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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP LEILE SÍLVIA CÂNDIDO TEIXEIRA COOPERATIVISMO E TRABALHO: A EXPERIÊNCIA DA COOPERATIVA DE RECICLAGEM DE LIXO (COOPREC) MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL SÃO PAULO 2007

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

LEILE SÍLVIA CÂNDIDO TEIXEIRA

COOPERATIVISMO E TRABALHO:

A EXPERIÊNCIA DA COOPERATIVA DE RECICLAGEM

DE LIXO (COOPREC)

MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL

SÃO PAULO

2007

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

LEILE SÍLVIA CÂNDIDO TEIXEIRA

COOPERATIVISMO E TRABALHO:

A EXPERIÊNCIA DA COOPERATIVA DE RECICLAGEM DE

LIXO (COOPREC)

MESTRADO EM SERVIÇO SOCIAL

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção de título de Mestre em Serviço Social, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Carmelita Yazbek.

SÃO PAULO

2007

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BANCA EXAMINADORA

_______________________________

_______________________________

_______________________________

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A Maja e Benê, com amor.

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Agradecimentos

Eu não ando só, só ando em boa companhia....

Vinícius de Moraes e Toquinho

A Maja, Benê (meus pais), Lenea (Nana), Rogério (Nano), Fernando

(Nandinho), Eduardo (Dudu) e Maitha (Tininha) (minha irmã, irmãos e

cunhada), pela tolerância, carinho, compreensão e apoio irrestrito. “Eu sem

[eles] não sei nem chorar, sou chama sem luz, jardim sem luar,(...) tristeza que

vai, tristeza que vem, sem [eles] meus amores, eu não sou ninguém...”

À Gláucia (Maria) e Cristina (Cris Maria), juntas tecemos nossas vidas

ao tempo do amadurecimento nessa profissão, dividimos tudo, sorrisos e

angústias, expectativas e frustrações, elas são: “colo que acolhe, braço que

envolve, palavra que conforta, silêncio que respeita, alegria que contagia”.

À Maria Paixão, Ângela Cristina, Marcelo Ribeiro, Joamara, Maria José,

Marla, Gledson, Renata Linhares, Patrícia, Sandra Oliveira, Rodrigo, Daniel (a

turma). Alessandra Castro, Karina Rodrigues, Valéria Rosa, Thatiane Coleta,

Omari Ludovido, Regina Sueli, Walderez Loureiro, Conceição Padial, Meire Lia,

Vitor e Iolanda.”A gente não faz amigos: reconhece-os”.

À Marilene por todos os ensinamentos, incentivos, orientações e

partilhas, por acompanhar minha trajetória profissional com tanto carinho e

amizade.

À Ana Lívia (Aninha) que me acolheu em sua casa e em sua vida,

transportando para São Paulo toda leveza e alegria do povo do Nordeste,

tantas músicas, poesias, conversas, vinhos, cafés... tantas gargalhadas...

tantos ensinamentos que o cotidiano proporciona. “De tudo ficou um pouco”.

Levo comigo, para a vida, sua generosidade, a certeza de que “se fizer bom

tempo amanhã... Eu vou!”.

Ao Rodrigo (Rô) e Augusto (Gu). Ro, a urbis, o agito, as luzes e cores

da cidade que pulsa e vibra em nós, o frenesi urbano cravejado de transeuntes

em que a vida se confunde com arte, cinema e literatura. Com ele descobri São

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Paulo, levantei os olhos do rio da minha aldeia para aprender que ”pelo Tejo

vais-se ao mundo”. Gu, toda a lembrança alegre da primeira infância, a paz do

rural, da água no fundo do sítio, a poesia que nasce das silhuetas das

montanhas, o tempo lento que permite sonhar com um mundo justo, e levantar-

se para construí-lo “sem perder a ternura jamais!”.

Ao Carlos Alberto (Beto), Maria Lúcia e toda família do Rodrigo, por me

receberem com tanto carinho inúmeras vezes.

Ao Bruno Simões, Anahí, Mileni Secon, Maira, Simão, Michelly, Juciléia

(Leia), Sandra, Núbia, e toda a turma da PUC/SP, pelo aprendizado, a partilha,

as discussões e debates, as baladas e bares, os causos!

À Eliana, Renata e Maria Grossi, que foram a presença mais intensa

nas ausências que provoquei voluntária e involuntariamente, o seu apoio foi

além, muito além do que eu podia um dia sonhar.

Aos cooperativados da Cooprec, pela paciência e carinho ao me

receberem em inúmeras visitas, perguntas, entrevistas. Em especial, à Nair,

Lúcia, Laíde, Rosalino, Júlio, Mel, Sebastião Evangelista, Viviane, Marinete,

pela disposição em serem sujeitos desse estudo.

À professora Maria Carmelita Yazbek, pelos ensinamentos e

companheirismo, mas, acima de tudo pela acolhida. “Há se todos fossem iguais

a você, que maravilha viver”...

Às professoras Maria Lúcia Martinelli e Maria Lúcia Carvalho pela

participação na banca de qualificação, pela leitura atenta e sugestões que

muito contribuíram para o resultado final desse estudo.

À Kátia, secretária do Programa de Pós-graduação em Serviço Social

da PUC-SP, pela paciência, dedicação e compromisso cotidianos.

À Universidade Católica de Goiás, e ao Instituto Dom Fernando, pela

licença para assuntos pessoais.

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Tecnológico (Cnpq) pelo

incentivo financeiro à pesquisa.

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RESUMO

Esta pesquisa relata a experiência da Cooperativa de Reciclagem de

Lixo (Cooprec) em sua história, desafios, inquietudes, contradições e

possibilidades. Trata-se de uma cooperativa de trabalhadores que dela retiram

seu sustento, ao tempo em que realizam um trabalho de educação e

preservação ambiental por meio da redução dos resíduos sólidos no aterro

sanitário. Os objetivos da investigação consistiram em apreender a concepção

de cooperativismo na sua gênese; o significado do cooperativismo, no contexto

das mudanças do/no mundo do trabalho brasileiro; e como essas mudanças se

efetivam no interior de uma cooperativa de trabalho, com base na experiência

da Cooprec. Utiliza-se da história oral, metodologia qualitativa de pesquisa

centrada na narrativa de experiência por meio de depoimentos orais. Os

sujeitos da pesquisa foram os próprios cooperados. Buscou-se saber a história

da cooperativa, como os cooperados nela ingressam, os desafios e as

potencialidades do trabalho. O estudo revela que o cooperativismo popular no

Brasil, nos anos recentes, mescla-se com a economia solidária e se insere em

uma perspectiva de geração de emprego e renda, financiada pelo Estado ou

por instituições de fomento. O resultado, do ponto de vista do trabalho, é a

possibilidade de subsistência, e do ponto de vista do capital, engendra-se uma

cooperação complexa com a qual ele se beneficia e se sustenta.

Palavras-chave: cooperativismo, trabalho e desemprego

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ABSTRACT

This research deals with the Garbage Recycling Cooperative Firm (Cooperativa

de Reciclagem de Lixo, Cooprec) in its history, challenges, worries,

contradictions and possibilities. It is a workers’ cooperative firm who take from it

their sustenance at the same time they carry an educational work and

environmental preservation out through the reduction of the solid waste in the

sanitary landfill. The goals of the investigation have consisted in grasping the

conception of the cooperative firms in its genesis; the meaning of cooperative

firms, in the context of changing in/the world of Brazilian labor; and how these

changes effect in the interior of a labor cooperative firm, based on the

experience of Cooprec. It has used the oral history, qualitative methodology of

research centered in the narrative of experience through oral speech. The

cooperators themselves were the research characters. It has searched to know

the history of the cooperative firm, how the cooperators get into it, the

challenges and the possibilities of work. The study reveals that the popular

cooperative in Brazil, in the recent years, mixes to the supportive economy and

it gets in a perspective of job generation and income, financed or by the State or

by the fomentation institutions. The result, in the labor point of view, is the

possibility of subsistence and in the capital point of view, it goes into a complex

cooperation which with it is itself benefited and supported.

Key-words: cooperative firm, work and unemployment

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................. 11

CAPÍTULO I

TRAJETÓRIA HISTÓRICA DO COOPERATIVISMO:

“Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos” ......................... 24

1.1 “Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos”. ....................... 27

1.2 Cooperativismo no Brasil e economia solidária ...................................... 44

CAPÍTULO II

“ERA UM SONHO A COOPERATIVA, UM SONHO DA GENTE”:

A EXPERIÊNCIA DA COOPREC .................................................................... 58

2.1 Processo de constituição da Cooprec .................................................... 59

2.2 O processo de trabalho na Cooprec ....................................................... 77

2.3 Relação com o IDF e com a prefeitura ................................................... 86

CAPÍTULO III

“VIDA É TRABALHO” COOPERATIVISMO, TRABALHO, DESEMPREGO.................................................................................................92

3.1 Emprego e desemprego ....................................................................... 100

3.2 Mudanças, conquistas e perspectivas .................................................. 108

CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 117

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................122

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LISTA DE SIGLAS

ADS

Anteag

Bird

Cooprec

Comurg

CUT

Ecosol

EES

Embrapa

FAI

Fase

Ibase

Ibrace

ITCPs

IDF

MST

MTE

Neas

NIR

PEA

PIB

PIS

PNAD

PND

PPP

Proex

Agência de Desenvolvimento Social

Associação Nacional de Trabalhadores de Empresas de

Auto-Gestão

Banco Interamericano de desenvolvimento

Cooperativa de Reciclagem de Lixo

Companhia Municipal de Limpeza Urbana

Central Única dos Trabalhadores

Economia Solidária

Economia Solidária

Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária

Fundo de Amparo ao Trabalhador

Federação de Órgãos para a Assistência Social e

Educacional

Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas

Instituto Brasil Central

Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares

Instituto Dom Fernando

Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra

Ministério do Trabalho e Emprego

Núcleo de Educação Ambiental e Saúde

Núcleo Industrial de Reciclagem

População Economicamente Ativa

Produto Interno Bruto

Programa de Incubadora Social

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios

Plano Nacional de Desenvolvimento

Programa de Pequenos Projetos

Pró-Reitoria de Extensão e Apoio Estudantil

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OCB

OIT

ONG

SCA

SEC

SEL

Senaes

SGC

SMO/Comob

UCG

UFG

Organização das Cooperativas Brasileiras

Organização Internacional do Trabalho

Organização Não-governamental

Sistema Cooperativista os Assentamentos

Sistemas de Intercâmbio

Sistemas Locais de Trocas

Secretaria Nacional de Economia Solidária

Sociedade Goiana de Cultura

Secretaria Municipal de Obras / Companhia Municipal de

Habitação de Goiânia

Universidade Católica de Goiás

Universidade Federal de Goiás

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INTRODUÇÃO

Talvez nossa reflexão deva começar por aí: pelo fato de que nossa sobrevivência está ameaçada. [...]

Temos a chave do futuro da humanidade, mas para poder usá-la temos que

compreender o presente. [...] Não nos permitir desviar os olhos

Sebastião Salgado

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Este estudo tem como objeto a experiência da Cooperativa de

Reciclagem de Lixo (Cooprec). O esforço é de apreender as determinações,

contradições e mediações, existentes entre a experiência da Cooprec e o atual

estágio de desenvolvimento do capitalismo brasileiro, aproximando-se da

totalidade da relação capital trabalho, em um movimento que parte do particular

para o universal. Para tanto, faz-se imprescindível a realização de dois

movimentos, o primeiro, refere-se a uma breve exposição da história do

cooperativismo, e o segundo, à problematização necessária da conjuntura da

qual surge a Cooprec especificamente.

Um pouquinho de história

As primeiras aproximações ao debate do cooperativismo surgiram no

período da graduação em Serviço Social (1998-2002), realizada na

Universidade Católica de Goiás (UCG). Em meados do curso, houve o ingresso

no grupo de estudos da pesquisa Memória dos idosos sem-terra3. Além dos

debates sobre os desafios do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST),

discutiam-se os aspectos teóricos pertinentes à questão agrária, a memória e

história oral, e cooperativismo, uma vez que o MST utiliza a cooperativa como

forma de organizar a produção agropecuária em alguns de seus

assentamentos.

Ainda por essa época ocorreu o estágio curricular no Instituto Brasil

Central (Ibrace), cujas atividades se constituíam em assessoria a pequenos

proprietários rurais no município de Caldazinha-GO4 .Os agricultores

assessorados organizavam-se em quatorze associações, cujo principal objetivo

era fortalecer suas possibilidades de produção de produtos agropecuários e

comercialização.

3 Pesquisa do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Estado, Sociedade e Cidadania (Nupesc), do Departamento de Serviço Social, coordenada pela Profa. Dra. Regina Sueli de Sousa. A permanência da pesquisa durou de fevereiro de 2000 a março de 2001. 4 Caldazinha localiza-se a 40 km do município de Goiânia-GO. Possui 312 km² e 3.435 habitantes, população estimada em julho de 2005; IBGE, 2006.

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Em 2000, ao tempo em que realizava o estágio e participava do grupo

de estudo citado, desenvolveu-se um estudo monográfico cujo título era

Desemprego estrutural e capacitação continuada: desafios do sindicalismo na

contemporaneidade, estudo exploratório do sindicalismo goianiense. Este

estudo proporcionou contato com a Central Única dos Trabalhadores (CUT),

Força Sindical e alguns de seus sindicatos.

O resultado desse estudo mostrou que, em decorrência do que

Antunes (1999) chama de crise no mundo do trabalho, o movimento sindical

tomou o seguinte caminho: a Força Sindical investiu em cursos de capacitação

e bancos de emprego, e a CUT, em formação cooperativista, com ênfase na

economia solidária. Em outros termos, a CUT incentiva a auto-organização do

trabalhador para enfrentamento do desemprego estrutural, e chegou a criar a

Agência de Desenvolvimento Social (ADS), cujo principal objetivo é o fomento

dessas iniciativas.

Concluído o curso de Serviço Social, houve uma participação no

Projeto Dom Fernando5 da Secretaria Municipal de Obras/Companhia

Municipal de Habitação de Goiânia (SMO/Comob). Tratava-se da transferência

de 256 famílias das margens do Córrego Cascavel para o Residencial

Itamaracá, construído pela prefeitura de Goiânia no Setor Perim (Região

Campinas)6, com recursos oriundos do Banco Interamericano de

Desenvolvimento (Bird), por intermédio da Caixa Econômica Federal.

O trabalho social desenvolvia-se em quatro eixos: Organização e

Mobilização de Comunidade; Educação e Cidadania; Educação Ambiental e

Geração de Trabalho e Renda. Este último tinha como ferramenta principal de

intervenção a proposta de formação de grupos de produção e cooperativas de

trabalho. Esta atividade possuía dotação orçamentária específica aprovada e

incentivada pelo Bird.

5 Dom Fernando foi o primeiro arcebispo metropolitano de Goiânia, responsável pela fundação da Universidade Católica de Goiás. Atuou na defesa da posse de terra urbana para comunidades de baixa renda. Existem, em Goiânia, dois bairros com seu nome: Dom Fernando I e Dom Fernando II já regularizados e localizados na Região Leste do município, além do Dom Fernando III, não regularizado, que se localiza na Região de Campinas, às margens do Córrego Cascavel. Este último dá nome ao Projeto. 6 A cidade de Goiânia é dividida em doze regiões, e a Região Campinas situa-se nas proximidades da Região Central da cidade.

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Alguns meses depois, ocorreu trabalhar no Instituto Dom Fernando

(IDF) mantido, à época, pela Sociedade Goiana de Cultura (SGC)7. Dentre as

atividades realizadas pelo instituto, havia a assessoria a uma Cooperativa de

Reciclagem de Lixo (Cooprec), formada por moradores da Região Leste de

Goiânia, que fora fomentada pelo próprio Instituto.

A inserção profissional, portanto, recolocou repetidamente a

problemática do cooperativismo. É, portanto, da inserção profissional na

realidade social, que se impõe a necessidade de apreender as determinações,

contradições e as mediações da vida social, na busca de elementos teórico-

analíticos que possibilitem distinguir o papel sócio-político das cooperativas que

agregam trabalhadores.

O trabalho de assessoria8 permitiu estar em contato com a

documentação do instituto, desde projetos, contratos de convênios e relatórios,

bem como participar de várias reuniões com a equipe nas áreas de atuação.

Esse trabalho oportunizou estabelecer uma relação cotidiana com a Cooprec e

com a problemática do trabalho em uma cooperativa. Permitiu também

problematizar a relação com uma instituição de fomento como é o caso do IDF.

A implementação do cooperativismo se apresenta com inúmeras

contradições, desde a baixíssima capacitação da população, falta de recursos

para iniciar o negócio, a necessidade do fomento técnico e financeiro, ora pelo

Estado, como política pública, ora pela própria universidade, ou outras

instituições de apoio. Por outro lado, a expectativa de poder intervir na

realidade, a esperança das pessoas em obterem algum rendimento e a

necessidade, como profissional, de lidar com essas questões propondo

estratégias de intervenção, objetivaram-se na proposta de investigação

7 Entidade da Arquidiocese de Goiânia, que também mantém a Universidade Católica de Goiás. O IDF é responsável pela idéia e criação da Usina Industrial de Reciclagem no Jardim Conquista e pelo fomento da Cooperativa de Reciclagem de Lixo (Cooprec) cuja experiência intenta-se apresentar nesta dissertação. Atualmente, o Instituto Dom Fernando compõe a Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Católica de Goiás. 8 Durante o período de acompanhamento como funcionária dos trabalhos do IDF (fev. 2003 a dez. 2006), estiveram na diretoria: Ms. Marilene Aparecida Coelho (dez. 2002 a dez. 2003); Maria Aparecida Coelho Vaz – a Cidoca (jan. 2004 a jul. 2005), ambas assistentes sociais professoras do Departamento de Serviço Social da Universidade Católica de Goiás, e a atual diretora, Dra. Sônia Margarida Gomes Sousa (ago. 2005), professora do Departamento de Psicologia da UCG.

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apresentada para o Curso de Mestrado em Serviço Social da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo.

O caminho se faz ao caminhar9...

A motivação da caminhada pelo mestrado ancora-se, portanto, na

busca de apreender a experiência da Cooperativa de Reciclagem de Lixo

(Cooprec) e, por meio dela, conhecer uma cooperativa de trabalhadores,

escutar de quem a vivencia a história como ela ocorre e procurar apreender a

relação entre o cooperativismo contemporâneo e o mundo do trabalho.

Nessa trilha, busca-se a experiência dos cooperativados da Cooprec,

sua história, desafios, inquietudes, contradições e possibilidades, o seu jeito de

trabalhar e sobreviver, com o intuito de apreender e apresentar os

condicionantes dessa forma de organização do trabalho. Faz-se, portanto,

necessário para o desenvolvimento da pesquisa ouvir as histórias dos sujeitos

imbricados com a trajetória dessa cooperativa.

Os objetivos do estudo são: a) apreender a concepção de

cooperativismo na sua gênese, em suas dimensões econômica, histórica,

cultural e política; b) apreender o significado do cooperativismo, no contexto

das mudanças do/no mundo do trabalho brasileiro; c) analisar, com base na

experiência da Cooprec, como vêm se efetivando as relações de trabalho no

interior de uma cooperativa na contemporaneidade.

Para o estudo da experiência da Cooprec, faz-se imprescindível

desvelar as conexões existentes no movimento do real, entre, a) trabalho, seu

conteúdo, a natureza da Cooprec e sua identidade, b) cooperativismo, como

forma de organização; c) desemprego, cuja temática perpassa as atividades da

cooperativa e determina sua história em muitos momentos. Essas dimensões

9 Caminhante, são teus rastos o caminho, e nada mais; caminhante, não há caminho, faz-se caminho ao andar. Antônio Machado.

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não se encontram de forma dissociada, mas apresentam peculiaridades que se

devem apreender.

A aproximação do objeto ocorreu primeiramente por meio de

documentos tanto do Instituto Dom Fernando quanto da Cooperativa de

Reciclagem de Lixo (Cooprec), e pela leitura de bibliografia que versava sobre

o tema.

Concomitantemente, em janeiro de 2006, foram entrevistados sete

cooperados. As questões elaboradas não permitiram que o relato da

experiência se explicitasse, contudo apareceram questões interessantes que

permitiram identificar o caminho a percorrer a partir de então, e, posteriormente

foram realizadas mais três entrevistas.

No primeiro movimento de entrevistas, a amostra orientou-se pelas

divisões (áreas) de trabalho no interior da cooperativa, que são: coleta externa,

triagem, telha (papel), plástico, educação ambiental e conselho administrativo,

contemplando todas elas. Os sujeitos da amostra são os seguintes: um

cooperado pertencente à diretoria (Nair); triagem (Maria Meonice, a Mel); área

da telha (Júlio); área do plástico (Marinete); educação ambiental (Viviane) e

dois cooperados da coleta externa (Sebastião e Rosalino). Optou-se por

entrevistar dois cooperados envolvidos na coleta externa por essa atividade ser

considerada pelos cooperados a mais desgastante no processo de trabalho.

A amostra foi não-probabilística e nenhum dos entrevistados tinha, no

momento das entrevistas, menos de um ano de cooperativa, pois os ditos

novatos podem não ter ainda tempo suficiente de trabalho para ter opinião

sobre os processos internos. Por outro lado, buscou-se não entrevistar apenas

cooperados que estivessem presentes desde a fundação, da Cooprec,

priorizaram-se cooperados que se situassem entre esses dois grupos.

Dessa forma, do grupo entrevistado são sócios-fundadores: Nair, Mel e

Rosalino (ingressaram portanto, em 1998), Júlio (em 2002), Sebastião (em

2003), Marinete (em 2004) e Viviane (em 2005).

O roteiro de entrevistas buscou identificar como os cooperados

percebem o trabalho na cooperativa, o que entendem sobre cooperativismo,

quais suas perspectivas sobre o futuro da Cooprec e sobre o seu próprio.

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Todas as entrevistas formam gravadas.

A aproximação com os cooperados ocorreu na própria cooperativa, local

onde foram realizadas as entrevistas, e de modo geral, todos receberam bem a

proposta.

Maria Meonice (Mel), a primeira a ser entrevistada, demonstrou

dificuldade com o gravador, respondendo sucintamente às questões. Houve

uma interrupção pois a chegada de um caminhão impedia a audição. Após o

desligamento do gravador, ela retomou a fala e de forma mais livre recolocou

questões que estavam presentes no roteiro. Anotou-se essa fala, para melhor

compreensão, embora o seu conteúdo não seja utilizado no texto. A entrevista

com seu Rosalino foi a mais longa, marcada por um tom de desabafo, de

cansaço, em relação às dificuldades do trabalho. Marinete e Julio

demonstraram receio em não saberem responder às questões, mas após

esclarecimento do que se tratava e do incentivo de Maria Meonice, resolveram

participar do estudo. A entrevista com Nair foi marcada pela emoção, nos

momentos em que se perguntou se ela pensa em sair da cooperativa. ela

chorou muito, antes de responder afirmativamente. Como seu Rosalino,

demonstrou tristeza pelas dificuldades da cooperativa. A entrevista com

Viviane, foi tranqüila, alegre e empolgante. Ela respondeu com entusiasmo a

todas as questões e declarou muita alegria por participar da Cooprec.

Sebastião ao contrário, relutou muito em dar a entrevista, após ser esclarecido

que sua opinião era importante, mas que só seria entrevistado se sentisse à

vontade, assentiu na realização.

Percebeu-se, entretanto, que o questionário não foi suficientemente

adequado para apreender a história da Cooprec e sua relação com os sujeitos

que a construíram. As questões demasiadamente fechadas implicam

respostas monossilábicas. Uma das questões não foi compreendida pelos

cooperados, que tiveram muita dificuldade em respondê-la, por tratar-se de

uma valoração acerca das ocupações da sociedade capitalista e na

cooperativa.

As transcrições foram realizadas pela pesquisadora, mas, como a

gravação foi feita na própria usina, houve dificuldades na transcrição, pois em

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todas há ruído ao fundo, ora de caminhões, ora do maquinário, por vezes de

cachorros e de aviões (a cooperativa localiza-se nas proximidades do

aeroporto de Goiânia).

Ainda assim, parte das narrativas obtidas nessa fase de aproximação

foi utilizada e compõe o texto nos capítulos II e III com as narrativas de outras

três entrevistas realizadas com base na metodologia de história oral.

História oral

A utilização da metodologia de história oral apresenta-se como a mais

adequada para a apreensão da experiência dos sujeitos. Essa apreensão

ocorre por meio da escuta de narrativas, que são intercâmbios de experiências,

portanto, impregnadas pela visão do narrador. Benjamin (1994, p. 205), acerca

da narrativa, diz que

ela não está interessada em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso.

O relato oral constitui, a maior fonte humana de conservação e difusão

do saber. Em todas as épocas, a educação humana baseava-se na narrativa

que encerra a experiência que se procura traduzir em vocábulos. E “tudo

quanto se narra oralmente é história, seja a história de alguém, seja a história

de um grupo, seja a história real, seja ela mítica” (Queiroz, 1991, p. 5).

Utiliza-se dessa feita a história oral, por ser uma metodologia qualitativa

de pesquisa que permite conhecer a realidade passada e presente, por meio

da experiência e da voz daqueles que a viveram (Lang, 2000). Trata-se, neste

estudo, dos depoimentos orais dos sujeitos, acerca de sua vivência na

Cooprec, com o objetivo de explicitar sua versão qualificada.

Portelli (2004, p.11), ressalta que as narrativas constituem uma auto-

representação do narrador, impregnada de subjetividade e de memória, do

modo como deseja ser visto, constituem também uma auto-representação da

instituição a que se reportam. A narrativa implica necessariamente o uso da

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memória, o autor destaca que

a memória é um processo individual, que ocorre em um meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e compartilhados. Em vista disso, as recordações podem ser semelhantes, contraditórias ou sobrepostas. Porém em hipótese alguma, as lembranças de duas pessoas são – assim como as impressões digitais, ou, a bem da verdade, como as vozes – exatamente iguais. (Portelli, 1997, p. 16)

Com a história oral, buscam-se os significados que os sujeitos atribuem

às suas experiências, a intensidade de suas vivências: não importa o número

de entrevistas realizadas, mas a apreensão do significado dos relatos para os

sujeitos, tendo em vista os propósitos da pesquisa. (Martinelli, 1999). A

definição dos sujeitos, portanto, é intencional, e os critérios de eleição são

estabelecidos de acordo com os objetivos da pesquisa.

Nessa trilha, a definição dos sujeitos para um novo momento de

entrevistas, orientou-se pelo seu tempo de cooperativa, por sua relação

orgânica nos debates e encaminhamentos referentes à gestão da cooperativa e

dos desafios encontrados desde sua fundação.

A aproximação com os cooperados, como já foi dito, é anterior à

formulação do projeto de pesquisa. O trabalho por dois anos no IDF

oportunizou inúmeras visitas, reuniões, acompanhamento de eventos,

discussões sobre a usina, contratos e parcerias. Em uma das reuniões

ordinárias foram explicitadas as razões para o afastamento do trabalho no IDF

para a realização do curso de mestrado e a escolha do objeto de estudo, a qual

foi recebida com entusiasmo.

Durante o segundo semestre de 2005, as visitas à cooperativa e ao IDF

visaram a apropriação da documentação: estatuto e regimento da Cooprec,

projeto de construção da usina, relatório de execução do projeto, contrato de

comodato entre Cooprec e IDF, contrato entre Cooprec e a Companhia

Municipal de Limpeza Urbana de Goiânia (Comurg), plano de trabalho do IDF,

com intuito de esclarecer a relação entre as instituições.

Em janeiro, de 2006, como já explicitado, procedeu-se a feitura de sete

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entrevistas. Após um ano de afastamento10, o contato foi reestabelecido em

janeiro de 2007.Primeiramente foram realizadas visitas, afim de apreender a

conjuntura, tomar conhecimento de como fora o ano de 2006. Observou-se que

muitos sócios-fundadores haviam saído da cooperativa. Em 2005, por ocasião

do início do estudo, a Cooprec tinha 30 cooperados, dos quais 50% eram

sócios-fundadores, em janeiro de 2007, o número de cooperados é de 32, dos

quais 28% são sócios-fundadores e 53% têm menos de um ano de trabalho na

cooperativa. Para obtenção de informações complementares foi realizado o

levantamento do perfil socioeconômico dos cooperados em fevereiro e março

de 2007.

Após um primeiro momento de (re)aproximação, marcado por

conversas, participação em alguns eventos de formação dos cooperados,

reuniões e uma assembléia, explicitou-se aos sujeitos, a necessidade de

realização de outras entrevistas. A amostra priorizou cooperadas sócio-

fundadoras, que estiveram ativamente presentes em momentos decisivos da

cooperativa em seu processo histórico. A quantidade, local e data das

entrevistas, foram definidas após consulta à Diretoria.

Nessa perspectiva, o segundo momento de entrevistas, realizado em

março de 2007, teve como sujeitos: Nair Rodrigues Vieira; Laíde da Silva

Oliveira e Lúcia Ivani Pinheiro, todas pertencentes ao conselho administrativo.

Nair Rodrigues Vieira tem 49 anos, nasceu em Poções, Bahia. Ainda

adolescente passou a residir em Goiânia, com a família. Há 20 anos mora com

o esposo, que é pedreiro, no Jardim Dom Fernando I. Tem três filhos, o mais

velho Igo (22 anos) é servidor público concursado e trabalha na Universidade

Federal de Goiás (UFG), onde faz o curso superior de computação, Bruna (19)

trabalha como operadora de caixa e faz curso técnico e Márcia (17) está

concluindo o ensino médio. Nair tem o ensino médio e está na Cooprec desde

sua fundação. Por duas gestões esteve na presidência da cooperativa. Tem

ainda outro trabalho, é servidora pública estadual e trabalha à noite, em uma

escola da região. A entrevista com Nair foi realizada no Núcleo de Educação

Ambiental e Saúde (Neas) do IDF, que fica ao lado da Cooprec e é utilizado por

10 Para cursar os créditos obrigatórios do curso de mestrado, em São Paulo.

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ambas as instituições. É um local agradável, com muito verde, e a sala onde se

fez a entrevista, permite isolamento e ambientação adequados. A entrevista foi

longa e rica em detalhes sobre a sua história e a relação com o instituto.

Lúcia Ivani Pinheiro tem 58 anos, nasceu em Pires do Rio, interior de

Goiás. É viúva e mora atualmente com o filho, Roberto, que trabalha na

cooperativa como ajudante de caminhão, embora não seja cooperado. Os

outros filhos, já casados, moram em Goiânia. Lúcia é sócio-fundadora da

Cooprec e sempre esteve diretamente vinculada à educação ambiental, e

atualmente está na presidência da cooperativa. É também ativista da economia

solidária participando de fóruns e debates por todo o país. A entrevista de

Lúcia, ocorrida no mesmo local, foi breve, contudo rica em significados.

Laíde da Silva Oliveira tem 38 anos e casada com seu Francisco,

taxista. Tem dois filhos, Jacqueline (18 anos), que cursa direito e estagia na

área, e Lucas (13 anos), estudante do ensino fundamental. Lucas recebe

salário-escola do governo estadual. Laíde mora há 15 anos no Jardim Aroeiras.

Tem uma incrível habilidade manual e sempre gostou muito de artesanato, e

atualmente está na diretoria financeira da Cooprec. A entrevista com Laíde foi

realizada em sua casa com seu filho nos servindo café. Sua filha e esposo

chegaram à casa durante a entrevista, momentos em que se processaram

breves interrupções que não alteraram o conteúdo da narrativa.

As questões instigadoras para essas três entrevistas foram: o

surgimento da Cooprec e o relato contando como cada uma ingressou na

cooperativa; o que se recordam dos anos de trabalho; as percepções no

tocante ao momento pelo qual passa a cooperativa e suas perspectivas futuras.

Todas entrevistas foram gravadas e transcritas pela pesquisadora e

devolvidas aos os sujeitos para verificação11. Na edição, buscou-se não alterar

a fala original dos sujeitos, deixando-as o mais próximo da maneira como se

expressaram. Pretende-se com isso reproduzir o sotaque goiano, com suas

palavras incompletas, entonação, recortes e concordância peculiares.

