convivencia com o semiarido brasileiro - autonomia e protagonismo social irio

Upload: naianne-lima

Post on 19-Oct-2015

83 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO BRASILEIROAutonomia e Protagonismo Social

    Autores / Autoras

    Carlos Humberto Campos (Critas / ASA-Brasil)Clara Marinho Pereira (Sesan-MDS)

    Danielle Leite Cordeiro (P1+2 / P1MC-CE) Evandro Pontel (REDEgenteSAN/FAURGS)

    Eugnia da Silva Pereira (Casa-BA) Gustavo Correa de Assis (Sesan-MDS)

    Haroldo Schistek (IRPAA-BA) Igor da Costa Arsky (Sesan-MDS)

    Irio Luiz Conti (REDEgenteSAN/UFRGS) Jales Dantas da Costa (Sesan-MDS) Jos Camelo da Rocha (AS-PTA-PB)

    Maria de Lourdes L. de Arajo (REDEgenteSAN/FAURGS) Naidison de Quintella Baptista (MOC / ASA-Brasil)

    Vitor Leal Santana (Sesan-MDS)

  • Publicao concebida e viabilizada pela COOPERAO BRASIL ESPANHA,

    Programa Cisternas - BRA 007-B, 2010 - 2014

    GOVERNO ESPANHOL Embaixador da Espanha no Brasil

    Manuel de La Cmara Hermoso

    Coordenador Geral da Cooperao Espanhola no BrasilJess Maria Molina Vzquez

    Diretora de Programas da Agncia Espanhola de Cooperao Internacional para o Desenvolvimento

    Margarita Garca Hernndez

    GOVERNO BRASILEIRO Ministra do Ministrio de Desenvolvimento Social e Combate Fome

    Tereza Helena Gabrielli Barreto Campello

    Secretrio da Secretaria Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional Arnoldo Anacleto de Campos

    Diretora do Departamento de Fomento Produo e Estruturao ProdutivaFrancisca Rocicleide Ferreira da Silva

    Coordenador-Geral de Acesso gua Igor da Costa Arsky

  • CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO BRASILEIROAutonomia e Protagonismo Social

    OrganizadoresIrio Luiz Conti e Edni Oscar Schroeder

    Agncia Espanhola de Cooperao Internacional para o Desenvolvimento (AECID)Instituto Ambiental Brasil Sustentvel (IABS)

    Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome (MDS)Fundao de Apoio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FAURGS)

    Rede Gente da Segurana Alimentar e Nutricional (REDEgenteSAN)

    Braslia 2013

    SRIE COOPERAO BRASIL - ESPANHAAcesso gua e Convivncia com o Semirido

    Programa Cisternas - BRA 007-B

  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    Convivncia com o Semirido Brasileiro: Autonomia e Protagonismo Social / Irio Luiz Conti e Edni Oscar Schroeder (organizadores). Fundao de Apoio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul FAURGS/REDEgenteSAN / Instituto Ambiental Brasil Sustentvel IABS / Agncia Espanhola de Cooperao Internacional para o Desenvolvimento AECID / Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate a Fome - MDS / Editora IABS, Braslia-DF, Brasil - 2013.

    ISBN 978-85-64478-20-6208 p. 1. Semirido Brasileiro. 2. Convivncia. 3. Educao Contextualizada I. Ttulo. II. Fundao

    de Apoio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul FAURGS/REDEgenteSAN III. Instituto Ambiental Brasil Sustentvel IABS. IV. Agncia Espanhola de Cooperao Internacional para o Desenvolvimento AECID V. Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate a Fome MDS. VI. Editora IABS.

    CDU: 323.2338.2

    Reitor da UFRGS: Carlos Alexandre NettoDiretor Presidente da FAURGS: Srgio NicolaiewskyGerente Financeiro da FAURGS: Francisco Carlos da Silva

    EQUIPE pelo Instituto Ambiental Brasil Sustentvel (IABS)Diretor Presidente: Luis Tadeu Assad Coordenadora de Projetos: Carla Gualdani Gestor de Convnios: Milton Krgger Martins Coordenador da Editora IABS: Flvio Silva RamosProjeto Grfico e Capa: Rodrigo Diniz Torres

    Equipe pela REDEgenteSAN / FAURGS / UFRGSCoordenador Geral da REDEgenteSAN / FAURGS: Edni Oscar SchroederOrganizadores da Publicao: Irio Luiz Conti e Edni Oscar SchroederRevisor: Irio Luiz ContiEquipe Tcnica: Gilda Glauce Martins Alves - Assessora Pedaggica Vera Lucia Mazzini dos Santos Assessora Administrativa Elson Koeche Schroeder - Assessor de Comunicao Daniel Thom de Oliveira Gerente Analista de Tecnologia Alexandre Gervini Gerente Operacional de Tecnologia Eduardo Gehlen Grapiglia Assistente Administrativo

    Distribuio gratuta e possveis reprodues podero ser analisadas pelas entidades organizadoras.

    Esta obra est disponvel na Biblioteca Virtual da REDEgenteSAN: www.redesan.ufrgs.br/biblioteca-virtual e no site da Editora IABS: www.editoraiabs.org.br

  • Sumrio

    Apresentao ..............................................................................................9

    Prefcio ......................................................................................................13

    Envolvimentos ...........................................................................................15

    Introduo .................................................................................................17Irio Luiz Conti

    Transio paradigmtica na convivncia com o Semirido ................21Irio Luiz Conti e Evandro Pontel

    O Semirido Brasileiro: uma regio mal compreendida ......................31Haroldo Schistek

    Caracterizao do Semirido Brasileiro .................................................45Naidison de Quintella Baptista e Carlos Humberto Campos

    A convivncia com o Semirido e suas potencialidades ......................51Naidison de Quintella Baptista e Carlos Humberto Campos

    Possibilidades de construo de um modelo sustentvel de desenvolvimento no Semirido .........................................................59

    Naidison de Quintella Baptista e Carlos Humberto Campos

    Formao, organizao e mobilizao social no Semirido brasileiro .................................................................................73

    Naidison de Quintella Baptista e Carlos Humberto Campos

    Educao contextualizada para a convivncia com o Semirido .......83Naidison de Quintella Baptista e Carlos Humberto Campos

    Educao Contextualizada e Convivncia com o Semirido: lutas, conquistas e desafios ....................................................................97

    Eugnia da Silva Pereira

  • Soberania e segurana alimentar no Semirido .................................107Jos Camelo da Rocha

    Interfaces entre direito humano alimentao adequada, soberania alimentar, segurana alimentar e nutricional e agricultura familiar .............................................................................117

    Irio Luiz Conti

    Direito humano gua ..........................................................................127Jales Dantas da Costa

    Acesso gua no Semirido: a gua para o consumo humano ........139Igor da Costa Arsky, Vitor Leal Santana e Clara Marinho Pereira

    Parmetros de demanda hdrica no Semirido ..................................149Igor da Costa Arsky e Vitor Leal Santana

    Parmetros de disponibilidade hdrica no Semirido ........................159Igor da Costa Arsky e Gustavo Corra de Assis

    Processo de construo de polticas pblicas de acesso gua .......169Naidison de Quintella Baptista

    Reinveno dos movimentos sociais no Semirido brasileiro: o caso do P1MC ........................................................................................183

    Danielle Leite Cordeiro

    Convivncia com o Semirido: aprendizados, desafios e perspectivas .........................................................................................193

    Evandro Pontel, Irio Luiz Conti e Maria de Lourdes Lopes de Arajo

  • AECID - Agncia Espanhola de Cooperao Internacional para o DesenvolvimentoANA - Articulao Nacional de Agroecologia ANA - Agncia Nacional de guasASA - Articulao no Semi-rido Brasileiro ATER - Assistncia Tcnica e Extenso RuralAP1MC - Associao Programa Um Milho de Cisternas AS-PTA - Agricultura Familiar e Agroecologia BAP - Bomba Dgua PopularBEDA - Bovino Equivalente para Demanda de gua BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social CAA - Centro de Assessoria do AssuruCAATINGA - Centro de Assessoria e Apoio aos Trabalhadores e Instituies No-

