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º 5 2
010
Nova Série
Nº 5
2010
Instituto
Italiano
de Cultura
de Lisboa
I S S N 0 8 7 0 - 8 5 8 4
Copia Omaggio
O ensino do italiano em PortugalIstituto Italiano di Cultura di Lisbona, Lingua e Cultura italianain PortogalloUniversidade de CoimbraRita Marnoto, Perspectiva históricaClelia Bettini, Coimbra 2010 – a Italianística está na rua.Riflessioni sullo stato delle coseRita Marnoto, Súmula legislativaUniversidade de LisboaMaria João Almeida, Estudos Italianos na Faculdade de Letrasda Universidade de LisboaPorto. Universidade do Porto e outras instituiçõesGiuseppe Mea, Quarenta anos a ensinar italianoZulmira Santos, Sobre os curricula da Faculdade de LetrasConservatórios e Escolas de MúsicaLino Mioni, Percurso de formação e plano de estudosMarcello Sacco, Insegnare italiano nelle scuole di musicaUniversidades dos Açores, do Minho e de AveiroCatia Benedetti, Rita Marnoto, Universidade dos AçoresEmanuele Ducrocchi, Universidade do MinhoSilvia Brunetta, Rita Marnoto, Universidade de Aveiro
Ernesto Rodrigues, Carbonária, o exército civil do 5 de OutubroGiuseppe Alonzo, Tasso e l’“iperidentità” portoghese.Per una rilettura di “Vasco, le cui felici, ardite antenne”Marcello Sacco, La lingua è mobile. I libretti d’operanella glottodidattica dell’Italiano LSJoão Bigotte Chorão, Um poeta entre dois idiomasManuel G. Simões, Guido Batelli e a poesia portuguesa
IN MEMORIAM
José Vitorino de Pina Martins (1920‑2010)
A28deAbrilde2010,faleceuoProf.JoséVitorinodePinaMartins.ArevistaEstudos Italianos em Portugale,paraalémdela,ouniversodasrelações literáriaseculturais luso-italianasperderamumvultodeprimeiragrandeza.Asuamemóriaérecordadaehomenageadaatravésdoscincotestemunhosseguidamentepublicados.
Noâmbitodeumaactividadequeseestendeualargoscamposdaorganizaçãoculturaledacrítica,passandotambémpelaproduçãoliterária,aatençãodispensadaàculturaeàliteraturaitalianaseàssuasrelaçõescomaculturaealiteraturaportuguesasfoiumaconstante.TerminadaasualicenciaturanaFaculdadedeLetrasdeCoimbra,em1949,partedeimediatoparaRoma,ondefoileitordeportuguêsem“LaSapienza”.“UmadascoisasmaisextraordináriasqueaconteceramaJoséVitorinodePinaMartins”–recordaEduardoLourenço,aomesmotempoqueregistaaimpressãodeque“aItáliaotinhareve-ladoasimesmoesobretudodequeotinhaentusiasmadoparaserumadmirador,quaseumcompanheiroforadotempo,daqueletemposemtempoquenóschamamosoRenascimento”.
Ogostopelosautoresitalianos,emparticularpeloquedizres-peitoàBaixaIdadeMédiaeaoRenascimento,impregnaaspáginasdeHumanisme et Renaissance de l’Italie au Portugal. Les deux regards de Janus.Aobrafoieditadaem1989,masjáem1971saíraovolumeCultura italiana.DaperspectivacomparatistaadoptadapeloProf.
Est.Ital.Port.,n.s.,5,2010:161-179
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PinaMartins,resultouumarevitalizaçãodoestudodeautorestãoimportantescomoSádeMiranda,CamõesouJoãodeBarros,entretantosoutros.
UmadaspeçasfundamentaisdoestudodasrelaçõesentrePicodellaMirandolaealiteraturaportuguesa,“PicodellaMirandolaeohumanismoItalianonasorigensdohumanismoPortuguês”,foidadaaosprelosdeEstudos Italianos em Portugalem1964,nonúmero23.Depoisdeteracompanhadoarevistaemmomentosdeincerteza,inte-grouoConselhoCientíficodasuanovasérie,cujaediçãocomeçouem2005.Momentosimbólicodesselabor,foiaapresentaçãoqueoProf.PinaMartinsfezdonúmeroinicialdessanovasérie,noInsti-tutoItalianodeCulturadeLisboa.Poressaocasião,proferiuumaconferênciasobreGiovanniPicodellaMirandola.
