corrida com barreiras_revista amanhã

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Revista Amanhã http://amanha.terra.com.br/edicoes/191/especial.asp Edição: 191 09/03 Na segunda reportagem da série sobre Alca, AMANHÃ mostra o quanto a infra-estrutura deficiente e o parco índice de inovação limitam o poder de fogo do Brasil no bloco Uma gafe diplomática marcou a viagem de um grupo de conselheiros do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) ao Brasil, em abril deste ano. Durante uma entrevista à imprensa, um dos visitantes, William Westman, aventurou- se a discutir os impasses comerciais que atrasam a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) - por exemplo, a questão dos subsídios agrícolas. Bem-humorado, Westman conduziu a conversa com naturalidade e até se arriscou a falar português com os jornalistas. No final, porém, o conselheiro se entusiasmou além da conta. Ao comentar as possíveis concessões que o governo norte-americano terá de fazer para viabilizar a Alca, ele deixou escapar uma declaração que soou bem pouco modesta aos seus anfitriões: "É lógico que vamos perder um pouquinho. Não se pode ganhar em tudo". Os Estados Unidos realmente têm motivos para acreditar que a Alca trará mais ganhos do que perdas para as suas empresas. Além da reconhecida capacidade do governo norte-americano de criar entraves a produtos estrangeiros, há as barreiras que o próprio Brasil se impõe e que abalam a competitividade de suas companhias no exterior. Mais do que nunca, o país sente no bolso a carência de investimentos em infra-estrutura e afunda na própria incapacidade de gerar novas tecnologias. De quebra, os empresários vêem sua rentabilidade diminuir e, assim, sofrem para competir lá fora. Isso explica por que tantos setores da economia nacional encaram o bloco das Américas com o olhar temeroso de quem vai perder tudo, e não apenas "um pouquinho". Até o agronegócio brasileiro, considerado o setor mais preparado para encarar a Alca, paga o preço pelas deficiências da infra-estrutura nacional. O Brasil acaba de colher uma safra histórica de 120 milhões de toneladas de grãos. O que é motivo de orgulho para o governo e para os brasileiros, porém, esconde uma fatalidade: não há silos suficientes no país para estocar toda essa produção - estima-se que 30 milhões de toneladas terão de ficar a céu aberto. A escassez de armazenagem força os agricultores a vender sua colheita rapidamente. Assim, eles deixam de aproveitar as oportunidades de negócios que surgem ao longo do ano, quando os preços sobem. Mais: a safra brasileira é embarcada quase toda em caminhões, o que torna o transporte agrícola mais perigoso, lento e caro. Com o sucateamento da malha rodoviária brasileira, os produtores ainda têm de arcar com despesas de avarias nos veículos, perdas durante a viagem, gastos com pedágios e outros infortúnios que apenas encarecem os carregamentos. Como se não bastasse, há problemas nos portos por onde se despacham as cargas para o exterior. Os custos de movimentação de contêineres são altos, e a maioria dos terminais ainda deixa a desejar em termos de infra-estrutura - mesmo depois de toda a modernização empreendida nos últimos dez anos. A própria Associação Brasileira de Terminais Portuários (ABTP) reconhece que os portos chegam a representar 10% dos custos de exportação no país. Além disso, a chance de que um navio estrangeiro carregue os grãos é de mais de 95%, devido à completa ausência de cargueiros nacionais. Terminada a romaria entre a lavoura e a embarcação, portanto, pode-se imaginar o quanto a precária infra-estrutura brasileira encarece os produtos. O tamanho da desvantagem fica mais claro quando se compara o custo do transporte agrícola brasileiro com o norte-americano: estima-se que a logística no Brasil chega a ser 70% mais cara do que nos Estados Unidos..

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Terminada a romaria entre a lavoura e a embarcação, portanto, pode-se imaginar o quanto a precária infra-estrutura brasileira encarece os produtos. O tamanho da desvantagem fica mais claro quando se compara o custo do transporte agrícola brasileiro com o norte-americano: estima-se que a logística no Brasil chega a ser 70% mais cara do que nos Estados Unidos..

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Page 1: Corrida com barreiras_Revista Amanhã

Revista Amanhã http://amanha.terra.com.br/edicoes/191/especial.asp Edição: 191 09/03

Na segunda reportagem da série sobre Alca, AMANHÃ mostra o quanto a infra-estrutura deficiente e o parco índice de inovação limitam o poder de fogo do Brasil no bloco

Uma gafe diplomática marcou a viagem de um grupo de conselheiros do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA) ao Brasil, em abril deste ano. Durante uma entrevista à imprensa, um dos visitantes, William Westman, aventurou-se a discutir os impasses comerciais que atrasam a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) - por exemplo, a questão dos subsídios agrícolas. Bem-humorado, Westman conduziu a conversa com naturalidade e até se arriscou a falar português com os jornalistas. No final, porém, o conselheiro se entusiasmou além da conta. Ao comentar as possíveis concessões que o governo norte-americano terá de fazer para viabilizar a Alca, ele deixou escapar uma declaração que soou bem pouco modesta aos seus anfitriões: "É lógico que vamos perder um pouquinho. Não se pode ganhar em tudo".

