jessé souza - modernização seletiva

267
5/22/2018 JessSouza-ModernizaoSeletiva-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/jesse-souza-modernizacao-seletiva 1/267 Jessé Souza A modernização seletiva Uma reinterpretação do dilema brasileiro

Upload: lucas-paulino

Post on 12-Oct-2015

556 views

Category:

Documents


19 download

TRANSCRIPT

  • Jess Souza

    A modernizao seletiva

    Uma reinterpretao do dilema brasileiro

  • Liquipc editorial: Airton Lugarinho (Superviso editorial);Rejanc dc Meneses (Acompanhamento editorial);

    Maria ('arla Lisboa Borba (Preparao de originais e reviso); Rainuiiida Dias (Editorao eletrnica); Mrcio Macedo (Capa)

    Copyright 2000 hy Jess Souza Impresso no Brasil

    Direitos exclusivos para esta edio:

    Editora Universidade de BrasliaS('S 0 .0 2 Bloco C N2 78 Ed. OK 2U andar70300-500-B raslia , DFTel: (Oxxl) 226-6874Fax: (0xx61) 225-5611cditora((/)unb.br

    1 odos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicao poder ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorizao por escrito da Editora.

    Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Braslia

  • FUNDAO UNIVERSIDADE DE BRASLIA

    Reitor Lauro Morhy

    Vice-Reitor Timothy Martin Mulholland

    E d i t o r a U n iv e r s id a d e d e B r a s l i a Diretor

    Alexandre Lima

    C o n s e l h o E d it o r ia l

    Alexandre Lima, Airton Lugarinho de Lima Camara, Estevo Chaves de Rezende Martins, Jos Maria G. de

    Almeida Jnior, Moema Malheiros Pontes, Reinhardt Adolfo Fuck, Srgio Paulo Rouanet, Sylvia Ficher.

  • Para Lisia

  • Sumrio

    Prefcio, 9 INTRODUO, 11

    P r im e ir a P a r t eS ingularidade , seletividade e reflexividade do

    DESENVOLVIMENTO OCIDENTAL

    CAPTULO 1M A X W E B E R E A SINGULARIDADE DA CULTURA OCIDENTAL, 1 9

    C ultura norm ativa ou reificao do m undo?, 35

    CAPTULO 2NORBERT E lias e a sele t iv id a d e d o pr o c e sso c iv il iz a t r io OCIDENTAL, 43

    O processo civilizatrio, 43 A seletividade do processo civilizatrio, 52

    CAPTULO 0 3A SINGUILARIDADE OCIDENTAL COMO APRENDIZADO REFLEXIVO:

    J RGEN H A B E R M A S E O CONCEITO DE ESFERA PBLICA, 59 Gnese da esfera pblica, 59 O conceito dual de sociedade, 68O direito com o m ediador entre sistem a e mundo da vida, 83

  • 8 Jess Souza

    Ca p tulo 4C HARLES TAYLOR E A TEORIA CRTICA DO RECONHECIMENTO, 95

    A crtica ao naturalismo, 95 A configurao valorativa do Ocidente, 104 A dimenso sociolgica e poltica do reconhecimento, 113

    S e g u n d a P a r t eCaso s concretos de seletividade do processo

    de m odernizao ocidental

    Ca p t u l o 5O caso dos Estado s U nid o s , 129

    Captulo 6O caso d a A lem a n h a , 143

    Captulo 7O caso brasileiro como visto por n o ssa sociologia d ainautenticidade , 159

    Srgio Buarque e as nossas razes ibricas, 161 Raimundo Faoro e o conceito de patrimonialismo, 168 Roberto Damatta e a vertente culturalista da nossa sociologia da inautenticidade, 183

    Captulo 8Uma in t e r p r e ta o a l t e r n a t iv a d o d ile m a b r a s i le ir o , 205

    Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira, 2 09 A modernizao seletiva, 2 52 Referncias bibliogrficas, 2 7 0

  • Prefcio

    Todo livro ou produo intelectual produto de dilogos e interaes pessoais, alguns mais outros menos conscientes. No caso especfico deste livro, minha dvida com algumas pessoas, colegas e instituies especialmente significativa. De certo modo fui levado a um acerto de contas com minha conscincia anterior, na medida em que compartilhava pressupostos fundamentais com a leoria e a interpretao sobre o Brasil que critico neste trabalho. Nesse sentido, a contribuio generosamente crtica de alguns colegas, como Srgio Costa, Thomas Leithuser, Antnio Srgio Guimares, Simon Schwartsman e Marcos Chor Maio, que leram partes deste trabalho, muito me ajudaram a reformul-lo e aperfei- oa-lo at chegar forma atual. Desnecessrio dizer que a responsabilidade dos erros s minha.

    O longo tempo de elaborao da verso final exigiu seis meses .adicionais de pesquisa, tornados possveis pelo apoio do Departamento de Sociologia da UnB, especialmente dos colegas e profes- sores, Vilma Figueiredo, Luis de Gusmo, Stella Grossi Porto e Enrico Santos. Fundao Humboldt devo o apoio temporada de pesquisa e ensino na Universidade de Bremen, Alemanha Federal. O DAAD e a Capes ajudaram no financiamento de viagens de curta durao tambm a Alemanha Federal.

  • Introduo

    O tema central deste livro a discusso dos pressupostos da- quilo que considero a interpretao dominante dos brasileiros sobre si mesmos, seja na dimenso da reflexo metdica, seja nas suas manifestaes na nossa prtica social. Essa auto-interpretao ser denominada, para nossos propsitos, de nossa sociologia da inau- tenticidade, na qual a idia de um Brasil modernizado para ingls ver, uma modernizao superficial, epidrmica e de fachada ganha corpo. A concepo de uma modernizao inautntica articula-se de acordo com vrios temas que se relacionam como uma sndrome, ou como uma problemtica de questes que se pressupem e se relacionam entre si de forma ntima e quase necessria.

    Como iremos ver, a sociologia da inautenticidade articula, como seus temas invariantes e centrais, os conceitos subseqentes de herana ibrica, personalismo e patrimonialismo. Esses conceitos formam um sistema inter-relacionado com poderosssima influncia sobre o nosso pensamento social, vale dizer, sobre nossa reflexo sobre ns mesmos, assim como sobre nossa vida prtica e institucional.

    A concepo que nos guiar aqui no corresponde noo do senso comum segundo a qual idias so entidades externas s prticas sociais. Segundo essa concepo, seria constitutiva da nossa atitude natural1 perante o mundo, a noo de que idias existem independentemente das coisas l fora, como se estas se referissem meramente ao mundo material fora de ns sem, no entanto, influn-

    1 Sobre a influncia do naturalismo na prtica cientfica, ver cap. IV da parte I deste livro.

  • Juss Souza

    c i - lo o u p a r t ic ip a r ativamente para o fato de o mundo material externo especialmente o social construdo e compartilhado pelos homens ser precisamente este que existe e no qualquer outro que poderia ter existido em seu lugar. Ao contrrio, partiremos do pressuposto de que existe uma ntima imbricao entre idias e prticas

    e instituies sociais, de tal modo que estas no podem ser concebidas sem a ao daquelas.

    Uma segunda iluso objetiva de nossa atitude natural no senso comum nossa percepo de que valores so criaes subjetivas, estando, nesse sentido, disposio da faculdade de escolha dos agentes. claro que, quando pensamos duas vezes, percebemos que valores so criaes intersubjetivas e, dessa maneira, impem- se como uma realidade objetiva a cada um de ns. Mas pouco refletimos no senso comum. A imensa maioria de nossas aes nascem do hbito e de estmulos ao localizados em algum ponto liminar entre conscincia e inconscincia. Isso significa que o agir consciente exige esforo, um esforo metdico de esclarecimento das idias e dos mveis que nos guiam. Liberdade de escolha e conduta racional da vida s existe, em sentido rigoroso, no ltimo caso.

    Problemtico para nossos propsitos aqui o fato de essas iluses do senso comum no se limitarem a essa dimenso e invadirem, inadvertidamente, a prtica cientfica. Desse modo encontramos abordagens cientficas naturalistas, ou seja, concepes cientficas que no refletem adequadamente sobre os pressupostos de sua reflexo e se apropriam, na esfera da cincia, das iluses objetivas do senso comum.

    Estou convencido de que precisamente isso acontece com nossa sociologia da inautenticidade. Fato que me levou a dedicar toda a primeira parte deste livro funo de esclarecimento de pressu- postos. Nesta parte discuto, basicamente, quatro autores: Max We- ber, Norbert E lias, Jrgen Habermas e Charles Taylor. Nenhum desses autores foi escolhido pelo seu valor intrnseco (apesar deste ser inegvel em todos os casos), mas pela possibilidade de extrair material para o esclarecimento de pressupostos que percebo como inadequadamente desenvolvidos por nossa sociologia da inautenti- cidade.

  • A m odernizao seletiva 13

    Utilizemos alguns exemplos de modo a esclarecer ao leitor a necessidade do procedimento adotado. Quando Srgio Buarque de Hollanda - para ns se no o fundador, certamente a figura mais influente, precisamente pelo seu singular talento e sofisticao analtica do que estamos chamando de nossa sociologia da inau- tenticidade - refere-se a Portugal, para ele nossa influncia mais continuada e profunda, como sendo, ao lado de outros pases, uma dessas zonas fronteirias de transio, menos carregada, em alguns casos, desse europesmo que, no obstante, mantm como um patrimnio necessrio,2 no est, certamente, sendo incorreto. No entanto, ele est sendo impreciso em relao ao ponto central de todo o seu argumento no Razes do Brasil.

    Imprecises so inevitveis em qualquer estudo. Uma impreciso em relao ao argumento nuclear de uma teoria tem no entanto, as mais graves conseqncias. Em nenhum ponto do livro definido o que 'europesmo, nem muito menos, o que Portugal tem de semelhante ou de dessemelhante em relao a essa tradio. Em alguns instantes temos a impresso que o outro de Portugal a tradio calvinista asctica, em outros a prpria Espanha. Em todos os casos o argumento de Buarque convincente, elegante e sofisticado. No, entanto,- no decorrer de todo o livro ele , tambm, impreciso. Creio que essa impreciso a causa ltima do fato de Buarque perceber sempre continuidade do personalismo portugus, por exemplo nas revolucionrias mudanas do Brasil da primeira metade do sculo XIX, em vez de descontinuidade e novidade radical.