    Governamentais AlternativasCAGECE - Companhia Estadual de Saneamento do Cear CAISAN - Cmara Interministerial de Segurana Alimentar e NutricionalCASA - Centro de Agroecologia no Semi-rido CEAB - Companhias Estaduais de SaneamentoCDESC - Comit de Direitos Econmicos, Sociais e CulturaisCETRA - Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao TrabalhadorCG - Comentrio Geral n 12 COBAL - Companhia Brasileira de AlimentosCODEVASF - Companhia de Desenvolvimento dos Vales do So Francisco e do ParnabaCONSEA - Conselho Nacional de Segurana Alimentar e NutricionalCONTAG - Confederao Nacional dos Trabalhadores na Agricultura CONDRAF - Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural SustentvelCOOPERCUC - Cooperativa Agropecuria Familiar de Canudos, Uau e Cura COP III - III Conferncia das Partes de Combate Desertificao e a Seca CNPJ - Cadastro Nacional de Pessoa JurdicaCSA - Convivncia com o SemiridoDHA - Direito Humano guaDHAA - Direito Humano Alimentao AdequadaECA - Estatuto da Criana e do AdolescenteEnconASA - Encontro Nacional da ASAESPLAR - Centro de Pesquisa e AssessoriaFAURGS - Fundao de Apoio da Universidade Federal do Rio Grande do SulFBB - Fundao Banco de Brasil FEBRABAN - Federao Brasileira de BancosIABS - Instituto Ambiental Brasil SustentvelIBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e EstatsticaIDH - ndice de Desenvolvimento Humano INCRA - Instituto Nacional de Colonizao e Reforma AgrriaIPEA - Instituto de Pesquisas e Economia AplicadaIRPAA - Instituto Regional da Pequena Agropecuria Apropriada

    Lista de siglas

  • LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional MDA - Ministrio de Desenvolvimento AgrrioMEC - Ministrio da EducaoMDS - Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate FomeMEB - Movimento de Educao de Base MESA - Ministrio Extraordinrio de Segurana Alimentar e Combate Fome MOC - Movimento de Ao ComunitriaMMA - Ministrio do Meio Ambiente MMC - Movimento de Mulheres Camponesas ONGs - Organizao No GovernamentalOMS - Organizao Mundial de Sade ONU - Organizao das Naes UnidasOXFAM - Oxford de Combate Fome PAA - Programa de Aquisio de Alimentos P1MC - Programa de Formao e Mobilizao Social para Convivncia com o Semirido: Um

    Milho de Cisternas Rurais P1+2 - Programa Uma Terra e Duas guasPLANASA - Plano Nacional de Saneamento Bsico PDHC - Projeto Dom Helder CmaraPIDESC - Pacto Internacional de Direitos Econmicos, Sociais e CulturaisPRONAF - Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura FamiliarPRODES - Programa de Despoluio de Bacias Hidrogrficas PNAE - Programa Nacional de Alimentao EscolarPNRH - Plano Nacional de Recursos Hdricos PPA - Plano PlurianualPRODES - Programa de Despoluio de Bacias Hidrogrficas PRONERA - Programa Nacional de Educao da Reforma AgrriaSUDENE - Superintendncia do Desenvolvimento do Nordeste, atual EDENERedeSAN Rede Integrada de Segurana Alimentar e Nutricional REDEgenteSAN Rede de Gente da Segurana Alimentar e Nutricional RESAB - Rede de Educao do Semirido Brasileiro SAB - Semirido BrasileiroSASOP - Servio de Assessoria a Organizaes Populares Rurais SAN - Segurana Alimentar e NutricionalSERTA - Servio de Tecnologia Alternativa SESAN - Secretaria Nacional de Segurana Alimentar e NutricionalSISAN - Sistema Nacional de Segurana Alimentar e NutricionalSISAR - Sistema Integrado de Saneamento Rural SINGREH - Sistema Nacional de Gesto de Recursos HdricosSISNAMA - Sistema Nacional do Meio AmbienteSTTR - Sindicatos de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais SSAs - Sistemas Simplificados de Abastecimento UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do SulUGM - Unidade Gestora Microrregional UNICEF - Fundo das Naes Unidas para a Infncia

  • 9Apresentao A Srie Cooperao Brasil Espanha fruto das atividades e parcerias

    desenvolvidas ao longo dos ltimos quatro anos no mbito do Programa Cisternas BRA 007-B, iniciado no ano de 2010. A Srie foi criada com o objetivo de registrar e difundir os diferentes tipos de conhecimentos e resultados oriundos do Programa, de modo a contribuir e consolidar aes to signifi cativas para a convivncia com o Semirido brasileiro.

    J o Programa Cisternas BRA 007-B foi criado a partir da parceria entre Fundo de Cooperao para gua e Saneamento FCAS com aporte fi nanceiro da Agncia Espanhola de Cooperao Internacional para o Desenvolvimento AECID e contrapartida do Ministrio de Desenvolvimento Social e Combate a Fome MDS, executado pelo Instituto Ambiental Brasil Sustentvel - IABS.

    O Programa visou entre seus objetivos contribuir para a transformao social, a promoo, preservao, o acesso, a gesto e a valorizao da gua como um direito essencial vida e cidadania, bem como a compreenso e a prtica da convivncia sustentvel e solidria com o Semirido brasileiro. Essas aes foram impulsionadas por meio da difuso de tecnologias sociais, que tm no processo participativo as bases fundamentais de suas aes, permitindo a viabilidade da regio e o protagonismo do seu povo.

    O processo de difuso de tecnologias e novo paradigma de convivncia com o Semirido partiu de uma iniciativa da sociedade civil organizada com o objetivo de garantir o acesso gua potvel s famlias do Semirido brasileiro, onde o problema da escassez de gua para o consumo humano direto afeta a sobrevivncia dessa populao. A partir disso, as polticas pblicas de universalizao do acesso gua incorporaram tais processos a fi m de contribuir com os movimentos e articulaes locais.

    A tecnologia social apoiada e difundida como as cisternas de placas para a captao de gua de chuva representa uma soluo de acesso a recursos hdricos para a populao rural da regio. Estas foram destinadas populao rural de baixa renda que sofre com os efeitos das secas prolongadas, que chegam a durar oito meses do ano. Neste perodo, o acesso a gua normalmente se d atravs de guas estancadas e poos que se encontram a grandes distncias e possuem gua de baixa ou baixssima qualidade, provocando doenas nas populaes que se veem obrigadas a consumir gua proveniente destas fontes.

  • 10 - CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO BRASILEIRO: Autonomia e Protagonismo Social

    O Semirido tem a maior parte do seu territrio coberto pela Caatinga, nico bioma exclusivamente brasileiro, rico em espcies endmicas, apresentando grande variedade de paisagens, de espcies animal e vegetal, nativas e adaptadas, com alto potencial e que garantem a sobrevivncia das famlias agricultoras da regio. A Caatinga considerada por especialistas o bioma brasileiro mais sensvel interferncia humana e s mudanas climticas globais.

    Outra caracterstica do Semirido brasileiro o dfi cit hdrico, embora isso no signifi que falta de gua. Pelo contrrio, o Semirido mais chuvoso do planeta. A mdia pluviomtrica vai de 200mm a 800mm anuais, dependendo da regio. Porm, as chuvas so irregulares no tempo e no espao. Alm disso, a quantidade de chuva menor do que o ndice de evaporao, que de 3.000mm/ano, ou seja, a evaporao trs vezes maior do que a de chuva que cai.

    Isso signifi ca que as famlias precisam se preparar para a chegada da chuva. Ter reservatrios para captar e armazenar gua so fundamentais para garantir segurana hdrica no perodo de estiagem, a exemplo das cisternas domsticas, cisternas-calado, cisternas escolares, barragens subterrneas e outras tecnologias sociais.