Justifica-se essa decisão, pois as oralidades, então repletas de “signos,

sentimentos, significados e emoções, expressa pelo narrador ao pesquisador”,

11 Também o foram as entrevistas realizadas em 2006.

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de forma que se busca na construção do texto minorar a defasagem entre

escuta e a escrita. No mesmo sentido a não-observância rígida das normas

gramaticais, busca revelar o tom, o ritmo, a entonação, e se atenta “para [o]

teor emocional existente nos conteúdos das narrativas, quanto a velocidade,

pausa, pontuação, intenção, mudanças de discursos e oscilações, que se

desvelam mais pelo ato de ouvir, que de escrever” (Cassab, 1999/2000, p. 10).

Procurou-se, também, recortar o mínimo possível as entrevistas,

excluindo-se apenas trechos que não se vinculavam diretamente à temática do

estudo, ou, ainda, as repetições. Para a exposição, procedeu-se ao

agrupamento de trechos em tópicos, cujos conteúdos apresentam tendências

semelhantes nas narrativas dos sujeitos. A intenção é mostrar a Cooprec e

como foram esses anos de trabalho.

Lang (2000) ressalta que, em relação à análise das narrativas, em que

se utiliza a metodologia da história oral, há dois procedimentos bastante

distintos. Alguns pesquisadores expõem as narrativas na integra, depois de

transcritas e editadas, com uma introdução, na qual se aponta o problema da

pesquisa. Para outros, dentre os quais a autora se inclui, o trabalho da história

oral não se esgota na realização da entrevista, gravação, transcrição, edição e

arquivamento, ele precisa ser interpretado, analisado.

Neste estudo, optou-se pela analise das narrativas. Nas palavras de

Queiroz (1991, p.92),

por análise, no sentido operacional do termo, entende-se o recorte de uma totalidade nas partes que a formam, que são então apreendidas na seqüência apresentada em sua naturalidade para, num segundo momento, serem restabelecidas numa nova coordenação. Num e noutro momento, isto é, na decomposição e na subseqüente recomposição, obedece-se tanto quanto possível às relações existentes entre as partes. (Queiroz, 1991, p.92)

A utilização dos nomes verdadeiros no relatório da pesquisa foi uma

opção dos sujeitos entrevistados.

As entrevistas estão dispostas no segundo e terceiro capítulos. Como

foram realizadas duas entrevistas com Nair, a primeira, de janeiro de 2006 foi

grafada assim Nair (1ª), e a segunda, de março de 2007, Nair (2ª).

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O estudo está disposto da forma que segue. O primeiro capítulo trata

rapidamente a história do cooperativismo, sua relação com a revolução

industrial inglesa, pontua sua inserção no Brasil, com as particularidades

brasileiras e chega até o período em que se desenvolvem experiências de

economia solidária. O segundo relata o surgimento da Cooprec, sua forma de

funcionamento e o contexto na qual se insere. O terceiro versa sobre o mundo

do trabalho, a problemática do desemprego seus vínculos com a experiência

da Cooprec e com o cooperativismo de produção e trabalho. Por último, são

apresentadas as considerações finais.

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CAPÍTULO I

TRAJETÓRIA HISTÓRICA DO COOPERATIVISMO:

“Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos”

Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos; aquela foi a idade

da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a

época da descrença, foi a estação da Luz, a estação das Trevas, a

primavera da esperança, o inverno do desespero; tínhamos tudo diante

de nós, tínhamos nada diante de nós, íamos todos direto para o Paraíso,

íamos todos direto no sentido contrário – em suma, o período era em tal

medida semelhante ao presente que algumas de suas mais ruidosas

autoridades insistiram em seu recebimento para o bem ou para o mal,

apenas em grau superlativo de comparação

Charles Dickens

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A trajetória histórica do cooperativismo é fundamental para a

apreensão de como a Cooperativa de Reciclagem de Lixo12 (Cooprec) se

insere nas relações próprias da sociedade capitalista. A Cooprec é uma

cooperativa de produção, uma forma de organização do trabalho própria de um

determinado período histórico e só se tonra possível pela necessidade de

encontrar respostas para alguns dilemas contemporâneos, como a produção

de lixo urbano e o desemprego estrutural.

Por ser uma experiência de trabalho, é imprescindível situar, ainda que

brevemente, o lugar deste estudo no que diz respeito ao debate sobre a

categoria trabalho.

Entende-se que a discussão do trabalho e sua dimensão ontológica na

constituição do ser social é imprescindível para a apreensão da sociedade

moderna, da experiência da Cooprec e da identidade do trabalhador. Dessa

forma podem-se compreender as conexões com a situação de desemprego

que se agrava desde a década de 1980, sobretudo nos anos 1990, e apontar

indicativos para a análise do cooperativismo nessa conjuntura econômica.

A categoria trabalho é entendida em Marx como fundante do Ser

Social. É por meio do trabalho que o homem se distingue do meio natural,

puramente biológico, transformando-o em bens necessários à reprodução

social. Nas palavras de Lessa (2002, p. 29-30), o trabalho

é a atividade humana que transforma a natureza nos bens necessários à reprodução social. Nesse preciso sentido, é a categoria fundante do mundo dos homens. É no e pelo trabalho que se efetiva o salto ontológico que retira a existência humana das determinações meramente biológicas. Sendo assim, não pode haver existência social sem trabalho. (...) O trabalho enquanto categoria fundante é o complexo que cumpre a função social de realizar o intercâmbio orgânico do homem com a natureza, é o conjunto de relações sociais encarregado da reprodução da base material da sociedade.

12 Faz-se necessário, de antemão, explicitar que embora no nome da cooperativa conste reciclagem de lixo os cooperados esclarecem que trabalham com resíduos sólidos, chamados no interior da cooperativa de material, matéria-prima, que lixo é o rejeito levado para o aterro sanitário.

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É, portanto, o trabalho o componente distintivo do homem como ser

prático-social, por conseguinte histórico: produto e criador da vida em

sociedade (Iamamoto, 2006).

De acordo com a teoria social de Marx homem é um ser genérico, pois

se relaciona consigo mesmo como tal, e com a natureza como universal, como

ser livre. Essa universalidade está presente a medida que ela é um meio de

vida imediato e a matéria, o objeto e o instrumento da atividade vital. A

atividade física e mental do homem estabelece constante processo com a

natureza, para não morrer, o homem está intimamente ligado à natureza, pois

ele é parte integrante dela (Marx, 2003a).

O trabalho é a atividade vital, racional, específica do homem, pela qual

ele mediatiza a satisfação da suas necessidades humanas pela transformação

da realidade material, modificando sua forma natural e produzindo valor de uso.

O trabalho concreto, formador de valor de uso, é condição da vida humana,

independentemente da forma de sociedade (Iamamoto, 2006).

Na sociedade capitalista, entretanto, o trabalho concreto com sua

qualidade, teleologia, valor de uso, atribuições, assume os componentes do

trabalho abstrato, cujo valor de troca superdimensiona o valor de uso, e o

trabalho passa a ter para o trabalhador a característica de gerar estranhamento

e desumanização.

O trabalho abstrato é uma atividade social mensurada pelo tempo de

trabalho socialmente necessário e produtor de mais-valia. Resulta na

submissão dos homens à lógica produtiva capitalista, forma social que nos

transforma a todos em coisas articulando a vida pelo fetichismo da mercadoria.

(Lessa, 2002).

Na sociedade capitalista, o trabalho é moldado de tal forma que se

apresenta como exterior ao trabalhador, não pertencendo à sua essência,

portanto, ele não se afirma no trabalho, antes se nega nele, não se sente bem,

mas infeliz, não desenvolve energia mental e física livre. Não se trata de

trabalho voluntário, mas compulsório, não é satisfação de necessidade, mas

apenas um meio para satisfazer necessidades fora dele (Marx, 2003a).

A exterioridade do trabalho decorre de o trabalho não ser do próprio

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trabalhador, mas sim de outro. A relação do trabalhador com o produto do

trabalho é percebida como um objeto alheio que tem poder sobre ele; a

relação, do trabalhador com o ato de trabalho, que também se torna uma

atividade alheia a ele, é realizada com sofrimento, como uma atividade voltada

contra ele, independente dele, não pertencente a ele e, por fim; aliena do

homem o gênero, faz da vida do gênero um meio de vida individual, tornando a

vida individual um fim da vida do gênero (Marx, 2003a).

Mas se o trabalho está alheio ao trabalhador, o ser alheio ao qual

pertence o trabalho só pode ser o próprio homem. Em outras palavras, se o

trabalho se apresenta ao trabalhador como atividade não-livre, então está a

serviço, sob o domínio de outro homem (Marx, 2003a).

Na sociedade capitalista, a relação de defasagem entre os homens se

dá por intermédio da propriedade privada. É ela que justifica que um homem se

distinga de outro homem, podendo subjugá-lo. Segundo Marx (2003a, p. 161)

“a propriedade privada resulta, portanto por análise a partir do conceito de

trabalho exteriorizado, isto é, de homem exteriorizado, de trabalho alienado, de

vida alienada, de homem alienado”. A propriedade privada é, ao mesmo tempo,

produto do trabalho exteriorizado, e meio pelo qual o trabalho se exterioriza.

Trata-se da realização dessa exteriorização.

Na perspectiva de apreender a natureza do trabalho no interior das

cooperativas, a seguir será apresentado brevemente a origem do modo de

produção onde a propriedade privada é o meio de exploração de um homem

por outro homem. E nos capítulos subseqüentes a experiência da Cooprec.

1.1 “Aquele foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos”.

A apreensão do cooperativismo contemporâneo ancora-se na trajetória

socioeconômica e histórica do surgimento do modo de produção capitalista, e

do confronto entre o capital e o trabalho. Faz-se imprescindível, portanto,

descrever sucintamente o surgimento do modo de produção capitalista, o

confronto com o proletariado, as primeiras cooperativas. No Brasil, busca-se

pontuar os traços da revolução burguesa nacional, a relação do Estado

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Nacional com as cooperativas, o movimento de economia solidária.

No que pese o conhecimento de que a cooperação existe em todas as

sociedades de que se tem notícias, incluindo as mais antigas, o cooperativismo

moderno, tema deste estudo, germina-se ao tempo em que floresce o que se

chama de modo de produção capitalista, ou sistema capitalista.

Trata-se de um período de tal ebulição econômica, política e social,

que seus efeitos alteraram profundamente a composição da sociabilidade da

sociedade moderna. Em período relativamente curto de tempo, alterou-se o

modus de produzir, criou-se a indústria, e, com ela, tomaram forma conceitos,

nomenclaturas, objetos e maquinário impossíveis de se imaginar até então. Foi,

portanto, um período das grandes revoluções, no dizer de Hobsbawm (2005).

Essa quadra histórica foi marcada por mudanças rápidas nas forma de

viver e produzir mercadorias, pela substituição do artesanato pela produção

industrial, do campo pelas cidades, grandes invenções que revolucionam a

produção, o trabalho feminino e infantil. A demanda da indústria que produziu

com força mecânica e a vapor implicava dura realidade de jornadas exaustivas

de trabalho, condições desumanas de produção e salários miseráveis,

apresentando como saldo miséria, fome, doenças e mortes prematuras para os

trabalhadores (Hobsbawm, 2005).

Cidades surgiram em poucos anos, em um verdadeiro frenesi urbano-

industrial. Pessoas amontoavam-se em moradias inadequadas, e muitos

dormiam na própria fabrica. Inexistia legislação trabalhista, quaisquer questões

eram resolvidas pela polícia.

Engels (1990, p.227), escrevendo sobre os abusos sociais do período

chama a atenção para o

amontoado de uma população arrancada de seu solo nas mais sórdidas habitações das grandes cidades; a dissolução de todos os lucros tradicionais do costume, da submissão patriarcal, da família; a exploração abusiva do trabalho, que, para as mulheres e para os menores, principalmente, tomava proporções assustadoras: a corrupção de massas de trabalhadores lançadas, de súbito, em condições de vida totalmente novas.

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A inserção das máquinas na produção provocou desemprego e miséria

de uma quantidade significativa de artesãos e trabalhadores da manufatura,

pois a grande indústria foi impulsionada pela força de trabalho provinda dos

campos.

A utilização de maquinaria permitiu a produção em escala. A ao fazer

desaparecer a figura do artesão, o capital revolucionou também a forma de

produção. A fábrica caracterizava-se por acomodar em um mesmo ambiente

uma significativa quantidade de trabalhadores, que passaram a colaborar um

com o outro na produção, em uma forma de cooperação simples.

A força coletiva concentrada em um mesmo lugar é maior que a soma

das forças individuais de trabalhadores isolados, em outras palavras, o que se

produz com o trabalho combinado não seria possível com o trabalho individual,

seria necessário a utilização de um tempo muito superior ou contentar-se com

uma escala de produção muito reduzida.

A produção capitalista surgiu quando o capital particular ocupou, ao

mesmo tempo, uma quantidade considerável de trabalhadores, livres, portanto,

capazes de vender sua força de trabalho, e capazes de somá-la em um

trabalho coletivo. Nessa circunstancia, o processo de trabalho ampliou sua

escala e forneceu produtos em quantidade exacerbada (Marx, 2003b).

De acordo com Marx (2003b, 378)

chama-se cooperação a forma de trabalho em que muitos trabalham juntos, de acordo com um plano, no mesmo processo de produção ou em processos de produção diferentes, mas conexos.

A jornada de trabalho coletiva produz maior quantidade de valor-de-

uso que a soma das jornadas individuais de trabalho e reduz o tempo de

trabalho necessário para a produção de determinado bem. Nas palavras de

Marx (2003b, p.382)

a jornada coletiva tem essa maior produtividade, ou por ter elevado a potência mecânica do trabalho; ou por ter ampliado o espaço em que atua o trabalho; ou por ter reduzido esse espaço em relação à escala da produção; ou por mobilizar muito trabalho no momento crítico; ou por despertar a emulação entre os indivíduos e animá-los, ou por imprimir às

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tarefas semelhantes de muitos o cunho da continuidade e da multiformidade; ou por realizar diversas operações ao mesmo tempo; ou por poupar os meios de produção em virtude do seu uso em comum; ou por emprestar ao trabalho individual o caráter de trabalho social médio.

É de toda forma, “a produtividade específica da jornada de trabalho

coletiva” a força produtiva do trabalho social. É na cooperação que o

trabalhador se desvencilha dos limites da individualidade e desenvolve as

capacidades genéricas (Marx, 2003b, p. 382).

A cooperação para o processo de produção é encontrada nas origens

da civilização humana. Tem como características a propriedade comum dos

meios de produção e o vínculo do indivíduo ao grupo. No modo de produção

capitalista, ao contrário, a cooperação toma outras formas. A cooperação

capitalista pressupõe a existência do assalariado livre para vender sua força de

trabalho ao capital e se desenvolve historicamente em confronto com a

economia camponesa e ao exercício independente dos ofícios. Desta forma, “a

cooperação capitalista não se manifesta como forma histórica especial de

cooperação, mas a cooperação é que se manifesta como forma histórica

peculiar do processo de produção capitalista, como forma histórica que o

distingue especificamente” (Marx, 2003b, p. 387-388).

A inserção das máquinas na produção encontrou o enclave da

resistência dos trabalhadores. Os artesãos antepuseram-se à inserção de

máquinas, destruíram casas, empresas, e tentaram de todas as formas impedir

a efetivação do uso da maquinaria na produção. Muitos inventores foram

obrigados a sair da Inglaterra, mas ainda assim era inevitável a difusão do

maquinário. O desenvolvimento da maquinaria naturalmente foi financiado pelo

burguês, que passou a ser proprietário dos meios de produção.

Com a separação entre trabalhador e instrumentos de produção, cada

vez mais o trabalhador passou a depender da venda de sua força de trabalho

para conseguir o sustento de sua família.

Também a terra tinha que ser transformada em mercadoria, passível

de negociação; por outro lado, a grande massa de trabalhadores rurais

precisava ser transformada, ao menos em parte, em trabalhadores

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assalariados, com liberdade de movimento.

Atordoada pelo tumulto da produção, a classe trabalhadora principiou

sua organização, entre 1802 e 1833. Na Inglaterra, foram promulgadas cinco

leis sobre o trabalho, porém não se destinaram recursos para sua aplicação

compulsória, o que reduzia à letra morta essa incipiente legislação fabril13.

Marx (2003b, p. 485) descreve, sucintamente, a situação nas fábricas inglesas:

Os órgãos dos sentidos são, todos eles, igualmente prejudicados pela temperatura artificialmente elevada, pela atmosfera poluída com os resíduos das matérias-primas, pelo barulho ensurdecedor etc., para não falarmos do perigo de vida que advém das máquinas muito próximas umas das outras, as quais produzem sua lista de acidentes da batalha industrial com a regularidade das estações do ano. A diretriz de economizar os meios sociais de produção, diretriz que se concretiza, de maneira cabal e forçada, no sistema de fábrica, leva o capital ao roubo sistemático das condições de vida do trabalhador durante o trabalho. O capital usurpa-lhe o espaço, o ar; a luz e os meios de proteção contra condições perigosas ou insalubres do processo de trabalho.

Neste período, chamado por Dickens (2002) de melhor e pior dos

tempos, afloraram pensadores, militantes, ativistas, teóricos e movimentos de

trabalhadores que se opunham às mazelas sociais produzidas pelo sistema.

Surgiram os socialistas utópicos, as lutas e resistências dos trabalhadores,

intensifica-se a correlação de forças entre capital e trabalho à temperatura da

indústria a vapor.

Tanto na França, como na Inglaterra emergiram tendências teórico-

políticas, que se inscreveram na agenda de enfrentamento entre capital e

trabalho, muitos deles imprescindíveis para a compreensão dos avanços

angariados pelos trabalhadores no período, outros, ainda, indispensáveis para

13 “A história da legislação fabril inglesa de 1833 a 1864 caracteriza bem o espírito do capital. A lei de 1833 estabelece que, a jornada normal de trabalho começa às 5h30 da manhã e termina às 8h30 da noite, e que é legal, dentro desses limites de um período de 15 horas, empregar menores, isto é, pessoas entre 13 e 18 anos, a qualquer hora do dia, desde que o menor empregado não trabalhe, durante um dia, mais de 12 horas, com exceção de casos expressamente previstos. O artigo 6 da lei determina que ‘no curso de cada dia, cada uma das pessoas enquadradas no horário limitado de trabalho terá pelo menos 1h30 para as refeições’. Foi proibido o emprego de crianças com menos de 9 anos, salvo exceção (...) e foi limitado a 8 horas por dia o trabalho de meninos entre 9 e 13 anos. O trabalho noturno, que, segundo essa lei, vai das 8h30 da noite às 5h30 da manhã, foi proibido a todos os menores de 9 a 18 anos” (Marx, 2003b, p.321).

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a compreensão dos enfrentamentos sociais na contemporaneidade.

A reação da classe operária dá-se em três níveis: a) oposição ao

próprio processo de industrialização, defendendo os fundamentos do antigo

regime; b) defesa da democracia; c) criação de formas próprias de organização

social, como os sindicatos e de organização da produção, como as

cooperativas, potencialmente anticapitalistas (Singer, 1998).

A insurreição contra as máquinas ocorreu súbita e violentamente,

como reações explosivas de desespero diante da fome e da miséria. A luta de

classes no período, redundava correntemente em violência, “incêndios,

ataques físicos e até assassinatos de traidores, patrões cruéis e capatazes

odiados”. O movimento que se apresentou com características de organização

foi o dos ludditas, um “seleto bando de homens ousados e desesperados, que

receberam o apoio e a aprovação de seus companheiros trabalhadores”

(Singer, 1998, p. 69).

A luta pela legislação trabalhista ocupou lugar significativo na

Inglaterra que se industrializava. Por volta de 1830/1832, a Grã-Bretanha

esteve à beira de guerra, que não ocorreu porque o rei e a aristocracia

cederam o exercício do poder governamental à burguesia nascente, que

intensificou a exclusão da classe operária do poder. Não obstante, em 1833, foi

aprovada a primeira lei fabril que criava quatro cargos de inspetores de fábricas

(Singer, 1998).

A deterioração da saúde das pessoas em razão do excesso de

trabalho era assustadora, mesmo confrontando-a com períodos escravistas.

Alguns relatos ilustram a situação:

às vezes os garotos não podiam abrir os olhos, o mesmo ocorrendo conosco”; (...) “tenho 13 anos (...) e no último inverno trabalhamos até as 9 horas da noite e no inverno anterior até as 10. No inverno passado, meus pés feridos doíam tanto que eu gritava de dor todas as noites” (...) “Este meu filho, quando tinha 7 anos de idade, eu o carregava nas costas através da neve, na ida e na volta, e ele trabalhava 16 horas. (...) Muitas vezes ajoelhei-me para lhe dar comida enquanto ele estava junto à máquina, pois não devia abandona-la nem deixa-la parar. (Marx, 2003, p. 287)

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A lei dos pobres de 183414 foi elaborada de tal forma que a vida no

campo ficou insuportável. O auxílio-pobreza era oferecido apenas dentro das

novas workhouses15, locais em que os maridos eram separados das esposas e

filhos para evitar o sentimentalismo. Nesse período, as pessoas saíam dos

campos e aceitavam qualquer emprego que lhes fosse oferecido na cidade, e

“na década de 1840, vários condados já estavam à beira de uma perda

absoluta de população, a partir de 1850 a fuga do campo se tornou

generalizada” (Hobsbawm, 2005, p.215).

Em 1836, em Londres, surgiu o movimento pela Carta do Povo, que

ficou conhecido como Cartismo, e que se iniciou com a formação da London

Workingmen1s Association for Benefiting Politically, Socially and Morally the

Usuful Classes – LWMA (Associação Londrina de Trabalhadores para

Beneficiar Política, Social e Moralmente as Classes Úteis). A associação

entregou ao parlamento inglês, em 1837, uma petição na qual constavam os

pontos que posteriormente comporiam a carta: “sufrágio universal masculino,

distritos eleitorais iguais, parlamentos anuais, remuneração dos parlamentares,

voto secreto e nenhuma exigência de propriedade para pertencer ao

parlamento” (Singer,1998, p. 82).

O Cartismo era composto por homens que queriam utilizar a

persuasão e de outros que acreditavam ser inevitável a utilização da força e

propunham, a insurreição. Em um primeiro momento, os moderados

organizaram uma ação de “coleta nacional de assinaturas para uma petição ao

parlamento, pedindo a aprovação da Carta do Povo” (Singer, 1998, p. 82).

Caso a carta não fosse aceita seria desencadeada uma greve geral. Na

primeira tentativa, em 1939, a petição angariou 1.280.000 assinaturas, mas foi

14A lei dos pobres de 1834, considerada a Nova Lei dos Pobres revogou a lei Speenhamland de 1795 que possuía um caráter menos repressor que as leis anteriores: Estatuto dos Trabalhadores (1349), Estatuto dos Artesãos (1563), Lei dos Pobres elisabetanas (entre 1531 e 1601) e Lei de Domicílio (1662). A Lei de Speenhamland “garantia assistência social a empregados ou desempregados que recebessem abaixo de determinado rendimento”. Com sua revogação e a instituição da Lei de 1834, que instituiu a obrigatoriedade do trabalho forçado para trabalhadores pobres capazes de trabalhar, reforçou-se o “predomínio, no capitalismo, do primado liberal do trabalho como fonte única e exclusiva de renda” (Behring; Boschetti, 2006, p. 49-50). 15 “Workhouses: uma casa, quase de detenção, onde eram abrigados os desempregados e os pobres aptos ao trabalho (resultado das leis contra a vagabundagem)” (Hobsbawm, 2005, p. 233).

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rejeitada pelo parlamento. Tentou-se então a insurreição, em 4 de novembro do

mesmo ano 4.000 insurretos atacaram um hotel em que se encontravam trinta

soldados. As tropas cartistas atacavam, mas eram ceifadas pelas armas de

fogo dos legalistas. Após inúmeras baixas os atacantes desistiram, a liderança

acabou presa (Singer, 1998).

Em 1840, o movimento reorganizou-se e preparou um novo abaixo-

assinado, a petição era ainda mais direta que a antecedente, fora assinada por

3.317.702 pessoas, mas, ainda assim, foi rejeitada. Eclodiu no período, mas

por outras razões, uma greve geral, na segunda semana de agosto de 1842,

que foi transformada em luta pelo cumprimento da carta e se alastrou por

várias cidades. Denunciada por O’Connor líder cartista que mudou de posição

durante a greve. O movimento acabou, e ainda assim, representou o primeiro

grande movimento político das massas operárias em defesa da democracia, e

também o primeiro movimento marcadamente antiburguês (Singer, 1998)16.

Os sindicatos nesse período eram formados por trabalhadores

qualificados, artesãos ou operadores de máquinas. Os não qualificados eram

constituídos em sua maioria por mulheres e crianças vivenciando uma

realidade marcada pela pobreza e pelo desamparo, barreiras que dificultavam

a organização. Os trabalhadores qualificados organizavam-se em espécies de

associações chamadas trades ou trade club que tinham como base

organizativa os ofícios. A trade union era composta pela associação de clubes

do mesmo ofício, de diversas cidades, que abrangiam uma região ou um país.

As trade unions podem ser consideradas as precursoras dos

sindicatos, contra elas foram criadas leis que proibiam a associação, no

entanto o próprio avanço da industrialização criava novos ofícios que geravam

novos clubes. De 1799 a 1824, porém a organização econômica dos

trabalhadores em defesa de direitos e contra a industrialização foi tornada

ilegal.

16 Os movimentos ludditas e cartistas precederam as revoluções de 1848 que foram a cabo na Europa Central, constituindo um significativo momento de confronto entre os trabalhadores e o capital (Singer, 1988).

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O ressurgimento dos sindicatos se dá sobre forte influência de Robert

Owen (1771-1858)17, já que a oposição ao avanço da industrialização não

surtia efeitos, os trabalhadores passam a desenvolver um projeto de sociedade

que utilizasse as forças produtivas desencadeadas pelas máquinas e pelos

motores (Singer, 1998).

É nessa quadra histórica que surgiram as cooperativas modernas, com

um viés de reação defensiva diante a degradação das condições de trabalho e

subsistência, as primeiras cooperativas documentadas insurgiram-se contra o

alto preço das mercadorias e bens de primeira necessidade e sua baixa

qualidade. Existem registros documentais de uma cooperativa formada por

trabalhadores dos estaleiros de Woolwich e Chatham, em 1760, que fundaram

moinhos de cereais para não terem que pagar preços injustos aos moleiros. No

mesmo ano, o moinho foi incendiado. A cooperativa de consumo mais antiga

foi a Sociedade dos Tecelões de Fenwick, datada de 1769. A mais antiga

cooperativa de consumo inglesa foi a Oldhan Co-operative Supply Company,

de 1795. Registra-se como cooperativa de produção a formada pelos alfaiates

de Birmingham, em 1777 (Singer, 1998).

Infere-se que as cooperativas possam ter se originado de um

desdobramento das atividades dos trade clubs, como sociedades mutualistas.

Tratava-se de trabalhadores que criaram fundos coletivos para emergências,

como doenças e óbitos, e passaram a organizar fundos para a aquisição de

produtos em comum. Antes da generalização do uso do maquinário a vapor, as

fábricas localizavam-se nas proximidades de correntes d’água, por vezes

afastadas dos centros urbanos.

Os trabalhadores adquiriam bens de primeira necessidade dos

proprietários das fábricas, que os vendiam acima do preço e por vezes com 17 Robert Owen, industrial inglês, filantropo e reformador é um expoente do socialismo utópico inglês e considerado grande influenciador do cooperativismo. Nasceu em Newton, norte do País de Gales, em uma família pobre. Tornou-se proprietário de uma indústria têxtil em New Lanark onde desenvolveu uma série de reformas, com o objetivo de melhorar a vida dos operários. Posteriormente, fundou uma colônia comunitária nos Estados Unidos da América com o nome de New Harmony, que foi um fracasso e consumiu parte de seus bens. Retornou a Grã-Bretanha e se tornou ativista do movimento operário inglês, participando ativamente das Traide Unions. Entre os anos de 1836 e 1844, escreveu e publicou o Livro do novo mundo real. Morreu em 1858, aos 87 anos, ainda em atividade política (Russ, 1991). Sobre Owen, ver Engels (1990), Singer (2002) Magnani (1987).

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adulteração. Ocorria de os trabalhadores não terem provisões para realizar o

pagamento, de forma que, o proprietário funcionava também como financiador,

cobrando altos juros. De modo que a proposta das cooperativas desvencilhava

os trabalhadores dessa relação tripla de exploração pelo capital, “enquanto

empregador, fornecedor e agiota” (Singer 1998, p.91).

Historicamente, a difusão das cooperativas coincide com a Revolução

Industrial. Singer (1998. p. 91) salienta que “tal qual os sindicatos, também as

cooperativas foram sempre iniciativas de trabalhadores qualificados”, que,

possivelmente, dispunham de reservas financeiras para financiar as nascentes

cooperativas. Sua situação ficou crítica com o fim das guerras napoleônicas,

quando tiveram início crises e depressões.

Ao tempo em que se formavam cooperativas com base nos clubes de

ofícios, as idéias de Owen ganharam aceitação dentro e fora da Inglaterra.

Sobre ele, escreveu Engels (1990; p. 227),

um homem cuja pureza infantil atingia o sublime, e que era, ao mesmo tempo, um inato condutor de homens, como poucos. Robert Owen assimilara os ensinamentos dos materialistas do racionalismo, segundo os quais se o caráter do homem é por um lado o produto de sua organização inata, é, por outro, o fruto das circunstâncias que o rodeiam durante sua vida, e, principalmente, durante o período de seu desenvolvimento.

Inspirado parcialmente por Owen, George Mudie reuniu um grupo de

jornalistas e publicou em 1821 e 1822, o primeiro jornal cooperativo, cujo título

era The Economist. Fundaram também a Sociedade Cooperativa e Econômica

de Londres, a primeira cooperativa conhecida na área de Londres. Nessa

época, vários experimentos cooperativos, alguns bastante ambiciosos, foram

efetivados. Centenas de owenistas estabeleceram-se em Orbiston, em 1826,

formando uma comunidade que teve êxito até o falecimento de seu idealizador:

Abraham Combe, em 1827. Dentre as comunidades cooperativas formadas no

período, duas foram dirigidas pelo próprio Owen (Singer, 1998; 2002).

A primeira New Harmony, fundada por Owen, funcionou entre 1825 e

1829 em Indiana, Estados Unidos da América, a outra, Harmony Hall, iniciou-se

em 1839 e durou até 1846. Ambas não tiveram sustentação financeira. New

Harmony levou grande parte da fortuna de Owen e implicou a perda do apoio

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que tinha entre os industriais europeus. Engels (1990, p. 228), ao tratar das

colônias propostas por Owen, observa que

ao abraçar o comunismo, a vida de Owen transformou-se radicalmente. Enquanto se limitara a agir como filantropo, colheu riquezas, aplausos, honrarias e fama. Era o homem mais popular na Europa. (...) Mas, quando formulou suas teorias comunistas, a coisa mudou de aspecto. Segundo ele, os grandes obstáculos que se antepunham à reforma social eram principalmente três: a propriedade, a religião e a forma atual do matrimônio.

Esta posição provocou a perda de seu prestígio e o alijamento da

sociedade oficial. Não obstante, sua ação continuou. Owen dedicou-se

integralmente às lutas da classe operária, nas quais agiu por trinta anos.

“Todos os movimentos sociais e seus melhoramentos reais tentados pela

Inglaterra em prol da classe trabalhadora estão associados ao nome de Owen”,

assinala Engels (1990, p. 229).

Entre 1826 e 1835, mais de 250 sociedades cooperativas foram

criadas, e esse período é considerado como de “máximo florescimento do

cooperativismo owenista” (Singer, 1998, p. 93). A relação entre sindicatos e

cooperativas, no período, era intensa. Os trabalhadores começaram a

reinterpretar o owenismo à sua maneira, transformando a idéia da comunidade

cooperativas em associações operárias autogovernadas, criadas pelos próprios

operários. Essas cooperativas, formadas com base no movimento sindical,

integravam-se diretamente com a luta de classes. Um de seus principais

dirigentes, John Doherty, organizou em 1829 os fiandeiros de algodão em um

sindicato nacional e em 1833-1834, fundou o “Grand National Consolidated

Trades Union (sucessora da Grand National Moral Union de Owen,

possivelmente a primeira central sindical do mundo)” (Singer, 2000, p. 28-29).

