corporiedade como modo-evento fundamental da sensibilidade em levinas

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Filosofazer. Passo Fundo, n. 35, jul./dez. 2009. 51 artigos A carne ética: corporeidade como modo-evento fundamental da sensibilidade em Levinas Cristiano Cerezer * Resumo: Somos seres encarnados e sensíveis aos outros. É possível que nossa “consciência moral” esteja entranhada em nossa carne? Como? Este trabalho consiste numa análise preliminar da corporeidade na feno- menologia levinasiana, considerando sua recepção crítica do método fe- nomenológico e sua releitura ontológica e ética a partir da sensibilidade. Para isso: a) destacará o papel da “via genética” em Emmanuel Levinas e como sua “fenomenologia do sensível” é uma radicalização desta; b) mostrar como a encarnação é um modo/intencionalidade fundamental da sensibilidade em sua ambiguidade de evento e modalidade; c) dará algumas indicações sobre o aspecto da individuação da sensibilidade li- gada a corporeidade. Todo este percurso preparará a seguinte pergunta: o que é o estatuto da “carne ética” em E. Levinas? Palavras-chave: Corporeidade. Evento/Modalidade. Sensibilidade. Indi- viduação. Gênese Ética. * Mestrando em Filosofia na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bolsista CAPES, modalidade DS, pelo projeto: “A sensibilidade como princípio de individua- ção em Levinas”. Orientador Prof. Dr. Marcelo Fabri.

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sobre a fenomenologia do corpo

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  • Filosofazer. Passo Fundo, n. 35, jul./dez. 2009. 51

    artigos

    A carne tica: corporeidade como

    modo-evento fundamental da sensibilidade em Levinas

    Cristiano Cerezer*

    Resumo: Somos seres encarnados e sensveis aos outros. possvel que nossa conscincia moral esteja entranhada em nossa carne? Como? Este trabalho consiste numa anlise preliminar da corporeidade na feno-menologia levinasiana, considerando sua recepo crtica do mtodo fe-nomenolgico e sua releitura ontolgica e tica a partir da sensibilidade. Para isso: a) destacar o papel da via gentica em Emmanuel Levinas e como sua fenomenologia do sensvel uma radicalizao desta; b) mostrar como a encarnao um modo/intencionalidade fundamental da sensibilidade em sua ambiguidade de evento e modalidade; c) dar algumas indicaes sobre o aspecto da individuao da sensibilidade li-gada a corporeidade. Todo este percurso preparar a seguinte pergunta: o que o estatuto da carne tica em E. Levinas?

    Palavras-chave: Corporeidade. Evento/Modalidade. Sensibilidade. Indi-viduao. Gnese tica.* Mestrando em Filosofia na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bolsista

    CAPES, modalidade DS, pelo projeto: A sensibilidade como princpio de individua-o em Levinas. Orientador Prof. Dr. Marcelo Fabri.

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    Introduo: um dedo na ferida moral

    O pensamento do filsofo Emmanuel Levinas (1905-1995) conhe-cido pela radicalidade com que concebe a tica guisa de dimenso de sentido meta-ontolgica. Sua preocupao fundamental saber se a mo-ral uma farsa ou se ela deriva de uma experincia originria cuja sig-nificao precede e ultrapassa os saberes e a compreenso do ser. Por oposio hermenutica compreensiva que a ontologia articula, Levi-nas chamar Outramente-que-Ser significao inter-humana como acontecimento tico. Este, por sua vez, s teria ocasio entre individua-lidades absolutas cuja constituio sensvel possibilitaria a acolhida e a resposta no-alrgica alteridade, ou seja, uma abertura heteronomia no seio da autonomia.

    Na verdade, seu pensamento consiste em pr o dedo na ferida da moralidade, atravs da fenomenologia, trazendo a questo do humano para o centro do pensamento filosfico contemporneo. Assim, a defe-sa do primado da tica beberia seu fundamento numa radicalizao ou hiprbole da fenomenologia do sensvel, onde a encarnao do sujeito implicaria um concernimento ao outro a se tornar responsabilidade e, atravs dela, individuao tica do Eu.

    Yasuhiko Murakami, em Levinas Phnomnologue,1 afirma que o as-pecto tico-metafsico do pensamento levinasiano se assenta numa radi-calizao da fenomenologia do sensvel cujos eixos de articulao: experi-ncia do mundo, relao com a alteridade e instituio da subjetividade concreta fundem-se na questo do corpo (p. 11-19). Para este estudioso, Levinas desenvolve um tipo de antropologia fenomenolgica da fac-ticidade (inter-) humana fundada na corporeidade (p. 16). A instituio do campo topolgico da tica seria derivado da moralizao do Corpo (Leib) ou do sensvel, numa nfase ao carter passivo e responsivo da sen-sibilidade/afetividade (p. 182-183). Em auxlio a tais consideraes traze-

    1 Murakami afirma que E. Levinas fenomenlogo do incio ao fim de sua vida e que mesmo a hiprbole tico-metafsica de sua filosofia uma possibilidade fenomenol-gica radical.