Ovolteiodecadalinhaquenoslegou,aformadecadaumadasletrasgravadanosvolumesdeAldoManuzioalinhadosnasuabiblio-tecarefulgemagorasobumaoutraLuz.ComoescreveAiresA.Nas-cimento,“Comopoeta,bempodemosdizerdePinaMartins:«NamãodeDeus,nasuamãodireita,descansouafinaloseucoração»”.RITAMARNOTO
REQUIEMPORJ.V.PINAMARTINS!
Razõesváriasnospodemtertrazidoaqui,aestaBasílicadoCora-çãodeJesusdaEstrela,aprimeiraquenomundoexistiucomessainvocação.PrestamosaúltimahomenagemaJoséVitorinodePinaMartins:comovidamente,religiosamente.
Desentimentosdiversos,etalvezopostos,senãocontraditórios,nosreconheceremospossuídos:amorteéafronteiraquenãocon-seguimosremover;paraosquecomelecomungamosaEsperançadaVidaquenãotemfim,aCristovamosbuscararazãodessaEspe-rança–“euparto,masnãovosdeixonovazio;voupreparar-vosumlugar;oquevosdeixoemtestamentoéquevosameisunsaosoutros,comoEuvosamei”.Dastrêsvirtudescardeais,CharlesPeguyesco-lheuadaEsperançacomoamaisdifícileaquelaquemaisagradaaDeus:porque,mesmoqueacreditemosemDeuseponhamosn’Eleonossoolhar,precisamosdeacreditarradicalmenteemnósparanosprojectarmosnoFuturoeantecipadamenteoconstruirmos.
PinaMartinstinhaumespíritovoltadoparaaEsperançaporqueacreditavaemDeusesimultaneamenteacreditavanohomem,ima-gemdeDeus,eternoeincarnado,inteligênciaecoração,palavraeverdade.Repassandooseucurriculum vitae,ficou-me,umavezmais,naretina,otítulodasuatesedelicenciatura,em1949:essetítuloénadamenosqueA miséria e a grandeza do homem em LesPensées de Pascal*.Conhecedordamisériadohomem(nãoapenasintelectual-mente,poisviveuquaseumséculoemquesentiuoshorroresqueohomeminfligiuaosseussemelhantes),dedicou-seaolongodeanos
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apesquisaragrandezadessemesmohomem,queparaosantigosgregosera“assombro”(naexpressãodocorodaAntígonadeSófo-cles),masparaoshomensdoséculoXVI,naexpressãodeGiovanniPicodellaMirandola,eramirabilis:certamenteporqueesseshomensdohumanismoestavamconvencidosdequeaRevelaçãocristãlhesdavaachavedeleituraparaentenderemqueaobradaCriaçãoeraboaequeoAmordeDeusseestendiaparticularmenteaohomem,sobretudocomoefeitodaRessurreiçãodeCristo,convenceram-seelesdeque,apesardasvicissitudesaqueestáexposto,ohomeméadmirávelevaleapenaregressarpermanentementeàdescobertadaaventuraqueele fazao longodahistória.Nãosemmotivo,essehumanismorecuperoutestemunhosdopassadoeprocuroucriarinstrumentosqueosdessemaconheceregarantissemasuaprojec-çãonofuturo.
J.V.PinaMartinsapaixonou-sevivamenteporessehomem,aprendendo,comosquecomoeletinhamumadimensãouniversal,alerosentidodahistória,compreendendocomIreneudeLião(emrecordaçãofrequentedeumamigoaquemmuitoprezava,ocar-dealhenryDeLubac)quea“glóriadeDeuséohomememvidaplena”–adoxaemgregoquasenãotemtraduçãopossívelnaslínguasmodernas:éamanifestaçãodeesplendor;paraaentender,teremosquevoltaraosentidoplenodoGloria in excelsis Deo,nohinoaonas-cimentodeCristoqueosEvangelhosatribuemaosAnjosemtornodagrutadeBelém;dificuldadetemosnóstambémparaentenderoensinamentoPaulinodeque,noaltodaCruz,oFilhodeDeusCru-cificado,temaexpressãomáximadasuaglória–senãohácontra-dição,hápelomenosparadoxoeeleaproximadimensõesracional-menteirreconciliáveis:asupremadegradaçãoéasupremarevelaçãodamaiorexaltaçãoqueDeuspreparouparaSeuFilho,poisnaCruzmanifestaetornaefectivoopoderdeRessurreição.
Énestacontradição(insensatezparauns,blasfémiaparaoutros)quenósnoscolocamosporqueestamosconvencidosdequeaobradeDeuséboaenãopodeseraniquiladapelaloucuradealguns,masmereceseradmiradaportodos,habitando-adeformatãoharmónicaquantooreajustamentodanossainserçãonelanospermitir.