Os Estados Unidos realmente têm motivos para acreditar que a Alca trará mais ganhos do que perdas para as suas empresas. Além da reconhecida capacidade do governo norte-americano de criar entraves a produtos estrangeiros, há as barreiras que o próprio Brasil se impõe e que abalam a competitividade de suas companhias no exterior. Mais do que nunca, o país sente no bolso a carência de investimentos em infra-estrutura e afunda na própria incapacidade de gerar novas tecnologias. De quebra, os empresários vêem sua rentabilidade diminuir e, assim, sofrem para competir lá fora. Isso explica por que tantos setores da economia nacional encaram o bloco das Américas com o olhar temeroso de quem vai perder tudo, e não apenas "um pouquinho".

Até o agronegócio brasileiro, considerado o setor mais preparado para encarar a Alca, paga o preço pelas deficiências da infra-estrutura nacional. O Brasil acaba de colher uma safra histórica de 120 milhões de toneladas de grãos. O que é motivo de orgulho para o governo e para os brasileiros, porém, esconde uma fatalidade: não há silos suficientes no país para estocar toda essa produção - estima-se que 30 milhões de toneladas terão de ficar a céu aberto. A escassez de armazenagem força os agricultores a vender sua colheita rapidamente. Assim, eles deixam de aproveitar as oportunidades de negócios que surgem ao longo do ano, quando os preços sobem.

Mais: a safra brasileira é embarcada quase toda em caminhões, o que torna o transporte agrícola mais perigoso, lento e caro. Com o sucateamento da malha rodoviária brasileira, os produtores ainda têm de arcar com despesas de avarias nos veículos, perdas durante a viagem, gastos com pedágios e outros infortúnios que apenas encarecem os carregamentos. Como se não bastasse, há problemas nos portos por onde se despacham as cargas para o exterior. Os custos de movimentação de contêineres são altos, e a maioria dos terminais ainda deixa a desejar em termos de infra-estrutura - mesmo depois de toda a modernização empreendida nos últimos dez anos. A própria Associação Brasileira de Terminais Portuários (ABTP) reconhece que os portos chegam a representar 10% dos custos de exportação no país. Além disso, a chance de que um navio estrangeiro carregue os grãos é de mais de 95%, devido à completa ausência de cargueiros nacionais.

Terminada a romaria entre a lavoura e a embarcação, portanto, pode-se imaginar o quanto a precária infra-estrutura brasileira encarece os produtos. O tamanho da desvantagem fica mais claro quando se compara o custo do transporte agrícola brasileiro com o norte-americano: estima-se que a logística no Brasil chega a ser 70% mais cara do que nos Estados Unidos..

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"O Brasil ainda está muito longe dos padrões internacionais de infra-estrutura", resume Maurice Costin, diretor de comércio exterior e relações internacionais da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp). A retomada do transporte ferroviário e uma nova onda de modernização dos portos, aponta ele, são ações urgentes para que o país aumente sua desprezível participação no comércio mundial - hoje inferior a 1%. "A falta de investimentos acaba se tornando uma barreira auto-imposta às empresas brasileiras", lamenta Costin. Estimativas oficiais mostram que os investimentos totais em infra-estrutura no Brasil não devem passar dos U$ 10 bilhões neste ano - metade do que seria necessário para acompanhar até mesmo o tímido crescimento projetado para a economia. A falta de caixa do governo e o desinteresse momentâneo de empresas privadas (tanto nacionais como estrangeiras) em investir no Brasil só agravam o problema.

Estudo do IBGE mostra que, de cada 25 produtos criados no Brasil, apenas um é novo no mercado nacional. Ou seja: a regra entre as empresas brasileiras é copiar.

Investimentos no escuro - Para Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infra-Estrutura (CBIE), o pior dos mundos ainda está no setor energético. Se a Alca ajudar o Brasil a crescer significativamente, um novo apagão poderá abater a economia em 2007. "As obras que deveriam ter sido feitas ainda nem começaram e certamente estamos a perigo", alerta Pires. O novo modelo do setor energético, apresentado pelo Ministério de Minas e Energia, deve levar cerca de 20 anos para estabilizar a oferta no Brasil. A proposta não vem agradando nem um pouco. Na avaliação do diretor do CBIE, os objetivos principais - atrair investimentos e baixar as tarifas - não serão atingidos. "O governo está reeditando o modelo do período que vigorou no período militar, tentando regular o sistema sozinho. A ministra Dilma (Rousseff, de Minas e Energia) mantém uma postura xiita de negociação e só quer discutir a perfumaria", ataca Pires.