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    mos Natalie Depraz, com Lucidit du Corps,2 avaliar a inscrio de Levinas na via gentica da fenomenologia. Ambos pontuam nosso enfoque.

    Para visualizar o caminho seguido, indicaremos: 1. a passagem da crtica da representao ao resgate fenomenolgico da sensibilidade; 2. o papel da via gentica da fenomenologia; 3. a relao entre hiperestesia, sensibilidade pura e encarnao; 4. a corporeidade como n da tenso individuante do existente; 5. a sensibilidade como encarnao da res-ponsabilidade ou gnese da carne tica.

    1. A crtica da representao e o resgate fenomenolgico da sensibilidade

    A fenomenologia uma reabilitao do sensvel (LEVINAS, 1998, p. 153) e uma destruio da representao (p. 139): assim fala Emmanuel Levinas, em 1959, sobre o especfico do mtodo fenomenolgico no to-cante concretude gentica das experincias vividas pela subjetividade. Certamente o autor se refere s sugestes provocativas, ao impensado, que Husserl trouxe tona e permitiu acessar com a fenomenologia.

    Merleau-Ponty j se referia a este impensado como uma demar-cao do prprio percurso de aprofundamento da reduo fenomenol-gica como a possibilidade que d novamente a pensar, cuja abordagem sempre pensar novamente e aprofundar novamente a reduo (1975, p. 430-433). A sensibilidade aparece como o fundo do qual brotam as significaes e Merleau-Ponty, a seu modo, opera uma reduo ao nvel da percepo pr-teortica visando operar uma reabilitao ontolgica do sensvel (p. 436-437). Certamente h proximidade pontual dos projetos merleaupontiano e levinasiano; contudo, o movimento crtico e o res-gate fenomenolgico do sentir vai, em Levinas, noutra direo que a da afirmao de uma ontologia. A confuso originria entre carne subje-tiva e carne do mundo no campo perceptivo fundamental conduz a

    2 Esta obra o desenvolvimento de uma anterior chamada Trancendance et Incarnation na qual, inspirada por Lvinas e debruando-se sobre Husserl, a autora pensa a inter-subjetividade a partir da corporeidade enquanto sede de uma alteridade-a-si que pos-sibilita a relao com Outrem.

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    uma ontologia do sensvel que, mais fundamental talvez que a ontologia existencial, circunscreve na percepo uma espcie de cognio. Men-cionamos o autor de O Filsofo e sua Sombra para salientar a constatao de que a fenomenologia uma revoluo permanente e que sempre h um aprofundamento possvel da reduo, bem como a atribuio de um papel cada vez mais central sensibilidade na compreenso das gneses fundadoras (p. 434-435).

    Levinas parte das anlises genticas da fenomenologia, radicalizan-do-as, conduzindo-as a seus limites, num movimento que vai da crtica da representao ao resgate fenomenolgico da sensibilidade; todavia, esta ser apreendia aqum da intuio sensvel e da percepo, num m-bito posteriormente denominado pr-originrio. importante ressaltar que essa reduo ao nvel da sensibilidade pura possvel mediante aten-ta considerao crtica a E. Husserl. Algumas impresses determinan-tes so da extradas e apropriadas: a intencionalidade ultrapassada por uma vida transcendental. A visada, na vivncia, esquece dos horizontes constituintes e eventos genticos que lhe do fundamento pr-terico (LEVINAS, 1998, p. 157). H um movimento de subjetivao aqum e irredutvel objetivao (p. 149). A atitude fenomenolgica uma possi-bilidade dessa vida transcendental, mas o processo redutivo no esgota essa vida (p. 169). A reflexo deve buscar a gnese dos fundamentos no sensvel purificado do intelectualismo ingnuo (p. 167-168).

    A gnese das vivncias e da subjetividade vivente se daria na sensibi-lidade. Esta no se reduziria ao meio que fornece matria s intenciona-lidades, mas seria o campo de emergncia das modalidades fundamen-tais do subjetivo: temporalidade e corporeidade (LEVINAS, p. 144-146).

    Temporalizao e encarnao do sujeito se dariam na/como sensi-bilidade; se articulariam a a individuao na durao e a individuao na localizao/motricidade do sujeito. A conexo entre a sensibilidade, modalizada no corpo ou no tempo, e a individuao do sujeito parecem ser algo fundamental. Veremos que as noes de Ur-Impression e de Ur-Empfindung apontam isto.

    A subjetividade , geneticamente, sensibilidade: essa parece ser a in-dicao fenomenolgica aceita e radicalizada por Levinas (1974, p. 109). Os artigos de 1959, dentre os quais destacamos A Runa da Representao e, extemporaneamente, o artigo Intencionalidade e Sensao (1965), so

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    ndices do processo. Paradigmtico , tambm, entre 1959 e 1965, o item A da terceira seo de Totalidade e Infinito (1961), intitulado Rosto e Sensibilidade (p. 167-172).

