criadora, mas tambm sua tendncia crtica de pensar. (ELIOT, 1989, p.

    37).

    O crime e os criminosos aqui apresentados no podero jamais fazer jus a um

    enfoque generalista no qual se buscam rtulos (SEGRE, 2006, p. 31) nem a eles se

    aplicam as regras da vida ordinria do direito penal, pois os delitos e personagens so,

    repetimos, nicos, fixados em textos nicos ou, em outros termos, personagens-letras. E

    se assim , qual a tendncia nos dois recortes no tratamento dado aos crimes clssicos,

    aqui, especificamente, o matricdio?

    As tragdias criadas na cultura grega nos levaro a particularidades que talvez

    no sejam imaginveis hoje. Por exemplo, falando de mes e filhos, tema de nossa

    interveno, recentemente traduzimos o texto dramtico Medeia, de Eurpides e nos

    surpreendemos com a escolha lexical de Eurpides. Pea bastante conhecida, Medeia

    versa sobre a princesa colca que mata seus filhos para vingar-se de seu marido Jaso.

    Ora, aps a traduo notamos que nessa pea no h uma vez sequer o registro da

    palavra filho/; curioso, no?16

    Diante disso, poderamos imaginar que a palavra no existisse ou no fosse de

    uso comum poca. Investigando, averiguamos que Chantraine no confirma essa

    hiptese.17 A palavra existia e era de uso comum, exceto para os trgicos. Incrvel, no?

    16 Das peas de Eurpides, vamos encontrar o termo somente em Troianas, v. 987 e 747; Resos, v. 539; no Fragmento 424; Orestes, 1689. 17 Traduzimos e transcrevemos trechos do CHANTRAINE, Pierre, Dictionaire tymologique de la langue grecque (p. 1153-1154): : filho (Hom., ion.-att., etc.), tambm (at.), forma mais arcaica (lacon., cretense) e (inscr. t.) e contrato (ibid.); acus. (cretense), (Hom.), (Hom., raro), usualmente (Hom. jon.-at., etc); gen. (Hom., jon.-at.), (Hom., tesslio), (poetas helensticos e tardios), (Corcira sc. VI a.C., Od. 22, 238, jon.-at. etc.); dat. , e (Hom.), e (jon.-at.); nom. pl. , e (Hom.), e (jon.-at.); (poetas helensticos e tardios); acus. (Creta), e (Hom.), e (jon.-at.); gen. (Hom.),

  • Como matar o que no existe? Nessa perspectiva, de fato, a princesa Medeia no mata

    seus filhos, ela extermina antes todos os correlatos que determinam a relao matriz e

    filial: os herdeiros, a prole, os rebentos, os frutos, as crias, a estirpe, os descendentes... E

    essa singularidade do texto em questo nos levar a repensar a cultura antiga, as

    relaes familiares, a narrativa teatral e mesmo a construo potica da tragdia.

    Seremos levados a repensar tambm o crime de Orestes.

    E como no se trata por ora de observar as mes que matam sua prole, e, sim,

    ver a prole que se revolta e elimina sua origem, tentemos entrar no universo outro, no

    mundo grego a ns estranho (e aqui uso o termo estranho sem abolir traos da

    concepo freudiana, que faz coabitar o estranho e o familiar). Tentemos perceber a

    rivalidade e a cumplicidade de dois irmos, Orestes e Electra, no crime contra

    Clitemnestra, sua me. Nosso pressuposto, recordo-lhes, atentar para o modo como se

    d, nessas personagens, a sensao de poder e jbilo depois do crime praticado.

    Cumpre informar que, no sc. V a.C., j existe, legalmente, a distino entre o

    homicdio voluntrio (phonoshekosios) caracterizado pela premeditao, o involuntrio

    (phonos akosios) e o intencional (prnoia). De acordo com essa categorizao, o crime

    de Orestes foi premeditado e intencional (GIL, 2004, p. 146). Sobre a gravidade do ato,

    pensemos: pode-se afirmar que seus motivos no so desprezveis (so polticos, ou o

    poltico seria um motivo ftil?); que, se o meio doloso (Electra atrai a me at sua

    casa, onde ocorrer o matricdio, com o pretexto de um resguardo ps-parto), carece no

    esquecer que os parmetros so outros. Ao falar dos gregos, preciso guardar que dolo,

    na cultura de Ulisses o homem de mil artifcios , um valor insigne; portanto,

    Orestes e Electra, quando enganam Clitemnestra, se revelam hbeis estrategistas

    dotados de enorme sagacidade poltica.

    Nesse contexto, o agravamento se aplicaria maneira como o ato foi praticado,

    com crueldade. Mas o que a crueldade no mundo de guerreiros? Uma s coisa, ento,

    seria condenvel, na situao em debate: a impossibilidade de defesa da vtima. A essa

    e (jon.-at.); dat. e (Hom.), e (jon.-at.), (). Verifica-se que a palavra percorre textos antigos e tardios de regies diversas. Chantraine continua o verbete afirmando que a palavra filho corrente no tico; rara nos trgicos, ela compete com , que atestada somente em Herdoto. H um registro de seu uso no diminutivo, , em Vespas de Aristfanes (v. 1356), um hpax; o tico utiliza, para o diminutivo, mais frequentemente a forma .