    Um dos maiores desafi os na luta pela convivncia com o Semirido a garantia universal da gua para todo o povo sertanejo. Por isso, a cisterna de placa representa um marco na busca da soberania hdrica e alimentar no Semirido brasileiro. O Plano Brasil Sem Misria do Governo Federal, por meio do projeto gua para Todos, prev que at 2014 sejam implantadas 750.000 cisternas e 6.000 sistemas simplifi cados de abastecimento direcionados para o consumo humano.

    Assim, a partir dos conhecimentos adquiridos pelos parceiros locais, mais de 15.000 cisternas de placas (cisternas de primeira gua, cisternas de produo e cisternas escolares) foram construdas por meio de um processo participativo de gesto, mobilizao, capacitao e construo, no mbito desta Cooperao Brasil-Espanha, ajudando na complementao da poltica brasileira de universalizao do acesso gua.

    Alm das cisternas de placas, tecnologia social mais consolidada e incorporada s polticas pblicas, outras formas de apoio como fortalecimento institucional, cursos de formao, intercmbios, prmios e identifi cao de novas tecnologias, estudos, pesquisas, publicaes e vdeos contriburam para o que podemos chamar de sucesso do Programa.

    Neste contexto, a Srie Cooperao Brasil Espanha - Programa Cisternas BRA 007-B vem contribuir para o atual debate da temtica de convivncia com o Semirido brasileiro, difundindo todo o conhecimento acumulado e gerado pelo

  • 11

    Programa ao longo dos ltimos anos, seja no modelo j consolidado das cisternas de placas, sejam nas inovaes de tecnologias sociais difundidas no Prmio Mandacaru, seja na consolidao de redes de saberes, bem como nas avaliaes de impacto que subsidiam os debates e as decises polticas.

    Que possamos assim, contribuir para esse novo momento e olhar sobre o Semirido, que impulsiona prticas cada dia mais adaptadas ao bioma, cultura local do povo sertanejo e s melhoras signifi cativas que o Brasil vem passando.

    Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome

    Agncia Espanhola de Cooperao Internacional para o Desenvolvimento

    Instituto Ambiental Brasil Sustentvel

  • 13

    Prefcio

    A complexidade no a chave do mundo, mas o desa o a enfrentar, o pensamento complexo no o que evita ou suprime o desa o, mas o que ajuda a revel-lo e, por

    vezes, mesmo a ultrapass-lo. (Edgar Morin).

    O livro intitulado Convivncia com o Semirido Brasileiro: Autonomia e protagonismo social, que tem o formato de uma coletnea de artigos, faz incurses analticas sobre o Semirido buscando, de um lado, caracteriz-lo a partir de uma matriz interdisciplinar e, de outro lado, mostra a riqueza e a diversidade de experincias em curso que demarcam um novo tempo poltico, elucidam em suas tessituras princpios, metodologias e aprendizados, combinando parcerias e articulaes polticas de sujeitos sociais.

    Olhares de militantes, de professores e de gestores governamentais pem em evidncia a disputa de projetos no e para o Semirido brasileiro. Um deles prioriza a construo de grandes obras e pautado numa matriz reducionista e fragmentada de combate s secas, valoriza as grandes obras hdricas e com a irrigao orientada para a produo destinada ao mercado externo. O outro projeto se fundamenta nos princpios do paradigma da complexidade, que valoriza o local, a diversidade cultural e a construo e afi rmao de identidades dos sujeitos sociais. Esta perspectiva se pauta na compreenso da convivncia com o Semirido, ao considerar as questes, contradies e solues formuladas e implementadas, e, sobretudo, valoriza os saberes, os conhecimentos e o modo de vida gestados no prprio territrio.

    Assim, so destacados aes e projetos de setores da sociedade civil organizada, alguns deles, geradores de tecnologias sociais como o caso das cisternas, que hoje se consubstanciam em polticas pblicas mediante a parceria com rgos governamentais. Estas experincias ligadas s reas social, econmica e ambiental, desenham propostas de convivncia com o Semirido, apresentam alternativas e sublinham aspectos da incluso social, da cultura e da identidade dos agricultores e agricultoras e da preservao dos recursos naturais.

    Por caminhos analticos diferentes, as instigantes re exes dos autores constantes nesta coletnea pem em evidncia estratgias concretas e exitosas que se ampliam e se fortalecem negando a lgica do combate seca e afi rmando a viabilidade da convivncia com o Semirido. Assim, trabalhadores e trabalhadoras do campo protagonizam caminhos de uma vida com dignidade, qualidade e justia social, respeitando a diversidade tnica, racial, cultural e poltica, com recorte de gnero para o desenvolvimento sustentvel. Dessa forma buscam desconstruir imagens simblicas

  • 14 - CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO BRASILEIRO: Autonomia e Protagonismo Social

    e preconceituosas que reduzem secularmente o Semirido falta de gua, animais mortos, crianas desnutridas, fome, xodo, terra rachada, pessoas incapazes.

    Neste percurso analtico vislumbra-se a emergncia de um novo paradigma ancorado na contribuio de Edgar Morin que concebe os princpios da complexidade (complexus) como concepo/ao que busca unir, operando diferenciaes e destaca a necessidade de comunicar os conhecimentos dispersos de modo a contribuir para a auto-elaborao de um mtodo no qual o pensamento integrado/articulado, crescentemente consciente, seja capaz de dialogar com o real, de reunir, de contextualizar, de globalizar, mas ao mesmo tempo, reconhecendo no cenrio histrico o singular, o individual e o concreto.

    A ideia de organizar esta publicao a partir de estudos e re exes realizadas no Curso de Formao em Gesto Pblica, Acesso gua e Convivncia com o Semirido vem, portanto, contribuir para ampliar e socializar o acervo bibliogrfi co existente e que postula a importncia de uma educao contextualizada. Pretende, ainda, disseminar tais conhecimentos junto academia, aos movimentos e organizaes sociais e s instituies governamentais formuladoras de polticas pblicas, de modo que o desenvolvimento sustentvel referenciado pelo paradigma de convivncia como Semirido seja amplamente difundido.

    A leitura dos artigos expressa o papel relevante da Articulao no Semirido Brasileiro (ASA) que como Rede Social espraia, atravs de cerca de 800 organizaes sociais, ensinamentos tericos/empricos e vivncias sobre a utilizao adequada e racional da gua e dos demais recursos naturais, mediante a valorizao do trabalho humano e de processos contnuos e participativos. E a realizao de vrios termos de parcerias celebrados nos ltimos dez anos entre a ASA e os governos federal e estaduais geram inmeros aprendizados em relao elaborao e implementao de polticas pblicas inclusivas.

    Por fi m, fi ca evidente que os avanos alcanados so importantes, mas necessrio que as lutas sociais e a ao do Estado estabeleam um dilogo permanente na perspectiva de reconhecer e assegurar a centralidade da soberania e segurana alimentar e nutricional e o direito humano alimentao adequada e saudvel como um eixo estratgico do desenvolvimento econmico, social e poltico para o pas.

    Fortaleza, maio de 2013

    Elza Maria Franco Braga1

    1 Doutora em Sociologia, Professora no Departamento de Cincias Sociais da Universidade Federal do Cear, Conselheira do CONSEA-Cear e do CONSEA-Nacional e Representante do CONSEA-Nacional na Comisso de Avaliao do P1MC e do P1+2

  • 15

    E

    Em todos os recantos do planeta Terra h uma ateno especial quando a questo a gua e gua de consumo. Ao se abordar o tema gua, outras interaes aparecem, como: terra, relevo, situao climtica, energia , populaes, fauna, ora, sistemas produtivos, sementes crioulas e transgnicas, educao ambiental, meios urbano e rural, industrializao, contaminaes, relaes internacionais e tantas outras.

    O Brasil tem caminhadas que poderiam ser interpretadas como contraditrias na abordagem da questo gua na regio do Semirido, pois passa pela construo de grandes represas e pelo desvio do Rio So Francisco at iniciativas bem sucedidas da sociedade civil como o caso da construo de cisternas atravs do Programa Cisternas.

