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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA COORDENAÇÃO DE PESQUISA Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica PIBIC Despersonalização dos negros nos serviços de saúde: Desumanização e racismo Bolsista: Sara Ryzia Andrade Silva Departamento de Psicologia Matrícula: 201310031735 Orientador (a): Professor Dr. Marcus Eugênio Oliveira Lima Responsável: Grupo de Pesquisa Normas Sociais, Estereótipos, Preconceitos e Racismo. Departamento de Psicologia /UFS salas 115-117, Didática 1. http://gruponsepr.wordpress.com/ Relatório Final Período Agosto de 2015 à Julho de 2016 Este projeto é desenvolvido com bolsa de iniciação científica FAPITEC/SE São Cristóvão/SE 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

COORDENAÇÃO DE PESQUISA

Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC

Despersonalização dos negros nos serviços de saúde: Desumanização e racismo

Bolsista: Sara Ryzia Andrade Silva

Departamento de Psicologia

Matrícula: 201310031735

Orientador (a): Professor Dr. Marcus Eugênio Oliveira Lima

Responsável:

Grupo de Pesquisa Normas Sociais, Estereótipos, Preconceitos e Racismo.

Departamento de Psicologia /UFS – salas 115-117, Didática 1.

http://gruponsepr.wordpress.com/

Relatório Final

Período

Agosto de 2015 à Julho de 2016

Este projeto é desenvolvido com bolsa de iniciação científica FAPITEC/SE

São Cristóvão/SE

2016

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Resumo

Este trabalho traz um apanhado bibliográfico sobre fenômenos frequentes nas interações

sociais: o racismo, a desumanização, e a despersonalização. Remonta um caminho já iniciado

por pesquisas anteriores com esses temas e tem por finalidade abordar mais um conceito, a

personalização, enquanto necessidade nas práticas de saúde e segurança pública. Para tal, foi

feita uma pesquisa empírica com 73 estudantes de cursos de saúde da Universidade Federal de

Sergipe (UFS), da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e de faculdades particulares do

estado de Sergipe, com a intenção de averiguar a importância da personalização e sua provável

eficácia à humanização.

Palavras-Chave: Racismo, desumanização, despersonalização, personalização.

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Sumário

1. Introdução.............................................................................................................................5

2. Personalização: a questão do ser “pessoa”.............................................................................6

3. Despersonalização, e conceitos afins.....................................................................................8

4. Despersonalização nos serviços de saúde ............................................................................11

5. Humanizar ou Personalizar?.................................................................................................15

6. Método..................................................................................................................................17

a. Participantes..............................................................................................................17

b. Procedimento.............................................................................................................17

7. Resultados e Discussão.........................................................................................................20

8. Considerações ......................................................................................................................25

Referências Bibliográficas........................................................................................................27

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Índice de Tabelas

Tabela 1....................................................................................................................................18

Tabela 2.....................................................................................................................................21

Tabela 3.....................................................................................................................................21

Tabela 4.....................................................................................................................................22

Tabela 5.....................................................................................................................................23

Tabela 6....................................................................................................................................23

Tabela 7.....................................................................................................................................24

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1. Introdução

Não é difícil encontrar o termo racismo sendo explicado de maneira vaga e pouco fiel à

verdadeira demonstração de hostilidade entres grupos, que historicamente se presenciou no

mundo. A fim de designar os sentimentos e atitudes negativas de um grupo frente a outro em

decorrência de crenças raciais socialmente construídas, o racismo é hoje um dos problemas

mais analisados na psicologia. Desde o século XX é possível traçar uma linha narrativa com

fatos de impacto mundial na percepção de diferenças grupais, como também de movimentos

racistas e discriminatórios, que almejavam a dita “purificação racial”.

As ideologias racistas tiveram ascensão inicialmente nos Estados Unidos sulistas, em

decorrências de os cidadãos sulistas considerarem os negros indignos da mesma cidadania a

eles concedida, e por isso esboçaram e efetivaram leis que os impediam de votar. Durante bom

tempo indivíduos negros e brancos tinham que viver separados, e aqueles que desobedecessem

a essa ordem comumente eram levados a morte por meio de rituais de tortura. Era essa a maneira

mais objetiva de fazer negros e brancos entenderem que não deveriam viver juntos, muito

menos casar entre si. Esse foi apenas um dos momentos em que na história da humanidade

expressões declaradamente racistas outorgaram sofrimento à vida das pessoas. A situação

estadunidense na época de Jim Crow foi o marco inicial, que deu passagem para a pior de todas

as representações de racismo: a Alemanha nazista liderada por Adolf Hitler. Nesta não somente

pessoas isoladas eram torturadas e mortas, mas um grupo étnico inteiro.

A repulsa á movimentos como estes produziu a ascensão do processo de desmitificação

das ideologias racistas, como era o caso da eugenia. A partir de anos de luta e conquistas legais

sobre o racismo nos Estados Unidos, na Alemanha, e também na África do Sul pôde-se

acompanhar uma ruptura na percepção mundial acerca das questões segregacionistas, e um

posterior interesse pelo desenvolvimento de ideias mais humanitárias, tudo isso com o auxílio

de estudos científicos. Após a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto as formas mais

explícitas e agressivas de racismo caíram em descrédito. No entanto, o avanço para acabar com

o racismo biológico tornou-se uma brecha para que outras formas de racismo e desumanização

pudessem vir à tona, como é o caso do racismo baseado em diferenças culturais.

Atualmente não só nesses países, mas também em todo o Ocidente, o racismo e seus

diferentes tipos são a causa primordial de guerras e conflitos entre povos. O que era racismo

biológico tornou-se uma imensa gama de subtipos do fenômeno, que se apresentam de forma

mais velada. Para exemplificar os avanços em estudos científicos acerca do tema verifica-se a

coexistência de algumas variações do racismo, a saber: a desumanização e a despersonalização.

Ambas, formas de considerar os componentes do outro grupo (exogrupo) como inferiores aos

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membros de nosso grupo de pertença (endogrupo) seja por características consideradas em nível

de “humanidade” ou características relativas à “pessoalidade” do grupo inferiorizado. Todo o

conjunto dos fenômenos tente a formar um leque considerável de contextos de desigualdade

entre os grupos humanos, o que corrobora para a necessidade de estudos que possibilitem a

compreensão das relações e, consequentemente, de seu funcionamento interno e externo.

O fato a ser analisado nesse projeto é o de um dos fenômenos já mencionados, que é a

despersonalização. Este se define de maneira simplória, como sendo um desinteresse por parte

de determinado grupo, em atribuir aos membros de outro grupo características de pessoalidade,

ou sequer uma dimensão psicológica. Isto quer dizer que na despersonalização há a negação de

que o outro é uma pessoa, de que este possua idiossincrasias. Em consequência a isso ocorrem

legitimações a atos violentos, discriminatórios e de menosprezo. Dentre os ambientes, onde se

verifica a despersonalização, estão as instituições de saúde e de segurança pública. Na realidade

brasileira podem ser observados diariamente casos de despersonalização por parte dos

profissionais de saúde em avaliar seus pacientes. Percebe-se esse desinteresse de forma mais

acentuada quando direcionado aos grupos minoritários (negros, mulheres, pobres, entre outros).

