costa, iná camargo. ventos de modernização na crítica brasileira

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I, Ventos de modernização na crítica teatral" A crítica teatral paulista passou pela "experiência moder- na" nos anos 50 e no início dos anos 60 teve a sua "golden age", entre outras razões devido à efervescência política e cul- tural do país. Como boa parte do que houve nos anos 60 é resultado da nossa experiência moderna, é preciso recapitular, ainda que em poucas linhas, o processo de implantação do teatro mo- derno entre nós. Os seus protagonistas, todos direta ou indi- retamente ligados ao TBC, assumiram a tarefa de dotar o país desse melhoramento, a saber, espetáculos compatíveis com o padrão europeu e norte-americano, cujas características de modernidade iam desde o plano da dramaturgia, concepção de espetáculo, métodos de direção e atuação, etc., até o da produção material, que envolvia tanto fontes de financiamento quanto administração empresarial de elencos estáveis. Por isso mesmo, sabiam ser necessário modernizar o gosto e as expec- tativas estéticas do público existente, isto é, reeducá-1o, assim como ampliá-Io, isto é, conquistar e educar um público novo. Originalmente publicado na revista Novos Estudos Cebrap, 11. 40, 1994. 103

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I,

Ventos de modernização na crítica teatral"

A crítica teatral paulista passou pela "experiência moder-na" nos anos 50 e no início dos anos 60 teve a sua "goldenage", entre outras razões devido à efervescência política e cul-tural do país.

Como boa parte do que houve nos anos 60 é resultado danossa experiência moderna, é preciso recapitular, ainda queem poucas linhas, o processo de implantação do teatro mo-derno entre nós. Os seus protagonistas, todos direta ou indi-retamente ligados ao TBC, assumiram a tarefa de dotar o paísdesse melhoramento, a saber, espetáculos compatíveis com opadrão europeu e norte-americano, cujas características demodernidade iam desde o plano da dramaturgia, concepçãode espetáculo, métodos de direção e atuação, etc., até o daprodução material, que envolvia tanto fontes de financiamentoquanto administração empresarial de elencos estáveis. Por issomesmo, sabiam ser necessário modernizar o gosto e as expec-tativas estéticas do público existente, isto é, reeducá-1o, assimcomo ampliá-Io, isto é, conquistar e educar um público novo.

Originalmente publicado na revista Novos Estudos Cebrap, 11. 40, 1994.

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Parte importante desta última tarefa ficou reservada paraa crítica periódica e foi cumprida com extremo empenho porDécio de Alrncida Prado, justamente por isso considerado onosso maior crítico teatral. Mais que isso: ele se transformouem nosso maior mestre do teatro moderno e a importância deseu magistério crítico, exercido por cerca de vinte anos nojornal O Estado de São Paulo, foi reconhecida até mesmo porum de seus mais notórios adversários, Miroel Silveira, numadeclaração que sempre V:11e:1pena reproduzir:

"Como homem mais velho que Décio, eu pude ser testemunhade sua carreira desde praticamente o início e por isso gosto dedizer que, antes de Décio, a crítica teatral no Brasil tinha até umsentido anedótico. (...) Com o Décio (...) pela primeira vez surgiuum fundamento estético, um fundamento filosófico, um funda-mento histórico, um fundamento sociológico na crítica brasileira.Então, a partir de Décio de Almeida Prado, nós começamos real-mente a ter crítica teatral em profundidade". 1

Felizmente o resultado dessa tarefa se encontra disponívelem livros. São três volumes que nosso Crítico começou a pu-blicar em 1956, consciente da importância da função forma-dora que Apresentação do teatro brasileiro modernodesempenharia. Em 1964 foi publicado Teatro em progressoe, registrando na própria data de publicação o descrédito emque caiu o gênero, apenas em 1987 surgiu Exercício findo,com as críticas referentes ao período 1964-1968. Essa pequenacoleção certamente contém o melhor da crítica periódica mo-derna praticada no Brasil, da fundação do TBC aos incidentesde 1968 que afastaram definitivamente o nosso mestre do jor-nalismo teatral.

Antes de prosseguir, cabe especificar um pouco o "moder-no ponto de vista crítico" tão tardiamente viabilizado entre nóspor Décio de Almeida Prado. Como se sabe, () país só tomou

conhecimento muito indireto da revolução nas artes cênicasocorrida na Europa e Estados Unidos, de 1887 (Teatro livrede Antoine na França) a 1933 (Hitler assume o poder na Ale-manha). O que se começou a fazer por aqui durante e depoisda Segunda Guerra Mundial, entre outras contingências, de-pendeu um pouco do tipo de peSSO:1Sque por aqui chegaramjustamente em função da guerra, caso por exemplo de LouisJouvet e Ziembinski. Além disso, a nossa pátria cultural deeleição, a França, por assim dizer, depois de ter sido o palcodo primeiro grande movimento do teatro moderno (o natu-ralismo), ficou completa e conscientemente a reboque dosavanços que se seguiram, sobretudo na Alemanha, na Rús-sia/URSS e nos Estados Unidos. Num sentido muito específicopode-se inclusive afirmar que o teatro moderno francês chegoumesmo a assumir uma deliberada feição regressiva, por opo-sição ao alemão e ao soviético, sobretudo em seu mais impor-tante empreendimento, o Vieux Colombier de J acquesCopeau, de que fez parte Louis Jouvet, um dos mais impor-tantes mestres estrangeiros dos nossos jovens entusiastas doteatro nos anos 40. Por último, mas longe de esgotar o assunto,é preciso registrar que o movimento do qual participou o teatrobrasileiro moderno era expressão de uma euforia rnoderni-zante que atravessava o país de norte a sul, cujos protagonistas- sobretudo :1 burguesia paulista - apostavam todas as fichasnuma espécie de integraçâo sem traumas na expansão da or-dem econômica mundial do pós-guerra, de modo que tinhamreal interesse em dotar o país daqueles melhoramentos (inclu-sive os culturais) que nos equiparariarn aos demais países"adiantados" do ocidente.

