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Introduo
Fork bomb uma tcnica de ataque a computadores na qual pro-
cessos se replicam indenidamente at esgotar a capacidade de pro-
cessamento de um determinado sistema. Em 2002, o artivista hackerJaromil criou aquilo que cou conhecido como o mais elegante cdigo
de Fork bomb j escrito. Apenas onze caracteres ( :(){ :|:& };: ) pareci-
dos com as carinhas sorridentes usadas nas redes sociais, mas que umavez digitados em um terminal UNIX impedem o sistema operacional
de seguir uncionando, at que seja reiniciado.
:(){ Copyght :|: Pirataria & Cultura livre };: introduz uma sabota-
gem similar no mbito dos sistemas reguladores da propriedade in-
telectual. O livro se coloca nos lugares marginais, esquecidos oumenores das discusses e prticas da produo imaterial, abordando
diversos aspectos das produes artsticas e culturais, alm de des-
construir a suposta neutralidade do conhecimento tcnico e do desen-volvimento tecnolgico e criticar a crescente apropriao privada dos
cdigos genticos.
Copyght lana ainda uma perspectiva crtica s instncias de po-
der que identicam a pirataria como prtica improdutiva, segundo aqual os piratas so parasitas que roubam a riqueza legtima de outros.O livro traz vises dissonantes que, como veremos a seguir, assumem
a pirataria como prtica positiva e produtiva, considerando-a como o
compartilhamento ora dos limites legais, mas principalmente comocriao de espaos de liberdade e cooperao.
Do mesmo modo, veremos que so muitos os interesses envol-
vendo a cultura livre: se por um lado existem as prticas de redes co-operativas de livre circulao de conhecimento e cultura que buscam
a valorizao e organizao autnomas, por outro h uma infexocorporativa deste conceito: o trabalho livre como trabalho grtis. Ou
seja, uma estratgia de mobilizao de uma multido de pessoas que
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investem seu tempo de vida produzindo gratuitamente contedos e re-laes que posteriormente sero apropriados e vendidas por empresas
e novos intermedirios privados.
Neste sentido, Copyght remete a um espao de disputa comple-xo e indeterminado, sempre em aberto. A questo, por vezes reduzida
a debates do tipo legalistas e piratas ou criadores e consumidores,emerge agora atravs de disputas mltiplas e cheias de nuances. Sempretender esgotar a riqueza do tema ou mesmo suas ambiguidades pe-
culiares, como as novas relaes sociais que se popularizaram nas lti-mas dcadas, os textos a seguir trazem tona crticas e prticas ainda
pouco debatidas no mbito da cultura livre e da pirataria, mostrando a
insucincia da compreenso dessas disputas a partir do pensamentodicotmico do copyright VS copylet.
Trata-se assim de uma refexo-ao que vai alm do licenciamento
como erramenta de luta ou parte dos processos criativos, avanandosobre outros mbitos das relaes sociais que so atravessadas pela
pirataria e a cultura livre. Copyght questiona inclusive o prprio co-
pylete a ampla gama de licenas Creative Commons quanto s suas
respectivas potncias de transormao das condies de explorao e
desigualdade. Entendemos que cultura livre no de orma alguma re-alizada apenas com licenas livres, mas com a democratizao radical
dos meios de comunicao/produo e a contnua radicalizao de-
mocrtica das novas ormas de entender a cooperao e a apropriaoda tecnologia, da cultura e do conhecimento.
Assumimos assim que no se concretizar a utopia digitalista, queprega que o sistema tcnico digital iria naturalmente acabar com
a explorao e a desigualdade, trazendo melhores condies de vida
para todos. Por outro lado, porm, tampouco adotamos uma postu-ra tecnobica, que encara as novas tecnologias como algo ruim em
si. Entendemos que o uncionamento do capitalismo atualmente se
adapta s novas ormas de produo em rede, qui de modo mais e-ciente e sinergtico que os modelos antigos. Deste modo, no so as
tecnologias por si que iro alterar o contexto poltico, mas suas apro-
priaes por parte dos distintos sujeitos e principalmente seu aspectocoletivo, social e transversal.
Assim, o objetivo do livro no diundir uma viso nica ou umaproposta acabada para as questes atuais acerca da cultura livre e da
pirataria; mas sim desvelar uma multiplicidade de refexes e prti-
cas que no se constituem como totalidade derivada da soma de suaspartes, tampouco uma totalidade originria que unicaria todos os
pontos de vista em uma ideologia restauradora. Os contedos a se-
guir so como pedaos de quebra-cabeas de dierentes colees de
onde sempre sobram (e altam) partes. O livro constitudo assim comcontedos elaborados em locais e momentos dierentes, que dispostosconjuntamente reconstituem e atualizam o debate sobre a cultura livre
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e a questo da pirataria. Copyghtno remete a um mundo de encaixespereitos, mas sim a um mundo de atritos.
Resta por ora agradecer a todos os movimentos e pessoas que con-
triburam para a realizao do Copyght, at esse momento. No seriapossvel listar aqui todos, anal essa construo ruto da coletividade
e tem uma dimenso transversal que no se resume somente aos au-tores ou a equipe de produo, pois todas as pessoas que lutam pelaliberdade e contra a explorao esto envolvidas direta ou indireta-
mente nas realizaes do Copyght. Sabemos que essas contribuiesso uma ora viva sem a qual Copyght seria apenas mais uma ao
dentre muitas outras.
Ainda assim, gostaramos de registrar aqui nossa especial gratido:a todos os autores que acreditam na cultura livre e que gentilmente
enviaram suas contribuies, aos tradutores que nos ajudaram na pu-
blicao dos materiais at ento inditos em portugus; ao Ponto daECO por ter sido o bero desta iniciativa e pelo apoio incondicional
com que sempre nos brindou; i-Motir pelo apoio nanceiro e pelaparceria na produo do livro; ao Movimento Unidos dos Camels, em
especial na gura nica da Maria dos Camels, por sua luta e parce-
ria em diversos momentos; Universidade Nmade Brasil pelas con-tribuies tanto em termo de refexes, quanto por ter aberto vrias
portas importantes para a concretizao do livro; a todas as redes de
ciberativistas no Brasil como Metareciclagem e Submidialogia; e Azougue por acreditar nessa iniciativa e na viabilidade de se produzir
conhecimento de uma orma mais livre e democrtica.
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SIga Sua rota
Tendo em vista a prpria multiplicidade de abordagens sobre o
tema, seria impossvel construir uma nica linha de raciocnio queunicasse todos os trabalhos a seguir. No se trata de denir cultura
livre ou pirataria. Reunindo trabalhos dierentes entre si no s em sua
orma ou estilo, como tambm em seus contedos e pontos de vistas,
Copyghtbusca implodir noes pr-concebidas sobre tais temas e es-
timular a produo de novas perspectivas no cartograadas nos siste-mas jurdicos ou tericos j pr-denidos.
Deste modo, os trabalhos a seguir oram organizados para per-
mitir a leitura em dierentes nveis. Sugerimos trs ormas de ler olivro. Sinta-se vontade para escolher uma, mais de uma, nenhuma
ou inventar outras.
Linear: Por no trabalhar com captulos, a tradicional leitura do livro
ganha contornos peculiares, pois conduz o leitor por dierentes estilos
e perspectivas em uma narrativa mais livre e fuida.
Temtica: os trabalhos esto agrupados em quatro ns: N prssico;
N de oito; N de trevo e, por m, N torto. Cada um constitui-secomo um campo de aproximao, agrupando perspectivas que se
cruzam em certos momentos. O primeiro aborda prticas que valo-rizam o comum como campo de constituio de igualdade e autono-
mia, a partir de dierentes contextos, como o de hackers, agricultores
e unkeiros. J o N de oito conduz por anlises de estruturas his-tricas das questes relativas cultura e ao trabalho, enquanto N
de trevo concentra as refexes sobre autoria. J o N torto trata dasabotagem ao sistema de propriedade intelectual.
No linear: outro modo de leitura possvel seguir as reerncias
das notas dos organizadores posicionadas ao lado direito dos textos.Atravs delas, buscamos estabelecer conexes no causais e incenti-
var a produo de novos pontos de vistas no expressos diretamentenos trabalhos. A biurcao que a nota prope sempre opcional, no
entanto o recurso permite a conexo direta com outras perspectivas
para o tema em questo.
Boa leitura.
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SumrIo lInear
tb s ob, ob s a: Csii C | Giuseppe Cocco ...................................................
S pi i 2.0? |Jorge Machado ............................................
Psi |? erre!..............................................................................................os cs: s ciscpi pics sciis
p pss | Silke Helrich ..................................................a ii c i ic sb |Matteo Pasquinelli.......
eis c ric S |Adriano Belisrio .....................................Sb is cpis |Adriano Belisrio .................................................rps i s s |Beatriz Cintra Martins ..........................
o c s s cs cs |Bruno Tarin e Pedro Mendes..........
ms b ii |Antonio Negri................................Cpiis cii sisci c:
cs li Si | Direito do Comum .........................................................
I | Chapolin .................................................................................eis c Y mi B | Bruno Tarin ......................................
lib i i .......................................................................P ics is pics | Felipe Fonseca .....................................................
Cpyi | Washington Luis Lima Drummond...........................................
rbiri |Marcus Vinicius........................................................................Sb i c i |Antoine Moreau ...........................................
Cpy Cpysi | Dmytri Kleiner..................................................
o -i Ci Cs | Florian Cramer................................o cic ib | Guilherme Pimentel.........................................
li c i cs sic cc b |Aymeric Mansoux...............................
Bw .......................................................................................................Ss cis cpy | Tadzia Maya ............................................o i bc iis | Toms Vega ...................................................
aI5 dii | Thiago Skrnio ........................................................................