Em decorrência da análise de estudos anteriores a este com relação à despersonalização,

tanto em contexto de saúde como de segurança pública, verificou-se a necessidade de estudar

o fenômeno oposto, ou seja, a personalização. O presente estudo tem por objetivo geral analisar

a personalização dos pacientes e suas consequências para a eficiência da tarefa diagnóstica e

clínica nos serviços de saúde. Analisa-se ainda o efeito da cor da pele dos pacientes na

personalização. O objetivo específico é verificar a significância de personalizar ao invés de

humanizar no atendimento clínico, sendo esta primeira atitude compreendida como mais eficaz

e apropriada para o desenvolvimento de melhorias nas relações entre profissionais e usuários

dos serviços de saúde em geral. A meta deste trabalho é criar elementos teóricos e empíricos

que embasem um programa de Personalização dos pacientes e testar no Sistema Único de Saúde

(SUS).

2. Personalização: a questão do ser “pessoa”

O dicionário Michaelis traz como definição de pessoa a ideia de “criatura humana”,

“personagem”, ou “toda entidade natural ou moral com capacidade para ser sujeito ativo ou

passivo de direito, na ordem civil” 1 . Ou seja, pessoa é um ente dotado não somente de

1 Extraído de http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-

portugues&palavra=pessoa em 12/01/2016

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humanidade (características comuns com os outros de sua espécie), mas também de

individualidade, esta por sua vez construída na base sólida das relações sócio-histórico-

culturais. Segundo o dicionário de Filosofia de Mora (2001) o termo vem do latim persona, que

tem o mesmo sentido da voz grega prósopon, que significa máscara - era o termo que designava

a máscara que cobria o rosto de um ator enquanto atuava.

A fim de compreender o sentido do que é ser pessoa e do que, portanto, seria o fenômeno

da personalização, é interessante conhecer conceitos diversos acerca do termo pessoa, e porque

ser pessoa nos distingue enquanto ainda seres humanos. Xavier (2000) em uma revisão de

literatura bastante abrangente traz desde o conceito filosófico até o conceito bioético e jurídico.

Segundo o autor, para a religião pessoa é criação definitiva de Deus, para as ciências humanas

é elaboração mutável e progressiva, e para o Direito é ente físico e coletivo encarregado de

direitos e deveres (Xavier, 2000).

Para outros autores o que nos diferencia realmente da humanidade é a nossa

pessoalidade, é ela que nos faz diferentes mesmo em nossa igualdade humana (Ikäheimo &

Laitinen, 2007). Eles exemplificam trazendo situações hipotéticas que fazem-nos refletir essa

questão. Se, por exemplo, recebermos a visita de extraterrestres e estes estiverem em busca de

alimento, supõe-se que faremos apelo à nossa pessoalidade e não a nossa humanidade, pois

enquanto humanos seriamos um prato cheio e suculento com proteínas e nutrientes vitais, mas

enquanto pessoa seriamos parte do “nós” que constitui a interação entre humanos e seres

extraterrestres (Op. Cit.). Afinal de contas “pessoas têm outros pessoas para o jantar como

convidados, não como a refeição” (p. 9). Pode-se ainda fazer alusão a que também ocorre de

pessoas atribuírem pessoalidade a seus bichinhos de estimação. Certamente não é incomum

verificar seres humanos que preferem conversas com cachorros e gatos ao invés de outros

humanos. Isso se deve por ser a personalização um fenômeno de atribuição de idiossincrasias e

caráter psicológico aos seres. Não se pode humanizar os animais, mas as vezes acontece de

podermos pessoalizá-los.

Segundo Lima (2015) a personalização é um processo, que não nasce conosco, mas que

é moldado a partir do momento em que compartilhamos valores, sentimentos, etc. Ao

personalizarmos atribuímos valor social ao indivíduo ou grupo com os quais convivemos. Esse

interesse parte da convivência social e pode estar também relacionado à história cognitiva de

cada um, pois somos diariamente produtores de esquemas, estereótipos, julgamentos e

impressões acerca de nosso grupo de pertença (endogrupo) e do exogrupo. Dessa distinção entre

humanidade e pessoalidade é que se compreende a ideia que podemos ao decorrer da vida

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continuarmos humanos, mas moldarmos nossa pessoalidade (Lima, 2015), isso em detrimento

da bagagem social que vai nos sendo agregada com as experiências vividas.

3. Despersonalização, e conceitos afins

A despersonalização é um fenômeno de extrema importância, porém necessita de

comparação e diferenciação com conceitos afins. Apesar de mais ampla que a desumanização

e o racismo, é pouco estudada pela psicologia social. Faz-se, portanto, útil compreender cada

fenômeno para assim verificar a relação entre eles.

Existem muitas definições para racismo. Primordialmente não há dúvidas de que só se

pode falar de racismo ao pressupor a ideia da existência de raças, e de diferenças essenciais

entre os seres humanos. Segundo Barbujani (2007) usa-se biologicamente o termo raça para

distinguir diferentes indivíduos dentro de uma mesma espécie. Supondo-se a existência de

raças, produz-se uma naturalização dos fenômenos, dentre estes, a vida social. Essas diferenças

passam a ser tomadas como naturais e explicativas de diferenças nos âmbitos pessoais, cultuais

e sociais (Guimarães, 1999). Guimarães ainda nos esclarece que cada tipo de racismo só pode

ser compreendido a partir da própria história. E é em termos históricos que conhecemos as

representações racistas, desde os Estados Unidos com sua antiga política de segregação entre

brancos e negros, a Índia onde se classificam as pessoas por castas (umas superiores às outras),

a Alemanha nazista do século XX que foi palco de milhões de mortes, a Alemanha com grupos

neonazistas clandestinos atualmente, Israel onde até assiste-se a uma guerra declarada entre

árabes e palestinos2, até nosso Brasil, país onde se pregou até cerca época o discurso da

democracia racial, que hoje se sabe ser um mito.

O racismo também pode ser compreendido enquanto uma prática preconceituosa no que

concerne a um grupo achar que outro difere dele de maneira permanente e que não se pode

ultrapassar, como também de forma mais prática pois é esse sentimento de diferença que

fornece uma base “racional” para que um grupo use de poder sobre outrem (Fredrickson, 2002).

Há autores que compreendem o racismo também enquanto práticas que se utilizam da ideia de

raça para desqualificar e subordinar grupos uns aos outros, o que influencia na relação social

entre estes (Seyferth, 2002). Todos esses conceitos se relacionam com o utilizado por Lima

(2002) segundo o qual o racismo é uma forma de hierarquizar e inferiorizar os indivíduos e

grupos, que são definidos como diferentes com base numa diferença física externa, seja ela real

2 Extraído de http://top10mais.org/top-10-paises-mais-racistas-mundo/ em 07/01/2016

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ou imaginária. Os grupos a partir de representações sociais sobre outros grupos tendem a

naturalizar ou biologizar as diferenças.

Analisado o que é racismo, partimos para o conceito de desumanização. Segundo

Haslam (2006), a desumanização é um fenômeno que ocorre quando determinado indivíduo ou

grupo atribui menos traços humanos a outro, isto é, quando não atribuem a estes traços relativos

a civilidade, socialização, moralidade, entre outros. Para o autor essa desumanização se dá em

dois níveis: a desumanização animalesca, que é a atribuição de características animais aos

indivíduos; e a desumanização mecanicista, cujo pressuposto é perceber o outro como objeto

ou máquina. Em concordância Lima (2015) reflete que a desumanização seria a percepção dos

outros indivíduos como não possuidores de traços característicos do grupo humano.

