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  • Copyright©2018porJesséJoséFreiredeSouza

    Todososdireitosreservados.Nenhumapartedestelivropodeserutilizadaoureproduzidasobquaisquermeiosexistentessemautorizaçãoporescritodoseditores.

    edição:PascoalSoto

    preparodeoriginais:CláudioMarcondes

    revisão:RafaellaLemoseTaísMonteiro

    projetográficoediagramação:NataliNabekura

    capa:Retina_78

    fotodoautor:©MarcusSteinmeyer

    adaptaçãoparae-book:MarceloMorais

    CIP-BRASIL.CATALOGAÇÃONAPUBLICAÇÃOSINDICATONACIONALDOSEDITORESDELIVROS,RJ

    S715c Souza,Jessé

    Aclassemédianoespelho[recursoeletrônico]/JesséSouza.RiodeJaneiro:EstaçãoBrasil,2018.

    recursodigital

    Formato:ePubRequisitosdosistema:AdobeDigitalEditionsMododeacesso:WorldWideWebISBN978-85-5608-040-0(recursoeletrônico)

    1.Classemédia-Brasil.2.Estruturasocial-Brasil.3.Brasil-Condiçõessociais.4.Brasil-Condiçõeseconômicas.5.Livroseletrônicos.I.Título.

    18-53018 CDD:305.550981CDU:316.342.2

    Todososdireitosreservados,noBrasil,porGMTEditoresLtda.RuaVoluntáriosdaPátria,45–Gr.1.404–Botafogo22270-000–RiodeJaneiro–RJTel.:(21)2538-4100–Fax:(21)2286-9244E-mail:[email protected]

    mailto:[email protected]://www.sextante.com.br

  • Agradeçoatodosquemeconfiaramosrelatosdesuasvidasparaaconstruçãodestelivro.AgradeçodemodomuitoespecialaJoyceAnselmo,comquemdiscutitodasasquestõesdestelivro,eminhadívidaétãograndequenãocaberiaemrodapés.

  • Sumário

    Introdução

    AMORALIDADEDACLASSEMÉDIAAclassemédiaeaconstruçãodoindivíduomodernoAinvençãohistóricado“serhumanosensível”Aprendizadomoralejustificaçãodeprivilégios

    ACONSTRUÇÃODACLASSEMÉDIABRASILEIRAAgênesedaclassemédiabrasileiraOcamponacidadeOadventodocapitalismoindustrialAconstruçãodosprojetosnacionais:ummaisinclusivoeooutroexcludenteAoposiçãoentremercadoeEstadocomoexpressãodalutadeclasses–eaclassemédiacomofieldabalançaOgolpede2016esuasprecondições:ocapitalismofinanceiroeopapeldasclassesmédias

    TRAJETÓRIASDEVIDAAaltaclassemédia

    Sérgio:oCEOdeumbancoexplicacomosecompraomundoAntônio:ogerentedacadeiadelojasealutadeclassesnaclassemédiaAfamíliaPradoRenataeRoberto:aclassemédiadeOsloCaio:ogerentedefazendaAnálisedasentrevistasdaaltaclassemédia

    AmassadaclassemédiaRonaldo:publicitárionoRiodeJaneiroInácio:corretorimobiliárioqueviroumotoristadecarrosdeluxo

  • William:oengenheiroqueviroumotoristadaUberMirtes:aaposentadaquefoiàsruasesearrependeuLídia:comosetodotipoderacismofosseumacoisasóGisálio:avitóriasobreapobrezaAnálisedasentrevistasdamassadaclassemédia

    Conclusão:Aclassemédiaemtemposdecapitalismofinanceiro

    Notas

    Sobreoautor

    SobreaEstaçãoBrasil

  • UmdiaaVerdadeeaMentiraseencontram.AMentiradizàVerdade:“Hojeestá um dia maravilhoso!” A Verdade olha para o céu, desconfiada, e

    suspira, pois o dia estava realmente lindo. Elas passam algum tempo juntas,chegandofinalmenteaumpoço.AMentiradizàVerdade:“Aáguaestámuitoboa, vamos tomar um banho juntas!” A Verdade, mais uma vez desconfiada,testa a água e descobre que realmente está muito gostosa. Elas se despem ecomeçamatomarbanho.Derepente,aMentirasaidaágua,vesteasroupasdaVerdadeefoge.

    AVerdade,furiosa,saidopoçoecorreparaencontraraMentiraepegarsuasroupasdevolta.

    Omundo,vendoaVerdadenua,desviaoolhar,comdesprezoeraiva.ApobreVerdadevoltaaopoçoedesapareceparasempre,escondendonele

    suavergonha.Desdeentão,aMentiraviajaaoredordomundovestidacomoaVerdade,satisfazendoasnecessidadesdasociedade.PorqueomundonãonutreomenordesejodeencontraraVerdadenua.

    Parábolajudaica

  • O

    Introdução

    que será dito acerca da classe média neste livro, o leitor ou a leitora –muitoprovavelmentepertencenteaestaclassesocial–nãoouviunemleu

    em nenhum outro lugar. A perspectiva que adoto implica a crítica a todas asconcepções correntes do termo na sociedade brasileira. A despeito de secolocarem como científicas, as ideias dominantes produzem um efeito de“desconhecimento”, e não de “conhecimento”, distorcendo a realidade einvertendoascausasdetodososfenômenossociais.

    Pelo menos 90% do que se passa por científico nas ciências sociais ecostumaserensinadonasuniversidadesnãopassademeraconfirmaçãodeumconjuntodepreconceitosquevisa eternizar a dominação social deunspoucossobremuitos.Contudo,nãohácomodispensaraciência,poisapenaspormeiodela é possível realizar a crítica à falsa ciência. Trata-se aqui, portanto, decriticarafalsaciênciacombasenosinstrumentosdaciênciaverdadeira.

    Adistinçãodoverdadeiro edo falso será constatadapelopróprio leitorouleitora.Bastaquefaçausoadequadodessedomquenosfoipresenteado,muitoemborasejacadavezmenosutilizado,queéanossacapacidadederefletircomautonomia.

    Estou convencido de que tudo pode ser explicado, atémesmo os assuntosmaiscomplicados,deformaclaraeacessível.Éoquepretendofazeraqui,sembanalizar temas complexos nem ceder a superficialidades. Por mais novo e

  • surpreendentequesejaoconteúdo,meuobjetivoéquequalquerleitorouleitorapossaacompanharcomfacilidadeareconstruçãohistóricaesocialquefaçoaquidaclassemédiabrasileira.

    Alinguagem“difícil”damaioriadosintelectuaistemavercomumusodoconhecimento semelhante ao uso nocivo do dinheiro: para marcar diferençassociais e acentuar o sentimento narcísico de superioridade em relação aos nãoiniciados.Noentanto,qualquercoisapodeserditadeummodocompreensívelparaamaioriadaspessoas.

    Infelizmente,ograndeobstáculoparasealcançarumconhecimentoefetivo,emancipador e autônomo está não somente na maior ou menor clareza dasideias, mas sim no medo diante da verdade. Embora possa ser libertadora eemancipadora, a verdade também pode ser bastante incômoda. Apesar dedizermos o contrário para nós mesmos, todos nós amamos as mentiras queconfirmamavidaquelevamosnapráticaequelegitimamasnossas ilusões.Edetestamos a verdade que nos mostra que somos diferentes daquilo queimaginamos.

    Oqueesperodo leitor eda leitoranãoé apaciênciaparadestrinchar algoespecialmentedifícil,tampoucoquetenhaconhecimentosprévios.Oquepeçoéque tenha coragem,pois a covardia é a grande aliadadamentira, inclusivedamentiraquenosvendemcomociência.

    Assim,nasredessociaiscostumamosnosprotegerdosconteúdoscontráriosao que acreditamos e, nos livros, só buscamos aquilo que confirma as nossasconvicções.A covardia e amentira são falsas aliadas de todos nós e excluemtudooquehádegenerosoebelonanaturezahumana.Elasnostransformamemformigasque,aindaqueprodutivaseordeiras,repetemamesmavidahámilhõesde anos. Só a verdade abre caminho para o aprendizado, e isto só é possívelquandosuperamosomedo.

    Nesse sentido, faço uma aposta como leitor ou leitora: se chegar ao finaldeste livro, prometo que você vai mudar, em alguma medida significativa, aconcepçãoquetemdesimesmo,desuaclassesocial,doseupaísedomundo.Concordandooudiscordandodoqueserádito,apostoquenãoficaráindiferente.

  • Antes de tudo, porém, teremos de desconstruir as mentiras, pretensamentecientíficas,quenoscontaramavidatoda.

    Taismentirassãodedoistipos.Noprimeiro,comointuitodesermosmaisdomináveis, somos induzidos a nos ver como homens e mulheresexcepcionalmente capacitados. Esta é a grande cilada do liberalismohegemônico, o pressuposto implícito de todas as ciências ensinadas nasuniversidades.Segundoele,somos“indivíduos”autônomoselivres,quevivemnummundotransparenteeclaro.

    O mundo social está aí para ser conquistado por nós, basta que sejamosdisciplinados e diligentes. Mais adiante, contudo, vamos ver o quanto há deequívoconessa ideia,mesmosendoelaabasenãosódosensocomumdarua,mastambémdoensinodaeconomia,dodireito,dapolítica,dapsicologiaedasociologia,tantonoBrasilcomonorestodomundo.

    A falsidade dessa ideia é de fácil demonstração, como se verá. Maisimportante é saber por que, sendo falsa e superficial, todos nós preferimosacreditar nela. Omotivo é simples: ela estimula nosso narcisismo infantil, ouseja,odesejodenosvermoscomofortes,inteligentesepoderosos.Afelicidadeestá logo ali na esquina, e depende apenasdenossavontade livre e autônomaparaserconquistada.

    Onossoegoé“inflado”poressasconcepçõesquenosatribuemumperfeitocontrole sobre nósmesmos e nos dizem que sabemos de onde viemos, o quesomos e o que queremos. Elas também reforçam a ilusão de que a vida emsociedade,comtodaasuacomplexidade,édefácilcompreensão.Nestemundo,quenosseriacompletamentetransparente,nãoexistemistérionemmentira–equererépoder.Amamosessasmentirasporquenosdãoaimpressãodequenãosomos limitados nem estamos submetidos a constrangimentos eimpossibilidades.Temosaimpressãodequepodemostudo,bastaquerer.

    Entretanto, o custo de amar asmentiras é altíssimo. São justamente essasmentiras–quesomostodosforteseautônomosequeomundoébenigno,justoede fácil compreensão – que nos tornam escravos de uma ordem social

  • determinada. Uma ordem social que tem donos. Tais ideias só se tornaramhegemônicasporqueexistemaquelesquelucram,emuito,comisso.

    É mais fácil explorar as pessoas quando elas acham que são livres eautônomas.Reclamardoquêedequem,seomundoéperfeitoetransparente?Seháalgoerrado, entãooerro sópodeestar emnósmesmos,quenão somossuficientementelivres,autônomos,diligentesoudisciplinados.Éexatamenteporisso que existem essas mentiras, que estão por toda parte: nas escolas, nasuniversidades,nocinema,natelevisão,nosjornais,naspropagandas–eemtudooquevemoseouvimosdesdequenascemos.Essaéafunçãodelas.

    O mesmo se dá com a própria ideia de classe social. Como pode existirclassesocial,sesomostodosindivíduoslivres,autônomosepoderosos?Admitirque pertencemos a uma classe social é reconhecer que somos “reduzidos” aalgumacoisa.Comoficanossaliberdade?Enossaautonomia?Porcontadisso,inventou-seuma ideiadeclassesocialquenão restringeninguém,não reduzaliberdadedeninguémnemretiraaautonomiadenenhumindivíduo.Enenhumaclasse social é mais escravizada por essas mentiras sociais de liberdade e deautonomiaindividualdoqueaclassemédia.

    Entretodasasclassessociais,aclassemédia–assimcomoadosexcluídos–étambémamenosconhecida.Masissoaconteceporrazõesopostas.Enquantoos excluídos são simplesmente invisibilizados e desprezados, a classe médiarepresentaumidealdesejáveledegrandeforçasimbólica.