    A sensibilidade pura, isto , reduzida a um mbito aqum da obje-tivao, revestida de uma funo transcendental subjetivante, onde se inscreve uma afetividade irredutvel percepo e constituio obje-tiva (LEVINAS, 1961, p. 167-168). A fenomenologia do sensvel, qual corresponde geneticamente uma esttica transcendental, deve descrever o sentido dessa funo no-objetiva e fundamental. Tal funo transcen-dental da sensibilidade est ligada encarnao e temporalizao do su-jeito (1998, p. 165-173).

    2. A via gentica e o empirismo transcendental: radicalidade da reduo e gnese sensvel

    A Fenomenologia, em sua estrutura metodolgica, conforme o pro-jeto de recomeo radical e cincia de rigor proposto por E. Husserl, costuma ser dividida em duas vias que se co-fundamentam: via esttica e via gentica.

    A primeira (esttica) se foca na correlao notico-noemtica e no ato especfico (ou modo de constituio) dos objetos para a conscincia. O noema (correlato intencional objetivo), o ndice-guia transcendental de um ato que lhe confere sentido e que desde j remete a um horizon-te de potencialidades referidas a uma orientao da subjetividade. Seu procedimento metodolgico a estratificao da descrio em nveis de constituio num descenso at o ego transcendental. Este seria como que o polo irradiador e centro funcional da atividade intencional. Imperaria aqui uma egologia transcendental, pois a ateno se volta para a atividade egica da constituio e as camadas constitudas por essa atividade. Uma descrio das camadas constitutivas, cujo limite seria propriamente o ego constituinte (DEPRAZ, 1999, p. 44-47).

    Em seguida, a partir da reduo eidtica, dar-se-ia uma descrio das essncias por variao eidtica, isto , por acercamento imaginativo do invarivel universal captado intuitivamente nas relaes entre fatos

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    (DEPRAZ, 1999, p. 36-38). A descrio de essncias e os modos de cons-tituio, componentes do idealismo transcendental, pedem um critrio de objetividade mais profundo que a correlao intencional e o recurso intuio. Surge o problema da intersubjetividade como condute da ob-jetivao e da possibilidade de explicitao das essncias e que remete geneticamente ao problema da corporeidade (DEPRAZ, 1999, p. 80-86; MERLEAU-PONTY, 1975, p. 439-441).

    A via gentica implica a ateno voltada para a gnese das vivn-cias do sujeito e concretude da vida antes de expor-se correlao e distino objetiva. Genealogia e ecografia das vivncias, o que significa isto? Ater-se gnese das vivncias consistiria em empreender um es-foro de aproximao dos modos originais de produo de sentido na subjetividade nascente. Tal procedimento estaria restrito aos ecos ou vestgios desse nvel gentico no nvel da constituio. O aprofunda-mento da reduo fenomenolgica conduz aqui a um nvel pr-reflexivo ante-predicativo ou pr/proto-constitutivo. A descrio fenomenolgica aqui aproximativa, num reiterado retrocesso ao originrio, sempre su-jeita a aprofundamentos. Esta via descobrir a sensibilidade como pro-to-horizonte e fonte fundamental da gnese subjetiva e das intenciona-lidades primeiras (DEPRAZ, 1999, p.53-54).

    A nfase sensibilidade faz vir tona o empirismo transcendental, por oposio ao idealismo, e a alterologia transcendental, por oposio egologia, na fenomenologia (DEPRAZ, 1999, p. 114; MERLEAU-PON-TY, 1975, p. 447-448). A ocasio disto foi a constatao da implicao entre a experincia da corporeidade (leiblichkeit) e a experincia do outro (einfhlung), no campo da gnese sensvel da subjetividade e da inter-subjetividade. A ateno gnese das vivncias num estgio pr-objetivo, das camadas constituintes iniciais e primeiros ns intencionais (MER-LEAU-PONTY, 1975, p. 436) pediu uma articulao entre alterologia e esttica transcendental; esta ltima se referiria ao a priori material e proto-noemtico da intuio sensvel (p. 441-443).

    Importante tambm a distino entre as gneses passiva e ativa no seio da sensibilidade: a primeira seria a passividade sensvel inicial, cujas formas seriam a associao e a durao; a segunda comportaria um mo-vimento prtico e uma espontaneidade intervindo na ou emergindo da passividade, como identificao ativa (DEPRAZ, 1999, p. 62-63).

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    O ego geneticamente considerado no seria apenas o esquema for-mal de possibilidade transcendental do eu concreto, mas a prpria con-cretude viva: unidade do fluxo de vivncias, substrato coesivo de habi-tualidades, ponto de incidncia das afeces, corpo vivo. A via gentica seria a busca da concretude esquecida da subjetividade transcendental.