Desumanizar refere-se à atitude de negar a humanidade a outrem, principalmente quando este

pertence a uma minoria. Isso explica porque os índios foram veementemente taxados de

selvagens e bárbaros pelos portugueses quando estes chegaram às terras brasileiras. Ao serem

percebidos como um grupo diferente e desprovido de cultura, os portugueses passaram a

desumanizá-los, pois baseavam suas ideias segundo os valores e costumes distintos que os

índios possuíam (Petean, 2012).

O ato da desumanização consiste em não atribuir humanidade ou a atribuir

características subumanas a um grupo (Teixeira, 2014). A desumanização remonta a épocas

remotas na história. Ao colonizar os nativos brasileiros, os povos europeus desencadearam

aquilo que podemos chamar de “etnocentrismo”. Para Lévi-Strauss (2008) este é um fenômeno

com bases psicológicas muito sólidas, com ocorrência derivada de situações onde nos vemos

assombrados por situações desconhecidas. Através de eventos marcantes como este, de

descobrimento de um povo antes jamais imaginado, com costumes e pigmentação da pele tão

diferente, foi possível o florescimento do etnocentrismo. Petean (2012) também enfatiza que

em função disso “(...) os Tupinambás foram vistos como bárbaros, bestializados, e submetidos

a uma política que culminou em genocídio (p. 8)”.

Haslam e Loughnan (2014) pontuam uma série de estudos sobre o fenômeno da

desumanização e o desenvolvimento teórico que ocorreu através destes. Abordam inicialmente,

as primeiras teorias construídas sobre desumanização (Kelman 1976; Staub 1989; Opotow,

1990; Bandura, 1999), depois incorporam ao texto os achados de quatros teorias: a teoria da

infra humanização (ver Leyens e cols., 2001, 2003, 2007); do modelo dual de desumanização

(Haslam, 2005, 2006, 2008); e as teorias The Stereotype Content Account e The Mind

Perception Account.

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As primeiras teorias sobre desumanização focavam nas manifestações mais evidentes e

flagrantes. Para as primeiras teorias a desumanização caracterizava-se fortemente por uma

negação de atributos humanos a determinados grupos (como emoções secundárias,

agressividade, consciência, entre outros). Posteriormente, outros estudiosos desenvolveram a

teoria da infra humanização, que buscava compreender as demonstrações mais sutis de

desumanização. Estes perceberam que as expressões de exclusão flagrantes de grupos com base

em ausência de características ditas humanas em determinado grupo, antes estudadas pelas

primeiras teorias, eram apenas as mais percebidas das formas de segregação. A infra

humanização viria a ser um conjunto de comportamentos de exclusão baseados na menor

proporção de atributos humanos de um grupo para outro. Em outras palavras, Haslam &

Loughnan (2014) apontam a existência de um subgrupo dentro da desumanização, chamado

infra humanização, e que a descoberta desse subtipo impulsionou novos estudos em psicologia.

Haslam (2006) então desenvolveu o modelo dual de desumanização, cuja intenção foi

compreender a atribuição de humanidade através da junção dos dois modos já estudados nas

primeiras teorias e na teoria da infra humanização. Ele propôs que a singularidade humana e a

distinção humano-não humano são duas possibilidades distintas, porém validas de compreender

a natureza humana (Haslam & Loughnan, 2014). No quadro proposto pelo autor esses dois

significados da humanidade são possíveis e não é necessário especificar um deles para estudar

as relações humanas. Dessas formas surgem duas maneiras de desumanizar, uma voltada à

infringir a singularidade do homem (desumanização mecanicista) e outra à humanidade

propriamente dita (desumanização animalesca). A teoria dual de desumanização, portanto, é

mais ampla e abrangente.

A teoria terceira teoria denominada The Stereotype Content Account foi desenvolvida

por Harris e Fiske (2006) e diferencia-se das outras por não proceder de uma definição explícita

de humanidade. Ela postula que a desumanização ocorre quando a rede neural que sustenta a

cognição social (por exemplo, o córtex pré-frontal medial, sulco temporal superior) falha para

ativar de forma normal quando um alvo humano é percebido. Para essa teoria existem alguns

tipos de alvo que são mais susceptíveis de ser desumanizados, com base no teor estereotípico

(Haslam & Loughnan, 2014).

A quarta teoria denominada The Mind Perception Account desenvolvida por Waytz,

Gray, Epley e Wegner (2010) atribui à mente duas entidades básicas: A agência e a experiência.

A primeira estaria relacionada a capacidades mentais como pensar, autocontrole, comunicação,

e distingue os humanos dos animais não-humanos, ao passo que a segunda inclui atributos como

emoção, consciência e personalidade que distinguem os humanos dos robôs e objetos

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inanimados. Para essa teoria a desumanização seria uma negação da mente ou desmentalização

para caracterizar determinados grupos (Haslam & Loughnan, 2014). Essas foram no decorrer

do tempo as principais teorias desenvolvidas sobre desumanização e as que também

contribuíram para o desenvolvimento de outros estudos sobre um novo construto, a

despersonalização.

A despersonalização pode ser definida como um “processo de negação dos atributos

individuais dos sujeitos” (Teixeira, 2014, p. 15), o que faz com que estes não sejam percebidos

enquanto pessoas, e sejam tratados com desinteresse por parte de outros indivíduos ou grupos.

Lima (2015) afirma que a despersonalização é um desinteresse avaliativo em relação ao outro,

isto é, o “outro não chega sequer a ser incluído para em seguida ser excluído como ocorre no

racismo”, ele torna-se uma “impessoa” (Lima, 2015, p. 178). Quando não se desenvolve

interesse por outrem é forte a tendência a não atribuir sequer sentimentos positivos ou

negativos, muito menos atenção satisfatória. O indivíduo em questão não se torna digno nem

de que sobre ele seja formada alguma impressão. Em concordância com as conceituações

anteriores, Araújo e Lima (2012) delineiam que na despersonalização “o outro não é percebido

como outro, não é possuidor de uma dimensão psicológica já que a ele não é atribuída uma

produção da alteridade” (p. 7).

A diferença entre humanização e despersonalização pode ser vista em diversas frases

cotidianas, como por exemplo, “ele/ela não é mais a mesma pessoa”. É difícil imaginar esta

frase em termos de “ele/ela não é mais o mesmo ser humano”, pois está segunda é desprovida

de veracidade e validade (Lima, 2016). Assim, é plausível compreender a humanidade como

algo que nos torna mais semelhantes, e a pessoalidade como algo que nos diferencia dos demais

humanos. Cada pessoa tem percepções, cosmovisões, anseios, e preferências diferentes, isso

influi na maneira como nos portamos frente ao mundo e às adversidades.

Racismo, desumanização e despersonalização são fenômenos interligados, pois operam

como predisposições a ações excludentes e discriminatórias. No entanto, neste trabalho

focamos a despersonalização, e consequentemente a necessidade de personalização em

contextos diários, especificamente, o da saúde.