    O livro Convivncia com o Semirido Brasileiro: Autonomia e Protagonismo Social que se apresenta aqui a compilao dos textos disponibilizados aos mais de 1.000 gestores e gestoras dos anos de 2011 a 2013 - que participaram dos cursos de formao sobre Gesto Pblica, Acesso gua e Convivncia com o Semirido. Esses cursos foram desenvolvidos pelo sistema de educao distncia, atravs da Plataforma Educacional REDEgenteSAN da Fundao de Apoio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FAURGS) / Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com recursos do Fundo de Cooperao para gua e Saneamento (FCAS) atravs da Agncia Espanhola de Cooperao Internacional para o Desenvolvimento (AECID), com a intermediao tcnica e contratual do Instituto Ambiental Brasil Sustentvel (IABS), organizao no governamental do Brasil. O Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome, atravs da Coordenao Geral de Acesso gua da Secretaria Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional (SESAN-MDS), o responsvel pela integrao do Programa Cisternas neste acordo de cooperao internacional

    Mesmo que a REDEgenteSAN/FAURGS tenha sido a entidade responsvel pela execuo desta etapa de formao na Cooperao, os(as) autores(as) de textos e orientadores(as) de linhas referenciais aos cursos disponibilizados foram professores(as) e dirigentes de organizaes com aes diretas e reconhecidas no/sobre Semirido. Das organizaes da sociedade civil que mais se envolveram esto: a Articulao no Semirido Brasileiro (ASA-Brasil) e o Instituto Regional da Pequena Agropecuria Apropriada (IRPAA-Juazeiro/Bahia).

  • 16 - CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO BRASILEIRO: Autonomia e Protagonismo Social SRIE COOPERAO BRASIL-ESPANHA: ACESSO GUA E CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO

    Cabe um profundo agradecimentos a todos e a todas entidades e pessoas que colaboraram na produo de materiais e/ou que estiveram participando no acompanhamento de alunos e de alunas ao longo deste processo de formao.

    Impressionante a dedicao percebida nos(as) Alunos(as)/Gestores(as) para realizao dos cursos. Muitos intercalando momentos de estudos e de re exes com o cotidiano de trabalhos nas suas comunidades, projetos e/ou setores governamentais. Outros buscando uma melhor preparao para futuras intervenes nas questes do Semirido e/ou para conhecer o Semirido. A esses batalhadores(as), reconhecimentos e disponibilizao permanente possvel.

    Edni Oscar Schroeder1

    Coordenador da REDEgenteSAN / FAURGS / UFRGS

    1 Mestre em Administrao de Sistemas Educacionais e Especialista em Projetos de Educao Superior pela FGV-RJ; Bacharel e Licenciado em Qumica; Professor aposentado da UFRGS; Consultor (eventual) em projetos da FAO e do MDS (CONSAD / Equipamentos Pblicos de Alimentao e Nutrio / Cisternas); Membro da Diretoria do CONSEA-RS. ([email protected] )

  • 17SRIE COOPERAO BRASIL-ESPANHA: ACESSO GUA E CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO

    Introduo

    Irio Luiz Conti1

    1Doutorando em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS), bolsista FAPERGS, Mestre em Sociologia, Especialista em Direitos Humanos e Licenciado em Filosofi a e Teologia. Coordenou e foi professor dos cursos de formao na RedeSAN/FAURGS, conselheiro do CONSEA Nacional e Presidente da FIAN Internacional. (irio@ifi be.edu.br)

  • 18 - CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO BRASILEIRO: Autonomia e Protagonismo Social

    Finalizamos a organizao desta publicao justamente em um perodo em que as famlias do Semirido brasileiro enfrentam uma das piores secas da histria1. Mesmo que estudos apontem que este seja um fenmeno cclico, cada vez que ele ocorre, suscita reaes diversas por parte da populao atingida, das organizaes e movimentos sociais e dos governos e instituies em geral. Entretanto, a tnica dessas reaes mostra que o drama de retirantes descrito por Graciliano Ramos, no romance Vidas Secas2, publicado em 1938, parece, em grande medida, ser algo de um passado pouco presente na realidade vivida pelo povo do Semirido atualmente.

    Nos ltimos anos um conjunto de iniciativas empreendidas em parceria entre organizaes da sociedade civil, congregadas na Articulao no Semi-rido Brasileiro (ASA), rgos de governo municipais, estaduais e federais, organizaes de cooperao internacional e instituies pblicas e privadas vm contribuindo signifi cativamente na implementao de aes, como o programa Um Milho de Cisternas (P1MC) e outras, que garantem maior autonomia aos sertanejos e sertanejas na convivncia com o Semirido.

    Ao mencionarmos o crescimento da autonomia referimo-nos ampliao das capacidades, oportunidades e recursos, intelectuais e materiais, dos diferentes atores sociais envolvidos na criao e viabilizao de seus modos de vida no Semirido brasileiro, um mosaico dinmico, complexo e multidimensional. Esses atores ocupam diferentes posies na condio de sujeitos nos processos de mudanas sociais. O fortalecimento de sua autonomia se expressa na capacidade de ler, interpretar, ressignifi car e transformar a realidade, mediante a apropriao de instrumentos que lhes possibilitam protagonizar a construo de sua histria.

    Todos os artigos que integram esta publicao, de alguma forma, mencionam que nos ltimos anos emerge, no Semirido, algo substancialmente novo, que se explicita em contraposio noo de combate seca, denominado paradigma da convivncia com o Semirido. Este binmio - expresso na polarizao entre o velho paradigma e o novo paradigma - uma constante nos artigos que se seguem, trazido tona de diversas formas pelos autores e autoras que participam desta publicao.

    1 At o dia 30 de novembro de 2012, 1.187 municpios j haviam tido a confi rmao do decreto de situao de emergncia pelo governo federal e diversos aguardavam tal confi rmao s solicitaes j encaminhadas. 2 RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 45 edio. Disponvel em: http://manasbrodas.fi les.wordpress.com/-graciliano--ramos.pdf. Acesso: agosto de 2012.

  • Introduo - 19

    A estrutura deste livro segue uma concepo expressa na lgica de organizao descrita a seguir. No primeiro captulo Evandro Pontel e Irio Luiz Conti fazem uma abordagem sobre a Transio paradigmtica na convivncia com o Semirido. Os autores no pretendem fazer sua aplicao direta ao contexto do Semirido brasileiro e suas mltiplas abordagens contempladas nos artigos a seguir. Entretanto, lanam luzes que possibilitam ampliar os olhares e a compreenso sobre o que emerge nas duas ltimas dcadas, a partir das dinmicas organizativas e sociais que confi guram novas formas de conceber e atuar no Semirido. Se elas apontam para a emergncia de um novo paradigma ou no, bem, este talvez seja o grande desafi o posto s organizaes e movimentos sociais da regio, aos formuladores de polticas pblicas e aos estudiosos empenhados em compreender e fundamentar o alcance das mudanas e transformaes que vm ocorrendo na regio. Elas ocorrem a partir da constatao das anomalias do modelo tradicional de desenvolvimento adotado, da formulao de alternativas a esse modelo e da ousada opo pela implementao de um conjunto de iniciativas que inclui as tecnologias sociais que esto possibilitando novos parmetros de vida e dignidade ao povo do Semirido.

    Os cinco artigos seguintes trazem o que poderamos chamar de ampla apresentao e contextualizao do Semirido brasileiro. Em seu artigo sobre O Semirido brasileiro: uma regio mal compreendida, Haroldo Schistek discorre sobre temas e aes importantes que j vm sendo incrementados na convivncia com o Semirido. Na sequncia Naidison de Quintella Baptista e Carlos Humberto Campos abordam a Caracterizao do Semirido em suas diversas dimenses, aprofundam o que a Convivncia com o Semirido e suas potencialidades, problematizam sobre as Possibilidades de construo de um modelo sustentvel de desenvolvimento no Semirido e acentuam que a Formao, organizao e mobilizao social esto intrinsecamente imbricadas e articuladas com as vrias formas de vida e de lutas pela terra, territrio e gua, empreendidas pelo povo no Semirido.