    A descrio ou anlise da corporeidade e da temporalidade encon-traria seu terreno na fenomenologia gentica (empirismo transcendental: alterologia + esttica) ou fenomenologia do sensvel. Ambas seriam mo-dalidades fundamentais da sensibilidade. Esta encarnaria e temporaliza-ria o sujeito originariamente sensvel. O tempo imanente, a sensao de escoamento no fluxo de sensaes e a sntese passiva do sentir, trazem no seio dessa durao uma ruptura e um despertar. Na passividade do sentir, no golpe da sensao, ocorreria a gnese espontnea do sujeito: o fluxo das sensaes se torna o sentimento do fluxo, produz-se a uni-dade das vivncias num presente vivo, presena a si da vida auto-afetiva, encarnao sensvel da temporalidade vivida singularmente (DEPRAZ, 1999, p. 66-69).

    A temporalidade, na proto-impresso, produziria uma individuao na durao (LEVINAS, 1998, p. 144). A proto-impresso (Ur-impression) seria o vir-a-si no sentir da sensao, uma ruptura da imanncia por uma surpresa que suscitaria um despertar. Abre-se um intervalo, mni-ma diacronia necessria, na sincronia. Um choque nos acordaria no in-terior da vida irrefletida? O que vale sublinhar que h, na temporaliza-o, uma iterao sensvel culminando na gnese espontnea do si como presena. Deve-se notar que esse fluxo interno de sensaes flutua sobre e dentro de um corpo vivo (p.145). Precisamente a corporeidade nos interessa nesse texto.

    Detenhamo-nos um pouco mais na temporalidade, relacionando-a corporeidade no processo que a sensibilidade levaria a cabo. Este pro-cesso seria a individuao: a sensibilidade seria seu princpio ou campo gentico (LEVINAS, 1998, p.146). A individuao sempre se referiu, na tradio, a uma propriedade determinante sui generis (tod ti) ou a uma situao especificante no espao e no tempo (hic et nunc). Na feno-menologia, porm, espacialidade e temporalidade no so desprezadas, mas re-significadas a partir da sensibilidade. O aqui e o agora origi-nrios, no seio de uma experincia sensvel originria, so gerados na/

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    como sensibilidade, integrados num evento subjetivo carnal e temporal. Eles conferem uma determinao interna a partir da sensibilidade, mar-cando a subjetivao modalizada como produo da corporeidade e da temporalidade.

    O agora originrio da temporalizao se produz como presente vivo. Na dinmica de retenes-protenses a cada proto-impresso se segue uma modificao e uma nova presentificao, cuja fonte a auto--afeco no fluxo sensvel. A referncia no-objetivante ao si da cons-cincia por trs dos atos objetivantes chamada vivncia (erlebnisse), onde os vividos se integram/dissolvem numa vida transcendental pr-reflexiva (LEVINAS, 1998, p. 180). A proto-impresso, e a vivncia, marcam uma individuao na durao das sensaes.

    O aqui originrio estaria ligado aos fenmenos da localizao e do movimento. A corporeidade articularia uma ambiguidade modal e uma iterao fundamental imediata, encarnando o sujeito. Tal encarna-o refere-se, em Husserl, tipologia bsica das sensaes primordiais. Primeiro teramos as Empfindnisses (sensaes de localizao), ligadas ao carter difuso e localizado do sentir (LEVINAS, 1998, p.190-191). Na sensao de localizao, o sujeito tocante-tocado, o toque se toca ao tocar, ocorrendo uma localizao da sensibilidade no corpo, a en-carnao como proto-localizao/Ur-empfindung (MERLEAU-PONTY, 1975 p. 446). Segundo, co-genticas s empfindnisses, teramos as kines-thesias ou sensaes de movimento. Ao mover algo, o eu se sente mo-vente-movido, o movimento lhe surge como um eu posso simultneo a um eu sofro. Essa iterao e ambiguidade imediata e encarna o su-jeito. Significa uma separao em relao ao movido e um movimento da sensibilidade separada. Levinas interpreta isso, desde Husserl, como possibilidade de entrar (num horizonte) e de comear (rompendo e reatando com o mundo); a motricidade articularia um transcendncia corporal (LEVINAS, 1998, p.170-173). Corpo-ambiguidade: o condi-cionado se torna condio, o que suportado por se separa de para entrar em.

    No sujeito nascente o corpo a sede de sua subjetividade e o ponto--zero de toda orientao e constituio nos/dos horizontes nos quais se situa: situao corporal. O sujeito, partindo dela, constitui os horizontes nos quais se move, como um pintor que se percebe provindo do quadro

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    que est a pintar. A ambiguidade de condio-condicionado deriva da duplicidade de separao-insero com relao ao mundo, fenmeno ligado prpria vida por seu carter de interioridade sensvel. Pode-se imaginar um rochedo do qual jorra gua e que ao mesmo tempo movi-do por esse fluxo (LEVINAS, 1961, p. 112-113).