4. Despersonalização nos serviços de saúde

Conforme a Constituição Brasileira de 1988 “todos são iguais perante a lei, sem

distinção de qualquer natureza” (C. F., art. 5º, caput). São também objetivos nacionais

“promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras

formas de discriminação” (C. F., art. 3º, III e IV). Em continuidade, no artigo 6° da mesma,

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verifica-se que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia,

o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência

aos desamparados (...)” (C. F., art. 6°, caput). Compreende-se a partir dos artigos da nossa

constituição, que o Brasil é um país que prega o ideal da igualdade entre os indivíduos, o que

leva-nos a ter os direitos assegurados por lei. No entanto, em diversos aspectos essa igualdade

não é passível de comprovação.

Inúmeros estudos tem levantado a variável “cor da pele” como importante na ocorrência

de desigualdades sociais no contexto de saúde (Inocêncio & Souza, 2014; Leal, Gama & Cunha,

2006; Lopes, 2005; Perpétuo, 2000; Sacramento & Nascimento, 2011; Travassos, Viacava,

Fernandes & Almeida 2000).

Inocêncio e Souza (2014) encontraram dados bastante objetivos no relatório Saúde

Brasil 2005, segundo os quais 62% das mães de nascidos brancos referiram ter passado por sete

ou mais consultas de pré-natal, enquanto entre as mães de nascidos indígenas, o percentual caiu

para 27%, e para as mães de nascidos pardos o percentual foi de 37%. Esses valores apontam

na direção de certo descompasso no atendimento satisfatório às gestantes pretas e indígenas que

para brancas. Verificou-se também que o risco de uma criança negra morrer antes dos 5 anos

por doenças infecciosas ou parasitárias (60% de chance) é maior que para uma criança branca.

Somado a isso o risco de um adulto negro morrer por causa externa é 56% maior que para um

adulto branco. Em caso, de a pessoa preta ser homem, esse risco sobre para 70%, sendo muito

maior que para um homem branco (Inocêncio & Souza, 2014).

No estudo de Leal, Gama e Cunha (2006) revelaram-se médias mais baixas de peso dos

recém-nascidos de mulheres negras do que de mulheres brancas (M= 3121,6 kgs vs M= 3185,9

kgs, respectivamente). A segregação por raça ou “cor da pele” não é a única causadora dessas

desigualdades e iniquidades no contexto de saúde, também a condição socioeconômica, e

consequentemente a acessibilidade à convênios particulares ou ao SUS, são preditores do

possível monstro do racismo institucional (Travassos, Viacava, Fernandes, & Almeida, 2000;

Lopes, 2005; Inocêncio & Souza 2014). Tudo isso nos confirma o que já salientou Lopes (2005)

ao constatar que “mulheres e homens; populações indígenas, negros e brancos ocupam lugares

desiguais nas redes sociais e trazem consigo experiências também desiguais de nascer, viver,

adoecer e morrer” (p. 1599).

Em um estudo realizado por Araújo e Lima (2012) foram analisadas as varáveis cor e

condição socioeconômica na despersonalização de mulheres no setor de ginecologia do IPES

(Instituto de Promoção e Assistência à Saúde) na cidade de Aracaju. Duas entrevistadoras

permaneciam na sala de espera do consultório da instituição, a fim de observar a entrada das

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pacientes e fazer registro da cor da pele e do tempo de duração da consulta. Após a saída das

mesmas, estas eram abordadas para a entrevista, que consistia em questões sobre dados

demográficos e opiniões acerca do atendimento, percepção de duração deste, qualidade com

relação a cuidados atencionais (ouvir, olhar), e também questões relacionadas aos motivos da

consulta. O tempo médio das consultas das 98 pacientes observadas foi de 298,4 segundos, ou

seja, as consultas duravam em média 5 minutos. A média do tempo de consulta das 33

participantes brancas foi a maior (349,51 segundos); em seguida as participantes pardas

(320,62) e as pretas (315,01 segundos). Essas diferenças, contudo, não foram significativas do

ponto de vista estatístico:

Dentre os relatos das pessoas que afirmaram ser o atendimento o médico “bom ou muito

bom”, 51 afirmaram que o médico era atencioso, conversava, fazia perguntas,

examinava, 24 (14,7%) afirmaram que eram bem atendidas, 19 afirmaram que o médico

esclarecia e tirava as suas dúvidas, 12 afirmaram que o atendimento era bom porque os

exames que lhes foram passados foram analisados ou apenas porque “o médico passou

exames”, 12 atribuíram características que remetiam ao profissionalismo do médico, tais

como preparado e prestativo (Araújo & Lima, 2012, p. 17).

Outro resultado que chama a atenção foi que boa parte das pacientes avaliaram o

atendimento como “muito bom”. Apesar desse dado contrário às hipóteses foi encontrada uma

correção negativa entre as variáveis “tempo subjetivo” e “avaliação do atendimento”, ou seja,

quanto mais bem avaliado o atendimento menor a percepção de tempo da consulta. Outro dado

muito interessante foi que mesmo o atendimento médico tendo sido bem avaliado pela maior

parte da amostra, foram as mulheres pretas e pardas que mais ficaram insatisfeitas e o avaliaram

mais negativamente.

Outro estudo, realizado por Leite e Lima (2014), ocorreu no Hospital Universitário (HU)

da Universidade Federal de Sergipe (UFS), com estudantes finalistas do curso de medicina

(sétimo ao décimo períodos). Procurou-se verificar a existência ou não de despersonalização

por parte dos estudantes no diagnóstico de indivíduos brancos ou negros e provenientes de dois

tipos de encaminhamento (SUS ou Convênio Particular). O estudo dividiu-se em três etapas.

Na primeira os sujeitos viam vídeos de pacientes com doenças específicas, e recebiam os

prontuários que continham os dados destes. A tarefa teve por objetivo verificar se os residentes

passavam mais tempo para avaliar brancos que negros. Na segunda fase, eles foram levados a

realizar uma tarefa de formação de impressões através do programa Inquisit. O objetivo foi

averiguar se era despendido um maior tempo na formação de impressões de alvos brancos que

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negros. A terceira fase foi uma tarefa de memória, onde foram mostradas fotos das faces de

brancos e negros, para que eles se recordassem das faces dos quatro pacientes vistos nos vídeos

da primeira fase. O objetivo foi verificar se eles se lembravam mais das fotos de brancos que

de negros. O resultado interessante desse estudo foi que realmente houve um maior empenho

de tempo na formação de impressão sobre as pessoas brancas que sobre as pessoas negras (fase

dois do estudo). Esse achado também alinhava um caminho de encontro à despersonalização

que desejamos estudar. Também caminha de encontro com a suspeita de uma necessidade maior

de personalização dos indivíduos em contexto de saúde.