Owen implantou, como medida de transição, enquanto a sociedade

não se organizava em totalidade comunitariamente, “duas espécies de

organismos: as cooperativas de consumo e produção”, que mostraram a

inutilidade do comerciante e do fabricante, e “os bazares operários18”, locais

18 “Cumpre notar que a instituição era notadamente engenhosa, na maioria como combinava intermediação comercial e crédito. Os produtos não só tinham acesso a um mercado organizado, formado por eles próprios, como recebiam crédito imediato em notas de tempo de

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nos quais se trocavam os produtos do trabalho por bônus, que funcionavam

como papel-moeda, tendo como unidade a hora de trabalho despendida. Para

Engels (1990), elas necessariamente estavam fadadas ao fracasso, contudo

eram superiores ao banco do povo proudhoniano de intercâmbio, criado

posteriormente.

Singer (1998, p. 94) reconhece que a idéia das cooperativas operárias,

que muitas vezes foram criadas para enfrentar a empresa capitalista, eram

uma iniciativa ingênua, mas acentua que constituíram um “genuíno movimento

de massas, participando diretamente das lutas sindicais”.

A simbiose entre cooperativismo owenista e lutas sindicais provocaram

entre os anos 1833 e 1834 uma represália do capital que, unido ao Estado

aprovou uma lei segundo a qual todos os empregados eram obrigados a

assinar um documento comprometendo-se a renunciar ao sindicato e a negar

apoio aos seus membros. O que provocou um refluxo tanto dos sindicados,

quanto do movimento cooperativista (Singer, 1998).

O movimento cooperativista entrou em um período de letargia, no

período que se seguiu. As ações do operariado contra o capital foram

marcadas pela precariedade. Em 1844, na cidade industrial inglesa de

Rochdale, próxima a Manchester, um grupo de tecelões criou a Society of

Equitable Pioneers. A Cooperativa dos Pioneiros Eqüitativos de Rochdale

tornou-se a matriz das cooperativas modernas. Formada por 28 trabalhadores

de ofício, grande parte tecelões, entre seus fundadores havia líderes owenistas

e cartistas, e há indícios de que a motivação para a criação da sociedade fora

uma longa e desditosa greve, ocorrida em 1844 (Singer, 1998).

A sociedade tinha como objetivo criar um armazém que abastecesse

seus sócios, construir moradias para eles, manufaturar artigos, comprar ou

arrendar terras para se auto-sustentar com o trabalho dos membros.

Primeiramente, foi criado o armazém, e, com ele estabeleceu-se a primeira

regra, a do governo democrático – cada membro representaria um voto,

independentemente do capital investido. A segunda regra era a livre adesão,

trabalho, o que permitia o giro rápido dos produtos sem uso de dinheiro externo. A avaliação em tempo de trabalho cumpria o que seria mais tarde codificado como um dos princípios do cooperativismo de consumo: a prática de preços justos” (Singer, 1998, p. 95).

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desde que a pessoa integrasse uma cota-parte de capital que, no caso, era de

uma libra. A divisão do excedente ocorria da seguinte forma: o valor investido

era remunerado com uma taxa fixa de juros, de 10%, e essa era a terceira

regra. A quarta e correlata à terceira, determinava que as sobras, após

remunerado o investimento, era dividida proporcionalmente às compras de

cada cooperado. A quinta estabeleceu a venda à vista. A sexta determinava a

venda de produtos puros e de boa qualidade. Essas últimas duas regras

excluíram da Sociedade dos Pioneiros os trabalhadores mais pobres que não

possuíam recursos para comprar à vista e pagar por um produto puro. A sétima

cuidava do desenvolvimento educacional dos cooperados, herança owenista, e

a oitava versava sobre a neutralidade política e religiosa dos seus membros

(Singer, 1998).

O autor esclarece que

nenhuma destas regras em si é original; todas elas já tinham sido inventadas e aplicadas por diferentes cooperativas antes dos Pioneiros. Mas, nenhuma cooperativa tinha se regido pelo conjunto das oito e nisso está a inovação que separa o cooperativismo moderno do antigo. É que o conjunto assegura ao mesmo tempo a autenticidade socialista da cooperativa (autogoverno democrático, abertura a novos sócios, educação cooperativa e neutralidade política e religiosa) e a sua viabilidade enquanto empreendimento econômico (taxa fixa de juros, dividendos proporcionais às compras, vendas exclusivamente a dinheiro e venda de produtos puros). (Singer, 1998, p, 102)

Após uns primeiros anos de pouco crescimento, a Sociedade dos

Pioneiros, começou a contar com uma crescente quantidade de sócios, o que

implicava um capital em rápida expansão. De posse de capital, os pioneiros

passaram a diversificar os serviços. Em 1846, iniciaram debates aos sábados;

em 1848, abriram uma sala de leitura de jornais; criaram posteriormente uma

alfaiataria e uma biblioteca; em 1850, fundaram uma cooperativa de produção,

que se chamava Moinho Cooperativo de Rochdale, – que, após problemas

iniciais, passou a suprir os Pioneiros e outras cooperativas da área. Em 1856,

passaram a ter um moinho construído por eles próprios, e as vendas já

atingiram 133 mil libras e os lucros alcançaram 10 mil libras. Abriram um

departamento de confecção de tamancos, fundaram uma segunda cooperativa

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de produção e, entre 1850 e 1855, mantiveram uma escola em sua sede e

transformaram a sala de leitura de jornais e a biblioteca em centro de educação

de adultos (Singer, 1998, p.103).

Contudo, os Pioneiros não conseguiram fugir dos conflitos. Com a

depressão de 1857/1858 e, posteriormente com a guerra civil norte-americana,

em 1862, que provocou escassez de algodão, houve uma fricção entre os

acionistas e os trabalhadores, pois mesmo durante a crise a cooperativa

continuava pagando integralmente os salários. Em votação, decidiu-se retirar o

bônus dos trabalhadores, decepcionados, os pioneiros desertaram do

empreendimento, o que provocou um golpe na causa cooperativista. Ocorre

que sem o bônus, a Sociedade foi transformada em uma empresa capitalista

como outra qualquer, objetivando lucros e dominada pelos acionistas. Ainda

assim, ela continuou crescendo até ser absorvida pela Co-opertive Wholesale

Society (Sociedade Cooperativa Atacadista), em 1906 (Siger, 1998).

Ao mostrar capacidade de adaptação à economia de mercado, com

seus riscos e intempéries, a Sociedade dos Pioneiros de Rochdale tornou-se

modelo para as cooperativas que se formaram posteriormente na Grã-Bretanha

e em todos os países em que o capitalismo se estabelece como modo de

produção. Seu desfecho, contudo, demonstra que o capital coopta as

experiências econômicas bem-sucedidas, transformando-as em empresas

capitalistas.

Ao longo do tempo, movimentos de matizes socialista, comunista,

anarquista, religiosos, realizaram experiências cooperativas. Dentre elas,

destacam-se os assentamentos coletivos judaicos em Israel, chamados Kibutz

que atravessaram todo o século XX, com crescente adesão populacional19.

19 A adesão os Kibutz é livre e a gestão da sociedade é realizada de forma democrática. Os sócios reúnem-se em assembléias, e cada um tem direito a um voto, os membros da administração e do conselho fiscal são eleitos. Não existe distinção entre os associados, e as sobras líquidas são distribuídas de acordo com o princípio: “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo suas necessidades”. De acordo com Pinho (1968?, p. 134) “O Kibutz, por sua organização comunitária total, apresenta originalidades interessantes que convém destacar: como a produção e o consumo são realizados em comum, a vida familiar sofreu modificações. Assim, as famílias não dispõem de casas onde há convivência entre seus diversos membros. Estes são alojados em quartos especiais para casados ou solteiros e as crianças na chamada ‘Casa das Crianças’. As refeições são tomadas em comum em grandes refeitórios, que servem também de sala de reuniões recreativas ou reuniões de assembléias, etc. As crianças possuem refeitório separado e ficam sob os cuidados (...) especiais. Há Kibutz

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Do exposto, ressalta-se o vínculo estreito entre movimento

cooperativista e revolução industrial. A pontuação da história inglesa foi

fundamental, posto que, durante muitos anos, em seu território travava-se

intensamente o confronto entre capital e trabalho que, neste período histórico

teve o movimento cooperativista como uma tentativa de resistência, do

trabalhador aos desmandos do capital.

No Brasil, para compreender o cooperativismo, faz-se mister indicar os

pressupostos da revolução burguesa desencadeada aqui com as

especificidades nacionais.

A revolução burguesa no Brasil

Para Ianni (1985), do ponto de vista histórico, pode-se considerar que

a revolução burguesa no Brasil se situa entre a abolição da escravatura (1888)

e o desfecho da ditadura militar.

De acordo com Ianni (1985), a análise da revolução burguesa

brasileira implica um fértil debate com alguns expoentes20: Sérgio Buarque de

Holanda dedica atenção especial à abolição da escravidão e à ascensão do

trabalho livre, para o autor nessa ocasião ocorre uma transição ou ruptura

qualitativa fundamental. Holanda pondera que não se pode falar de um instante

preciso para a revolução brasileira, mas sim de um processo demorado que

tenha durado ao menos três quartos de século.

Caio Prado Júnior acentua a importância da ruptura com a escravatura

que se somou à imigração de trabalhadores europeus e generalizou o trabalho

livre, ao tempo que o Estado se abriu para as exigências do capitalismo. A

economia brasileira que era voltada para a produção extensiva e em larga

escala de matérias-primas, passou a desenvolver as condições apropriadas

para a produção mercantil.

em que o sistema comunitário é levado ao máximo: o indivíduo tem de seu apenas a escova de dentes e o par de sapatos” 20 As anotações que se seguem sobre a análise da historicidade brasileira encontram-se na obra de Ianni (1985).

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Nelson Werneck Sodré concentra sua análise na burguesia nacional,

que para ele, começou a aparecer ainda antes da proclamação da República,

quando emergiu a acumulação e alargaram-se as relações capitalistas no

campo. Para o autor as principais características da revolução burguesa foram:

existência de massa camponesa numericamente preponderante e principal como produtora de bens econômicos; de numerosa pequena burguesia, com função política destacada; de proletariado pouco numeroso mas crescente, com formas de organziação em desenvolvimento mas ainda fracas; de burguesia recente, ascensional, com amplas perspectivas nacionais e fracas perspectivas internacionais. (Sodré apud Ianni, 1985, p. 30)

Florestan Fernandes ressalta a figura do fazendeiro de café e do

imigrante, estes agentes humanos, que se constituem como protagonistas

históricos da revolução burguesa. Assim, o processo da revolução burguesa

brasileira tornou-se lenta, descontínua, só atingindo as esferas da vida social

organizada nas áreas urbanas de industrialização intensa. No restante da

sociedade brasileira prevaleceu as características históricas anteriores, ao que

as mudanças políticas, ocorridas na década de 1930, procuraram responder,

acelerando as transformações necessárias à revolução burguesa.

Carlos Nelson Coutinho também situa o processo histórico da

revolução burguesa brasileira com a questão da formação de uma economia

caracteristicamente capitalista, com base no salário livre. Para o autor, a

passagem para o capitalismo no Brasil deu-se sem alterações na estrutura

agrária e de forma marcadamente autoritária. A revolução não se aconteceu

autenticamente de baixo para cima, mas como decisão de cúpula de cima para

baixo, para todas as grandes alternativas concretas ligadas à transição –

Independência, abolição, República, modificações do bloco de poder em 1930

e 1937, passagem para um novo patamar de acumulação em 1964. Todas elas

resultaram de decisões de cúpulas que mantiveram marginalizadas ou

reprimidas as classes chamadas sociais, ocorrendo no país uma modernização

conservadora.

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De todas essas interpretações, infere-se que, no Brasil, ocorre uma

modernização conservadora, marcada pelo autoritarismo de Estado, com

alianças de parte das classes dominantes com o poder econômico

internacional em detrimento da população pobre, e manutenção da estrutura

agrária e suas implicações econômicas.

O autoritarismo de Estado no Brasil tem vários exemplos na história

desde os primeiros anos da República (1889-1930), com o domínio no

panorama político nacional da política dos governadores, sob forte influência

das oligarquias rurais destacando-se a cafeeira. O Brasil entrou no século XX,

com baixas taxas de industrialização, e a nascente questão operária21 era

tratada como caso de polícia, como no violento tratamento à greve geral de

1917.

Na década de 1930, no Estado Populista (1930-1964), predominavam

os interesses do bloco industrial-agrário, ainda vinculado ao cultivo do café e à

indústria de bens de consumo duráveis. Contudo, nesse período ocorreu a

criação do parque industrial nacional, cresceu também o setor de serviços, e

por outro lado, cresceu e se generalizou a movimentação de empregados,

operários, funcionários, nas cidades, e, no campo, a insatisfação de colonos,

sitiantes e caboclos com as flutuações da economia cafeeira. Aumentou

também a insatisfação com o despotismo do Estado.

Diante desse quadro, a elite nacional inaugurou uma espécie de

contra-revolução, fez a revolução de cima, para evitar que ela ocorresse de

baixo, em outras palavras, cedeu-se ao povo migalhas que o apazigúe (Ianni,

1985).

Na mudança governamental de 1930, com a ascensão do governo

Getúlio Vargas, operou-se um arranjo entre as classes urbanas e a oligarquia

agrária, pautado na

21 Fala-se de questão operária pois mesmo o país tendo uma baixa taxa de industrialização, já no começo do século XX organizaram-se movimentos de trabalhadores em busca de direitos, inspirados fortemente em idéias anarquistas trazidas ao Brasil por imigrantes europeus.

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industrialização, participação do Estado em assuntos econômicos, tanto para proteger atividades econômicas preexistentes como pra favorecer novas; sindicalismo atrelado ao aparelho estatal; formalização jurídico-política das relações de produção, segundo exigências do capitalismo industrial, conforme a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT); fortalecimento do Estado, em face das exigências do capital e do controle das classes assalariadas, tanto operários como empregados e funcionários. (Ianni, 1985, p. 18)

A marca do Estado getulista foi o autoritarismo e a freqüente repressão

contra operários e camponeses. O poder executivo tinha primazia sobre os

demais, e os espaços democráticos existentes eram restritos. A despeito da

intensificação da industrialização, não se tocou na questão rural embora no

campo vivessem 70% da população nacional (Ianni, 1985).

A partir de 1964, sob a batuta do Estado militar, ancorado em um

poderoso bloco industrial, e sob os ditames do capitalismo financeiro e

monopolista, predominam os interesses da burguesia financeira e monopolista

estrangeira: “Em todas as épocas, os imperialismos inglês, alemão, norte-

americano e outros estão presentes e são decisivos” (Ianni, 1985, p. 21).

Dito isto, e considerando a estrutura histórica do Estado brasileiro e

sua relação violentamente repressora para com os movimentos sociais, parece

historicamente explicável que o cooperativismo brasileiro tenha uma forte

intervenção estatal, com uma legislação nitidamente de cunho liberal e que a

maiorias das cooperativas até a década de 1980 tenham sido criadas no

campo.

1.2 Cooperativismo no Brasil e economia solidária

Registra-se como primeira cooperativa brasileira a Sociedade

Cooperativa Econômica dos Funcionários Públicos de Ouro Preto, fundada em

27 de outubro de 1889. Ela constituía-se como uma espécie de banco, que

previa para seus sócios caixa de auxílio para socorro de sua necessidades e

construção de casas, semelhante aos princípios dos Pioneiros de Rochdale. No

início do século XX, existem registros de cooperativas do ramo de crédito e de

consumo, sobretudo no Rio Grande do Sul, vinculadas ao setor agrário (Pinho,

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2004).

Em 19 de dezembro de 1932, o governo Getúlio Vargas, aprovou a

primeira lei cooperativista brasileira, arrolando as suas características básicas e

criou-se o Departamento de Assistência ao Cooperativismo (DAC’s),

subordinado à Secretaria de Agricultura dos Estados. (Pinho, 2004).

Em 1967, o Decreto-lei nº. 59/66 e seu regulamento, o Decreto n.º

60.567, de 19 de abril, impôs forte controle estatal às cooperativas e

eliminaram a maior parte dos incentivos fiscais de que elas dispunham. (Pinho,

2004).

O período no qual o país foi governado pela ditadura militar foi

marcado por um intenso controle estatal sobre as cooperativas. Em dezembro

de 1971, foi promulgada a Lei n.º 5.764, que definia a política nacional de

cooperativismo e instituía o regime jurídico das sociedades cooperativas.

Posteriormente, a Constituição Federal de 1988 revogou vários dos artigos

dessa lei ao proibir a interferência estatal em associações, mas ela ainda

continua em vigor. (Pinho, 2004).

Um aspecto importante da Lei n.º 5.764/71, foi a criação da

Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), como representação única

do cooperativismo nacional, o que provoca uma grande polêmica nas diversas

forças que compõem o cooperativismo brasileiro na atualidade. Para

organizações da sociedade civil como o Movimento dos Trabalhadores Sem-

Terra (MST) e o Movimento de Economia Solidária, a OCB não representa os

interesses das cooperativas populares, e, por isso, recusam-se a se filiar a ela.

Explicita-se uma das contradições do sistema cooperativista brasileiro,

que criado sob uma forte estrutura de controle estatal e a ele vinculado. A

OCB, de fato, representa um cooperativismo empresarial, que se apropria, de

um lado, dos incentivos estatais e, de outro, do baixo custo trabalhista22 das

cooperativas. Nesse sentido, as cooperativas ditas do campo popular afastam-

se do sistema OCB, buscando independência e autonomia.23

22 Como a relação jurídica de trabalho na cooperativa não gera vínculos trabalhistas para os associados, elas não recolhem impostos trabalhistas, ressalva feita a trabalhadores contratados com carteira assinada. 23 Essa polêmica com a OCB aparece intensamente nos debates da revisão da lei do cooperativismo em tramitação no Congresso Nacional.

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O cooperativismo brasileiro ganhou força com a política de Estado

para o campo, e não é de se espantar que a responsabilidade em relação às

cooperativas, até 2003, estivesse sob a tutela do Ministério da Agricultura e

Abastecimento. Diferentemente do que ocorreu na revolução burguesa inglesa

que destruiu o campesinato, o Brasil industrializou-se, mantendo intacta a

estrutura rural. As cooperativas apresentam-se como política pública para o

rural, e não como movimento de oposição ao capital. Vinculadas à estrutura de

Estado, as cooperativas não se apresentam como forma diferenciada de

organização de trabalho, mas tão-somente, como forma de organização de

produtores para alcançar financiamento público.

A revisão do Código Civil Brasileiro (Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de

2002) introduziu modificações na percepção da cooperativa, como por

exemplo, a não-obrigatoriedade taxativa de um mínimo de vinte associados

para a constituição de uma cooperativa. Entretanto, a Lei n.º 5.764 continua em

vigor, e as alterações do novo Código Civil ainda não estão regulamentadas

(Pinho, 2004).

Nas décadas de 1980/1990 eclodiu um movimento intitulado

Movimento de Economia Solidária, na conjuntura econômica decorrente da

crise da década de 1970 e seus efeitos na economia brasileira, que serão

tratados posteriormente. O Movimento de Economia Solidária compreende as

cooperativas populares que são o foco de discussão deste estudo, além de

articular uma série de movimentos, organizações não-governamentais (ONG’s)

e organizações dos mais diversos matizes.

Ao assumir a Presidência da República, o Governo Luiz Inácio Lula da

Silva, criou a Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes), subordinada

ao Ministério do Trabalho, cujo objetivo é o fomento da economia solidária e do

cooperativismo. A partir de então, o cooperativismo passou a ser tratado pelo

governo como problema do mundo do trabalho, mais precisamente de geração

de emprego.

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Economia solidária

Para Singer (2000; 2002), a economia solidária é uma criação em

processo contínuo de trabalhadores em oposição e confronto com o

capitalismo. Desta forma, ela começou a existir concomitantemente ao

capitalismo industrial. O autor identifica a história da economia solidária com a

própria história do cooperativismo que surgiu como modo de produção e

distribuição alternativo ao capitalismo.

Essa análise leva a uma linearidade na história do cooperativismo que

pode encobrir diferenças significativas. O movimento cooperativista inglês

aflorou como uma forte contestação ao capital, porém, ao difundir-se pelo

mundo, o cooperativismo adaptou-se satisfatoriamente às necessidades do

sistema capitalista.

Singer (2000) percebe a economia solidária como modo de produção

alternativo ao capitalismo, que reúne, além do princípio da unidade entre posse

e uso dos meios de produção e distribuição de bens, o da sua socialização. O

autor alerta que o modo solidário de produção aparentemente constitui-se

como um híbrido entre o capitalismo e a pequena produção de mercadorias,

“mas na realidade, ele constitui uma síntese que supera a ambos” (Singer,

2000, p. 13). A cooperativa de produção é a unidade típica da economia

solidária, e seus princípios organizativos são:

posse coletiva dos meios de produção pelas pessoas que as utilizam para produzir; gestão democrática da empresa ou por participação direta (quando o número de cooperados não é demasiado) ou por representação; repartição da receita líquida entre os cooperadores por critérios aprovados após discussões e negociações entre todos; destinação do excedente anual (denominado “sobras”) também por critérios acertados entre todos os cooperadores. (Singer, 2000, p.13)

Luxemburgo (1990), ao tratar das cooperativas de produção inglesa,

parte da mesma constatação elas se constituem como instituições de natureza

híbrida, mas chega ao resultado inverso do exposto por Singer (2000). Para a

autora, as cooperativas

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constituem uma produção em miniatura que é acompanhada por uma troca capitalista. Mas na economia capitalista a troca domina a produção; por causa da concorrência exige, para que a empresa possa sobreviver, uma impiedosa exploração da força de trabalho, quer dizer, a dominação completa do processo de produção pelos interesses capitalistas. (Luxemburgo, 1990, p. 87)

Desse modo, a forma de organização das cooperativas traduz-se na

necessidade de intensificação do trabalho, na duração da jornada de trabalho,

que se encurta ou se alonga em razão da conjuntura, na contratação ou

dispensa de força de trabalho conforme as necessidades do mercado. Ou seja,

praticam-se os mesmos métodos que permitem a uma empresa capitalista

sustentar a concorrência das outras empresas. A cooperativa de produção tem

a “necessidade contraditória para os operários, de se governar a si própria,

com toda a autoridade absoluta necessária e de os seus elementos

desempenharem entre si o papel de empresários capitalistas” (Luxemburgo,

1990, p. 88).

A economia solidária recebeu uma influência significativa das

cooperativas de produção, sobretudo, no que diz respeito à organização

administrativa do trabalho, e, nesse sentido, são pertinentes para a economia

solidária os dilemas e contradições que o cooperativismo enfrenta, mas a

economia solidária constitui uma realidade extremamente complexa, na qual se

observa uma imensa variedade de iniciativas, como

Sistemas Locais de Emprego e Comércio (...), Sistemas Locais de Trocas (SEL), Sistemas Comunitários de Intercâmbio (SEC), Rede Global de Trocas, Economia de Comunhão, Autogestão de Empresas pelos Trabalhadores, Sistemas de Micro-Crédito, Sistemas de Crédito Recíproco, Bancos do Povo, Bancos Éticos, Fair Trade ou Comércio Ético e Solidário, Agricultura Ecológica, Consumo Crítico, Consumo Solidário, Grupos de Compras Comunitárias, Movimentos de Boicote, Sistemas Locais de Moedas Alternativas, difusão de Softwares Livres (Free Softwares) e inúmeras outras. (Gomes; Mance, 2002, p.15)

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Dentre as cooperativas existe, também, significativa diferença entre

elas. Há cooperativas de grande porte24, que detêm alta tecnologia, se

mostram competitivas no mercado nacional e internacional e movimentam

grande volume financeiro. Há cooperativas de pequeno porte, com um capital

modesto, que empregam tecnologias obsoletas e enfrentam relativa dificuldade

para manter-se no mercado. Há cooperativas de trabalho que dispõem apenas

da força-de-trabalho de seus sócios como capital, e que normalmente,

procuram vender serviços de limpeza, manutenção, coleta de resíduos sólidos,

dentre outros. Há ainda as pequenas associações, algumas ainda sem estatuto

jurídico, formadas por trabalhadores com grande dificuldade para inserirem-se

no mercado de trabalho, como ex-dependentes químicos, ex-detentos, que

normalmente precisam de doações ou apoio externo para sobreviver25.

No Brasil, a economia solidária teve uma trajetória peculiar. Conta com

uma forte presença de instituições externas aos empreendimentos,

universidades, instituições de assessoria e o próprio Estado, e encerra

concepções teórico-políticas heterogêneas para o enfrentamento desse

momento histórico.

Entretanto, não há consenso entre as instituições, nem mesmo no

tocante à denominação de economia solidária. Alguns utilizam socioeconomia

popular e solidária, outros, economia popular e solidária, e outros, ainda,

economia de solidariedade.

O conceito que fundamenta a economia solidária também está em

debate. Para Nuñez (1997), a economia solidária (ecosol) não pode ser

concebida ou desenvolvida fora de um contexto de projeto revolucionário; para

o autor, a diferença entre a economia solidária e as revoluções anteriores é que

não é necessário esperar a tomada de poder político para iniciar o processo

revolucionário. Como nas revoluções burguesas, é preciso criar as bases

econômicas para a tomada de poder político, papel potencial da ecosol.

24 O Complexo Cooperativo de Mondragón, no País Basco, Espanha, é integrado por mais de cem cooperativas de produção e conta com um grande banco (Cajá Laboral Popular), além de uma das maiores redes de supermercados da Espanha, uma universidade e diversas cooperativas de investigação tecnológicas (Singer, 2002). 25 Além das cooperativas de produção, destaca-se a existência de diversos tipos de cooperativas de consumo, crédito, habitacionais e muitas outras, que não são objeto deste estudo.

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Razeto (1997) analisa a questão, dizendo que é necessário colocar o

trabalho acima do capital. O autor insiste na centralidade do trabalho e no

predomínio da solidariedade sobre o individualismo e do ser humano sobre os

produtos e fatores materiais. A economia de solidariedade enuncia, para o

autor, um projeto, ou uma orientação teórica e prática, fundamentalmente

transformadora.

Icaza (2004) distingue os empreendimentos de economia solidária

(EES) do cooperativismo tradicional. Segundo a autora, a economia solidária

começou suas atividades na década de 1980 e se multiplicou na década de

1990, em decorrência do contexto de desemprego que se intensificava no

Brasil, diferenciando-se, dessa forma, do cooperativismo tradicional, que para a

autora, constitui-se em uma opção organizativa e jurídica de acordo com os

limites permitidos pelo capital. A economia solidária, ao contrário, apresenta-se

como um campo de construção de alternativas econômicas ao modelo

dominante.

Para Barbosa (2005), a economia solidária apresenta-se como um

modo de produzir, mas não um modo de produção diferente do capitalista, e só

pode ser compreendida como totalidade inserida no capitalismo. A economia

solidária denota uma perspectiva voluntarista do trabalho com discursos de

exaltação da liberdade, independência do trabalho por conta própria,

argumentando que essa modalidade de trabalho subverte a opressão da

condição de empregado subordinado. Para a autora, a cultura do auto-emprego

apresentada como alternativa positiva, pela cooperação para auto-suficiência

local e grupal, provoca diminuição da pressão por assistência pública.

Barbosa (2005) considera, ainda, que essas velhas práticas, aparecem

como resposta para a crise e estão centralizadas na baixa do custo do

trabalhador “por meio de processos de informalização e precarização” e

destaca ser esse um diferencial importante no estudo da economia social (e

solidária)26.

O debate teórico acerca da economia solidária é bastante fértil, e no

interior do próprio movimento podem-se distinguir tendências teórico-políticas 26 A autora refere-se a crise do capital que se iniciou nos países de economia capitalismo avançado na década de 1970. Assunto que será tratado no capítulo II deste estudo.

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distintas. Dentre elas, destacam-se: a ação social da Igreja, as ações das

incubadoras sociais, as entidades de apoio, que grosso modo, podem-se

caracterizar como organizações não-governamentais (ONGs) como o Instituto

Brasileiro de Análises Sociais e Economias (Ibase), Associação Nacional de

Trabalhadores de Empresas de Auto-Gestão (Anteag), Federação de Órgãos

para a Assistência Social e Educacional (Fase), movimentos sociais, como o

Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) e a Central Única dos

Trabalhadores (CUT) e órgãos públicos como o Ministério do Trabalho e

Emprego, por meio da Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes).

Barbosa (2005, p.174) considera que

a vinculação da economia solidária a movimento social e a narrativas anticapitalistas indicia uma proposição distinta de enfrentamento do desemprego estrutural e da informalidade do trabalho. Entretanto, uma controvérsia se instala na base argumentativa e de atuação dos sujeitos políticos envolvidos. A economia solidária acompanha as recentes tendências dominantes no mundo capitalista contemporâneo quanto a programas de geração de renda em consonância com a reestruturação produtiva e desregulação no campo da proteção social. Responde a isso material e ideologicamente, fomentando formas de ocupação, algumas vezes ampliando o espaço econômico nas periferias e áreas empobrecidas do campo e da cidade, enquanto, igualmente, fomenta a cultura do auto-emprego, contribuindo para essas novas idéias das classes dominantes.

No Brasil, o crescimento da economia solidária está vinculado ao

desemprego estrutural, que começou a se intensificar no país em meados da

década de 1990, vinculado ao problema da crise capitalista da década de

197027. Um de seus expoentes é a Associação Nacional dos Trabalhadores em

Empresas de Autogestão e Participação Acionária (Anteag), fundada em 1991,

para assessorar empreendimentos de trabalhadores que organizam

cooperativas a partir da massa falida de empresas.

Outro forte representante da economia solidária são as Incubadoras

Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCPs), vinculadas às universidades

brasileiras. Existe em todo país uma grande variedade de instituições que

27 Sobre este tema conferir: Antunes (1999); Harvey (1992) e Hobsbawm (1994).

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prestam assessoria aos empreendimentos, algumas ligadas à Central Única

dos Trabalhadores (CUT).

A CUT criou em 1999 a Agência de Desenvolvimento Solidário (ADS),

cujo intuito é “promover a constituição, fortalecimento e articulação de

empreendimentos autogestionários, buscando a geração de trabalho e renda,

através da organização econômica, social e política dos trabalhadores,

inseridos num processo de desenvolvimento sustentável e solidário” (CUT,

2007). A ADS articula-se com o movimento de economia solidária, fomentando

ações de economia solidária e desenvolvimento sustentável e de constituição

de cooperativas e empreendimentos coletivos solidários “como um meio de

gerar trabalho e renda para trabalhadores que buscam formas alternativas de

inserção social”28 (CUT, 2007).

O MST, por sua vez, em sua forma de organização, optou, em alguns

de seus assentamentos, pela organização coletiva da produção, obtida pela

criação de associações, grupos coletivos de trabalho e cooperativas:

optou-se pela criação do Sistema Cooperativista dos Assentados – SCA, com objetivo de buscar maior articulação e afinidade entre as diversas formas de cooperação, elaborar e aplicar políticas homogêneas de desenvolvimento, formar quadros organizadores da cooperação, elaborar programas de capacitação em todos os níveis, elevar a produção agropecuária, melhorar a produtividade do trabalho nos assentamentos, e com tudo isto atingir melhorias significativas nas condições de vida das famílias assentadas. (MST, Apud Barbosa, 2005, p. 195)

No que se refere ao caráter ideopolítico, percebe-se que a economia

solidária encerra uma complexidade reveladora de contradições e dilemas.

Existem divergências e congruências que merecem atenção.

Singer (1998) chama a atenção para a necessidade de reconceituar a

revolução social socialista. Para o autor, o fracasso do socialismo real implica a

necessidade de construção do socialismo pela livre iniciativa dos trabalhadores

de baixo para cima. Reafirma que o socialismo pressupõe a transferência do

controle efetivo dos meios de produção para os trabalhadores, mas essa

transferência não pode se dar por um ato jurídico-político e sim pelo desejo dos 28 Disponível em www.cut.org.br, acessado em: 16 jul. 2007.