Num quadro assim, não é de estranhar que um jornal tãocioso de seu conservadorismo como é O Estado de São Paulopromovesse o TBC, de formas variadas, e patrocinasse a colunateatral mais engajada com o teatro moderno da época. E Déciode Alrneida Prado, seu titular, ali desenvolveu um trabalho críticoprocurando estimular o público leitor :1 comparecer aos espetá-culos (ora chamando a atenção para :1 novidade, ora para a ex-celência, ora para o empenho modernizantc) e, ao mesmo

I Em PRADO, Décio de Almcida, Depoimento ao Sl\'T. lu MESQUITA,Alfrcdo ct alii. Depoimentos 11. Rio de Janeiro, S. 'T, 1977, p, 38-39.

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tempo, tratando de ensinar os seus leitores a ver e criticar umespetáculo teatral moderno. Em outras palavras, o nosso Críticosempre procurou equilibrar duas das funções da crítica jornalís-tica: a prioritária, divulgação/propaganda do espetáculo, e a di-dática, porque se tratava de introduzir ao público o novorepertório analítico, tal como indicado por Miroel Silveira.

Assim como em meados dos anos 50 o TBC vê multipli-carem-se os grupos modernos concorrentes, O Estado de SãoPaulo em pouco tempo deixa de ser a principal referência dacrítica moderna, mas a autoridade do mestre só será propria-mente questionada nos anos 60. Com a guinada à esquerdado Teatro de Arena de São Paulo e, a partir de 1958, com oinício das montagens das peças de Brecht entre nós, nota-seuma espécie de elevação da temperatura ideológica em nossacrítica teatral. É bom insistir em elevação da temperatura, por-que debate ideológico sempre houve; basta ver o que escreviaMiroel Silveira contra certos espetáculos do TBC em críticasreunidas em livro não por acaso chamado A outra crítica. Masessa elevação de temperatura responde pela fisionomia dife-rente que a crítica assumirá nos anos 60.

Tomando de empréstimo um termo de época, podemosdizer que nos anos 60 a crítica teatral se politizou, multipli-cando-se as vozes que defendiam esta ou aquela posição e osveículos onde essas vozes se manifestavam.

As próprias características do debate e da politizaçâo le-varam à multiplicação dos veículos para a crítica teatral. Re-vistas, como a Civilização Brasileira, periódicos de todo tipo,mas de curta duração, começam também a participar do quepode ser considerado a mais ampla discussão sobre o teatro aque o país assistiu em toda a sua história. O clímax desse pro-cesso está documentado numa edição especial da Revista Ci-vilização Brasileira, de 1968, muito a propósito com osubtítulo "Teatro e realidade brasileira". Ali podemos encon-trar desde um representante do teatro e da crítica anterioresa Décio de Almeida Prado, como Joracy Camargo, até Tite deLemos e Luiz Carlos Maciel, os representantes da novíssimageração, já apontando para os novos rumos do que se apre-sentava então como a "vanguarda" teatral.

Se nos anos 5 O a grande imprensa funcionou como o prin-cipal veículo de uma crítica comprometida com as suas funçõesde propaganda e didática, nos anos 60 a crítica nela veiculada,sem perder a primeira, ao mesmo tempo que foi explicitandosua função ideológica, progressivamente deixou a didáticapara as publicações alternativas.

Nos anos 70 esta última tendência se acentuou como res-posta aos próprios rumos tomados pelo teatro, mas tambémcomo decorrência de importantes mudanças observadas nacrítica praticada na grande imprensa. Além do nosso maiorcrítico ter saído de cena e dos mais enraivecidos protagonistasdo "teatro de vanguarda", como Zé Celso, terem desencadea-do um sistemático processo de descrédito de seus principaisherdeiros, os próprios críticos parecem ter começado a ques-tionar seus direitos e pressupostos. O resultado é que nos anos70 e início dos 80 acabou-se definindo uma clara divisão detrabalho entre a grande imprensa e a alternativa: a primeiraassumiu exclusivamente a função propagandística da crítica ea segunda reservou-se o papel de reflexão mais ambiciosa einclusive didática, tanto sobre os espetáculos das temporadasquanto sobre o fenômeno teatral. Quando, em meados dosanos 80, os novos ventos da globalização econômica varreramdo cenário as publicações alternativas, o teatro brasileiro pas-

No período o teatro assumiu uma espécie de "centralida-de" cultural, assim como a crítica, em meio ao processo maisamplo de politização da sociedade brasileira. Como escreveuRoberto Schwarz, às vésperas do golpe de 1964, "o país vibravae suas opções diante da história mundial eram pão diário parao leitor dos principais jornais'"; O esvaziamento, a despoliti-zaçâo e o silenciamento desse debate só se verificaram após oAI-S, de 1968.

2 SCHWARZ, Roberto. Cultura e política, 1964-1969. O pai de [amilia eoutros estudos. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978, p. 64.

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sou a contar apenas com a grande imprensa, e esta a exercerapenas a função de divulgação. Até agora parece não haverdisposição para rever este papel de simples veículo de propa-ganda teatral, a menos que sejamos ingênuos a ponto de tornaras atuais campanhas de marketing teatral como algo mais doque simples marketing programaticamente voltado para algu-mas griffes exclusivas.