Teixeira (2014), em sua dissertação de mestrado, realizou dois estudos na intenção de

averiguar os efeitos da despersonalização no contexto de saúde e sua relação com os processos

de preconceito explícito, infra humanização, desumanização, e racismo. Cabe aqui trazer alguns

dos resultados importantes que a autora encontrou. Em seu primeiro estudo, investigou a relação

dos conceitos já citados com a formação de impressões através do programa Implicit

Association Test (IAT). Neste participaram 49 estudantes de graduação da Universidade

Federal de Sergipe, sendo estes, 35 brancos e 15 negros. O estudo consistia em cinco fases. Na

primeira tarefa (primeira fase) percebeu-se que os estudantes, independente de sua cor,

avaliaram mais demoradamente os alvos brancos que os negros (média em milésimos de

segundo: M=1843. 76; M=1684. 85, respectivamente). Na quarta tarefa (quarta fase) foi

encontrado um efeito de que os estudantes levaram mais tempo avaliando fotos apresentadas

no bloco categorizado como compatível (Branco/Gosto – Negro/Não Gosto) do que avaliando

o bloco incompatível (Branco/Não Gosto – Negro/Gosto). Em continuidade, na quinta tarefa

(quinta fase) a autora encontrou correlações significativas entre despersonalização e infra

humanização, o que esclarece que quem é despersonalizado é também infra humanizado.

Em seu segundo estudo, que serviu como base para o estudo de Leite & Lima (2014),

ela encontrou resultados bem coincidentes com os achados no primeiro estudo. Mais uma vez

os estudantes demoraram mais tempo para formar impressões sobre os brancos que sobre os

negros (M= 1893.39; M=1620.68) (Teixeira, 2014). Os residentes também acertaram mais

fotografias de alvos brancos que negros, ou seja, personalizaram mais os brancos que os negros

(M = 2,50; D.P. = 0,90; M = 2,33; D.P. = ,65, respectivamente). Outro dado interessante foi

relacionado ao encaminhamento mais personalizado. Em uma das tarefas os estudantes

acertaram mais características relacionadas aos pacientes com convênio particular que do SUS,

independente da cor da pele. Mas cabe salientar que houve uma maior atenção ao diagnóstico

(atenção mais demorada) aos pacientes brancos do convênio particular. Todos esses estudos

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auxiliam na compreensão da efetividade da despersonalização, enquanto processo não

controlado da cognição, nas situações relacionadas à prestação de serviço de saúde (Op. Cit.).

5. Humanizar ou Personalizar?

Tanto no setor de saúde quanto no de segurança pública verificam-se necessidades ainda

a serem supridas no que diz respeito à interação entre atores sociais (profissionais de saúde em

geral, policiais) e a sociedade como usuária desses serviços básicos. No campo da saúde, desde

o surgimento do SUS tenta-se permear esse caminho com a ideia da política de Humanização.

Através disso já foram criados inúmeros projetos e também lançadas cartilhas que disseminam

e esclarecem essa política.

Segundo a cartilha do HumanizaSUS de 2008 o SUS se compromete com diversas

dimensões: prevenir, cuidar, proteger, tratar, etc. Por humanização entende-se “a valorização

dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde: usuários, trabalhadores e

gestores. Os valores que norteiam essa política são a autonomia e o protagonismo dos sujeitos,

a corresponsabilidade entre eles, o estabelecimento de vínculos solidários, a construção de redes

de cooperação e a participação coletiva no processo de gestão” (p. 8-9).

Para compreender melhor a forma de compreensão de humanização do SUS, trazemos

alguns dos pontos abordados na cartilha de 2008. A humanização é entendida como:

Valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de

saúde: usuários, trabalhadores e gestores;

Aumento do grau de corresponsabilidade na produção de saúde e de sujeitos;

Estabelecimento de vínculos solidários e de participação coletiva no processo de

gestão;

Defesa de um SUS que reconhece a diversidade do povo brasileiro e a todos

oferece a mesma atenção à saúde, sem distinção de idade, raça/cor, origem,

gênero e orientação sexual;

Proposta de um trabalho coletivo para que o SUS seja mais acolhedor, mais ágil,

e mais resolutivo;

Luta por um SUS mais humano, porque construído com a participação de todos

e comprometido com a qualidade dos seus serviços e com a saúde integral para

todos e qualquer um3.

3 Todos os apontamentos foram retirados, literalmente, das páginas 18 e 19 da cartilha, que consta nas referências

bibliográficas deste relatório.

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O ponto a ser questionado é se realmente a humanização é o caminho ideal para se

chegar a um atendimento mais satisfatório. Verifica-se ao longo dos anos que mesmo com essa

política sendo disseminada entre gestores, trabalhadores e usuários do SUS, ainda assim há uma

precariedade no atendimento aos usuários. Reclamações são sempre levantadas por quem

necessita de serviços públicos como este. Seja pela rapidez das consultas, pela desatenção dos

profissionais ou pela falta de aparatos tecnológicos necessários e até de medicamentos

suficientes a toda população (Goulart & Chiari, 2010). Esse trabalho menciona em várias partes

a necessidade de personalização ao invés de humanização. Afinal de contas, cada humano

apenas de igual é uma pessoa distinta, portanto, com demandas diferenciadas.

Uma autora que constata muito bem isso é Aguiar (2010) ao afirmar que “a filosofia da

humanização é satisfazer as necessidades únicas de cada utente, entendendo-o como um

indivíduo diferente de todos os outros. Assim, humanização é sinônimo de personalização” (p.

5). Segundo estudo realizado por ela em Portugal verificou-se que a satisfação dos usuários do

serviço de saúde aumentava em função de um bom relacionamento com os profissionais, e

diminuía em função a má relação com os mesmos (Aguiar, 2010). O processo de se relacionar

bem com o paciente tem incluso em sua essência a ideia da necessidade atenção e escuta que o

profissional de saúde deve suprir no paciente. Conforme Goulart & Chiari (2010), ouvir, dar

atenção e respeitar o paciente é fazer referência ao ser humano, e só com muita sensibilidade

se consegue esta proeza. Isto é real e fácil de comprovar, quanto mais conhecemos o outro, mas

ele nos é familiar, e mais se torna pessoa e não somente ser humano.

Neste trabalho, a fim de verificar a importância da personalização como possível método

eficaz contra a despersonalização, procuramos através de um experimento com estudantes da

área de saúde, averiguar se há efeito maior de um priming personalizador que de um

humanizador em uma tarefa de visualização de slides, onde depois foram solicitadas algumas

respostas com base em memorização de vídeos.

Trabalhamos com as seguintes hipóteses:

H¹ - Os estudantes na condição priming personalizador lembrarão de mais características do

vídeo (tanto de paciente branco quanto de paciente negro), que aqueles que virem os slides com

priming humanizador e controle.

H² - Os respondentes reconhecerão mais as fotos dos pacientes na condição priming

personalizador, que nas outras condições.

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6. Método

a. Participantes

Participaram da pesquisa 73 estudantes da área de saúde da Universidade Federal de

Sergipe (UFS), Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e de faculdades particulares do

Estado de Sergipe. Todos responderam ao final um questionário que solicitava alguns dados

sócio demográficos. A média de idade da amostra foi 21,8 anos, com mínimo de 18 e máximo

de 36 anos. Com relação a variável sexo, 41 participantes foram mulheres (56,2%) e 34 homens

(43,8%). Dentre estes, 20 se classificaram como brancos (27,4%), 37 como pardos (50,7%), 15

como pretos (20,5%) e 1 como amarelo (1,4%).