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J.V.PinaMartinsfazpartedessahistóriahumana,quenoshuma-nistasaprendeualer,acriticar,adepurar,aconstruir.EmPicodellaMirandolacomeçou,masestendeuoseuolharpormuitosoutros:ErasmofoiparaeleumMestreadmiráveldesabedoriaqueconciliavaaRazão,aPrudência,aRevelaçãocristã;extasiou-se,porém,comThomasMore,ohomemdaUtopia–umtextoquefoiescritoemdiálogocomErasmoporaqueleque,naexpressãodeste,foiafiguramaiscândidaemaisamáveldetodasquantobrotaramàfacedaTerraeque,amandooshomenseindicando-lhesosentidodadignidadehumana,acabouporsucumbiràloucuradopoderquelhenegouodireitodeocontestaremnomedevaloresmaisaltos.
TiveagraçadepartilharcomPinaMartinsotrabalhodeumaediçãodessetexto;tiveoprivilégiodeadmiraroseuencantamentopelotextoepelapersonalidadedoseuautor,sentidepertoavibraçãodasuaalmaepudeapreciarassuasqualidades–todasdeexcelência.
ÉlargoocortejodosqueseinclinamperanteafiguradePinaMartinseneleserevêemcomofazendopartedahistóriadassuasvidas:sintoàminhavoltaopesodasinstituiçõesqueeleserviueaquemdeuocontributodassuasqualidades;sintotambémoafectodetodosaquelesquelhedevemmuitodoquesãoequiseramser–porque,paratodososquedeleseabeiravam,eletinhanãoapenaspalavrasdeconforto,mastambémgestosdeestímuloedepartilha.Atodosolhavacomoolhard’Aqueleque,subindoàMontanha,tevepalavrasparaanunciarasBem-aventuranças,semolharaoutradignidadequeadohomem–reclamandodele,comoooráculoantigo:“conhece-teatimesmo”.
Nestemomento,tantomaissolenequantoovemospassarparaaoutramargemdequetodosnosaproximamos,dougraçasaDeusAltíssimoportodasasmaravilhasquevimosemJoséVitorinodePinaMartins;nessaacçãodegraças,acolho-meàternuradePri-mula,suaesposa,quecomelepartilhouumavidalonga,emdiálogoeempartilhaintensa,mesmonosúltimosanosemqueasexpres-sõessetornarammenoschamativas– inclino-merespeitosamenteperanteela,emquemnuncasurpreendiumlamentoeviasereni-dadequeencanta;nessaveneração,acolho-metambémaoafectode
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EvaMaria,suafilha,aquemgarantimosaadmiraçãonossaporseupaieporela,comsuamãe.
Ambasnosdãoodireitodevivermosemjúbilo,contidonaslágri-mas,estediaqueDeusfez,esperançadosquetodosnosvoltaremosareencontrar,porque,comogarantiuCristoaosdiscípulos,“Euvouadiante,apreparar-vosumlugar”.Comopoeta,bempodemosdizerdePinaMartins:“NamãodeDeus,nasuamãodireita,descansouafinaloseucoração”!DemosgraçasaDeus!
Lisboa,BasílicadaEstrela,aos30deAbrilde2010.
AIRESA.NASCIMENTO
* Tendosurgidodúvidasquantoaotítuloeconteúdodadissertaçãofinaldelicencia-turadeJ.V.PinaMartins,poisnoCurriculum Vitaeporeleelaboradofiguraqueselicen-ciou“em1949comumadissertaçãosobreA miséria e a grandeza do homem em «Les Pensées» de Pascal”,enoregistoprimitivodaUniversidadedeCoimbraconstavaquenoactodeconclusãoapresentaraoutra,quetiveracomotítuloA ideia de Deus e da morte na poesia de Antero(1948),recorremosasuaesposa,DonaPrimulaMartins,quenosrepôsasucessãodosacontecimentos:oresultadodoprimeiroacto(1948)nãoosatisfez,peloquerealizouumaoutratese,queapresentounoanoseguinte,estaconsagradaaoestudodePascal,quepassouaconstardoseuCurriculum Vitae.
OLhARESDEJANO
Modelodeinvestigador,professoruniversitárioeacadémico–tam-bém,comodirectordeserviços–,eraoProfessorPinaMartinsumhumanistaediscreto,emsifazendoconvergirluzesenomescimei-rosluso-ítalosdeTrezentosaSeiscentos,comepisódicasincursõesnosséculosseguintesouemautoresdeoutrasgaláxias.ResumiessaspaixõesnoDicionário Cronológico de Autores Portugueses(vol.5,2000)enovol.3deActualização(2003)doDicionário de Literatura,dirigidoporJacintodoPradoCoelho,emcujasprimeirasediçõesseentreviacompendiosolaborsobreahistóriadolivro,tipografiaeerasmismo,entreoutrosassuntos.Vê-lo,emMaiode1986,nasecçãodemanus-critosdabibliotecadaAcademiadasCiênciasdahungria,acariciandovelinodoséculoXIII,eracomoassistiràRevelação.