Ci! a gii ii i p! |Miguel Aonso Caetano .................lic a li 1.3 ................................................................................
a i - s s - Ppi Ic|Copyght........................
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41
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SumrIo temtICo
os cs: s
ciscpi pics sciis p pss.........................
o c s s cs cs .................................................lib i i ......................................................................
P ics is pics ..............................................................................
Cpy Cpysi .............................................................................
o cic ib ...........................................................................Bw ......................................................................................................a i - s s - Ppi Ic...........................................
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Cpiis cii sisci c: cs li Si ..................
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Ci! a gii ii i p! ................
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traBalho Sem oBra,oBra Sem autor:a ConStItuIo do Comum
Giuseppe Cocco
Introduo
No momento de nalizarmos esse artigo, o debate brasileiro sobredireitos autorais oi atualizado pela mudana de gesto do Ministrio da
Cultura (MinC), em uno da nomeao de Ana de Holanda, em janei-
ro de 2011. Figura desconhecida entre os movimentos culturais, a novaministra tem uma relao reivindicada e conrmada pelas nomeaes
que realizou na rea de direitos autorais do MinC de proximidade com
o Escritrio Central de Arrecadao e Distribuio (ECAD) e os interes-ses da classe artstica. Seus primeiros passos no MinC so emblemti-
cos de uma ruptura radical com a gesto de Gilberto Gil e Juca Ferreira.Ainda antes de denir suas primeiras iniciativas, a Ministra decidiu su-
primir do site do MinC o selo do Creative Commonse anunciou a vonta-
de de rever (em sentido conservador) a Lei dos Direitos Autorais (LDA),que est tramitando no Congresso. Ao mesmo tempo, a composio das
secretarias do Ministrio conrma ulteriormente a virada, em particular
com a introduo de uma nova Secretaria da Economia Criativa. A cul-
tura volta a ser culta, prossional e nacional.Se trata de uma infexo geral e abertamente conservadora. A eco-
nomia volta a ser o eixo que qualica as outras polticas: aquelas da
cultura, mas tambm as polticas sociais e de educao, com nase no
ensino tcnico. Pior, o que h de cultural na economia passar a serenxergado como um setor especco: justamente aquele onde a eco-
nomia teria elementos criativos. Nessa nova congurao do MinC, o
conceito de criao unciona como um aparelho de captura. Por umlado, ele qualica aquelas cadeias produtivas que se caracterizariam por
seus contedos culturais e constituiriam assim as economias criativas,naturalmente com suas indstrias criativas. Pelo outro, quando no
se trata de indstria, o conceito usado para rearmar a primazia da
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gura do artista como Deus ex machina de uma criao que aconteceriade maneira isolada (da relao social) e ex nihilo (do nada). Como no
lembrar as refexes de Walter Benjamin sobre o estatuto da arte e as re-
laes entre esttica e ascismo, em particular quando ele lembrava queos conceitos tradicionais como a criatividade, a genialidade, o valor
eterno e secreto conduzem ao ascismo, esttica do ascismo.A indstria criativa (cultural) e aos vrios clusterscriativos devem
ser proporcionados subsdios estatais adequados. Ao artista criador
dever ser garantido um direito (autoral) to inquebrantvel quanto oestatuto divino (transcendente) atribudo a ele: assim, a nova direto-
ra de direitos autorais acha normal que o ECAD no possa ser sca-
lizado pelo Estado. A aliana de interesses evidente: o Estado devesubsidiar as indstrias e submeter-se transcendncia superior do
criador, gura divina.
Nesse panorama, a mtrica do valor j dada. A cultura volta aser o eneite que sempre oi, vista na perspectiva da economia. Aqui,
reencontramos o novo lema do Governo Federal: Pas rico pas sem
pobreza. De repente, ser rico um valor (moral) cuja nica limitao
seria a existncia externa a ele da pobreza. A soluo da pobreza est
dada: tornar-se rico. Apena se trata de implement-la. Contudo, essainesperada virada conservadora nos obriga a um pensamento mais
proundo dos eetivos desaos que atravessam a questo da cultura e
da arte diante das novas condies materiais de sua produo (as redesdigitais) e ao capitalismo contemporneo (organizado em rede).
A excessiva nase na evoluo tecnolgica precisa ser atravessadapela anlise das contradies e dos paradoxos a partir do ponto de vista
do trabalho. Nossa refexo sobre direitos autorais e redes se organiza
em 4 partes. So elas: uma refexo inicial sobre o Estatuto da culturano capitalismo contemporneo; em seguida, um aproundamento da
relao entre trabalho e virtuosismo num horizonte de trabalho sem
obra; o desdobramento sucessivo diz respeito crise do emprego e srelaes paradoxais que se abrem entre precariado e soberania do ar-
tista; enm, abriremos para um debate geral sobre os desaos do mo-
delo de produo antropogentico e a sociedade plen.
1- o estatutodaculturanocapItalIsmocontemporneo
Produo de conhecimento por meio de conhecimento
No capitalismo contemporneo, o papel do conhecimento mudouradicalmente. Se a modernidade industrial oi baseada no uso intensi-
vo do conhecimento para a produo de bens, no regime de acumula-
o da ps-modernidade o uso do conhecimento se d para produziroutros conhecimentos (produo de conhecimento por meio de co-
nhecimento). O cerne de nossa refexo diz respeito ao conhecimento
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enquanto recurso chave desta produo contempornea. Logo, apare-cem duas importantes linhas de refexo: a da crise do valor e a dos
esoros de raming, de construo de um novo horizonte de valora-
o. Por um lado, precisamos lidar com o desaparecimento da mtricavigente (aquela do paradigma industrial, da produo de mercadorias
por meio de conhecimento). Por outro, trata-se de apreender as con-dies nas quais se dene um marco (rame), uma nova unidade demedida adequada ao paradigma (ps-industrial) da produo de co-
nhecimento por meio de conhecimento.
Os termos do deslocamento esto denidos:
Na modernidade industrial, o conhecimento funcionava
como uma racionalidade instrumental voltada a um m: a
produo de bens. A objetivao do conhecimento em um
bem uncionava como padro de valor. Nos mesmos termos,o trabalho que era denido como produtivo era aquele, ma-
terial, produtor de mais-valia: de um bem separado da pr-
xis de sua produo. A mtrica (o valor) se organizava em
torno de um trabalho que quanticava a obra (o bem) e o
qualicava, em retorno;
Na produo de conhecimento por meio de conhecimento,
a produo no mais atividade instrumental voltada a um
m, mas contm seu m dentro dela mesmo, como atividade
refexiva: o conhecimento deve produzir sua prpria signi-
cao, criando um mundo: oraming uma criao de mun-
dos (world making).
Avanando na refexo sobre esses deslocamentos, cruzamos es-sas duas linhas de refexo na perspectiva da antropologia. Dentro
dessas transormaes paradigmticas, assistimos como que h uma
acelerao das transormaes antropolgicas, no sentido que o ar-ma Michel Serres (2001) em Hominescncia: ns j no somos mais
os mesmos homens, j vivemos na quadra seguinte. A intensidade da
transormao antropolgica leva alguns economistas (Marazzi, Ver-cellone, 2008) a retomar a proecia marxiana para dizer que, na passa-
gem do capitalismo industrial para o capitalismo cognitivo (depois dointerregno ps-ordista), arma-se um modelo antropogentico: por
trs da produo de conhecimento por meio de conhecimento temos
realmente uma produo do homem por meio do homem. O conheci-mento do qual estamos alando mesmo uma nova dimenso antro-
polgica do capitalismo e, nesse sentido, cultural.
Do modo de produo produo de mundos: a crise da mtricaPor que ala-se de capitalismo cognitivo? Porque a dimenso
cognitiva az contraponto com aquela de inormao: a economia
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poltica neoclssica mobiliza a noo de inormao como algo natu-ral, imaterial e homogneo, que cria um conhecimento objetivo do real
como base de reerncia a escolhas, que desta maneira sero racionais,
baseadas em um clculo. No capitalismo contemporneo, marcado porincerteza e singularizao dos produtos, dos produtores e dos consu-
midores, os mercados ignoram a inormao porque ela substitudapelo conhecimento: a escolha se torna o ato de uma atividade refexivade julgamento, e no uma arbitragem instrumental a partir dos preos.
A inormao permitia instaurar um mesmo mundo que os atorescompartilhavam com base na mensurabilidadee equivalncia generali-
zada: aquela dos preos. A inormao a caracterstica de base de um
conhecimento uncional produo de bens com base na subordinaodo trabalho vivo (capital varivel) pelo trabalho morto (o capital xo).
O conhecimento diz respeito a uma multiplicidade de mundos. O
que caracteriza o conhecimento de ser uma produo de mundos.O clculo (quantitativo inormacional) deve azer as contas com o
julgamento (qualitativo comunicativo): os saberes sociais, longe deserem unitrios e indiscutveis, so mltiplos e controvertidos. Ser
o julgamento, ou seja, uma atividade refexiva de world making, por
meio de sua dimenso comunicativa, que juntar a singularidade e oconjunto, o valor e o conhecimento: Quando o mercado inclui a di-
versidade qualitativa das obras humanas e a diversidade qualitativa
dos critrios de avaliao, a escolha toma a orma de umjulgamento(Karpik: 2007, p.58-62).