    Aocontráriodaclassedosproprietários–admiradamassempresuspeitadeabuso econômico – e da classe trabalhadora – percebida como grandezamassificada–,aclassemédiaestáintimamenteassociadaaoindividualismoeàautonomia individual. E não existe valor mais alto no Ocidente do que aautonomia individual.Alémdisso,umasociedadedeclassemédiaépercebidacomoigualitáriaejusta,conciliandoosregistrospositivosdotrabalhoprodutivo,daliberdadeindividualedavidademocrática.

    Daíseentendeporque,quandonopoder,oPartidodosTrabalhadorestenhaescolhido elaborar a sua narrativa – sobre a importante e histórica ascensãosocial dos excluídos sociais que efetivamente viabilizava, elevando-os ao

  • patamar da classe trabalhadora, ainda que precária – com base no advento deumasuposta“novaclassemédia”.

    Essa estratégia de marketing míope nem mesmo era necessária, pois talascensão ocorreu de verdade e foi inédita na história do nosso paíspatologicamentedesigual.Ofatodetersidoadotadamostraoquantoésedutoraaideiadeclassemédia.Estaéaforçasimbólicaaquemereferi.OeconomistaMarcelo Neri, o pai da ideia de uma “nova classe média”,1 simplesmentededuziuasupostanovaclasseapartirdarendamédia,comoseumaclassesocialfosseconstruídaapenaspelarenda.

    Oproblemaéqueessadefiniçãoliberaldeclassesocial,quepermite“falar”declasse,aomesmotempoqueretiradelaqualquerefeitoimportante,continuaaser hegemônica, tanto no campo da direita comono da esquerda.O recurso àdefiniçãodeclassesocialbaseadanarendatornapossívelfalardeclassesocialemantercompletamenteintocadasasmentirassobreliberdadeeautonomia.

    Ora, essa concepção impede a compreensão do mundo social, sobretudoporquedistorceeinverteoqueestánocentrodaideiadeclasse.Aclassesocialé,antesdetudo,reproduçãodeprivilégios,sejamelespositivosounegativos.Oproblema é que muitos privilégios positivos, como a posse de conhecimentovalorizado–precisamenteotipodecapitalmonopolizadopelaclassemédiareal–sãoliteralmenteinvisíveis.

    Apossibilidadedeaprendizadoefetivonaescolarequeraexistênciaanterior,no ambientedoméstico edesde amais tenra idade, de estímulos emocionais emorais (também invisíveis). Ninguém nasce com capacidade de concentração,disciplinaeautocontrole,amoràleitura,pensamentoprospectivooucapacidadedepensamentoabstrato.

    Emseuconjunto,essaherançaimaterialpermiteareproduçãodoprivilégioda classe média real de uma geração a outra, transmitindo, por meio dasocialização familiar típica da classe, o bom aproveitamento escolar e, maistarde,oingressoprivilegiadonomercadodetrabalho.Arendatambémajudaaaprofundaradesigualdade,namedidaemqueasfamíliasdeclassemédiapodemcompraro tempo livredos filhos apenasparao estudo.Nasclassespopulares,

  • poroutrolado,osfilhoscomeçamatrabalhareestudaraos12ou13anos.Masainjustiça começa no berço e fica evidente aos 5 anos de idade, quando unschegamàescolacomovencedoreseosoutroscomoperdedores.

    Ouseja,arendaauferidapelosintegrantesadultosdaclassemédiasóexistepor conta dessa reprodução invisível de privilégios positivos na infância e naadolescência. Por aí se explica a renda diferencial dos indivíduos da classemédiaemrelaçãoaosdasclassespopulares.Aotornarinvisívelareproduçãodeprivilégios, a pseudociência liberal se tornamanipuladora, invertendo causas eefeitos.

    Elalegitimaprivilégiosinjustosatribuindo-osao“méritoindividual”–atal“meritocracia” hoje tão em voga – e chega atémesmo a culpar as vítimas doabandono pela sua própria exclusão. O objetivo deste livro é precisamenteoferecer uma percepção desse segmento fundamental da nossa sociedade, aclassemédia,de tal formaque seja superadoo superficialismocomoqualelacostumaservistaatualmente.

    Dada a dimensão de desejo evocada pela ascensão social, mesmo quandofantasiosa, a classe trabalhadora precária – os “batalhadores brasileiros”, nadefiniçãoqueutilizeiemlivrodaépoca2–adorouaascensãoimagináriatantooumais do que a ascensão real. Hoje em dia, o trabalhador precário não seconsidera pobre, mas de classe média. Os pobres são apenas os excluídos emarginalizados. A classe média real, por sua vez, se vê como “elite”,contribuindo para um autoengano fatal e de consequências terríveis para odestinodasociedadebrasileiraedaprópriamassadaclassemédia.

    Espero que este livro possa contribuir para a autocompreensão tanto dosindivíduos dessa classe social – da qual faço parte – quanto da sociedadebrasileira como um todo. Nesta tarefa, é crucial o entendimento adequado daclassemédiareal.

    Primeiro,numaclassetãomalconhecida–edaqualanossaignorâncialevaem conta apenas a renda, imaginando os seres humanos como páginas embranco,semfamílianempassado–,oqueserequeréesclarecerqueindivíduossãoessesquepossuembemmaisdoqueumacarteiramaisrecheada.

  • Trata-se, portanto, de reconstituir os valores que servem de guia para ocomportamentoefetivodosquefazempartedestaclasse,assimcomoasformasespecíficas de sua socialização familiar e escolar, o que vai explicar a rendadiferencial posterior, na idade adulta. Se a classe média é a classe doindividualismoéticoporexcelência,torna-sefundamentalentenderoverdadeirosignificado dessa ideia para identificar a singularidade da classe média noconjuntodasclassessociais.

    Esse é um primeiro ponto que vai surpreender o leitor ou leitora. Nummundo onde se imagina existir apenas dinheiro e poder como forçasdeterminantes do nosso comportamento, estou convencido de que é possíveldemonstrar cabalmente a fragilidade e a mentira dessa visão. Os valores queorientamnossavidapodemnãoestarclarosnanossacabeça,masestarãosemprepresentesnonossocomportamentoconcreto.

    É bem assim que podemos “provar” a existência de ideias e valores queinfluememnossavida,aindaquenãotenhamosconsciênciadeles.Bastamostrardequemodo,nocomportamentododiaadia,elesestãopresentesedeterminamoquefazemos,mesmosemtermosumaideiaclaradisso.Precisamenteporquenão os submetemos a um exame consciente, tais ideias e valores têm umaeficáciaaindamaior.

    Demodo claro e cristalino, vamosmostrar a existência de uma hierarquiamoral,compostapelacombinaçãodeideiasevaloresquenosinfluenciamtantoquanto a busca por dinheiro e poder. O que marca a singularidade dapersonalidadeindividualéacombinaçãodestesestímulosempíricos,odinheiroe o poder, e da eficácia dessa hierarquia moral e valorativa em cada pessoa.Trata-se,portanto,derevelaronúcleocontraditórioetensionaldapersonalidademodernaeaformaespecíficaqueelaassumenaclassemédiabrasileira.

    Depois seráprecisodestacar oquediferencia a classemédiabrasileira dasclassesmédiasdeoutrospaíses.Paraoconhecimentodequalquerfenômenodavidasocial,nadamelhordoqueoestudodesuagênesehistórica.Issotambémvaleparaaclassemédia.Aindaqueassuasprecondiçõessociais,econômicasepolíticas tenham variado ao longo do tempo, a sua gênese, desde que bem

  • compreendida, nos oferece uma perspectiva muito fecunda para umentendimentoadequadodaconjunturaatual.

    Alémdaorigem,outrorecursocrucialdeautoconhecimentoéaperspectivacomparada. Enquanto indivíduos, sempre estamos, quer tenhamos consciênciaounão,noscomparandocomoutrosindivíduos.Talcomparação,sefeitacomadevidacoragemparaaautocrítica,éindispensávelparanostornarmosmelhoresdoquesomos.

    Com as sociedades acontece o mesmo. É sempre pela comparação queapreendemosnossosdefeitosevirtudes–e,porextensão,osdefeitosevirtudesdasociedadeemquevivemos.Nossopontoprivilegiadodecomparaçãoseráaconstrução histórica da classe média europeia e, em menor grau, da norte-americana. Quase sempre, essa comparação tem sido feita com base eminterpretaçõesdosmitosnacionais,semcompromissocomaverdadecientífica.No caso brasileiro, sobretudo a partir do mito nacional norte-americano,idealizadocomomodelo.

    Alémdamentiraquenosfazcrerquesomosindivíduoslivreseautônomos,sem passado nem classe social, há outro grande engodo a ser desconstruído:aquelesustentadopelomitonacionaldominante,apartirdaidealizaçãoservile“vira-lata” do americano supostamente perfeito e honesto. A classe médiabrasileiraseráoprincipalsuportesocialdessasmentirassociaiscompartilhadasportodos.

    Aformaparticulardevidabrasileira–nãoapenasnapolítica,mastambémnas várias dimensões da existência econômica e social – só pode sercompreendidadesdeessaperspectivacrítica,quelevaemcontaaviolênciasutilque se esconde por trás das ideias que fundamentam e justificam nossocomportamentocotidiano.

    Além do interesse de gênese e de comparação, o terceiro elementoconstitutivodesteestudoédecaráterrelacional.Comosóseconheceumaclassesocialquandoarelacionamoscomasoutras,éprecisoexaminarasrelaçõesdaclassemédia com a elite e com as classes populares. As classes não existem

  • isoladasnomundosocial,massempreemrelaçõesdealiançaededisputapelosrecursosescassoscomoutrasclassessociais.

    Por isso, esclarecer os fatores que influem tanto nas alianças quanto nasdisputas nos permite compreender o comportamento de cada classe social narealidadesocialepolítica.Valeressaltar,nesseaspecto,queosrecursosescassosnãosãoapenaseconômicos,comosesupõeemgeral.Osindivíduosdasdiversasclasseslutamtantopormonopolizaroacessoacoisasmateriais–carros,viagenseapartamentos–,comopeloacessoacoisasimateriaisesimbólicas–respeito,reconhecimentosocialeprestígio.Asduasdimensõestêmigualrelevânciaesãoindissociáveis.

    Por fim, vamos reconstituir a trajetória de pessoas concretas, seja da altaclassemédia,sejadamassadaclassemédiarealeestabelecida.Navidapráticadecadaumvaiserpossíveldemonstrarqueareconstruçãoteóricaehistóricafaztodoosentidonaconstruçãodeumanovavisão,muitodiversadadominante,arespeitodecomoosindivíduosdeclassemédialevamsuavidaequaissãoseussonhos,angústias,herançaspassadas irrefletidas,concepçõesdefelicidade,etc.Nessesentido,oquesepropõeaseguirécolocaraclassemédiabrasileiradiantedoespelhoerevelarsuasváriasfraçõeseconcepçõesdemundo.

    Desdenovembrode2015,quando iniciei o trabalhoneste livro, fizusodedoistiposdemateriais.Oprimeiroincluimaisde200entrevistasqualitativasemprofundidadecommembrosdaclassemédia,conduzidasnoâmbitodoprojetoRadiografiadaSociedadeBrasileira,umapesquisadeabrangêncianacional,quecoordenei enquanto presidente do IPEA (Instituto de Pesquisa EconômicaAplicada).3 O segundo tipo de material abrange dezenas de entrevistas querealizei pessoalmente entre 2016 e 2018, com pessoas de classe média, emdiversascidadesbrasileiras.

    Visando tornar mais atraente o conteúdo dessas entrevistas, assim comoexplicitarosvínculosentreostiposindividuaiseostiposmaisuniversaisdeumaclasse, decidi fazer uso de um procedimento consagrado: mesclar váriasentrevistas para criar os indivíduos mais característicos a fim de delinear os“tipos ideais”daclassemédiabrasileira.“Ideal”nãocomosentidodemodelo

  • ouexemplo,esimde“construçãoideacional”,deumaideiaelaboradaapartirdarealidade concreta para destacar as características mais relevantes daamostragemoriginalquefundamentouapesquisa.