O principal motivo para a escassez de investimentos de companhias brasileiras é de conhecimento geral: o alto custo do dinheiro. Os empresários fazem o possível para não recorrer a empréstimos. E quem se arrisca paga a taxa de juros mais alta das Américas. Por isso, o Brasil é um dos países com menor volume de dinheiro emprestado - o equivalente a 23% de seu PIB. Na Argentina, apesar da crise, a proporção chega a 35%. Para se ter uma idéia do que o índice representa, vale dizer que, na Inglaterra, o montante atinge 100% do PIB e na Alemanha, 140%. "Com dinheiro disponível para as empresas investirem, ficaria mais fácil enfrentar a Alca", lembra Miguel José Ribeiro de Oliveira, presidente da Associação Nacional dos Executivos de Finanças (Anefac). A necessidade de aportes fica clara quando se observam alguns "micos" que o país paga. Recentemente, empresas nacionais perderam para a firma japonesa Toyo a concorrência de US$ 500 milhões, aberta pelo prório governo brasileiro, via Petrobras, para a construção de um gasoduto entre Campos (RJ) e Guararena (SP). Ironicamente, o país está exportando tubos de aço para os japoneses tocarem o projeto.

* com reportagem de Leandro Demori.

Garantias demais - O dinheiro caro quase sempre vem acompanhado de outras complicações. As linhas fornecidas pelos bancos, geralmente, contemplam somente as empresas que não têm dívidas - ou seja, uma minoria. E mesmo os poucos que conseguem empréstimo são alvejados por uma quantidade inigualável de exigências e garantias. Para a compra de uma máquina industrial, por exemplo, alguns bancos brasileiros pedem a própria aquisição como garantia, além de outros ativos ou imóveis. "É um absurdo", indigna-se Merheg Cachum, presidente da Associação Brasileira da Indústria do Plástico (Abiplast), um dos setores ameaçados pela Alca. "Daqui a pouco vão pedir sua esposa, sua mãe ou sua avó como garantia", ironiza. No ramo químico, outro que teme a concorrência imposta pelo bloco, a baixa oferta de crédito causa outro problema. "Muitas empresas se endividaram em dólar", conta Guilherme Duque Estrada de Moraes, vice-presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim). Uma frase comum entre os associados da Abiquim traduz essa situação: "Quem investiu quebrou a cara".

Para contornar essa dificuldade, as companhias do setor tentam atrair investidores da iniciativa privada, sobretudo do exterior. Algumas se aventuram a vender ações ou lançar títulos no mercado de capitais. Infelizmente, porém, a iniciativa acaba apenas evidenciando outra desvantagem do Brasil. O mercado de capitais brasileiro é nanico perto do mexicano e do norte-americano. É difícil obter volumes consistentes de recursos. Em geral, os únicos papéis negociados são das chamadas blueships brasileiras - Petrobras, Embratel, Vale do Rio Doce etc. E mesmo essas tratam de buscar um complemento nas bolsas de valores estrangeiras, especialmente na de Nova York, como é o caso da Gerdau e da própria Petrobras.

Sem recursos à disposição, as empresas brasileiras também sofrem para desenvolver novas tecnologias, fundamentais para somar valor às exportações. O aprimoramento tecnológico raramente entra na lista de prioridades das companhias do país. Conforme Moysés Simantob, coordenador executivo do Fórum de Inovação da FGV-EASP, o brasileiro tem a cultura da cópia. Para ele, o fato de as empresas nacionais importarem muita tecnologia acaba desestimulando a produção de pesquisas. "O Brasil precisa parar de copiar e aprender a trabalhar com as universidades", disse Simantob em entrevista publicada na edição de março de 2003 de AMANHÃ. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de cada 25 produtos desenvolvidos no país, apenas um é realmente novo no mercado. Quadro oposto ocorre nos Estados Unidos, onde existem cerca de 1 milhão de pesquisadores, 80% deles trabalhando (e inovando) nas indústrias.

O próprio governo brasileiro parece pouco disposto a aplicar na inovação. Em geral, os investimentos oficiais são para a aquisição, e não para a produção tecnológica. De 1991 a 1999, os gastos governamentais com tecnologia da informação (TI) foram de R$ 2,7 bilhões. Os especialistas garantem que se essa quantia fosse aplicada no incentivo à produção de softwares, redes e outros produtos e serviços, o Brasil certamente deixaria para trás a incômoda posição de "exportador de

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commodities". "Não se pode dizer qual cifra seria a ideal, mas os valores atuais são realmente pouco significativos", diz Antonio Fraquelli, economista da Fundação de Estudos Econômicos (FEE), de Porto Alegre. Um exemplo é o setor de bens de capital. Grande parte dos parques fabris do país está desatualizada. O quadro é agravado pela própria situação da economia, que não cresce significativamente há mais de 20 anos. "Tecnologia e crescimento econômico andam juntos", explica Fraquelli. "Nas duas últimas décadas, o Brasil só teve surtos esporádicos de crescimento, o que não chega a gerar investimentos tecnológicos consistentes."

Na verdade, o Brasil até vem registrando aumento nas exportações de produtos de ponta. Em 1996, as vendas externas de itens de tecnologia eram 19% da pauta brasileira - participação que cresceu para 26% em 2001. Contudo, o país ainda está muito distante dos padrões internacionais. A média mundial é de 44%. Em alguns países emergentes, como Indonésia, a tecnologia responde por 75% do total exportado. A diferença deixa claro que o Brasil ainda precisa percorrer um longo caminho se quiser ganhar - ou perder "só um pouquinho" - quando a Alca finalmente entrar em vigor.

Veículo: Revista Amanhã Data: Setembro/2003