O relatrio da comisso sobre a economia do imaterial encomen-dado pelo Ministrio da Fazenda rancs apresenta o caso da empresa
norte-americana Nike: o custo de produo de seus sapatos esportivos
estimado em no mais de 4% do preo de venda total; o resto remune-rao dos ativos imateriais (marca, pesquisa, patentes e o know howda
empresa) (Lvy e Jouyet: 2006, p.12). Enzo Rullani apresenta os mesmos
resultados na anlise da composio do valor dos bens de consumo: Seuma armao de culos custa 70 euros ao consumidor nal, seu conte-
do material igual no mximo a 7 euros (o valor pago brica do
produtor manuatureiro). O bem material (7 euros) suporte de algointangvel que vale 7 vezes mais. Mas no se trata s disso.
Se o produtor material or chins, o peso relativo do contedo tan-gvel pode cair para 3,5 euros (apenas 5% do valor total). Na direo
oposta, se a armao consegue atrelar-se a uma grie, seu valor nal
pode ser multiplicado por dois (140 euros), dando lugar a uma mais-valia incomensurvel. Estamos, pois, no mbito da desmedida. De
onde vem esse suplemento de valor para o mesmo objeto de consumo?
Com certeza no se trata mais da tradicional extrao de um tempo de
trabalho excedente. No apenas o contedo tangvel pesa apenas 5 a10% do valor pago pelo consumidor nal, mas ele gera uma verdadeiraguerra entre pobres para deender as partes de manuatura (produto-
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ras deste tangvel), que se deslocam para procurar manter esse percen-tual nesse patamar ou baix-lo (Rullani: 2004, p.13-4).
Na tentativa de oerecer elementos de quanticao do imaterial,
o Relatrio Lvy-Jouyet prope uma dupla qualicao dos ativosimateriais e imateriais tecnolgicos, dizendo que eles se qualicam
por estarem relacionados ao imaginrio e organizao. Por suas vez,o relatrio prope uma taxonomia dos ativos e investimentos imate-riais em trs grandes categorias: (a) Os investimentos em pesquisa
e desenvolvimento e em sotwares se traduzem assim em ativos depatentes, know how, design e modelos. (b) Os investimentos (ligados
ao imaginrio) de propaganda e comunicao se consolidam em pro-
priedade intelectual e marcas. (c) Os investimentos (gerenciais) emeducao e ormao permanente e outras tecnologias da inorma-
o e da comunicao, bem como as despesas de marketingse conso-
lidam, diz o relatrio, em capital humano, bases de dados de clientes,ornecedores, assinantes, suportes de venda, cultura gerencial e pro-
cessos especcos de organizao da produo.Contudo, as trs tipologias apresentam limites analticos impor-
tantes, pois continuam usando o antigo paradigma. Elas conseguem
distinguir mais os investimentos do que os resultados e, na realidade,a distino no ntida ao passo que seus resultados so dicilmente
quanticveis. Com eeito, o relatrio do governo rancs sobre o ima-
terial arma claramente: Seria errado reduzir o imaterial a determina-dos setores (...). Com eeito, a lgica do imaterial (...) se diunde para
bem alm desses setores especcos e envolve hoje a quase totalidadedas atividades econmicas (Lvy e Jouyet: 2006, p.12). Enzo Rullani
(2009) tambm insiste: a economia dos custos e dos investimentos da-
quela que ele chama a brica do imaterial diz respeito no a umarma, mas a uma cadeia produtiva. E a cadeia o mnimo. O prprio
Rullani radicaliza, dizendo: somos todos grande ou pequenos ca-
pitalistas cognitivos que tentamos, mesmo sem ter conscincia disso,tornar rentvel nossos investimentos: aqueles da amlias na educao
dos lhos, das rmas em conhecimentos, dos territrios nos recursos
culturais e inraestruturais; do Estado que investe em pesquisa e insti-tuies, etc. Todos juntos, enm, investimos nas mdias interconecti-
vas e na padronizao articial dos contextos de vida e trabalho.Trata-se das prprias relaes sociais e polticas que desenham os
territrios produtivos e de uma mudana de paradigma que envolve as
unidades de medida tradicionalmente utilizadas pelas contabilidadesdas empresas e das naes: Apesar de seu carter central para a criao
de valor e o crescimento, a dimenso imaterial da economia esbarra no
problema da medida, tanto no nvel das empresas quanto no nvel ma-
croeconmico (Lvy e Jouyet: 2006, p.13).Isso se traduz na desconexo crescente entre o valor das empresas
(mercado dos ativos) e o lucro (mercado dos bens): segundo as ava-
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liaes de um escritrio de anlise nanceira, o peso do imaterial nosbalanos das 120 mais importantes corporaes europeias chegava, em
2004, a 71%. Desses, 21% correspondentes consolidao dos ativos in-
tangveis (marcas, patentes, quotas de mercado) e 50% ao goodwill, ouseja a parte do valor dos ativos (da empresa), que no encontra lastro
em nenhum tipo de capital, seja ele material ou imaterial! (Rebiscoul,2006). Rullani atribui essa situao a um paradoxo (ns poderamos a-lar mais marxianamente de uma contradio estrutural) entre o
ato que o conhecimento se torna o cerne da brica do imaterial e o atoque essa brica se desmaterializa e perde suas dinmica de valorizao.
A contradio que az explodir a mtrica diz respeito a uma contagem
(contabilidade) de empresa (executada pela rma e dentro de seu per-metro) e uma valorizao diusa nas redes sociais e seus territrios.
Para Maurizio Lazzarato (2006), passamos de um modo de produ-
o a uma produo de mundos, de signicaes. Nessa perspec-tiva, o capitalismo cognitivo diz respeito a uma relao direta entre
valor monetrio e o valor como signicao tica e social mais ampla.Mas tambm nos remete quele modelo antropogentico, onde a pro-
duo de conhecimento por meio do conhecimento aparece como
produo do homem por meio do homem, quer dizer, de ormas devida por meio de ormas de vida.
Na economia do conhecimento, as mercadorias so produzidas
pelo uso do conhecimento como ator primrio. O conhecimento usado nos processos de produo como ator autnomo e incorporado
s pessoas, objetos e servios que contribuem ao resultado produtivo.Ao mesmo tempo, o conhecimento usado para produzir mercadorias
tambm uma mercadoria, ou seja, um produto que pode ser com-
prado e vendido no mercado, da mesma maneira que todas as outrasmercadorias. O conhecimento se torna o principal ator produtivo,
mas tambm o principal produto. Trata-se de um processo circular,
no qual o output(o novo conhecimento conseguido do processo emandamento) deve voltar a gerar suas prprias premissas, reconstruin-
do as condies de um novo incio do ciclo produtivo. Mas o novo co-
nhecimento no apenas deve reproduziro seu input(o conhecimentoanterior). Deve inovar, adaptar, desenvolver o conhecimento anterior
para manter ativas as condies que justicam sua propagao e seunovo uso em contextos que so sempre dierentes. Isso porque o ator
produtivo (conhecimento) no oi consumido pelo uso, como acontece
na produo de mercadorias por meio de mercadorias, onde o outputdeve repor o inputque oi destrudo na sua produo.
Sem uma nova mtrica, teremos a impresso paradoxal que a pro-
pagao da inovao (tida como know how, patentes e segredos indus-
triais) acaba determinando seu duplo desaparecimento. Por um lado,porque se procura mensur-la onde ela no est. Por outro, a prpriaoperao de mensurao (patentes e segredos industriais) destri os
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processos de inovao. O conhecimento at pode ser produzido ouusado por indivduos isolados, mas ele indivisvel do processo social.
Por isso, diremos que o conhecimento no pode ser connado dentro
do circuito proprietrio de cada rma, pois sua capacidade de produ-zir valor depende de modo determinante das externalidades (seja para
os custos que para os lucros) (Yann Moulier Boutang, 2007). Cada vezmais, realiza-se a tendncia que antecipava o desaparecimento do au-tor, de uma obra sem autor, que acontece em fuxo, por enxamea-
mentos sucessivos e por propagao virtica.Rullani, Moulier-Boutang, Negri e Lazzarato indicam que a econo-
mia do conhecimento diz respeito a processos cognitivos, envolvendo
o conjunto dos atores que trocam entre si conhecimento dentro dasdierentes ases da cadeia, passando da produo para o uso e a pro-
pagao. Isso signica que a presena do conhecimento como recurso
chave da produo muda o objeto da economia: a gerao de valor nopode mais ser observada no nvel da rma; precisamos assumir como
novo campo de observao as redes cognitivas e seu sistema complexode relaes entre rmas dierentes e complementares.
2 - o trabalhosemobra: trabalhoevIrtuosIsmo
O valor instrumental do conhecimento (industrial)
No regime de acumulao da grande indstria, trabalho e capital es-
tavam numa relao de interdependncia dialtica. Era o paradoxo dosocialismo na Rssia ps-revolucionria: Lnin queria compatibilizar os
sovietes (a democracia de base dos conselhos) com a eletricidade e o
taylorismo, quer dizer, com a disciplina da grande brica. Aqui, a con-veno que liga o trabalho ao emprego (industrial) diz respeito a uma re-
lao social de produo que com base no direito absoluto da proprie-dade estatal (ou privada) e do controle separado (pelos trabalhadores
intelectuais) da cincia aplicada tcnica az com que o trabalho vivo
(o capital varivel) tenha que subordinar-se ao capital xo (maquinaria,
tecnologia: trabalho morto e cincia) para se tornar produtivo.Esse tambm o paradoxo das sociedades afuentes, como dizia
J.K. Galbraith (1961), quando apontava o ato de que nelas precisoproduzir bens inteis para poder distribuir renda, pois o emprego
que unciona como dispositivo de distribuio da renda: Ao passoque nossa energia produtiva (...) serve criao de bens de pouca
utilidade produtos dos quais preciso suscitar articialmente a
necessidade por meio de grandes investimentos, sem os quais elesno seriam mesmo demandados o processo de produo conser-
va quase integralmente seu carter de urgncia, enquanto onte derenda. Os paradoxos so determinados pela contradio entre valoreconmico e signicao social da mobilizao produtiva. O me-
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canismo undamental desse quebra-cabea a conveno que nosimpe reduzir o trabalho (atividade de produo social de signica-
o) ao estatuto de emprego assalariado e dependente. Isso deter-
mina a reduo da signicao social a dois elementos dialticos: osalrio (custo a ser reduzido) e o lucro (objetivo instrumental a ser
maximizado). A dinmica da inovao e de sua mensurao tambm infuenciada por esse horizonte.