NessanossasemanadeBudapeste,percebi,atrásdaimagemseveradobibliófiloecuradorirrepreensível,aboadisposiçãodeconversa-dorsoltosobreamigoseopaicomovido,quando,comaMulher,visitouaminhafilharecém-nascida–la piccolina,porquempergun-tavaregularmente.PorqueasuaprópriafilhaEvaMariadominavaaslínguasugro-fínicas,tantobastouparanoscumpliciarmos(comumprimeiroalmoçoporeleorganizadonaFundação)no lança-mentodohúngaronaFaculdadedeLetrasdeLisboa,ondeopro-fessorcoordenou,antesdesejubilar,anossacomumdisciplinadeCulturaPortuguesa.
Ficammágoas:seoestudiosoeMestrepontificam,jáoautordeUtopia III(1998),disfarçadoemMiguelMarkhytlodey,requeria
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outraatenção.QuantoaoDuarteMontalegredemeiadúziadetítu-los,desdeaestreialíricaemvolume(1941),tãocapazdenosdarcáli-doseinesperadosversosdeamor(recordoasérie“PoemadoBeijoCompreendido”,emAltura:Cadernos de Poesia,n.º1,Porto,Feve-reirode1945),seriaaconselhávelantologiá-lo,conhecendomelhoresseoutroolhardeumJanotambémdonossotempo…ERNESTO
RODRIGUES
DIÁLOGOINTERROMPIDO.EVOCAçãODOPROFESSORPINAMARTINS
Aocontráriodetantosdosamigoscomquempartilhooprofundosentimentodeperdarevividonomomentoemqueescrevoestetes-temunho,eunãofuialunadoProfessorPinaMartins.Nempodiatersido,dadaaquasecontemporaneidadedanossapassagemcomoestudantespelaUniversidadedeCoimbra.Tivemos,porém,profes-sorescomuns,dosquais,maistarde,viríamosafalarcomigualadmi-raçãooucomidênticabenévolaantipatia.
Foi,defacto,maistardequeeuconhecioProfessoremeforamoferecidasasoportunidadesparacomeleconvivereaprendertantascoisasquenosanoslongínquosdaminhalicenciaturanemsequersuspeitavaviralgumdiaadescobrir.
Recordeijá,na“JornadadehomenagemaoProfessorPinaMar-tins”promovidapeloDepartamentodeLiteraturasRomânicas,aprimeiraocasiãodeconvívio intelectualcomohomenageado,proporcionadapelamostracamonianadeRoma.Conhecientãoobibliógrafomodernoque,comerudiçãoesensibilidade,descre-viaasbelasediçõesporeleseleccionadasnoacervodaBibliotecadell’AccademiaNazionaledeiLinceieCorsinianae,comconheci-mentoprofundodostextosedosautores,chamavaaatençãoparaovalordasfontesitalianasdapoesiadeCamões.
Afamiliaridadecomos livrosantigos,acompetênciacientíficacomquePinaMartinsescolhia,manuseavaedescreviaosesplêndidosexemplaresqueforamexpostosnessaMostraesobretudooenlevocomquedelesdiscorriaduranteasconversasdaquelesfecundosdias
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detrabalhonoPalazzodeViadellaLungara,revelavamjáoamor librorumdoverdadeirobibliófilo.Mas,paradescobrirarequintadabibliofiliadePinaMartins,eranecessárioentrarno“santuário”dasuabiblioteca,vernasmãosdopossuidorumpreciosoincunábulo,umaaldinaminúscula,umpesadovolumein-folioou,abertanasuasecretária,areproduçãofac-similadadeumcódiceinsigne,ouvi-lodissertaracercadabelezagráficaeiconográficadeumlivroraro,dovalorsimbólicodeumaencadernaçãosumptuosa,daimportânciaquedeterminadolivroantigotinhatidoparaosseusestudos.