    Essa crtica ser aprofundada, em detalhe, no captulo correspondente, mas a ajuda de Max Weber, cuja genealogia do racionalismo ocidental merece um captulo prprio na primeira parte do livro, ser fundamental aos nossos propsitos. Cabe distinguir aqui, sem imprecises, a diferena fundamental entre um individualismo emprico, comum a todas as pocas e regies do planeta, das condies e conseqncias do individualismo moral, produto da Europa moderna e burguesa. As condies especficas de articulao entre essas idias e sua institucionalizao pode ajudar a esclarecer

    Sergio Buarque de Uollanda, Raizes do Brasil. So Par.o : Companhia das 1*1 ras, 1999, p. 31.

    2

  • Jess Souza

    de que modo esse produto datado e circunscrito sua gnese pode desenvolver-se em outras regies do globo.

    Ainda um outro exemplo. Quando Raimundo Faoro contrape o desenvolvimento abortado, posto que patrimonial, da modernidade entre ns, o contraponto comparativo supoe um desenvolvi-mento singularssimo,, o dos Estados Unidos da Amrica, como se este fosse o desenvolvimento ocidental enquanto tal. Os EUA sao a

    nica nao que logrou se desenvolver sem a presena marcante do Estado como regulador da vida social e econmica. O Estado in- terventor e atuante foi, sem dvida, uma realidade tardia nos EUA. O mesmo no vlido, no entanto, seguramente com gradaes peculiares, para nenhum outro caso de desenvolvimento capitalista conhecido. Como a noo de patrimonialismo tambm imprecisa e tende a se confundir com a pura e simples interveno reguladora do Estado na vida social, a presena do Estado enquanto tal passa a ser sinnimo de patologia social. Descura-se, nesse esquema, que o contraponto no vlido por ser excepcional, o qual d o mote, inclusive, para um tema importante da historiografia e da sociolo gia modernas, qual seja o tema da excepcionalidade americana, uma viva controvrsia desde a obra mxima de Tocqueville sobre o assunto.

    Nesse sentido, alm de determinarmos o que marca a singularidade europia e ocidental, torna-se necessrio enfatizar a varie- dade e multiplicidade histrica nas quais esse desenvolvimento se realizou em cada caso particular. A obra de Norbert Elias em com- binao com o argumento weberiano nos pode ajudar a percebei as razes e as precondies dessa multiplicidade. A feio nacional de cada forma de desenvolvimento capitalista afirmou-se, na realidade, de forma extremamente peculiar dados os condicionamentos particulares, a estrutura de classes peculiar, as reaes internas e externas ao contexto nacional, etc. A construo de O desenvolvimento capitalista e democrtico que rena em si todas as caractersticas mais importantes de processo to multifacetado ilusria e conduz a equvocos graves como veremos em detalhe.

    Na realidade, nenhum desenvolvimento nacional especfico logra reunir todas as virtualidades fundamentais do que chamaramos hoje de cultura ocidental, nem mesmo na sua verso dou- rada" do excepcionalismo americano. Essa convico levou-nos

  • A m odernizao seletiva 15

    leitura de uma segunda parte do livro sob a forma de anlise de desenvolvimentos alternativos, dentre os quais, alm dos Estados Unidos e da Alemanha, inclumos o caso brasileiro destarte sua orte seletividade em termos comparativos. Quisemos, com esse procedimento, ressaltar a importncia de criticar-se a noo, implcita na nossa sociologia da inautenticidade, de que a singularidade cultural brasileira se situa aqum e alm dp impacto da modernidade ocidental. Nossa tese, apesar da seletividade j aludida, aponta para a tese inversa.

    A sociologia do patrimonialismo de um Raimundo Faoro compartilha com a sociologia do iberismo e personalismo de Buar- que premissas fundamentais e guardam entre si um vnculo de contigidade e continuidade surpreendentes. Tambm a sociologia do dilema brasileiro de Roberto DaMatta parece ser uma verso culturalista do mesmo ponto de partida terico. Apesar da articulao de tericos que proponho ser heterodoxa - Roberto DaMatta, por exemplo, associado antes a Gilberto Freyre do que a Srgio Buarque ou a Raimundo Faoro creio que a filiao aqui proposta, como veremos com maior detalhe, mais convincente. DaMatta continua, na verdade, a tradio do personalismo segundo um registro prprio, e a tese do patrimonialismo , como expressamente admitida pelo autor, percebida como um pressuposto de suas anlises.

    J a minha proposio de uma leitura alternativa da singularidade cultural e social brasileira se apia, em parte, numa reconstruo do argumento de Gilberto Freyre. Apesar de perceber que a interpretao dominante sobre o autor o enquadraria precisamente numa tradio de continuidade em relao ao personalismo e ibe- rismo, acredito ser possvel demonstrar que uma leitura alternativa no s possvel, mas tambm descobre aspectos antes encobertos do que revelados pelas abordagens mais tradicionais. Essa recons- truo pretende ser, sem dvida, seletiva e evita algumas conse- quencias indesejveis do holismo organicista de Freyre.

    Outros dois autores foram includos na primeira parte por mo- tivos que ainda necessitam de esclarecimento. Jrgen Habermas tematizado dado ao fato de ser o terico mais importante das condies estruturais de funcionamento da esfera pblica moderna.Essa discusso possibilita a tematizao, sem dvida em carter

  • Jess Souza

    meramente tentativo e provisrio, da atualidade poltica brasileira a parte da expanso da esfera pblica nas ltimas trs dcadas, de modo a criticar a concentrao da prtica poltica baseada na sociolog ia da au ten ticidade na discusso das condies de possibilida- de de Estado e mercado. A novidade temtica e conceituai haber- masiana permite a considerao de uma terceira instituio fundamental da modernidade ocidental com lgica e objetivos prprios: a esfera pblica.

    A presena do quarto autor analisado, o cientista poltico e fi- lsofo canadense Charles Taylor, deve-se a outras razes. Taylor foi, talvez, a inspirao mxima dos temas analisados nesse livro. A comear pela concepo do papel das idias na cincia e na pr- tica poltica, passando por sua crtica do naturalismo na prtica cientfica, at sua presena em cada um dos temas que sero analisados separadamente. Sua relao com Weber de complementa- riedade e possibilita tornar vrias intuies weberianas operacionais segundo aspectos e dimenses no levadas a cabo pelo prprio Weber. Sua viso da especificidade da modernidade ocidental permite perceber contribuies nacionais singulares e evita vises totalizadoras simplificadas. Finalmente, sua releitura do tema he- geliano do reconhecimento no s inaugurou uma escola internacional de crescente prestgio, como tambm permitiu perceber em nova dimenso os temas centrais da diferena, do multiculturalismo e do aprofundamento das aporias da prtica e teoria democrticas.

    Finalmente, cabe ressaltar, para evitar mal-entendidos, que no pretendi fazer uma histria do pensamento social brasileiro. No houve nenhuma pretenso de reunir, por ordem cronolgica, os principais tericos da formao social brasileira, nem sequer dis- cutir todos os comentadores dos prprios autores analisados aqui.O interesse que persegui neste texto foi sistemtico. Pretendi defender uma tese e a escolha do material, intensiva e extensivamen- te, obedeceu a esse critrio pragmtico. Nada ficou mais longe do meu interesse do que a pretenso de ser exaustivo. Estou cons- ciente de que vrias das idias aventadas neste trabalho so meramente provisrias e tentativas, especialmente na sua concluso, necessitando de correo e complementao. esse aprendizado dialgico que gostaria de estabelecer com o leitor.

  • Parte I

    S ingu laridade, se letiv idade e re flex iv idade do desenvo lv im ento

    oc identa l

  • Captulo 1

    Max Weber e a singularidade da cultura ocidental

    certamente incorreto imaginar a importncia da esfera religiosa para Weber como uma inverso da causalidade econmica marxista. Tal salincia para Weber no causal, mas sim heurstica. Sendo o fundador da sociologia compreensiva, que procura a interpretao das aes individuais a partir do sentido dado pelo agente, nada mais natural que o interesse pela esfera social - em que identificou a gnese da produo do sentido social por excelencia durante milnios - tenha tido a primazia do seu interesse gentico e compreensivo.

    Procurarei fazer uma leitura neo-evolucionista da sociologia religiosa weberiana de modo a perceber onde Weber localiza a superioridade evolutiva ocidental nos campos moral e cognitivo.Esse ponto vai ser fundamental para que possamos compreender o que constitui a modernidade e onde reside sua validade universal. O neo-evolucionismo weberiano, como veremos, formal e no material, ou seja, pretende-se universalidade apenas para as estru- turas de desenvolvimento. Os contedos destas podem ser, ao con- trrio, particulares. As estruturas de desenvolvimento que nos inte- ressam se referem tanto s formas de conscincia (moral e cognitiva) individuais, como s concepes de mundo societrias.

    Temos aqui, portanto, a juno das perspectivas ontogentica (desenvolvimento individual) e filogentica (desenvolvimento

  • Jess Souza

    societrio ou da espcie). Esse tipo de leitura pode ficar mais com- preensvel ao leitor contemporneo se nos lembrarmos das suas afinidades com a psicologia do desenvolvimento cognitivo de Piaget ou Kohlberg. Assim, a racionalizao interna esfera religiosa p o d e percebida como uma forma de resolver o dilema da inter- ao do homem com os meios social e natural. Esse processo de aprendizado pressupe um aumento do grau de conscincia e reflexividade sobre a realidade que nos cerca, assim como do grau de autonomia da conscincia moral que nela atua.

    Nesse contexto, no pretendo examinar todo o conjunto de fatores materiais e ideais que tenham desempenhado de alguma forma um papel relevante nessa transio, concentrando-me na discusso da especificidade do desenvolvimento religioso ocidental, visto que, segundo penso, a racionalizao religiosa j propicia elementos suficientes para a demonstrao da especificidade do diagnstico weberiano do desenvolvimento ocidental. O peso particular da varivel religiosa nesse processo - sem que com isso se esteja pleiteando uma dominncia dessa esfera em relao a outras nesse processo de transio - deve-se ao fato de nas condies da concepo de mundo tradicional em que a doao de sentido ao mundo tem fundamentos fortemente religiosos, uma mudana de conscincia ser impensvel sem uma contribuio especificamente religiosa para a mesma.1

    O significado da especificidade do desenvolvimento ocidental como fio condutor de suas anlises enfatizado por Max Weber j. na primeira frase do prefcio ao conjunto de estudos de sociologia religiosa.

    No estudo de qualquer problema de histria universal, um filho da moderna civilizao europia sempre estar sujeito indagao de qual a combinao de fatores a que se pode atribuir o lato de na civilizao ocidental, e somente na civilizao ocidental. haverem aparecido fenmenos culturais dotados (como

    Wolfgang Schluchter, Die E n t w i c k l u n g d e s O k z i d e n t a l e n R r a i o n a l i s m u s , , 1979, p. 254.