    3. Lucidez do corpo e sensibilidade difusiva: a encarnao transcendental

    Natalie Depraz, ao analisar a questo da corporeidade no empiris-mo transcendental da fenomenologia, aponta que a reduo gentica en-gendra um movimento de des-objetivao do olhar, retirando-o de sua fixidez no objeto e atendo-se gnese das vivncias, subjetivao por trs da objetivao. A des-objetivao do corpo, sua abordagem genti-ca, leva a consider-lo no apenas na ambiguidade de vivente e de vivido, ou na sua plasticidade auto-organizante, mas como carne transcenden-tal. Esta se transcendentaliza (des-objetiva) ao auto-percepcionar-se como carne, isto , ao adquirir uma conscincia aguda, no-objetivante, penetrante e afinada, de sua prpria sensibilidade. Em resumo, a trans-cendentalidade da carne reside em sua hiper-estesia, na sua sensibilida-de da sensibilidade (2001, p. 17).

    O corpo vivente-vivido caracterizado por sua plasticidade ima-nente, por sua localidade e auto-organizao; a carne transcendental, corporal-subjetiva, seria depositria de uma difusidade exercida. Pls-tico, o corpo vivente-vivido est impregnado de um sentir difuso irre-fletido, o qual pode ser conduzido a falhas e automatismos. Difusiva (e no difusa), a carne transcendental sempre resultado de uma espcie de apercepo transcendental que corresponde a re-incarnao do si--mesmo pelo fato de SE aperceber em pleno exerccio: re-sensibilizao em meio atividade corporal, um sentir-SE em ato (DEPRAZ, 2001, p. 18-19).

    A sensibilidade transcendental seria difusiva (pr-localizada ou ilo-calizvel), encarnando o sujeito pelo sentir corporal que ultrapassa as sensaes localizadas nos rgos sensoriais. Haveria, pois, dois registros

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    da sensibilidade: i. Objetivante; ii. Subjetivante. A este ltimo cabe o nome de sensibilidade pura ou gentica, de carter difusivo e inobjetivvel, que anima a carne sem se localizar num rgo especfico (2001, p. 19).

    Depraz se faz a pergunta: por que Husserl priorizou os registros do tato, da viso e da audio na anlise fenomenolgica da sensibilidade? Qual motivo o levou a negligenciar olfato e paladar? Os sentidos do odor e do sabor no seriam aqueles que permitiriam descrever de modo imi-nente o registro difusivo da sensibilidade transcendental para alm da sen-sorialidade? O paradigma da localizao tendencialmente objetivante; o paradigma da difusividade, tendencialmente subjetivante (2001, p. 19).

    Odor e sabor se tornam paradigmticos no desenvolvimento de uma fenomenologia hiperestsica do corpo. Dado que preenchem e percorrem os envoltrios internos e externos do corpo, sem se ater a um rgo es-pecial. Tais sensaes animam globalmente carne e pele, tendem a ser difusivas, no-localizadas, animao da carnalidade (2001, p.28).

    A sensibilidade difusiva, no-difusa e des-localizada, desponta na carne como suporte no-local do sentir. As sensaes que localizam a sen-sibilidade no corpo esto em todas as partes e em nenhuma; assim, a sensibilidade transcendental, que est ao fundo, no , portanto, locali-zvel. Isto apontaria para uma comunicao originria entre os sentidos diversos, uma interpenetrao sensvel, uma sin-esthesia. Essa sinestesia estaria ligada a uma afetividade que rene e mantm tal inter-sensoria-lidade. Neste ponto a autora analisa Levinas, situando-o numa perspec-tiva que leva em conta a difusividade e a relao sinestesia-afetividade (2001, p. 29-35).

    O pensamento levinasiano desdobrar dois registros do que se de-nominou sensibilidade pura: fruio e vulnerabilidade. Ambos contm um carter sinestsico e difusivo, sendo que ao primeiro corresponde o afeto do prazer e ao segundo corresponde o afeto da dor. Surge o pro-blema da auto-afeco e da hetero-afeco. A fruio, um sentir radi-calmente no-objetivante e reiterativo, significa gozar dos alimentos, sob aspectos de sabor e odor e, reiterativamente, fruir da fruio, sentir a pr-pria vida. A vulnerabilidade seria a sensibilidade que estaria ao fundo da fruio e que inverteria, na possibilidade da dor e do traumatismo, o mo-vimento pr-tico do para-si complacente em um movimento tico do para-o-outro inquieto. Depraz no se aprofunda muito nas implicaes

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    da fenomenologia tica levinasiana, mas salienta o carter hiperestsico e difusivo da sensibilidade pura (2001, p.31-32). Veremos tais registros a seguir.

    4. Separao: a corporeidade com n tensional entre hipstases e distases

    Em Levinas a corporeidade desempenha uma funo ontolgica importante, no no sentido estritamente heideggeriano do termo (mas marcado pela analtica existencial), e sim invertendo o sentido da onto-logia fundamental. Talvez seja melhor utilizarmos o termo onto-gnese individual para designar o evento de produo de um existente singular, processo que o autor de Da Existncia ao Existente nomear hipstase. Nesta obra, datada de 1947, E. Levinas desenvolve uma anlise que inver-te o movimento compreensivo que vai do ser-a existncia, no sentido de uma abertura a ela a partir no nada do existente, vivido como angstia.