Os cursos presentes na amostra foram: Medicina (23,3%), Farmácia (20,5%), Nutrição

(17,8%), Enfermagem (13,7%), Fisioterapia (11%), Fonoaudiologia (8,2%), e Odontologia

(5,5%). Também verificou-se que os períodos da graduação variaram do primeiro ao décimo,

sendo o 2° e 5° períodos os mais frequentes (20,5% e 19,2%, respectivamente).

b. Procedimento e Instrumentos

A pesquisa realizada teve um desenho experimental 3x2, cuja variável dependente foi o

reconhecimento e a recuperação mnemônicas de informações sobre pacientes que apareciam

em um vídeo. As variáveis independentes foram os primings (personalização, humanização e

neutro) e a cor dos pacientes (brancos e pretos).

Os sujeitos foram divididos em três grupos, dois experimentais e um controle, a única

diferença entre estes foi o priming e a cor do paciente do vídeo que viram. O grupo controle

conteve 24 participantes, e todos foram submetidos a um priming4 sobre vida extraterrestre,

mas foi uma feita uma divisão acerca dos vídeos: doze viam o vídeo com paciente branco e os

outros doze viam o vídeo com paciente negro. Os grupos experimentais 1 e 2 foram submetidos

aos primings sobre os princípios do HumanizaSUS e de personalização, respectivamente, o

número de respondentes e a divisão da visualização de vídeo entre paciente branco e negro foi

idêntica.

Priming Controle:

Podemos imaginar muitas razões para que exista vida para além do Planeta Terra. Várias pessoas em

diversas épocas, afirmam ter visto seres extraterrestres. Existem provas da existência destas formas de vida.

Recentes descobertas têm demonstrado que existem condições de vida em outros planetas e que, portanto, eles

podem ter sido habitados. Além disto, o nosso conhecimento sobre as possibilidades de vida extraterrestre limita-

se à Via Láctea, mas existem inúmeros outros planetas que, distantes da Terra, podem ser habitados. Um dos

argumentos para se acreditar na existência de vida extraterrestre pode ser que vivemos em uma galáxia entre muitas

outras existentes, o que gera questionamentos sobre nossa hipotética existência isolados. Em programas televisivos

4 Priming refere-se a uma “ativação acidental de estruturas de conhecimento, tais como traços conceitos e

estereótipos, pelo contexto situacional atual." ((Bargh, Chen & Burrows, 1996, p. 230, tradução nossa).

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de ciência frequentemente se apresentam reportagens cogitando a ideia de que não estamos sós, e que não está tão

longe de se encontrar vestígios disso, através de viagens a outros planetas previamente programadas.

Priming HumanizaSUS ou humanizador:

O sistema único de saúde (SUS) foi criado em 1988 pela Constituição Federal, e é regulamentado pelas Leis nº

8080/90 (Lei Orgânica da Saúde) e nº 8. 142/90. Enquanto sistema, o SUS tem princípios bem estabelecidos. São

eles:

Universalidade: garantia de atenção à saúde de todo e qualquer cidadão.

Equidade: garantia a todas as pessoas, em igualdade de condições, ao acesso às ações e serviços dos diferentes

níveis de complexidade do sistema.

Integralidade: garantia de um serviço integral de assistência à saúde, na medida em que se compreende que cada

pessoa é indivisível e integrante de uma comunidade, isto é, necessita de ações de ações de promoção, proteção e

reabilitação que não sejam compartimentalizadas.

Regionalização e hierarquização: Os serviços devem ser organizados em níveis de complexidade tecnológica

crescente, dispostos em uma área geográfica delimitada e com a definição da população a ser atendida.

Descentralização: Ideal de uma redistribuição de poder e responsabilidades quanto às ações e serviços de saúde

entre os vários níveis de governo, a partir da ideia de que quanto mais perto do fato a decisão for tomada, maior a

possibilidade do acerto.

Priming Personalização:

"Jean Valjean era dotado de carácter pensativo, sem ser triste, circunstância particular às naturezas afectuosas. No

fim de tudo, porém, não passava de uma criatura dorminhoca e destituída de interesse, ao menos aparentemente.

Perdera os pais ainda de tenra idade. A mãe morrera vítima de uma febre de leite mal tratada; o pai, que fora

também podador, morrera em consequência de uma queda, caindo de uma árvore. Não ficara a Jean Valjean senão

uma irmã, mais velha do que ele, viúva, com sete filhos, entre rapazes e moças. A irmã tomou conta de Valjean, e

enquanto o marido foi vivo conservou o irmão na sua companhia e sustentou-o. Mas o marido morreu. A mais

velha das sete criancinhas tinha oito anos, a mais nova doze meses, Jean Valjean tinha completado vinte e cinco

anos. Para as criancinhas substituiu o pai que lhes faltara, e por sua vez passou a amparar a irmã que o amparara a

ele. Esta mudança operou-se com a maior simplicidade, como se fora um dever, e até com certo orgulho da parte

de Jean. Assim consumira a mocidade num trabalho rude e mal retribuído. Nunca lhe tinham conhecido afeição

amorosa, nunca tivera tempo para se preocupar com o amor."

Os Miseráveis (Victor Hugo)

Depois do procedimento de priming os participantes viam a um vídeo de um paciente

branco ou de um paciente negro, que relatava sobre os sintomas de uma doença que o

incomodava5. E por fim, o segundo vídeo, que funcionava como tarefa filtro, mostrava uma

satirização do contexto escolar, e dos estereótipos dos alunos. Em seguida os participantes

respondiam a um questionário que indagava sobre sua memória acerca do paciente que havia

visto no 1º vídeo.

Tabela 1: Desenho experimental e número de participantes em cada condição de pesquisa

Priming Paciente Branco Paciente Negro

5 O paciente do vídeo relatava sintomas de gastrite. Os vídeos e sintomas da doença foram previamente pré-

testados e validados no estudo de Teixeira (2014).

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Vida extraterrestre

(Condição controle)

12 12

HumanizaSUS 12 12

Personalização 13 12

A coleta contou com o empenho de quatro pesquisadoras e foi realizada no modelo

individual e por conveniência. As quatros pesquisadoras envolvidas foram aos departamentos

dos cursos alvos da pesquisa, a fim de convocar respondentes. Ao serem abordados os

estudantes, foi-lhes dito que participariam de uma pesquisa sobre percepção social e memória

com duração de 8 minutos. Aqueles que aceitaram participar foram direcionados aos notebooks

e instruídos acerca de como deveriam proceder, isto é, ver a apresentação de slides, com auxílio

de fones de ouvido devido a necessidade de ouvir os vídeos, e conjuntamente responder às

questões do questionário, na ordem em que estas lhes apareciam na tela. Outra instrução dada

foi que não poderiam voltar os slides, somente avançar.

O primeiro slide continha o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e o contato

dos pesquisadores. A maioria dos slides possuía um balão azul com informações acerca do

prosseguimento das tarefas, eram slides de instrução para seguir e responder as questões

solicitadas. No terceiro slide aparecia o priming (controle, humanizador ou personalizador), e

continuamente à leitura era solicitado aos respondentes que anotassem suas recordações sobre

o priming na primeira pergunta do questionário. No sexto slide a pessoa via um vídeo de um

minuto, no qual um indivíduo relatava sintomas referentes a problemas de saúde enfrentados

atualmente. No oitavo slide o respondente visualizava um vídeo “distrator”, que foi considerado

importante na criação do instrumento para que a memorização do primeiro vídeo não fosse

facilitada.