    Devidoàenormedisparidadeecomplexidadedosexemplosconcretos,boapartedaanálisedomaterialempíricoconcentra-senapesquisadascaracterísticascomuns.Apesardeque tudooqueconstadaseçãofinaldeste livro tenhasidoefetivamenterelatadoporalguém,nenhumdessestiposexistiudefatoenquantoindivíduo singular. Todos os tipos são, portanto, um amálgama do relato deváriaspessoasentrevistadas.

    Aoanalisarasentrevistas,dei-mecontadeumaimportantedivisãonaclassemédia. Passei a atentarmenos para os cortes horizontais das frações da classemédia, aindaque sejam relevantespara a análise, e enfocarmais asdistinçõesverticais, que permitem diferenciar a “alta classemédia” da “massa da classemédia”,ouseja,ahierarquiaespecíficanointeriordoprópriosegmentosocial.

    Aaltaclassemédiaéoverdadeiro representante,o real “capataz”que,pordelegação, exerce a funçãode comandoda sociedade em todososníveis,masemnome de uma ínfima elite de proprietários efetivos.Que esta classemuitobem paga, mas com origem e trajetória de classe típicas da classe média, sepercebacomo“elite” fazparteda ilusãoobjetivaque lhepermitedefender tãobemosinteressesdosseuspatrões.

    Jáamassadaclassemédiaperfazoquesecostumadenominarclassemédiabaixaoumédia–ouainda,peloscritériosaproximativosderenda,aschamadasclassesA e B. Nesse sentido, de acordo com o critério exclusivo de renda, amassadaclassemédiaabrangeamaioriadaclasseAeatotalidadedaclasseB.A alta classemédia, por sua vez, abrange apenas os segmentos superiores daclasseAsegundoomesmocritério.

    Assim,emtermosquantitativos,amassadaclassemédiaperfaz,nomáximo–osresultadosvariamconformeocritérioadotado–,4entre15%ecercade18%da população brasileira. A alta classe média é bem menor e não inclui,certamente, mais do que 2% da população, sendo a fração de grandesproprietários,a“elitereal”,aindabemmenoremaisrestrita.

  • Para efeitos de quantificação, sempre meramente aproximativa, parto dopressupostodequenomáximo20%dapopulaçãobrasileirafazpartedaclassemédiareal.Nocontextobrasileiro,portanto,essaéumaclasseprivilegiadapeloacesso facilitado à incorporação de capital cultural e conhecimento útil maisvalorizado e prestigioso. E isso ficamuito evidente quando a comparamos àsclasses populares. Esse é o dado fundamental, como veremos a seguir, e suaquantificação,commargemdeerrodeumpoucomaisouumpoucomenos,temimportânciasecundária.

  • AMORALIDADEDACLASSEMÉDIA

  • E

    Aclassemédiaeaconstruçãodoindivíduomoderno

    mtodasasépocaselugares,ossereshumanostêmnecessidadessimilares.Todospossuemuma“necessidadeexterna”–porcomida,proteçãocontra

    as intempéries e sobrevivência material –, e uma “necessidade interna” – dedotar de sentido a própria vida. A necessidade externa nos remete à nossarealidade“animal”eaoimpulsodeautopreservaçãoquepartilhamoscomtodososseresvivos.Jáanecessidade interna, imaterial,éespecificamentehumanaetemavercomodesafiodeconstruirumavidavirtuosaefeliz.5

    Aformaespecíficapelaqual os indivíduos e as sociedades resolvemessasquestõesfundamentaismudadeacordocomolugareaépoca.Masnãovariaofatodeseremambasasquestõescentraisdaexistênciahumananesteplaneta.Éexatamente isso que nos permite comparar indivíduos e sociedades muitodistintasnoespaçoenotempo.

    A necessidade externa, que se confunde com a dimensão econômica dasobrevivência, é sempre mais evidente e compreensível. O que muda nessadimensão é fundamentalmente o nível tecnológico, que permite dominar anatureza e colocá-la a serviço dos homens. A necessidade interna é de maisdifícil compreensão. Como possui uma dimensão moral e política além daexistencial, ela tem a ver com a legitimação pessoal e social que justifica aexistênciaindividualeadominaçãosocialemtodososaspectos.

  • Nasociedademoderna,tendemosareprimiressasquestõeseanãoenfrentá-las de forma refletida e consciente. Só a necessidade externa acaba por serconscientemente articulada.Mais que isso, ela aparece como o único aspectorelevantedavidapessoalesocial.Anecessidadeinternadejustificaçãoesentidoéreprimidaepermaneceirrefletidaefragmentada,relegadaaoindivíduoisoladoeincapazdeseabstrairdeseuprópriocontexto.

    Nãoporacaso,portanto,acapacidadehumanadeautorreflexãoedescobertadenovos sentidospara avidapessoal e social sempre foi recalcada emantidasob estrita vigilância. Essa capacidade humana é revolucionária e, quandodeixada livre, tende a questionar o sentido da tradição e da reproduçãoimpensadadavida.Osdetentoresdeprivilégiosnãotêminteressenessetipodeliberdade, que abre o caminho para a crítica à tradição e a invenção de ummundonovo.

    Esseéocasodanossasociedadeatual.Háumacontradiçãoóbviaentreasnovas possibilidades históricas de acesso à educação e à informação,potencialmentefavoráveisàdifusãodopensamentoreflexivoeautônomo,e,dooutrolado,asforçasmobilizadasparaqueissojamaisaconteça.Umaimprensamanipuladoraehipócrita,comoabrasileira,umaindústriaculturalantirreflexivae concepções demundo hegemônicas e subservientes ao poder de fato são osatuaisexércitossimbólicosquemantêmsubmissaasociedadeebloqueiamseupotencialdedesenvolvimentohumano.

    Parasabercomochegamosaesteponto,nadamelhorquerevisitarasorigenseagênesehistóricadessasagadoespíritohumano.Deinício,aconstruçãoeainterpretaçãodanecessidadeinternasãodeterminadaspelareligião.Todaavidasimbólica dos indivíduos articula-se em função de mensagens religiosasparticulares.Para alémdamerapercepção físicado corpo e suasnecessidadesfisiológicas, a própria ideia de “individualidade” resulta do desempenhoespecíficodeumacertamensagemreligiosa.

    Assim,a ideiaque fazemosdenósmesmos,hojeemdia,como indivíduosdotadosdevontadeprópriaestálongedeserumfatonatural,comoonascerouopôr do sol. Como todas as concepções importantes quemovem nossa vida, a

  • ideiadequesomosindivíduosquepossuemvontadeprópriaéresultadodeumaconstruçãohistórica.

    Essaconstruçãohistóricateveumpanodefundoreligioso.Osurgimentodanoçãodeumaindividualidadequenãosópensaomundoapartirdesimesma,comoefetua“escolhas”deacordocomsuacapacidadedediscernimento,éumprodutoda tradição judaico-cristã.Essa tradição estánaorigemde tudooquenosparecemaiscaracterísticodoOcidente.AocontráriodoqueafirmamcertascorrentesdoIluminismo,omundodaAntiguidadeedaIdadeMédia,dominadopelareligião,nãofoiumaépocadetrevas.

    Areligiãofoiaformapelaqualavidasimbólicahumana,mesmonoâmbitodapolítica,conseguiusearticulareseexpressardemodocompreensívelparaaspessoas daquela época. Até o próprio nascimento da “consciênciamoral” – acaracterísticamais importante da individualidade, pois permite a escolha entreformas de vida conflitantes com base na reflexão – é um produto direto dodesenvolvimentodasreligiões.

    Em termos históricos, foi o judaísmo antigo que legou essa conquista aoOcidente.Comojudaísmo,pelaprimeiravezosmandamentosdadivindadesãopercebidoscomodemandasmoraisdirigidasàconsciência individualdos fiéis,que“escolhem”,deacordocomsuaconsciência,seguirounãoaregraimpostapeladivindade.Éaliberdadedeescolherentrecaminhosalternativosquefundaefaznascer,historicamente,amoralidadenosentidoemqueaconhecemoshoje:a introjeçãododilemamoral na consciência individual nos torna responsáveispela vida que escolhemos. Esse dilema simplesmente não existia antes de tersidoinventadopelojudaísmoantigo.

    Antesdodilemamoraldirigidoàsconsciênciasindividuais,oquehaviaeraoimpériodamagia,ouseja,deinterdiçõesmoraisexternascujoúnicoapeloeraatradiçãocompartilhadaemsociedade.Emgeral,adesobediênciadoindivíduoaessasregrastradicionaisacarretavacastigosimpiedososouamorte,poiseratidacomo uma falta que colocava em risco a sociedade inteira e, portanto, exigiaumapuniçãoexemplar.

    Percebidoscomopartedeumtodosocialindiviso,osindivíduosnãoseviam

  • comodotadosdeconsciênciaoudevontadeprópria.Emresumo,elesexistiamfisicamentecomoindivíduos,comcabeça,troncoemembros,masnãoestavamexpostos ao desafio da escolha existencial, que empresta dignidade moral ànoçãodeindividualidade.

    O cristianismo recebe e aprofunda o legado judaico. A mensagem de sãoPaulorompeadivisãojudaicaentreeleitosenãoeleitosedifundeaideiadequetodossãoiguaisepassíveisdesalvação.Agora,amensagemreligiosaseestendepotencialmenteatodaahumanidade.NoséculoIV,santoAgostinhointerpretaocaminhopara a salvação nos termos da ideia platônica da virtude.O “bem” édefinido como o controle do espírito sobre as paixões corporais, tidas comoperigosas e incontroláveis.A partir de então, quemquisesse ser salvo teria decontrolarseusimpulsosnaturais,comoodesejosexualeaagressividade.Jásenota,então,a formasingularpelaqualas ideias influenciamocomportamentopráticodaspessoascomuns.

    Anoçãoplatônicadevirtudepassaaserafontemoralqueseparaaideiadebem e demal noOcidente,mas não porque todos passaram a ler Platão e seconvenceram intelectualmente de que ele tinha razão. Longe disso. A enormemaioria mal sabia ler e jamais conseguiria acompanhar os meandros de umpensamento complexo como o do filósofo grego. Não obstante, as pessoascomuns passaram a se guiar na vida cotidiana por um platonismo prático,porque, no cristianismo, o caminho específico da salvação eterna – o objetivoprincipal da forma como era interpretada na época a necessidade interna deconferir sentido à existência – requeria o controle das pulsões corporais doindivíduo.

    Assim,amaiorinstituiçãodoOcidente,aIgrejacristã,exerceuumimpactoextraordinário na humanidade, com seu exército de padres emissionários quechegavamaosrecantosmaisremotosafimdedifundirumamensagemoralparaaqueles que, embora não soubessem ler, podiam ouvir e aprender. As ideiasmoraiseaeficáciapráticadessamensagemsingularestão,portanto,intimamenterelacionadasaoesforçocotidianoeincansáveldeinstituiçõesimportantes.Essaéumaconstataçãofundamentalparaosfinsdestelivro.

  • Dada a invisibilidade desse processo secular de inculcação e incorporaçãoinconscientedeideias, tendemosaacharquenossoshábitosecomportamentosnossãotransmitidospelosangueouquevêmdasnuvens.Éesseesquecimentoque nos faz de tolos, pois a dinâmica das instituições que nos dominam e osinteresses que elas defendem se tornam literalmente invisíveis. Não dá paracriticaroquenãosevêeoquenãosepercebe.

    Daíqueointuitodestelivrosejareconstruirosmeandrosdessaepopeiadasideias que dão sentido ao nosso comportamento prático. Nosso objetivo érecuperar essa lembrança e, com ela, a capacidade reflexiva que os podrespoderes, voluntariamente, nos fizeram esquecer com o intuito de melhor noscontrolar.

    Parateremefeitopráticonavidareal,asideiasprecisamestarconectadasaosinteressesmateriaisousimbólicos–comoo“interesseideal”nasalvaçãoeterna–quemovemavidaeasescolhasdosindivíduoscomuns.Oestudodasideiasporseuvalorintrínsecoédeinteresseapenasparaespecialistaseintelectuais,ouseja,umaparcelaínfimadahumanidade.