  • A m odernizao seletiva 21

    pelo menos queremos crer) de um desenvolvimento universal em seu valor e significado.2

    Apenas no Ocidente temos cincia emprica, msica racional, imprensa, Estado e, sobretudo, a forma econmica do capitalismo. A ateno de Weber dirigi-se genealogia desse processo: por que apenas no Ocidente, melhor, por que apenas no Ocidente moderno temos a vitria daquilo que Weber chama racionalismo da domi- nao do mundo?.3 Essa questo confere o impulso para as suas abrangentes investigaes comparativas em sociologia da religio. Weber no pretendeu com esses estudos, com certeza, desenvolver uma teoria geral sobre todas as grandes civilizaes. Os estudos sobre as religies orientais devem servir apenas como contrapartida comparativa de modo que apenas os aspectos que esto em contradio com o desenvolvimento ocidental e, portanto, passveis de enfatizar sua especificidade, so objeto da ateno de Weber e limitam, desde o incio, o campo de estudo.

    Esses estudos, portanto, no pretendem ser anlises completas de culturas, mesmo que breves. Pelo contrrio, eles procuram destacar propositadamente em cada cultura aqueles aspectos nos quais diferia e difere da civilizao ocidental. Orientam-se, pois, definitivamente para os problemas que parecem importantes para a compreenso da cultura ocidental, deste ponto de vista. Tendo em vista esse objetivo, no parecia possvel qualquer outro procedimento. Mas, para evitar mal-entendidos, deve-se dar uma nfase especial limitao do citado objetivo.4

    Weber preocupou-se, inicialmente, com a influncia diferencial das doutrinas religiosas sobre a conduta prtica. Essa direo da relao causal foi perseguida no seu texto seminal sobre a tica protestante e o esprito do capitalismo. Mais tarde, no conjunto de textos que tratam da tica econmica das grandes religies mundial. T e mos tambm a considerao da relao causal contrria.5

    2 Max Weber, Gesammelte Auftze zur Religionssoziologie, v . I, p. 1. 3 Idem, ibdem. p. 534.4 Idem, ibdem , p.13. 5 Idem, ibdem , p.12.

  • Jess Souza

    Nesses textos, temos, por um lado, em contraste com a tica pro- testante, os trabalhos sobre as religies mundiais orientais, e, numa relao complementar quele trabalho pioneiro, o estudo so bre o judasmo antigo.

    Pode-se imaginar as duas direes da relao causal que estam os halando, a meu ver, da seguinte forma: por um lado temos os impulsos psicolgicos, religiosamente determinados da conduta de vida prtica, especialmente da conduta econmica, e, por outro, encontramos a relativa autonomia e a positividade especfica do nvel econmico. Este ltimo pr-formado por dados econmico- histricos e econmico-geogrficos que so independentes de qualquer determinao interna da ao econmica e influenciam, por sua vez, o ethos econmico prtico. Tendo em vista a dificuldade de determinao de todos os fatores polticos, econmicos ou economicamente determinados que influenciam a tica religiosa decide Weber tomar a estratificao social6 ou, melhor dizendo, os principais elementos da conduta prtica no religiosamente motivada dos estratos sociais que, na realidade, influenciaram e portaram as ticas religiosas, como uma espcie de representantes de Iodas as determinaes socioeconmicas da ao religiosa.

    A noo central para a interpretao dessa complexa multicau- salidade o conceito de afinidade eletiva (Wahlvenvandschaft).Esse conceito permite a Weber, em distino por exemplo em relao a Marx, tratar das relaes de reciprocidade entre as diversas esferas da sociedade sem reduzir uma a simples funes de outras, assim como evitar premissas teleolgicas e de filosofia da histria tpicas do evolucionismo do sculo XIX. Em vez necessidades ou funes refere-se Weber sempre a chances ou probabilidades". Tambm em contraposio ao marxismo ortodoxo no existe nenhum vnculo a priori entre o mundo material e simblico, ou seja, entre idias e interesses. Tambm aqui fala Weber apenas de chances.

    Decisivo, no entanto, para os nossos interesses aqui a sua re- cusa do evolucionismo sociolgico clssico ao criticar o normati- v ismo das etapas sucessivas e evitar qualquer noo de necessidade histrica. A minha recepo da sociologia das religies weberiana

    6 Idem, ibdem, p.239

  • A m odernizao seletiva 23

    vai privilegiar, precisamente, sua antecipao, neste campo, das teorias assim chamadas neo-evolucionistas do sculo XX. As interpretaes evolucionista e neo-evolucionista da teoria weberia- na foi levada a cabo nas ltimas trs dcadas por Friedrich Tenbruck, Wolfgang Schluchter e Jiirgen Habermas, o que contribuiu decisivamente para a reposio de Max Weber no centro do debate sociolgico atual e estimulou a releitura e reinterpretao desse clssico a partir de uma viso de conjunto das suas teses principais.7

    Segundo a reconstruo da sociologia religiosa weberiana a partir dos pressupostos neo-evolucionistas de uma lgica do desenvolvimento,8 pode-se perceber a progresso das concepes do mundo - e das estruturas de conscincia correspondentes - como um movimento que parte da concepo de mundo mgico-monista,

    7 A interpretao weberiana de W. Schluchter ocupa uma posio intermediria entre as interpretaes tradicionais de cunho anti-evolucionista, como podemos notar nos trabalhos de Reinhardt Bendix, Gnther Roth ou Johannes Winckel- mann, e a inovadora recepo evolucionista de Max W eber levada a cabo porFriedrich Tenbruck. Apesar de Schluchter concordar, em princpio, com Tenbruck sobre o contedo evolucionista da teoria weberiana, discorda, por

    outro lado, de trs aspectos essenciais da interpretao desse ltimo autor: I) inicialmente refuta a opinio de Tenbruck de que tenhamos em W eber uma teoria da formao e desenvolvimento de todas as grandes culturas mundiais. Contra esse programa evolucionista mximo defende Schluchter um pro- grama mnim o referente unicamente singularidade do desenvolvimento ocidental; 2) tambm rejeita ele o lugar dominante, uma astcia (List) das idias em relao aos interesses e ao mundo institucional; 3) finalmente, Schluchter refuta ainda a seqncia necessria de etapas de desenvolvimento, o que marca sua postura postura neo-evolucionista. O objetivo de sua interpretao reconstrutiva defin ido , pelo prprio autor, como uma tentativa de enriquecer o ponto de partida terico weberiano a partir do dilogo com correntes tericas contempo- rneas de modo a enriquec-lo enquanto alternativa terica.Ver Wolfgang Schluchter, 1979, p.1-14.

    8

    O neo evolucionismo baseado na lgica de desenvolvimento distingue-se do evolucionismo tradicional na medida em que diferencia lgica de desenvolvi- mento e dinmica de desenvolvimento, no sentido de evitar-se a idia de uma sequncia necessria de etapas a partir de um critrio hierrquico-normativo em favor de uma mera retrospeco de processos histricos contingentes. O primeiro distingue-se do ltimo tambm por diferenciar as estruturas de des-senvolvimento dos seus contedos de modo que apenas as primeiras podem p retender universalidade enquanto os ltimos podem ser particulares.

  • 24 Jess Souza

    passando pela teocntrica-dualista, at a moderna concepo do imanente dualismo.9 Esse processo reproduz a progresso da civili- zao ocidental como um movimento que parte do mito passando pela teodiceia at a antropodicia. Irei tentar percorrer esse cami- nho por meio da racionalizao religiosa de modo a explicitar os pressupostos da especificidade do desenvolvimento ocidental.

    Ao falar da gnese das religies, Weber esclarece que no pretende tratar da essncia da religio, seno indagar sobre as condies e efeitos desse tipo de ao comunitria. De acordo com o seu enfoque abrangente, o ponto de partida so sempre as vivncias e representaes subjetivas dos indivduos-atores, ou seja, o sentido dado ao pelos sujeitos Esse sentido, pelo menos nas primeiras manifestaes da religio e da magia, dirigido a este mundo criado com a expectativa de que as coisas possam ir bem e que se viva longos anos.10

    O elemento religioso ainda se encontra entranhado em outros aspectos da vida quotidiana, especialmente naqueles de natureza econmica. Esse o reino do naturalismo pr-animista, no qual coisas e significados ainda no se separaram e o sentido do mundo enquanto problema ainda no aparece. Apenas a maior ou menor quotidianidade dos entes objeto da cognio mgica. O elemento apartado da familiaridade imediata do quotidiano o que Weber chamar de carisma.11

    O naturalismo pr-animista baseia-se na crena de que criaturas determinam e influenciam o comportamento das coisas ou pessoas habitadas pelo carisma. Esse o ncleo da crena nos esp- ritos, segundo o qual o esprito representa sempre algo indeterminado e material. A etapa seguinte, do ponto de vista lgico, a imaginao de uma alma que propicia a transio do pr-animismo ao animismo em sentido estrito. Na crena nas almas, que pressupe a prtica dos magos, ocorre uma separao entre a idia de entidade sobrenatural e os objetos concretos, os quais, agora, passam a ser apenas habitados ou possudos.

    9W olfg an g S ch lu ch te r, R ation a lism u s d er W eltb eh errsch u n g , p . 9 -4 0 . V er tambm idem, 1979, especialmente p. 59-103.

    10 W eber, W irtschaft und Gesellschaft, p.245.11 Idem, ibidem , p. 247.

  • A m odernizao seletiva 25

    O desenvolvimento cognitivo seguinte representa um salto qualitativo e implica a passagem do naturalismo ao simbolismo. O simbolismo pressupe uma crescente abstrao dos poderes so- brenaturais, dispensando, assim, qualquer relao com objetos concretos. Decisivo para esse movimento em direo impessoalidade da representao das foras sobrenaturais a circunstncia de que, "agora no apenas as coisas e fenmenos que esto a e acon- tecem representam um papel na vida, mas tambm coisas e fen- menos que significam algo e porque precisamente significam algo 12

    Como enfatiza Godfrey Lienhardt, o simbolismo propicia ao sujeito, pela primeira vez, uma forma de controle sobre o objeto da experincia por meio de um ato de conhecimento, levando a que se supere a relao naturalista do homem em relao ao seu meio por fora da autonomizao do conceito em relao coisa.