Tive,muitasvezes,oprivilégiodeserrecebidana“BibliotecadeEstudoshumanísticosdeLisboa”(assimadesignava,apartirdecertaaltura,oseuproprietário),mas,paraosmeustrabalhos,nuncapreciseideconsultaralgumadaspreciosidadesquemeforamapre-sentadas:modestamedievalista,omeuinteresseiaprimordialmenteparaosinstrumentosdepesquisaeparaosensinamentosqueoMes-tremeprodigalizava.Équeobibliógrafo,bibliófiloebibliólogoPinaMartinsera–comoasuabibliografiaeoprestígiointerna-cionalalcançadooatestam–umsábioemestudosdohumanismoeRenascimento,alémdehumanistanamaiscompletaacepçãodapalavra.Ora,nosanosfelizesemque,naBibliotecaApostólicaVati-cana,eupude“conviver”comcancioneirosprovençais,franceseseitalianos,commiscelâneasemqueseacotovelavamapontamen-tosdomaisvariadoteor,tavole,correspondênciadehumanistasefragmentosdepoesiaouprosa,convivitambém,decertomodo,comalgunsdosautorespresentesnalivraria-scriptoriumdePinaMar-tins.Dessesautores,euguardavasobretudoamemóriadasuapre-sençanabibliotecaenosestudosdeumhumanistacoleccionadoreinfatigávelleitoreanotadordecódices,aquemaliteraturapor-tuguesadeveapreservaçãodapartemaisconsistentedoseupri-meirocapítulo(refiro-me,evidentemente,aAngeloColoccieaoscancioneirosdalíricagalego-portuguesaporelemandadoscopiar).NasconversascomohumanistaPinaMartins,Coloccifuncionavacomotrait d’unionaligarosnossosinteresseseasuscitardapartedoProfessoreruditasinformaçõesquealargavamouaprofundavamomeuconhecimento.
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Concretizando.Quando,apropósitodatavola colocciana “Autori portughesi”,eufalava,comummistodeentusiasmoeespanto,dométododetrabalhodohumanistaiesinoesublinhavaasuamaniade intavulare, referindo-meàs intermináveis listasdevocábulosefrasestiradasdePetrarcaoudeFrancescodaBarberini,aoselencosdenomesdelivroseautores,aosseusdesordenadosapontamentoslinguísticosmisturadoscomnotasaide‑mémoireemquesurgiamosnomesdePontanooudeBembo–páginasepáginasmanuscritasquepenosamenteeutentaradecifrarembuscadedadosúteisparaaspesquisasqueestavalevandoacabo–,PinaMartinsiluminavaestasrecordaçõesdasminhasleiturascomoseusabersobreaculturaita-lianadoRenascimento.
Porexemplo,osapontamentoslinguísticosdeColocci,queparamimsótinhamsignificadonamedidaemquemeajudavamainter-pretarasnotascoloccianasaoCancioneiro da Biblioteca Nacional,eramafinaloreflexodaanimadadiscussãodoshumanistas italianosemtornodaquestãoda“línguacomum”:aessepropósito,PinaMartinstraziaàcolaçãoasProsedeBembo,mostrava-meoexemplardaedi‑tio princepsquetinhanasuabibliotecae,enquantodefendiaaposi-çãolinguísticadoCardealveneziano,maispuristaqueColocci,real-çavaamatrizpetrarquistadasopiniõesliteráriasedaprópriapoesiadeBembo,semdeixardelembraroqueasRimedePetrarcadeviamaospoetasstilnovistasemesmoaosSicilianos,corroborando,destemodo,aimportânciadosíndiceseapontamentosqueColocciabre-viadamenteintitulara“Siculi”,“GuidoGuinicelli”,“Petrarca”.EntreColoccieBembo,PinaMartinsmanifestavamaioradmiraçãoporesteúltimo,atraindoaminhaatençãoparaosversosdeSádeMirandaemqueopoetaportuguêscitaosAsolanie,naesteiradoautordasProse [...] della volgar lingua,relacionaPetrarcacomosProvençais;omeuentusiasmoporColocciassentavanumacaracterísticaúnicadasuaactividadedehumanista:équeoseuinteressepelapoesiadasOrigensabarcaratambémosAutori portughesi,dosquaisparecetersidoestudiososolitário.
Outroexemplo.Ainvestigaçãoquerealizeiàvoltadeumtal“daRibera”citadoporColoccinumlacónicopro‑memoria levou-me
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aproporaidentificaçãodestepersonagemcommonsenhorAntó-nioRibeiro,camareirodoPapaefielservidordobispoD.MigueldaSilva,que,nessesanos(1515-1525),eraembaixadordePortugaljuntodospapasMedici.PinaMartinsconheciamuitomelhorqueeuoambientedaCúriaromanaedaRomaeruditadeQuinhentos,comassuasreuniõesliteráriasemquebrilhavamhumanistasitalianoseestrangeiros,entreosquaisalgunsportuguesescomoD.MigueldaSilva,aquemCastiglionededicouIl Cortegiano.Daíqueascon-versascomoProfessorfossem,paramim,ocasiõesde“encontro”,nãosócomessesliteratoseeruditosdopassado,mastambémcomosestudiososque,naactualidade,delessehaviamocupadonosseustrabalhos,que,naturalmente,euacompanhavacominteresseedosquaismefalavaPinaMartinscomapreciaçõesquetraziamsemprealgumainformaçãonova.