    Junto com os processos organizativos sociais tambm emergem e se fortalecem novas formas de produo de conhecimento. Naidison de Quintella Baptista escreve sobre a Educao contextualizada para a convivncia com o Semirido e Eugnia da Silva Pereira re ete sobre a Educao contextualizada e convivncia com o Semirido: lutas, conquistas e desa os. Ambos partem da necessidade da desconstruo de referenciais tericos que marcaram os processos educacionais formais e no formais ao longo da histria e fortaleceram formas de dominao, para apontar a construo de novos referenciais educacionais inseridos na e a partir da realidade vivida pelas famlias da grande regio semirida.

    Com o fi m do regime militar e o advento da democracia no Brasil se fortalecem mltiplas formas de reivindicao, proposio e mobilizao social pelos

  • 20 - CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO BRASILEIRO: Autonomia e Protagonismo Social SRIE COOPERAO BRASIL-ESPANHA: ACESSO GUA E CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO

    direitos humanos. Nesse meio, Jos Camelo da Rocha analisa a importncia da Soberania e segurana alimentar no Semirido e mostra as interconexes entre saberes e conhecimentos tradicionais, sementes e alimentos que fortalecem identidades regionais e a autonomia nos modos de vida camponeses. Irio Luiz Conti aborda as necessrias Interfaces entre direito humano alimentao adequada, soberania alimentar, segurana alimentar e nutricional e agricultura familiar em vista da garantia da produo para o autoconsumo e a segurana alimentar e nutricional nas diversas realidades brasileiras. E Jales Dantas da Costa aborda o tema do Direito humano gua luz dos instrumentos e mecanismos internacionais e nacionais que no s reconhecem, mas requerem que sejam empenhados todos os recursos possveis para garantir a universalizao do direito humano gua no Semirido e no Brasil.

    luz do direito humano alimentao adequada e gua, Igor da Costa Arsky, Vitor Leal Santana e Clara Marinho Pereira re etem sobre o Acesso gua no Semirido: a gua para o consumo humano e tambm sobre os Parmetros de demanda hdrica no Semirido e fazem um interessante exerccio sobre o que signifi ca a demanda hdrica no cotidiano de uma famlia que precisa garantir gua para o uso domstico e para a produo. Em continuidade, Igor da Costa Arsky e Gustavo Corra de Assis escrevem sobre os Parmetros de disponibilidade hdrica no Semirido, um tema com informaes importantes sobre a composio do ciclo hidrolgico e a necessidade do uso racional do potencial hdrico no Semirido.

    Nos ltimos anos as organizaes sociais, em parceria com rgos governamentais, vm desenvolvendo inmeras estratgias de convivncia com o Semirido, de modo que algumas delas j esto deixando de serem projetos para se tornarem polticas pblicas. Naidison de Quintella Baptista descreve esse Processo de construo de polticas pblicas de acesso gua desde a perspectiva das organizaes sociais que convergem na Articulao no Semi-rido Brasileiro. Por sua vez, Danielle Leite Cordeiro entende que esse processo de Reinveno dos movimentos sociais no Semirido brasileiro: o caso do P1MC caracteriza uma nova fase na organizao social pela conquista de direitos e cidadania.

    Finalmente, em um esforo de reconstruo pedaggica do processo percorrido ao longo do Curso de Formao em Gesto Pblica, Acesso gua e Convivncia com o Semirido, no artigo intitulado de Convivncia com o Semirido: aprendizados, desa os e perspectivas, Evandro Pontel, Irio Luiz Conti e Maria de Lourdes de Arajo sumarizam os temas que mais marcaram o curso e mostram como a convivncia com o Semirido perpassou transversalmente o processo de ao-re exo-ao que caracterizou todo curso de formao. Certamente as vises diversas dos autores e autoras na abordagem dos mltiplos temas e processos implicados com o Semirido contribuem para tornar esta leitura atrativa e dinmica.

  • 21SRIE COOPERAO BRASIL-ESPANHA: ACESSO GUA E CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO

    Transio paradigmtica na convivncia

    com o SemiridoIrio Luiz Conti1

    Evandro Pontel2

    1Doutorando em Desenvolvimento Rural (PGDR/UFRGS), bolsista FAPERGS, Mestre em Sociologia, Especialista em Direitos Humanos e Licenciado em Filosofi a e Teologia. Coordenou e foi professor dos cursos de formao na RedeSAN/FAURGS, conselheiro do CONSEA Nacional e Presidente da FIAN Internacional. (irio@ifi be.edu.br)2 Mestrando em Filosofi a PUCRS. Bolsista CNPQ. Foi tutor e colaborador na RedeSAN / FAURGS em 2011. ([email protected])

  • 22 - CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO BRASILEIRO: Autonomia e Protagonismo Social

    Nas duas ltimas dcadas emerge, no Semirido, algo substancialmente novo embasado em uma nova rac ionalidade, que se explicita em contraposio noo de combate seca, denominado de paradigma da convivncia com o Semirido. Diante disso cabe indagar: O que um paradigma e o que caracteriza uma transio paradigmtica?

    Este artigo visa explicitar uma noo de paradigma e trazer elementos que subsidiem uma racionalidade de convivncia com o Semirido em seus diversifi cados contextos. Para tal empreendimento buscou-se em Thomas Kuhn, um dos primeiros cientistas a propor a noo de paradigma, mas tambm em Roberto Marinho da Silva e outros autores, alguns referenciais que contribuem para a compreenso do contexto mais amplo no qual podem inserir-se as recorrentes proposies e afi rmaes em relao ao paradigma e racionalidade da convivncia com o Semirido.

    Em sua obra basilar, A estrutura das revolues cient cas, Thomas Kuhn desenvolve uma teoria sobre a natureza da cincia, entendendo-a como uma sucesso de perodos ligados tradio, no lineares nem cumulativos e evolutivos, mas caracterizados por rupturas. Para ele, a cincia se caracteriza pela ruptura e, por consequncia, pode-se trabalhar com a ideia de revoluo1 cientfi ca.

    O termo revoluo anlogo s revolues que ocorrem medida que as possibilidades de resoluo dos problemas se esgotam em um determinado paradigma cientfi co. Assim, faz-se necessrio buscar argumentos externos ao meio no qual est imersa a problemtica em questo. Atravs desses argumentos e meios externos possvel questionar o paradigma vigente e, em seu lugar constituir um novo paradigma que responda de modo mais adequado s questes postas em jogo em um determinado momento histrico. A compreenso de paradigma importante porque ela possibilita o avano da cincia, sobretudo na abordagem e na resoluo de quebra-cabeas, no sistema de valores durante os perodos de crise, nas difi culdades e etapas do perodo pr-paradigmtico, nas condies e urgncias das resistncias em diferentes grupos, no processo de defi nio do paradigma dominante e de estruturao do longo caminho para defend-lo.

    A passagem de um paradigma para outro se confi gura como uma revoluo cientfi ca que in ui na mudana de concepes de mundo. Esse processo aponta

    1 O termo revoluo empregado neste artigo refere-se s revolues cientfi cas, que so distintas de outras re-volues como, por exemplo, uma revoluo social que resulta de confrontos entre grupos sociais e causa alguma mudana ou transformao em uma determinada sociedade.

  • Transio paradigmtica na convivncia com o Semirido - 23

    para a superao de valores e de paradigmas estabelecidos para se chegar a uma concepo do real que seja capaz de responder s questes que emergem no processo. Deste modo, para Kuhn, a revoluo cientfi ca se caracteriza pela mudana de um paradigma para outro e ocorre a partir da crise em relao a um determinado fenmeno ou mesmo diversos fenmenos. A noo de paradigma compreende um conjunto de regras, suposies tericas e tcnicas de aplicao de leis que orientam as atividades dos envolvidos no processo de pesquisa da comunidade cientfi ca.