    U m an im al ou o hom em p r -re lig io so pode a p en as re s is tir p a s s iv am en te ex p e rin c ia do so frim en to e de o u tra s lim ita es im p o sta s p e las suas co n d i e s de ex is tnc ia . O ho m em re lig io so , ao co n tr rio , pode , a trav s de sua cap ac id ad e d e s im b o liza- o , de ce rta fo rm a tra n sc e n d e r e d o m in a r co n seg u in d o , desse m odo , um a liberdade em re lao ao seu p r p rio m eio im p o ss vel no p a s s a d o 13

    O aparecimento dos poderes sobrenaturais - almas, deuses e demnios - na sua relao com os homens, possibilita a constitui- o da esfera ou do campo de ao religioso. A relao das divin- dades com os homens , nessa fase de desenvolvimento, marcada pela relativa ausncia de distncia. Distncia esta que, no momento do ritual, desaparece completamente quando o qualquer hora se transforma no agora.14 A ausncia de distncia indica a existn- cia de uma mera duplicao entre o mundo das coisas e fenme-

    12 Idem, ibidem , p. 248.13 Apud Robert Bellah, Religiose Evolution, Religion m ut Gesellschqftliche

    Entweicklung p. 274 . 14 Idem. ibd e m , p. 278.

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

  • 26 Jess Souza

    nos e o mundo dos poderes sobrenaturais, denotando a existncia de uma concepo de mundo monista.15

    Essa circunstncia leva a que a esfera religiosa nao possua ainda nenhuma fora propulsora capaz de canalizar a conduta prtica para uma determinada direo. Ainda assim, pode-se falar de uma tica mgica no sentido amplo do termo, como Weber o faz,16 na medida em que, por fora da proibio dos tabus, produz- se alguma forma de regulao das condutas. Essa primeira forma de positividade religiosa possui uma eficcia apenas estereotipada, no sentido de que serve, antes de tudo, proteo de interesses extra-religiosos, faltando ainda a referncia a um mundo especificamente religioso.

    Esse estado de coisas decorrente do fato de o desempenho do simbolismo limitar-se ao mundo do ser, distino entre coisa e conceito, cuja importncia j foi enfatizada, e ainda no abranger a distino entre ser e dever ser. Esse passo pressupe, precisamente, uma concepo de mundo dualista, a qual ir ser produto das religies de salvao, e representa, em termos de lgica de desenvolvimento, um passo evolutivo decisivo em relao a uma concepo de mundo mgica. Em lugar de uma simples duplicao, temos aqui uma efetiva dualidade, na medida em que, "o contrrio do mundo mgico, a esfera transcendental, especificamente religiosa, contrape-se emprica, reivindicando para si uma positividade e eficcia prprias. Mais ainda, a esfera transcendental passa a ser vista como a mais importante, implicando desvalorizao da esfera emprica enquanto reino passageiro das criaturas. A verdadeira realidade passa a ser a do alm em oposio emprica, a qual vale, desde ento, como passageira - nas religies de salvao orientais - ou como o reino do pecado - nas religies de salvao ocidentais.

    Na introduo tica econmica das religies mundiais Weber vincula esse processo de autonomizao da esfera social religiosa transformao peculiar do sentimento impulsionador fundamental da ao religiosa, o qual passa a ser o sofrimento. No incio do desenvolvimento do campo religioso o sofrimento era valoriza-

    15 Schluchter, op. cit., 1980 p. 15.16 Weber, op. cit., 1985 p. 264.

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

  • A m odernizao seletiva 27

    do negativamente, como se pode observar pelo comportamento das comunidades arcaicas em festividades, ocasies em que os doentes e sofredores, em geral, eram tidos como legitimamente punidos pelos deuses, sendo, portanto, objetos do dio e do desprezo geral, no sendo aceitos como participantes nessas ocasies. A religio servia ento aos desejos dos poderosos e saudveis de ver legitimada a prpria felicidade.17

    O caminho para a mudana radical dessa concepo comea com a distino, relativamente tardia, entre a cura de almas, entendida como culto individual, e o culto coletivo, que cuida apenas dos interesses mais gerais da comunidade. A cura de almas preo- cupa-se com a questo da imputao causal da culpa do sofrimento individual, a qual foi assumida por dinastias de mistagogos ou profetas de uma divindade. A partir dessa especializao podem agora os especialistas vincular seus prprios interesses materiais e ideais aos motivos e necessidades da plebe.

    Um passo seguinte consuma-se com a construo de mitos de salvao do sofrimento continuado, os quais permitem, pelo menos tendencialmente, uma interpretao racional do sofrimento. A matria-prima original dessas construes so os mitos primitivos da natureza que, a partir de sagas de heris ou espritos intimamente relacionados com fenmenos naturais, so interpretados como cultos de salvao. De uma maneira geral, foram formados a partir das esperanas de redeno, uma teodicia do sofrimento, em evidente oposio s teodicias da felicidade anteriores, que se baseavam, ainda, em fundamentos rituais e no ticos. Com o novo sentido do sofrimento, agora como sintoma de felicidade futura, abrem-se as portas para a conquista do imenso pblico de sofredores e oprimidos em geral.

    Com a precedncia da compreenso da religio como teodicia do sofrimento, inclinam-se os ricos e poderosos a abraar outras fontes de legitimao da sua condio como, por exemplo, o carisma do sangue. Os sofredores, ao contrrio, saem em busca da idia religiosamente motivada de uma misso confiada especialmente a eles.18

    17 Idem, op. cit., 1947, p. 242.18

    Idem , ibidem , p. 248.

  • 28 Jess Souza

    A teodicia do sofrimento, como resultado da crescente racionalizao das concepes de mundo religiosas, substitui, como uma metafsica tendencialmente racional, as concepes de mundo mticas, abrindo espao, dessa forma, para o desenvolvimento de uma tica em sentido estrito. O pressuposto dessa passagem um outro desenvolvimento cognitivo fundamental - como na transio do naturalismo ao simbolismo - que permite, agora, a distino entre as esferas do ser e do dever ser. Como conseqncia temos uma mudana radical na relao dos homens consigo mesmos, com os outros e com seu ambiente. Desse momento em diante, constitui-se uma nova esfera moral, mais ainda, temos o aparecimento da moral, enquanto tal, como esfera autnoma com uma positividade prpria, na medida em que suas finalidades se separam de todas as outras finalidades mundanas.

    Com a concepo de mundo dualista, por fora da distino entre o sagrado dever ser e o profano mundo do ser, constituem-se duas esferas concorrentes e paralelas, abrindo espao para uma rejeio religiosa do mundo, na medida em que o elemento emprico da realidade profana passa a ser desvalorizado pelo dever ser sagrado.

    Uma primorosa anlise das conseqncias e direes das rejeies religiosas do mundo levada a cabo por Weber nas Consideraes intermedirias tica econmica das religies mundiais. Todas as religies de salvao, sejam ocidentais ou orientais, tm como base concepes de mundo dualistas, embora, certamente, com as mais distintas conseqncias.19 A diversidade dessas con

    19 Dois aspectos parecem-me decisivos na anlise das influncias diferenciais da tica religiosa sobre a conduo da vida prtica. Por um lado, temos um elemento imanente mensagem religiosa, nomeadamente, a concepo da divindade. A investigao comparativa descobre um Deus pessoal e transcendente no Ocidente e um Deus imanente no Oriente. Essa distino, entretanto, ganha toda a sua fora apenas vinculada ao contedo da promessa religiosa e do caminho da salvao. Por outro lado, um elemento extra-religioso assume importncia central, nomeadamente os portadores sociais da tica religiosa. Aqui importa saber que interesses ideais e materiais do estrato social em questo determinam a tica religiosa. Todos esses aspectos se condicionam mutuamente. Im porta muito, por exemplo, se o estrato social portador da promessa e do cam inho da salvao religiosa privilegia uma interpretao intelectual

  • A m odernizao seletiva 29

    seqncias e influncias sobre a conduta prtica proporciona, at mesmo, o fio condutor de toda a sociologia da religio weberiana, assim como explica o peso heurstico da esfera religiosa para a explicao da especificidade cultural do Ocidente.

    A resoluo desse dilema o ncleo do problema a ser enfrentado por toda teodicia. Duas solues extremas para essa questo contrapem-se aqui: uma soluo mundana imanente e uma soluo mundana transcendente. O hindusmo, para Weber, seria a soluo mais conseqente do ponto de vista imanente. O mundo profano uma mera parte do mundo sagrado, o que implica ausncia de estmulos tico-religiosos para modific-lo. A soluo transcendente mais conseqente a calvinista, como veremos, e a conseqncia a interpenetrao tica do mundo em todas as esferas da vida. Uma outra distino fundamental para Weber, na determinao das relaes entre tica e mundo, a oposio entre misticismo e ascetismo.

    Os dois caminhos mencionados anteriormente so intramun- danos. Mas enquanto o primeiro mstico, o segundo asctico. Para este ltimo importante a noo de ao, ou seja, uma concepo do fiel como instrumento- divino. No primeiro, o aspecto fundamental a noo de estado, ou seja, a viso do fiel como vaso da divindade, sendo percebido como em alguma forma de unio mstica comeste. Tanto o caminho mstico como o asctico admitem tambm variantes extramundanas. A mstica extra- mundana implica fuga do mundo, como no caso dos monges budistas. J a ascese extramundana, como no caso dos monges catlicos da Idade Mdia, leva a uma radical diferenciao entre comportamento cotidiano e extracotidiano. Ambos os caminhos extramundanos, no entanto, acarretam uma diferenciao extrema entre os virtuosos religiosos e os leigos, impedindo, portanto, a conformao tica da ao mundana.

    A especificidade do racionalismo ocidental, para Weber, resulta da forma peculiar segundo a qual a religiosidade ocidental soluciona o seu dualismo especfico. O dualismo na sua verso ocidental potencialmente tensional, ou seja, ao contrrio do dua-

    (como no Oriente) ou prtica (como no Ocidente) dos mesmos. (Ver Weber, op. cit., 1947, p. 536-573).

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

  • 30 Jess Souza

    lismo oriental, a nfase potencialmente mais tica do que ritua- lstica. Nesse sentido, abre-se a possibilidade de um conflito aberto entre a positividade tico-religiosa e as demais esferas mundanas. esse o tema de Consideraes intermedirias ao conjunto de estudos sobre sociologia das religies.

    Apesar do calvinismo ter sido o desenvolvimento mais conseqente dessa caracterstica cultural, Weber identifica suas razes no judasmo antigo, o que explica de resto seu interesse especial no estudo do judasmo. Nele Weber encontrou o primeiro passo na direo de uma tenso entre tica religiosa e mundo que abriu caminho para a conformao tica deste ltimo. Fundamental no caso do judasmo antigo a prpria concepo de divindade. Jeov no um Deus funcional qualquer, mas o Deus da guerra de uma pequena nao cercada de inimigos poderosos. A desobedincia a Jeov significava conseqncias polticas e militares imediatas.