No segundo ps-guerra, durante a hegemonia do ordismo, essas
duas dimenses encontravam sua sntese na dinmica do consumo:estatal e militar no caso dos pases socialistas, militar e de consumo
no caso do bloco ocidental (Estados Unidos, Europa Ocidental e Ja-
po). Mais estruturalmente, o trabalho vivo (capital varivel) no sa-bia como tornar-se produtivo sem juntar-se ao capital xo (osse o da
grande indstria estatal ou das grandes multinacionais) e, ao mesmo
tempo, a dinmica de seu salrio real (resultado mesmo dessa subor-dinao) uncionava no caso das economias ocidentais do norte
como o elo articulador (e legitimador) entre a produo em massa eo consumo em massa.
No paradigma industrial, a produo de bens e inovaes tec-
nolgicas aparecia como processo determinado por lgicas separa-das da atividade que os produzia: para o trabalhador, o bem que ele
produzia era apenas o meio de aceder a um salrio. J a tecnologia
(o conhecimento) lhe aparecia como evoluo natural, sob as ormasdas leis da ecincia, da concorrncia e da inovao capitalista. O su-
jeito se mantinha separado do objeto da mesma maneira que a cul-tura se mantinha separada da natureza e se apresentava de maneira
altamente hierarquizada: por um lado, a cultura culta, aquela elitista
(da arte) e aquela codicada no saber acadmico e tecnolgico e, pelooutro, a cultura popular, enxergada como enmeno natural, algo a
ser superado.
O valor no capitalismo cognitivo
No capitalismo cognitivo, o trabalho saiu do cho de brica e se
descolou do emprego. Com isso, perdeu sua capacidade de uncionarcomo padro de mensurao (tempo de trabalho, custo do trabalho)
das atividades produtivas e de consumo. Isso se traduziu como sabe-mos em perdas salariais e de direitos trabalhistas (enraquecimento
das organizaes sindicais, diminuio da parte dos salrios sobre a
renda total, aumento do desemprego e, sobretudo da precariedade).Mas, saindo da brica, o trabalho perdeu potencialmente aquela
subordinao dialtica que o identicava ao emprego (assalariado) e
o mantinha numa relao de inquebrantvel dependncia tecnolgi-
ca e cultural com o capital.A produo passa a se organizar dentro das prprias redes de circu-
lao: por isso a privatizao dos servios das redes de comunicao
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to importante para o capital e o neoliberalismo oi desse ponto devista, a retrica e a poltica dessa investida capitalista. O capitalismo
cognitivo se caracteriza por um paradoxo estrutural, aquele da dupla
dimenso dos servios que permitem aos trabalhadores continuarema serem empregveis.
Em 2007, a crise dos subprimestem como estopim a incapacida-de dos trabalhadores precrios de continuar pagando as dvidas queeles contraram para ter acesso aquela moradia que lhe deve permitir,
junto aos outros servios como sade, educao, transporte, Internet eteleonia, de continuar trabalhando de maneira intermitente, interina
e inormal (ou at ilegal, no caso dos imigrantes sem visto de trabalho).
A crise do capitalismo global crise de sua dimenso cultural: a pro-duo se torna relao (circulao) e cultura. O trabalho no mais
empregado (assalariado). O que ele produz so servios (privatizados
ou cada vez menos accessveis, a no ser que se recorra ao crdito) dosquais depende inclusive sua capacidade de se manter trabalhando. O
trabalho se tornou imaterial e cognitivo (cultura) e precisa dos serviospara manter-se tal. O emprego oi substitudo pela empregabilidade
e a varivel do custo (do trabalho: salrio) complementada ou at
substituda pela que diz respeito os custos de transao: os custos noso mais (ou apenas) imputados ao tempo de trabalho, mas prpria
relaode trabalho. Ao passo que a lgica da conteno do custo do
trabalho (do salrio) comprimia o tempo de trabalho necessrio, aque-la da conteno do custo de transao comprime a prpria transao,
estilhaando a relao salarial.No capitalismo industrial, a varivel estratgica era o salrio. No ca-
pitalismo cognitivo, a varivel estratgica a relao, ou seja, a cultura.
Por sua vez, o trabalho passa por uma transmutao do mesmo tama-nho: de trabalho instrumental que se de objetiviza numa obra (um
bem) ele passa ao estatuto de uma atividade relacional sem obra. As
relaes de servio so de uma crescente complexidade cognitiva, co-municativa e aetiva do trabalho. A separao do trabalho do emprego
az com que tal relao acontea nos moldes de uma prestao pessoal
(terceirizada) que, por sua vez, unciona por terciarizao (amplica-o do setor de servios). Terceirizao e terciarizao se alimentam
circularmente, por propagao. De maneira emblemtica, recente-mente, o tradicional outsourcing(externalizao) tenha passado a se
chamar tambm crowdsourcing: a mobilizao da multido de singu-
laridades (Howe, 2008-2009).
O trabalho virtuoso
Ainda em 1994, o lsoo italiano Paolo Virno mobiliza as anlises de
Hannah Arendt sobre os conceitos de trabalho e ao, alm das noesmarxianas de trabalho intelectual produtivo e improdutivo, para expli-
citar o novo paradigma como sendo a condio na qual uncionam pelo
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avesso as clivagens entre: (1) trabalho e ao e (2) trabalho intelectualprodutivo e improdutivo. A inverso diz respeito s transormaes do
intelecto: tornando-se pblico, o intelecto passa ter como gura emble-
mtica aquela do executor virtuoso.Dierentemente da poiesis(trabalho da produo), que repetitiva,
taciturna, previsvel e instrumental, a prxis(ao) diz respeito no srelaes com a matria (com a natureza), mas s prprias relaes so-ciais. A ao lida com o possvel e o imprevisto, e modica o contexto
no qual evolui e acontece. Dierentemente do bios theoretikos(pensa-mento puro), que solitrio e no aparente, a ao pblica, entregue
exterioridade, contingncia, ao murmrio da multido.
Habermas desenvolveu os temas da colonizao do mundo da vida(e seu agir comunicativo) pela razo instrumental. De maneira parecida,
Arendt armava que o capitalismo industrial determina a colonizao
da ao pelo trabalho. Aprxisse tornava poiesis, um processo de abri-cao cujos produtos so o partido, o Estado, a Histria. J na passagem
do ordismo ao ps-ordismo, isto se deu em direo oposta: a prxisque coloniza o trabalho. Ou seja, o trabalho introjetou os traos da ao
poltica, tornou-se prxis. Ao mesmo tempo, esse deslocamento ca em
aberto, como que diante de uma alternativa radical: entre o eclipse dapoltica (apontada, por exemplo, por Agamben) e a diuso geral de um
novo horizonte poltico.
exatamente aqui que entra a discusso sobre o terceiro termo decomparao, quer dizer, sobre a dinmica do pensamento puro. com
relao s ormas de vida relacionadas ao intelecto (bios theoretikon)que se dene uma alternativa entre um intelecto diuso (mas ragmen-
tado) e um intelecto pblico constitudo por novas ormas de atividade
livre. Nesse nvel, Virno prope a metora do executor virtuoso, deslo-cando a distino que Marx azia entre trabalho intelectual produtivo
e improdutivo.
Para Marx, o trabalho intelectual produtivo aquele que se objetivi-za em uma obra que existir independentemente do ato de produzi-la.
O ato de produzir separa-se do produto: prxise poiesisse separam. A
produo mais importante do que a prxis. A mercadoria se separa doprodutor, em objetos distintos das prestaes artsticas. So os livros,
os quadros, as esttuas, de quem escreve, pinta ou cria. Esse trabalhointelectual, dizia Marx, produtivo porque ele produz mais-valia.
Ao contrrio, h um segundo tipo de trabalho intelectual, que no
se objetiviza em obra nenhuma: trata-se das atividades cujos produ-tos so inseparveis do ato de produzir. Nesse caso, a prxis coincide
com a poiesise a sobredetermina. Estamos alando das atividades que
encontram sua realizao em si mesmas como so todas as execu-
es virtuosas dos oradores, dos proessores, dos mdicos, dos padres,dos bailarinos, dos msicos em um concerto, de um artista em umaperormance etc. Nesses casos, dizia Marx, temos um trabalho intelec-
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tual improdutivo. Pode at ser um trabalho assalariado, mas ele noproduz mais-valia, por no haver separao entre o ato de produzir e
seu resultado. Para Marx, esse tipo de trabalho intelectual no apenas
improdutivo; este tipo de trabalho tambm contm elementos de tiposervil, pois unciona com base em prestaes pessoais, prestaes de
servios! Os executores virtuosos so, pois, improdutivos, embora seutrabalho seja de tipo servil.