    Levinas questiona inicialmente a metfora da interpelao do ex--sistente pelo Ser, em que o ser-no-mundo articula uma inteleco do ser e uma auto-compreenso do Ser-a vivida com angstia e cuidado. Pelo contrrio, o puro ser uma materialidade annima que no solicita o existente, no transcendncia para o mundo, mas que, na desarticu-lao do mundo (catstrofe), resta como fundo indeterminado que constrange por sua presena annima. Ameaa de dissoluo, precisa ser dominado pelo existente. O autor nomeia H (il y a) ao fato nu e cru da existncia annima (1947, p. 65-70): verbalidade pura que precisa ser conjugada por um substantivo, horror-insnia que precisa ser venci-do pelo esforo que culmina na possibilidade de sono. A conjugao ou substantivao do verbo ser se daria precisamente como hipstase, como produo de um existente que assume a existncia. Como?

    O existente emergiria da existncia mediante sua condio corporal. Dominar o existir implica o esforo contnuo da posio, a manuteno da hipstase. Pr-se corporalmente significa o esforo de cada instan-te em que o ente concreto mergulha no elemento, tateia, alimenta-se e recolhe-se novamente em si (LEVINAS, 1947, p.36-7). A corporeidade, a materialidade pessoal ou individuada, separada do ser, esfora-se por

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    ser-SE a partir de si (p. 85-88). precisamente este SI que comporta o peso material do esforo, que desdobra o SER num TER (p. 28). O exis-tente se empenha e se cansa, o peso do corpo que outrora lhe permitia dominar os elementos recai sobre SI, a conscincia se apaga, a vida recolhe-se, dorme. O sono aponta para dois aspectos: i. A funo ontol-gica do inconsciente; ii. A funo ontolgica do lugar.

    A conscincia insone, obsediada pelo Il y a, seria contraditria, pois ela estaria sempre na epiderme, exposta a um roar annimo, sem evaso possvel, imobilizada numa viglia absurda (1947, p. 79-81). A conscin-cia se definiria, contrariamente, por sua capacidade de evadir-se para dentro, de recolher-SE, de ser interioridade. Ela existe em relao com o inconsciente, no no sentido psicanaltico, como seu recurso contra si mesma, seu refgio em si mesma (p. 42, 84). No corpo que se esfora e se cansa h uma interioridade que se produz como retrao no pleno, recuo para dentro, e como choque de retorno: sono e despertar, cinti-lao. O sono o modo de recolhimento na interioridade, interioridade como recolher-SE.

    O sono pe em relao originria com o lugar como refgio e base. Levinas insiste que o instante de reunio da disperso, o presente hi-posttico, se deve a uma estncia originria. Ao dormir, o corpo aban-donado ao lugar enquanto refgio, isto , abandonado sua posio, con-centra-se no aqui que o prprio corpo, e, ao despertar, toma o lugar como base para novos esforos, age com novas energias, num re-comeo (1947, p. 85-66, 89-90).

    O corpo seria, segundo Levinas, da ordem do evento (1947, p. 88). A posio a produo da interioridade, gnese do existente assumindo a materialidade de sua existncia. Base-sede da subjetivao, aconteci-mento mais que substantivo. Corpo-N: tenso de des-incarnao e re--incarnao do subjetivo. Corporeidade como estrutura invariante fun-damental da identificao (reunio de si: hipstase) e da diferenciao (alterao de si: distase): o existente se pe sob ameaa de dissoluo, sob/apesar do peso/dor dessa posio (MURAKAMI, 2002, p.80-83).

    Em resumo: i. A corporeidade modalidade/condio do evento de subjetivao (produo de uma interioridade/existente); ii. O corpo se mantm como unidade na ambiguidade de hipstases-distases; iii. Aqui e agora coincidem na estncia do instante, n hiposttico cor-poral.

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    A ontogentica fenomenolgica, de 1947, ou ontologia levinasiana, parece ser uma ruptura com Heidegger ao radicalizar certos acentos ge-nticos de inspirao husserliana, mas, ao enunci-los, mantm o tom e modo de uma analtica da facticidade. O que lhe importa captar a gnese do existente como separao do absurdo H. Ela ser ligada corporei-dade e depois reconduzida sensibilidade pura, que o corpo articula e modaliza (MURAKAMI, 2002 p. 23-124). a esta categoria, a Separa-o, que daremos ateno agora.

    Em 1961 veio luz a primeira obra-mestra de Emmanuel Levinas: Totalidade e Infinito. Ali o autor se empenha em afirmar o primado da tica em relao ontologia, como lugar primeiro da significao, fon-te do sentido inter-humano evadindo-se do no-sentido. Desde 1947, e em O Tempo e O Outro (1948), Levinas abrigava a tica como mbito da produo do sentido guisa de transcendncia para-o-outro, como sa-da do definitivo da solido hiposttica e da ameaa do H. Mas o que fundamenta a hipstase ao nvel da vida sensvel? Qual o papel que ela desempenhar da defesa da teoria tico-metafsica levinasiana?