    Dois elementos ajudam a explicar sua fora como divindade: a) o carter tico de sua mensagem por meio dos mandamentos que visavam constituio de uma conduta tica cotidiana; e b) o contrato (berith) sagrado e coletivo firmado entre Jeov e seu povo como coletividade, e no como indivduos isolados, o que favoreceu enormemente a presso coletiva para sua obedincia. Essas duas condies combinadas foram decisivas para a vitria sobre os cultos concorrentes e outras divindades.21

    Fundamental para a vitalidade do componente tico implcito no judasmo antigo foi, para Weber, a atuao da profecia judaica. E que a constituio de um estamento sacerdotal, o qual exercia sua atividade religiosa em templos, tendia a propiciar uma nfase na atividade de culto, o que era contrrio ao ensinamento de Jeov. Apenas o componente tico da obedincia irrestrita aos mandamentos interessava a este. E precisamente esse fato que era lembrado com toda a insistncia pelos profetas. A salvao s era possvel coletivamente e por meio do cumprimento estrito dos mandamentos divinos e no por meio de tcnicas de salvao e contemplao.

    20Este texto foi publicado em portugus com o ttulo Rejeies religiosas do mundo e suas direes, idem, Ensaios de sociologia, 1979, p. 371-413.Idem, 1923, Gesammelte Anftze zur Religionssoziologie, p. 126-149.

    21

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

  • A m odernizao seletiva 31

    A novidade proftica, portanto, no se dirigia ao contedo da mensagem religiosa, a qual j havia sido sistematizada pelos sacerdotes levitas no Tora. O trabalho dos profetas era dirigido radicalizao do componente tico e seu efeito no comportamento cotidiano. Weber refere-se aos profetas ticos do judasmo antigo como os primeiros homens que haviam logrado se libertar do jardim mgico em que toda a religiosidade primitiva se inseria. Havia a tentativa de conformar as esferas mundanas segundo os mandamentos da tica religiosa. Ao profeta Jeremias, por exemplo, no interessavam compromissos; as lgicas mundanas deviam conformar-se e subordinar-se mensagem religiosa. Para Weber, boa parte da extraordinria sobrevivncia dos judeus como povo-pria se deveu eficcia de seu elemento tico.

    O cristianismo primitivo e o medieval, herdeiros da tradio judaica, aprofundaram, por um lado, e inibiram, por outro, algumas caractersticas que seriam constitutivas da cultura ocidental moderna. O cristianismo primitivo contribuiu decisivamente para o universalismo da mensagem tico-religiosa. Esse componente j era elemento central da noo de amor universal da pregao de Jesus e foi reforado pela misso paulnia ao propiciar a constituio de comunidades universais e abertas, evitando o sectarismo judaico. J o catolicismo medieval contribuiu com o racionalismo intelectual e jurdico das tradies grega e romana, as quais foram incorporadas pela Igreja.

    O fator inibidor da herana tica no catolicismo medieval foi responsvel pela secundarizao da tenso entre tica e mundo. E que o princpio da igualdade dos irmos de f foi interpretado como uma igualdade pr-social, a qual no estava prejudicada por qualquer forma de desigualdade concreta. Esse compromisso, ao mesmo tempo, foi o pressuposto mesmo da fora integradora do cristianismo, ao mesmo tempo em que se abria possibilidade, pelo menos como idia regulativa, para a idia de igualdade concreta. O elemento tradicionalista do compromisso com os poderes e a lgica das esferas mundanas, no entanto, impediu uma conformao tica conseqente da vida cotidiana.

    Nesse sentido, temos apenas com a revoluo protestante um ponto de inflexo fundamental em direo a uma conseqente interpenetrao entre tica e mundo. Apesar do carter tradicionalista

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

  • 32 Jess Souza

    da pregao luterana, j com Lutero e o luteranismo temos avanos importantes em relao ao catolicismo. que Lutero, ao traduzir a Bblia para o alemo, produziu a juno de duas noes bblicas, a noo de trabalho (Ttigkeif) e de chamado divino (Berufung zit Gott), na noo de vocao (Beritf). Esse passo foi decisivo para a transformao de uma noo de ascese extramundana, como a catlica medieval, em benefcio de Uma noo intramundana da mesma.

    Se o trabalho era sagrado, ento o fiel pode agradar a Deus desempenhando sua atividade cotidiana no mundo. No entanto, a interpretao luterana do trabalho intramundano era tradicionalista. O fiel deveria cumprir suas obrigaes cotidianas e aceitar em todos os sentidos a ordem mundana criada por Deus. Nesse sentido, a noo tradicionalista de vocao significava a aceitao das relaes de trabalho j existentes e o compromisso com as estruturas patrimoniais de poder ento vigentes. Desde ento temos, a partir dessa constelao de fatores, duas caractersticas marcantes do carter alemo: o sentimento de dever e a subservincia em relao autoridade.22 Ao mesmo tempo, como iremos ver com mais vagar adiante, tambm essa concepo propiciou uma interpretao peculiar do indivduo ocidental ao enfatizar a dimenso interna da personalidade.

    Mas no esse protestantismo tradicionalista que Weber tem em mente quando fala da revoluo protestante. A verso lutera

    na do protestantismo , ainda hoje, dominante na Europa central, inclusive Alemanha, e na Europa do norte, especialmente os pases escandinavos. A vertente asctica e individualista do protestantismo, para Weber, teve sua origem especialmente na Inglaterra e nos Pases Baixos, sendo depois transportada para os Estados Unidos, onde desenvolveram-se ao mximo todas as suas potencialidades.

    A reinterpretao calvinista da reforma protestante adapta a noo luterana de vocao no sentido de uma concepo asctica de ativismo intramundano. Aqui o fiel visto, tal qual judasmo antigo, como instrumento divino e no mais como vaso da divindade, como no luteranismo. No protestantismo asctico temos no apenas a clara noo da primazia da tica sobre o mundo, mas

    Ver, sobre esse tema, o captulo 2 da parte II deste livro.22

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

  • A m odernizao seletiva 33

    tambm a mitigao dos efeitos da dupla moral judaica (uma moral interna para os irmos de crena e outra externa para os infiis). A coerncia e a disciplina da influncia do comportamento prtico pela mensagem religiosa podem, ento, ser muito maiores. O desafio aqui o de a tica querer deixar de ser um ideal eventual e ocasional (que exige dos virtuosos religiosos quase sempre uma fuga do mundo como na prtica monstica crist medieval) para tornarse efetivamente uma lei prtica e cotidiana dentro do mundo.

    O que est em jogo em termos de desempenho cultural uma primeira experincia histrica de moldar eticamente o mundo e, de forma conseqente, transcender o dualismo religioso por meio da sua realizao prtica na sociedade. O dogma mais caracterstico do calvinismo a doutrina da predestinao.23 Este diz que apenas alguns homens so eleitos para a vida eterna, sem que se possa ter acesso aos motivos que levaram Deus a fazer tal escolha. Como Weber enfatiza, essa doutrina implica uma distino radical tanto em relao ao catolicismo como ao luteranismo, na medida em que ambos defendem no s uma outra concepo de divindade, mas, tambm, um conceito essencialmente distinto da piedade divina.

    A doutrina calvinista da predestinao pressupe uma compreenso tal da divindade que, bem no sentido que esta possui no Velho Testamento, implica um abismo intransponvel entre Deus e os homens, trazendo, como conseqncia, uma extrema intensificao da experincia humana da solido. Um outro efeito, talvez o mais importante, a eliminao de toda mediao mgica ou sacramental na relao Deus/homens. Para Weber, esta ltima circunstncia foi absolutamente decisiva para a superao do ethos catlico e, em certa medida, tambm do luterano24 no sentido de que a ausncia de mediao determina o fechamento dos espaos de compromisso. O crente deixado a si mesmo e apenas humildade e obedincia em relao aos mandamentos da divindade podem decidir sua salvao. A totalidade da conduo da vida enquanto unidade o que conta para que se alcance a salvao e no a soma de aes isoladas.

    23 Weber, op. cit., 1947, p. 90.24

    Idem, ibidem, p. 94-95.

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

  • 34 Jess Souza

    O pattico isolamento individual cria, no entanto, uma sensao de insegurana insuportvel para as necessidades emocionais do homem comum. Para um virtuoso como Calvino no existia esse problema, posto que ele estava seguro da prpria salvao. Para os seus seguidores, no entanto, a questo da dvida da prpria eleio ganha um significado central, propiciando a elaborao da doutrina da certeza da salvao (Bewarimgsgedcmke). Esta confere um sentido sagrado ao trabalho intramundano ao interpret-lo como meio para o aumento da glria de Deus na 'ierra, de modo a dar ao crente a segurana de que seu comportamento no apenas agradvel a Deus (gottgewollt), mas, acima de tudo, fruto direto da ao divina (gottgewirkt), possibilitando a fruio do bem maior dessa forma de religiosidade, qual seja, a certeza da salvao.5

    A noo de vocao ganha, assim, um novo entendimento, na medida em que passa a contar como sinal da salvao, mais ainda, como sinal da salvao a partir do desempenho diferencial.O objetivo da salvao e o caminho para alcan-la passam a exercer uma influncia recproca de tal modo que uma conduo de vida metdica religiosamente determinada pode aparecer.

    Com isso temos no s a superao da concepo tradicionalista de vocao em Lutero, mas, tambm, do prprio ethos tradicionalista enquanto tal. Em lugar de uma percepo da salvao segundo a acumulao de boas aes isoladas, temos agora a perspectiva de que a vida tem de ser guiada a partir de um princpio nico e superior a todos os outros: que a vida terrena deve valer apenas como um meio (e o homem um mero instrumento de Deus) para o aumento da glria divina na Terra. Todos os sentimentos e inclinaes naturais devem subordinar-se a esse princpio, representando o protestantismo asctico, desse modo, uma gigantesca tentativa de racionalizar toda a conduo da vida sob um nico valor.

    o ascetismo puritano, como todos os tipos de ascetismo racional , tentava a habilitar o homem a afirmar e a fazer valer os seus motivos constantes especialmente aqueles que foram ad-

    5 W eber fala mais precisamente de caminho para a orteza da salvao (op. cit., p. 110).

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

  • A m odernizao seletiva 35

    quiridos em contraposio aos sentimentos. Sua finalidade, ao contrrio de algumas crenas populares, era habilitar a vida alerta e inteligente, enquanto a tarefa imediata de anulao do gzo espontneo e impulsivo da vida era o meio mais importante da ascese na ordenao da conduta dos seus adeptos.26

    Ao contrrio da ascese monstica medieval, que significa uma fuga do mundo, temos aqui uma ascese intramundana que direciona toda a fora psicolgica dos prmios religiosos para o estmulo do trabalho, segundo critrios de maior desempenho e eficincia possveis. O elemento asctico age como inibidor do gozo dos frutos do trabalho, sendo o desempenho diferencial compreendido como atributo da graa divina e um fim em si. A passagem do mundo religiosamente motivado para o mundo secularizado, no entanto, um ponto central e controvertido do diagnstico webe- riano da modernidade.