Destesedeoutrostemasafinsseentretecerammuitasdasnossasconversastelefónicas,notempoemqueeutinhaainda“activos”osrendimentosdapequenafortunaintelectualqueacumularaduranteosanosvividosemRoma,noconvíviocomprofessoresdaUniver-sidade“LaSapienza”,ounoscontactosesporádicoscomestudiososaquem,porvezes,recorrinaVaticana.Nosúltimosanos,PinaMar-tinstelefonava-meapropósitodarealizaçãodealgumcolóquioouconferêncianaAcademiadasCiências,aproveitandoaoportunidadeparafalardavidadaAcademia;motivadopelaleituradealgumtraba-lhocujaautoriaeupodiaconhecer,lamentavaafaltadesobriedadeederigor,odesconhecimentodas fontesquecaracterizammuitadacrítica à la mode;falava-metambémdassuasúltimas“fadigas”–apublicaçãodaUtopia III(“emco-autoria”comMiguelhytlodeu),acercadaqual,sorrindo,medavapistasparaadecifraçãodealgunsnomesfictícios,eoprojectodaediçãocríticadotextolatino,comtraduçãoportuguesa,daUtopiadeThomasMore,aoqualdecidiraassociaronomedoProfessorAiresA.Nascimento,cujacompetên-ciacientífica,amplamenteafirmadanomundodosestudosdetextosdalatinidadeclássica,medievalehumanística,lhemereciaosmaio-resencómios,pelorigordafixaçãodotextoepeloprimordatra-duçãoparaalínguadeCamões.
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Apartirdecertaaltura,passeiaencontraroProfessorPinaMar-tins,nãonasuaesplendorosabiblioteca,masnoespaçomaisíntimodasuacasa,ondeaPrimula(essa,sim,minhaprofessoranoInsti-tutoItalianodeCultura)maravilhosamentemerecebiaemedelei-tavacomassuasconversas,emitaliano,recheadasdecultura,sabe-doriaebomsenso.OmutismodoProfessoriaganhandoterreno,masoseuacolhimentoafável,assuaselegantesfrasesdecortesia,aserenidadecomquerespondiaàsperguntassobreasuasaúde(“Nãomelamento!”,“Nonc’èmale!”),aparticipaçãonadegustaçãodoscháspreparadospelaraffinatadonadacasa,conseguiamamenizaradolorosaconsciênciadoseualheamento.Jáacamado,aindamos-travaouvirasnotíciasquelhedavaerespondiacommonossílabos,quando,aodespedir-meantesdeumaviagemaérea,lheperguntavasemedavaasuabênção(“Sì!”–respondeu-me,emitaliano,aindarecentemente).MaispertodasuapartidaparaacasadoPai,procureiromperoseusilêncioperguntando-lhesepensavaemnós,sepen-savanoseuamigoThomasMore:onomedoSantoquetantoamavadesenhou-lheumbrevesorrisonafaceemagrecida.
“Sóosmortospodemserevocados”dizEduardoLourençonumdosseusbelíssimostextosdiarísticos,para justificara invençãodamortedoseuheterónimo“TristãoBernardo”.AminhaevocaçãodoProfessorPinaMartinstalvezpretendaapenascontrariarainter-rupçãodeumdiálogoqueseprolongoupormaisdetrintaecincoanos,atéàsuamorte.ELSAGONçALVES
EVOCAçãODEJ.V.PINAMARTINS(NAMISSADE30.ºDIA,NAIGREJADASMERCÊS,AJESUS,APARDAACADEMIADASCIÊNCIASDELISBOA)
Antesdeprocedermosà“OraçãodosFiéis”,aconvitedopresidentedestacelebraçãodesufrágio,é-megratodizerumaspalavrasmuitobrevesemmemóriadeJoséV.dePinaMartins,quenóshoje,esque-cendotodosostítulosacadémicos,chamamos“nossoirmão”.
Foiumexemplodevidae,sobretudonaquiloquedizrespeitoaoquequisser,ummodelodeprofessor.OsprofessoreslidamcomumaarmaquesechamaaPalavra:éapalavraoquemaisusamosnosváriostempos;sobretudopertence-nosoexercíciodopoderdapalavracontraapalavradopoderquenãorespeitaosvaloresqueseprofessam.Elenisso foiabsolutamenteexemplare,curiosamente,dedicouavidaaoquechamouorefúgiodasuabibliotecaparaoconvíviocomtodososque,aolongodotempo,foramenriquecendoanossacircunstânciacomopoderdapalavracontraapalavradopoderquesedesviadosvalores.