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trabalhadores, o que pressupõe longo tempo, pois implica uma revolução

cultural da qual, trabalhadores assalariados se transformem em

empreendedores coletivos.

O socialismo a ser construído por meio da economia solidária, tem

como principal fundamento o conceito de autogestão. Nesse sentido, faz-se

necessário destacá-lo e apreender seu significado.

Autogestão

O termo autogestão é recente, aparece em língua francesa no início

dos anos 1960, e foi utilizado para designar a experiência político-econômico-

social da Iugoslávia de Tito29, em ruptura com o stalinismo (Guillerm; Bourdet,

1976).

O conceito, entretanto, possui raízes mais antigas, ancoradas no

ideário libertário, sobretudo nas anotações de Pierre-Joseph Proudhon30 (1808-

1865), sobre a democracia industrial (Motta, 1981). Autogestão significa a

organização direta da vida coletiva em todos os níveis, por meio de conselhos

e assembléias, nas quais todas as questões são decididas democraticamente

(Bottomore, 1988).

O pensamento proudhoniano tem como pilar central o debate sobre o

tema da posse privada da propriedade, anunciado em seu livro O que é a

propriedade? (Proudhon, 1988). Ele demonstra que a propriedade é irracional,

injusta, não passando de uma apropriação operada pelo capital em detrimento

do trabalho. Segundo Motta (1981), cabe salientar que a propriedade pode ser

entendida tanto como o direito que uma pessoa tem de utilizar um bem pelo

29 Josip Broz Tito, primeiro ministro Iugoslavo de 1945 a 1953 e presidente de 1953 a 1980 durante a ocupação iugoslava por Mussolini e Hitler na segunda guerra mundial, conseguiu libertá-la sem a ajuda do exército vermelho russo. Fundou a República Socialista Federal da Iugoslávia, que agrupava seis repúblicas: Sérvia, Croácia, Eslovênia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro e Macedônia. Criou um sistema rotativo para o governo, no qual cada uma das repúblicas indicava o presidente por um período. Tito manteve um conduta de independência em relação a Moscou. Em 1948, os dois paises romperam oficialmente. 30 Escritor francês, considerado o patriarca do anarquismo. Envolveu-se em uma polêmica com Marx em 1846. Marx, em resposta ao seu livro Filosofia da miséria, escreveu a crítica intitulada Miséria da filosofia. Sobre este assunto conferir: Jackson, (1963), Gurvitch (1960/1970?.); Netto (2004); Motta (1981). Os dois primeiros apresentam a síntese biográfica de Proudhon e Marx; os demais fazem análises da contenda. A obra de Motta (1981) traz a integra das cartas trocadas entre os autores dois anos antes.

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qual é responsável, quanto pelo fato econômico de que a propriedade dá o

direito a alguém de usufruir de riquezas pelas quais não trabalhou.

De acordo com Motta (1981), para Proudhon a sociedade é fundada

na organização do trabalho. É o trabalho que gera a riqueza socialmente

distribuída, e o trabalho coletivo é o motor que impulsiona a sociedade

moderna. O trabalho coletivo é superior e diferente da soma dos trabalhos

individuais, embora o trabalhador seja remunerado apenas pelo trabalho

individual e não pelo trabalho coletivo. A apropriação do excedente gerado pelo

trabalho coletivo é realizada pelo proprietário dos meios de produção.

Desta forma, Proudhon elabora uma proposta de submissão da posse

da propriedade a um novo tipo de sistema econômico, no qual o trabalhador se

apropria coletivamente do trabalho realizado coletivamente. A esse novo

sistema econômico Proudhon denomina de mutualismo, ou democracia

econômica (Motta, 1981).

O trabalho, para Proudhon, produz e reproduz relações de

cooperação. Dessa forma, repele incessantemente a autoridade e a hierarquia,

e, por conseguinte, o governo. A ordem decorre, naturalmente, da ação dos

trabalhadores e da sua autogestão em uma sociedade contratual, livre das

desigualdades (Motta, 1981).

A idéia de mutualidade, para Proudhon, é tão antiga quanto o estado

social. Para ele pode-se perceber, de tempos em tempos, sua potência

orgânica e sua dimensão revolucionária. Diz Proudhon (1986, p. 118) que o

princípio de mutualidade foi expresso pela primeira vez na Declaração dos

Direitos e Deveres do Homem e do Cidadão, nos seguintes termos: “Não façais

aos outros o que não desejaríeis que vos fizessem; Fazei constantemente aos

outros o bem que gostaríeis de receber”. Ele supõe que o indivíduo seja livre e

tenha discernimento do bem e do mal, ou seja, possua em seu íntimo a justiça.

A mutualidade funda-se no princípio de que a realidade econômica é

pluralista, ou seja, é constituída espontaneamente por um conjunto de grupos e

pessoas, autônomos e solidários que compõem o tecido social. Assim a

reorganização da indústria deve efetivar-se sob a

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jurisdição de todos aqueles que a compõem, isto é, de todos os grupos e de todas as pessoas qu dela participam, seja como produtores ou consumidores. Reconhecer a autonomia desses grupos e dessas pessoas por uma organização autogestonária e sua solidariedade por um regime federativo, serão os dois princípios dessa constituição pluralista. (Motta, 1981, p. 153)

Dessa forma, a mutualidade expressa-se na democracia econômica,

que se estrutura pela posse e a gestão coletiva dos meios de produção. Seu

correspondente político é o princípio federativo, sinônimo de mutualidade, que

se expressa pela organização federalitiva dos grupos geográficos. A República

Federativa é um corolário da democracia econômica, fundada na federação

agrícola-industrial e no sindicato da produção e do consumo (Motta, 1981).

Na trajetória histórica moderna, a autogestão veio a curso em alguns

momentos, dentre eles, destaca-se: a Comuna de Paris (1871), insurreição de

trabalhadores franceses que durou dois meses, nos quais a produção

capitalista foi substituída por uma nova organização:

as oficinas da Comuna foram, (...) modelos de democracia proletária. Os operários nomeavam-se seus gerentes, seus chefes de oficina, seus chefes de equipe. Reservavam-se o direito de demiti-los se o rendimento ou as condições de trabalho não fossem satisfatórios. Fixavam seus salários e horários, as condições de trabalho; melhor ainda, um comitê de fábrica se reunia todas as tardes para decidir o trabalho do dia seguinte. (Guillerm; Bourdet, 1976, p. 111)31

Entre os anos 1917 e 1937, os conselhos de fábricas na Europa

Central, Itália e Espanha também apresentavam vieses autogestionários. Na

Espanha, as comunas, nas primeiras décadas do século XX sob forte influencia

anarquista, organizaram conselhos operários que autogeriram as fábricas em

Barcelona. A Federação Anarquista Ibérica (FAI) criou a Coluna, cujo objetivo

era lutar contra o exército de Franco e realizar imediatamente o comunismo. A

Coluna fundou coletividades inteiramente autogeridas, “às vezes a

participação dos lucros se fazia com a ajuda de um ‘salário’, igual para todos,

sob forma de bônus; outras vezes, sem moeda alguma, as pessoas pegavam o

31 Grifos nosos.

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que precisavam no armazém comunal” (Guillerm; Bourdet, 1976, p. 122).

Na Iugoslávia, a burocracia concedeu a (co)gestão das fábricas aos

operários, mas manteve a gestão política central nas repúblicas e na

federação. O sistema era híbrido, e, embora houvesse conselhos operários, a

assembléia geral não delegava poder. Na realidade, o termo conselho era

utilizado para designar a Comissão Executiva da Empresa, que compreendia

aproximadamente quinze membros e eram a representação máxima. A

Assembléia Geral era designada como coletivo operário cujo poder era a

eleição com voto secreto do “conselho operário”. Receando a burocratização,

os iugoslavos criaram unidades de trabalho, encarregadas de organizar a

produção nas oficinas, e fazer emergir o poder da própria fábrica. Em 1960,

instituiu-se uma conferência das unidades de trabalho de toda a empresa, com

poder de controle sobre a direção. O período de 1960 a 1966 é considerado o

apogeu da autogestão iugoslava (Guillerm; Bourdet, 1976)32.

No Brasil, a economia solidária (ecosol) tem na autogestão o cerne do

debate sobre a organização e gestão dos empreendimentos. Sua constituição,

entretanto, guarda especificidades nacionais que devem ser explicitadas. A

ecosol é herdeira de movimentos associativistas, que na sua origem e

desenvolvimento históricos, atuam na perspectiva de movimentos sociais

apresentando potencialidades, ainda que utópicas, de transformação societal.

Em algumas tendências da economia solidária esse traço aparece com

bastante ênfase.

Por outro lado, na conjuntura brasileira a economia solidária adquire

aspectos de variante da política pública, e implica um tensionamento com o

Estado e a resposabilização dele pela geração de emprego e renda.33

Em 2005, a Senaes comandou um levantamento nacional da situação

da economia solidária e produziu o Atlas da Economia Solidária no Brasil

(Brasil, Senaes, 2005). Esse documento indica a existência de 14.954

empreendimentos no país, dos quais 44% estão no Nordeste, 17% na região

Sul, 14% na Região Sudeste, 13% na Região Norte e 12% na Região Centro-

32 Existem outros exemplos de países que utilizaram a autogestão de forma generalizada, como a Argélia (Guillerm; Bourdet, 1976). 33 Sobre Economia Solidária e política pública ver Barbosa (2005).

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Oeste.

Destes empreendimentos, 54% são associações; 33% grupos

informais; 11% Cooperativas e 2%, outro tipo de organização. Quanto ao

motivo de criação do empreendimento, foi solicitado que indicassem três

razões. As respostas foram as seguintes: 45% declaram que são motivados por

uma alternativa ao desemprego; 44% por uma fonte complementar de renda;

41% declararam obterem maiores ganhos; 31% para desenvolver atividade em

que são donos do empreendimento, e 29% por ser condição exigida para obter

financiamento.

A Cooperativa de Reciclagem de Lixo (Cooprec), no qual trabalham os

sujeitos dessa pesquisa, surgiu com uma orientação do cooperativismo popular

tradicional. Desde 2005, integra o Movimento de Economia Solidária,

participando ativamente, do Fórum Goiano de ecosol.

O Movimento de Economia Solidária brasileira agrega o

cooperativismo popular tradicional, mas não se restringe a ele, abarca também

uma série de instituições e organizações envolvidas com a discussão do

consumo justo, sustentabilidade, preservação ambiental e geração de emprego

e renda. Portanto, falar em cooperativismo popular no Brasil, atualmente, é

falar em economia solidária.

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CAPÍTULO II

“ERA UM SONHO A COOPERATIVA, UM SONHO DA GENTE”:

A EXPERIÊNCIA DA COOPREC

Não serei o poeta de um mundo caduco. Também não cantarei o mundo futuro.

Estou preso à vida e olho meus companheiros. Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.

Entre eles, considero a enorme realidade. O presente é tão grande, não nos afastemos.

Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. (...)

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.

Carlos Drummond de Andrade

“Eu fico, sabe, eu fico às vezes... chego em casa, as vezes cansado, e fico pensando puxa vida! Tantos anos assim né, era um sonho a cooperativa, um sonho da gente.”

Rosalino Gomes do Carmo (cooperado 26 jan. 2006).

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Ao tratar a experiência dos cooperativados da Cooperativa de

Reciclagem de Lixo (Cooprec), buscam-se os indivíduos reais, nas palavras de

Drummond, “o homem presente, a vida presente”, suas ações e condições

materiais de existência, tanto as que já existiam e que eles encontram prontas,

como as que engendram em sua própria ação. Marx e Engels (2002, p. 10)

sustentam que os homens se distinguem dos animais pela consciência, pela

religião, dentre outras características, “mas eles próprios começam a distinguir

dos animais logo que começam a produzir seus meios de existência”. Ao

produzirem seu meio de existência, os homens produzem seu meio material.

Entretanto, a forma como os homens produzem seu meio de existência

depende da natureza dos meios que eles já encontram prontos, mas precisam

reproduzir, e se apresenta um modo determinado de atividade dos indivíduos,

um modo de vida determinado: “A maneira como os indivíduos manifestam sua

vida reflete exatamente o que eles são. O que eles são coincide, pois, com a

maneira como produzem. O que os indivíduos são depende, portanto, das

condições materiais de sua produção” (Marx, Engels, 2002, p.11).

Os homens, ao desenvolverem sua produção material, suas relações

sociais, transformam, com a sua realidade própria, seu pensamento e os

produtos do seu pensamento, pois “não é a consciência que determina a vida,

mas sim a vida que determina a consciência”. Parte-se, dessa forma, dos

indivíduos reais e considera-se a consciência unicamente como a sua

consciência (Marx, Engels, 2002, p. 11).

A realidade é, portanto, o lugar da experiência, com seus valores,

subjetividades, significados, sentidos. Ela é determinada pelas relações de

produção nas quais os homens estão dialeticamente inseridos e com a qual

formam sua consciência do mundo e de si próprios. É com essa perspectiva

que se busca ouvir a experiência dos sujeitos participantes da Cooprec.

2.1 Processo de constituição da Cooprec

Chega-se à Cooprec, por meio de uma estrada sinuosa. À primeira

visita, a impressão é de estar em um labirinto. É comum ouvir de quem faz pela

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primeira vez o percurso que não seria capaz de retornar ao centro de Goiânia,

porque a Cooprec se localiza em uma travessa, sem número do Jardim

Conquista, em uma área de preservação ambiental (APA) do bairro, fruto de

ocupação urbana. O seu nome, Jardim Conquista, expressa essa luta.

A população que se deslocou para o local enfrenta a problemática de

baixos rendimentos, como, ademais, ocorre em todas as áreas de posse

urbana. Percebe-se uma série de expressões da questão social, como

desemprego, baixa qualificação, crianças em situação de risco social e

pessoal. A região é marcada ainda pela proximidade com o Rio Meia Ponte,

principal rio de Goiás e responsável pelo abastecimento de Goiânia.

Nair mora no Jardim Dom Fernando I e relata como obteve a sua

moradia:

Nair (2ª) – Oh, o bairro Dom Fernando I ele foi um bairro muito interessante, eu me lembro que eu tinha dois anos de casada, menos de dois anos, e eu morava de aluguel lá no Novo Mundo, (...) [Jardim Novo Mundo]. Eu tava lá em casa dia de sábado e minha vizinha disse assim: “Nair vamo ali invadir um lote”. E eu falei: Não minha filha eu não mexo com isso aí não, eu tenho que trabalhá e comprar meu lote. Aí ela veio no sábado, aí ela chegou à noite e disse: “Êh boba cê perdeu, lá os lote é dos padre, e eles vão doar”, [e] eu falei: Não, então eu vou uai”. Aí eu vim no domingo, (...) quando eu cheguei (...) era uma roça de arroz, o Dom Fernando I, e tava cheia de barraquinha preta eu não achei mais nenhum lugar. Só que daí tinha uns aproveitadores que tinham cercado uma área entorno mais ou menos de uns dez lotes e eles acamparam e estavam vendendo esses lotes. (...) Aí o que é que eu fiz, eu tava saindo da Americana34 e acertando... (...) Aí cheguei conversei com os caras né, aí falei: “Olha, tal dia vou receber o acerto e a gente compra seu lote”. E aí ficou fechado com eles. Mais um zumzumzum começou a surgir que a justiça ia tirá quem comprou e ia prendê quem vendeu. Tá, mas eu precisava do lote, né!? Como eu fiquei com medo de perder o lote, eu cheguei na pessoa e falei assim: “Olha, eu não vou te pagar mil não, eu vou te pagar quinhentos”. Aí ele começou... Eu: “Oh, se você não querer, eu vou denunciá”. Enfim acertou por quinhentos reais.

Os bairros vizinhos também possuem histórias de ocupação: Jardim

Aroeiras I, Jardim Aroeiras II, Jardim Dom Fernando II e Jardim Conquista. Os

dois bairros que receberam o nome de Dom Fernando eram uma ocupação de

34 Refere-se ao antigo trabalho nas Lojas Americanas.

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terrenos pertencentes à Igreja Católica. Nesses cinco bairros residem 77,3%

dos cooperados, muitos deles fizeram parte do processo de ocupação dos

bairros, especialmente os que fundaram a cooperativa (IDF, 2003a).

Esses bairros situam-se na Região Leste do município de Goiânia, que

conta com doze Regiões. Goiânia foi planejada para ser a capital do estado de

Goiás, construída a partir de 193335. Possui uma área de 739km². Localiza-se

no Centro-sul do estado, na antiga região de Campinas, que se tornou um

bairro da capital. Projetada para abrigar 50 mil habitantes, em 2005 contava

com 1.201.006 habitantes36. O processo de ocupação do solo urbano

caracteriza-se pela ocupação desordenada, que se agrava nas áreas próximas

aos córregos e fundos de vales, Goiânia é cortada por 55 cursos d’água, cujo

maior expoente é o Rio Meia Ponte.

Na maioria dos cursos d’água encontram-se pessoas residindo às suas

margens sem a menor qualidade de vida. As casas comumente possuem sua

estrutura comprometida pela proximidade dos córregos, as inundações são

freqüentes, bem como as doenças. Além disso, as margens dos córregos e rios

constituem-se em áreas de preservação ambiental.

As ocupações de áreas de preservação ambiental para fins de

moradia, ocasionam graves transtornos ambientais para a cidade, e riscos para

a população que, em sua totalidade, é marcada pela vulnerabilidade econômica

e social.

Uma das características importantes da região em que se localiza a

Cooprec, é que parte da área que deu origem aos bairros onde moram os

cooperados era uma fazenda de propriedade da Arquidiocese de Goiânia. Esta

área foi ocupada na década de 1980 para fins de moradia. Diante da situação,

a arquidiocese efetua a doação do terreno para as famílias e a prefeitura a

35 A mudança da capital do estado era uma discussão antiga em Goiás. Havia duas razões fundamentais, uma diz respeito à localização geográfica de Vila Boa de Goiás, atualmente Cidade de Goiás, antiga capital. A cidade localiza-se no fundo de vale, e não comportaria o crescimento demográfico, especialmente no tocante ao abastecimento de água, mas o aspecto decisivo, entretanto, era a disputa política entre Pedro Ludovico Teixeira, então governador do Estado e a família Caiado, uma das oligarquias existentes no estado, cujo centro político era a cidade de Vila Boa. O Planejamento da cidade foi realizado pelo arquiteto Atílio Correia Lima e a obra acompanhada pelo engenheiro Armando Augusto de Godói. A transferência definitiva da capital deu-se pelo Decreto nº1816 de 23 de maio de 1937 (Monteiro, 1979. 36 Dados obtidos em http://www.ibge.gov.br, acesso em: 01 jul. 2005.

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urbanização da região, como assinala Nair:

Nair (2ª) – E o curioso do Dom Fernando [o bairro] é que foi feito um trabalho pela arquidiocese, excelente, foi mapeado todos os lotes. (...) Na época o Dom Fernando37 tinha falecido, ele tinha deixado assinado um documento pra doar as terras. Aí eu acho que as pessoas nessas reuniões de Igreja mesmo, nessas plenárias, deve ter soltado que tinha essa terra e o povo resolveu invadir, mais rápido, né. A Arquidiocese atuou direitim, mapeou os lotes... Aí começou as equipe... As mulheres, muitas das mulheres, sempre lutou pra isso aí, fazia as reuniões debaixo das árvores pra decidir o que a gente queria, os nomes das ruas são tudim o nome das pessoas que trabalhou, ó tem Irmã Eneida, Irmã Claudina, Dom Antônio, Dom Fernando – 23 de janeiro – foi a data da invasão, cinco de março foi a data do primeiro lote, a gente fazia uma festa quando saia o lote. Tem um de 27 de março também que eu não me lembro. E aí o que é que aconteceu, passou o lote pra cada um e cada um fez seu barraco. E pra construir o do outro a gente fazia mutirão38, aí, por exemplo, fazia mutirão, construía a sua casa provisória e amanhã construía a minha, então tem muita casa que foi feita assim nesse trabalho. Menina, era ótimo! Depois que o pessoal começou a construir a sua casa e a evolução veio, foi estreitando o grupo comunitário. Mas já teve assim uma equipe muito grande dentro desse bairro Dom Fernando I [Jardim Dom Fernando I], foi uma história e tanto que teve!

Na década de 1980, a Igreja Católica em Goiânia estava imbuída da

teologia da libertação, segundo a qual “a fé cristã não despreza a atividade

política; pelo contrário, a valoriza e a tem em alta estima” (CNBB, 1987, p.167).

A doutrina social da Igreja conduz a uma intervenção nos problemas sociais da

comunidade. Para que a doutrina social seja aceita por todos, a Igreja deve

responder eficazmente aos desafios e aos problemas graves que surgem na

realidade latino-americana, na qual os homens são diminuídos por toda

espécie de carências que reclamam a promoção urgente das obras

assistenciais cristãs. Segundo a CNBB (1987, 160), a doutrina social da igreja

exige coerência, criatividade, audácia e entrega total e a “evangelização não

seria completa se não levasse em conta a interpretação recíproca que ao longo

dos tempos se estabelece entre o Evangelho e a vida concreta, pessoal e

social do homem”.

37 Dom Fernando Gomes dos Santos foi o primeiro Arcebispo Metropolitano de Goiânia de 1957 a 1985 quando falece. Seu lema era: “Sem violência e sem medo”. 38 Forma de organização do trabalho em que todos se reúnem para realizar uma tarefa, comoa construção de casa. Os mutirões são muito comuns na cultura nacional, sobretudo no meio rural. Sobre esse assunto ver: Cândido (2003).

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A fala de Nair explicita a ação da arquidiocese no bairro em que mora:

Nair (2ª) – Olha, quando as pessoas invadiram, veio uma equipe da arquidiocese pra visitar cada família. Toda família foi visitada, inclusive a minha. Perguntou do que a gente vivia, o que que tinha o que que não tinha. Mapearam os lotes, tirou muita gente que não precisava. A justiça vinha e tirava mesmo, pessoas às vezes que tinha supermercado, que tinha casa, eles tiraram tudinho. (...)

Eu acredito que dentro do propósito do Dom Fernando, que ele deixou pra ser doado... Que ele deixou pras pessoas que não tinha moradia, a arquidiocese comprou que além disso ia fazer um bairro nobre nesses bairros, porque o [Jardim] Dom Fernando I, ele foi assim desse modelo que eu te contei, o [Jardim] Dom Fernando II e o [Jardim] Aroeira39 foi uma parceria entre governo ou prefeitura não sei, não foi invasão. O [Jardim] Conquista foi invasão, (...). Foi quando, por exemplo, o Washington Novaes fez o projeto da usina, na verdade ele foi o criador da usina, mas ele era o Coordenador do Instituto Dom Fernando, né, que tava dentro do projeto, aí foi criado esse projeto com o Programa Usina de Reciclagem, Escola de Circo, Centro de Formação e Horto de Plantas Medicinais.

No contexto da ocupação da área, a Pastoral da Arquidiocese

começou um trabalho de desenvolvimento comunitário. A Sociedade Goiana de

Cultura, “entidade filantrópica e comunitária, sem fins lucrativos, criada em

1958 pela Arquidiocese de Goiânia, mantenedora da Universidade Católica de

Goiás” (IDF, Projeto Meia Ponte, s/d, p. 4) criou , em 1995, o Instituto Dom

Fernando, com a finalidade de buscar o “pleno desenvolvimento e

aperfeiçoamento do ser humano, mediante ações que contemplem o

relacionamento e o desenvolvimento dos aspectos educacionais, culturais, do

bem estar social e do desenvolvimento sustentável do meio ambiente”

(Estatuto da Sociedade Goiana de Cultura, apud IDF, 2003b).

A concepção do trabalho do IDF foi elaborada pelo jornalista e

ambientalista Washington Novaes, referência nacional na discussão ambiental,

e está registrada no Projeto Meia Ponte, que se volta

39 No Jardim Aroeiras encontra-se um dos pontos críticos da habitação em Goiânia, conhecido como Buracão. Trata-se de uma erosão do Rio Meia Ponte que foi ocupada por moradores, é um lugar de acesso dificultado, e as casas se amontoam uma sobre as outras. Entre 2000 e 2004, a prefeitura retirou as famílias cujas casas estavam em risco eminente de desabamento, porém nenhum projeto para a área foi concluído até o momento. Os moradores ainda acreditam que a prefeitura irá removê-los para uma área adequada.

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prioritariamente para a geração de empregos e renda; recuperação do meio ambiente; educação e saúde; resgate cultural dos moradores; proteção e formação das crianças e adolescentes; integração do esporte na atividade comunitária, tudo isso convergindo para o fortalecimento da consciência e exercício da cidadania. (IDF, Projeto Meia Ponte, s.d, p. 4)

A denominação do projeto, segundo sua apresentação, não se deu

apenas pela localização física de sua área de atuação, margeada pelo rio de

mesmo nome, mas também pela expectativa da construção de um caminho-

ponte que favoreça oportunidades de mudança nas condições

socioeconômicas e ambientais que beneficiem as comunidades envolvidas40

(IDF, Projeto Meia Ponte, s.d).

O Projeto Meia Ponte prevê e realiza: a implantação de um trabalho de

educação ambiental nos bairros, a instalação de um Centro de Formação

Profissional (Dom Fernando)41, a construção de uma Escola de Circo para

crianças e adolescentes, a implantação de um Horto de Plantas Medicinais, e a

construção de uma Usina de Reciclagem de Resíduos Sólidos a ser

administrada por uma cooperativa de trabalho formada por moradores da

região. Foi então que se iniciou a constituição da Cooprec. Os recursos para a

instalação e implementação desses trabalhos provém do setor público,

captados por meio de projetos com os quais o IDF se manteve até 1999. Os

exemplos mais expressivos são: Brasil Criança Cidadã, financiado pelo Fundo

de Amparo ao Trabalhador (FAT); Programa de Pequenos Projetos (PPP), pelo

Ministério do Meio Ambiente; Projeto Viver, pela Secretaria Municipal de

Educação de Goiânia (IDF, 2003b).

A existência da Cooprec é tributária, portanto, da militância

ambientalista e da projeção nacional de Washington Novaes, que possuía

conhecimentos, vontade e articulação política suficientes para a obtenção de

recursos estatais para a construção da Usina de Reciclagem e de toda a

estrutura física do IDF.

40 Os bairros prioritários da ação do Instituto são: Jardim Dom Fernando I, Jardim Dom Fernando II, Jardim Aroeiras I, Jardim Aroeiras II e Jardim Conquista, todos da Região Leste de Goiânia. 41 O Cento de Formação Profissional Dom Fernando oferecia cursos de computação, cabeleireiro, eletricista e pedreiro (IDF, 2003b).

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A mobilização dos moradores para participar das reuniões de

discussão da cooperativa era feita nos espaços de atuação do IDF e pela

Igreja, nas missas e reuniões, e, posteriormente, pelos próprios moradores,

que começaram a participar dos debates. Como a idéia da Cooprec é externa

aos cooperados, eles não conseguem precisar a sua criação e dizem que só

tomaram conhecimento dela, após sua instalação, embora tenham sido eles os

sócios-fundadores. A questão do fomento da cooperativa por uma instituição

externa é crucial para apreender as mediações da experiência da Cooprec.

Nair (2ª) – Eu... A Cooprec pra mim, sempre nas minhas histórias. Eu falo que Cooprec pra mim surgiu na sala de aula de computação, lá no Centro Profissional Dom Fernando, né, e chegou uma senhora e falou muita coisa. Ela deu um sermão na turma, dizendo, que as pessoas eram muito mal agradecidas, porque vinha as coisas boas pra comunidade a gente não escutava, e assim...(...) Daí, ela falando, falando, eu acabei grilando com aquilo, porque assim... Eu sou uma das pessoas fundadoras do [Jardim] Dom Fernando I, e falou no [Jardim] Dom Fernando I eu tô apelando, né. Aí como ela tava assim... Que a gente [não] ia, aí eu falei: “Não, eu vou ver o que essa senhora tá tanto falando que a gente não valoriza”. Aí eu passei a me informar e descobri que a Sociedade Goiana de Cultura tava criando um projeto, e que tinha umas reuniões de apoio, que a gente participaria das reuniões e criaria alguma coisa, né. Aí participei da primeira, tinha muito trabalho em grupo, ai eu fui me interessando, devo ter participado dessas reuniões em torno de uns seis meses, que eu não me lembro direitinho, aí já começava a se falar na Usina de Reciclagem, (...), mas assim, nunca falava em salário, ninguém falava em salário.

Laíde –. Bem! Na verdade quando eu soube do surgimento da Cooprec... A Cooprec já tava sendo iniciada, o grupo já tava sendo formado, então eu não participei do processo inicial mesmo, como se diz... (...) Eu soube através do Seu Miguel... Então, na época, eu estava estudando, estava concluindo o ensino médio, (...), seu Miguel estudava comigo e ele me convidou. (...) Seu Miguel já participava do grupo inicial e ele me convidô, ele me convidô não... Ele comentô na sala de aula que estava sendo criado essa cooperativa, que estaria gerando trabalho para algumas pessoas, quem quisesse estar se interessando, e aí surgiu aquele interesse, né. Em participá. Só que a cooperativa tava sendo construída lá, né, a estrutura e tudo e tava aquele processo de reuniões ainda, onde os moradores tava sendo convidados a participarem do processo mesmo de formação do grupo, para estarem trabalhando na cooperativa. (...) Bem, na época, esse convite era feito pelo... Através dos moradores mesmo, da Igreja, principalmente Igreja Católica! Nas igrejas eram feitos os convites e a partir daí os moradores, que iam tendo interesse iam chegando pro grupo. (...) Os multiplicadores, por exemplo, na Igreja geralmente o padre falava desse trabalho que tava sendo feito e as pessoas saíam dali divulgando. Então foi

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assim que começô, depois que eu passei a participar do grupo, eu também passei a tá divulgando, né, que a cooperativa tava sendo construída, e assim, no primeiro momento, eu... Porque eu sempre fui muito louca por artesanato. E eu achava que a cooperativa quando falava de reciclagem que o trabalho ia sê só com artesanato. Eu fui mais assim por curiosidade, aí, quando eu cheguei lá, eu vi que não era só isso, que era uma coisa além... Daí eu me interessei, na época eu tava só em casa mesmo cuidando dos meninos, né, e como não tava trabalhando, eu pensei que podia sê uma oportunidade deu tá trabalhando e aprendendo alguma coisa, foi a partir daí que eu me interessei e fui ficando no grupo.

Lúcia – Eu pra te falar a verdade eu entrei na Cooprec já depois de um trabalho todo realizado, eu entrei bem depois... Então o surgimento da Cooprec em si, só o que eu ouvi falar, né. Por que foi assim através dos moradores que fizeram reunião juntamente com o pessoal da Universidade Católica [de Goiás], o Instituto Dom Fernando propriamente, né, que começou... Sugeriu que seria trazido pra cá uma usina de reciclagem. E os moradores gostaram da idéia e aderiram a essa idéia, e nós começamos a fazer reuniões já no centro comunitário aos finais de semana. Aí, nisso eu já comecei, eu já entrei nas reuniões, que eu tava fazendo um curso de cabeleireiro no Centro de Educação, e fiquei sabendo que tava fazendo reuniões já com a intenção de fundar a Cooprec. Então nessa época eu tirei o curso de cabeleireiro, e engavetei o diploma e vim pra Cooprec, nunca pus o meu diploma, assim na parede. Que aí ao invés deu fazer o cabeleireiro eu vim trabalhar na Cooprec.

Questionada se a Cooprec havia sido fundada antes de seu ingresso, respondeu:

Lúcia – Não ainda tava acontecendo, foi antes da fundação. (...) É. Assim... já tinha feito outras reunião antes, né, eu entrei lá pra quinta, sexta reunião.

Todo o primeiro grupo de cooperados participou de um curso de

cooperativismo, e de muitas reuniões para a formação da Cooprec, como relata

Maria Meonice.

Maria Meonice – Através de um curso de cooperativismo, fiquei durante um ano participando do curso e é onde surgiu o NIR – Núcleo Industrial de Reciclagem, que hoje é a Cooprec.