    Nãosão tais ideiasquenospreocupam,e simaquelasquese tornamguiaspráticosdavidacomumdepessoascomunsecominteressescomuns.Oquenosimporta, portanto, é a eficácia social das ideias, que as torna fatoresdeterminantes da existência cotidiana. Existem ideias que humilham,desempregameoprimem,fingindoquefazemprecisamenteooposto.Sãoessasideiasquetêmdeserdenunciadas.

    Nesse sentido, é crucial notar que as ideias práticas e influentes não sãoapenas construções cognitivas destinadas a perceber o mundo como sendoverdadeiro ou falso. As ideias relevantes são aquelas que vinculam de modoorgânico o impulso cognitivo de compreender o enigmadomundo, ou seja, odilema do verdadeiro ou falso, com a questão ainda mais importante dedistinguirocertodoerradoeojustodoinjusto.Asideiasquedefatoimportamsão as ideiasmorais, que permitem conciliar a interpretação domundo com aatuaçãopráticaepropositalnele.

    Amoralidadenãoseconfunde,portanto,comomoralismo,ouseja,coma

  • obediênciarígidaaprincípioséticostradicionais,emboraestasejaumaconfusãocorriqueira.Definidacomoaaçãorevestidadepropósitonomundo–implicandouma escolha e, portanto, uma responsabilidade pela vida escolhida –, amoralidadeéadimensãomaiselevadadavidaindividualesocial.

    Desse modo, a necessidade interna de conferir sentido ao mundo, essademandapresente em todas as épocas, não apenas éumanseio intelectual porexplicaçãoeesclarecimento,mas,antesdetudo,umanecessidadepragmáticadeorientar o comportamento prático e dotá-lo de propósito. A moralidade é adimensão que ilumina e constrói uma prática concreta. E nós, como sereshumanos, somos a resultante da ação de ideias que são, ao mesmo tempo,valoresenosorientamnaconduçãocotidianadavida.

    Éanoçãoplatônicadevirtude,definidacomoasuperioridadeeocontroledoespíritosobreaspaixõesepulsõesanimais,quevaiconstituiropanodefundomoral pressuposto em nossas ideias e avaliações do mundo. O modo comoavaliamosanósmesmoseaosoutros,anossapercepçãodealgocomovirtuosooucomovil, sóseexplicacombasenessahierarquiamoral“invisível”.Aindaque não seja refletida, tal hierarquia domina a produção de todas as nossasavaliaçõesmorais.

    Semacompreensãoeapercepçãodessafontemoral– tantonasuagênesecomonaformapelaqualcontinuaatéhojeaserreproduzidainstitucionalmente–,imaginamosquenascemoscomideiasmorais,talcomonascemoscomolhoseboca. A ignorância acerca de tudo o que nos move e determina nossocomportamento prático faz com que tendamos sempre a considerar como“natureza” e “dado” aquilo que, na realidade, é “cultura”, ou seja, “invençãohumana”econstruçãohistórica.

    Pior ainda, tendemos a achar que as ideias morais são criadas por nósindividualmente,comosecadapessoa tivesseseusprópriosvaloresmorais, talcomo cada um tem sua bicicleta, seu carro ou apartamento. O liberalismodominantenadadebraçadanessasilusõesobjetivas.Paraosegosinfantilizadoseinflados,elereforçaaideiadequecadaindivíduodefinesuavida,seuconceitodefelicidadeeseusprópriosvalores.Oresultadoconcretodissosãoindivíduos

  • dóceis e tradicionalistasna esferapessoal epública– e tambémconsumidoresávidos nummercado que sempre oferece algum produto certo para acalmar aansiedadeeainsegurançaexistenciais.

    Imaginarqueosvaloressãocriaçõesindividuais,comofazemosnodiaadia,é uma bobagem facilmente criticável e passível de refutação empírica. Ora, amoralidade é, por definição, social, ou seja, pressupõe aomenos duas pessoascomexpectativasrecíprocasdecomportamento.Nessesentido,todoindivíduojánascedentrodeumcontextomoral,oqualele incorporademodo insensíveleirrefletido pela socialização familiar, e depois escolar, como algo afetivo esagrado,umavezquetransmitidoporpessoaspróximaseamadas.Daíadvémaforça emotiva das demandas morais, as quais, quando descumpridas,inexoravelmente despertam sentimentos de culpa, de ressentimento e deautodesvalorização.

    Esses inevitáveis “sentimentos morais”– como culpa, remorso,ressentimento, raiva ou inveja – comprovamque o “social” e sua forçamoralestão“dentro”–enãoapenas“fora”–denós,eprecisamenteporcontadissoessa força é tão acentuada. Ninguém inventa os próprios valores morais. Nomáximo, enquanto indivíduos, podemos reagir de modo peculiar ao enormeimpacto de umamoralidade social que, por sua vez, nos oprime e nosmoldaquaseporcompleto.Asreaçõesindividuaisàmoralidadesocial,quandonãosetornamforçasocialepolítica,tendemaserumateimosiadescontínua,subjetivaedesprovidadeconsequênciaspráticas.

    NoOcidente,oprocessodesecularizaçãodomundomudouradicalmenteaforma como os indivíduos percebem o dilema moral. Antes, a noção defelicidade e virtude que dava sentido à vida acenava com a possibilidade desalvação no além-mundo.Emmedida variável, de pessoa a pessoa, esse era oúnico meio para conferir sentido e motivação à existência, para além da lutacotidiana pela sobrevivência. Isto muda com o advento histórico doindividualismo secular como valor moral e existencial mais alto: a partir deentão, o próprio homeme suavida – aqui e agora, e nãonohipotético futuroapósamorte–estãonocentrodetodaaproblemáticarelativaaosentidodavida.

  • Nesse processo histórico em que se deu a passagem da religiosidade àsecularizaçãodomundo,ofundamentalécompreendercomoosentidodavidapessoaledomundosocialdeixadedependerda“salvaçãonoalém-mundo”parase tornar “salvaçãonestemundo”.Não foi algoqueocorreudeumdiaparaooutro, nem supõe o esclarecimento de quem até então vivia nas trevas, comodefendealeituratriunfalistadoiluminismoliberal.

    Naverdade, literalmente todas asquestões existenciais epolíticas atuais jáestavampresentesnacompreensãoreligiosaecristãdomundo.Todasasideiasassociadas à valorização da igualdade, à autonomia e à felicidade individualforam herdadas e transfiguradas a partir do repertório religioso. Ainda que areligiãocontinuesendoimportanteparamuitos,asgrandesquestõesindividuaise sociais vão ser definidas, a partir de então, sem o recurso à linguagem e àsemânticareligiosa.

    Vimos que a hierarquia moral legada pelo cristianismo tem como eixoprincipalaoposiçãoentreespíritoecorpo.Tudooqueéassociadoaoespíritopassaasernobreedignodeadmiração,etudooquetemavercomocorpoesuas funçõesévistocomoanimal,banale inferior.Como,paraa interpretaçãoquesetornadominanteapartirdesantoAgostinho,oespíritoédefinidocomoum“espaçointerno”,umadimensãode“interioridade”,eletambéméocaminhoquelevaaDeus.

    Note que a ideia atual de interioridade, como espaço subjetivo só nosso edentro de nós, não caiu das nuvens e muito menos é inata. Ela foi criada einventada historicamente, e só depois de sua reiteração secular – e persistenteinstitucionalização cotidiana – foi que passamos a ver essa ideia como algonatural e óbvio como o nascer do sol. Antes de tudo, porém, ela é umaconstruçãohistóricaecontingentedareligiosidadeocidental.

    Aconcepçãodeindivíduodotadodeumadimensãomoralautônomaecapazdeescolhaconscienteeresponsável,demarcandoumespaçointerioresubjetivopróprio,sofretransformaçõesprofundastambémcomaReformaprotestantedoprincípio do século XVI. O protestantismo está na origem dos aprendizados

  • históricos que vão marcar indelevelmente a versão secularizada daindividualidadeocidental.

    Cabe ressaltar aqui que as consequências do protestantismo não serestringemaospaísesprotestantes,comomuitos imaginam, inclusiveboapartedos intelectuais. Primeiro, o protestantismoprovocou umaprofunda reação docatolicismo,pormeiodaContrarreforma,emgrandemedidaumcompromissoeuma aceitação parcial de várias concepções protestantes. Segundo, astransformaçõesculturaisdoprotestantismoafetaramosmaisdiversosâmbitos–entre os quais o econômico, o político e o cultural –, com reflexos nassociedadesocidentaiscomoumtodo.

    Umexemplo são as fábricas, escolas, universidades e empresas, empaísestantocatólicosquantoprotestantes,quevãoestimularomesmotipodedisciplinaeautocontrolequeoprotestantismoantesdifundiaporconvencimentoreligioso.Hojenãoprecisamosqueninguémnosconvençadenada.Simplesmentesomosreprovados nos exames escolares se não formos disciplinados no estudo ousomosdespedidossenãonosmostrarmosdisciplinadosnotrabalho.Ouseja,oqueantesoprotestantismodefendiasobaformadeprincípiosreligiososhojenoséimpostopelaforçadaspráticas,comseusprêmiosecastigos,dasinstituiçõesmaisimportantesemnossavida.

    Decertomodo,somostodosprotestanteshojeemdia,postoque,naprática,independentementedesermosounãoreligiosos,vivemoscotidianamentesoboimpériodas ideiasdadisciplinaprotestante.Dáatéparadizerqueaverdadeirarevoluçãoburguesaecapitalistafoiamudançadasconsciênciaspromovidapeloprotestantismo, que se tornou o princípio universal da eficácia de todas asinstituições e, portanto, serve de orientação para o comportamento prático daspessoascomuns.Écrucial,portanto,entendercomoessas ideiasse tornamumimperativopráticodofuncionamentocorriqueirodasinstituições,ouseja,comoantigasideiassetornamtijolo,cimento,examedeescolaecontratodetrabalho.Semissonãocompreendemosnadadeimportantenomundomoderno.

    Nessa redefiniçãomoderna da noção de indivíduo, o primeiro impacto doprotestantismotemavercomanovavaloraçãoatribuídaaotrabalhoprodutivo.

  • Até então, o trabalho havia sido encarado historicamente como restrito aescravosou servos, umaatividadedestituídadenobreza e respeitabilidade.Asclasses superiores tinham sua nobreza confirmada pelo fato de que nãotrabalhavam, sendo o ócio e a contemplação atributos que conferiam honra enobreza.

    Martinho Lutero e, em seguida, todas as vertentes do protestantismoinvertem por completo o sentido do trabalho. Em vez de desonroso edesrespeitoso, o trabalho passa ser visto, enquanto meio de realização dodesígnio de Deus na terra, como “sagrado” e fonte principal de toda honra,prestígioerespeitosocial.

    A revoluçãode consciências protestante vira de ponta-cabeça o imagináriosocial.O trabalhoprodutivoecotidiano torna-seosuporte tantodaautoestimacomodo reconhecimentoe respeito socialdo indivíduo.Nãohácomonegaroaspecto democratizante dessa mudança histórica. Como todos podem exerceralgumaformadetrabalho,ahonradeixadeseratributodanobrezaepassaaserfontedeumadignidadepotencialmenteuniversal.Earevalorizaçãoprotestantenãodiferenciaos tiposde trabalho,oqueabririaaportaparanovasdistinçõesemfunçãodediferentesofícios,masenfatizaomodocomoserealizaotrabalho,qualquerquesejaele.

    Comodizofilósofoneo-hegelianoCharlesTaylor,referindo-seàpassagemdahonraàdignidade,oDeusprotestante“amaadvérbios”.6Qualquertrabalhoédigno desde que exercido da melhor maneira possível. Aí está o núcleo damensagemprotestante.Aqui jásenotaasementedoprocessodesecularizaçãodo protestantismo se transformando em utilitarismo, na medida em que, aosolhosdeDeus,otrabalhoganhaosentidodetrabalhoútilexercidoemfavordobemcomum.