    Segundo Kuhn (1998, p. 13), considero paradigmas as realizaes cientfi cas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e solues modelares para uma comunidade de praticantes de uma cincia. Nesta acepo, ao mudarem-se os paradigmas tambm se alteram as formas de compreender o mundo por meio de novos instrumentos que orientam os olhares em novas direes. E, segue Kuhn (1998, p. 145), o que ainda mais importante: durante as revolues, os cientistas veem coisas novas e diferentes quando, empregando instrumentos familiares, olham para os mesmos pontos j examinados anteriormente.

    Conforme Kuhn, as revolues se iniciam a partir de um sentimento crescente de boa parte da comunidade envolvida nas discusses acerca dos problemas inerentes ao paradigma. De modo geral tais questes emergem porque o paradigma atual e at o momento aceito deixou de funcionar, explicitar e resolver adequadamente a uma gama signifi cativa de questes s quais deveria responder. Cabe salientar que essa mudana de paradigma no ocorre de forma cumulativa, mas sim, por meio de cises ou rupturas, nas quais uma ideia ou uma perspectiva substituda totalmente por outra, sem que haja um processo cumulativo de vrias teorias.

    Um pr-requisito para que ocorra uma mudana paradigmtica que, mais que novas descobertas, se faz necessrio que haja uma nova teoria que lhe d sustentao. Logo, imprescindvel que haja argumentao convincente por parte dos cientistas e dos sujeitos envolvidos na defesa de tal posio, de modo que aqueles que defendem o paradigma anterior se convenam de que sua forma de exposio e compreenso das questes, baseada na posio antiga, j no d mais conta de explicar os novos fenmenos e, assim, aceitem e assimilem o novo paradigma proposto. Nessa direo, para Kuhn (1998, p. 31), paradigma o que os membros de uma comunidade cientfi ca compartilham e, reciprocamente, uma

    comunidade cientfi ca consiste em homens que compartilham um paradigma.

    O autor destaca que, se uma nova teoria buscada para resolver as anomalias presentes na relao entre uma teoria existente e a natureza, ento, para que esta seja bem sucedida ela deve, em algum ponto, permitir predies diferentes daquelas derivadas de sua predecessora. Dessa forma, a diferena no poderia acontecer

  • 24 - CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO BRASILEIRO: Autonomia e Protagonismo Social

    se as duas teorias fossem logicamente iguais. No processo de assimilao de uma teoria pela comunidade cientfi ca, a nova teoria deve ocupar o lugar da anterior,

    do contrrio seria difcil surgirem novas teorias sem que, concomitantemente, ocorressem mudanas destrutivas nas crenas sobre a natureza.

    Kuhn destaca outro aspecto relevante que so os conceitos. Eles precisam passar por processos permanentes de mudanas, pois so eles que impactam e ao mesmo tempo so condio de possibilidade para as novas teorias. Assim, um novo paradigma emerge na medida em que surgem novas concepes, sejam elas sobre o mundo, a populao, as formas de vida, os fenmenos que cercam a humanidade, etc. E os conceitos se confi guram como fontes de mtodos, de abordagem de determinados

    problemas, padres e solues que passam a ser aceitos por uma comunidade cientfi ca em determinada poca. Tanto o conhecimento cientfi co quanto a linguagem

    so, intrinsecamente, propriedade comum de um grupo e, para entend-los, se faz necessrio conhecer as caractersticas essenciais dos grupos que os criam e os utilizam.

    Portanto, para Thomas Kuhn, um paradigma indica uma constelao de crenas, valores e tcnicas que so compartilhados pelos membros de uma determinada comunidade. A descoberta cientfi ca se inicia a partir do momento que

    essa comunidade toma conscincia da anomalia que lhe permite o reconhecimento de que o paradigma atual no d mais conta de atender s suas necessidades especfi cas, nem d conta de explicitar e explicar uma srie de questes, tanto de

    ordem terica como metodolgica. A anomalia a condio ou o fenmeno que evoca crises e, dessa forma, prepara o caminho para a busca de uma nova teoria que responda aos problemas e necessidades postos em questo.

    O autor aponta trs momentos que caracterizam as novas descobertas e o avano da cincia, quais sejam: a conscincia prvia da anomalia; a emergncia gradual e simultnea de um reconhecimento, tanto conceitual como de observao; e a mudana de categoria e procedimentos paradigmticos, que no ocorre sem resistncias. medida que se troca ou muda um paradigma, por consequncia, substituem-se tambm suas bases e respostas, bem como os instrumentos e meios que o sustentam.

    Transio paradigmtica e racionalidade da convivncia com o Semirido

    No que se refere ao Semirido brasileiro, diversos autores tecem crticas ao modelo hegemnico de desenvolvimento econmico implantado desde a primeira

  • Transio paradigmtica na convivncia com o Semirido - 25

    metade do sculo XX na regio semirida e acenam para possveis alternativas ou transies paradimticas. Um desses pioneiros Josu de Castro. A partir de estudos sobre as diversas regies brasileiras este autor identifi ca que a regio semirida fortemente marcada pela fome crnica e o subdesenvolvimento - at ento entendidos e tratados como temas escondidos - e pe-nos no centro dos debates sobre o desenvolvimento.

    Castro (2003) ressalta a importncia do desenvolvimento como forma de superar as desigualdades estruturais e alcanar a paz. Entretanto, para que isso ocorra ele aponta a necessidade de uma mudana no modelo de desenvolvimento, de modo que este conduza a uma asceno humana por meio de um conjunto de mudanas sucessivas e profundas: S h um tipo de verdadeiro desenvolvimento: o desenvolvimento do homem. O homem, fator de desenvolvimento, o homem benefi cirio do desenvolvimento (Castro, 2003, p. 105). Para ele, o enfrentamento do subdesenvolvimento e da fome implica uma verdadeira revoluo social que inicia com a era do homem social, em contraposio era do homem econmico. E aponta para um novo paradigma societal e de desenvolvimento humano que contemple a emancipao alimentar do povo (Castro, 2003, p. 192), com prticas marcadas por valores como a justia e autonomia, solidariedade e identidade, igualdade e liberdade (Sousa Santos, 2000, p. 50).

    Entre os autores que fazem anlises crticas do Semirido brasileiro encontra-se Roberto Marinho da Silva (2006), que em sua obra Entre o combate seca e a convivncia com o Semi-rido: transies paradigmticas e sustentabilidade do desenvolvimento aborda de um modo peculiar tal contexto. Ele adota como ponto de partida a necessidade de se conceber modelos alternativos de desenvolvimento, dotados de sustentabilidade e que contribuam para o resgate de seus signifi cados e fi nalidades de acordo com a realidade do Semirido.

    Na concepo de Silva (2006) e Luzineide Carvalho (2012), enquanto ao humana, o desenvolvimento um processo cultural de transformao da natureza e das relaes sociais e produtivas, numa dinmica que pode ou no ser harmoniosa. Na matriz antropocntrica, ainda imperante na viso de desenvolvimento na regio semirida, a capacidade de recriao da realidade natural para a satisfao das necessidades humanas resulta no controle e na dominao do ser humano sobre os fenmenos e entes da natureza. Por outro lado, ao contrrio, desde uma concepo baseada numa matriz holsitica, entende-se o desenvolvimento como a harmonizao entre a cultura e a natureza, entre a modifi cao do ambiente para a satisfao das necessidades e a preservao dos bens naturais comuns. Deste modo o desenvolvimento expressa a possibilidade de mudana e transformao da realidade a partir da noo de convivncia com a natureza e no de sua dominao.