Após as reuniões para a formação, os cooperados foram conhecer o

Núcleo Industrial de Reciclagem (NIR) 42que já estava em construção:

42 Núcleo Industrial de Reciclagem (NIR) é a denominação da unidade de trabalho do IDF, que corresponde `a Usina de Reciclagem de Resíduos (IDF, 2003b).

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Nair (2ª) – Daí, logo depois dessa reunião de apoio a gente já veio pro NIR conhecer o Núcleo Industrial. Aí marcou uma reunião para gente discutir, as reunião já passou a ser no NIR, já era as pessoas interessadas, e foi reunindo as pessoas, eu sei que quando foi realmente para registrar a cooperativa nois já era assim... Me parece, (...) em torno, uns quarenta e cinco a cinqüenta.

A cooperativa foi fundada em 1998, e segundo seu Estatuto Social, se

denomina:

Cooperativa de Reciclagem de Lixo, sociedade cooperativa com forma e natureza jurídica própria, de natureza civil, rege-se pelas disposições legais, lei nº 5764 de 16/12/1971, pelas diretrizes de autogestão e por este estatuto, tendo como sigla COOPREC. Tem como objetivos:

a) Promover a melhoria das condições de vida de seus Cooperados, através de projetos.

b) Realizar trabalho operacional quanto à coleta seletiva de lixo, captação de matéria-prima, separação e seleção de insumos, fabricação de produtos derivados da reciclagem de lixo.

c) Manter sempre em perfeitas condições de trabalho os equipamentos consignados43 à disposição da COOPREC.

d) Desenvolver ações de conscientização ambiental na região atendida pela Cooprec.

e) Manter a qualidade dos produtos fabricados mediante a reciclagem de lixo, observando controles de impacto ambiental e as necessidades dos clientes compradores.

f) Criar novos produtos a partir dos insumos e materiais disponíveis no lixo.

g) Prestar, por si ou mediante convênio com outras entidades, assistência técnica, educacional e social aos seus cooperados e respectivos familiares, bem como o quadro funcional da Cooprec.

h) Conseguir financiamento para repasse aos Cooperados para que possam adquirir máquinas e equipamentos necessários ao desenvolvimento das suas atividades de trabalho. (Cooprec, Estatuto Social, s.d )

A Cooprec funciona em uma Usina de Reciclagem, localizada em área

de utilidade pública, cedida pela prefeitura para fins de reciclagem. À esquerda

do portão de entrada há a identificação da Cooperativa e, à direita, uma cerca

viva. Entrando na usina, observa-se, à esquerda, uma edificação térrea que

constitui a administração da cooperativa. É dividida em três partes: os

banheiros e sanitários, masculinos e femininos; o refeitório, também utilizado

43 A consignação é feita por um contrato de comodato entre SGC/IDF e Cooprec.

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como sala de reuniões, e o escritório. Em frente ao prédio da administração,

existe uma balança, para pesar os caminhões que chegam com a coleta de

resíduo sólido. A Cooprec possui dois caminhões-caçamba tipo basculante

para a coleta dos resíduos.

À direita, localiza-se o galpão, onde está a usina propriamente dita. O

galpão é aberto, coberto com telha fibro-asfáltica e dividido por um pequeno

corredor. À esquerda do corredor, há uma rampa na qual os motoristas

despejam os resíduos. Na base da rampa, existe um balcão, utilizado para a

triagem do material. Separam-se: o plástico e o papel, que são encaminhados

para as respectivas unidades de processamento, e os materiais que não são

processados, mas que podem ser vendidos para empresas especializadas em

reciclagem como latinhas, garrafas PET, ferragens diversas (vendidos como

sucata). O rejeito que não serve a reciclagem é encaminhado para o aterro

sanitário de Goiânia.

À direita do corredor, localiza-se a unidade de papel, na qual se fabrica

a telha fibro-asfáltica. A unidade é composta por um moedor industrial que

derrete o papel com a utilização de água. Na saída deste moedor, há uma

esteira na qual se delimita a manta de papel, que é cortada por um cooperado.

Mais ao fundo, é realizada a ondulação da manta, e o corte, para o tamanho

desejado. Em seguida, a telha é levada ao sol. Após o galpão, existem grades

onde se empilham as telhas de papel para a secagem. Em seguida a telha e

impermeabilizada com piche em um forno industrial apropriado que se localiza

dentro do galpão ao lado do moedor.

Ainda dentro do galpão, mas com o acesso pelos fundos, encontra-se

a unidade de processamento de plástico. O plástico, primeiramente, é lavado,

secado por uma centrífuga, picotado por uma moenda, em seguida, é colocado

em um aglutinador, que utilizando de temperatura elevada derrete o plástico.

Na seqüência o plástico passa por uma extrusora que o transforma em uma

forma alongada e filamentosa e, por fim, ele é picotado em uma picotadeira. O

produto final é o grânulo, matéria-prima da indústria de sacos de lixos e

mangueiras de jardinagem.

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Ao fundo da cooperativa, localiza-se o espaço utilizado para a

produção de húmus e a lagoa de decantação. Atualmente produz-se pouco

húmus, pois não se faz a coleta do resíduo orgânico das residências.

O recurso financeiro para a construção da Usina de Reciclagem é

oriundo de um convênio com o então Ministério de Previdência e Assistência

Social na ordem de seiscentos mil reais. Outros convênios foram firmados para

a qualificação dos cooperados, chegando-se à cifra de um milhão de reais.

A usina, portanto, foi construída com recursos federais e se localiza em

uma área municipal. A Sociedade Goiana de Cultura/IDF/UCG44, como

propositoras do projeto têm a responsabilidade pelo seu uso e manutenção,

cedida em comodato para a Cooprec. O contrato de comodato regulamenta o

vínculo entre as duas entidades, e condiciona a transferência à Cooprec da

responsabilidade pelo uso e manutenção da usina.

Em síntese: a Cooprec foi idealizada por pessoas externas à

comunidade que desenharam a metodologia do trabalho. O IDF convidou os

moradores para fundarem a cooperativa, e por meio da mobilização

característica da Igreja, realizou o curso do cooperativismo, para esclarecer do

que se tratava, cedeu o espaço para o trabalho, proporcionou a qualificação

adequada e financiou os cooperados por alguns meses.

A ação do Instituto Dom Fernando é semelhante ao que ocorre com as

Incubadoras de Cooperativas Populares (ITCPs), e as organizações de

assessoria à economia solidária, com uma ressalva, nos fomentos aos grupos

de economia solidária, discute-se, com o grupo, o tipo de atividade que será

realizado e se assessora a qualificação e captação de recursos. A Cooprec já

apareceu pronta para os cooperados que assumiram na íntegra essa

propositura.

O processo de fundação da Cooprec iniciou-se com uma discussão de

educação ambiental. Formou-se um grupo de moradores, que durante um ano

se reuniu para discutir acerca do meio ambiente e realizar atividades nos

bairros, como limpeza, coleta de lixo e atividades educativas. Portanto, não se

trata, em seu início, de um grupo de trabalhadores que buscam formas de 44 Juridicamente IDF e UCG fazem parte da Sociedade Goiana de Cultura. A inserção do IDF nas atividades de extensão da UCG em nada altera a relação jurídica dos convênios firmados.

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sobrevivência. Obviamente todos queriam aferir renda do empreendimento,

mas a questão ambiental era tão determinante quanto a renda.

Este grupo foi convidado posteriormente para realizar um curso de

cooperativismo, e para a fundação de uma cooperativa de reciclagem de lixo.

Os objetivos da cooperativa eram dar continuidade ao trabalho de educação

ambiental, coletar os resíduos domiciliares, processar os resíduos e produzir:

a) do papel, telha fibro-asfáltica para a construção civil em geral; b) do plástico,

grânulo, matéria prima para a indústria de mangueiras e sacos de lixo e c) dos

resíduos orgânicos, húmus. Laíde comenta a sua inserção na cooperativa:

Laíde – De certo que quando a cooperativa ficou pronta, algumas pessoas se deslocaram para tá fazendo treinamento em outras cidades. Alguns cooperados foram pra Curitiba, outros foram pra Mato Grosso, outros foram pra Brasília, mas assim eu não fui, no início mesmo assim... Eu não entrei em nenhum grupo desses pra tá indo, porque eu assim... Não tava ainda muito decidida, né, até então, tanto que eu nem tô entre aqueles sócios fundadores, aqueles que participaram de todo aquele processo de construção do regimento interno, aquelas coisas, eu entrei no segundo momento.

Alguns moradores participaram do curso de cooperativismo e das

reuniões, mas preferiram não fazer parte da cooperativa Laíde, por exemplo,

relutou um pouco e diz que trabalhar com lixo era uma questão negativa que

pesava na sua decisão, sobretudo nas conversas familiares. Com o tempo

conseguiu convencer o marido:

Laíde – Até porque meu marido né, ele tinha uma resistência muito grande, quando falei pra ele que eu ia trabalhá com lixo, ele não queria que eu fosse de jeito nenhum: “Você não precisa disso!” E eu fui ficando... Aí chegou um momento que eu pensei: “Ah! Eu já tô no grupo há tanto tempo, participando de reunião e tudo, eu vou tentá pelo menos. (...) Eu até fiz curso de cooperativismo e assim... De certo que a cooperativa foi fundada, o primeiro grupo começou a trabalhar em março?!, Abril... Eu entrei dois meses depois. Aí eu convenci meu marido, que eu tava só em casa sem trabalhar dependendo dele, né... Apesar que no início foi muito difícil pra gente, a gente passou muito tempo sem recebê nada, a gente tinha só uma ajuda de custo.

Esta ajuda de custo está presente também nos empreendimentos de

economia solidária fomentados por iniciativas de instituições de assessoria,

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que normalmente captam recursos públicos para iniciar o empreendimento.

Nas cooperativas tradicionais, a ajuda traduz-se na cota-parte com que cada

cooperado integraliza o capital por ocasião do seu ingresso na cooperativa. Na

Cooprec, os cooperados integralizam a cota-parte posteriormente, com os

recursos retirados do próprio trabalho na cooperativa.

Laíde – A gente tinha uma cesta básica e eu não me lembro se esse valor que a gente recebia, se era cinqüenta reais, era coisa pouca... Era só o simbólico mesmo, e esse valor era passado pela Sociedade Goiana de Cultura. Até então a gente recebia do Instituto Dom Fernando.

O IDF também assessorou toda a estruturação do trabalho. O início foi

marcado por desafios como, por exemplo, a falta de conhecimentos da

população, em relação a, educação ambiental, o processamento de resíduos

sólidos, a administração da cooperativa, além da falta de recursos financeiros e

o receio em manusear o material, que, com o tempo, os cooperados foram

vencendo:

Laíde – Bem, é como eu falei, a gente começou esse trabalho na cooperativa, a gente não tinha experiência nenhuma, a gente tinha a equipe técnica que era quem acompanhava, dirigindo né, os cooperados, dizendo como fazê... A educação ambiental né... Que eu fiz parte desse grupo de educação ambiental, que é esse trabalho que é feito até hoje de porta em porta, e assim como a gente não tinha experiência, a gente tinha todo esse acompanhamento de abordagem do morador... Daí a gente saía de porta em porta, nem os caminhões não tinha chegado pra gente, a gente fazia a coleta em uma carroça, a gente fazia o trabalho de visita nas residências e marcava o dia de fazê a coleta, aí a gente saía aquele grupo, tinha um sino [ri] até hoje tem esse sino lá. A gente saía tocando esse sino e com uma carroça, aí o morador ouvia a musiquinha do sino, saía e entregava o material pra gente, sempre junto, né, aquele grupo grande. Na medida que a carroça ia enchendo, o carroceiro ia lá despejava o material, não tinha as mesas que ainda não estavam prontas, aí jogava lá no chão mesmo, aí assim... Foi muito difícil no início. A gente tinha muito receio, de mexer com lixo ali, mas... Até porque a gente recolhia todo o material não era só o reciclável como é hoje. A gente recolhia tudo, a gente fazia a limpeza de quintais, tudo... E chegando lá, a gente fazia a separação desse material, inclusive o orgânico, né. Aí, a partir do momento que chegou o maquinário, aí começou a melhorá pra gente, aí já não tinha mais a necessidade da gente usar a carroça, né, e aí foi aumentando a quantidade de material e tinha mais gente também. Na época, tinha em torno de sessenta pessoas, era muita gente que trabalhava na época... Mas dinheiro mesmo, até então a gente não tinha conhecimento nenhum assim de... Pra tá vendendo esse material, e o que entrava também era muito pouco (...), então o que a gente tinha mais era uma

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ajuda de custo, não tinha um rateio fixo, um valor determinado não(...) Eu creio que pelo menos uns seis meses a gente ficou assim. A partir daí que a gente começa a produzir a telha né, começou a comercializar os produtos, a gente começou a ter os rateios, eu não lembro exatamente, mas era de um salário mínimo que a gente recebia na época (...).

Lúcia relata da seguinte forma seu início na Cooprec:

Lúcia – No inicio eu tinha um pouco de dificuldade porque eu não tinha experiência, né, então eu comecei a trabalhar junto... Na época tinha duas biólogas que eram a Patrícia e Isleide. Então eu sempre acompanhava elas em todos os trabalhos que tinham para fora, palestras essas coisas, e a Isleide dizia: “Um dia, a senhora vai ter que assumir isso”. Eu dizia que eu nunca ia dar conta, porque eu tinha a quarta série [do ensino fundamental] quando eu comecei a trabalhar na cooperativa. [Dizia] “Eu não dou conta de falar nunca na vida”, [a resposta era] “não, a senhora vai ter que assumir, nois não vai ficar aqui para toda vida não”.

Nair – Eu me lembro um dia, que eu falando com o meu marido, ele falando, né, se eu ia entrá no projeto, eu falando: “Oh, eu vou entrar no projeto, mas eu tenho muito medo de entrar nesse projeto, porque, se fala que quem vai dirigi esse projeto é a comunidade, né, pelo que eu saiba a gente não tem ninguém formado em administração, são pessoas diferentes, né, e eu não sei como vai ser isso”. Mas me interessei e comecei realmente.

Percebe-se que o início das atividades da Cooprec foi marcado por

desafios e superações nas relações familiares, no que diz respeito ao trabalho

feminino, na desmistificação do trabalho com o lixo e no exíguo retorno

financeiro. Por outro lado, Muitos dos primeiros cooperados voltaram a estudar

e se capacitaram para as atividades da cooperativa, como o fez Lúcia.

Lúcia – Aí, quando eu percebi que eu não tinha coragem nem de conversar com as pessoas, como eu ia dar palestras, né? Eu voltei a estudar [ri] eu fiz supletivo na época era telecurso 2000 que tinha, depois eu fiz supletivo segundo grau [correspondente do ensino médio], fazia pesquisa direto em biblioteca sobre a questão ambiental, tudo sobre meio ambiente. A gente ia nas palestras, as pessoas distribuíam na palestra tudo quanto é panfleto... Lá em casa tem um monte, tem um monte na Cooprec. Aí tudo pra mim eu ia lendo, lendo, lendo, porque eu queria saber mais e mais. Aí eu comecei a desinibir. Comecei a falar de pouquinho, atendendo às crianças que vêm e passei a dar palestra até pra doutores, lá na Embrapa45, por exemplo. Quando eu cheguei lá, tava cheio de cientistas... [Ri] e eu lá dando palestra. Mas para mim, é muito gratificante esse trabalho.

45 Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa)

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Os cooperados que ingressaram nos anos seguintes foram convidados

pelos próprios cooperados:

Júlio – Eu entrei através dos meninos que trabalhou aqui já há muitos tempos atrás, né. Falou assim que era ótimo trabalhá aqui com reciclagem e que tava precisando de um parceiro na equipe da telha. E eu comecei a trabalhar e gostei, né, tô sendo quase coordenador da área, que ta faltando só eu da equipe da telha, tá sendo maravilhoso.

Viviane – Bom, foi mais assim por curiosidade, eu era muito curiosa. Apesar deu morar aqui perto, já conhecia muita gente que trabalhava aqui, mas eu nunca tinha vindo, não sabia como era o trabalho.

Sebastião – Na cooperativa aqui eu entrei, porque eu cheguei [de Rondônia], tava desempregado. O Wilson que era um cara que trabalha aqui há muitos tempos, aí me chamou, falou: “Vamo lá falá com as muié que às veiz dá certo”. Aí eu vim, falei, era uma sexta-feira, elas disse que eu podia vir na segunda aí continuei, tô aí até hoje. Marinete – Eu trabalhava de doméstica, né, era longe, aí eu falei com a Lindalva46 pra ela arrumar aqui porque era pertinho para eu ficar mais com meus filhos. Foi isso. Foi ela que arrumou pra mim.

As falas de Marinete e Sebastião revelam a realidade da maioria dos

cooperados que ingressam atualmente na Cooprec, expressa em situações de

desemprego ou precarização do trabalho. Seu vínculo com a cooperativa se dá

mais por uma falta de opção que por uma adesão consciente.

Essa realidade implica vários problemas para a administração da

Cooprec, como falta de formação cooperativista, vícios no que diz respeito à

relação de assalariamento, o que provoca pouca ou nenhuma participação nas

decisões da cooperativa.

A rotatividade do grupo também é muito grande, sobretudo os que

ingressaram nos anos seguintes à fundação. Durante o ano de 2006, Júlio e

Viviane saíram da cooperativa. Júlio está trabalhando em uma fábrica de

mangueiras, de pequeno porte, localizada nas proximidades da usina. A

Cooprec vende o grânulo que é a matéria-prima utilizada na pequena fábrica.

Entretanto, é possível encontrar recorrentemente Júlio nas dependências da

cooperativa. Diz ter sido necessário sair por causa das dificuldades do rateio, e

como tem família para cuidar, precisava de outro trabalho. A Cooprec perdeu o

46 Lindalva também é do grupo fundador e participou da diretoria por duas gestões.

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contato com Viviane.

O debate da experiência da Cooprec, assim, redunda da discussão do

desemprego originário na crise de 1970, nos países de capitalismo avançado.

Contudo, a experiência brasileira, com sua formação econômica e política

peculiar, não permite que se façam comparações simplistas com o que ocorreu

na Europa e EUA nesse período.

Na década de 1970, o Brasil encontrava-se sob o domínio da ditadura

militar. No plano econômico, houve o chamado Milagre Brasileiro, que se

estendeu de 1969 a 1973 e combinou um extraordinário crescimento

econômico com taxas relativamente baixas de inflação. O produto interno bruto

(PIB) cresceu a uma média anual de 11,2%. Em parte, esse quadro era

sustentado pela situação da economia mundial caracterizada pela ampla

disponibilidade de recursos, que implicou investimentos do capital estrangeiro

no Brasil, sobretudo no setor automobilístico. Outros fatores foram a política de

importações e exportações (diversificaram-se e intensificaram-se exportações

de produtos industriais nacionais) e o aumento da capacidade arrecadadora de

tributos (Fausto, 1996).

Como pontos vulneráveis, haviam a excessiva dependência do

sistema financeiro e do comércio internacional e a necessidade de contar com

produtos importados, como o petróleo, e negativos foram sobretudo de

natureza social47. O milagre privilegiou a acumulação de capital e comprimiu os

salários dos trabalhadores de baixa qualificação.

Em outubro de 1973, ocorreu a primeira crise do petróleo (aumento

significativo do preço do produto em um curto período de tempo). O Brasil

importava mais de 80% do total de seu consumo de petróleo, e foi

significativamente afetado pela crise, embora o clima de euforia com o Milagre

ainda persistisse. Em 1974, o governo Gaisel (1974-79) lançou o II Plano

Nacional de Desenvolvimento (PND)48, com o objetivo de completar o processo

de substituição de importações das ultimas décadas e com forte preocupação

com o problema energético, propondo avanços nas pesquisas de petróleo,

47 Fausto (1996) ressalta que o PIB é um bom indicador geral de economia, mas, seja em números brutos, seja em números per capita, não indica distribuição de renda. 48 O primeiro PND fora lançado pelo governo Médici (1969-1974).

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programa nuclear, substituição da gasolina pelo álcool. O plano promoveu o

investimento da grande empresa privada na produção de bens de capital, e,

também aumentou o investimento em indústrias estatais como Eletrobrás,

Petrobrás, Embratel (Fausto, 1996).

Continuar crescendo, implicava, todavia a busca de recursos externos,

pois a poupança interna era insuficiente, e esses recursos entraram no país na

forma de empréstimos, o que resultou no aumento da dívida externa, tanto

publica, quanto privada. Os juros da dívida passaram a pesar intensamente

sobre o balanço de pagamentos, sobretudo com a elevação da taxa

internacional de juros, resultante da política dos EUA, para cobrir seu próprio

déficit comercial. O Brasil entrou na década de 1980 com recessão econômica,

que atingiu as indústrias de bens de consumo, acarretando desemprego e

declínio nas rendas mais graves que o ocorrido após a crise de 1929 (Fausto,

1996).

Malaguti (2000, p. 34) afirma que, ao longo dos anos 1980, ocorreu

uma “contínua deterioração da qualidade dos produtos e uma estagnação da

produtividade da maior parte do parque produtivo nacional” que perduraram até

os primeiros anos da década de 1990. Essa situação, após a implantação do

primeiro Plano Cruzado (1986), acentuou-se na perda da qualidade quanto a

diminuição dos índices de crescimento da produtividade. Ao impor um estrito

controle dos preços a heterodoxia econômica levou os empresários a

diminuírem os investimentos e manterem apenas a manutenção de

equipamentos. De acordo com o autor,

da mesma forma, as empresas começaram a: 1) incorporar materiais cada vez menos nobres (e mais baratos) na composição de suas mercadorias, a 2) alterar o peso declarado nas embalagens, 3) lançar novos produtos de fachada (visando burlar o controle de preços), a 4) diminuir os teores das substâncias ativas de medicamentos e alimentos, a 5) descuidar dos índices de poluição provocados. A 6) burlar com mais constância as obrigações de segurança do trabalho (aumentando os índices de ausência por acidentes de trabalho) e a 7) desrespeitar direitos trabalhistas estabelecidos (criando um clima de insegurança e descontentamento no mundo do trabalho). (Malaguti, 2000, p, 35)

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O Plano Cruzado foi responsável também pelo recrudescimento do

processo inflacionário, cuja conseqüência foi o aumento da perda do poder

aquisitivo dos salários e remunerações do trabalho. Malaguti (2000)

fundamenta-se em dados para demonstrar que houve um rebaixamento dos

salários em geral e do salário mínimo em particular. Em 1991, o salário mínimo

valia em média 43% menos que em 1940. Ao contrário, a renda dos 20% mais

ricos aumentou significativamente atingindo, no final dos anos 1980, 65% do

total da renda nacional, o que evidenciava elevadíssimo índice de

desigualdade, no país.

Parte significativa da população brasileira passou os anos 1980 em

miserabilidade, obtendo seu sustento por meio de bicos ou trabalhos precários,

às vezes completados pela coleta de lixo, mendicância e prostituição de ambos

os sexos, e toda sorte de contravenções49.

Já no final da década de 1980, o desemprego em massa começou a

fazer sentir suas conseqüências e, além da população que sofre com a

pobreza, atingiu também a classe média.

Nessa conjuntura, lançou-se o Plano Real50, e, com ele, o controle da

inflação e o crescimento econômico que proporcionam reorganização do

parque nacional, porém sem o desaparecimento das mazelas dos anos 1980.

Malaguti (2000) assinala que existe uma incompatibilidade entre o plano real e

o desenvolvimento social, pois não houve uma política de geração de emprego,

de melhorias salariais ou de distribuição fundiária. Além disso, implementaram-

se medidas de cunho neoliberal, como a privatização de estatais, flexibilização

das leis trabalhistas (contrato temporário de trabalho), e o Brasil entrou, com

sua própria conjuntura histórica, no período do desemprego estrutural.

A crise da década de 1970 e suas influências, especialmente no

continente europeu,51 impulsionaram vários analistas a apontarem o fim do

49 Malaguti (2000) ressalta que a população vivendo em estado de pobreza absoluta (os que têm renda per capita de um quarto de salário mínimo) saltou de 29,4 milhões e, 1980, para 39,2 milhões e, 1990. 50 O plano real foi lançado em 1994, pelo governo Itamar Franco (1992-1995). 51 Para assinalar as influências econômicas da crise no continente europeu, Mattoso (1995) apresenta uma análise detalhada por países, discutindo os efeitos do desemprego. Sobre as saídas políticas, retomada do liberalismo sobre a forma neoliberal e efeitos nos sindicatos, ver Anderson (2000) e Antunes (1999a).

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trabalho, dentre eles Antunes (2005) destaca: Gorz, que contundentemente

afirma o fim do proletariado; Offe, que, ancorando-se na sociedade de serviços,

tematizou a retração e mesmo perda da centralidade do trabalho; Habermas,

que, analiticamente distingue a esfera do trabalho e da razão instrumental e o

mundo da vida, esfera intersubjetiva, razão comunicacional, transferindo para

essa última o mundo da vida e as possibilidades emancipatórias que não se

encontram no mundo do trabalho. Destaca-se ainda Rifkin, com suas análises

do fim do emprego, estímulo do terceiro setor e o réquiem da classe

trabalhadora.

2.2 O processo de trabalho na Cooprec

A Cooprec é uma cooperativa de trabalho, e sua organização,

portanto, realiza-se com vistas à compreensão de seus integrantes do

cooperativismo, como assinalam alguns cooperados:

Rosalino – Cooperativismo já é uma empresa que não existe patrão, proprietário, a visão da gente vai ser sempre crescimento, uma empresa que a gente vai ser sempre o proprietário, se funcionasse como manda quando a gente faz o curso de cooperativismo talvez a realidade seria outra, a gente ta em dificuldade é porque não cumpre, o curso que nois fez de cooperativismos na época. Depois muda muito, não fica praticamente aquilo que a gente fez.

Nair (1ª) – Olha, eu assim, até já falei aqui pro pessoal que a cooperativa é a única no mundo. Eu tenho essa visão, eu já participei de reunião de cooperativa pela OCB. Eu vejo assim o jeito que é colocado, as pessoas falam assim que os cooperados, ele que define, e eu vejo assim que às vezes, quando os diretores de cooperativa coloca, é que a cooperativa, por exemplo, ela tem lá trezentos membro, mas três, quatro define. E a Cooprec é diferente aqui, a gente talvez não consegue, resolver uma questão só com a administração, a gente coloca muito pro cooperado definir junto. Qualquer coisa que se vai comprar o cooperado ta junto, o rateio ele é basicamente rateado igual, eu tava até comentando com a Lindalva, que uma diretoria, uma presidente hoje ela ganha em torno de quatrocentos e vinte reais enquanto o ajudante de caminhão ele ganha, quatrocentos e cinco [reais], então é uma diferença de quinze reais que a diretoria ganha para o ajudante de caminhão. Pra mim isso é inédito, isso não existe no mundo, e às vezes eu penso assim, que isso aí é bom pela igualdade que a gente ver que o grupo precisa crescer junto, por outro lado, você não valoriza o trabalho que a pessoa ta fazendo. Eu não tenho coragem de chegar na assembléia e falar oh, eu preciso ganhar mais,

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porque eu vou fazer meu trabalho melhor, não, [o] tanto que eu ganhar não tem nada a ver, se eu ganhar dez reais eu vou fazer meu trabalho bem feito, se eu ganhar, 1000 reais eu vou fazer igual se eu ganhasse dez reais. Então eu acho assim, que isso é uma coisa que não existe, não existe no mundo, esse tipo de trabalho que existe aqui na cooperativa.

Viviane – Cooperativismo? Ah é tão difícil explicá! Deixa eu ver aqui...cooperativismo que eu vejo por mim, é assim, como se diz, é você fazer aquilo com todos, cooperar com todos, por exemplo, se a triagem tá precisando de mim, se eu tiver mais desocupada eu venho e ajudo, entendeu? Você fazer um trabalho com todos, pra mim isso é que é cooperativismo (...). Como se diz, é um trabalho assim que, você faz pra você, entendeu? Cada um faz sua parte, não tem essa coisa de dono! – “Ah, eu vou chamar o dono!” Cê não tem patrão, por isso cê pega amor por fazer aquilo, não tem aquela pessoa pra ficar te enchendo o saco o dia inteiro: “Fulano cê precisa fazer isso”, entendeu? Ta certo nois tem nossos coordenadores. É uma coisa que cê faz com amor, que cê sabe que esta fazendo pra você.

Júlio – A gente ouve mais que pra gente ser unido né, que a cooperativa precisa mais de união, de doação essas coisas né. (...) Nós somos donos, somos empresários e nós dependemos de nosso serviço pra sobreviver, pra tocar a Cooprec, né.

Marinete – Eu não entendo muito não, nunca tive curso, assim, eu tendo o que eu aprendi aqui mesmo já né.(...) Porque aqui é uma associação né, quem trabalha é o dono, até quando não ta ne´, quando sai aí não é mais, o que eu entendo é isso.

O que aparece como central para os cooperados é o fato de não ter

patrão, eles afirmam que mandam em seu trabalho. Os sócios-fundadores,

como já foi dito, tiveram um curso de formação sobre cooperativismo, o que os

leva a entender a cooperativa como uma empresa na qual todos mandam. Já

os que ingressaram depois e não tiveram formação alguma, trazem da

experiência do dia-a-dia, a necessidade de união, da ajuda-mútua, da

colaboração e a convicção de que o resultado do trabalho é de todos.

Não há uma elaboração teórica, nem mesmo uma apreensão histórica

sobre o cooperativismo, as referências dos cooperados são construídas no

cotidiano. A organização do trabalho, segue os princípios de autogestão,

embora isso não seja verbalizado.

A forma de trabalho das cooperativas elimina, no plano da produção a

figura do patrão, dono do capital, aquele que extrai mais-valia do trabalho de

seus funcionários. De fato, se todos são iguais, se as divisões de trabalho são

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apenas divisões de tarefas dispostas em sistema rotativo, e se o recurso

financeiro obtido do processo de produção é divido segundo a intensidade e a

natureza dos trabalhos, pode-se dizer que não há apropriação da mais-valia

pela figura do patrão imediato. Entretanto, não se elimina a extração de mais-

valia. Marx (s.d.b, p.445) assinala que “a produção capitalista chegou a um

ponto em que frequentemente se vê o trabalho de direção por inteiro

dissociado da propriedade do capital”, ou seja, não é mais necessário que o

capitalista exerça o papel de direção. Afirma o autor que as fabricas

cooperativas demonstram que o capitalista, como funcionário da produção

torna-se supérfluo. E, se o trabalho do capitalista não resulta do processo de

produção, “ultrapassa a função de explorar trabalho alheio e deriva, portanto da

forma social do trabalho, da combinação e da cooperação de muitos para

atingir um resultado comum” (Marx,s.d.b, p.445).

O trabalho na Cooprec consiste na coleta e processamento de

resíduos sólidos oriundos do material domiciliar. A cooperativa desenvolve um

trabalho de educação ambiental nos bairros que coletam o material. Esse

trabalho, feito de porta em porta, consiste em explicar aos moradores a

necessidade de reduzir a produção de lixo, reutilizar o que for possível e

reciclar o restante – princípio dos três Rs. Atualmente, esse trabalho é

realizado em dez bairros da Região Leste de Goiânia. Além desses bairros, a

Cooprec coleta o resíduo sólido da Universidade Católica de Goiás e do

Goiânia Shopping52. Existem parcerias eventuais para coleta do resíduo, em

feiras e exposições, por exemplo.

Para o trabalho de educação ambiental, anteriormente escolhia-se

uma rua para o fechamento do mês, quando se realizava uma comemoração

com atividades culturais e explicativas quanto à educação ambiental, além de

palestras e atividades nas escolas da região. Posteriormente manteve-se

apenas o trabalho de coleta domiciliar. (IDF, 2003b). A esse respeito, Lúcia

comenta:

52 Shopping de médio porte da cidade.

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Lúcia –. É aquele trabalho de porta em porta, que a gente fazia, faz ainda, só que em outros bairros, porque a gente expandiu. É aquele trabalho que a gente pega a dona de casa, uma por uma, e conversa... A gente tem pessoas muito abertas, a gente acha pessoas que [são] bem fechadas, a gente acha pessoas superignorante tudo isso a gente encontra. A gente tem que saber conversar com a pessoa, sem ter aquele bate-boca, tem que saber convencer a pessoa sem agredir, é um pouco difícil, porque a pessoa tem que ter percepção pra isso.