    Ano 1961: neste perodo, mitigados os traos mais tipicamente on-tolgicos, a tenso de hipstases e distases, a posio do existente, pensada sob o ttulo de separao. A novidade que a categoria de se-parao, alm de fazer aprofundar as anlises da corporeidade, fruto de uma anlise da sensibilidade sob o registro da fruio (p. 120). No seio da sensibilidade enquanto fruio que, atravs do corpo, o existente se constitui como vivente, como interioridade sensvel.

    A fruio seria o fato da vida enquanto gozo, enredada nos conte-dos de que/em que vive, como satisfao e felicidade inocente, auto--suficincia na alimentao (LEVINAS, 1961, p. 96-97). A individuao sensvel se daria aqui na exaltao e na contrao do gozo, em que, no prazer, h uma defasagem e uma involuo, uma interiorizao (p. 104). O para-si mais que para-o-outro, alimentao, assimilao da alterida-de relativa dos elementos, saciando uma necessidade. A necessidade o primeiro movimento do existente encarnado, a indigncia que prome-te plenitude, fome que sobrevm na defasagem do gozo mas recorda o prazer. A separao como a distncia/no-coincidncia entre o Si e o mundo, produo de um intervalo ou um segredo que precisamente a interioridade. A necessidade como suspenso de e possibilidade de frui-

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    o do mundo o paradoxo corporal de uma independncia dependen-te: um existente se separa do mundo do qual, no entanto, se alimenta (p. 100-103).

    O corpo articula tais ambiguidades (1961, p. 102, 12-14, 145-146): necessidade e alimentao, dependncia e independncia, defasagem e plenitude, fome e satisfao, sujeio e posse, materialidade e sensibili-dade. A radicalidade da separao, a interiorizao como exaltao do gozo e contrao do sentimento, ser creatio ex nihilo (p. 51): comporta uma atesmo fundamental, a ignorncia completa da exterioridade, vida irrefletida e acrtica (p. 122). Fato da vivncia enquanto esquecimen-to do que a condiciona, paradoxo da posterioridade do anterior, isto , do criado/condicionado que, ao despertar, tomar-se como causa sui e constitui aquilo que lhe condiciona: ignorncia que o psiquismo, a fruio ou sensibilidade pr-tica. A individuao/subjetivao na feli-cidade e no gozo pr-categorial, produz um absoluto irrepresentvel, cujo enigma irredutvel sua vida interior (p. 42-45).

    Levinas insiste que o corpo no objeto, mas subjetividade ou sub-jetivao. Ele o prprio regime sob o qual se exerce a separao, o como ou a modalidade desta, advrbio mais que substantivo (1961, p. 145). A maneira fundamental da corporeidade a ambiguidade. Ela auto-remisso que possui uma alteridade interna, uma auto-alienao: soberania e submisso, independncia na dependncia. Traduz a fruio na confuso de atividade e passividade na satisfao, frico e alimenta-o, exaltao e contrao, mergulho em e separao do elemental. Ambiguidade, corpo-prprio e corpo-efeito. O elemento que, na frui-o, alimenta a hipstase do existente, provoca, em contrapartida, por seu atrito e adversidade, uma distase, alterao e desgaste. O corpo que aguenta e pode, tambm envelhece e adoece (p. 146-147).

    A vida se tece enquanto corporeidade. A sensibilidade encarna a subjetividade, produz o psiquismo ou a interioridade. A existncia cor-poral concretiza, na fruio, a separao. Note-se que a ambiguidade do corpo se expressa ainda na conscincia da mortalidade na adversidade e no adiamento da morte como fruio e trabalho. A sensibilidade que anima o corpo, a ipseidade como afetividade e sentimento, a fruio da fruio, ao trabalhar, mantm-se no adiamento da morte. simultanea-

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    mente o pressentimento da dor e pacincia de suportar a vida. A ambi-guidade do sofrimento e do gozo a conscincia vivente, o tempo da vida. No trabalho, o corpo mantm-se entre o esforo e o cansao, entre o comprometimento no outro e o recolhimento numa interioridade. A posio do corpo, ambgua e reflexionante, enquanto concretiza a sensi-bilidade, o acontecimento da interioridade (1961, p.147-8). Entretanto, sensibilidade que leva a cabo a posio de si, traz ao fundo a possibilida-de de ex-posio aos outros.