Para Virno, o que caracteriza a transormao do trabalho na pas-
sagem do ordismo ao ps-ordismo que a execuo virtuosa querdizer a prxis se torna o paradigma de todo e qualquer tipo de pro-
duo. No capitalismo contemporneo, a atividade sem obra deixa
de ser a exceo e se transorma em prottipo do trabalho em geral.Walter Benjamin tinha analisado esse deslocamento j na Era da re-
produtibilidade tcnica da obra (de arte) e o tinha colocado numa
perspectiva oposta daquela adotada pelos seus colegas da Escola deFrankurt. Ao passo que estes enxergavam na sociedade de produo
e consumo em massa a perda de aura e de autenticidade da obra,Benjamin apreendia a transmutaco poltica e social da prpria aura
e da prpria autenticidade e aprendia os novos desaos culturais
para os projetos de emancipao social. Diante do ascismo que es-tetizava a poltica, Benjamin, apontava para a necessidade do movi-
mento comunista politizar a arte.
Benjamin armava: o nmero muito mais elevado de partici-pantes provocava uma participao de tipo dierente. Assim como
o desvio quantitativo ligado reprodutibilidade tcnica da obra dearte determinava uma alterao qualitativa da natureza da obra de
arte, o trabalho colaborativo em rede implica hoje numa mudana
radical do estatuto do trabalho e da obra. Uma mudana que atualizae radicaliza a antecipao benjaminiana: na Era da reprodutibilidade
tcnica da obra de arte, a dierena entre autor e pblico est prestes
a perder seu carter undamental e o leitor est sempre pronto atornar-se escitor.
O que est no cerne da produo uma ao que ao mesmo
tempo pblica e criativa. Aprxisvirtuosa tornou-se o paradigma dotrabalho em geral, pois hoje em dia o trabalho comunicativo, lingus-
tico, aetivo. A base desse trabalho a partitura constituda pelo queMarx chamava de General Intellecte Benjamin denia como um bem
comum constitudo por uma ormao politcnica. Este o trabalho
que encontramos nos servios, nas prestaes de servio das quais de-pende a produo de valor, inclusive dos bens materiais que se torna-
ram suportes de ormas de vida (mundos). Estamos muito prximos
da condio da criao artstica, quer dizer da denio proposta por
Negri da noo de belo: produo de excedente de ser, a partir de umtrabalho livre. O belo novo ser construdo pelo trabalho colaborati-vo, coletivo das redes e nas redes.
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Um novo conito
Esse deslocamento no linearmente libertador ou emancipador.
Ele apenas dene o marco de um novo confito. Na execuo virtuosa,
nos lembra Virno, temos sempre uma prestao pessoal, quer dizer oselementos ambguos prprios da mobilizao produtiva da vida. Abre-
se o horizonte de uma atividade livre e criativa, mas tambm cria-seuma nova condio servil. A execuo virtuosa aparece como o mxi-mo de atividade livre e criativa, mas temos uma prestao pessoal que
indica os termos de uma nova escravido. A clivagem entre esse doispolos no sempre ntida. Em primeiro lugar porque entre eles h uma
innita modulao de condies que dosam graus dierentes de liber-
dade e servilismo: entre o trabalhador inormal dotado de um teleonecelular e o trabalhador intelectual continuamente conectado rede.
Em segundo lugar, porque uma vez que essas dinmicas correm ora
da tradicional relao salarial nem sempre ca claro qual mecanismoagencia e qual separa, qual participa da colaborao e qual hierarquiza
e modula o controle.Uma boa maneira de construir a capacidade crtica de apreender
esse mecanismo de articular a metora do trabalho virtuoso com a
questo dos modos de construo e uncionamento da partitura queo prestador de servios executa. No capitalismo das redes, a partitura
do virtuoso aquela de um intelecto (saber) que se tornou geral: co-
nhecimento que produz conhecimento, ormas de vida que produzemormas de vida. Ao mesmo tempo, esse tornar-se geral do intelecto no
um processo linear, nem unvoco. Ou seja, os modos dessa generali-dade podem ser dierentes e so o terreno de confito entre o novo tipo
de trabalho (imaterial) e o novo regime de acumulao (cognitiva). O
confito entre capital e trabalho passa por uma outra dinmica. Em seucerne no se encontra mais o salrio, mas a partitura.
As lutas por salrio privilegiavam o justo reconhecimento do valor
do capital varivel (o trabalho e sua reproduo) e deixavam em segun-do plano, o da reorma ou da revoluo, a questo da propriedade do
capital constante (as maquinarias). Alis, reorma e revoluo, merca-
do ou Estado, se encontravam no mesmo terreno, aquele da legitimi-dade tecnolgica do capital xo e a ele se dobravam, como mostrou a
experincia sovitica.As lutas do trabalho imaterial tem como varivel undamental a par-
titura e, pois, conjugam num mesmo terreno um novo tipo de luta sa-
larial e a luta no terreno da propriedade. A produo sensata de ormasde vida por meio de ormas de vida depende dos nveis de liberdade e
democracia que caracterizam a produo e a execuo, em espiral, da
partitura. No plano salarial, a varivel diz respeito o reconhecimento da
dimenso produtiva da vida e, portanto, o deslocamento do tema sala-rial em direo ao da distribuio de renda pela implementao de umarenda universal, uma biorenda. No plano da partitura, o terreno de luta
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aquele da construo das instituies de uma partitura comum. Essasinstituies so aquelas que a prpria luta produz. Por importantes que
sejam, o que interessa no movimento da cultura livre no so tanto as
inovaes jurdicas (o prprio copylete o Creative Commons, por exem-plo), mas a articulao entre redes de produo colaborativa e uma nova
gerao de direitos e dispositivos institucionais.
3 - o trabalhodasredes: precarIadoesoberanIadoartIsta
Plena atividade e precariado
H mais de trinta anos, o trabalho continua a descolar-se do em-
prego e a subsumir o tempo de vida como um todo. Por sua vez, o em-prego continua a transormar-se. Ele envolve a alma do trabalhador,
suas aculdades lingusticas e suas dimenses aetivas: uma atividadeplena que mistura tempo de trabalho e tempo de vida. Mas tambm setorna empregabilidade: no mais uma condio dada, mas uma per-
manente ausncia de condio. Mesmo quando estamos empregados,dentro da relao salarial, precisamos estar ora dela, empregveis.
O que a empregabilidade? Uma transao entre o capital com-
prador da ora de trabalho que nunca garante ao vendedor (o tra-balhador) um retorno e uma proteo estveis. O vendedor deve
sempre estar em condies de ser vendvel: empregvel, implicando
no somente a precariedade do emprego, mas tambm a subsunoda prpria vida (o tempo todo, os aetos, as aculdades lingusticas e as
relaes sociais) dentro do trabalho. O trabalho se torna relao, seucontedo , pois cultura, signicao e vida. A explorao passa pelos
mecanismos que permitem reduzir a relao transao.
A transao continuamente negociada e reaberta, sendo que elaimplica um custo dependente das condies de inormao da procu-
ra e oerta de mo de obra. S que esse custo est sendo repassado para
o prprio trabalhador. O contedo da empregabilidade exatamentea dimenso cognitiva e comunicativa (biopoltica) de um trabalho que
se torna imaterial.O capitalismo cognitivo diz respeito mobilizao das ormas de
vida em suas prprias dinmicas sociais, inclusive reprodutivas. A vida
mobilizada sem mais passar pela relao salarial e isso conere (ereconhece) ao desenvolvimento das oras produtivas uma potncia
nova e libertadora. Mas a relao salarial (sua conveno) continua em
vigor, baseada na continuidade da propriedade privada e do trabalhosubordinado. A imensa potncia produtiva do trabalho social (colabo-
rativo) se transorma assim em nova misria para o trabalhador indivi-
dual, cujo trabalho sem emprego no mais reconhecido.Em uma economia do trabalho imaterial, os gastos em termos de
servios e distribuio de renda so investimentos em capital huma-
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no, sem os quais no haver a qualidade de populao (biopoltica) daqual dependem as bacias de oras de trabalho. A substituio de tudo
isso pela lgica do mercado (a privatizao dos servios) leva direto
para o impasse da crise dos subprimes: o crdito acaba se substituindo renda, mas o dbito se torna impagvel.
Para o capital, a transao de custo zero era viabilizada pela suananceirizao, uma acumulao autorreerencial e tautolgica quea crise nos mostra em toda sua nudez. Para o trabalho, isso unciona
potencialmente pelo avesso: o trabalho que se torna produtivo sempassar pela transao aquele que consegue socializar-se sem passar
pela relao salarial.
O trabalho (capital varivel) integrou o capital xo, quer dizer acooperao social, o conhecimento, exatamente como acontece no
trabalho compartilhado das redes sociais e tcnicas. Michael Bauwens
ala do papel das prticas emergentes de produo entre pares (peer-to-peer) que constroem com base na autoagregao por meio de
motivaes aetivas comunidades que praticam a inovao livre epermanente, procuram a qualidade absoluta e tornam obsoleto todo
o tipo de estratgia proprietria (2009, 16). A viso de Bauwens ade-
quada em termos sociolgicos, mas assume a mudana como algo tec-nologicamente determinado.
J as anlises de Je Howe em termos de crowdsourcing mostram
como no podemos conar no determinismo da tcnica como porta-dora de emancipao. Bauwens acredita que essas prticas emergentes
entre pares, paradoxalmente, salvam e colocam em crise o sistema ca-pitalista. Andr Gorz dizia que a produo colaborativa nas redes trazia
consigo a extino da acumulao capitalista. Os dois concordam que
a base dessa nova condio o movimento do sotware livre, ou seja,a produo que tem como base as comunidades de likeminded peers,
mais criativas do que as corporaes: o trabalho pode ser muitas vezes
mais ecientemente organizado no contexto de uma comunidade doque em um contexto de uma corporao (Howe, 8).