No nono slide era solicitado que o participante respondesse a pergunta dois do

questionário, e nesta informasse quais aspectos da aparência, localidade, sintomas e

sentimentos da pessoa do vídeo um, conseguisse recordar. O décimo primeiro slide continha

uma série de doze fotos, que alternavam entre pessoas brancas e negras. Dentre elas estava a

foto do paciente visto no primeiro vídeo, e era solicitado ao respondente que anotasse o número

da foto correspondente a ele na pergunta três do questionário. Por fim, havia um slide

solicitando que respondessem as últimas perguntas, que eram referentes aos dados

sociodemográficos.

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7. Resultados e Discussão

A primeira pergunta do questionário buscava averiguar se os respondentes estavam

atentos ao experimento, por isso não fizeram parte das análises estatísticas. Nela se solicitava

que recordassem o conteúdo do texto lido, ou ao menos a ideia principal. Após observado o

conjunto das respostas, pôde-se constatar que os respondentes da condição controle

responderam em sua maioria, que o texto se referia à “possibilidade de vida extraterrestre e a

possível não existência isolada do homem no universo”. Já os respondentes da condição

humanizadora salientaram que o texto lido referia-se “ao Sistema Único de Saúde e seus

princípios”. Por fim, os respondentes da condição personalizadora recordaram-se de muitos

aspectos do texto, sendo as principais lembranças relativas a “vida triste de um jovem chamado

Jean Valjean, que perdeu os pais muito cedo e sendo criado pela irmã foi-lhe grato no futuro,

ajudando-a quando perdeu o marido e ficou com os sete filhos para criar”.

Para avaliar a segunda pergunta do questionário, que solicitava aos respondentes que

escrevessem suas lembranças acerca de aspectos como a localidade, sintomas, aparência e

sentimentos do paciente do primeiro vídeo, fizemos uma análise de conteúdo das respostas, a

partir da qual foi possível separar as características mais recordadas do vídeo (tanto de paciente

branco quanto de paciente negro) em categorias.

As características mais evocadas foram: localidade (por exemplo, Estância/SE, sala),

psicológicas positivas (exemplo: articulado, calmo), psicológicas negativas (exemplo:

desinteresse), psicológicas neutras (exemplo: interiorano, fala impessoal), clínicas (exemplo:

vômito, diarreia), clínicas/psicológicas (exemplo: debilitado, desorientação), sentimentos

positivos (exemplo: esperança, anseio), sentimentos negativos (exemplo: desânimo,

preocupação), sentimentos neutros (exemplo: curiosidade), emoções positivas (exemplo:

ausência de tristeza), emoções negativas (exemplo: medo, tristeza), emoções neutras (exemplo:

ausência de emoção), físicas positivas (exemplo: sorridente, aparência serena), físicas negativas

(exemplo: aparência adoecida e dolorida), e físicas neutras (exemplo: branco, negro). Dentre

estas, algumas foram recordadas poucas vezes, não sendo então consideradas na análise de

variância One way feita posteriormente. Feita a análise, não foram encontradas diferenças

significativas entre as condições relativas à lembrança das características F (5, 68) < 1.5, n.s.

Na tabela 2 podemos ver quais características forma mais lembradas de acordo com o

vídeo visualizado, e quantas vezes isso ocorreu para cada vídeo.

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Tabela 2: Lembranças evocadas por categorias de características para ambos os pacientes.

Categoria de

Características

Paciente Branco Paciente Negro Total

Localidade 17 13 30

Psicológicas positivas 2 1 3

Clínicas 35 34 69

Clínica/Psicológica 7 5 12

Sentimentos positivos 1 1 2

Sentimentos negativos 19 22 41

Emoções negativas 18 19 37

Físicas positivas 2 1 2

Físicas negativas 6 1 7

Físicas neutras 11 20 31

Total Geral 118 117

Em seguida, mais uma análise de variância One way foi feita com uma junção das

categorias em apenas três: traços positivos, traços negativos, traços neutros. Novamente não

foram encontradas diferenças significativas na lembrança dos respondentes F (5, 59) < 1.5, n.s.

Na tabela 3 é possível verificar os valores de recordação dos traços.

Tabela 3: Lembrança em relação aos traços positivos, negativos e neutros.

Categoria de

Características

Paciente Branco Paciente Negro Total

Traços Positivos 5 4 9

Traços Negativos 28 32 60

Traços Neutros 13 21 34

Total Geral 46 57

A análise dos traços característicos foi feita também com a junção de todos os traços

num conjunto chamado “traços totais”, e através de mais uma análise de variância One way

encontramos diferença significativa entre as condições experimentais F (5, 72) = 2.34, p = .051.

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Na tabela 4 é possível verificar os resultados. Na condição de priming humanizador salientou-

se que houve uma distância grande no número de traços totais do paciente branco e do paciente

negro. Já na condição experimental 2 (com contexto personalizador) as pessoas atribuíram mais

traços, tanto para o paciente branco quanto para o paciente negro. Nossa primeira hipótese

considerava que os respondentes do contexto de personalização lembrariam de mais

características (tanto do paciente branco quando do negro) que os dos contextos HumanizaSUS

e controle. Isto ocorreu entre os contextos de humanização e personalização, no entanto, se

verificou que para o paciente negro, os respondentes do contexto controle se lembram mais que

os dos contextos de humanização e personalização. Constatado isso, verificamos que a hipótese

H¹ foi parcialmente corroborada.

Tabela 4: Médias e Desvio Padrão da atribuição de traços em função da cor da pele aos

pacientes.

Grupos Paciente Branco Paciente Negro

Controle 4,58

( 1,72)

4,50

(2,06)

HumanizaSUS 2,91

(1,31)

4,0

(1,53)

Personalização 5,15

(1,86)

4,25

(1,71)

Porém, é notório que em todas as condições, com exceção do contexto HumanizaSUS,

o paciente branco teve mais atribuições de traços, o que nos remete à ideia de despersonalização

para com o grupo negro e personalização com o grupo branco. Contudo, o fato do contexto

personalizador ter equilibrado a atribuição de traços pode ser um indicador da necessidade de

personalização e não somente de humanização (Ver tabela 4).

Com base nos dados da questão anterior construímos uma variável denominada

“memória”, que teve por intenção averiguar se a memória dos respondentes de cada condição

era detalhada, genérica, ou esparsa. Designamos por detalhada a memória daqueles que

responderam com detalhes sobre localidade, aspectos do ambiente do vídeo, sintomas, e

características físicas e psicológicas do paciente; genérica, como a memória daqueles que

selecionavam aspectos sintomáticos e físicos sem, no entanto, mencionar aspectos psicológicos;

e esparsa, era a memória daqueles que respondiam características aleatórias, seja dos sintomas,

do vídeo em geral ou das características físicas, também contento erros nas recordações.

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Através de um teste qui-quadrado percebemos que não houve diferenças significativas entre os

grupos X²(10) = 11.61, n.s. É possível ver detalhadamente os valores para cada tipo de memória

na tabela 5.

Tabela 5: Quantidade de cada tipo de memória por grupo.