Existem também alguns catadores que levam o material até a usina.

Com a presença dos catadores, a Cooprec cogita ampliar o trabalho, pois

consegue pagá-los melhor do que eles conseguem com a venda para a

indústria de processamento, no entanto, como a cooperativa não consegue

pagar à vista, os catadores preferem vender para a empresa privada.

A prefeitura de Goiânia mantém um convênio com a Cooprec para a

coleta do material nos bairros onde ela desenvolve o trabalho de educação

ambiental. Nesses bairros, o caminhão de coleta da prefeitura recolhe apenas

o material orgânico.

Os cooperados passam por todas as áreas de trabalho da cooperativa,

e se fixam no que mais se identificam, como revelam alguns entrevistados:

Nair (2ª) – E após o ingresso foi criada a diretoria, foi criado a chapa dentro da assembléia e tal... Na época três diretores homens passaram a fazer parte da diretoria (...) E nois começamos a trabalhar, né. E daí tinha uma política que nois passaria em toda área, nois passaria em todas as áreas da cooperativa. Por exemplo, hoje eu trabalho na triagem, amanhã eu trabalho na telha, e assim muito livre, não tinha pressão de jeito nenhum e a gente escolhia o lugar que queria ficá depois discutia com o conselho, mas geralmente era muito livre. (...)

Maria Meonice – Eu trabalhei no começo na parte do plástico, aí passei pra a triagem e passei pro meio ambiente, depois do meio ambiente, voltei pra a triagem de novo, onde estou até hoje.

Viviane – Eu, trabalho na área do plástico, do grânulo, e trabalho no meio ambiente.(...) O plástico é um trabalho que você não pára, é uma coisa que todo dia você faz, já diferente do meio ambiente, que tem dia certo pra ir pra rua, é tudo elaborado. Lá no plástico não, na mesma hora que cê está fazendo uma coisa, cê tem que fazer outra, um trabalho assim que cê tem que ter pique.(...)

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A gente separa os plásticos, muitos a gente corta também, aí leva pro picador, prá picá, lavá, aí depois a gente aglutina, aí depois a gente extrusa, faz o grânulo... No meio ambiente a gente faz um trabalho com o morador sobre a coleta, a gente sai de casa em casa, explica pra ele como é o trabalho de separação do material, [pergunta o] que ele já faz com o material, se ele doa, vende, se quer doar para a cooperativa.

Rosalino – Eu tenho um compromisso com a sociedade, com os fornecedor pra nois, na época que o pessoal criou o trabalho ambiental, supermercado, residência né.. eu assumi o trabalho que o caminhão fazia, então eu não tenho hora, supermercado é sempre antes do supermercado abrir. Então a rotina do dia é essa, supermercado, residência, as pessoas liga aqui falando que tem material. Do [Rio] Meia Ponte pra cá, o [a fábrica] Itambé também eu faço.

Rosalino utilizava, até o final de 2006, uma pequena carreta acoplada

a uma tobata53 para coletar o material reciclável em supermercados da região,

sobretudo o orgânico, deve ser recolhido antes da abertura do supermercado.

Percorria, nesse trabalho, todos os bairros vizinhos da Cooprec até o limite do

Rio Meia Ponte, e da fábrica de leite Itambé (que, algumas vezes, encaminha

para a cooperativa material a ser reciclado).

Além de Rosalino, existe uma equipe de coleta que trabalha com os

caminhões Sebastião é responsável pela coleta do Goiânia Shopping, um

ponto de coleta de material. O trabalho de Sebastião tem uma dinâmica

própria, que o deixa a maior parte do tempo isolado do restante do grupo da

cooperativa, de fato, ele acaba prestando serviços diretamente ao Shopping.

Sebastião – Lá, dez prás seis [5h 50 mim] eu já to trabalhano, varrendo lá e depois que eu varro tudim, tem que lavá, e depois que lava tem que jogá um negoço lá pra fica cherano, um sabão. E depois vô pegar algum papel na loja, desce, eu vô pega algum papel lá na entrada do shopping. Algum ferro véi e colocá lá pra dento e tudo que aparece eu vou juntano é o meu serviço. Aí vou colocando lá, quando é lá pras 2 horas, 2 e 45 [2h 45min], no máximo 3 horas eu tô saíno. Agora quando elas [a diretoria da Cooprec] marca que o caminhão vai, como anteontem, que marcou que o caminhão ia, eu fiquei lá até as 6 e 10 [6h 10min]. Aí juntô, eu fui embora.

A cooperativa recolhe o resíduo sólido do shopping que pode ser

reciclado, e o restante é levado para o aterro sanitário da cidade.

53 Microtrator movido a diesel.

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Na cooperativa o processo de trabalho é dividido por áreas, mas os

cooperados têm conhecimentos sobre todas elas se movimentam quando

necessário.

Marinete – Uai, eu faço serviços gerais, eu fico lá em cima, eu trio plástico, eu corto. Fico no aglutinador, serviços gerais.(...) É porque a gente faz o processo do material todinho, até chegar ao ponto final. Que é passar no picadô, depois no aglutinadô, depois na extrusora, aí chega o ponto final, aí a gente vem com o produto pra outras fabricas né. Que nem as meninas que também da triagem, elas tria, e o produto já vai pra outras fábricas, como os pet, papelão essas coisas.

Nair (1ª) – Aqui na cooperativa é um pouco misto, né eu trabalho... Quando eu entrei, eu trabalhava na produção, achava interessante a área do plástico, depois tinha uma certa dificuldade na triagem, porque as pessoas tinham problemas de relacionamento e a direção achou importante, eu estar na triagem, porque disse que eu era mais firme, para ta conversando com as pessoas. Eu trabalhei na triagem uns oito, nove meses, aí fui convidada pra subir e trabalhar, não na administração, mas nessa área de vendas essa coisa toda, aí, após eu subir, eu fiquei uns oito meses. O diretor financeiro, como eu era do conselho da administração eu fui promovida pra diretora administrativo-financeira, aí eu fui convidada para ser presidente (...). Mas aí eu achava que era muito pesado, que isso era coisa mais era de homem, e não entrei. (...) Às vezes eu ficava com medo, porque eu achava que era uma responsabilidade muito grande. Às vezes, na assembléia eles citavam isso... E eu fiquei, por que não? Vou testar pra ver como é isso, como é que é, acho um trabalho muito importante, é uma responsabilidade muito grande, mas eu me sinto muito respeitada pelo grupo. (...) Então meu trabalho é esse, uma hora eu vendo, uma hora eu compro, uma hora eu administro, é muito misto, não tem uma coisa assim muito definida, a gente tentou definir cada uma na sua área, mas acaba uma fazendo a área da outra, não tem muito isso de eu sou e não posso mudar não. Trabalha mais ou menos assim.

Do material produzido, a telha é o único vendido para o consumidor

final; o grânulo oriundo do processamento do plástico é vendido para um

industrial que o transforma em mangueira de jardinagem ou sacos de lixo, e o

restante de material que é recolhido na usina, é vendido para depósitos de

materiais que os revendem para a indústria de reciclagem.

A produtividade do trabalho da Cooprec, dessa forma, barateia os

meios de produção e eleva a taxa de lucro da grande indústria de reciclagem.

Essa interdependência do trabalho social, tem que a produtividade do trabalho

em uma unidade produtiva aparece em outra, é completamente estranha ao

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trabalhador, e de fato, diz respeito apenas ao capitalista, “o único que compra

esses meios e deles se aproveita. Compra o produto dos trabalhadores de

outra indústria com o produto dos trabalhadores de sua própria indústria”

(Marx, s.b.a, 96). De forma que o processo de circulação dissimula a relação

de exploração do capital e a economia de capital constante.

Do recurso obtido com as vendas, são pagas as contas de

manutenção da usina e a sobra é dividida entre os cooperados, como rateio

mensal. A Cooprec mantém atualmente o fundo natalino, que corresponde ao

décimo terceiro salário, os cooperados gozam um mês de férias por ano, mas

não recebem adicional de férias. Além do recurso das vendas, a cooperativa

possui um convênio com a Companhia de Limpeza Urbana de Goiânia

(Comurg), pora coletar o lixo em dez bairros da Região Leste da cidade.

O rateio é, portanto, o repasse financeiro do qual os cooperados tiram

seu sustento. Contudo, em razão das dificuldades de produção da telha

principal produto da Cooprec, e de atrasos nos recebimentos dos convênios o

rateio não acontece com regularidade, o que se torna um problema crucial da

cooperativa.

Nair (1ª) – Olha a remuneração dos cooperados é garantida, através da venda dos produtos, mais algum convênio que a gente tem, como o convênio que a gente tem é o da Comurg e esse convênio demora muito a sair. Pra você ter uma idéia, tem seis meses que o convênio está atrasado, mais treis meses da gestão passada, isso acaba causando uma insatisfação grande porque atrasa o rateio. E quando atrasa o rateio a cooperativa fica sem estrutura até de estar propondo pros cooperados o trabalho em conjunto, porque eles falam que não está recebendo então eles não vai trabalhar. E isso eu acho se fosse uma empresa privava... Eu acho que as pessoas aqui são até muito tolerantes, se fosse uma empresa privada, não teria ninguém mais. Ficar dois meses sem recebê, dificilmente um mês você consiga. Mas a cooperativa tem uma política de chamar os cooperados e dizer: “Olha, nós não pagamos até hoje, porque as vendas foi pouca, nossa produção”... Começar a conscientizar ele que ele não recebeu porque a produção também caiu, é preciso ter uma produção X, para ele conseguir ter um X de rateio e no dia certo. Então o que eu acho mais complicado é não ter um dia certo de repassar o rateio para os cooperados. Isso pra pessoa que tá na administração, isso é muito ruim pra ela. Às vezes a pessoa fala... que às vezes, a gente ouve: “Ah que ceis não ta nem aí, ceis tem outro emprego”. Não, não é assim, porque o dinheiro que entra ele não é meu, eu fico muito mais frustrada de não passar para o dono do dinheiro, o meu pode até faltar, porque eu tenho de onde tirá pra mim, mas o deles não. E é lógico se a gente consegue passar o rateio no

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dia certinho, a administração tem uma auto-estima muito grande. O que frustra é você não ter o rateio, não ter o convênio, às vezes eu nem durmo quando acontece isso aí. Não é brinquedo não, né, [risos].

Maria Meonice – Não tem data fixa de recebê, mas como se fosse se a gente tivesse recebendo, todo mês, todo dia treis, libera duzentos reais de supermercado, então eu não acho difícil, e o resto que fica, recebe depois, no caso, passa um mês, dois, três, mas pra mim a gente recebe todo mês, que é trezentos e cinqüenta reais, tirando duzentos reais todo mês que é de compra e fica o restante, pra mim não é atraso não, eu vejo isso de minha parte, mas a maioria não vê.

A Cooprec fixou o rateio em trezentos e cinqüenta reais, dois quais duzentos

reais são retirados em vale supermercado. Além desse valor fixo, cada área tem um

meta de trabalho mensal, que, superada implica porcentagens de bônus. Duas áreas

têm bônus contínuo a coleta externa, considerada por eles o trabalho mais penoso na

cooperativa, e a diretoria.

Viviane – O dinheiro sempre atrasa, mas todo mês a gente tem o supermercado, a farmácia e quando a gente tá precisando de dinheiro, a gente fala com as meninas da diretoria que ta precisando de um vale, elas arruma. Dá pra levar, não é tão ruim assim. [O rateio é garantido] da gente aqui mesmo, do nosso próprio serviço, dos materiais que a gente busca lá na casa do morador, e tem o processo todinho, a triagem... Do nosso próprio suor mesmo.

Rosalino – Aqui, por exemplo, pode ser que em outra cooperativa tem diferença, mas aqui, é mais assim pra mulher, uma ajuda a mais pro marido, que pro homem, o rateio da cooperativa é pouco. Pra mulher, por exemplo, que é casada, o rateio de trezentos e cinqüenta já é uma ajuda boa. Que pra nois não dá, se for pra fica só nesse rateio, não dá, eu, por exemplo, tenho esse bônus, cê sabe que eu não tenho lazer, meu lazer é trabalho, eu ganho quinhentos e cinqüenta54. Mais a maioria ganha trezentos e cinqüenta, trezentos e quinze, né. (...) Repassa assim, às vezes não repassa (...).A cooperativa deixa às vezes a desejar nesse sentido, porque a parte das despesas... Às vezes a diretora não tem como repassar o que a pessoa ganha. Eu sei que a cooperativa ta devendo de mais da conta, às vezes o dinheiro que entra da produção não é suficiente, né. (...)

Sebastião – Ah, sei lá, aí é quando tem né, quando tem repassa e quando não tem fazer o quê? Que tem vez que não consegue pagar nem as conta né. É difícil.

54 Rosalino recebe mais que o restante dos cooperados, pois é da coleta externa e possui bônus por isso e, nos finais de semana, faz a segurança da Cooprec, ou seja, Rosalino não tem nenhum dia de folga.

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Júlio – Olha o padrão maior daqui é a telha, quando tem a telha, as contas fica em dia, o rateio também fica em dia, mas se não tiver telha... Pro cê vê, essas coisas pequenas que tem aí não [dá] pra fazer rateio não, dá mal pra pagá as conta né, papelão, papelão picado, o PET [garrafa plástica], garrafa, o grânulo agora que ta sendo um padrão pros cooperados, e a gente depende mais também e da Comurg né, mas se não me engano, tem uns oito meses que não acerta com a gente, por enquanto ta sendo um padrão alto, né, a telha e o grânulo.

Marinete – Uai! Aqui, daqui mesmo, a gente só livra o ganha pão né, pra comprar as coisas assim, aqui é fraco pra gente comprar as coisas, atrasa. Aí quando a gente recebe a maior parte já foi, pra farmácia, pro supermercado, né então é isso.

É notório que os cooperados não conseguem auferir da cooperativa

recurso financeiro suficiente para seu sustento. Uma das estratégias

encontradas para a garantia da subsistência é o convênio estabelecido com um

supermercado e uma farmácia que funcionam com uma autorização de

compra, que, no limite, garante a alimentação e ação curativa. A falta de

dinheiro em espécie, porém, provoca desgastes de toda ordem, como: corte de

água e eletricidade, constrangimentos pelo não-pagamento de alugueis, além

de desânimo com a situação do trabalho. Há pessoas que vendem parte das

compras do supermercado para familiares, com o intuito de angariar recursos

para o pagamento de dívidas, o que demonstra a gravidade da situação

econômica da cooperativa.

As famílias que se encontram em melhores condições financeiras

contam com a participação no orçamento dos rendimentos de outras pessoas

da família ou de algum programa social. Alguns possuem outros trabalhos em

sua maioria “bicos”. Os trabalhos dos familiares também são trabalhos

precarizados ou de curta duração (Levantamento do perfil do Cooperado,

2007)55.

Essa situação provocou a saída de muitos cooperados, que estavam

entre os sócios-fundadores. No início do estudo em 2005, 50% dos sócios-

fundandores permaneciam na Cooprec, e, em março de 2007, havia 25%.

Aqueles que permanecem alegam muito cansaço em razão de não ter sido

55 Realizou-se em 2007 o levantamento do perfil do cooperado, por meio de um questionário, com o objetivo de angariar informações socioeconômicas. Do universo de 32 cooperados 70% responderam ao questionário.

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alterada a realidade dos rateios, e vai desaparecendo a esperança em

melhorar de vida com o trabalho da cooperativa.

2.3 Relação com o IDF e com a prefeitura

O IDF, nos primeiros anos do trabalho, disponibilizou uma equipe

profissional para a orientação dos cooperados. A equipe contava com biólogas,

assistentes sociais, pessoal de apoio administrativo.

Essa equipe foi se desfazendo com as mudanças de diretoria,

restando, em 2002, apenas um técnico responsável pela fiscalização

administrativa do trabalho da cooperativa, que, posteriormente, também foi

afastado. Essas mudanças afetam o trabalho de educação ambiental no bairro,

e também a administração da cooperativa.

O fato de ter sido fomentada por um agente externo e não pela

organização dos próprios trabalhadores é crucial no entendimento das tensões

da Cooprec, sobretudo, porque o Instituto Dom Fernando, no inicio, influenciou

todas as decisões da cooperativa. Por alguns anos, as ações do IDF tutelaram

a cooperativa, depois esse se afastou, deixando um vácuo que os cooperados

ainda tentam preencher, buscando estabelecer a relação em outro patamar de

autonomia.

A SGC/UCG/IDF cede em comodato à Cooprec o complexo

denominado Núcleo Industrial de Reciclagem, que consiste nas dependências

e maquinaria da Usina, podendo rescindi-lo, sem indenização nos seguintes

casos:

a) Inobservância de qualquer dispositivo legal e/ou contratual; b) Contratação por parte da Cooperativa de empregados para desempenharem qualquer atividade na área produtiva ou recolhimento de lixo (parte operacional) – Art. 34 parágrafo 3º do Estatuto Social da Cooperativa; c) Dobra de turno com os mesmos cooperados e a contratação de empregados para essa finalidade, necessidades que a cooperativa deverá resolver admitindo novos cooperados para sanar as suas necessidades. Artigo 34 parágrafo 2º do Estatuto Social; d) Qualquer alteração estatutária que seja caracterizada como nociva ou contrária às finalidades do Projeto Meia Ponte. (SGC, Contrato de Comodato SGC/Cooprec, 1998)

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O contrato prevê que a Cooprec deverá se reportar à SGC para

receber anuência sempre que for necessária a execução de despesas

extraordinárias para solucionar de urgência, procedimento estendido quando se

tratar de benfeitorias necessárias. Todas as obras e benfeitorias são

incorporadas ao patrimônio da SGC, ficando a Cooprec obrigada às despesas

de uso e gozo dos bens colocados à sua disposição, bem como às despesas

inerentes a toda e qualquer nova aquisição de bens e serviços. (SGC, Contato

de Comodato SGC/Cooprec, 1998). Esse contrato continua em vigor, porém,

está em processo de revisão.

Nair (2ª) – Olha, no primeiro ano... Porque assim, na minha visão, o Instituto Dom Fernando criou o projeto e assim, a gente... o primeiro convênio que houve assim... Entre Cooprec e Comurg, na verdade, ele não foi Cooprec e Comurg, ele foi Comurg, Sociedade Goiana de Cultura barra Cooprec. Ficou assim um convênio onde os cooperados não entendiam a discussão. (...) Mas assim, a cooperativa começou a colocar na cabeça da direção que quem negociava era o Instituto Dom Fernando, acho que o pior erro foi esse que aconteceu na Cooprec. (...) Mas assim, a cooperativa sempre... Nunca entendeu, hoje assim eu acho muito mais tranqüilo porque a cooperativa já sabe o que ela quer. Aí foi, discutiu, aí ficou o seguinte, ficô sete mil reais, decidiu por sete mil real, tirou as tonelada... Não... Não tirou não... Ficou as toneladas, vinte e cinco [reais] por tonelada, mas o que nois coletássemos. Aí fez, e a gente começou a coletá e chegou o final do meis, só que a gente tinha que pagar imposto sobre esse lixo que era coletado, aí o imposto parece assim que dava mil e duzentos reais, aí dava sete, sete mil e pouco, caia pra cinco. Aí fomo discutir e achou melhor fazê pela Sociedade Goiana de Cultura que não tinha imposto pelo caráter social dela né. Aí fez com a Universidade Católica e não foi por tonelada mais, aí passou a ser acho que sete mil reais, seis mil reais. Aí esse convênio veio, pela Sociedade Goiana de Cultura. O professor Zeuxis [diretor técnico do IDF] sempre na frente né.

Ao longo dos anos de trabalho com a Cooprec, o Instituto Dom

Fernando contratou um técnico para trabalhar exclusivamente com a ela. O

primeiro foi o Augusto, depois, o André e por último, o Cássio. Esse último teve

alguns desentendimentos com a diretoria da cooperativa, mesmo porque a

orientação que recebera da direção do IDF era que ele deveria fiscalizar o

trabalho da Coopec. Com a saída do Cássio, o IDF convidou a direção da

Cooprec para participar das reuniões da equipe técnica do IDF para que a

relação fosse realizada sem intermediadores.

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Nair (2ª) – Com a saída do Cássio a gente ficô sem pessoa pra comunicá, aí começô a vim as reuniões de extensão, que é aquela que vinha toda quarta-feira, né,. Eu comecei a participá, aí o que é que eu percebi, primeiro a cooperativa numa correria danada que a gente não consegue fazê as coisa que a gente quê; segundo os problema que a gente levava pra lá acabava sendo discussão e mágoa passada, dentro da reunião, principalmente com a professora Cidoca56, né, acho que ela não teve um conhecimento assim do nosso trabalho, acho que a Marilene57 foi muito mais tranqüila, a Cidoca eu já acho que não foi...(...). Eu só sei que a gente chegava lá nas reuniões, eu não sei se é a pessoa que tá coordenando que não tem condições de chegar aos objetivo ou se é a pessoa coordenando que não se importa pra tentar resolvê os objetivo. (...) Aí a gente começa a percebê isso... talvez também porque as ações da universidade que ela é muito lenta. Ela faz um planejamento hoje, daqui um ano saia a direção, aquele planejamento não vale, aí tem que sê outro planejamento, quer dizer, ao invés das pessoa pegá aquele planejamento que existe tentá colocá em prática ou tentá melhorá ele, não, começa tudo do zero. Mas a pessoa que eu acho que contribuiu muito na questão foi a professora Marilene, acho que ela era mais assim... Acho que ela conseguia compreender o problema da cooperativa. Apesar que é lógico a cooperativa tem suas falhas também, talvez é a falta de informação.

O IDF passou por quatro mudanças na direção geral, e cada uma

delas implicou uma forma de trabalho e um tratamento específico na relação

com a Cooprec. Sob a direção de Washington Novaes (1995-1998) foi

construída a Usina de Reciclagem e toda a estrutura física do IDF. O trabalho

foi iniciado com forte matiz ambiental, um grande envolvimento comunitário, e o

IDF teve boa visibilidade, com muitas entrevistas e reportagens que colocaram

o trabalho comunitário em evidência. Nesse momento, a relação com a

Cooprec tinha característica de tutela, a SGC/IDF era a mãe que cuidava,

incentivava e acertava as diferenças financeiras, quando necessário.

Com a saída de Washington Novaes a administração passou às mãos

do Professor Anderson Lima da Silveira (1998-2002). Foi um período em que

surgem muitos conflitos com a comunidade, especialmente com a Cooprec. O

IDF passou a identificar-se como uma organização não-governamental, com

56 Professora Maria Aparecida Coelho (Cidoca), diretora do IDF de janeiro de 2004 a julho de 2005. 57 Professora Marilene Aparecida Coelho, diretor do IDF de novembro de 2002 a dezembro de 2003.

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todas as questões teóricas implicadas nessa concepção58. A relação com a

Cooprec continuou de tutela, porém, iniciou-se uma ação fiscalizadora, e todas

as questões pertinentes à administração da cooperativa, sobretudo as de

ordem financeiras eram resolvidas com a interferência do instituto, de forma

notoriamente autoritária. O IDF designou um funcionário especificamente para

fiscalizar o trabalho da cooperativa.

Em 2002, a administração da Sociedade Goiana de Cultura passou por

mudanças ocorridas em razão do início do bispado de Dom Washington Cruz.

Toda a direção da Universidade Católica de Goiás foi substituída e,

concomitantemente, a diretoria do IDF. A administração do IDF ficou a cargo da

Professora Marilene Aparecida Coelho. Tentou-se refazer a relação com a

Cooprec, respeitando a sua autonomia, em um processo lento, em virtude das

mágoas e vícios existentes de ambas as partes. Começou-se a discutir a

natureza do IDF. No final de 2003, a SGC, UCG e IDF, decidem incorporar à

extensão da UCG, o IDF.

Inicia-se um período de transição para o IDF, que passou à direção da

Profª Maria Aparecida Coelho Vaz (Cidoca). Montou-se uma comissão de

transição para elaborar um documento em que se estuda a situação do IDF

para sua inserção no projeto de Extensão da UCG. Esse período de transição,

de janeiro de 2004 a julho de 2005, provocou um distanciamento entre IDF e

Cooprec, pois se afirmava que a Cooprec possuía uma organização própria. O

IDF preocupou-se, nesse período, com a busca da redefinição de sua própria

identidade. A cooperativa se vê percebeu então a necessidade de resolver

seus problemas sozinha, o que em muitos momentos ocorreu com dificuldade,

pois de uma forma ou de outra, para as outras instituições, a cooperativa era

apoiada pela UCG, o que, em muitos momentos, impediu a realização de

convênios e parcerias que poderiam auxiliar a gestão da Cooprec.

Findo o período de transição, o IDF passou a vincular-se à Pró-Reitoria

de Extensão e Apoio Estudantil (Proex), constituindo-se em unidade

acadêmico-administrativa da UCG. Em março de 2006, foi lançado como um

instituto especializado nas temáticas da infância, adolescência, juventude e

58 Conferir: Montaño (2005).

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família. Elabora-se o Programa de Incubadora Social (PIS), vinculado

diretamente à Coordenação Geral de Estágio e Extensão da Universidade que

se tornou o responsável pela relação com a Cooprec, que em virtude da própria

organização do PIS ainda se encontra indefinida.

Além da relação com o IDF a Cooprec possui um convênio com a

prefeitura de Goiânia para coleta do resíduo domiciliar.

Laíde – Bem, foi bom, embora a gente tenha tido muita dificuldade, principalmente na parte financeira, que sempre teve essas coisas... desde o início... que embora a gente tenha esse convênio com a prefeitura, que o convênio com a prefeitura mesmo vem dois anos, três anos após, que a gente já tava trabalhando.(...) Então eu acho que ele é muito bom, ajuda bastante todo mundo sabe disso, mas a gente não precisa ficá só dependendo dele não, a gente tem muitas formas de tá conseguindo gerar dinheiro ali dentro, eu não sei... Talvez a gente não esteja conseguindo prepará bem preparado pra tá indo em busca de recursos pra isso, eu vejo como positivo porém, a gente deveria contá com esse convênio apenas pra tá ajudano mesmo, porque agora a gente vê que se a Comurg não paga a gente, acaba que vai ficando sem a gente conseguir fazê o rateio, sem pagá algumas contas da cooperativa, né, então, eu acho isso... não sei bem como, qual seria o caminho.

O convênio com a prefeitura consiste em um repasse financeiro

mensal, para a Cooprec realizar a coleta dos resíduos nos bairros de

abrangência do projeto59. No entanto, esse recurso atrasa constantemente, o

que dificulta a realização do rateio.

Laíde –. [Sem o convênio] ficaria muito pior do que tá hoje né, com certeza, porque a gente vê até pela questão dos cooperados não terem... Você sabe, a maioria não tem assim estudo, às vezes para andá ali, se a diretoria não tivé ali incentivando, em cima, é falta de iniciativa as vezes, porque o trabalho tá ali pra sê feito e se não tivé alguém ali cutucano não sai, talvez é falta de visão. Eu acho que é isso que tá faltano, tanto do pessoal da produção, quanto a gente mesmo que tá na administração. Eu acho que se a gente acordá mesmo, pra importância do nosso trabalho, que se a gente unir as forças e trabalhá todo mundo mesmo, com seriedade a gente consegue vencê e não ficá só dependeno do convênio da Comurg.

Em relação aos recursos financeiros da Cooprec, Laíde comenta as

dificuldades com o maquinário obsoleto, a falta de telhas para a venda (ela é 59 No inicio eram: Jardim Dom Fernando I, Jardim Dom Fernando II, Jardim Aroeiras I, Jardim Aroeiras II e Jardim Conquista. Posteriormente foi estendido para mais cinco bairros próximos a esses.

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secada ao sol, de forma que, durante o período chuvoso, o produto não é

fabricado), e. Nair fala dos problemas com o atraso nos repasses de recursos

da prefeitura:

Laíde – Bem as vendas hoje, a gente não.... A situação hoje a venda é muito pouca, até devido ao período que a gente tá hoje, hoje, por exemplo, a gente não tem telha.... Devido ao estado que tá o maquinário da área do plástico, a área tá praticamente parada, então eu vejo que a maior dificuldade é o fato do maquinário não tá funcionando como deveria, porque se o maquinário do plástico... Esse maquinário tá funcionando devidamente, eu tenho certeza que só com a produção do plástico mesmo... Agora mesmo, a gente mandou arrumar a extrusora, a extrusora tá boa tem possibilidade até de dobrá a nossa produção, estragou outra máquina [ri], então acaba que vai ficando sabe? Devido ao tempo que a gente fica parado, isso é o que atrapalha a nossa renda mesmo, é o que dificulta... Porque quando a gente arruma uma máquina, estraga outra, a gente manda arrumá, sabe? Vai virano uma bola de neve, até devido ao maquinário tá muito sucateado, eu acho que se a gente conseguisse trocá esse maquinário, a nossa produção daria para colocá esse rateio em dia sem a gente tá recebeno esse rateio da prefeitura.

Nair (1ª) – Acho que trabalhar um pouco na questão da produção, tá convencendo as pessoas que a cooperativa ela precisa produzir, porque a gente trabalha muito nessa questão da confiança em convênio e eu vejo assim que, o convênio precisa existir, mas a cooperativa precisa criar produtos, precisa buscar algum meio que ela sobreviva sem convênio e que o convênio seja uma coisa pra somar.

Foi apresentada a Cooprec, com sua experiência, sua história, as

questões acerca do fomento por uma instituição filantrópica, que capta

recursos do Estado para um projeto de geração de emprego e renda. A

necessidade do convênio com o setor público para a coleta do resíduo, mas

também, para a realização do rateio.

Essa experiência de trabalho insere-se em um momento específico da

relação capital e trabalho, qual seja, a crise da década de 1970. A resposta à

crise ocorreu, por parte do capital, com uma forte ofensiva contra os

trabalhares com objetivo de manter o processo de acumulação ao reduzir

custos de produção. Os trabalhadores pressionados por processos de

pauperização buscam estratégias de sobrevivência.

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CAPÍTULO III

“VIDA É TRABALHO” COOPERATIVISMO, TRABALHO, DESEMPREGO

Um homem se humilha Se castram seu sonho Seu sonho é sua vida

E a vida é trabalho E sem o seu trabalho

Um homem não tem honra E sem a sua honra Se morre, se mata

Não dá pra ser feliz Não dá pra ser feliz...

Gonzaguinha

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Vida é trabalho, mas não qualquer, é o trabalho em seu atributo

ontológico, concreto, criador de valores de uso, no necessário intercâmbio

entre homem e natureza, indispensável à manutenção da vida humana, em

qualquer forma de sociedade (Marx, 2003a). No entanto, o trabalho expresso

na experiência da Cooprec, extrato do trabalho no modo de produção

capitalista, apresenta-se como trabalho abstrato58.

Já foi exposto que, para este estudo, a discussão do trabalho é central

para a compreensão da contemporaneidade. Faz-se necessário, contudo,

retomar a discussão de como o trabalho abstrato se organiza na sociedade

moderna, para que se possa seguir com a apreensão das mediações

existentes entre a experiência da Cooprec e o atual estágio da organização do

trabalho.

O capitalismo organiza-se primeiramente sob a forma de cooperação

simples59, fundada na divisão trabalho. Essa cooperação adquire sua forma

clássica na manufatura, e se apresenta de duas maneiras: a) concentrados na

mesma oficina, sob o comando do mesmo capitalista, há trabalhadores de

diferentes especialidades, por cujas mãos passam o mesmo produto até o

acabamento final, ou b) no mesmo lugar, sob a tutela de um único capitalista,

muitos trabalhadores exercem a mesma função, a mesma espécie de trabalho.

A mercadoria deixa de ser produto individual de um artesão apenas, para

transformar-se em produto social de um conjunto de trabalhadores, cada um

dos quais realiza a mesma e única tarefa parcial (Marx, 2003b).