  • 26 - CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO BRASILEIRO: Autonomia e Protagonismo Social

    Segundo Leonardo Boff (2010, p. 47), a crise da razo moderna expressa na matriz antropocntrica - quer dizer, centrada no homem como agente do processo - profunda e implica em mudanas paradigmticas que possibilitem o resgate da inteligncia cordial ou emocional para equilibrar o poderio destruidor da razo instrumental, sequestrada j a sculos pelo processo produtivo acumulador. Para Boff (2010, p. 49), se no incorporarmos a inteligncia emocional razo instrumental-analtica, nunca vamos sentir os gritos dos famintos, o gemido da Me Terra, a dor das orestas abatidas e a devastao atual da biodiversidade. A entra a dimenso tica do conhecimento, que envolve o cuidado, o respeito e o amor por tudo o que existe e vive, mas somente se efetiva mediante uma verdadeira revoluo da mente e do corao, sem a qual, segundo Boff, o mundo vai de mal a pior. Desta forma, a construo de uma matriz holstica requer repensar os moldes da racionalidade dominante, tcnico-instrumental, que visa mensurar, calcular racionalmente os processos e dominar a natureza.

    Conforme Silva (2006), para que haja a transformao da realidade semirida se faz necessria uma nova racionalidade que se constitua em imperativo fundamental para a sustentabilidade do desenvolvimento. Uma racionalidade que seja tica, permeada por valores, teorias e orientaes de base ecolgica, que in uencie nas mudanas comportamentais das pessoas e nas polticas de desenvolvimento adotadas pelos pases e em escala mundial. E Leff (2000) entende que esta dinmica aponta para o incio de um processo de construo de uma nova racionalidade ambiental em curso.

    Para Ricardo Timm de Souza (2004, p. 23), no h questo tica, ou seja, no h questo humana, que no seja uma questo ecolgica, assim como no h questo ecolgica que no seja, por sua prpria essencialidade ecolgica, tambm uma questo humana. Isso indica que para se pensar a tica e uma racionalidade tica requer-se, como ponto de partida, uma viso ecolgica, na qual o humano se relacione, aja e construa o sentido da sua existncia. Esta a condio que permite que os humanos se relacionem entre si e com tudo e todos os que os cercam. Nesse processo, o universo dos mltiplos existentes se constitui no em uma espcie de conjunto infi nito de elementos analisados e calculados por uma racionalidade instrumental, mas pelas relaes que esses mltiplos existentes estabelecem mutuamente em seu conjunto na construo de sentido que so capazes (ou no) de captar, ao mesmo tempo em que se subverte a racionalidade instrumental pela superao de sua tentativa totalizadora de retirar de cada coisa a sua essncia. Assim, a racionalidade tica se confi gura como uma dimenso tica da prpria realidade, isto , implica em quebrar os espelhos que confi guram o sedutor quadro das re exes que alimentam a iluso da infi nitude, quando, na verdade, se est lidando e tratando de coisas fi nitas (Souza, 2003, p. 21-24).

  • Transio paradigmtica na convivncia com o Semirido - 27

    Esta racionalidade tica emerge como crtica racionalidade econmica, que provoca a deteriorao ambiental e a degradao dos valores humanos. Trata-se de uma crise civilizatria que traz novas exigncias de correo no sistema valorativo, [...] baseada na conscincia da fragilidade e fi nitude da terra [...] e na autocompreeenso radical do vnculo de pertinncia do homem natureza (Bartholo Jnior, 1984, p. 80). Isto , h que se romper com a iluso de infi nitude do universo, para, ento, a partir de um olhar crtico, da potncia de uma racionalidade tica, repensar valores, hbitos, prtivas e aes do humano com o meio no qual se vive e se relaciona.

    Esta racionalidade tica, por compreender o ecolgico como tico e o problema tico estritamente ligado ao ecolgico - haja vista que a tica precisa ter um espao de relacionalidade onde o humano se situa - no pode prescindir de considerar as diferentes realidades socioambientais, valorizando a diversidade sociocultural dos povos do Semirido. No se trata, mais uma vez, de um pensamento nico e totalizador que procura homogeneizar as distintas realidades e trajetrias dos povos. Para dar conta disso, faz-se necessria a contextualizao cultural a partir da qual possvel resgatar e construir, de forma dialgica, novos valores e implementar novas prticas de convivncia. Contudo, conforme mencionado acima, h que se reconhecer que as mudanas culturais, enquanto transies paradigmticas, envolvem disputas por posies que, em boa medida, resultam de um processo desencadeado em longo prazo. Conforme Boaventura de Souza Santos (2001, p. 19),

    a defi nio da transio paradigmtica implica a defi nio das lutas paradigmticas, ou seja, das lutas que visam aprofundar a crise do paradigma dominante e acelerar a transio para o paradigma ou paradigmas emergentes. A transio paradigmtica um objetivo de muito longo prazo.

    A convivncia manifesta uma mudana na percepo da complexidade territorial e possibilita resgatar e construir relaes de convivncia entre os seres humanos e a natureza, tendo em vista a melhoria da qualidade de vida das famlias sertanejas. Esta nova percepo elimina as culpas atribudas s condies naturais e possibilita enxergar o Semirido com suas caractersticas prprias, seus limites e potencialidades. Nesse sentido, o desenvolvimento do Semirido est estreitamente ligado introduo de uma nova mentalidade em relao s suas caractersticas ambientais e a mudanas nas prticas e no uso indiscriminado dos recursos naturais.

    Conforme Silva (2006, p. 226), o desafi o fundamental a ser dado s novas orientaes de desenvolvimento sustentvel no Semirido brasileiro o

  • 28 - CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO BRASILEIRO: Autonomia e Protagonismo Social

    de construir o sentido da convivncia. Este autor (2006, p. 226-264) delineia e apresenta cinco imperativos fundantes que confi guram o sentido da convivncia. O primeiro aspecto relevante a convivncia com o meio ambiente, mediante o manejo e uso sustentveis dos recursos naturais num ecossistema, sem inviabilizar a sua reproduo, em vista do equilbrio do espao comum vivido.

    Um segundo sentido importante a economia da convivncia, que remete combinao dos princpios e valores da convivncia com a viabilizao das atividades econmicas necessrias ao desenvolvimento sustentvel. Na dimenso econmica, a convivncia consiste na capacidade de aproveitamento sustentvel das potencialidades naturais e culturais em atividades produtivas e apropriadas ao meio ambiente. Isto , so as prticas e mtodos produtivos que devem ser apropriados aos ambientes.

    O terceiro sentido o da convivncia com a qualidade de vida, expresso na possibilidade de se viver bem com os outros seres em um lugar. A convivncia com o Semirido signifi ca uma nova perspectiva do desenvolvimento, capaz de visualizar a satisfao das necessidades fundamentais como condio de expanso das capacidades humanas e da melhoria da qualidade de vida, concebida como reduo das desigualdades, da pobreza e da misria.

    Um quarto fator diz respeito dimenso da cultura da convivncia. Esta requer a valorizao e a reconstruo dos saberes da populao local sobre o meio em que vive, suas especifi cidades, fragilidades e potencialidades. Os processos formativos, sistemticos e participativos, so fundamentais para o resgate e a construo de prticas alternativas. Ou seja, a dimenso cultural no que tange formao de uma conscincia sobre a realidade local e sobre as formas apropriadas de conceber, compreender e incidir em uma determinada realidade socioambiental.

    O quinto e ltimo aspecto que corrobora o fortalecimento do sentido da convivncia refere-se dimenso poltica. A convivncia emerge e se confi gura como uma proposta poltica de mobilizao da sociedade e do Estado brasileiro para a implementao de polticas pblicas apropriadas ao desenvolvimento sustentvel na regio semirida. Conforme Carvalho (2012, p.134), essa territorializao da convivncia que est em construo um processo de afi rmao da ideia-projeto, que vai se manifestando atravs das aes para a gua, terra, produo, educao e uma srie de outras demandas. E nesse mbito h que se destacar as iniciativas de organizao e mobilizao da sociedade civil, por meio de redes de movimentos e organizaes sociais, que propiciam a disseminao dos valores sociais da convivncia com o Semirido e pressionam pela melhoria de suas condies

  • Transio paradigmtica na convivncia com o Semirido - 29

    econmicas e socioculturais. Ao mesmo tempo aponta para a necessidade de polticas pblicas permanentes e apropriadas que superem as estruturas legitimadoras de desigualdades, de concentrao de terra, renda e gua e favoream a expanso das capacidades humanas e dos grupos e organizaes locais e regionais.