Todos colocam no cerne da mudana a relao de tipo novo entre o
trabalho e os aetos: a melhor pessoa para azer um trabalho aquelaque mais quer azer aquele trabalho, e as melhores pessoas para avaliar
sua perormance so seus amigos e pares (Ibid.). Para os apologti-cos caliornianos da web, tudo isso se transorma na mais nova orma
de negcio: O crowdsourcing capitaliza a partir da natureza proun-
damente social da espcie humana (Howe, 14). Para os libertrios, amotivao aetiva (dos trabalhadores das comunidades) ultrapassa em
produtividade as motivaes de origem coercitiva. Com eeito, a trans-
ormao no linear nem determinista: pelo contrrio, ela implica
uma dimenso poltica, em particular no que diz respeito questo dapropriedade, por um lado, e o reconhecimento da dimenso produtivade todo o tempo de vida que esse tipo de trabalho mobiliza, pelo outro.
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4 - o modelodaproduoantropogentIcaeasocIedadeplen
O modelo antropogentico
Christian Marazzi (2008) ala da emergncia de um modelo an-tropogentico. Para ele, a produo de conhecimento por meio de
conhecimento na realidade um modelo de produo do homempor meio do homem, no qual as possibilidades do crescimento en-dgeno e cumulativo dizem respeito, sobretudo ao desenvolvimento
do setor educacional (investimento em capital humano), do setor dasade (evoluo demogrca, biotecnologias) e da cultura (inovao,
comunicao e criatividade). Quer dizer, os atores de crescimento
so imputveis diretamente atividade humana (...), ou seja, pro-duo de ormas de vida e, pois, criao de valor agregado, que dene
a natureza da atividade humana (2008). Isso vale tambm para a ino-
vao. Precisamos de indicadores que levem em conta as inovaeshumanas: oramingdo qual temos que dar conta aquele de uma
bioeconomia (Fumagalli, 2007).
No modelo antropogentico, o conhecimento do qual se ala narealidade o prprio homem: ormas de vida que produzem ormas de
vida. A questo da signicao e, nesse sentido da inovao, diz res-peito relao entre cultura e natureza que o modelo antropogentico
carrega. Se a racionalidade instrumental tpica da modernidade oci-
dental no unciona mais, onde encontraremos um padro de valor esignicao de uma relao entre cultura e natureza que se tornou ob-
soleta? aqui que temos os termos da questo ecolgica e ambiental
e a ligao que eles tem com os desaos da inovao no capitalismoou para alm do capitalismo cognitivo. A ecologia no um problema
de limite externo (natural) ao desenvolvimento humano (cultura), masde relao imanente e democrtica entre desenvolvimento (cultura) e
mundo (natureza): a ecologia uma questo de imanncia e valor!
As refexes sobre a Amaznia e sobre a insero do Brasil no mun-do (Cocco, 2009) nos indicam uma das novas e undamentais linhas de
confito que atravessam a bioeconomia (e o capitalismo cognitivo). Por
um lado, ns teremos um horizonte no qual a produo antropogenticase reduz a um novo tipo de antropocentrismo, reproduzindo a clivagem
ocidental entre cultura e natureza, numa dinmica que torna impossvelapreender a imanncia de nossa condio terrestre. Aqui, a crise do valor
se apresenta como catstroe: perda de mundo. Mesmo quando ala da
proteo da natureza, se az segundo o mecanismo da transcendncia,de uma cultura (proteo) separada da natureza (foresta).
Por isso, so os indgenas com seu animismo que melhor cons-
tituem o horizonte de uma outra relao entre cultura e natureza. E as
reservas (sobretudo quando so demarcadas de maneira contnua) as-sumem uma dimenso completamente outra ao que lhe era atribudo
pela lgica estatal. Por outro lado, a propagao antropogentica pode
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ser pensada como o antropomorsmo animista, do perspectivismoamerndio (Viveiros de Castro 2002, Cocco 2009). Esse permite pensar
a hibridizao de cultura e natureza, bem nos termos dos coletivos que
habitam a antropologia simtrica de Latour (1994); aqui a crise do valorabre-se construo de um mundo como desao democrtico de mo-
bilizao dos hbridos de natureza e cultura, dos humanos e dos nohumanos. A antropologia da cosmologia amerndia do Brasil renova,em termos inovadores, o trabalho que a etnologia desenvolveu desde
as dcadas de 1960 e 1980 para apreender a pluralidade das ormas detroca, contra a concepo da economia poltica que arma o mercado
como universal (Karpik: 2007, p.22).
Aqui, a inovao brasileira, animista e antropaga: o perspectivis-mo amerndio radicalmente no-antropocntrico. A antropoagia de-
ne um antropomorsmo cuja propagao pura alterao. O sistema de
inovao do qual precisamos um sistema antropogico de inovao: o saque e a ddiva, a relao de alterao que az o ramingda que-
bra das patentes (no caso dos remdios), do sampleamento como basedas atividades de criam o tecnobrega (de Belm do Par), o unk do Rio
(como j estiveram nas bases do tropicalismo). A noo de imaterial diz
respeito dimenso relacional e lingustica do trabalho e ao seu tornar-se prxis, para alm da dialtica sujeito-objeto. Seu modelo , pois a cria-
o artstica que, por sua vez, est cada vez mais parecendo com a cria-
o cientca que sempre oi trabalhada em rede, um trabalho que voctrabalha em cima do outro, que exige um aparato institucional complexo
de produo propriamente coletiva (Viveiros de Castro, 2007).Nesse contexto, alar de trabalho imaterial signica apreender a
recomposio materialssima da mente e da mo, na direo oposta
hierrquica espiritualizao do mundo. O trabalho imaterial temcomo base tecnolgica o que Christian Marazzi, usando o manies-
to ciborgue de Donna Haraway, chama de Corpo mquina. Ou seja,
a disjuntiva que a desmaterializao do capital xo e a transernciade suas unes produtivas e organizacionais no corpo vivo da ora
de trabalho geram a que separa a importncia crescente do trabalho
cognitivo produtor de conhecimento e das prprias ormas de vida,como mecanismos undamentais da produo de riqueza e, ao mesmo
tempo, sua desvalorizao em termos salariais e de emprego. A disjun-tiva est no no reconhecimento poltico da mutao (a subsuno da
vida como um todo) para permitir seu controle socioeconmico.
Dizer que o trabalho se tornou imaterial signica armar que, no ps-ordismo, so as dimenses relacionais do trabalho que determinam as
dimenses objetivas (da relao sujeito/objeto), tpicas do processo de
trabalho industrial. A antropologia permite um aproundamento dessa
dimenso relacional, lingustica do trabalho, recuperando e incluindouma nova maneira de apreender a relao com a natureza, com a his-tria comum que a sociedade e o ambiente constituem. Uma produo
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que produo de mundos dentro de um leque aberto de possibilida-des, para alm do antropocentrismo. Precisamos aqui apreender as ino-
vaes que esto nas reservas indgenas, nos territrios dos quilombo-
las, nos Pontos de Cultura, nos assentamentos da reorma agrria, nasincubadoras de empresas solidria, entre outros espaos. ali que a res
nullius(as terras devolutas) se transorma em um comum que inclui osampleamento, a mixagem e a mestiagem antropogica entre cultu-ra e natureza, um devir Amaznia da inovao. O world makingque d
signicao propagao do conhecimento tem no devir Amaznia doBrasil e no devir Brasil do mundo um novo horizonte, na perspectiva do
qual pensar um novo tipo de indicadores.
A sociedade plen e o comum como novo padro de valor
Do lado dos governos, mergulhados na crise, isso parece organizar-
se em torno do discurso do crescimento ecologicamente sustentvel,bem nos termos do debate que aconteceu diante da alncia do conjun-
to das montadoras norte-americanas: aquelas que sobrevivero (graas
interveno estatal) devero tornar-se mais enxutas (com menos em-pregados) e produzir carros sustentveis. Isso diz respeito a denio de
um novo motor de crescimento e, sobretudo, da tentativa de restabelecerum critrio de valor ao qual ancorar uma nova dinmica da acumulao.
Estes deslocamentos esto longe de ser denidos, estveis e echa-
dos. Nada diz que essa ressignicao possa acontecer sem uma rede-nio radical dos prprios alicerces do capitalismo, do regime jurdico
da propriedade privada e estatal. Por denio, a procura de uma eco-
nomia sustentvel no garante em si nenhum padro objetivo-natural.O respeito da natureza no deixa de ser o produto de uma razo to
instrumental quanto aquela que agride a natureza. Nos dois casos, omodelo antropogentico reproduz o antropocentrismo ocidental e sua
transcendncia. O respeito da natureza natural acaba opondo-a as
polticas sociais. O humanismo se desvela pelo que : um anti-humanis-mo. A continuidade das atividades predatrias da natureza reproduz um
direito de dominao de tudo que no humano. Este oi o instrumento
undamental da dominao dos homens sobre aqueles animais antro-pomoros que no tinham alma e cujas vidas no mereciam ser vividas:
os ndios, os negros, os ciganos, os judeus, os muulmanos, etc.Precisamos de indicadores capazes de reconhecer as dimenses
qualitativas e sociais da atividade econmica e de desnaturalizar seus
recursos para arm-los como arteatos, hbridos de cultura e nature-za. Esses passam a ser atravessados por critrios de valorao social
relacionistas e perspectivistas que no cabem mais na simples con-
tabilidade dos custos. De repente, a privatizao do domnio pblico
como direito irrestrito de uso-ruto de um bem precisa ser prounda-mente revisada. Acontece para os bens materiais exatamente o que j
est acontecendo para os bens imateriais: a propriedade privada tem
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diculdade de sustentar economicamente as posies adquiridas (porcausa, por exemplo, da pirataria) e se torna (na orma do copyrighte
das patentes) um obstculo polticas pblicas (como no caso da que-
bra das patentes dos remdios para a luta contra AIDS) e at prpriadinmica da cooperao criativa (que encontra novas ormas de pro-
priedade comum: o copylete o sotware livre). O comum cultura enatureza ao mesmo tempo: nossa imanncia terrestre.