A manufatura cria o trabalhador parcial para o qual se desenvolve um

instrumento específico de trabalho. Essa modalidade, portanto,

simplifica, aperfeiçoa e diversifica as ferramentas, adaptando-as às funções exclusivas especiais do trabalhador parcial. Com isso, cria uma das condições materiais para a existência da maquinaria, que consiste numa combinação de instrumentos simples. (Marx, 2003 b, p. 396)

58 O trabalho abstrato é a atividade social mensurada pelo tempo de trabalho socialmente necessário e produtor de mais-valia. Cf. Capítulo I deste estudo. 59 Este assunto foi tratado no primeiro capítulo.

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Nesse caso, a maquinaria é adequada ao trabalhador coletivo, fazendo

diminuir o tempo de trabalho necessário para a produção de mercadorias, mas

o principal fator do processo de produção do período centra-se na figura do

trabalhador coletivo, cujo resultado do trabalho realizado coletivamente

pertence ao capitalista.

Se na manufatura revoluciona-se o modo de produção com base na

força de trabalho, na indústria moderna, ela é feita com o instrumento de

trabalho. O emprego de maquinaria no processo produtivo tem obviamente

como objetivo baratear o custo das mercadorias. De fato, é notório que o

aumento da maquinaria intensifica o trabalho, gerando aumento da extração da

mais-valia por meio do aumento do capital constante. Por outro lado,

proporciona a utilização de mão-de-obra feminina e infantil o que reduz gastos

com a remuneração do trabalho.

A invenção de máquinas e o conseqüente aprimoramento da

maquinaria conferem forma à industria moderna. Nela, a divisão do trabalho

aparece como distribuição dos trabalhadores nas diferentes máquinas

especializadas, e a esse conjunto de trabalhadores soma-se um pequeno

quantitativo para auxiliar o processo de produção. Esse contingente possui

algumas características diferenciadoras, como formação científica, domínio do

ofício, cuja divisão do trabalho é puramente técnica, como, por exemplo,

engenheiros, mecânicos e marceneiros (Marx, 2003b).

A produção mecanizada altera a divisão do trabalho, pois se antes

havia um trabalhador treinado e adaptado para a operação de um maquinário

específico, posteriormente pode-se, a qualquer momento mudar o trabalhador

de função, uma vez que a maquinaria60 determina o movimento para a

produção da mercadoria e, não mais o trabalhador conhecedor do ofício. A

esse respeito, Marx (2003b, p.482) esclarece:

60 Ressalta-se, todavia que maquinário é trabalho humano cristalizado, trabalho morto.

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Na manufatura e no artesanato, o trabalhador se serve da ferramenta; na fábrica, serve à máquina. Naqueles, procede dele o movimento do instrumental. Na manufatura, os trabalhadores são membros de um mecanismo vivo. Na fábrica, eles se tornam complementos vivos de um mecanismo morto que existe independente deles.

A grande indústria tornou-se complexa à medida que incorporou

maquinaria cada vez mais sofisticada e automatizada. Complexificou-se

também o processo de divisão social e técnica do trabalho, aliado a uma

extrema especialização do trabalho. Aprimorou-se o sistema de gerenciamento

do trabalho. A partir do século XX constituiu-se, como resultado desse

movimento, a produção em massa, padronizada, para a qual é necessário que

se criem mercados apropriados de consumo, também de massa.

A base da grande indústria que provoca sempre crescentes processos

de urbanização e concentração de aglomerados humanos intensificou com o

passar dos anos, o consumo de mercadorias no mercado mundial. Já não é

preponderante o lugar onde se produz a mercadoria em relação ao mercado

que a irá consumir. De fato, o próprio processo de produção é descentralizado,

e o capital, não possui fronteiras e se desloca sempre em busca de força-de-

trabalho mais barata esteja onde ela onde estiver.

Sob a égide do capital monopolista, a produção também tornou-se

complexa. As indústrias distribuem sua filiais pelos países de capitalismo

tardio, e alcançam ganhos sempre crescentes de produção. Vários fatores

interferiram nesse processo, dentre eles: a vitória dos aliados na Segunda

Guerra Mundial (1939-1945), o reconhecimento dos Estados Unidos da

América como grande potência mundial. Por outro lado, a dizimação da Europa

pela guerra, a derrota alemã/italiana/japonesa, o modelo fordista/taylorista

como determinante do funcionamento das fábricas, gestaram o padrão de

acumulação fordista/keynesiano e a assunção, por parte, sobretudo dos países

europeus após o embate das idéias keynesianas acerca do controle do Estado

na relação com o desemprego61.

61 Sobre este assunto, ver Harvey (1992), Antunes (1999a) e Hobsbawm (1994).

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Essa situação agravou-se até inícios dos anos 1970, quando ocorreu

mais uma das crises cíclicas do capital62. Nessa década, convergiram fatores

que alteraram a forma de acumulação do capital, refletindo-se na classe

trabalhadora: crise do petróleo, recuperação financeira do Japão e países

europeus com abertura para o mercado externo, excesso de gastos

provocados pela corrida espacial63, queda de lucratividade das indústrias

americanas e conseqüente crise fiscal, o que provocou uma aceleração da

inflação; contração do crédito; desvalorização do dólar e câmbios flutuantes

(Harvey, 1992).

A rigidez da produção fordista não mais conseguia garantir índices

satisfatórios de crescimento. Diante da crise, os países centrais adotaram

medidas neoliberais: enfraquecem sindicatos e sindicalistas, privatizam

parques industriais nacionais, desregulamentam a legislação trabalhista. À

retração do Estado de Bem-Estar Social, somam-se processos crescentes de

automação e reengenharia das empresas, e todos os países de capitalismo

avançado enfrentam índices altos de desemprego (Antunes, 1999a; Mattoso,

1995).

Na trilha da desregulamentação do trabalho e da acumulação

flexível64, altera-se a forma de organização da produção. No modelo fordista, a

empresa especializava-se em determinadas áreas, contendo todas as fases do

processo de produção, atualmente descentraliza-se a produção entre

diferentes empresas. Inverte-se a lógica da produção – antes a produção

ocorria em escala e as mercadorias eram padronizadas para na seqüência,

gerar mercados consumidores: na atualidade, produz-se ao gosto do cliente e

geram-se mercados nos quais se consome o mesmo bem repetidas vezes,

inventa-se a indústria do descartável, reduzindo o tempo de consumo da 62 Este estudo não trata da história do capitalismo, entretanto, deve-se ressaltar que esse modo de produção enfrenta, de tempos em tempos, crises, que alguns autores denominam de crises cíclicas do capital, embora ele sempre encontre meios refazer-se notavelmente das perdas com a exploração cada vez mais intensa daqueles que vendem sua força de trabalho. 63 Com o final da Segunda Guerra Mundial, Estados Unidos da América e a antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas iniciam uma corrida espacial e armamentista que dura até a década de 1990. 64 A inserção do padrão de acumulação flexível ocorre de forma diferenciada em cada país, co-existindo com outras formas de organização do trabalho, mas, com o passar dos anos, a desregulamentação do trabalho ocorre tanto em países de capitalismo avançado, como nas economias de capitalismo tardio.

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mesma mercadoria (Harvey, 1992).

Do ponto de vista da organização do trabalho, desenvolve-se um

processo dinâmico de cooperação entre empresas, ou seja, partes de

determinada mercadoria são produzidas separadamente, e a empresa que

venderá determinada marca se responsabiliza apenas pela montagem final do

produto, e em alguns casos, apenas pelo marketing de venda.

Ao produzir em processo de automação intensificado e ocupado com o

marketing de vendas, o capital dispensa os grandes quantitativos de força de

trabalho. Exige, de um lado, trabalhadores altamente especializados, capazes

de operar equipamentos sofisticados e responder a quaisquer problemas que

surjam, isto é, trabalhadores polivalentes. De outro, surge uma massa de

trabalhadores precarizados: subempregados, trabalhadores por conta própria,

diaristas, trabalhadores informais, que, ligados a empresas terceirizadas65 ou

trabalhando informalmente, se encontram em níveis crescentes de

pauperização. Antunes (2005) chama esses trabalhadores de classe-que-vive-

do-trabalho. Para o autor, inserem-se na classe-que-vive-do-trabalho

aqueles e aquelas que vendem sua força de trabalho em troca de salário, como o enorme leque de trabalhadores precarizados, terceirizados, fabris e de serviços, part-time, que se caracterizam pelo vínculo de trabalho temporário, pelo trabalho precarizado, em expansão na totalidade do mundo produtivo. Deve incluir também o proletariado rural, os chamados bóias-frias das regiões agroindustriais, além naturalmente, da totalidade dos trabalhadores desempregados que se constituem nesse monumental exército de reserva. (Antunes, 2005, p.52)

Desse modo, a forma flexível de acumulação capitalista provoca

conseqüências enormes no mundo do trabalho, Antunes (2005) enumera

algumas delas: a) decréscimo do proletariado fabril estável que havia se

consolidado na vigência do taylorismo/fordismo; b) incremento do proletariado

precarizado, subcontratado, part-time; c) crescimento do número de

assalariados médios e de serviços, embora já apresentando níveis de

65 Chama-se terceirizada a empresa que é contratada por outra para a prestação de um determinado serviço, como limpeza, por exemplo. Os trabalhadores da empresa terceirizada recebem salários muito aquém dos trabalhadores da empresa contratante.

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desemprego; d) exclusão de jovens e idosos do mercado de trabalho; e)

inclusão de crianças no mercado de trabalho, especialmente nos países de

industrialização intermediária, como os asiáticos e latino-americanos; f)

aumento do trabalho feminino com remuneração inferior à mão-de-obra

masculina; g) expansão do terceiro setor com geração de ocupações

motivadas por trabalho voluntário; h) expansão do trabalho realizado em

domicílio; i) reconfiguração tanto do tempo quanto do espaço da produção com

uma re-territorialização e também uma des-territorialização da produção.

Participam do mesmo processo de produção, trabalhadores alocados

em diferentes territórios. O capitalismo passa a ser organizado nas bases de

uma cooperação complexa66, que altera significativamente a relação de

produção, que se descentraliza e se torna mais complexa, bem como se

fragmenta a classe trabalhadora, que passa a ser mais heterogênea e

complexa também.

Para que uma grande marca da megaindústria mundial consiga

colocar seus produtos no mercado, ela utiliza força de trabalho alocada em

qualquer local do planeta, por vezes, em mais de um local. O capital que

compõe as empresas, se já não tinha fronteiras, agora se movimenta pelo

globo quase que instantaneamente.

Ocorre um reordenamento na divisão técnica do trabalho, porém entre

trabalhadores estabelecidos em qualquer lugar do mundo. Às grandes

corporações não mais interessam tarefas corriqueiras de simples manutenção,

como segurança, transporte e limpeza. Deixam-na a cargo de empresas

especializadas no assunto, que funcionam como atravessadores modernos na

relação capital e trabalho.

Grandes corporações preocupam-se com grandes investimentos e

estratégias de marketing para a venda de produtos. É na produção que se cria

riqueza, “a partir da combinação social de trabalho humano, de diferentes

qualificações. Mas é a esfera financeira que comanda, cada vez mais, a

repartição e a destinação social dessa riqueza” (Chesnais, 1996, p.15).

66 A expressão cooperação complexa é de Teixeira (2004), e alguns dos apontamentos desse capítulo são inspirados em suas idéias.

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Cresce a produção de descartáveis, que provoca um problema

monumental, o que fazer com o lixo, mas significa também mudança de

valores, estilos de vida e modos de agir e de viver (Harvey, 1992).

Acelera-se as taxas de desemprego, o que agrava a pauperização da

população. Um gigantesco contingente populacional mundial perde as

perspectivas de um emprego estável, seguro. Para estes surgem apenas

postos precarizados de trabalho.

De acordo com Barbosa (2005) a alternativa escolhida para a crise

estabelecida pelo capital, após a década de 1970, foi a desvalorização do

trabalho, que se apresenta em duas formas: a subsistência, que não interessa

ao capital, e a informalização, que reduz os custos de produção, o que redunda

em uma rentável forma de acumulação.

Nessa conjuntura econômica, cresce no Brasil a função de coleta de

lixo urbano. Muitos trabalhadores deslocam-se para essa atividade e o fazem

por já não terem mais nenhuma outra possibilidade de sustento, e alguns

retiram do próprio lixão o alimento com o qual sustentam suas famílias.

Esses trabalhadores organizam-se em cooperativas e associações

produtivas, muitas delas vinculadas diretamente à economia solidária. A maior

parte das atividades dessas cooperativas consiste na coleta do material nas

ruas prensagem e venda para sucateiros, que por sua vez, os venderão para a

indústria de recicláveis. Magera (2005) destaca algumas dessas indústrias de

processamento das latinhas de alumínio: ALCAN, LATASA, Albras, Alcoa,

Billiton, CBA e Aluvale. Em alguns municípios, a prefeitura coleta ela própria o

material e o leva para galpões, nos quais esteiras levam até o trabalhador o

material que é triado e prensado. Na maioria dos locais, no entanto, as pessoas

saem à rua, com carrinhos e ou carroças para a realização da tarefa.

Essas experiências exercem uma funcionalidade ao capital em três

perspectivas: a) ao se auto-empregarem, os trabalhadores diminuem a pressão

social sobre o problema do desemprego, que caso contrário recairia sobre o

Estado, demandando providências de políticas públicas; b) amenizam o

problema da geração de lixo, provocada pelo consumo crescente de

descartáveis; e d) participam do processo de acumulação do capital.

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3.1 Emprego e desemprego

Nas entrevistas realizadas com os cooperados, a questão do

emprego/desemprego aparece com algumas tendências: a) a crença de que a

cooperativa prepara para o mercado de trabalho; b) o desejo de conseguir um

trabalho com carteira assinada; c) a vantagem por não ter quem manda, isto é,

o patrão; c) desejo de continuar a atividade, caso melhorem as condições

financeiras da Cooprec.

Maria Meonice – Eu trabalhava em outro serviço, trabalhava no Jaó, durante três anos, saí do Jaó pra entrar aqui. Aí muda alguma coisa... Mas é bom. Futuramente pretendo [sair] (...) É... Muitas pessoas que trabalham aqui, que tem um cargo melhor, quando saem fica definitivo num serviço melhor, eu pretendo isso... o que aprendi aqui, eu saí quem sabe? Eu ter um futuro melhor lá fora?(...) Uai, porque eu quero ter alguma coisa melhor, ter futuro, né, trabalhar de carteira assinada porque a gente não trabalha... Mas é bom! Que às vezes daqui pra frente, quem sabe se não melhora eu continuo aqui.

Viviane – Porque tem muita gente lá fora, como se diz, o mercado de trabalho tá muito difícil, mesmo pra quem tem estudo e pra quem não tem também. Então tem gente que nunca teve uma chance, eu já tive, já trabalhei fora, mas tem muita gente que não tem aquele meio de trabalhar fora. A cooperativa ajuda muito pras pessoas que precisam.

Rosalino – Agora, outra coisa a cooperativa... a pessoa às vezes se acomoda demais de acordo com o relaxamento que tem aqui. Às vezes, a pessoa pensa assim: “Eu vou ganhar um salário mínimo lá na empresa, levantar cinco horas da manhã, quatro e meia, pegar o ônibus cinco horas, né, trabaiá até cinco horas da tarde, tem que leva uma marmitinha”. A visão de muitos é assim. Na cooperativa, ele chega às oito horas, trabalha de segunda a sexta, dói uma ponta de dedo, [e ele diz]: “Oi tá doendo, aqui eu vou embora pra casa”. [A resposta é]: “Pode ir”. Às vezes, é uma terapia muito boa pra quem tem essa visão, né, e existe pessoas assim. De primeiro, aqui tinha farmacinha, a pessoa tava lá embaixo67, [e dizia]: “vou subir”, [na diretoria dizia]: “Tem remédio pra dor de cabeça?” (...) Toma o remédio e vai embora para casa, o que adiantou?

Laíde – hoje em dia a gente vê que algumas pessoas tão ali porque não tem outra oportunidade de tá conseguindo alguma coisa melhor lá fora. Tão ali até por falta de perspectiva mesmo (...) Que muitos (..) não têm estudo nenhum, não têm muito conhecimento e o pouco que a gente sabe tá

67 O terreno no qual se localiza a usina tem um desnível, por isso, se diz que a produção é “lá em baixo” e o escritório, “lá em cima”.

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passando pra’queles outros, tá incentivando a voltá a estudá, pr’aqueles que não sabe tá voltando pra sala de aula, que eu acho que a partir daí é que surge o interesse, né, talvez pra tá melhorando a cooperativa.

Sebastião – É uma forma boa de trabalhar, porque se a pessoa não tem emprego, ele vindo aqui ele emprega, né. Aí começa a trabalhar e sai bem, que ele não fica sem despesa. Que a pessoa, que nem eu tava aí, o dinheiro foi acabando, e vai indo, vai indo, os menino desempregado, a mulher nem se fala. Aí tinha que pedi pro meu sogro lá na Rondônia. (...) ele mandô, pra cobrir umas contas aí, e foi passando. Aí peguei amizade com o Wilson68 e ele falô pra mim: “Não, vamô lá que eu acho que vai dá certo”. E nois vei e eu to aqui até hoje.

Nair (1ª) – Eu acho que a cooperativa, a Cooprec, é uma alternativa pro trabalhador. Em primeiro lugar eu acho que ele se encontra como pessoa aqui. Em segundo lugar ele se prepara para o mercado de trabalho. Eu acho que várias pessoas, em torno de umas cento e poucas pessoas, já passou por aqui e que talvez ele pode considerar como primeiro emprego, como a Valdiná69, né. A Valdiná trabalhou aqui, foi o primeiro emprego dela, e que hoje ela está na Brasil Telecom70. Quando ela entrou aqui, ela fez curso, ela se capacitou. Só que precisa, o cooperado ele precisa entendê que a cooperativa é o meio para ele conseguir algumas coisas boa, ele não pode ficar esperando que a cooperativa, ela faça tudo por ele. Eu acho que seria um calço mesmo, ela vai ta calçando ele, e ele vai buscando conhecimento no mercado e até mesmo com os próprios cooperados. Eu acho oportunidades, é excelente, pra todas as profissões, pra estagiários, pra motorista, então nem se discute, é excelente. A oportunidade que a cooperativa dá.

A cooperativa, assim como as experiências de economia solidária,

configura-se como espaço ocupacional para a parcela da população que não

consegue trabalho no mercado. Muitos cooperados que ingressaram

recentemente declaram que estão na Cooprec porque não conseguiram

nenhum outro posto de trabalho e precisam de alguma renda, alguns deles

nunca receberam dinheiro, apenas o auxílio supermercado71.

É possível notar uma nítida divisão entre os cooperados que fundaram

a Cooprec e os que ingressaram posteriormente. Os primeiros denotam em

suas falas uma esperança já envelhecida em relação às possibilidades de

alterar a comunidade em que vivem com as atividades de educação ambiental, 68 Wilson era sócio-fundador da Cooprec, deixou a cooperativa, em 2006, em decorrência de problemas de saúde. 69 Valdiná foi sócio-fundadora, saiu em 2005 para trabalhar na Brasil Telecom (empresa de telefonia). Trabalha seis horas por dia, no tele atendimento. 70 Empresa telefônica. 71 Dados do perfil socioeconômico 2007.

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mas possuem a convicção de que sua atividade contribui para toda a

sociedade. Os mais novos integrantes precisam sobreviver e vêem na Cooprec

a única possibilidade que encontraram após um período de buscas por trabalho

sem obter sucesso. As narrativas são esclarecedoras:

Nair (2ª) – Olha hoje eu vejo a cooperativa... (...) Com um lado muito social, com uma preocupação muito social, preocupação produtiva a cooperativa não tá preocupada. Assim... Devido ela perdê algumas pessoas que tinha habilidade na produção, aí eu vejo ela assim mais no lado social. [simula um diálogo] “Ah mas nos vamos chamá seu José?”, “Mas seu José é uma pessoa com a aparência tão cansada”, “Mas Seu José como é que vai ficá ele?” A gente pega seu José. Aí cê pega a D. Maria Aparecida, a D. Aparecida não dá conta de abaixá, não da conta disso, mas coitada. Então, a gente tá assim, com esse lado social. (...) Agora tá acontecendo umas coisas assim de sumi uma roupa, sumi sapato, eu fico assim sem sabê até o porquê de acontecê isso. Porque, assim... tá, lógico que a cooperativa não tá saíno dinheiro, mas duzentos e cinqüenta reais todo mês é liberado pra eles. Quer dizer, tem gente que vem vende as coisas do supermercado, tem as pessoas que compra. E tem pessoas que, às vezes, que tá lá fora que não tem nem isso aí uai! Por exemplo, porque que tem essa coisa de ficá pegando uma sandália, pegando uma roupinha, então eu acho muito pequeno. Eu acho que a gente precisa descobrir o quê que tá acontecendo, que antes, antigamente a gente tinha um grupo mais resistente. (...) Mas o grupo, por exemplo, dentro do conhecimento produção tá fraco, enfraqueceu muito a cooperativa. São pessoas que tá ainda muito jovens, são pessoas que não tem visão de mercado, então assim, cê acaba de falá pra eles as coisas tudim, passa um pouquinho eles não sabe o que você falô, quer dizer... Ele não tá preocupado na questão financeira. (...)

Laíde – Bem, eu acho que para a cooperativa funcioná mesmo, a gente precisa tá junto, e lutá pelo mesmo objetivo né, (...) eu acho que a partir do momento que a gente vê a cooperativa como uma oportunidade de trabalho, eu creio que vai melhora. Se a gente tivé junto e com o mesmo objetivo eu creio que a gente vai tê grandes chances de mudá aquele quadro que tá ali hoje. Eu acho que é a união mesmo, é a força de vontade de cada um, né, porque as coisas que acontecem, a gente vai ficando desmotivado. E eu acho que o caminho não é esse, principalmente a gente que tá na administração, tá levando força pra aqueles que tá lá na produção.

Lúcia – Olha, pra te falar a verdade eu tô um pouco assim... Como é que eu falo? Decepcionada, por causa da falta de cooperativismo que nós tamo vendo entre os cooperados. Infelizmente, o grupo que hoje tá aqui, eles ainda... Até mesmo por falta de um trabalho, porque eles não têm o cooperativismo dentro deles de jeito nenhum, são muito individuais, são infelizmente até egoísta mesmo. O que é deles, ele quer pra ele, só pra ele não pensa no outro. Então isso me decepciona muito. Há poucos dias nós tivemos uma reunião, que [eu] estava mostrando pra eles o quanto que

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antes era mais unido, né, porque o que a gente achava na triagem a gente compartilhava com os outros, agora o que é achado é só dele e pronto. Eu espero que isso melhore. [Isso ocorre] um pouco mais falta mesmo de formação, a gente não pode jogar a culpa na própria cooperativa, que a cooperativa cê sabe, tá passando por trabalho muito difícil, situação financeira muito difícil. Então nois tivemos um ano inteirinho que não tivemos nada, nada de capacitação, e nesse período entrou muito cooperado novo, saiu muito cooperado antigo, né, que era aquela pessoa que dava tudo de si, na questão financeira não deu pra essa pessoas segurar e ela saiu. Esse grupo novo que entrou infelizmente não tivemos esse cuidado de fazer um curso de capacitação antes. Que nós tivemos! Antes pra poder iniciar, e nem assim logo depois que tivessem ingressado, para se capacitar. Então provavelmente tá faltando isso [para] poder melhorar. (...) [Os novatos] não tem idéia assim do tanto que é importante esse trabalho para nós. Ele acha que é importante para ele, porque ele tirando o sustento dele, mas eles não têm idéia do tanto esse trabalho beneficia o meio ambiente, dando qualidade de vida para todos nós. Eles não vêem isso na cooperativa.

Rosalino – Aqui existem pessoas de boa visão, pessoas que querem lutar, mas a maioria não que. Tem pessoa que não sabe o que é a cooperativa, vai ver o que é cooperativismo, não sabe. Cê procura pro cooperado o que é cooperativa, se eu to sozinho com um trem pesado e tem três ali, se eu não falar: “Oh fulano, ajuda”, eles não têm a visão de cooperativa, de cooperativismos de chegar e te ajudar, eu chego a carregar um trator aqui, tem cinco, seis sentado lá, fumando, olhando, zombando da gente, sentado lá, quer dizer, isso não é cooperativismo. Dá assim um enfraquecimento no cê de acreditar.(...) Aqui já funcionou com 70 cooperados, teve uma baixa muito grande nesse sentido, aí veio baixando, baixando, eu ainda acho que tá alto ainda. Minha família sempre fala do meu trabalho. Eu não quero, por exemplo, pensar que eu não ganho nesse trabalho, que eu trabalho de segunda a segunda, eu tenho bônus, enquanto as pessoas faz oito horas, eu faço doze horas por dia, e quando é seis horas da manhã eu tô aqui e quando é seis e meia eu já to saindo pra rua. Eu tenho bônus, minha meta é dez toneladas eu pego doze, treze, então quanto mais eu... Tem a tendência é melhorar mais. Então dia de domingo eu trabalho das seis da manhã às seis da tarde, não tem como eu sair na rua. Se eu sair, eu pegaria mais material ainda, né?

Rosalino trabalha sem parar, recusa descansos e férias. Além de seu

trabalho normal, de segunda a sexta, ele ainda faz a segurança da usina no

final de semana e recebe o recurso que seria destinado à contratação de um

segurança. Dessa forma, consegue um pouco mais de dinheiro para manter

sua família. Seu caso não é isolado. Muitos cooperados complementam o que

recebem na cooperativa com outros bicos, ou mesmo outro trabalho noturno.

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Os que possuem uma renda famíliar acima dos índices de pobreza72

complementam-na por meio do trabalho de esposos, filhos e filhas.

A precarização do trabalho evidência-se na cooperativa, tensionada

pelas condições próprias do sistema do capital sem que haja a

responsabilização de um agente como ocorre na relação patrão-empregado.

Em outras palavras, a relação de auto-ajuda, de ajuda-mútua, encobre uma

auto-exploração, ainda mais perversa que a da relação patrão-empregado, pois

o trabalhador revolta-se contra si mesmo, o que implica perda de auto-estima,

e do ânimo ante na confrontação com os problemas.

A experiência da Cooprec insere-se, como foi mencionado, em num

momento de crescente precarização do trabalho. Essa realidade fez-se sentir

especialmente nos últimos anos e na relação com os novos cooperados que

ingressam mês a mês. Pode ser observado também na alta rotatividade de

cooperados.

É necessário ressaltar que os sócios-fundadores da cooperativa, com

os quais teve contato esta pesquisadora, demonstram uma internalização do

discurso ambiental e da importância do trabalho de reciclagem dos resíduos

sólidos. Em alguns momentos sobrepõem esse valor ao próprio valor do

trabalho despendido na tarefa de reciclar os materiais e deixam em segundo

plano o ganho monetário oriundo do empreendimento.

Contudo, observa-se que, com o passar dos anos, a idéia de ter um

trabalho e dele aferir renda, constitui a única motivação para a inserção no

trabalho da Cooprec. Os novos cooperados não apreenderam o debate

ambiental, e, ao contrário, relacionam-se com a cooperativa apenas como uma

oportunidade de trabalho, para alguns, a única.

Pode-se afirmar que se trata de pessoas que procuram sobreviver, que

sofrem os efeitos do desemprego estrutural (Antunes, 2005). No limiar da

exaustão, por não conseguirem trabalho, eles se apegam a uma possibilidade,

mesmo que seja só de alimentação, considerando que durante o ano de 2006 e

72 Utiliza-se como referência para índice de pobreza os valores estabelecidos pelo governo federal para fins do Programa Bolsa Família, que são: renda per capita de cento e vinte reais e extrema pobreza sessenta reais. (Brasil, Decreto 5.749, de 11 de abril de 2006, dispõe sobre o art. 2 da Lei 10.836 de 9 de janeiro de 2004).

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início de 2007 o recurso oriundo do trabalho da Cooprec referiu-se somente ao

vale supermercado.

A experiência da Cooprec insere-se em um momento do sistema

capitalista, em que estão em curso, no plano produtivo, novos modos de

organização da produção, de mundialização do capital, nos quais se

combinam: liberalização, desregulamentação e possibilidades proporcionadas

pelas novas tecnologias de comunicação, que intensificam a capacidade do

capital produtivo de se

comprometer e descomprometer, de investir e desisvestir; numa palavra, sua propensão à mobilidade. Agora o capital está à vontade para pôr em concorrência as diferenças de preço da força de trabalho entre um país – e, se for o caso, uma parte do mundo – e outro. Para isso, o capital concetrado pode atuar, seja pela via do investimento seja pela da terceirização. (Chesnais, 1996, p. 28)

Segundo Chesnais (1996, p. 34), a mundialização do capital é

resultado de dois movimentos extremamente interligados, mas distintos. O

primeiro é caracterizado como a mais longa fase de acumulação ininterrupta do

capital já conhecida pelo capitalismo desde 1914. O segundo, relaciona-se “à

política de liberalização, da privatização, de desregulamentações e de

desmantelamento de conquistas sociais e democráticas, que foram aplicadas

desde o inicio da década de 1980”. Sem eles, não seria possível ao capital

financeiro internacional e aos grandes grupos multinacionais, destruir “tão

depressa e tão radicalmente” os entraves a sua liberdade de expandirem-se à

vontade e de “explorarem os recursos econômicos, humanos e naturais, onde

lhes for conveniente”.

O efeito combinado de novas tecnologias e da situação imposta aos

trabalhadores, no que se refere à intensidade do trabalho e à precarização do

emprego, proporciona a grupos norte-americanos e europeus a possibilidade

de construir, em conjunto com a ação de seus Estados, zonas de baixos

salários e de reduzida proteção social, localizadas nas proximidades de suas

bases principais. Todavia, isso não significa que se eliminou o interesse das

multinacionais por locais de produção de baixos salários, mas elas já não

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precisam, necessariamente, deslocarem-se milhares de quilômetros para

encontrá-los (Chesnais, 1996).

A mundialização integra, como componente central, um duplo

movimento de polarização. De um lado, no interior de cada país, os efeitos do

desemprego resultam no distanciamento entre os mais altos e os mais baixos

rendimentos, em virtude da ascensão do capital monetário e desmonte das

relações salariais estabelecidas. De outro, há uma polarização entre os países

situados no âmago do oligopólio mundial e os países de periferia (Chesnais,

1996).

Os países de periferia não são apenas subordinados, reservas de

matérias-primas, são países que praticamente não apresentam maior interesse

nem econômicos nem estratégicos, são áreas de pobreza, que ameaçam com

seus emigrantes os países democráticos (Chesnais, 1996).

A intensificação da mundialização aparece nos aspectos da

financeirização do Capital. Chesnais (1996) afirma que, é na esfera financeira

que o avanço do movimento de mundialização do capital, apresenta o mais alto

grau de mobilidade, e na qual a a defasagem entre as prioridades dos

operados e as necessidades mundiais são mais acentuadas.

A esfera financeira, que deve gerar lucro ao capital como qualquer

outro setor, contém problemas de ordem macroeconômico e também ético-

social, – os lucros nessa esfera são formados pelas transferências

provenientes da esfera da produção, na qual se cria o valor e os rendimentos

fundamentais. Nas palavras de Chesnais (1996, p. 241),

a autonomia do setor financeiro nunca pode ser senão uma autonomia relativa73. Os capitais que se valorizam na esfera financeira nasceram – e continuam nascendo – no setor produtivo. Eles começam por tomar forma, seja de lucros (...); salários ou rendimentos de camponeses ou artesãos, os quais depois foram objeto de retenções por via fiscal, ou sofreram a forma de agiotagem moderna dos “créditos ao consumidor”; (...). A esfera financeira alimenta-se da riqueza criada pelo investimento e pela mobilização de uma força de trabalho de múltiplos níveis de qualificação. Ela mesma não cria nada.

73 Grifos do autor.

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Dessa forma, se a esfera financeira deixa de ser alimentada pelos

fluxos substanciais originários exclusivamente da esfera da produção,

intensificam-se tensões no circuito financeiro, e, com elas, crises financeiras.

Ao abordar a relação entre a mundialização do capital e a “crise do modo de

desenvolvimento74”, Chesnais (1996, p. 313) ressalta que, durante várias

décadas, prevaleceu a idéia de que o modelo de desenvolvimento capitalista

do Ocidente poderia ser generalizado para todos os países, porém as

“transformações tecnológicas, econômicas e políticas dos últimos anos”

mostraram o contrário. Atualmente, esse tipo de desenvolvimento não é mais

desejado pelos “que eram outrora chamados de agentes externos”. Por outro

lado, “sabe-se que ele se choca a limites ecológicos incontornáveis, na medida

em que sempre foi concebido como extensão mundial dos modos de produção

e consumo estabelecidos nos países avançados.”