    OpensadoralemãoMaxWeberfoiquemmelhorcompreendeuosignificadoe a importância da revolução protestante para o mundomoderno. Para ele, oprotestantismo era um “mediador evanescente”, que “morre” para que nasça asociedadedisciplinardocapitalismomoderno.7Nessesentido,oprotestantismose “realiza” no mundo, com suas ideias se tornando práticas institucionais e

  • sociais. As pessoas costumam esquecer que tais práticas, hoje generalizadas,foram um dia inventadas por religiosos e não caíram do céu. Para Weber, oprotestantismocomeçacomoumaideiamoralreligiosaparadepoissetornar,sobaformade“utilitarismo”,umaideiamoralsecular.

    Se a fontemoral do protestantismo é religiosa e divina, a fontemoral doutilitarismoéseculare laica,guiadapelanoçãodebemcomum.Comopassardotempo,outilitarismocorreoriscodesetransformaremmeroconsumismoehedonismo, sem qualquer relação com a moralidade protestante que lhe deuorigem–eabandonaovínculoexplícitocomqualquerformademoralidade.Elapassa a ser, por conta disso, reprimida, recalcada e “subjetivada”. Daí quevejamos só a ação de dinheiro e poder na vida. Daí o desafio de torná-lacompreensível e explicitada que me propus nesta primeira parte do livro. Amoralidadeseculartemdeser,apartirdeentão,reconstruídademodotensionalecontraditóriopelaarticulaçãopolíticaconscienteerefletida.

    Esse encadeamento histórico, no entanto, é quase sempre esquecido pelosintelectuais que recorrem a Weber para postular uma hierarquia entre paísesprotestantes,superioresehonestos,epaísescatólicos,inferioresedesonestos.Éoqueocorre, tantonoBrasilcomonosEstadosUnidos,aindaquecomosinaltrocado,comamaioriadosintelectuais.

    Tudosepassa,paraestes,comoseoprotestantismonãotivesseatravessadoessas transformações históricas, que redundaram no domínio da moralidadesecular, apenas para melhor moralizar e legitimar a opressão de sociedadesinteiras por interesses imperialistas. Toda a interpretação dominante sobre oBrasildehoje,porexemplo,advémdesseentendimentoequivocadoesuperficialdirigidocontraosprópriosnacionais.

    NoteoleitorealeitoraqueanoçãodeindivíduocomocaminhoparaDeus,no sentido de santo Agostinho, primeiro para “dentro”, como um espaço deinterioridade, edepoispara “cima”, emdireçãoàdivindade, sofreuma radicalredefiniçãonoprotestantismo.Permaneceanoçãodeindividualidadecomoumespaçosubjetivo,masagoraconcentradanatransformaçãodarealidadeexteriorpormeiodotrabalho.

  • Ser “racional” passa ser definido pela capacidade de autocontrole e dedisciplinadaspaixõeseinclinaçõesnaturaisdocorpo,emnomedeumobjetivoexterno ao indivíduo. A disciplina interior deve servir a um propósito, o queimplica anoçãode “responsabilidade” individual.É essa responsabilidadequeensejaumanovaformade“dignidade”doserhumano,elhegaranteorespeitotantodosoutroscomode simesmo.Os sereshumanos,queantesbuscavamajustificação de suas ações namensagem religiosa, agora passama se definir apartirdesuacapacidadedeautocontrolecomoumfimemsimesmo.

    Essaéanovadignidade,agorasecularizada,doserhumanocapazdeexercerumacondução racionaldavida combasenumacombinaçãode autodisciplina,autocontroleepensamentoprospectivo.Acessívelatodos,enãomaisrestritaàhonra e glória aristocráticas, a nova dignidade é o que confere o caráter“democrático” da nova hierarquia de valores que passa a vigorar noOcidentecomaReformaprotestante.

    Para servir a Deus, não é mais necessário recolher-se em orações nummosteiroevoltar-separadentrodesimesmo,esimtrabalharnapráticaparasuamaiorglórianestemundo.Comoissoimplicaabuscadobemcomum,anoçãode “trabalho útil” é pouco a pouco pensada em termos apenas seculares deutilidadeprática.Estapassaaserocentro,afontemoralporexcelência,quevaicomandar todas as avaliações e os julgamentos práticos acerca do valor oudesvalorrelativodosindivíduos.

    Naépoca,osuportesocialprivilegiadodessamensagemreligiosafoi,antesdetudo,a“classemédia”–ouseja,acrescentepopulação,predominantementeurbana,deartesãosecomerciantes,abaixodanobrezaeacimadoscamponesespobres.Aideiacentraléqueapenasotrabalho,enãomaisaherançadesangueeosprivilégiosdeestirpe,deveserofundamentoeamedidadovalorindividual.Como se sabe, o sucesso dessa ideia foi estrondoso em todo o Ocidente. Elalegitimouumatransformaçãoradicaldetodososvaloresentãovigentes.

    Do campo econômico e domundodo trabalho, a entronizaçãodo trabalhoútil como valor paradigmáticomigra para as outras esferas sociais. Na esferapolítica, a noção de “cidadania” – pela qual os indivíduos são portadores de

  • direitos inalienáveis nos âmbitos econômico, político e social – revoluciona osentidodaslutaspolíticasesociais.Avalorizaçãodotrabalhocotidianocomoavirtude social máxima constrói um novo mundo simbólico em todas asdimensõesdavida.

    Se inicialmente apenas a burguesia, a caminhode se tornar a classe socialdominante,apropriou-sedodiscursodotrabalhoútilparaobemcomumafimdedeslegitimarodiscursotradicionaldanobreza,logoasituaçãomuda.Tambémasclassestrabalhadoraspassamaexigirsuainclusãoeconômicaepolítica,epelasmesmasrazõesqueaburguesiaevocaracontraanobreza.Oaspectocrucialdosúltimosduzentosanosdelutasdostrabalhadoresfoiprecisamenteoesforçopeloreconhecimentodovalorsocialdeseutrabalho,enãoapenasdotrabalhodeseuspatrões.

    Essa luta se deu em etapas. O reconhecimento da contribuição dostrabalhadoresabriuocaminhoparaaparticipaçãoemigualdadedecondições–pelomenosnosentidoformaldotermo–naesferapolítica.Emtodososlugares,inicialmente,odireitoaovotoerareservadoaosdetentoresderenda,ouseja,aosburgueses.Foiopaulatinoreconhecimentodacontribuiçãoeconômicadaclassetrabalhadora que levou à vitória do sufrágio universal nos principais paísescapitalistas.Nãoháprovamais irrefutáveldotrabalhoútilcomoofundamentovalorativocentraldassociedadesocidentais.

    Oquepassaaserdefinidoepercebidoportodoscomo“virtuoso”,dignodevalorização e avaliação positiva,muda seu sentido histórico demodo radical.Uma vez que todos podem trabalhar, todos podem ser valorizados por suacontribuição à sociedade, e não apenas os filhos das famílias nobres quemonopolizavamaideiaaristocráticadehonracombasenalinhagemdesangue.Por outro lado, se a contribuição de muitos para a riqueza econômica ésocialmentereconhecida,entãoaideiadeumaparticipaçãopolíticauniversalsetorna irresistível.Esseéocontextodo surgimentoe a fontede legitimaçãodanoçãodeumademocraciafundadanosufrágiouniversal.

    Aí está a importância de uma compreensão adequada dessas hierarquiasmorais,quetendemosanaturalizareacharinatas,oqueimplicanãopercebê-las

  • conscientemente, tal como não percebemos o ar que respiramos. Afinal, sãoessashierarquiasqueexplicamnossocomportamentopráticonodiaadia.Eelasdecorrem de fatos históricos, que explicam a origem e a causa de tudo o quevalorizamos e consideramos digno de luta e defesa – como, por exemplo, aprópriaideiadedemocraciaededireitosindividuaisuniversais.

    Essasfontesmoraissão,portanto,ofundamentodahierarquiamoralsobcujaégidevivemosnodiaadia.Porelasedeterminaquemtemdireitos,quemtem“lugardefala”equempossuiasjustificativasaceitasportodoscomoválidas.Apartir da generalização dessa nova hierarquiamoral a toda a sociedade,mudatambémo sentidodaprópriaautoestima individualde todosos indivíduosqueconvivemnessecontextosocial.

    Issodemonstraqueosindivíduossãosubmetidosaumaordemsimbólicaemoral socialmente construída que determina até mesmo o próprio sentimentoquepossuemacercade simesmos.Essaeficáciadamoralidadeeda realidadesimbólica é tanto maior quanto menor a consciência que se tem dela. Semconsciênciadarealidadequenosmolda,somosvítimasaindamaisimpotentesdesuaforça.

    Aforçaqueashierarquiasmoraishistóricaesocialmenteconstruídasexercesobre todos é difícil de ser percebida por duas razões que se combinam e seretroalimentam.Primeiro,nomundomoderno,temosadificuldadedenotartudoque seja simbólico nas dimensões cognitiva,moral ou estética. Presidida pelodinheirocomovaloreequivalenteuniversal,a sociedademoderna tendede talmodoaseconcentrarnomundodatrocaeaquisiçãodemercadoriasmateriaisepalpáveisqueissoaparece,paramuitos,comoaúnicarealidadeexistente.

    Tudooqueexistesão“coisas”,quepodemsercompradasetocadascomasmãos.Omundosimbólicoemtodasassuasdimensõespermaneceirrefletido,eapenas os desejos e as justificativas da existência cotidiana ocupam o espaçopossível dopensamento.Somos, nesse caso, comoas formigasdisciplinadas econsumidoras, que não fazem qualquer uso efetivo da capacidade reflexiva ecríticaquecaracterizaadignidadeespecificamentehumana.

    Combinado a este fato, e por ele retroalimentado, está a dimensão do

  • narcisismo individual: o fato de nosso comportamento ter como principalreferênciaasatisfaçãodosdesejosea legitimaçãodavidaque levamos–algoque, de resto, caracteriza, emgradações distintas, todos os seres humanos.Noentanto,nograndenúmerodepessoasparaquemareflexãocríticaacercadesimesmoedomundonãodesempenhapapeldecisivo,essadimensãonarcísicaé“infantilizada”e“inflada”,ouseja,elassóaceitamouvirconfirmaçõesdesuaspróprias ilusõeseopiniões,evitandoa todocustoqualquerpensamentocrítico.Dessemodo,aprópriaideiadequesomos,emnossossentimentosmaisíntimos,determinados por umamoralidade social que semanifesta sem que tenhamosqualquercontrole,éalgoqueassustaeincomodamuitagente.

    Paraessetipodepúblico,éconfortávelacharqueosindivíduosescolhemavida,criamsuasprópriasideiasmoraiseobedecemapenasasimesmos.Todo-poderoso,oegoinfladoeinfantilizadoépresafácildetodasaslegitimaçõesdaindústria cultural e da grande imprensa venal. Compreender omundo em suacomplexidadesimbólicaemoralnãoé,portanto,apenasumdesafiointelectual.Antes de tudo, é um desafio emocional, pois rompe com certezastranquilizadoras,baseadasnarepetiçãodechavõeseclichês.

    Nãoéapenasosentimentoqueoindivíduotemdesipróprioquedecorredamoralidade social dominante. Desta também depende o valor relativo queatribuímosaosoutros,porexemplocomopessoasaseremevitadasnaruaouquemerecemapenasumcontatosuperficialebreve,emcontraposiçãoàquelascomasquaisforjamosamizadesduradourasouatécasamentos.

    Nada disso é decisão individual apenas. A nossa concepção positiva ounegativadosoutrosestápermeadaporavaliaçõessociaisquefuncionamcomooestopim fundamental para qualquer afeto individual.Daí por que reconstruir agenealogia das hierarquias morais que nos comandam é tão importante efundamentalparaacompreensãodeumindivíduoedeseumundosocial.

  • A

    Ainvençãohistóricado“serhumanosensível”

    lémdavalorizaçãodotrabalhoútilecotidiano,hánoOcidenteoutrafontemoral de origem histórica, que igualmente permeia todas as avaliações

    acerca de nós mesmos e do mundo. Trata-se do que se poderia chamar de“expressivismo”oude“éticadaautenticidade”.

    Se o desempenho no trabalho útil do ser humano produtivo constituía onúcleodadignidadeuniversalizáveldo trabalhador,naéticadaautenticidadeanoçãode“serhumanosensível”éonúcleodessaoutrafontemoralsingular.Oprocesso de aprendizado moral e histórico procurou associar o desempenhoprodutivo em benefício da comunidade ao desenvolvimento de umasensibilidadeúnicaemcadaindivíduo.