Éporissoque,independentementedaféquecadaumdenóspro-fesse,ohomemquetemestavidaestásemprenomeiodenós:temosderecorrersempreaele.Estánasestantesondeestãooslivrosqueescreveu;estánasestantesondeestãooslivrosquerecolheu;estánamemóriadosdiscípulos;estánaaprendizagemqueproporcionouaoscolegas;estánoenriquecimentodasinstituiçõesqueserviu.
Naturalmente,dessas instituiçõesdestaca-se aAcademiadasCiências.Ora,omilagredas instituiçõeséqueotempopassa,oshomensmorremeasideiaspassamdemãoemmão,persistemparaalémdostempos.Éissoquelhesdáunidade.AsUniversidadese
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asAcademias sãooexemplodas instituições.Tambémsabemosqueasinstituições,hojeemdia,sofremgrandescrises,eafirmezadafidelidadeà instituiçãoé fundamental,paraultrapassaremessacircunstância,paraquepassemdegeraçãoemgeração.
Eledeuesseexemplo.E,senóshojetemosaquiumarepresentaçãotãoricadaAcademiadasCiências,éporquesabemosdessarespon-sabilidade.Équesabemosqueapalavradeleficou;etambémficouaobrigação,queédever,decontinuaroexemplodele.
Consideroqueanossavindaaquihoje,alémdospreceitosdafé,alémdaconfissãodafé,étambémdeagradecimentopelolegadoquenosdeixouequeépartedodeverquenóscumprimos,sabendoquecontinuaráconnosco.
Porissocontinuarácomasuafamíliaecontinuarácomaquelesque,degeraçãoemgeração,ovãoencontrarnapalavraqueficouescrita–atraçarocaminho,adefinirosvalores,aajudarnasnossasdúvidas e tambéma fortalecer asnossas esperanças.ADRIANO
MOREIRA
RECORDANDOJ.V.PINAMARTINS
AconvitedotradutordaUtopia, devodizeralgumaspalavrasapropósitodamortedeJoséVitorinodePinaMartins1.Nenhumaautoridademeconfereodireitodeestaraqui,apenasadaamizade,daadmiraçãoedealgummododeumacertacompanhiaintelectualquepartilheicomeledurantetodosestesanosdevidalongaparaele,paramim,massemprecurtaparatodosnós.Numadaspassagensmaisidílicas,bucólicas,doEvangelhosediz:“passemosparaaoutramargem”.OnossoamigoPinaMartinsjáestánessaoutramargem;enós,numamargemdessamargem,falandodelecomosedevefalarsempredumserhumano,e sobretudodaquelesque admiramosedeque fomos amigos.
FuicompanheirodegeraçãodePinaMartins,etenhoosentimentodequeestouaquimais falandoemnomedumageraçãono seucrepúsculo,muitadelajápartida,doqueempróprionomepessoal.Conheci-oemCoimbra,aindamal.Conheci-oprimeirocomopoeta,DuartedeMontalegre,emprimíciaspoéticasqueelenãogostavamuitodeevocar,masquenãooenvergonham,nemnaquelemomentonem,emuitomenos,hoje.Depois, segui-onas suasperipéciasdeLeitor,umdessesquevãoláparaforapregarapalavradaculturaportuguesa,sendoouvidosounãoouvidos,osmelhoressãosempreescutados–ascoisasnuncacaem,realmente,nosilêncio.
1 Estetextoétranscrição,realizadaporEvaMariadePinaMartins,filhadoextinto,eAiresA.Nascimento,sobregravaçãosonoradaintervençãofeita,apedidodopresidentedacelebração(P.eAiresA.Nascimento),porEduardoLourenço,nofinaldasexéquiaslitúrgicas de José Vitorino de Pina Martins que tiveram lugar na Basílica da Estrela.
In memoriam 177
PensoqueumadascoisasmaisextraordináriasqueaconteceramaJoséVitorinodePinaMartinsfoiasuaidaparaaItália.TivequaseaimpressãodequeaItáliaotinhareveladoasimesmoesobretudodequeo tinhaentusiasmadopara serumadmirador,quaseumcompanheiroforadotempo,daqueletemposemtempoquenóschamamosoRenascimento,dequeele foientrenósnãosóumeruditonotáveledequedeixoutestemunho,aquededicouoseulaborintelectual,sobretudoaosgrandesnomesdeErasmoedePicodellaMirandola.Foiaíqueencontroutambémamulherdasuavida,aquipresente.EessaItália,pelomenosaquelaItáliadaqueletempo,foiparaeletambémcomosedescobrisseumaoutradimensãoàculturaeuropeia,umadimensãodetolerânciaedeliberdade,quenãoeramuitoadaatmosferapátriadaquelaépoca.EaíseapaixonouporaquelesMestresefectivamentenãosódaluzdoRenascimentomasdumatolerância,dumaliberdadedeespírito.