Nossa reerncia deve ser o carter duplamente articial da con-
veno de propriedade do conhecimento (dos bens conhecimento edas obras artsticas). Por um lado, essa dimenso articial o ato de
uma conveno humana que no depende de nenhuma necessidade
natural, mas est sobre uma norma jurdica que precisa ser aceita, legi-timada. Por outro lado, ela articial pelo ato de depender do arteato
humano e do grau de desenvolvimento tcnico de uma sociedade.
Hoje, uma srie de inovaes tcnicas desestabilizaram os mode-los econmicos de remunerao (crise do valor): a mudana que cria
problemas o carter indivisvel do bem conhecimento. No modeloanterior, eram os eeitos de escala (a multiplicao dos leitores de um
jornal, por exemplo) que tornavam rentvel os investimentos. Hoje, o
pblico construdo por processos que associam a comunidade e a sin-gularizao. O marketing ameaado pelas tcnicas automatizadas de
prolingdos clientes, atravs da explorao de cookies (memorizao
dos sites visitados pelos internautas), por exemplo. A singularizao doconsumidor permite pensar servios anexados aos produtos: a ora de
venda deve tornar-se uma capacidade de escuta da vida singular. o
data mining(a explorao em tempo real dos dados amontoados sobre
o uso da Internet) articulado a outros mecanismos interativos que pro-
movem a eccia das redes comerciais por meio de processos bottom
up: relaes de proximidade e de propagao.
Eis a sociedade plen. Se abandonamos as metoras do trabalho
humano como aquela das ormigas, desenvolvendo aquela da colmeia,poderemos ver que (alm da produo do excedente de mel, inicialmen-
te destinado ao autoconsumo, a criao das rainhas e das uturas abe-
lhas bem como ao lucro do apicultor) a construo da rede material doscompartimentos da colmeia em cera a construo da rede cognitiva
do territrio, que serve colheita do plen de for em for. A anlise tra-dicional do valor (e da inovao) se limita ao outputde mel que pode ser
negociado no comrcio e, pois, a uma racionalidade instrumental volta-
da a um m (o mel) aproprivel sob as ormas de direito de propriedadeprivada ou pblica (estatal). O desaparecimento das abelhas, por causa
do uso e abuso de pesticidas, mostrou que a polinizao undamen-
tal para a agricultura e tambm para as foresta selvagem. Mais do que
isso, mesmo calculado em termos de produo agrcola, o valor criadopelo trabalho indireto, imaterial, relacional de polinizao n vezesmais importante do que o trabalho material (direto) de produo de mel.
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A atividade de polinizao aparece como uma multido de singu-laridades que cooperam entre si se mantendo tais. Mas a polinizao
no uma evoluo natural. Trata-se de algo articial e at contre na-ture: interespecca. A polinizao precisa das instituies que reco-nheam o compartilhamento comum de uma rede, a rede como res
nullius: que de todos e de todos, seja ela a comunidade da Internetou a Reserva indgena da Raposa Serra do Sol em Roraima. Ao mesmotempo, a polinizao o ato de uma atividade ir de for em for no
nalizada onde oun (a elicidadeou o amor como orma superior doconhecimento) um indicador de valor enquanto construo de sen-
tido, construo de um mundo.
Estamos na perspectiva onde a produo em rede constitui umaalternativa radical na organizao do trabalho. O comum da rede apa-
rece como uma alternativa ao pblico (estatal: propriedade de todos e
de ningum) e ao privado (mercado: direito absoluto do particular). Ainovao est do lado, pois, das instituies que reconheam a esera
do comum e atualizem seu potencial: na passagem de um esquemaproprietrio baseado na separabilidade para um ncado na indivisi-
bilidade; de um estruturado em torno da exclusividade e rivalidade do
uso para um uso no rival que participa da produo por propagao(Moulier Boutang, 2007): a produo e inovao por propagao poli-
nizadora aquela do enxame. Precisamos de instituies de enxame-
amento, de investimentos que reconheam a dimenso produtiva epropagadora da polinizao, de polticas pblicas que reconheam a
polinizao e no a deixem esgotar-se.
conclusoprovIsrIaA constituio da nova partitura, do intelecto pblico, est comple-
tamente aberta em alternativas que correspondem clivagem sepa-
radora da prestao virtuosa entre as novas ormas de atividade livree os mecanismos de uma servido renovada. Ou seja, por um lado, a
partitura do intelecto pode permitir a uma esera pblica a produo
e reproduo (a circulao produtiva!) de suas dinmicas livres e mul-titudinrias. Nessa ponta, o intelecto pblico constituinte de uma
esera do comum: aquela que encontramos no movimento do copy-
let, do sotwarelivre e dos pr-vestibulares para negros e pobres. Aqui
temos produo do belo, resistncia e criao, excedente de ser de uma
vida livre e produtiva.Pela outra ponta, a dimenso pblica do intelecto pode ser cap-
turada pelo mercado e pelo Estado pela sua sistemtica reduo
a uma densa rede de relaes hierrquicas. Nesse segundo caso, a
imprescindvel presena de outrem toma uma dupla orma perversa:dependncia pessoal e arbitrariedade hierrquica que transormam aatividade produtiva do virtuoso em trabalho servil de novo tipo. Aqui, a
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esera pblica constituda e sobredetermina as condies de existn-cia do intelecto em geral. A arte capturada e reduzida comunicao
e ao marketing: trabalho ragmentado e precrio e nova servido do
copyright. Toda a vida capturada dentro de um processo de produoque barra o ser nas mil ormas da segregao espacial e da ragmenta-
o social (a excluso como horizonte que no pode ser ultrapassado).Temos aqui todos os elementos para apreender a importncia das
polticas que contribuem para a constituio de uma esera pblica de
mobilizao democrtica e produtiva, para alm do trabalho assalaria-do. O primeiro governo Lula, talvez at involuntariamente, oi o teatro
de duas grandes inovaes adequadas a esse desao: o programa Bolsa
Famlia e o programa dos Pontos de Cultura.O Bolsa Famlia indica o caminho da construo de um comum (a
distribuio de renda) que pode constituir-se como a base da ao das
singularidades. No se trata apenas da necessria e urgente reduo dadesigualdade, mas de pensar a mobilizao produtiva como algo que
depende da cidadania, substituindo a equao que descrevia a integra-o social como dependente do crescimento econmico. Embora com
base em uma escala de investimento ainda apenas simblica, os Pon-
tos de Cultura aproundam essa tendncia, democratizando a polticacultural e pondo a cultura como cerne potencial da mobilizao pro-
dutiva. Com os Pontos, o MinC no apenas deu sentido pblico s po-
lticas culturais, mas as democratizou radicalmente, visando a reorar(e no a determinar) as dinmicas prprias dos movimentos culturais.
Nesse encontro entre polticas culturais e polticas sociais podemosanal pensar a construo de uma partitura pblica e radicalmente
democrtica para o virtuosismo brasileiro do sculo XXI.
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Sonho PIrata ou realIdade 2.0?Jorge Machado
1. o sonho
No nal do Sculo XVII, quando o capito Misson e o ex-padredominicano Caraciolli acompanhados por centenas de piratas deci-
diram se estabelecer na costa ocidental de Madagascar, as primeiras
medidas que tomaram oram renunciar suas nacionalidades, abolira propriedade privada e acabar com a circulao de dinheiro os re-
cursos passaram a ser reunidos em um undo comum. Surgia Liber-
tlia. No se sabe se oi uma comunidade, uma aldeia ou mesmouma mera utopia. Sua ama circulou pelos oceanos, de barco a barco,
de costa a costa pelas bocas do povo do mar, do povo da areia e dopovo da foresta.
Localizada em um paraso tropical e habitada por gente amiga,
Libertlia era tambm pereita por estar prxima as principais rotasmartimas. Para Daniel Daoe1 (1724), testemunha da era de ouro dapirataria, Libertlia oi a maior expresso da Utopia pirata por uma
terra livre. Onde embarcaes sem bandeira podiam atracar, rinco
onde pobres, escravos libertos, indgenas e perseguidos viviam empaz. L no havia lugar de privilgios de nobreza, inquisio religio-
sa, explorao colonial ou comerciantes de escravos. Era o nico lo-
cal onde se ostentava em terra rme a bandeira preto e branca, co-nhecida como jolly roger cuja origem vem do rancs jolie rouge
(bela vermelha). Seu uso signicava a disposio de uma embarca-o lutar at a morte.
Libertlia oi a origem de uma srie de ataques a navios negrei-
ros. Estes eram saqueados e tinham seus cativos libertados. O enclave
pirata colocava a rota de comrcio que passava por Madagascar emconstante ameaa. E a Misson e o padre Caraciolli, se juntaram outros
amosos piratas, como Thomas Tew e George Drew.
1. O livroA General
History o the Pyrates
deriva de pesquisa em
registros ociais e en-
trevistas com piratas
presos em Londres.
Daoe tambm au-
tor de The Pirate Gow,
The King o Pirates,
Captain Singleton,
entre outras obrasrelacionadas com a
vida no mar.
Ididcuuivicdsb
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O reduto tornou-se um smbolo do humanismo comunitarista pi-rata. Cercada por inimigos de todo lado, Libertlia s poderia resistir
com a unio de um povo de dierentes origens.
Uma terra onde todos so livres. Onde no h exploradores ou ex-plorados; nem senhores, nem escravos; nem proprietrios, nem servos.