    Além de produtivo, todo ser humano “deve” ser, também, consciente dossentimentoseemoçõesqueotornamdiferentedosoutros.Serautênticoéteracapacidadedeconhecerasimesmoeteracoragemdeseroqueseé.Se,antes,osdesejoseramoinimigodoespíritoedadisciplinaqueasseguramocontroleearepressão,agoradevemosnosreconciliarcomnossosdesejosenossosafetossequisermosnostornarsereshumanoscompletos.

    Porexemplo,seantesoimpulsosexualtinhadesercontroladoereprimidopeloespírito,agoraeledeveserofundamentodomundoafetivosempresingulardecada indivíduo.Antes tidascomoperigosase incontroláveis,aspaixõessão

  • renomeadas como sentimentos e elevadas a um patamar no qual unem, e nãomaisseparam,corpoeespírito.Comarevoluçãoexpressiva,ossereshumanossedefinemnãosópelo trabalhoquefazem,mas tambémpelaautenticidadedesuavidasentimental.

    A revoluçãoda sensibilidade e do expressivismo tambémnasceuna classemédia.Nãonadosartesãosecomerciantesdos séculosXVIeXVII, comonocasodadignidadedotrabalhoprodutivo,masnaclassemédialetradadosartistaseintelectuaisdosséculosXVIIIeXIX.Oexpressivismoé,portanto,maistardio,esurgecomocríticaaoconteúdounilateralmenteprodutivistaeinstrumentaldomundo do trabalho.A ideia subjacente é a de que os seres humanos sãomaiscomplexosesofisticadosdoqueasprodutivaseordeirasformigaseabelhas.Avida“bemvivida”deveterocomplementodeumavidaemocionalesentimentalricaqueésempre,oudeveser,únicaeintransferível.

    Emdecorrênciadasrevoluçõesprotestanteeexpressiva,todososindivíduosde todas as classes sociais vão definir o êxito ou o fracasso relativos de suasvidas com base não apenas no âmbito do trabalho, mas também no âmbitoafetivo. Tanto quanto o trabalho, ganham relevo, assim, a família e osrelacionamentoseróticoseafetivos.

    Hoje em dia, se perguntarmos a qualquer um o que considera maisimportante,arespostamaisprovávelseráafelicidadenotrabalhoenafamília.Mais uma vez: isso não caiu do céu nem foi inventado pelo ego inflado deninguém.Éoresultadodeumaprendizadohistórico,moralesocial.Ehojenosdominaatodos,tantooumaisqueasconsideraçõesacercadedinheiroepoder.

    Arelaçãodoexpressivismooudaéticadaautenticidadecomadignidadedotrabalhoútilé,aomesmotempo,decunhocomplementarecontraditório.Elaécomplementar na medida em que só se torna possível por meio da ideia deindividualismo e de uma noção de “interioridade” como espaço internoindividual–estaumaconsequência, comovimos,damensagemcristã.Assim,tanto a ética da autenticidade comoadignidadedo trabalhador útil são ambasversõessecularizadasetardiasdamensagemreligiosaocidentaleseconstroemapartirdamesmaconcepçãodoindivíduoenquantoconsciênciamoral.

  • A fonte da moralidade, no entanto, muda em cada um dos casos. Oexpressivismo contradiz a dignidade do trabalhador útil, posto que nasce,historicamente,maistardeecomoreaçãoaumautilidadevistacomosuperficialemesquinhamenteeconômica.SeadignidadedotrabalhoútiléumamensagemquecomeçaaseuniversalizarnoséculoXVIdeLutero,oexpressivismoéumarealidade mais tardia, fruto do trabalho especulativo de elites intelectuais eartísticas em processo de secularização. Suas fontes históricas mais claras seencontramnomovimento românticoe expressivoalemãodaúltimametadedoséculoXVIII,quedepoissedifunderapidamenteportodaaEuropa.

    Osentimentodeterminantedessemovimentovoltava-secontraummundodotrabalho percebido como repetitivo, desumanizador e alienante. A noção deindivíduo,pressupostanesseambientecomandadopelanoçãodeutilidade, é ade que o ser humano não passa de uma máquina destinada ao trabalho,desvinculadodeoutrasnecessidadeshumanasquenãoasnecessidadesmateriaisda mera reprodução econômica e animal da sobrevivência. Ou seja, anecessidade interna, inerente a todosos sereshumanosde todasas épocas, foipercebidaporessaselites intelectuaiscomouma interpretaçãoamesquinhadaesuperficialporserestringirapenasaotrabalhoprodutivo.

    Jáaéticadaautenticidadeedoexpressivismodefendemqueoindivíduoeavidahumanasão–oudevemser–maisdoqueareproduçãodeumanimalquetrabalha para sobreviver materialmente. Portanto, o ser humano não deve serpensadoapenascomoinstrumento,mascomoumfimemsimesmo.Afinal,nocontextodomercadocapitalista,otrabalhoprodutivoeútiléummeioparafinspostospeloprópriomercado.Finsestesqueninguémescolheequesãoimpostosdeforaparadentro,obrigandoo indivíduoasesubmeterà lógicadomercado,sobpenadeficardesempregadoepassarfome.

    Na verdade, essas duas leituras modernas sobre as fontes morais daexistência, asquais conferemsentidoànossavida, quer tenhamosconsciênciadisso ou não, espelham precisamente as duas vertentes mais importantes doprotestantismo. Embora ambas sejam influenciadas pela visão luterana, seussentidossãomuitodistintos.

  • O chamado “protestantismo ascético”, influente sobretudo na Holanda, naInglaterra e nos Estados Unidos, apresenta uma visão do indivíduo comoinstrumentodetransformaçãodarealidadeexterior,sendootrabalhoprodutivoeútil o meio adequado para esta intervenção. Nesta versão da mensagemprotestante, o mundo interior está subordinado à ação transformadora darealidadeexterior.

    Oquecontaaqui–paraoaumentodaglóriadeDeusnaterra,edepois,naversãosecularizada,dacontribuiçãoindividualparaobemcomum–éaefetivatransformaçãoda realidadeexterior.Esteéocritériopeloqualo indivíduovaiser avaliado, seja por si mesmo, seja pelo restante da sociedade. Como todamoralidade é social e nunca individual apenas, a fonte da autoestima não sedistinguedafontedoreconhecimentosocialdosoutros.

    Em grande medida, formamos a nossa autoimagem em função da formacomoosoutrosnospercebem.Porissoécrucialadimensãosimbólicaemoral.Elapodenoshumilhareanularnossacapacidadedeaçãonomundooupodenosfortalecerenostornarativoseautoconfiantes.Tantoanossaautoimagemcomoavisãodosoutrossobrenósderivamdamesmafonteeavaliamodesempenhodoindivíduo segundo os mesmos critérios. Assim, a própria ideia, positiva ounegativa,quefazemosdenóséoresultadodeumaconstruçãosocial.

    Já a versão mais emotiva do protestantismo, influente na Alemanha, naEscandinávia e na região central daEuropa, percebe o vínculo religioso antescomo um sentimento íntimo, no coração de cada um, e só depois comorealização no mundo exterior. Se no mundo religiosamente determinado oindivíduo se via como portador da divindade, como um sentimento que opreenchia e dava sentido à vida, na esfera secularizada tal concepção está naorigemdetudooquehojeassociamosaomundointerioresubjetivo.

    Omerofatodequenospercebemoscomopossuindoalgo“dentrodenós”–umadimensãosubjetivasónossaequenãoseconfundecomomundosocialoucomomundoobjetivoforadenós–foiumaconstruçãohistóricaecontingentetardia em comparação com a revalorização do trabalho produtivo. Domesmomodo que o trabalho produtivo definia a virtude do indivíduo na dimensão

  • anterior e pragmática nos termos do protestantismo ascético, com a versãoemotivadoprotestantismo,sãoossentimentosqueencontramosemnósmesmosquedefinemquemsomosecomodevemosviver.

    O pensador alemãoMaxWeber argumentou que a noção de indivíduo noprotestantismoascéticosimbolizaaideiadeum“instrumentodivino”,visandoamaiorglóriadeDeusnaterra.Poroutrolado,aversãoemotivaseligariaàideiadoindivíduoquetrariaadivindadedentrodesi,comalgo“interior”aosujeito.As noções secularizadas de indivíduo e de suas fontes morais vão darcontinuidade a essas duas tradições, sob o império da nova linguagem agorasecularizada,semportantoapelarparaaideiadeDeuscomofonteprimeira.

    Assim, a noção de dignidade do trabalho útil representa uma continuidadesecularizada da noção de instrumento divino, enquanto a ideia de ética daautenticidade e do expressivismo remonta à noção do indivíduo como vaso erecipiente da divindade. O fato da origem comum protestante não deve nosenganaracercadavalidadeempíricauniversal,pelomenosnoOcidente,dessascategorias.

    Comodissemos,cabesalientarqueapenasaorigemhistóricaéprotestante.Depoisessasideiasacabaraminstitucionalizadas,nassociedadescatólicasenasprotestantes, bem como no resto do mundo, sob a forma da disciplina dasfábricas e das escolas, nas ideias difundidas pela arte e pela ciência, pelaindústriaculturaleassimpordiante.

    Oentendimentodesseprocesso–peloqualumameraideiatorna-sepráticacotidiana e institucional – é decisivo. Aqueles que não compreendem issoacabamacreditandonastolicesracistasdoculturalismodominante,quesubstituio “branco” pelo “protestante”, o “negro” pelo “católico”, aqui e alhures, paraidealizar o americano perfeito e honesto – e estigmatizar, por exemplo, obrasileiro como estúpido e corrupto.O problema é que hámuitos intelectuaisqueseguemporessecaminho.

    NoBrasil,aindanospensamoscomopaíscatólicoeibérico,nosopondoaosEstadosUnidoscomopaísprotestante,comosetaisdistinçõesfizessemsentido.E ainda se recorre a esse procedimento pré-científico para afirmar a

  • superioridadee inferioridadedeumedeoutro,nãosóemtermoseconômicos,mas também morais. A vira-latice brasileira sobrevive por conta dessa visãomíope e rasteira do mundo, reproduzida por universidades, escolas, TVs ejornais.

    Paraesclareceraquestão,cabedistinguirduasformasmuitodiferentesdeseperceber a influência da ideia de cultura. Primeiro, há o que chamo de“culturalismo conservador”, o qual imagina as sociedades concretas sendoregidas por concepções de mundo ainda religiosas e transfiguradas em mitosnacionais,decaráterpositivoounegativo.Nessesentido,predominaa ideiadeque os Estados Unidos até hoje são protestantes ascéticos e, por conta disso,maisprodutivosehonestosqueosoutros.Trata-sedeummitonacionalpositivopara os americanos, um mito que legitima o lugar dos Estados Unidos depotênciaimperialista,recobrindoofatomaterialdadominaçãocomapátinadeumasupostasuperioridademoralesimbólica.

    No caso brasileiro, o mito nacional é negativo, uma leitura vira-lata dasociedade, onde o brasileiro, em grande medida devido à origem católica eibérica, é percebido como inferior, dominado pelas emoções e, portanto,animalizado,improdutivoeignorante,alémdemoralmentecorrupto.Vamosveradiantequeessasideiasnãovalemumtostãofuradodopontodevistacientífico.Massãoconvincentes,poisreproduzemaideiadesensocomumsegundoaqualatransmissãoculturalsedápelosangue.

    Talmito serve unicamente para legitimar interesses inconfessáveis. Como,porexemplo,arapinadasriquezasnacionais,sobaalegaçãodeque,paraevitarocontroledepolíticoscorruptos,émelhorentregarosnossosrecursosnaturaisaos americanos e europeus “honestos”. É precisamente isso, apesar de serabsurdo,toloeridículo,queestáacontecendocomnossopetróleoecomamaiorempresabrasileira,aPetrobras.

    A crítica desse culturalismo conservador, mero revestimento de interesseseconômicos inconfessáveis de uma elite da rapina, não implica negar arelevância da dimensão cultural e simbólica, desde que bem compreendida.Afinal,asideiasnãosetransmitempelosangue,muitomenospelascorrentesde

  • ar. As ideias só são importantes na prática quando se transformam em “vidaprática”naesferainstitucional.