    Cultura normativa ou reificao do mundo?

    A interpretao dominante, ao perceber a influncia do capitalismo no apenas no mundo do trabalho ou na economia em sentido estrito mas tambm em todas as esferas da vida, defende a tese da reificao da vida em geral como conseqncia do processo de secularizao. Afinal, trata-se aqui, no sentido forte do termo, de uma recriao do mundo na medida em que uma nova racionalidade, especificamente ocidental, passa a permear todas as esferas de atividade humana. Nesse sentido, Schluchter entende que o significado cultural da tica protestante para a modernidade ocidental deve ser considerado antes no favorecimento por parte desta de um esprito da reificao do que de um esprito do capitalismo.27

    Causas da reificao veria Weber, antes de tudo, na essencial no-fraternidade do caminho da salvao do protestantismo asctico e na suspeita de divinizao das criaturas contida em toda doa

    26 Idem, ibidem, p. 117.

    27 W olfgang Schluchter, op. cit., 1979, p. 229.

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

  • 36 Jess Souza

    o de valor para relaes humanas. O efeito desse tipo de estudo psicolgico leva ao que se poderia chamar de dominao da impessoalidade. As relaes intersubjetivas entre os sujeitos perdem, crescentemente, a sua caracterstica emocional e, com isso, a prpria peculiaridade das relaes entre homens.

    qualquer relao puramente emocional - isto , no motivada racionalmente - baseada em uma relao pessoal de um homem com outro, facilmente cai, na tica puritana, assim como em qualquer outra tica asctica, na suspeita de idolatria da carne. Em adio ao que foi dito, isto mostrado bastante claramente no caso da amizade pela seguinte advertncia It is an irrational act and not fit for a rational creature to love any one further than reason will allow us...It very often taketh up men's minds so as hinder their love to God (Baxter: Christian Directory, IV,

    28p. 235). Encontramos repetidas vezes tais argumentos.

    A reificao e a conseqente atitude instrumental em relao a si e aos outros e natureza seriam, portanto, resultados do especfico caminho de salvao da tica protestante. A concepo de mundo teocntrica e dualista seria desvalorizada pela absolutizao do ponto de partida do racionalismo da dominao do mundo motivado religiosamente, o que expressa o carter autodestrutivo da tica protestante. O mesmo mundo que foi encantado por meio do simbolismo viria a ser, por fora da necessidade do reconhecimento das leis especficas que o regem, desencantado. Nesse contexto, seriam possveis duas atitudes fundamentais de conformidade com as novas condies da poca:29 os homens exclusivamente interessados no sucesso, seja sob a forma de poder ou dinheiro, e aqueles que procuram encontrar um equilbrio entre sucesso e convico tica. Essa ltima atitude s possvel para as existncias

    28 Max W eber, op. cit., 1947 I, p. 98-99.29

    A religio no desaparece simples e automaticamente no desenrolar desse processo. Ela vive, agora como antes, da carncia e das lim itaes impostas capacidade interpretativa humana no seu sentido mais geral, as quais no podem ser sanadas pela cincia nem por esquemas de interpretao de fundo secular. Entretanto, como conseqncia do desencantamento do mundo, a religio encontra-se na defensiva, sendo apenas uma alternativa entre outras de paradigma interpretativo.

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

  • A m odernizao seletiva 37

    que buscam definir-se na tenso entre o ser e o dever ser e entre a rejeio do mundo e o reconhecimento da legalidade prpria do mundo desencantado.

    As condues da vida que privilegiam apenas a atitude orien- lada ao sucesso seriam precisamente os ltimos homens, no sen- tido nietzschiano do termo apropriado por Weber, que renunciam a qualquer fundamentao tica para suas aes,30 os quais, nas palavras de Schluchter, promovem uma dominao inconsciente do mundo.31 Uma atitude consciente de dominao do mundo exigiria a elaborao reflexiva da tenso, tpica para as formas de conscincia peculiares da concepo de mundo moderna nos termos de um imanente dualismo entre orientao para o sucesso e atitude clica, ou seja, uma mistura bem temperada entre sucesso e moralidade. Trata-se, aqui, da necessidade tpica de um antropocentrismo dualista, ou seja, que se mantenha a tenso entre se . e dever ser, de reconhecer o contedo tico da problemtica do autocontrole e da dominao do mundo e de pautar seu comportamento de acordo com essa dualidade necessariamente instvel.

    A partir da destruio da concepo de mundo dualista- teocntrica teramos, como nica possibilidade de atitude tica, a conduo consciente da vida enquanto personalidade a qual pressupe a necessidade de escolhas morais e aes meditadas que levam em conta as suas conseqncias na realidade.32 Desse modo, a antropodicia no sentido weberiano pressuporia uma antropologia, a qual, segundo Dieter Henrich, espelha uma doutrina do homem como ser racional. Racionalidade significa aqui o impera- tivo de qualquer existncia humana de se tornar uma personalidade na medida em que a corrente de decises ltimas que conferem, em ultima instncia, o sentido da individualidade de uma vida passa a ser conscientemente executada e mantida.33

    Os ltimos homens, no sentido da tica protestante, seriam, ao contrrio, aqueles que renunciam escolha dos valores que

    30Max W eber, 1947 I, p.204

    31 W olfgang Schluchter, op. cit., 1980, p. 36.32 Dieter Henrich, 1950, Die G nmdlagen der wissensschafislehre Max Webers,(mimeo.), p. 202.33 Idem, ibidem, p. 205.

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

  • 38 Jess Souza

    regem a prpria vida, abdicando em suma autodeterminao pela prtica de uma crua acomodao aos estmulos pragmticos exteriores.34 A nova concepo dualista do mundo, tpica da modernidade desencantada, renuncia noo de um alm, o que justificaria sua designao de imanente. Para Henrich, o homem que perde sua ligao orgnica com motivos religiosos s pode encontrar os seus ideais dentro do prprio peito.35 A concepo de mundo moderna continua dualista, na viso de Weber, precisamente pela permanncia do confronto entre um mundo da causalidade natural e um mundo postulado de uma causalidade compensatria de fundo tico. No entanto, ao contrrio do dualismo anterior, religiosamente motivado, temos agora um dualismo imanente,36 j que o mundo da realidade tica postulada pelo prprio homem desenvolvido acarretando, conseqentemente, uma responsabilidade bastante peculiar com respeito esfera tica.

    Com a reificao do mundo, como conseqncia do processo de desencantamento ou desmagificao (Entzauberung), tera

    mos a perda da capacidade de convencimento das ticas materiais de fundo religioso e o aparecimento das precondies indispensveis para o individualismo lico. A transio para o individualismo tico fundamenta, at mesmo, a forma peculiar da auto-conscincia ocidental e, com isso, o significado especfico do seu desenvolvimento cultural, cujo aparecimento se deve decisivamente, entre outros fatores, ao poder reificador da mensagem protestante.

    O desempenho civilizatrio especfico do racionalismo ocidental moderno foi o desencantamento do mundo. Esse ponto implica na atualizao mais conseqente, at aqui na Histria, do conflito valorativo. Uma forma de conscincia que, j nos incios do racionalismo ocidental, encontrava-se formulada no contexto da concepo de mundo helnica e que acompanhou o homem de forma latente desde que ele com eou a simbolizar foi, na constelao do racionalismo ocidental moderno, definitivamente descoberta e radicalizada (...) Com isso, o aparecimento e o desenvolvimento do racionalismo ocidental moderno

    34Idem , ibidem, p. 200.35 Idem , ibidem, p. 206.

    36 W olfgang Schluchter, op. cit., 1980, p. 35-36.

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

  • A m odernizao seletiva 39

    parecem rep resen tar, para W eb er, um a ru p tu ra de p rin c p io na fo rm a da consc inc ia , ou seja , u m d esen v o lv im en to das fo rm as de consc inc ia , co rresp o n d en d o , p o r sua vez, ao n vel das co n cep es do m undo , a um d esen v o lv im en to tam b m d essas ltim as. N o lugar dos deuses p esso a is tem o s t'g o ra o s p oderes im p esso a is .37

    Apenas o Ocidente consegue superar os limites de uma concepo de mundo tradicional e da forma de conscincia que lhe corresponde. A aquisio de uma conscincia moral ps-tradicional o que est em jogo na passagem da tica da convico, tpica de sociedades tradicionais legitimadas religiosamente segundo uma moral substantiva, para a tica da responsabilidade, que pressupe contexto secularizado e subjetivao da problemtica moral. Esta passagem espontnea apenas no Ocidente. O seu produto mais acabado o indivduo capaz de criticar a si mesmo e sociedade em que vive. Esse indivduo liberto das amarras da tradio o alfa e o mega de tudo que associamos com modernidade ocidental, como mercado capitalista, democracia, cincia experimental, filosofia, arte moderna, etc.

    Contra essa posio dominante defende Richard Mnch uma interpretao alternativa. Mnch percebe a relao entre tica e mundo no como desintegrao daquela neste, mas sob a forma de uma interpenetrao tica do mundo. A interpenetrao significa certamente a limitao da positividade prpria a cada esfera social a partir da influncia tica modificadora. No entanto, tambm o inverso seria verdadeiro. Ao interpenetrar-se com as esferas prticas, os imperativos ticos tendem a influenciar-se pelos imperativos dessas mesmas esferas. Isso implica a interpenetrao reciprocam entre tica e mundo.

    que a interpenetrao entre tica e mundo no poderia ser vista como uma subordinao unilateral do mundo esfera tica.Em sociedades que j apresentavam graus significativos de diferenciao social, como a sociedade pr-moderna ocidental, s podemos falar de uma interpenetrao recproca entre tica e mundo na medida em que as esferas mundanas se tornam ticas e a tica

    37 Idem , 1979, p. 35.

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

  • 40 Jess Souza

    religiosa adquire, por seu turno, relevncia prtica. precisamente essa relevncia prtica que possibilita e radicaliza seu efeito intramundano.