    5. Posio e ex-posio: o acontecimento tico da responsabilidade encarnada

    Na obra Autrement Qutre ou Au-Dela de LEssence (1974), surge o registro da vulnerabilidade (Cf. BERNET, 1997). Levinas defende que a subjetividade concreta traz uma passividade de fundo inassumvel, cuja temporalidade diacrnica est ligada pacincia do sofrimento e do en-velhecimento (p.108). A existncia encarnada produziria uma exposio passiva alteridade de outrem no seio da alterao de si marcada pela senescncia e pela adversidade (p.109). A vulnerabilidade estaria ligada possibilidade da dor como perturbao e interrupo do gozo solitrio, como inverso do impulso egosta numa considerao da alteridade de outrem.

    A subjetividade, nos modos da corporeidade, seria a sensibilidade enquanto vulnerabilidade (1974, p. 109). A ipseidade do eu descrita como passividade acusativa respondendo a uma exigncia tica: oferecimento no sofrimento, uma bondade a seu pesar. Diante do outro, proximidade do face-a-face, o sujeito ex-posto ao traumatismo, responsivo, oferecendo--se em resposta, sofrendo pelo outro sob o risco de sofrer por nada.

    Na passividade da vida encarnada (Cf. CALIN, 2000; REICHOLD, 2006), na pacincia da vulnerabilidade, se articularia o irrecusvel da responsabilidade, do um-para-o-outro. O sentido da responsabilidade seria a substituio, o Um-pelo-Outro ou a individuao tica do sujeito que responde ao ponto de dar a vida em reposta exigncia tica entra-

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    nhada na sua vulnerabilidade e se atualiza diante do Rosto de outrem. Substituio na Separao, individuao na proximidade inter-huma-na, a vulnerabilidade no destri a fruio, mas a re-significa eticamente (1974, p.109-112).

    sob os modos ou sob as espcies da corporeidade, cujos movimen-tos so cansao e cuja durao envelhecimento, que a passividade da significao e a individuao tica (Um-pelo-Outro) no so objetiva-o, mas sensibilidade, pacincia na iminncia da dor e na ex-posio aos outros. A iminncia da dor apontaria sensibilidade vivida como gozo, perturbando-o e invertendo-o num doar. O para-o-outro um a seu pesar, o sofrer seria j para como um oferecer. O Outro concerne ao sujeito que sofre em sua unicidade de passividade acusativa recorren-te na responsabilidade. A passividade acusativa, a inassumvel exposio da subjetividade, se relaciona com a obsesso na/pela responsabilidade pelo outro vulnervel e mortal (1974, p.109-112).

    A exposio e a obsesso pelo outro na proximidade so a seu pe-sar, dor, adversidade da corporeidade suscetvel ferida, ao cansao, doena e velhice (1974, p. 110). Os modos da corporeidade so como a sensibilidade expressa sua ambiguidade: a vulnerabilidade perturba e inverte o sentido da fruio sem destruir a separao, mas sempre sob risco de. Os traos fundamentais dessa modalidade so: i. para o ou-tro; ii. a seu pesar; iii. a partir de si. A sensibilidade seria, portanto, vulnerabilidade ao fundo da fruio, passividade na dolncia, inquietude na proximidade. A dor penetrando o corao do para-si, alimentado e complacente no gozo, interrompendo o seu egosmo vital (sem dissol-ver-lhe a vida) e invertendo-o em para-o-outro, a seu pesar, dando de si e a partir do SI (p.110-111).

    A anlise da sensibilidade em Levinas parte, portanto, da fruio (do saborear e do gozar) e se aprofunda at a vulnerabilidade (sofrer por e dar), descobrindo o carter tico do sensvel (p. 111). Opera uma re-duo fenomenolgica radical ao mbito pr-originrio da sensibilidade pura; a a apreendemos em dois registros, um pr-tico e um tico. Tal sensibilidade s pde ser descrita segundo os modos da corporeidade a ela referidos conforme o registro.

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    Concluso: eu sou a responsividade de minha carne tica

    Emmanuel Levinas parece se inscrever na via gentica do mto-do fenomenolgico, radicalizando-o ao propor uma fenomenologia da sensibilidade pura e da facticidade inter-humana. Tal reduo gentica radicalizada, ou hiperblica, descobre um mbito pr-originrio onde a sensibilidade descrita sob dois modos fundamentais: temporalidade e corporeidade. Nos focamos nesta ltima. A anlise da corporeidade revela que ela tanto modalidade de um evento levado a cabo pela sen-sibilidade, quanto parte integrante deste evento. A ambiguidade que a se esboa parte essencial do modo da corporeidade. A apreenso do sentido da corporeidade depende do registro da sensibilidade no qual o corpo est sendo lido. No registro pr-tico da fruio o corpo modaliza o evento da separao e da interioridade; no registro tico ele modaliza o acontecimento da socialidade e da responsabilidade. Parece-nos que, dada imbricao essencial entre corporeidade e a sensibilidade, em qual-quer processo subjetivo/ontolgico que os implique haver a ambigui-dade de corpo-modo e corpo-evento. precisamente por esta existncia ambgua que Levinas permite afirmar que somos Carne tica, isto , gerados e singularizados conforme o modo-evento fundamental da sen-sibilidade tornada responsabilidade.

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