Tipo de Memória Paciente Branco Paciente Negro

GC G1 G2 GC G1 G2*

Detalhada 2 0 2 2 0 2

Genérica 7 4 8 3 5 4

Esparsa 3 8 3 7 7 6

Total 12 12 13 12 12 12

Total Geral 37 36

*Nota: GC (grupo controle), G1 (grupo humanização), e G2 (grupo Personalização).

Com relação à questão que solicitava aos participantes dizer dentre doze fotos qual era

a correspondente ao paciente do primeiro vídeo, verificamos em um teste qui-quadrado que

houve diferença significativa X²(15) = 31.89, p = .007. Essa variável foi construída

considerando três níveis de reconhecimento: não reconhece o paciente nem a sua cor, acertou a

cor do paciente, reconhece o paciente. Na tabela 8 é possível observar que o número de acertos

foi maior (tanto para paciente branco quanto para paciente negro) na condição de

personalização, que na condição de humanização e de controle. Esse dado corrobora nossa H³.

Tabela 6: Quantidade de acertos e erros no reconhecimento da foto por grupo.

Controle HumanizaSUS Personalização

Paciente

Branco

Paciente

Negro

Paciente

Branco

Paciente

Negro

Paciente

Branco

Paciente

Negro

Reconhece

o paciente

7 5 11 7 10 10

Total 12 18 20

Reconheceu

só a cor

1 7 0 5 3 2

Total 8 5 5

Erros 2 0 0 0 0 0

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Total 2 0 0

Não

lembrou

2 0 1 0 0 0

Total 2 1 0

Pode-se comprovar essa significância através de uma análise de variância One way,

cujos resultados apontaram que as médias de reconhecimento do grupo com contexto

personalizador (para paciente branco e negro) foram mais equilibradas que as médias do grupo

com contexto humanizador para paciente branco e negro (Ver tabela 7).

Tabela 7: Médias de reconhecimento por grupo.

Condição Médias

Contexto Controle (paciente branco) 2,75

Contexto Controle (paciente negro) 2,42

Contexto HumanizaSUS (paciente branco) 3,08

Contexto HumanizaSUS (paciente negro) 2,58

Contexto Personalização (paciente branco) 2,77

Contexto Personalizador (paciente negro) 2,83

É necessário prestar atenção que na condição personalizadora o paciente negro foi mais

reconhecido que na condição humanizadora, e também que na condição humanizadora o

paciente branco foi muito mais reconhecido, o que mais uma vez nos remete à ideia da

despersonalização do alvo negro e personalização do alvo branco. Em nenhuma das condições

o alvo branco deixou de ser personalizado, mas na condição experimental 2 (personalizadora)

essa diferença entre personalização de alvo branco e negro diminuiu substancialmente.

Resultados como este nos direcionam à necessidade de buscar outros meios de medida para

comprovar ou reprovar a ideia de maior eficácia da personalização enquanto método de trabalho

no âmbito da saúde.

Após esses resultados, cabe indagar acerca das atuais relações entre os profissionais de

saúde e seus pacientes. Mesmo em um contexto de graduandos em saúde é possível verificar

efeitos de personalização e despersonalização em alguns momentos. É comum na realidade

midiática brasileira ouvir relatos sobre o atendimento em saúde e sua precariedade,

principalmente em relação ao tempo de consulta e precisão diagnóstica. Dados os achados

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teóricos em Psicologia sobre desumanização e despersonalização, resta a dúvida em relação a

que pode ser a causa das situações excludentes, discriminatórias e desiguais no âmbito da saúde.

Quanto mais cedo os fenômenos forem estudados e compreendidos mais fácil será discutir e

intervir no problema.

8. Considerações Finais

O presente estudo teve por objetivo geral analisar a personalização dos pacientes e suas

consequências para a eficiência da tarefa diagnóstica e clínica nos serviços de saúde. Para isso

foi Analisado ainda o efeito da cor da pele dos pacientes na personalização. O objetivo

específico foi verificar a significância de personalizar ao invés de humanizar no atendimento

clínico, sendo esta primeira atitude compreendida como mais eficaz e apropriada para o

desenvolvimento de melhorias nas relações entre profissionais e usuários dos serviços de saúde

em geral.

Levantamos como hipótese principal que uma condição de personalização surtiria

melhores efeitos do que uma condição controle ou de humanização (método efetivo do

HumanizaSUS). As hipóteses específicas foram que: Os estudantes na condição priming

personalizador lembrariam de mais características do vídeo (tanto de paciente branco quanto de

paciente negro), que aqueles que vissem os slides com priming humanizador e controle; e que

os respondentes reconheceriam mais as fotos dos pacientes na condição priming personalizador,

que nas outras condições.

Os resultados nos levaram a confirmação parcial da primeira hipótese, pois de fato os

respondentes da condição personalizadora lembraram de mais traços característicos dos

pacientes dos vídeos (branco ou negro), que os respondentes na condição humanizadora e

controle. O que fugiu à ideia total de nossa hipótese, causando assim a confirmação parcial, foi

que em relação ao paciente negro os respondentes da condição controle lembraram mais traços

que os das outras condições. Descobrimos também que de fato em todas as condições, com

exceção do contexto HumanizaSUS, o paciente branco teve mais atribuições de traços. Ou seja,

o paciente branco foi mais personalizado em quase todas as condições, sendo que na condição

humanizadora ele teve pouca atribuição de traços conjuntamente ao paciente negro. Nos faz

refletir que provavelmente há um efeito positivo do contexto personalizador, já que foi neste

que as pessoas mais equilibraram a atribuição de características para ambos os pacientes. A

hipótese relativa ao reconhecimento das fotos foi corroborada, pois de fato verificou-se que

houve maior número de recordações corretas, tanto para paciente branco quanto para paciente

negro, no contexto personalizador em detrimento dos outros contextos.

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Sabe-se que nem sempre os princípios do SUS são efetivados na prática e isso vem

desgastando consideravelmente a experiência na prestação de serviços de saúde e bem-estar. É

possível que hajam melhores maneiras de atendimento, não somente humanizadoras, mas

principalmente personalizadoras, segundo as quais o sujeito receptor do serviço não é só

humano, mas pessoa possuidora de idiossincrasias e aspectos subjetivos únicos. Após esta

pesquisa, salienta-se a necessidade de outras que venham a aumentar o número de evidências

empíricas a respeito do fenômeno da despersonalização no contexto de saúde, tanto entre

estudantes quando entre profissionais formados. Portanto, também é importante aumentar as

evidências com relação ao método da personalização, como foi nosso objetivo neste estudo,

para que seja possível a formulação de planos de trabalho mais efetivos e significativos que o

atual HumanizaSUS.

A presente pesquisa teve limitações como o número da amostra, que para dados mais

substanciais necessitaria ser maior, e a forma de coleta que não preservou o total controle

experimental. O ideal para estudos posteriores seria reproduzir o experimento em uma sala

específica, sem interferência sonora ou visual para os respondentes. Por fim, outras pesquisas

como essa são importantes não só com estudantes de saúde, mas também com profissionais

atuantes na área. Estas poderão ajudar potencialmente na compreensão desses dois fenômenos

complexos (despersonalização e personalização), cuja existência factual muitas vezes é

considerada, mas até então não têm revelado evidências empíricas no campo da Psicologia

Social.

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