    Para Mnch, uma interpretao do processo de secularizao como a que Schluchter, por exemplo, prope equivale a secundari- zar os elementos ticos do racionalismo da dominao do mundo. Mnch demonstra como a cidade medieval ja havia criado as precondies para um processo de interpenetrao recproca entre tica e mundo. que a cidade medieval ocidental era, ao contrrio da cidade oriental, uma comunidade de cidados. Esta ltima, ao contrrio, era, antes de tudo, o centro da dominao patrimonial e apenas secundariamente um centro comercial e artesanal. Mnch releva, portanto, a possibilidade do desenvolvimento de um universalismo conseqente nas esferas econmica, poltica e cultural a partir desse fundamento.

    Nesse sentido, a cidade medieval vinculava todos os cidados s mesmas normas jurdicas, o que implicava no fato de a ordem senhorial e patrimonial medieval sofrer, nos seus domnios, uma refrao importante. Tambm na cidade surgiu pela primeira vez o Homo Oeconomicits, com sua nfase na continuidade, calculabili- dade e segurana nos negcios; o direito raciona! como forma de ordenar a vida econmica; uma primeira forma de autonomia poltica, conquistada contra a dominao patrimonial; e, finalmente, a revitalizao da vida cultural, na medida em que se retoma a herana da antiguidade clssica, transformando-a em estmulo fundamental para a renascena italiana e o humanismo.

    A nfase de Mnch na importncia da cidade medieval serve para demonstrar sua tese da interpenetrao recproca entre tica e mundo. E que na cidade medieval j existiam pressupostos importantes da cultura ocidental antes mesmo do protestantismo asctico.

    A norma da eqidade, por exemplo, que implicava universalizao e igualdade na esfera econmica um pressuposto da prpria possibilidade de tornar o trfico econmico normatizvel segundo regras universalizveis. Assim, no seria decisiva apenas a existncia de uma ou outra caracterstica, mas a interpenetrao entre vrias, como no Ocidente a partir da cidade e do universalismo cristo, que seriam responsveis pela posterior construo de uma

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

  • A m odernizao seletiva 41

    cultura normativa com as caractersticas de ativismo, universalismo, racionalismo e individualismo.38

    De acordo com essa linha de raciocnio, a doutrina religiosa protestante asctica partiria do dado da existncia de uma civilizao comercial burguesa direcionando sua doutrina a esse tipo de vida econmica. Isso no implica no fato de a religio ter sido usada para conferir substncia moral vida econmica. Esse fato significa apenas que a mensagem religiosa asctica se dirige queles segmentos citadinos e burgueses cuja conduo de vida estava em conflito secular e constante com a tica tradicionalista da doutrina catlica. Nesse sentido, levar em conta as necessidades desse estrato no significa subordinar a mensagem religiosa s suas necessidades, mas direcionar a doutrina religiosa a esse tipo de vida econmica. Essa referncia da doutrina em relao as necessidades cotidianas desse estrato explica, precisamente, em que medida se pode lograr uma moralizao da economia, moderando os estmulos atividade econmica descontrolada e propiciando, por meio do controle dos desejos e paixes, a entronizao do princpio da responsabilidade individual e da conduta racional e metdica.

    Esse aspecto fundamental para a tese da interpenetrao recproca. E que, nesse novo quadro, o mundo secularizado das geraes seguintes no seria apenas regulado pelos estmulos empricos de mercado capitalista e Estado racional-burocrtico, como na tese da coisificao do mundo secular. Essas geraes seguintes seriam tambm influenciadas pela tica subjacente e j incorporada e materializada por essas instituies fundamentais. Assim, todo o potencial normatizador da vida contratual moderna, ancorado no mercado, e o respeito a direitos humanos generalizveis, como liase do Estado democrtico moderno, remetem a esse contexto moral que o pressuposto mesmo da existncia dessas esferas.

    Uma viso da modernidade secularizada como incapaz de qualquer consenso tico descura, na opinio de Mnch, nesse par- licular seguindo os passos de Talcott Parsons, o fenmeno da generalizao valorativa tpica da modernidade. Segundo essa tese, a modernidade secularizada implicaria a superao do particularismo etico e no da tica enquanto tal. Ao moderno sistema escolar e

    38 Richard Mnch, Die Kultur der Moderne, 1993, p. 96-127.

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

  • 42 Jess Souza

    universitrio caberia o ancoramento institucional possibilitador do princpio da generalizao normativa e da autonomia da personalidade. Para Mnch, precisamente a constituio desse sistema profissional baseado na escola e na universidade que, em consonncia com as necessidades do mercado e do Estado, permite a manuteno em escala ampliada da cultura normativa e do valor da auto-responsabilidade.39

    Apesar de Mnch conscientemente ir mais adiante, na sua argumentao em favor da permanncia de uma cultura normativa como pressuposto do mundo moderno secularizado, do que uma interpretao estrita da sociologia weberiana permitiria, essa discusso interessante para nossos propsitos de vrias maneiras. Inicialmente, ela lembra-nos que o arcabouo institucional do mundo individualista e burgus moderno, se por um lado no pressupe, necessariamente, uma cultura normativa substantiva, por outro, enormemente facilitado por ela. Depois, tal discusso permite um ponto de partida interessante para a anlise dos diversos casos empricos de modernizao que efetivamente ocorreram no Ocidente. Esse ponto de partida nos permite, por exemplo, comparar experincias histricas concretas segundo a forma mais ou menos conseqente na qual a cultura normativa da modernidade logrou se institucionalizar e permear o pano de fundo valorativo e normativo de cada sociedade singular. Com relao a esse ltimo ponto, podemos examinar casos concretos alternativos de desenvolvimento ocidental, como efetivamente faremos na segunda parte deste livro, perguntando-nos sobre a articulao especfica entre cultura normativa e padres de institucionalizao.

    Acredito ser possvel demonstrar que o caso brasileiro uma variante peculiar dessa lgica de desenvolvimento, e no o outro dela, ou seja, um exemplo do sociedade intrnsecamente personalizada e pr-moderna, portanto, como defende nossa sociologia da inautenticidade. E isso verdade apesar do caro brasileiro apresentar um alto grau de seletividade comparativa, como veremos adiante.

    39So precisam ente as profisses que demandam maior auto-responsabilidade as que exigem maior tempo de perm anncia no complexo escola/universidade.

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

    Azevedo PaulinoHighlight

  • Captulo 2

    Norbert Elias e a seletividade do processo civ ilizatrio ocidental

    O processo civilizatrio

    A noo de civilizao para Elias , antes de tudo, uma gene- ralizao que serve a uma funo principal: expressar a autocons- cincia do Ocidente e legitimar sua superioridade em relao a outras culturas.1 Civilizao caracteriza tudo aquilo em relao a que a sociedade ocidental explicita sua autenticidade e singularidade e, acima de tudo, tudo aquilo em relao a que o Ocidente se "orgulha. J esse ponto de partida o diferencia de Max Weber: no um progresso da razo que caracteriza o Ocidente, mas uma mera progresso, uma linha de desenvolvimento comandada por necessidades de distino social e prestgio. A dinmica do processo civilizatrio vista, basicamente, como uma luta entre estratos sociais e depois naes concorrentes por poder relativo.

    Tambm ao contrrio de Max Weber, o qual enfatizou a comparao do Ocidente com outras culturas, interessa a Elias, antes de tudo, perceber a dinmica interna do processo civilizatrio do Ocidente.

    Elias percebe o processo civilizatrio ocidental como um con- tinuum, representando uma nova fase no desenvolvimento da auto-

    1 Norbert Elias, ber den Prozess der Zivilisation, 1989, p. 1. Toda a discusso a seguir e todas as citaes sero feitas a partir dessa edio.

  • 44 Jess Souza

    conscincia e da autolegitimao de uma cultura especfica. Fases anteriores do mesmo processo seriam, por exemplo, a separao entre cristos e infiis, que enseja o surgimento das cruzadas como uma guerra de colonizao e expanso. J essa diviso traz em si e leva a um estgio posterior a lembrana de um passado comum, latino e cristo, que influenciou todos os grandes povos europeus. a partir dessa herana comum que ser possvel pensar as naes europias, a despeito das diferenas nacionais que sero muito importantes, como veremos, como constituintes de uma cultura especfica.

    Ser precisamente essa unidade bsica europia que ensejar a necessidade de uma lngua comum aos estratos cultos das diversas nacionalidades: de incio o latim, depois o italiano e, por fim, no perodo descrito por Elias, o francs.

    O ponto fundamental da argumentao de Elias que o comportamento individual corresponde a certas formas de estrutura social. Compreende-se o comportamento atual das pessoas, assim como a economia emocional relacionada a essa forma de comportamento, a partir da estrutura macrosocial que a determina. Seu ponto de partida sistmico, portanto, e no da teoria da ao.

    Os aspectos estruturais que interessam a Elias para a explicao da transio da sociedade tradicional para a moderna tm basicamente uma dimenso socioeconmica por um lado e poltica, por outro. Na dimenso socioeconmica temos como fundamental, como em Georg Simmel e Karl Marx, a intensificao da diviso social d trabalho e o advento da economia monetria. Na dimenso poltica temos uma leitura muito pessoal de Elias (apesar de lembrar Max Weber em vrios aspectos essenciais) do processo de centralizao poltica a partir do advento do Estado nacional.

    A sociedade feudal ou estamental obedecia a um princpio de organizao poltica que Elias denomina de mecanismo da descentralizao. Esse mecanismo tpico de uma sociedade baseada na economia natural e com pouca diviso social do trabalho, na qual a terra e no o dinheiro o elemento fundamental da dominao poltica.

    Apesar de o mpeto de conquista de novas terras ter estado sempre presente nessa fase histrica, sendo at mesmo a obsesso onipresente dos senhores feudais, as conquistas territoriais eram

  • A m odernizao seletiva 45

    estruturalraente passageiras. O mecanismo de descentralizao age de modo a produzir sempre novas ondas de fragmentao dos territrios conquistados pela necessidade mesma ua delegao de autoridade. O representante do lder militar conquistador ir sem- pre tentar transformar seu domnio direto sobre a nova posse de modo a torn-la direito hereditrio, de tal modo que a conquista e a |preservao de territrios tm de ser renovadas, com enorme esforo, a cada gerao. essa circunstncia estrutural que explica ocarter fragmentrio da sociedade feudal.

    Com o desenvolvimento paulatino da diviso social do trabalho e da economia monetria vamos ter a possibilidade de uma mudana estrutural nas formas de dominao. Afinal, a partir deum aumento da interdependncia intersubjetiva ocasionado pelodesenvolvimento da diviso social do trabalho, quando trabalho e distribuio se autonomizam, quando os elos de ligao social se alongam, que se necessita do dinheiro como meio universal de troca. A sociedade expande-se, por assim dizer, internamente e aumenta sua densidade.