  • altura, todavia, voltamos aos antecedentes do crime em squilo e Sfocles. Clitemnestra

    uma , isto , uma uma me desme, isto , uma me desnaturada e,

    amparados por toda a tradio popular grega (que no deixa de ressoar entre ns ainda

    hoje) podemos afirmar: aqui se faz, aqui se paga.

    Acrescente-se que o poeta construiu, de forma verossmil, um bom filho, que

    mata sua me como um , uma divindade vingadora e por isso pode se

    glorificar. O ttulo to meritrio que o leva a disputa com a irm para obter a honra de

    t-lo praticado. E o bom herdeiro no pratica o ato abominvel do sem a

    proteo do poeta. Orestes, o irmo mais novo coagido, e Electra, a mulher castrada

    pela me devido ao casamento esprio que lhe foi imposto, so os salvadores da

    "Micenas rica em ouro", a terra de Agammnon que, por dolo, passou a ser governada

    pelo anmalo casal formado por um homem frouxo e uma mulher viril. Eurpides, se

    no os pune em cena, pelo menos evita a corrupo do jri que squilo arquiteta pelas

    mos de ningum menos que a prpria Atena.

    luz do direito penal, que seleciona e tipifica as condutas, no seria injusto

    afirmar que, no mbito da sociedade grega, conforme os valores mais importantes no

    sculo V a.C., o ato de Clitemnestra ao matar Agammnon no se compara ao que

    cometeu Orestes ao execut-la. Em consonncia com os valores sociais atenienses o

    matricidio de Orestes foi exemplar. Assim, poderamos razoavelmente afirmar que uma

    sociedade que tolera este ato no considera que a vida humana seja um dos seus bens

    mais importantes, pelo menos no o seria a vida de uma mulher que usurpa o trono. Pois

    bem, isso no novidade. Entendemos que a novidade dar-se- se conjugarmos o crime

    pelo direito sucesso ao crime por paixo; que tal matar a me para angariar a simpatia

    da amante (hiptese irreal para um grego)? Matar por paixo crime justificvel?

    Retomemos a fraqueza de Fedra, conjuguemo-la demncia do campnio

    brasileiro, apaixonado, associemo-las glamurizao dos casamentos e unies

    conjugais, s separaes drsticas, s romantizaes impossveis. Ningum pode negar a

    atualidade e mesmo a banalidade de histrias como as que vemos todos os dias nos

    jornais e que aqui buscamos nas palavras de Manuel Bandeira:

    Misael, funcionrio da Fazenda, com 63 anos de idade, conheceu Maria Elvira na Lapa prostituda, com sfilis, dermite nos dedos, uma aliana empenhada e os dentes em petio de misria. Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Estcio, pagou mdico, dentista, manicura... Dava tudo o que ela queria. Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado. Misael no queria escndalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma facada. No fez nada disso: mudou de casa. Viveram trs anos assim. Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.

  • Os amantes moraram no Estcio, Rocha, Catete, Rua General Pedra, Olaria, Ramos, Bom Sucesso, Vila Isabel, Rua Marqus de Sapuca, Niteri, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estcio, Todos os Santos, Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Invlidos... Por fim na Rua da Constituio, onde Misael, privado de sentidos e de inteligncia, matou-a com seis tiros, e a polcia foi encontr-la cada em decbito dorsal, vestida de organdi azul. (BANDEIRA, 1998, p. 79)

    Talvez este seja um retrato de nossa cultura que possivelmente remeta ao

    negativo da cultura grega de forma que ambos captem uma s realidade: a vida humana,

    conquanto tutelada por normas estabelecidas por consenso, um valor relativo. Um

    consolo nos resta; pelo cdigo penal fazemos boa figura pois, para a posteridade ficar o

    que ele preconiza, ou seja, que, seja em estado de emoo incontrolada, seja por paixo,

    seja por motivos de justa reparao, matar crime contra um bem maior, absoluto e

    inalienvel, a vida. A absolvio do homicida passional (ou do herdeiro espoliado),

    mesmo se o ato foi praticado sob forte emoo ou paixo (ou mesmo fria premeditao)

    dever ser alcanada mediante a apresentao de aspectos que possam justific-la,

    desculp-la, descaracteriz-la, explic-la. Todos tm o direito defesa; para isso servem

    os advogados...

    De um ponto de vista talvez mais ctico, a boa imagem ficar para a posteridade

    se e somente se ns no nos matarmos uns aos outros antes disso. Mas, para o desejo de

    matar, vingar, reparar, estmulos motivados e difceis de controlar, a literatura um

    caminho bom, sublime, alis. A tragdia brasileira narrada por Manuel Bandeira termina

    na via da Constituio, onde o prprio Misael, por certo, v a vtima do seu crime linda

    e literariamente vestida de organdi azul. Retrato a cores dos limites humanos que a lei

    tenta alargar e elevar atravs da exortao ao domnio de si. Vamos a contrapelo do

    brocardo Mala non sunt facienda ut inde veniant bona (Males no devem ser feitos para

    que da venham bens/ boas coisas). Destes males aqui estudados, da cruz que carregou

    Orestes, Electra e o rude campnio, um boa coisa surgiu, a literaturae comele omeio de

    ganhar a vida desta que aqui escreve.

    REFERNCIAS

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