    Um exemplo é o da educação familiar, que, em todas as sociedadescapitalistas,possibilitaumprocessodeintrojeçãoeincorporaçãoafetivaemoral,desde o nascimento, dos princípios de disciplina, autocontrole e pensamentoprospectivo (a percepção do futuro comomais importante do que o presente).Tais princípios vão ser fundamentais para moldar o indivíduo em trabalhadordigno, capaz de trabalho produtivo útil. A escola formal e a socialização dotrabalhovãoapenasarraigaretornarautomáticaeinconscienteessainfluência.

    Desse modo, as ideias simbólicas e culturais, com sua história peculiar,constituem a base de nosso comportamento prático, quase sempre sem quetenhamosconsciênciadisso.Aliás,quantomenoraconsciênciadopúblico,tantomaior a eficácia manipulativa, dado que não podemos nos defenderreflexivamentedaquiloquenãopercebemosnemcompreendemos.

    Osmitosnacionaisexistempara tornar invisívelessa realidadesimbólicaedistorcer a necessidade pública e privada de compreensão das questõesexistenciais e políticas. Para tanto, recorrem a explicações ad hoc, elaboradaspara justificar relações sociais injustas, que prejudicam o entendimento dopúblico e permitem sua manipulação em nome de interesses elitistasinconfessáveis.

    A reconstrução da dimensão cultural e simbólica aqui proposta parte dadesconstrução e crítica desses engodosmanipulativos, demodo que possamosperceber a eficácia prática das ideias que determinam nosso comportamento.Semdistorceromundosocial,asclassesdirigentesnãopodemfazerotrabalhosujo de se apropriar da riqueza social. Daí que os intelectuais e a imprensafaçam,hojeemdia,otrabalhoqueosjagunçosfaziam–eaindafazem–paraoslatifundiários do passado: facilitar, por meio da violência, a apropriação dariquezacoletiva.

    Adiferençaéqueaeliminaçãofísicafoisubstituída–desdequenãosesejapobre ou negro – pelo sequestro da inteligência e da capacidade reflexiva doshomens emulheres comuns, sob a forma de ideias que nosmanipulam e nos

  • fragilizam e tornam nosso comportamento prático hesitante e confuso.Afinal,nossa principal diferença em relação aos animais é o fato de nossocomportamento ser possibilitado e influenciado por ideias. É isso que permiteque possamos aprender, desde que nos interroguemos acerca das ideias queinfluenciamnossocomportamentorealecotidiano.

    A exposição acima demonstra que o Brasil não é um “planeta verde-amarelo”,comasingularidadevira-latadeumpovoburro,preguiçosoecorruptodominadopelasemoções.Ocapitalismonãopodesercompreendidoapenasporsuadimensãoeconômica,enquantofluxodecapitaletrocademercadorias,mastambémcomoumadimensãosimbólica,moraleculturalcomum.

    Dimensãoqueosmitosnacionais–positivoscomooamericanoounegativoscomo o brasileiro – negam e tornam invisível, como as fontes morais aquiexaminadas. Qualquer americano, alemão, mexicano ou brasileiro possui asmesmascontradiçõeseosmesmosobjetivosdevida.Nesseterreno,aocontráriodoquesepensa,asdiferençasdeclasseemcadapaíssãobemmaisrelevantesdoqueasdiferençasnacionais.

    Emqualquerpaísocidental–sejaqual foroseuníveldedesenvolvimentoeconômico–,aspessoasconcretasorientamasuavidapráticasegundoideiasevaloresmuito similares.Em todos–noBrasil, naAlemanha, naArgentinaounos Estados Unidos –, a dignidade do trabalho útil é parte fundamental daautoestima e do reconhecimento social. Em todos, a expressão daindividualidade cria laços de solidariedade entre aqueles que se consideramdetentoresdeum“bomgosto”noestilodevidaevaiproduzirpreconceitocontraosquesãovistoscomotoscoseanimalizados.

    Avalidadeempíricadissoéóbvia.Afinal,essasduasfontesmoraisestãonocentro da esfera privada e íntima, tanto quanto no da esfera pública e social.Bastaindagarsobreascoisasquemaisdãosentidoànossavida.Qualquerum,seforsincero,vairesponderqueéotrabalhoeafamília(ouoamor).Umbomtrabalho,feitocomprazerebem-remunerado,eumavidaafetivaesentimentalfeliz – esses são os objetivos ou sonhos paradigmáticos de todo ser humano

  • moderno, seja onde for.Não há outra coisa que se compare em importância aisso.

    Quemnãotemumaououtrasofreelevaumavidaincompleta.Quempossuiasduassesabefelizecompleto.Quemnãopossuinemumanemoutralevaumavidamiserável,indignadessenome.Simplesassim.Eissovaleparatodos,poisa definição de infelicidade ou felicidade é compartilhada e social, e nãoindividual e particular, como alardeiam o liberalismo e as propagandas debancos.Claroqueháoutrascoisasquesãoobjetodonossodesejo.Masousãoderivaçõesdessesdoisobjetivosousãosecundáriasemtermosdeimportânciaeurgência.

    A própria noção de amor moderno, como base da família e de uma vidasentimentalestável,foicriadapeloexpressivismoepeloromantismodofinaldoséculoXVIII.Elaestánocernedaéticadaautenticidade.Éaquiqueamulher,pela primeira vez, deixa de ser vista como ser humano de segunda classe e,portanto,deestarsubmetidaaoshomenseaoscostumes–como,porexemplo,aqueles que não levavamem conta sua vontade nos casamentos acertados pormotivoseconômicosepragmáticos.

    NorbertElias, em seu livro sobreoprocesso civilizatório,8mostra comootratamento dispensado às mulheres, mesmo nas classes altas, era de umaviolênciahojeinconcebível.Seumnobrenãogostavadaintervençãodaesposanumjantarcomamigos,podiadesferirumsocoequebrar-lheonariz,semqueninguémachasseofatoincomumoudignodereprovação.

    Assim, a própria ideia de que a mulher deve ser conquistada, e nãosimplesmente arrebatada com violência, é recente e fruto da revoluçãoexpressiva nas elites artísticas e intelectuais, um processo que tem início noséculoXVIIIedemoraaseimporparaorestodapopulação.Anecessidadedaconquista amorosa por convencimento, e nãopela força física oupela pressãoeconômica,criaumnovomundo,oda“esferaerótica”,emparte independentedasoutrasesferasdavidaecomregraspróprias.

    A sublimaçãododesejo sexual, quedemerapulsãonatural se estende aossentimentos – sem com isso implicar negação da pulsão sexual, mas muitas

  • vezesatéaumentandosua intensidadedevidoà introduçãodoelementoafetivo–, vai construir a ideia-forçaquedesignamoshoje emdia abstratamente como“amor”.

    Depoisdessainvençãoculturalehistórica,querelasejavividacomoilusãoou realidade, nenhum de nós deixa de sentir o aguilhão do desafio que nos éimposto:umavidasemamornãopassadeumasubvida.Criaçõeshistóricas,asfontes morais, como nos dois casos aqui tratados, passam a comandar nossaexistência,enãoapenasmodificamaformacomopercebemosomundosocial.Elas nos transformam, “por dentro”, e conferem nova orientação aos nossosdesejos e emoções mais íntimas. Esta é a comprovação empírica da eficáciadessasideiasmorais.

    Desde o século XVIII, essa revolução expressiva vem se expandindopaulatinamenteparatodasasclassesetodoomundo.Umgrandecatalisadorfoiomovimentodos jovens,doshippiesedacontraculturanadécadade1960.Apartirdaíeladeixadeserassociadaàselitesculturaisesetornaumvalorparaasgrandesmassas.Tambémultrapassaoslimitesdapoesiaedaliteraturaeavançapara a indústria cultural, virando conteúdo de novelas, filmes e revistas degrande vendagem.Surge assimumapoderosa indústria para ensinar o que é ecomoseconquistaafelicidadequevislumbramosnoamor.

    Oexpressivismoeademandaporsensibilidadeinstauramumanecessidadeuniversal,quesustentaumaindústriacultural,umaindústriadabeleza,dobomgostoedoentretenimento–tudoparavenderaquiloque,pordefinição,nãosepoderiacomprar:asensibilidadeúnicaeoriginaldecadaum.Oquedeveriaseruma aventura de autodescoberta individual acaba por virar mercadoriamassificada.

    Não apenas a percepção do amor e da vida familiar sofreu umamudançadrástica por causa do expressivismo. A própria ideia de trabalho produtivotambém mudou. No século XVIII começam as críticas ao trabalho igual erepetitivo, como sendo indigno da grandeza humana. Tal como a vidasentimental, igualmente o trabalho temde fazer sentido e, portanto, exibir umcomponentedeprazeredeautossatisfação,enãoapenasdeobrigação.Assim,

  • em vários países depois da Segunda Guerra Mundial, a primeira geração dejovenscomacessoaeducaçãodequalidadevaiserograndesuportesocialdessaideia. Na França, esses jovens quase conseguem derrubar o poder instituídoquandoseunema7milhõesdetrabalhadoresemgreve.

    Éentãoqueocapitalismosedácontadequegerouseumaiorinimigo.Nãomais a União Soviética, tão produtivista quanto o próprio capitalismo, mas oinimigo em casa, os filhos que se revoltam contra omundo bem-comportado,baseado na mesmice e na tradição acrítica representada pelas gerações maisvelhas. O capitalismo financeiro, essa etapa do capitalismo que se impõeglobalmente a partir da década de 1980, vai utilizar toda a semântica e ovocabulário do expressivismo da década de 1960 para produzir a versãoturbinadadodomíniodocapital:exploraçãomáximadostrabalhadorespormeiodapromessaexpressivistadecriatividade,invençãoesolidariedade,agoradentrodaprópriaempresa.

    Parece ironia,maséapuraverdade.Tudooque foi inventadonosúltimosduzentos anos em termos de reflexão crítica e de luta política radical dacontraculturaacabouengolidopelocapitalismo,mastigadoedepoiscuspidodevolta em outros termos e com outros objetivos: o lucromáximo e infinito. Acriatividadedeixadeserainvençãoradicaldeumavidanovaeagoraéutilizadaafavordamaiorlucratividadeempresarial.

    Comonasempresasosfinsjáestãodados–maximizarolucronomercado–, tudo se tornameio e instrumento para esse objetivo.Mas o expressivismosemprequisserumfimemsi,ouseja,umaescolhaúltimadecomoconduziravida, e nãoummeiopara se alcançar outra coisa.Ao transformar a revoluçãoexpressiva emmero instrumento de acumulação financeira, o capital retira-lhetodoosentidoeforçaefetiva.

    Foiprecisamenteissoquefezocapitalismofinanceiro,aliciandoumexércitosimbólicode intelectuais e jornalistas, apropriando-se de todos os jornais e detodaa imprensa,subsidiandoemanipulandoaproduçãodefilmes,espetáculosmusicaisetodotipodeexpressãoartística.

    Com isso, o terreno estava ganho para a redefinição da criatividade como

  • gestãodepessoascomfinsempresariais,daoriginalidadecomomeiodesoluçãode problemas corporativos, da solidariedade como trabalho em equipe paramaiorprodutividadeorganizacional.Enfim,parafazerostrabalhadoresseveremnãocomoexplorados,mascomo“colaboradores”eempresáriosdesimesmos.Éassimquemuitos seconsideramhojeemdia.Somentedessemodopodemsersuperexplorados a tal ponto que nãomais separamo tempode trabalho do delazer, ficam à disposição via celular o tempo todo e ainda se acham muitoimportantesefelizescomanovaservidão.

    Emsuaorigem,essasconcepçõesdeliberdaderadicaltiveramcomosuportesocial principal a classe média, por excelência a classe associada aoindividualismo. As ideias de trabalho com sentido e de vida amorosa feliz ecompletasedisseminaramparatodasasclassessociais,masénaclassemédia,como veremos nas trajetórias de vida na parte final deste livro, que vamosencontrá-lasemsuamaiordiversidade,profundidadeeforça.