QuandosefrequentaErasmo,nãosepodeficarimuneaessamissãode livrepensamento,de liberdade,de ironia(enãoporcontadecepticismo),semconsequênciasesemefeitosdemolidores,masemfunçãodequalquercoisaqueeradefactooidealverdadeiramentedeErasmo,essafamosafilosofiacristã,nãotantoporserfilosófica,masporqueoCristianismopensavanessaalturaaindapoderpôrafilosofiaaoseupróprioserviço.
Jovem,PinaMartinsleucompaixãooautordosPensées.AquelehomemquepareciaunicamenteinteressadopelaMusapropriamenteeruditamaisdoquepelaMusadefilosofia,daangústia,etc.,dedicouaopensadorcristãomaisrepresentativodamodernidade,quenóschamamosPascal,umadassuasprimeirasobras.Epensoqueissoomarcouparasempre.Sobretudoaqueleaspectode“condottiere”quasequefazlembrarafigurafrancesaquesechamouAndré Suarès1,umaespéciedepaladinodoRenascimento.
1 André Suarès (pseudónimo de Félix-André-Yves Scantrel, 1868-1948), poeta ecríticofrancês,foiumdosquatropilaresdaNouvelle Revue Française,aoladodeAndréGide,PaulClaudelePaulValéry.Entreassuasobrasconta-seVoyage du condottiere: Vers Venise, Fiorenza, Sienne la bien‑aimée,1910,emquerecolheassuasimpressõesdeumaviagemporItáliaem1893(notadeA.N.).
178 Estudos Italianos em Portugal
haviaemPinaMartinsumarquase quixotesco, oqueeleeranavida,tolerante,masigualmentecapazdedefenderrealmenteassuasideias,semteromínimorespeitohumano,nosentidohabitualdotermo,desecalardiantedaquiloquenãolheparecianemjustonemverdadeiro.
Alémdetudooquetodosnóssabemos,edaquiloqueosjornaistêmsublinhado,chamando-lhe“humanista”,eleacompanhoutodaasuavidadumapreocupaçãobibliófiladedicadasobretudoàépocadorenascimento.Edaínasceuumabibliotecaúnicanocontextoculturalportuguês,umamaravilhosabiblioteca,quemereciaelasó,senãoandássemosdistraídos,queelafosseocentro,ocoraçãodequalquerinstitutodoRenascimentoentrenós,porqueérealmenteumaobraabsolutamenteadmirável.Esperoqueospoderespúblicos saibamqueexisteemPortugalqualquercoisaquenãotemcomparaçãoempartenenhuma,anãosernasgrandesbibliotecasdomundo.EissoéobradePinaMartins.Eaquiloqueelelegacomovalornãoéodetroca.
Mas,omaisimportanteéasuaprópriaobradecultor,depensadordessemomentoextraordinárioquecontinuaaindanamemóriadaculturaeuropeia,esobretudohojequandotantasnuvensseacumulamsobreela,esselugarsolar–qualquercoisadequesepensavaqueahumanidadeiaentrarnumanovaera,numaeraqueoséculoXVIIIpensouchamarépocadasLuzes,masquecontinuasempreaquelamisturadeluzetrevaqueprovavelmentecaracterizaahistóriadahumanidadeecaracterizarásempre.
SantoAgostinhoescreveuacertaalturaque todosmorremoshumilhadospelavida,comoseprecisássemosdumaespéciedeliçãoparaqueunicamenteoessencialsepreservasseeficasseincorruptível.PinaMartinsnãofoipoupadoàsagrurasnormaisdavida,mashojeoquecontaéessaespéciedeaura,deaurasimbólica,masaomesmotemporeal,doamorqueeleconsagrouàquiloquemuitospensamqueéumuniversomuitoparticularerestrito,quaseumaespéciedemania,ogostodaerudição.Masaerudiçãoéaglóriadainteligênciaedacultura,emtodoocaso,daculturaquenósconsideramoscomoamordaquiloquehádemaisimportantenanossatradição.
In memoriam 179
Aerudiçãotalcomoacultivouesoubecultivaréumaespéciedeficçãodeoutraordemadmirável.Nessaoutramargemondeagoraestá,vaiterotempotodoporcontadeleparareleraquelestextosde leitura infinitaque já foram,nestavida,a suapaixãoeamor.EDUARDOLOURENçO