De forma que, após um intenso salto de produtividade do trabalho na

indústria, por meio da difusão das tecnologias de informática, da implantação

de formas toyotistas de organizar a produção industrial e da intensificação da

concorrência entre os países da tríade75, eles passam a se interessar apenas

por relações seletivas que abrangem um número limitado de países de terceiro

mundo:

Certos países ainda podem ser requeridos como fontes de matérias-primas (...). Outros são procurados, sobretudo pelo capital comercial concentrado, com bases de terceirização deslocada a custos salariais muito baixos (...). Mais uns poucos países. Por fim, são atrativos devido a seu enorme mercado interno potencial (por exemplo, a China). Mas, fora esses casos, as companhias da Tríade precisam de mercados e, sobretudo, não precisam de concorrentes industriais de primeira linha: já lhes bastam a Coréia e Taiwan! Foi assim (...) que o tema da administração da pobreza foi assumindo espaço cada vez maior nos relatórios do Banco Mundial, enquanto o tema do desenvolvimento foi colocado em surdina. (Chesnais, 1996, p. 313).

A situação da Cooprec expressa uma parte de uma questão profunda

e contundente da contemporaneidade, qual seja o debate sobre o mundo do

74 Grifos do autor. 75 Fazem parte da Tríade os Estados Unidos da América, o Japão e a Europa. (Chesnais, 1996).

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trabalho, o desemprego e as respostas construídas pelos sujeitos sociais no

processo organizativo (nas esferas social, econômica e política) de formas de

enfrentamentos gestados pela sociedade e pelo poder público.

3.2 Mudanças, conquistas e perspectivas

Os cooperados atribuem algumas mudanças e conquistas aos anos de

trabalho. Essas conquistas estão no plano na experiência de trabalho, nas

relações pessoais, na ajuda ao próximo, em não ter patrão:

Rosalino – Pra mim era uma experiência a mais, que meu trabalho era de segurança. Eu entrei aqui nessa cooperativa para ter uma experiência a mais e, ao mesmo tempo, eu tava desempregado. Tinha aquela visão que seria talvez melhor, né, pra mim, ser dono do meu próprio negócio, que eu toda vida trabalhei, mais de vinte anos trabalhei de empregado, né, cê vai sê patrão. Então, para mim, mudou assim no início, que eu tinha garra, tinha luta, aquela ganância, aquela ambição, sabe? De vê, por exemplo, o meu negócio crescer e ganhar dinheiro. Ai teve essa mudança, aí mudou e desmudou, né, [ri]. Cê vai perdendo a esperança que já vai aí pra oito, nove anos, quer dizer, não saiu tudo né, tem aí sessenta por cento da esperança ainda, o importante é isso, ter força de vontade pra lutar, que no início nois tinha.

Viviane – Ah! Com certeza. Pelo menos a minha mudou totalmente, mudou não só a questão financeira, mas meu jeito de pensar vê a vida de outro jeito.(...) Porque quando cê trabalha em outros lugares, é muito estressante, porque você tem patrão, cê tem que dá satisfação pras pessoas e a correria é muito grande, e eu sou uma pessoa muito estressada. Pra mim, mudou muito. O mundo, pra mim, era só aquele mundinho, pra mim não existia outro mundo, outras coisas, entendeu? Eu achava que eu ia viver aquela rotina toda vida. Depois que eu entrei pra cooperativa, vixe! Mudou muito, eu vejo o mundo mais além do que eu posso, muito bom! Júlio – Com certeza muda. Eu era muito lento pra trabalhá, entendeu? Hoje eu sei fazer de tudo. Através da Cooprec, eu aprendi a mais trabalhar e dar mais valor nas coisas. (...) Você entrando aqui aprendendo, ela não é uma alternativa não, mas já ajuda bastante. Você desenvolver, aprender a respeitar as pessoas. Aqui as pessoas são mais idosas, mas tem jovem também e pra pessoa trabalhar aqui é uma alternativa boa e a gente aprende.

Marinete – Eu gosto de trabalhar aqui, o serviço de doméstica que é o que eu sei fazer... prefiro aqui, que ser mandada pelos outros é ruim de mais.

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Laíde – Mas teve um lado bom também, que a gente conseguiu adquirir conhecimentos. A gente teve muito treinamento. (...) Principalmente nois que tá lá desde o início, nois teve muito treinamento, nois feiz muito curso. Eu creio que pelo menos isso os veteranos foram muito capacitados. (...) [Fizemos] curso de capacitação pras áreas que cada um trabalhava né, por exemplo, na área do plástico, teve uma época que todos os cooperados que trabalhava... Não foi só pros que trabalhava na área, mas pra todos os cooperados. Veio pessoas de fora pra tá dando curso especificamente pra área do plástico, pra que todos soubessem trabalhar com o plástico e reconhecer cada tipo de plástico, por exemplo, pra quê que serve. Então a gente ficou uma semana inteira fazendo esse curso, me parece que a pessoa que veio fazê esse curso veio de São Paulo, tinha muita experiência, né. Então todo mundo fez esse curso, e curso de... Assim na área de artesanato, eu não me lembro assim exatamente, mas foram muitos, nos tivemos muito treinamento. Lúcia – Para mim, foi muito gratificante por causa que é um trabalho que eu faço em benefício da natureza. Para mim não tem um valor, como fala, monetário, porque para mim o valor da qualidade de vida é muito mais que isso aí. Foi aqui que tive a oportunidade de fazer um curso pra trabalhar com o minhocário, que eu trabalhei durante dois anos inteiros na vermicultura e cada vez que eu me aprofundava eu queria aprofundar mais ainda. Então me apaixonei mesmo pelo meio ambiente através dessa experiência que eu tive com a vermicultura, e fui despertando mais e mais. (...) A curiosidade, o que eu poderia tá contribuindo com a natureza, foi quando eu comecei a trabalhar com a vermicultura.(...) Pra mim a questão ambiental é mais marcante, mas as minhas viagens foi mais ainda [ri bastante]. As minhas viagens foi mais ainda! Que as viagens que eu fiz, tudo por conta de algum projeto, as pessoas ligam pra cá, entravam em contato com a gente... eu tive a oportunidade até de andar de avião coisa que eu nunca tinha feito e era meu grande sonho, né. Então agora, né... já viajei muito, então, pra mim, cê andar de avião por conta de palestras que eu ia dar em outros estados, pra você vê até aonde eu cheguei, né! Sair daqui de avião e ir dar palestras em outros lugares com tudo pago, isso pra mim ficou marcado pra sempre, né.

Nair (1ª) – Eu acho que muda muito. Eu acho que principalmente no crescimento pessoal, muda bastante as pessoas e a questão do resgate. Veja bem nos temos um cooperado aqui, que ele tem mais ou menos uns cinco mês que ele trabalha conosco e quando ele entrou aqui (...) pra ele falar com você ele já falava exigindo. (...) Então assim, eu acho que, a partir do momento que o cooperado entenda isso já é um crescimento muito grande pra ele. Hoje ele já conversa direito, ele chega na diretoria, já fala o que ele quer, já chega na diretoria pedindo um vale, se a gente falar para ele que não tem como, ele entende, porque ele não entendia, ele achava que ele tinha que chegar sexta-feira e receber e os outros... Então, como pessoal o cooperativismo ele muda a pessoa completamente, tem pessoa que a gente já recuperou ele para respeitar o outro, eu acho uns 80%. Eu tenho uns cooperados aqui, que às vezes a pessoa fala: “Não esse aqui não tem jeito”, eu falo: “Tem, claro que tem jeito, se você souber conversar com ele, respeitando ele do jeito que ele é,

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você consegue melhorar ele”, eu vejo muita gente mudada aqui, pra melhor. Mudou, minha vida assim... Eu acho assim... Que eu aprendi a respeitar o ser humano, tem uma parte que mudou muito em minha vida. A outra parte que mudou em minha vida foi a questão de conhecimento, acho que lutar pelos direitos, eu acho que financeiramente não, eu acho que se eu estivesse trabalhando em outro lugar, eu conseguiria o que eu consegui, mas no conhecimento que eu tive com o ser humano, em buscar meus direitos, eu acho que mudou assim, eu acho que em torno de cento e tantos por cento.

Nair (2º) – A minha satisfação é ver aquela pessoa que não penteava o cabelo começar a pentear, aquela que não falava começar a falar, então, pra mim, isso é uma supergratificação, por que ela já tá, por exemplo, a gente conseguiu que ela conquiste o espaço dela. Talvez isso é o que mais me segura na cooperativa, pensar: “Não, eu tô contribuindo com alguma coisa, porque fulano não falava e hoje ele tá falando”. (...) Eu acho que valeu a pena e vale a pena, é melhor eu receber essa graça que eu receber dinheiro, porque eu acho que isso, nenhum dinheiro na vida paga. Então assim eu estou realizada nos meus propósitos de vida, né, não sou tão ligada à questão material, meu negócio é o humano mesmo.

Percebe-se que as conquistas, situam-se no plano da subjetividade, da

solidariedade, da ajuda ao próximo, do acesso a possibilidades de

conhecimento que lhes foram negados por meio da educação formal. Há

também o aprendizado obtido pelas próprias relações de trabalho, uma vez que

qualquer cooperado pode participar da direção, da gestão do trabalho, pois não

existe o mando autoritário, nem a ameaça de demissão. Outro aspecto diz

respeito à realização, no sentido de que o trabalho de reciclagem que

executam constitui-se em uma contribuição para a sociedade.

Quanto às perspectivas, existe um desejo de renovação dos produtos,

parcerias com outras iniciativas de coleta na cidade, criação de uma rede onde

os catadores possam também se beneficiar, porém o traço marcante está no

fato de se querer e necessitar de aporte financeiro estatal para que o trabalho

funcione.

Nair (2ª) – Eu, às vezes, penso um futuro da Cooprec bem lá em cima. Eu acho que ela tem condição de renovar o produto dela, eu vejo assim que um saco de lixo. Eu não sei, mas é um objetivo meu que se ela fizesse o saco de lixo, os cooperado, dentro do pouco conhecimento deles colocaria no mercado. (...) Eu acho supertranqüilo essa questão do saco de lixo tá investindo nisso.

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Teve um mês, a mais ou menos nove meses atrás, eu pensei que a área do plástico ia fechá, né, porque saiu todos os homens, saiu toda a equipe, ficou só a Marinete. Aí eu pensei mais a Preta, Preta, nois vamo tê que vesti a camisa e ir pra lá, por que se nois formos para la´ a gente começa a forma´ a equipe. Aí, hoje, graças a Deus nois já tamo com a equipe completa de novo em sete pessoas. Isso significa que a Cooprec consegue, né, que ela tem potência para isso, mesmo com mulhé. Que ela consegue, porque não precisa... A ventoinha, toda veiz que entupia, a Mariazinha parava a máquina porque quem desentupia era só homem, pois agora nois fomo para lá não precisa homem, porque a ventoinha é tranqüila desentupir... A mulher desentupi. Aí tem só a questão do moinho que tem que virá ele, que tem que sê homem. Mas a questão da extrusora de trocá a peneira tudo a mulher dá conta. Então a gente começou a percebê que a área do plástico funciona sem homem, que a mulher consegue fazer isso. Quando eu vejo, porque eu, Leile, há uns anos atrás, há uns sete anos atrás eu tive essa visão de hoje, que a cooperativa ela vai trabalhar com homem só com serviço prestado. Que as mulheres vão dirigir, que as mulheres vão fazer as coisas e os homens vão fazer alguma coisa dentro da cooperativa. Tem mais ou menos uns sete anos que eu pensava assim, pela resistência do homem de conversar com ele, às veiz cê vai falá eles começa a dizê que não vai fazê porque as mulhé também da conta. Então assim eu comecei... E a realidade que eu vejo é essa. E acho que ela vai hoje do jeito que ela tá aí. Agora, o que eu acho que a cooperativa precisava era de um grande parceiro, que ela precisava de algum parceiro forte ali, um parceiro assim, por exemplo, quando a prefeitura fala que a gente tá com um processo de coleta seletiva, que nois tá... Por exemplo, a Beija-Flor76, o PEVs77 e outra cooperativa que só cata e vende, que a cooperativa [Cooprec] já industrializa. Então podia tê uma parceria, com essas empresa, catadô e tudo, que a cooperativa podia sê o final, que ela reciclasse isso, quer dizé que ela poderia até coletá, mas que o auge dela fosse o final aqui, com inovação de produtos. Aí assim, eu não sei, como é a melhor forma de fazê isso pra que as outras cooperativa venha também ganhá. Porque também não é justo que elas cata, passa pra cooperativa, a cooperativa cresce e elas não cresce, né. Então eu acho que precisa isso, precisa talvez um parceiro forte, que tem essa visão e que faz essa ligação, consiga fazê essa ligação. Mas eu acho que tem futuro né, eu fico pensando assim que várias dificuldades, que a gente já passou e a gente vê, por exemplo, o grupo hoje, né, a área da telha que eu falo, Lúcia, a gente tem que colocá essa área da telha pra funcioná e ela fala: “Ah será que ainda vai funcioná um dia?” Falei: “Vai se você buscá vai, agora de você acreditá que ela vai fechá ela vai fechá, você precisa buscá, enquanto cê tá vendo um fiozinho, cê precisa buscá esse fio”. Aí quando cê reuni seu conselho e fala: “Nós temos essa realidade e como é que nois vamos fazê?” E deixa eles falarem que eu tenho certeza que cada um vai tê uma idéia pra falá e você pega essa idéia e junta com a sua e vê o que você faz. Aí hoje a gente reuniu e

76 Beija-Flor é uma cooperativa de catadores de Goiânia, que recolhe e prensa o material reciclável. 77 PEVs são pontos de entrega voluntária. A proposta da prefeitura é, com a coleta seletiva ter PEVs espalhados pela cidade, e os moradores entregarem nesses lugares seus resíduos recicláveis.

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sentamo e discutimo, falei: “Tá aqui, como é que nois vamo fazê? Vai buscá fulano e sicrano?” Aí, hoje, a gente já viu que já apareceu lá umas pessoas que dá pra formá uma equipe e ativar a área da telha. Então cada vez... dentro do plástico, da telha, da educação ambiental, então assim a cooperativa se a gente senta e faz, vai!

Faz-se necessário destacar dois aspectos referentes à compreensão

das experiências de cooperativismo popular – o trabalho feminino, e o aporte

financeiro estatal.

A Cooprec iniciou o ano de 2007 com 70% do seu quadro de

cooperados do sexo feminino78. Segundo o mapeamento realizado pela

Senaes acerca dos empreendimentos de economia solidária, no espaço

urbano, a presença de força de trabalho feminina é superior à masculina em

quase todas as regiões do Brasil. No cômputo geral, porém, prepondera o

trabalho masculino, pois os empreendimentos são majoritariamente rurais79.

Antunes (1999) pondera que, nos últimos anos, e em virtude da

retração do capital, intensificou-se o trabalho feminino, com um traço

acentuadamente precarizado80. As atribuições femininas concentram-se em

atividades manuais e repetitivas, ao passo que aos homens cabem atividades

que requerem conhecimento técnico. Dessa forma, o capital apropria-se

também da capacidade de polivalência e multiatividade do trabalho feminino.

Na década de 1990, no Brasil, houve uma contínua ampliação das

taxas de participação feminina na economia, particularmente de mulheres

78 Dado coletado no levantamento de perfil realizado em janeiro e fevereiro de 2007, como informações complementares ao estudo. 79 Na Região Centro-Oeste, dos empreendimentos de economia solidária, no âmbito rural, 28,4% são mulheres e 71.6% homens; no âmbito urbano, 59,7% mulheres e 40,3% homens. Dados disponíveis no sitio do Ministério do Trabalho e Emprego, www.mte.gov.br/ecosolidaria/sies_ATLAS_PARTE_2.pdf. acesso em: 16 jul.2007. 80 Na literatura especializada, entende-se por precarizado o emprego não-assalariado formalmente contratado, portanto, sem proteção por leis ou contratos coletivos, como o conquistado durante o século XX: “É precário aquele trabalho que se realiza sob uma ou mais das seguintes condições: a) tempo parcial do dia/semana/mês, extensas jornadas de trabalho, pagamento por produção/serviço; b) sem garantias legais de estabilidade ou proteção contra dispensas, carga horária definida, descanso semanal, férias, condições salubres, seguridade social, seguro-desemprego, aposentadoria, licença maternidade, licença doença, acidentes de trabalho entre outros requisitos. É precário porque submete o trabalhador a condições arriscadas no mercado, sem ações coletivas de enfrentamento, sem segurança de cobertura social no futuro ou de quando não mais puder dispor de força de trabalho” (Barbosa, 2005, p. 21).

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adultas81, e esse foi o fator de crescimento da população economicamente

ativa (PEA) na última década. Essa inserção, no entanto, é caracterizada pela

precarização, informalização e baixos salários (Leone, 2003).

A respeito das perspectivas de atuação da Cooprec, as narrativas trazem o seguinte:

Lúcia – Eu acredito que ela [a Cooprec] vai superar essa crise, principalmente se a gente conseguir receber tudo que a gente tem para receber, e eu tenho esperança que ela continue sendo modelo no Brasil, porque ela já foi [ri] ainda continua sendo porque tem muitas pessoas que não sabe a crise que ela tá passando. Às veiz, ainda continua sendo, eu quero, que Deus ajuda que ela continua sendo modelo pro Brasil.

Nair (2ª) – Às vezes eu penso, se a gente tivesse um conhecimento político, tivesse uma inserção dentro dos órgãos, talvez pudesse tá buscando um caminho melhor pra cooperativa. Nós cooperadas mesmo, nós fica muito no nosso mundim, e acaba que não tem esse conhecimento. (...) Eu falo assim, por exemplo, conhecer uma pessoa lá dentro, aí eu vejo, que é interessada, por exemplo, em trabalhos sociais e que consiga trazer essa pessoa pra fazer parte da cooperativa, nem que seja voluntário. Aí eu acho que a cooperativa não tem esse caminho, a gente não consegue, trazer esse caminho e que vem começa a percebê e começa a mostrá. Igual por exemplo, eu tava falando com o Emerson la do PEVs, da Coopersol que teve um bagunça danada e que hoje a gente não sabe o que é... Aí ele vei visitá a cooperativa aqui, que era um negócio da Lúcia aí né! E ele falando, ele disse que já conseguiu cesta básica não sei da onde, ele já conseguiu umas assistência médica, né, aí eu acho que isso falta na cooperativa, que nenhum dos diretores que passou não deu conta de fazê isso.

Laíde – Ah eu não sei sinceramente! Eu espero que melhore, a gente tem muitas oportunidades, né, que a gente pode tá mandando projetos, e se a gente conseguir tá elaborando projetos pra aquisição de novos maquinários. Eu tenho fé que ali um dia ainda vai sê uma grande cooperativa que pode tá gerando muito trabalho, trabalho pra muitas pessoas, né, e que não esteja toda essa dificuldade não, mas eu acho que isso depende da gente tá recebendo ajuda mesmo por parte das autoridades né, de tá vendo aquilo lá como... Eu não sei, que as autoridades, hoje se vê muito falá em preservação do meio ambiente, hoje se discute a questão da reciclagem, e eu creio que se as autoridades, centraliza´ naquilo ali mesmo e levá a sério eu acho que ainda tem muita chance da cooperativa crescê, e de sê uma grande cooperativa mesmo e que mude esse quadro.

81 Considera-se adulta a mulher acima de 25 anos de idade. O estudo de Leone (2003) tem como fonte de dados a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD).

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A busca do aporte financeiro do Estado situa-se em um contexto de

contra-reforma expresso pelo neoliberalismo.

No plano do Estado brasileiro, Behring (2003) diz que a reestruturação

produtiva e a mundialização configuram linhas gerais de uma verdadeira

contra-reforma, uma vez que existe uma evocação do passado no pensamento

neoliberal, e um aspecto regressivo quando da implementação de seu

receituário.

Essas linhas gerais implicam tensionamentos, do ponto de vista do

capital, no que se refere à “configuração de padrões universalistas e

redistributivos de proteção social” (Behring, 2003b, p. 103) por algumas

tendências em operação:

pelas estratégias de extração de superlucros, com a flexibilização das relações de trabalho, onde se incluem as tendências de contração dos encargos sociais e previdenciários, vistos como custos para a produção ou gastos dispendiosos do Estado; pela supercapitalização, com a privatização explícita ou induzida (passiva) de setores de utilidade pública, onde se incluem saúde, educação e previdência; e especialmente, pelo desprezo burguês para com o pacto social dos anos de crescimento, agora no contexto da estagnação, configurando um ambiente ideológico individualista, consumista e hedonista ao extremo, tudo isso num contexto no qual as forças de resistência encontram-se fragmentadas, particularmente o movimento operário. (Behring, 2003b, p. 103)

A tendência geral, portanto, é de redução de direitos. Dependendo da

correlação de forças entre as classes sociais e segmentos de classe, e da

intensidade da consolidação da democracia, a política social reduz-se a ações

pontuais e compensatórias. O Brasil, que estava a meio caminho na tentativa

tardia de montagem de um Estado de Bem-Estar Social, terminou sendo

atropelado pelo ajuste neoliberal, alimentado pela heteronomia e pelo

conservadorismo político, próprio, delineando um projeto antidemocrático,

antipopular, antinacional, em que a seguridade social ocupa lugar secundário

(Behring, 2003b).

Montaño (2002, p. 232) assinala que, de um lado, ocorre o constante

aumento do desemprego estrutural, a da precarização do trabalho, da redução

do sistema de proteção legal do trabalhador, que precisam ser ocultados,

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relativizados, para serem aceitáveis à população. De outro lado, o

“esvaziamento dos princípios democráticos nacionais”, as reformas

administrativas do Estado, a perda de direitos cidadãos, exigem “mecanismos

pseudocompensadores, ideológicos, que impeçam a clara identificação das

causas das mazelas das populações”.

Nesse sentido, o Estado assumiu a economia solidária como política

pública de geração de emprego e renda, no Ministério do Trabalho, e organizou

sua ação por meio do levantamento dos empreendimentos existentes no país e

a articulação de feiras de vendas dos produtos. Busca-se conferir uma certa

institucionalidade à auto-organização do trabalhador. Em outras palavras, o

Estado aproveita-se das estratégias de sobrevivência da população ao

“socorrê-las” com repasses financeiros mínimos, focalizados, e por meio deles,

busca encobrir a lacuna da política social e da sua opção por não responder à

demanda do mundo do trabalho e emprego.

As cooperativas possuem característica hibrida, de por um lado,

organizam coletivamente o trabalho e, assim, aparentam inexistir a exploração

com o uso da autogestão do processo produtivo e, de outro, servem ao capital

no processo de acumulação, pois comprime o valor dos salários e intensifica a

mais-valia agregada às mercadorias, que são repassadas a baixos custos para

a grande indústria. A exploração do trabalho, portanto, oculta-se na produção,

pois a cooperativa pertence aos trabalhadores, mas aparece na circulação de

mercadorias.

As cooperativas de reciclagem, ou de coleta de materiais recicláveis,

iniciam um processo de produção de mercadorias, que, por meio da

cooperação complexa do capital, termina na grande indústria de reciclagem.

Portanto, o lixo que degrada, polui, transforma-se em valor. A mercadoria final,

que adquire forma na indústria de reciclagem carrega mais-valia extraída desde

a coleta, pois comprime no seu baixo valor, o salários dos catadores e, no caso

da Cooprec, cooperados, a redução dos custos de produção, pois elimina

capital constante. Aos catadores e cooperados, a remuneração financeira

recolhida do trabalho permite apenas o limite da subsistência, ou seja, a

reprodução básica da própria força de trabalho.

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No que se refere à Cooprec, o estudo realizado evidencia o movimento

contraditório na experiência. De um lado, ressalta-se a relevância na

contemporaneidade no que se refere ao objeto de trabalho da Cooprec, qual

seja a reciclagem de resíduos sólidos e a educação ambiental, haja vista que o

modelo de produção e de consumo atuais dos países avançados não podem

ser generalizados, e os prejuízos do consumo de energia, das emissões de

gases na atmosfera, da poluição das águas, estabelecem limites sociais,

políticos e geográficos (Chesnais, 1996), para os quais a humanidade precisa

estar atenta. A experiência de autogestão e de organização coletiva do

trabalho, que aparece nas narrativas como conquistas, podem ser apreendidas

em três perspectivas: a) conquista material, expressa na qualificação para o

trabalho; b) mudanças nas relações sociais propiciada pela produção coletiva;

c) ajuda ao próximo.

Por outro lado, (re)produz-se e se intensifica a exploração do trabalho,

pois o situa nos patamares mínimos de sobrevivência, contribuindo para os

processos alienantes das relações sociais de produção. Ao apresentar-se

como limite da sobrevivência, o trabalho na cooperativa configura-se como

alternativa à miserabilidade.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Visito os fatos, não te encontro.

Onde te ocultas, precária síntese,(...)

Miúdas certezas de empréstimo, (...)

Calo-me, espero decifro.

As coisas talvez melhorem.

São tão fortes as coisas!

Mas eu não sou as coisas e me revolto.

Tenho palavras em mim buscando canal, (...)

Perderam o sentido, apenas querem explodir.

Carlos Drummond de Andrade

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Ao estudar a experiência da Cooperativa de Reciclagem de Lixo

(Cooprec) buscou-se primeiramente ouvir as narrativas dos sujeitos, suas

observações, os aspectos que julgam marcantes e relevantes, suas

dificuldades e potencialidades, seu jeito impresso em anos de trabalho árduo e

esperanças e expectativas, hora frustradas, hora concretizadas.

A convicção ética é que a experiência pertence aos sujeitos e eles

possuem uma memória e leitura dessa experiência, portanto, não se trata,

neste estudo de buscar verdades ou se estabelecerem confrontações.

Buscou-se com afinco desvelar as mediações existentes na realidade

para aprender as determinações que circunstanciam experiências de

organização do trabalho no sistema capitalista.

Nessa trilha, percorreu-se o caminho da historicidade do

cooperativismo, retornando à revolução industrial inglesa, aos conflitos entre

capital e trabalho e aos primeiros anos do cooperativismo inglês, constatando

sua híbrida constituição peculiar, que lhe permite vivenciar uma relação

autogestionária no aspecto endógeno, e capitalista no aspecto exógeno.

Posteriormente, procurou-se, apreender, na particularidade da

formação histórica, econômica e política brasileira, a inserção das cooperativas

e o movimento de economia solidária, com sua miríade de componentes,

tendências e formatações e até mesmo como meio pelo qual o Estado

intermedeia sua relação com o cooperativismo.

Na história da Cooprec, apreende-se a riqueza da proposta de

educação ambiental e reciclagem de resíduos sólidos, a trajetória de

superações pessoais e coletivas, em nove anos de verdadeiro trabalho de

Sísifo, tanto no que tange ao recolhimento dos resíduos produzidos pela vida

urbana, quanto na tentativa de conseguir auferir renda por meio do trabalho na

cooperativa.

Como resultado, em que pese a possibilidade de analisar o trabalho no

interior de uma cooperativa fundado em uma organização diferenciada do

trabalho, apreende-se da experiência da Cooprec que a intensificação da

exploração do trabalho e conseqüentemente extração de mais-valia ocorre em

decorrência da inserção da cooperativa no modo de produção capitalista. Por

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meio da complexa cooperação do atual estágio da relação capital e trabalho,

que ao capitalismo descentralizar a produção de mercadorias, a exploração do

trabalho ocorre, também no tocante à terceirização do trabalho e sua

precarização, que comprime os salários, permitindo o barateamento do custo

das mercadorias que a grande indústria processa.

Ocultando-se na circulação de mercadorias a apropriação do

capitalista da mais-valia extraída no processo produtivo de cooperativas e

experiências de economia solidária.

Em outras palavras, a cooperativa serve ao sistema capitalista de três

formas: a) garante subsistência para uma parcela da população que não

alcança outros postos de trabalho, e, em alguns casos, a prepara para

consegui-lo: de qualquer feita, ameniza os impactos da crise do capital; b)

realiza o trabalho dispendioso de separação do rejeito e do resíduo sólido que

pode ser reciclado, entregando ao grande capitalista, a baixo custo, a matéria-

prima com a qual ele fará seu marketing de empresa recicladora, tão bem visto

pela sociedade; c) colabora com a acumulação do capital.

Engendra-se um mecanismo complexo no qual os próprios

trabalhadores sujeitam-se à auto-exploração, em um trabalho cujo resultado

material redunda em subsistência, ao extremamente necessário para sua

reprodução. Contudo, esse tipo de trabalho pode ser visto como estratégia de

sobrevivência, pois que há parcelas da população que não alcançam o

mercado de trabalho, não são alcançadas pela política social, e estão fadadas

à pauperização absoluta, expressa na miséria.

O desenvolvimento do capitalismo complexifica a divisão social do

trabalho, que não se restringe às unidades produtivas, mas que se mundializa.

Também no interior das sociedades, essa divisão processa-se com a

destinação do trabalho desgastante, braçal, mecânico à parcela mais pobre da

população. Nesse sentido, pode-se perceber o trabalho de coleta e de

reciclagem de resíduos sólidos como integrante de uma complexa divisão

social do trabalho que destina à população que tem acesso a outros postos de

trabalho a tarefa de buscar reverter as ações destrutivas impingidas pelo

sistema capitalista à natureza.

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A possibilidade de geração de subsistência à população pauperizada

une-se ao discurso da educação ambiental, aceito amplamente pela sociedade.

Não se quer com essa observação desmerecer a necessidade proeminente de

preservação ambiental. Busca-se apenas ressaltar o fato que esta tarefa fica a

cargo da população pauperizada, cujos índices de consumo são

significativamente minorados. E, se sabe, não é possível reverter a degradação

ambiental sem a superação do sistema capitalista.

A circulação de mercadorias no sistema capitalista encobre a relação

de exploração do capital em relação às iniciativas cooperativistas. Essas

iniciativas, sobretudo as cooperativas de recicladores, realizam um trabalho

árduo de coleta do lixo e sua transformação em matéria-prima, em mercadoria,

repassando-o a preços mínimos, à grande indústria, constituindo-se em forma

concreta de extração de mais-valia e exploração do trabalho humano.

Não se pode negar, ao ouvir os cooperados, que a experiência é rica

em ganhos referentes à capacidade de convivência, à aprendizagem sobre

gestão e organização do trabalho, ao exercício democrático e às lutas por

direitos.

Entretanto, não se pode deixar de salientar que é extremamente

receber um recurso financeiro que garante apenas as compras mensais de

bens de primeira necessidade expressa no vale supermercado. Apesar das

dificuldades, os cooperados insistem na experiência, aguardando incentivo

governamental para melhorar as condições de trabalho.

As narrativas evidenciam a ênfase na implementação, por parte do

poder público, de políticas sociais com características compensatórias,

focalistas e antidemocráticas, ao transferir para a sociedade civil a

responsabilidade pela gestão da política social.

Ressalta-se, ainda, a assunção da sociedade civil da gestão da política

de geração de emprego e renda, por meio do fomento de cooperativas trabalho

e grupos produtivos. Na experiência da Cooprec, a relação com a Sociedade

Goiana de Cultura, e com o Instituto Dom Fernando é crucial para o

desenvolvimento do trabalho e no estabelecimento de autonomia.

Este estudo, portanto, permitiu conhecer uma experiência concreta de

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cooperativa, ouvir seus integrantes, com eles conviver e apreender as

determinações e mediações existentes nessa experiência e o mundo do

trabalho, e desse modo, reconhecer que

só quando o trabalho for efetiva e completamente dominado pela humanidade e, portanto, só quando ele tiver em si a possibilidade de ser ‘não apenas meio de vida’, mas ‘o primeiro carecimento de vida’, só quando a humanidade tiver superado qualquer caráter coercitivo em sua própria autoprodução, só então terá sido aberto o caminho social da atividade humana com fim autônomo (Lukács, 1997,p.39-40)

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