    Essa reconstrução das nossas bases morais é, portanto, fundamental. Sempercebê-lasadequadamente, imaginamosquenossocomportamentoémotivadoapenas por estímulos pragmáticos como dinheiro e poder. Imaginamos quesomospáginasembranco,semnadadentro,equenossarenda,odinheiroquetemosnobolso,explicanãosónossoconsumo,mas tambémonossomododevida. Para completar o absurdo, imaginamos que, como indivíduos, criamostudo, os valores e as ideias que seguimos. Aqui se chega ao ápice daimbecilidade: o indivíduo não sabe de nada, nem quem é, tampouco o que asociedadefezdele,eaindaimaginaquesabedetudo.

    Oegomaisfrágileinseguroébemaquelequeprecisasepensarcomoomaisforteecapaz.Oegoinfladodoindivíduomodernoéofatordeterminantedeseuuso pelo mercado e pelos podres poderes para a reprodução de todos osinteresses daqueles que estão acumulando riqueza. Se alguém furar com umalfineteesseegoinflado,predominanteportodaaparte,massobretudonaclassemédia,oqueteremoséumflato,nãoobstantepercebidocomoperfumepeloseudono.

    MaxWeber antecipou como ninguém este novo homem bifronte da nova

  • época: composto pelo “especialista sem espírito”, que entende tudo de seupequenomundode trabalho,masnadada sociedadeao seu redor, tampoucoopapel que nela desempenha; e o “homem do prazer sem coração”, na buscacompulsiva por emoções intensas, sem a menor compreensão do que tantoanseia.A incompreensãodas fontesmoraisdenossocomportamentonos tornamesquinhos,pequenos,títeresdospoderesquecontrolamomundo.

    Em nenhuma classe social este dilema émais acentuado do que na classemédia.Afinal,elaéaclassedoexpressivismoedaéticadaautenticidade,sejanaesfera do trabalho, seja na esfera íntima das emoções e dos desejos. Só apercepçãoadequadadadimensãoculturalesimbólicadavidasocialnospermiteuma compreensão mais profunda e verdadeira da vida que levamos comoindivíduos.

    Ela permite também desmascarar e denunciar os usos perversos dodesconhecimento de um público indefeso, usos que promovem interpretaçõescujaúnica razãode ser é a legitimaçãodeprivilégios injustos.Permite, ainda,que possamos nos armar de uma compreensão mais justa e verdadeira dosconflitos sociais e existenciais de nosso tempo e de nossa sociedade.Percebercomo omundo social funciona de fato é omaior desafio para uma vida comsentido,autonomiaedireçãoprópria.

  • O

    Aprendizadomoralejustificaçãodeprivilégios

    reconhecimentodasfontesmoraisquenosguiamsejanavidapúblicasejano âmbito mais íntimo é, portanto, um passo decisivo para nossa

    autocompreensão.Comonãocostumamosterconsciênciadessesfatoresmorais,essereconhecimentomuda,deformaradical,omodocomopercebemosavidaprivada e pública. No entanto, essas fontes morais estão mescladas a finspragmáticos – que também influenciam o comportamento prático – como opodereodinheiro.

    Normalmente, só levamos em conta essa ação do poder e do dinheiro naconduçãodavida,oqueéumgraveerro.Nossoentendimentodenósmesmosedo mundo se empobrece muito com isso. Porém, desde que percebidosconjuntamente com a dimensão moral, o dinheiro e o poder são igualmentedecisivosemnossavidaprivadaepública.

    Éalutapolíticaquevaidefiniraimportância,paraasociedade,dodomíniorelativo da dimensão moral ou da dimensão pragmática. A percepção dadimensãomoralécognitiva.Oseudomínionavidacorriqueiradaspessoas,noentanto,éresultadodelutaspolíticas.Emsociedadesquerestringiramomundoda trocademercadoriasacertasesferasdavidasocial, issoocorreuàcustademuitosangueeluta,quasesempredasclassespopulares.

    Aliondeodinheiroparecemandaremtudo,comonoBrasilenosEstados

  • Unidos, isso também foi resultado de luta política, dessa vez decidida, semcompromissos, pelas classes dominantes, ou seja, pelos proprietários queimpõemsuamoeda–odinheiro–comosupremovalorsocial.

    Como a interpretação humana domundo é sempremoral, ou seja, sempredecorrentedeumanoçãoimplícitaouexplícitadevirtude,dobemedaboavida,opredomíniododinheiroedopoderpuroesimplespressupõeumacolonizaçãoda esfera moral – num processo similar ao da colonização, pelo capitalismofinanceiro, da semântica e da linguagem da ética da autenticidade e doexpressivismo.

    Osdonosdodinheiroedopodernãopodemsimplesmentedizeraorestanteda sociedade: “Nosso intuito é deixar todos vocês, otários, sem propriedade esem poder, apenas com a roupa do corpo, trabalhando nas condições maisfavoráveis para mim.” Não é assim que acontece. Caso contrário, teríamosrevoltaerevolução.Nãohádominaçãodepoucossobremuitossemorecursoàmentira e ao engano. Em consequência, a opressão precisa ser moralizada,difundindo-seailusãodequeointeressedodominadoélevadoemcontae,maisimportante,convencendo-odequeaprópriadominaçãoéparaoseubem.

    Tão importante quanto notar devidamente a dimensão simbólica dasociedade é compreender a interconexão entre moralidade e poder, ou entreaprendizadoefetivoemerajustificaçãodeprivilégiosinjustos.Ainfantilizaçãoeo bloqueio da capacidade de reflexão se dão seja pela construção de mitosnacionaisvira-latas,contosdefadasparaadultos,sejapela instauraçãodeumaoposiçãosimplistaentreobememal.Oresultadoéadifusãodacrençadequeexistempessoasdobem,deumlado,epessoasdomal,deoutro.

    Esseéomundodasnovelas,dosromancesbest-sellerrecheadosdeclichês,dostelejornaisdaRedeGlobo,dosprogramasderádiopatrocinadosporbancos,etc. Na realidade, não existem pessoas que incorporam unicamente a virtudeabsolutaouomalabsoluto.Algumaspodemsermuitoboaseoutrasmuitomás.Porém mesmo esses casos limítrofes são muito raros. A grande parcela dahumanidade, cerca de 99%das pessoas, é umamescla de ambas as coisas no

  • comportamento concreto e cotidiano, e cada um de nós faz o que pode parasepararojoiodotrigo.

    Obemeomal,portanto,estão“dentrodenós”,assimcomoestão“dentrodenós”asfontesmorais,historicamenteconstruídas,quedefinemoqueéavirtudee o que é o vício. Como vimos, na cultura ocidental o bem e a virtude sãodefinidostantocomocontroledasemoçõespeloespíritoquantopelaexpressãoverdadeira dessas mesmas emoções. Isso implica que ser virtuoso, segundonossos próprios termos, é uma aventura contraditória e conflituosa, seja nadimensãoexistencial,sejanadimensãopúblicadavidapolítica.

    Usando a linguagem popular, viver a vida de todo dia “não é fácil paraninguém”. Essa dificuldade é, aomesmo tempo, existencial e política. Somosdilaceradospordemandasvalorativasconflitantes.Alémdisso,somoscoagidospela antiga demandamoral que caracteriza a tradição judaico-cristã ocidental:devemos,afinal,escolherseguirosvaloresmoraisouoptarpelointeresseegoístadeocasião?

    Aprimeiradificuldadeécognitivaeserefereaodesafiodecompreenderasfontes morais que nos comandam. Como esses valores sociais comuns sãoinarticulados e inconscientes, imaginamos, infantilmente, que criamossubjetivamente os valores que nos servem de guia. As consequências disso,comoveremos,sãodefácilcomprovaçãoempírica.Apesardetaisvaloressereminvisíveis – ou melhor, apesar de serem tornados invisíveis à nossa reflexãoconsciente pelos podres poderes que nos dominam –, seus efeitos nocomportamentopráticosãofacilmenteobserváveisecomprováveis.

    Bastaobservaromaisimportante,ouseja,ocomportamentoprático,enãoasopiniõesexplícitasqueaspessoasmantêmsobresimesmas.Aopiniãoexplícitaque temos sobre nós mesmos tende a ser a mera justificativa da vida quelevamosouamerarepetiçãodechavõesdamídiaedaindústriacultural.Comoamamosjustificaroquesomos,exatamenteporcontadissocostumamosodiaraverdade.

    Misturadoeconfundidocomessedesafiocognitivo,háodesafiomoraldeviver ou não de acordo com esses critérios normativos. Essa é outra questão,

  • distinta da primeira, ainda que relacionada a ela. Alcançar uma compreensãocognitiva daquilo que nos orienta em termos práticos não significa,necessariamente,umamudançaautomáticanavidaprática,emboraajudenessadireção. Ao se reforçarem mutuamente, essas duas dificuldades constroem ocontexto de desorientação, confusão e impotência que nos assalta a todos, seformossinceroscomnósmesmos,tantonavidaprivadacomonavidapública.

    Antes de tudo, vamos examinar o conflito entre, de um lado, a dimensãomoral e instrumental e, de outro, a dignidade do produtor útil. Uma inegáveldimensão de aprendizado e evolução moral está associada à substituição dahonra medieval, acessível apenas à nobreza, por oposição a todos os outros,desprovidos de honra e fadados à submissão política e servidão econômica.Quando se substitui essa honra pela dignidade – ou seja, quando a restritanobrezade sanguedá lugar àdignidadedo trabalhodemuitos–, temosoquetalvez seja a maior conquista moral e política do Ocidente. Como empraticamente todas as ideias seculares, sua origem remonta à implantação dovalormáximodocristianismo,aolongodedoismilêniosdepregaçãoconstante,resultandonumaumentodaigualdaderealentreossereshumanos.

    Precisamentearealizaçãodessevalormáximodenossaculturaestáemjogonapassagemdahonradepoucosparaadignidadedemuitos.Oganhomoraléinegável.Tanto a autoestima eo amor-próprio comoo respeitodosoutros e oreconhecimento social – coisasquebuscamosenecessitamos tantoquantoumpratodecomida–podem,agora, seruniversalizados,alcançando todososquetrabalham. Pelo menos potencialmente, todos os seres humanos podem teracessoaessadimensãoantesmuitorestrita.Afontemoraldetodoamor-próprio,prestígio social e reconhecimento individual– semosquais ficamosdoentesesomosapenasumasombradenósmesmos–passaaserreferidaaotrabalhoquetodospodemrealizar.

    Se essa é a dimensão moral, de evolução e aprendizado valorativo, adimensãoinstrumental,sua irmãsiamesa,coloca-sededuasmaneirasdistintas.Primeiro,aospoucosvaificandoevidentequenemtodotrabalhotemomesmo

  • valor. A quantidade e o tipo específico de conhecimento incorporado pelotrabalhadorvãocriar,tambémnestadimensão,distinçõessociais.

    Todaaênfaseinicialdareligiosidadeprotestantenomodo,enãonotipo,detrabalho efetuado não evita que isso aconteça. Nas classes que reproduzemprivilégios positivos pela transmissão de um capital cultural mais valorizado,comonocasoparadigmáticodaclassemédia,adignidadeespecíficaresultantedo trabalho produtivo vai ser “mais igual” do que no caso do conhecimentoincorporadopelasclassestrabalhadoras.

    Esse conhecimento diferenciado é o requerido para os cargos de direção,supervisão e controledos trabalhadoresnomercadoenoEstado.Tambéméotipodeconhecimentonecessárioàlegitimaçãodadominaçãosocioeconômicanaesfera pública e no imaginário social. Como recompensa, esse trabalho maisvalorizado vai proporcionar melhores salários e maior prestígio social ereconhecimentopúblico.Oseuâmbitoéolugarsocialporexcelênciadaclassemédia e do seuprivilégio específico.Mesmonos paísesmais avançados nesteaspectomoral e simbólico – e, portanto,mais igualitários –, tal diferenciaçãocrucialgeradistinçõessociaisperceptíveis.

    Assim, na própria dimensão da dignidade do trabalho útil, potencialmenteuniversalizável para todos que trabalham e contribuem para a vida social,passamaexistirgradaçõesehierarquiasconformeotipodetrabalho