Onde sequer h nacionalidades e ronteiras de qualquer espcie. Ondeo dinheiro no centro da vida, mas sim a solidariedade e o bem-estarcomum. Um lugar onde todos so iguais, onde o poder est distribudo
e as decises so tomadas de orma direta e por deliberao coletiva.No pde ser Libertlia. Libertlia caiu sob um ataque contundente de
naus europeias e por invasores por terra.
2. pIratas, negros, ndIosepobres
Quando o navio oi capturado, o esplio oi dividido por umsistema de partes. Este tipo de sistema de partes era comum no
transporte martimo medieval, mas tinha sido eliminado quan-
do o transporte tornou-se um empreendimento capitalista e os
trabalhadores marinheiros assalariados. (Osborne, 1998)
O igualitarismo era comum entre esses nmades, que tinham
que carregar consigo tudo o que possuam. Seu principal valor eraa liberdade. Em tempo de regimes absolutistas, dominao colonial,
escravido, inquisio tudo ao mesmo tempo, os barcos piratas po-
diam ser considerados ilhas de democracia em meio a um oceano detirania. Ao contrrio da marinha mercante e militar, nas embarcaes
piratas, marinheiros no eram explorados nem tratados com brutali-dade. Eram todos iguais.
Para serem livres, contavam com um eciente sistema de inorma-
o: indgenas, escravos ugidos e a gente mestia que vivia na costa. Aviolncia a eles atribuda no tinha essa gente como objeto. Corrobora
isso, o ato que suas tripulaes eram ormadas por gente de toda ori-
gem. Para sobreviverem por longos anos vagando de costa em costa
tinham que escolher bem seus inimigos e no podiam arriscar seusbarcos em batalhas ou ataques suicidas.
A estratgia pirata consistia em explorar as raquezas do sistemaorganizado de roubo, baseado em uma poltica colonial, onde uma
monarquia vida por riquezas, cercada por uma nobreza corrupta con-trastava com o povo miservel.
2.1 pIratachegou, catIveIroacabou
Nos galees era cil despertar uma rebelio interna. Conduzidos
a remo por numerosos escravos atirados no mar quando doentes ou
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inaptos ao trabalho -, o povo dagalera tinha esperana de um ataquelibertador. Por outro lado, marinheiros amedrontados, descontentes
ou vidos por ter acesso ao botim que transportavam no eram exata-
mente pessoas dispostas a luta mortal.Dicil imaginar que um pirata como Sam Bellamy conseguisse sa-
quear com poucas perdas 54 barcos sem a colaborao do povo dasgals. Seu navio, chamado Whydah, aundado aps uma tormenta, oidescoberto em 1984 (NG, 2011). Recheado de joias e moedas, uma
prova de como os piratas eram a maior resistncia da poca domina-o colonial. O Whydah, que ora navio negreiro, oi entregue sem com-
bate por seu capito britnico.Curiosamente, nele oram encontradas
joias marcadas com golpes de aces e machados, usados para dividirpeas grandes do tesouro entre sua tripulao (Osborne, 1998) o que
ilustra bem o carter da pirataria.2
Os barcos piratas eram uma ameaa a todo o sistema de exploraocolonial: manuteno das colnias, ao comrcio martimo, aos na-vios negreiros e a prpria estrutura social vigente, baseada na diviso
de classes, nacionalidades e raas.
2.2 sejalIvre, sejapIrata
Aos perseguidos e candidatos a insurretos no havia muitas opes
na poca. Reunir marinheiros habilidosos no era tarea dicil para os
piratas, dadas s duras condies em que vivia o proletariado da poca,cuja populao crescia nas grandes cidades. Mas boa parte dos piratas
eram marinheiros de navios mercantes que decidiram se juntar quan-
do seus navios eram capturados. Nos navios mercantes, os marinhei-ros eram submetidos a pssimas condies de trabalho e viviam uma
inexistncia prtica de direitos. Eram atrados aos navios piratas ugi-tivos da lei, nativos indgenas, dissidentes polticos e escravos ugidos
das plantaes (Wilson, 1999). Havia tambm mulheres piratas amo-
sas, como Anny Bonny, Mary Read e Grace OMalley. Para atravessarem
oceanos deviam contar com uma tripulao com bons conhecimentosde astronomia, geometria, matemtica e cartograa, alm de pessoas
que dominassem dierentes ocios da poca. No se tratava de umamera busca por riqueza, mas havia um ideal libertrio, por trs da reu-
nio desse tipo de gente.Segundo Wilson (op. cit., 1999), os marinheiros tambm usavam
o motim e desero e outras tticas para sobreviver e resistir sua
sorte. Mas os piratas eram, talvez, a parte mais internacional e mi-litante do protoproletariado constituda por marinheiros do sculo
XVII e XVIII. (...) Liberdade, Igualdade e Fraternidade prosperaramno mar mais de cem anos antes da Revoluo Francesa. As autorida-des cavam chocadas com suas tendncias libertrias, o governador
2. Exemplo de pea
cortada no Whydah:
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holands das Ilhas Maurcio aps conhecer uma tripulao pirata ecomentou: Todo homem tinha tanta voz como o capito e cada um
levava suas prprias armas consigo. Isto era proundamente ameaa-
dor para a ordem da sociedade europeia, onde as armas de ogo eramrestritas s classes superiores.
Para dicultar qualquer responsabilidade ou punio individualpor suas aes, os piratas tinham um cdigo de comportamento paragarantir o compromisso coletivo. Assinavam um documento denomi-
nado round robin (Wikipedia, 2011), onde todos escreviam seus nomesem crculos, de modo a tornar impossvel denir quem tinha assinado
primeiro ou depois. Assim, responsabilidades e culpas seriam iguais
para todos se um dia ossem capturados.Por suas tendncias antiautoritrias, a mera existncia dos piratas re-
presentava um risco s autoridades. Qualquer igualitarismo ou ideologia
libertria era incompatvel com regimes monrquicos, elites rurais, se-nhores de escravos, explorao mercantilista e colonial. E essa orma de
vida contrariava a moral e costumes da poca. Nesse contexto, no haviaporto seguro para aqueles que desejavam uma sociedade internacional,
sem propriedades e sem escravido. O sonho pirata de liberdade no ti-
nha lugar. A utopia humanista nauragava ora dos seus barcos.
3. o enIgmadabandeIra
As cores preta e branca, em geral com uma caveira estampada, torna-ram-se um orte smbolo de medo, destruio, desobedincia e ameaa
ordem. Lutar at a morte, seu signicado era claro. Grupos anarquistas
e libertrios se inspiraram nelas. As oras anarquistas russas, orma-da com base camponesa, cuja ao oi undamental para as principais
vitrias contra o czarismo, adotaram a jolly rogercomo seu smbolo.
Jolly Roger usada
por Stede Bonnet.
Bandeira dosanarquistas russos
(1918-20).
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3.1 Simbolismo
O preto e branco se associam as dualidades, luz/escurido, bem/
mal, positivo/negativo, masculino/eminino. No taosmo, o preto ebranco com dois pontos invertidos signicam as oras polares que
movimentam o universo. a partir dos opostos/complementares (yine yang) que tudo criado. A dualidade est at nas menores unidades,onde a ora da atrao rumo totalidade pelo polo oposto d o
movimento ao universo. Assim, o incio e o m esto nela contidos,ormando um ciclo.
Dualidades e oposies so encontradas tambm em religies an-
tigas como zoroastrismo e no dualismo dvaita da losoa dos Vedas,que antepe conscincia matria. Para os Vedas, cada ser refete todo
o universo: todas as suas partes se complementam nele. Para a cultura
bantu, ubuntu signica que cada um de ns o que pela relao comos outros. Ser consciente do ubuntu estar aberta e disponvel aos de-
mais, se vernos demais. Esse conceito est presente em diversas cul-
turas da rica central e do sul como unhu, botho e obontu.
Ajolly roger expressava que ou no havia um m com a
morte, ou este seria ao menos aceitvel (morrer lutando).
Aos piratas a morte seria naturalmente a ltima opo po-
dendo ser o preo a se pagar pela liberdade, o kharma da
luta por uma vida livre. A cor preta simboliza a morte e a
branca, a redeno. Aos inimigos, ambas as escolhas esta-
vam disponveis: a oerta da vida ou o truno da morte. A
bandeira era uma espcie de declarao de guerra dos que
so de capazes de entregar o que tem de mais precioso a
vida para deender a liberdade queles que por medo e
comodismo se curvavam aos dominadores. Esse era o ter-
ror que ajolly rogerinspirava e permitia aos piratas e barcos
sem a necessidade de combate.
O dualismo binrio tambm a base da inormtica. Bits podemser traduzidos por 01010101, ou acesso/apagado, verdadeiro/also etc.
A totalidade da inormao pode ser reduzida a uma unidade mnima
ormada simplesmente por opostos.No lmeMatrix, quando os policiais atiram em Neo, a cena para.
Naquele momento, ele compreende que tempo e o espao so iluses
da mente e, assim, a sua morte tambm o . quando descobre ser in-clume Matrix que no passa de uma projeo coletiva, alimentada
pela energia retirada dos que viviam sua iluso. Mas para ir alm do
limite do sistema, havia que desa-lo, desconstru-lo.
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4. SyStemFail
Para o socilogo Giddens (1984), nossa realidade e instituies so
estruturadas pelas nossas prticas cotidianas. So nossas aes, aoreproduzir continuamente o sistema de regras e valores, que acabam
por constituir seus alicerces. Somos os responsveis pelas celas quenos aprisionam. A totalidade se estrutura pelas partes, enquanto essascooperarem, o sistema estvel. Mas quando cooperao d lugar
desobedin