    A substituio da economia natural pela monetria, por sua vez, vai permitir, por meio da cobrana de impostos, a inversocompleta do princpio fragmentador anterior. O Estado cobrador de impostos vai poder pagar a seus representantes e delegados em moeda, o que os mantm atrelados e dependentes do interesse do Estado. Agora o domnio sobre grandes territrios e populaes passa a ser no s possvel mas crescentemente funcional para a dominao poltica, permitindo a acumulao e concentrao de recursos sociais sem riscos de fragmentao.

    Nesse novo contexto entra em cena o mecanismo centralizador que terminar por levar criao dos Estados nacionais europeus. A formao paulatina desses monoplios de dominao examinada por Elias antes de tudo no caso exemplar da Frana. No entanto, o mecanismo centralizador toma todo o continente, levando a que o jogo de poder saia do seu nvel local e ganhe o espao regional, na formao por exemplo dos grandes ducados franceses entre os sculos XII e XV, e alcance os nveis nacional e at supranacional. Ao final da Idade Mdia se contrapem na Europa apenaso imprio da casa vitoriosa na Frana e a casa Habsburgo na us

  • 46 Jess Souza

    tria, dividindo as zonas de influncia europia entre Ocidente e Oriente.

    Fundamental para a compreenso do argumento de Elias nesse ponto que essas mudanas estruturais iriam permitir que a sociedade enquanto tal ganhe poder em relao aos indivduos, percebidos como corpos desejantes. Com a transformao da sociedade feudal guerreira baseada na violncia, temos uma crescente pacificao da vida social. A necessidade objetiva primordial continua a ser a luta por recursos escassos. Mas a luta pelos mesmos so crescentemente regulamentadas de modo pacfico. precisamente a influncia dessa transformao macrossocial fundamental sobre a economia emotiva individual e sobre a regulao das trocas intersubjetivas que interessa a Elias explicar. O interesse sociolgico e poltico da investigao do autor est todo dirigido ao esclarecimento dessa questo fundamental: Qual o impacto da pacificao da vida social sobre psique individual e portanto sobre a relao dos homens entre si? Perceber a mudana existencial e poltica que as novas condies implicam o fio condutor da curiosidade do autor.

    precisamente o esclarecimento dessa dinmica que permite estabelecer a singularidade do desenvolvimento ocidental para Elias. Os mecanismos sociais em jogo na Idade Mdia so os elementos que explicam essa especificidade. Nesse sentido, no existe continuidade com relao ao mundo antigo. Antes de tudo no havia escravos, pelo menos em nmero considervel, na Idade Mdia europia como era o caso da Antiguidade. Para Elias, uma sociedade escravocrata obedece a automatismos muito peculiares. Antes de tudo, a dependncia recproca dos estratos superiores e inferiores e, desse modo, toda a economia emocional e instintiva associada a esse fato se desenvolvem segundo linhas bastante peculiares. Iremos voltar a esse ponto mais tarde no exame do caso brasileiro.

    A especificidade da situao feudal para Elias baseia-se em relaes sociais muito peculiares. De incio, falta qualquer base material para o exerccio do Direito como conhecemos hoje. A aplicao de um Direito universal pressupe uma instituio central organizada. Obrigaes sociais existiam apenas em relao a ordem de vassalagem, sob sua forma dupla: pretenso de prote-

  • A m odernizao seletiva 47

    o a partir de cima e exigncia de servio em relao aos subordinados. Isso era vlido tanto para a relao dos senhores entre sicomo para a relao dos camponeses com os senhores em geral.

    A nica lei, portanto, a lei da espada, e a economia emocional correspondente a da expresso mais ou menos direta dos impulsos naturais e agressivos. O gozo do momento a palavra de ordem. No s na relao entre poderosos e oprimidos em termos sociais, mas tambm na relao entre os sexos. Entre estes reinam a inimizade e a estranheza, sendo a idia de amor romntico ainda inexistente. Ser tambm a represso da violncia como meio leg-timo que permitir o aumento da significao social da figura feminina.

    Alguma forma de controle comportamental perceptvel apenas nas cortes dos senhores mais poderosos, que passam a disputar no apenas guerra mas tambm prestgio entre si. Esta a fase histrica da courtoisie. Aqui existe, ainda que em grau mnimo, se comparada com pocas posteriores, alguma conveno, alguma regulao dos afetos e da conduta. E precisamente a relativa instabilidade desses grandes domnios, constantemente ameaados pelos efeitos desagregadores do mecanismo descentralizador des-crito anteriormente, que impede uma regulao de conduta mais profunda e estvel como ocorrer mais tarde.

    Elias percebe, nesse sentido, trs fases distintas de sociabilidade e de tipos de personalidade que correspondem a fases distintas do processo descrito anteriormente. Alm da courtoisie, teramos a civilit e, finalmente, a civilisation, assumindo essa ltima, especialmente na Frana, um modo corteso aristocrtico e uma posterior reinterpretao burguesa e democrtica. Essas fases distintas vin- culam-se a formas estruturais peculiares, fazendo corresponder, desse modo, mudanas quantitativas no tamanho e na intensidade de estruturas macrossociais a mudanas qualitativas na forma da sociabilidade intersubjetiva.

    Pela impossibilidade mesma de determinar-se um ponto zero na histria das mudanas comportamentais, parte Elias da alta Idade Mdia, mais precisamente dos escritos de Erasmo de Roterdam.Erasmo to significativo por escrever sobre normas de comportamento em uma poca de rupturas, ainda dentro do contexto me-

  • 48 Jess Souza

    dieval mas j antecipando, no entanto, formas de comportamento do perodo seguinte.

    O perodo histrico que serve de base para sua anlise emprica o da renascena e, portanto, da transformao ocorrida no comportamento dos estratos sociais superiores desde o paradigma de uma covrtoisie, que designa o cdigo comportamental da sociedade feudal dos cavaleiros, em favor de uma civilit, j apontando para a transio em direo sociedade cortes. Os escritos de boas maneiras de Erasmo revelam a fronteira entre as duas sociedades, sendo seu estudo especialmente relevante para Elias.

    Em Erasmo, j temos a anlise do comportamento como espelho da alma, ou seja, uma abordagem psicolgica que enfatiza a dimenso matizada e nuanada da personalidade humana em oposio relativa indiferenciao anterior. A modificao social correspondente a da transio da sociedade feudal cavaleiresca em direo sociedade cortes. Essa transio fundamental para Elias. Ela representa, como vimos, a progressiva substituio do primado da violncia por meios pacficos na competio social pelos recursos escassos. A presso coletiva sobre o comportamento individual aumenta e o comportamento adequado transforma-se em problema e em arma central na competio social.

    Essa transformao da sensibilidade social produz-se primeiro nos estratos superiores, tanto como uma forma de distino social operante dentro desse estrato como em relao aos estratos inferiores. Esse movimento ganha um motto prprio na medida em que dado parmetro de comportamento passa a ser imitado tanto pelos indivduos do estrato superior como pelos estratos inferiores em conjunto. Na medida, no entanto, em que o prprio sucesso, ou seja, a imitao generalizada do comportamento distinto consolida- se, perde esse, simultaneamente, seu valor diferenciador. Cria-se, nesse sentido, uma dialtica entre inovao e disseminao que se constitui na dinmica especfica do processo como um todo.2

    2Em prim oroso texto sobre o fenmeno sociolgico da moda, Simmel parte de pressuposto semelhante para explicar a dinmica tpica desse processo. Ver texto hom nim o em Georg Simmel, O indivduo e a liberd ade, Jess Souza e Berthold elze, Simmel e a m odernidade, 1998.

  • A m odernizao seletiva 49

    Elias analisa exemplos de mudana de comportamentos em vrias esferas distintas do agir humano: o comportamento mesa, o uso de talheres, o hbito de se assoar, de cuspir, a forma de dormir, a forma da relao entre os sexos, a agressividade, etc. O que est em jogo em todas essas manifestaes parciais uma mudana de fundo comum: o movimento em direo a um aumento da sensibilidade em relao ao que penoso observar nos outros e ao que produz vergonha no prprio comportamento. E o avano dessa fronteira (Vorrcken der Peinlichkeitsschwelle) que aprendemos a perceber como um refinamento do comportamento. A direo do processo de refinamento j conhecida. Tudo que lembra a origem animal do homem reprimido ou reservado a espaos prprios: a cozinha, o quarto de dormir, o banheiro.

    importante notar que, na argumentao de Elias, a sociog- nese da regulamentao comportamental no obedece critrios higinicos ou racionais. O processo civilizatrio expressa no mximo uma racionalizao no sentido neutro de uma relao com valores, ou seja, de uma mera direo do processo de desenvolvimento societrio. O que valorvel ou civilizado antes de tudo o que aceito como tal pela elite social. Esse fato, por sua vez, no significa de modo algum um controle consciente pelas elites do processo como um todo. No existe sujeito no processo civilizatrio.

    Dado o constrangimento social de produzir distines num contexto de maior proximidade dos homens entre si e dada a crescente proibio da violncia como meio legtimo de perpetuao das diferenas sociais, reagem as elites estigmatizando comportamentos e criando tipos de conduo de vida acessveis somente a iniciados, agindo como forma de reconhecimento entre os pares e como mecanismo distintivo e legitimador em relao aos subordinados.

    De incio, nos estgios da courtoisie e da civilit s existe constrangimento social em relao aos prprios pares. No se sente vergonha ou constrangimento em relao aos inferiores sociais. A partir de certo grau de interdependncia social entre os indivduos como resultado da intensificao da diviso social do trabalho, lemos uma mudana fundamental na direo da sociedade democrtica e industrial moderna.

  • 50 Jess Souza

    que a dependncia dos estratos superiores em relao aos inferiores se torna insofismvel, levando a que tambm estes ltimos sejam crescentemente levados em considerao por aqueles. O sintoma intersubjetivo imediatamente perceptvel dessa mudana que, agora, sente-se vergonha tambm em presena do socialmente subordinado, contribuindo para a superao da dupla moral tpica das sociedades hierrquicas. Apenas numa sociedade democrtica (e industrial com avanada diviso social do trabalho) temos a ver com uma moral nica vlida para todos. Apenas nesse estgio, o da sociedade burguesa moderna, temos tambm o pressuposto universal de um autocontrole total e automtico de todos os indivduos.

    E precisamente com o elemento burgus que a relao com a sade, o argumento higinico, comea a ser determinante na legitimao das novas formas de comportamento, precisamente na medi