    Finalmente, cabe realar que essa transio paradigmtica fundada na racionalidade da convivncia e em um desenvolvimento com qualidade de vida no Semirido brasileiro requerem a combinao de um conjunto de aes sociais, econmicas, culturais e polticas, articuladas com a disseminao e a afi rmao de valores e prticas de igualdade e respeito dignidade de cada ser humano e dos demais seres vivos. Dentre essas aes pode-se destacar: a democratizao e o acesso gua de qualidade e em quantidade sufi ciente para o consumo humano e para a produo alimentar; o acesso terra aos que dela necessitam para tirar seu sustento; a promoo de uma educao contextualizada que possibilite conhecimentos adequados convivncia com essa realidade; o incentivo s atividades produtivas apropriadas, com prticas agrcolas e no agrcolas que contribuam para melhorar a renda e garantir a segurana alimentar e nutricional; e o acesso aos servios bsicos, que viabilizem a satisfao das necessidades fundamentais da populao sertaneja (Silva, 2006). Requer, ainda, a introduo de uma racionalidade tica - que subverta a lgica tcnico-instrumental que mensura e domina o outro e a natureza para fi ns economicistas e tenha como imperativo uma viso holstica da convivncia respeitosa e baseada em relaes de reciprocidade entre os humanos e a natureza.

    Consideraes nais

    Ao trazer-se esta abordagem sobre transio paradigmtica e racionalidade da convivncia cabe esclarecer que no se pretende fazer sua aplicao direta ao contexto do Semirido brasileiro. Pretende-se, isto sim, lanar luzes que possibilitem ampliar os olhares e a compreenso do novo que emerge nas duas ltimas dcadas na regio semirida, a partir das dinmicas organizativas e sociais que confi guram novas formas de conceber e desenvolver aes em torno da gua, da terra, da produo, da educao e de outras demandas que se expressam como a afi rmao de uma ideia-projeto que d um novo sentido convivncia com o Semirido e confi gura traos identitrios do povo em seu territrio.

    Permanece aberta a questo se tais concepes e aes, que emergem como pequenas rupturas e brechas desde a margem do pensamento dominante, apontam para uma transio paradigmtica e uma racionalidade da convivncia com o Semirido ou no. Eis um desafi o posto s organizaes e movimentos sociais da regio, aos formuladores de polticas pblicas e aos estudiosos empenhados

  • 30 - CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO BRASILEIRO: Autonomia e Protagonismo Social SRIE COOPERAO BRASIL-ESPANHA: ACESSO GUA E CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO

    em compreender e fundamentar o alcance das mudanas e transformaes que vm ocorrendo a partir da constatao das anomalias do modelo tradicional de desenvolvimento adotado na regio semirida, da formulao de alternativas a esse modelo e da ousada opo pela implementao de um conjunto de iniciativas que inclui as tecnologias sociais que esto possibilitando novos parmetros de vida e dignidade ao povo do Semirido.

    Referncias

    BARTHOLO JNIOR, Roberto S. A crise do industrialismo: genealogia, riscos e oportunidades. In: BURSZTIN, Marcel; LEITO, Pedro e CHAIN, Arnaldo (Org.) Que crise esta? So Paulo: Brasiliense, 1984. p. 69-101.

    BOFF, Leonardo. Proteger a terra-cuidar da vida: como escapar do fi m do mundo. Rio de Janeiro: Record, 2010.

    CARVALHO, Luzineide Dourado Carvalho. Natureza, territrio e convivncia: novas territorialidades no Semirido Brasileiro. Jundia: Paco Editorial, 2012.

    CASTRO, Anna Maria de. (Org.) Fome, um tema proibido: ltimos escritos de Josu de Castro. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003.

    CASTRO, Josu de. Geogra a da fome. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003.

    KUHN, S. Thomas. A estrutura das revolues cient cas. 5 ed. So Paulo: Perspectiva, 1998.

    LEFF, Enrique. Ecologia, capital e cultura: racionalidade ambiental, democrtica, participativa e desenvolvimento sustentvel. Blumenau/SC: EDIFURB, 2000.

    RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 45 edio. Disponvel em: http://manasbrodas.fi les.wordpress.com/-graciliano-ramos.pdf. Acesso: agosto de 2012.

    SANTOS, Boaventura de Souza. Crtica da razo indolente: contra o desperdcio da experincia: para um novo senso comum: a cincia, o direito e a poltica na transio paradigmtica. 3. ed. So Paulo: Cortez, 2001.

    SILVA, Roberto Alves Marinho da. Entre o combate seca e a convivncia com o Semi-rido: transies paradigmticas e sustentabilidade do desenvolvimento. Braslia DF, 2006. [Tese de Doutorado Universidade de Braslia UNB]. In: http://repositorio.bce.unb.br/bitstream/Roberto/Marinho/Alves/da/Silva.pdf. Acesso em: janeiro de 2013.

    SOUZA, Ricardo Timm de. tica como fundamento: uma introduo tica contempornea. So Leopoldo: Nova Harmonia, 2004.

    SOUZA, Ricardo Timm de. Sobre a construo de sentido: o pensar e o agir entre a vida e a fi losofi a. So Paulo: Perspectiva, 2003.

  • SRIE COOPERAO BRASIL-ESPANHA: ACESSO GUA E CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO

    O Semirido Brasileiro:

    uma regio mal compreendida

    Haroldo Schistek1

    1Telogo pela Universidade de Salzburg, ustria, agrnomo pela Universidade de Agricultura em Viena e a Faculdade de Agronomia do Mdio So Francisco de Juazeiro, Bahia. idealizador do Ins-tituto Regional da Pequena Agropecuria Apropriada (IRPAA), com sede em Juazeiro, fundado em 1990. Integra a Coordenao Coletiva do IRPAA como coordenador administrativo e trabalha com assessoria em recursos hdricos, desenvolvimento rural, beneficiamento de frutas nativas e ques-tes agrrias. ([email protected])

  • 32 - CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO BRASILEIRO: Autonomia e Protagonismo Social

    Seca no Semirido?

    Para iniciar este dilogo eu gostaria de fazer uma correo terminolgica. O termo seca, a meu ver, no cabe bem no contexto climtico do Semirido. A palavra seca quer caracterizar uma situao climtica excepcional, de baixa pluviosidade, numa regio que normalmente apresenta chuvas regulares. Esta defi nio no se aplica ao Semirido brasileiro (SAB). Os anos de mais baixa precipitao no devem assustar a ningum, ao contrrio, devem ser considerados como fatores de produo. Quando um ano de baixa precipitao assusta a sociedade, os governos dos estados e em Braslia, isto unicamente um sinal de que somos at hoje uma regio mal compreendida. Para a natureza, os seus animais e plantas, um ano como o de agora, no nenhuma catstrofe. Em milhares de anos estes souberam se adaptar e criar resistncia. Uma catstrofe, isto sim, a falta de preparo dos nossos governos. Tiveram trs dcadas, desde a ltima grande seca, para no, mais uma vez, serem apanhados de surpresa. Assim, mais uma vez precisam tomar medidas de emergncia, gastar somas vultuosas para evitar maiores prejuzos econmicos e mortes na populao.

    Depois de alguns anos que rgos governamentais comearam a usar o termo convivncia com o Semirido (CSA), voltou agora com toda fora a fala antiga do combate seca. Parece que o uso da CSA era mais um modismo, para agradar as ONGs, mas no fundo o imaginrio continuava o do combate.

    Alis, o termo combate seca foi escolhido com muita inteligncia. Ele quer mostrar a grande preocupao e a garra do governo com uma calamidade. Ele investe milhes em dinheiro mas infelizmente a natureza contra. Embora devesse chover, novamente vem uma seca. No caso de um incndio a ao do governo funciona. Envia os carros com escada Magirus, os bombeiros com suas grandes mangueiras...

    Pois , no se pode combater ecossistemas, variaes climticas, direo de ventos e o sol. preciso haver polticas pblicas que faam a regio produzir de maneira segura para si e para o mercado, viver sem catstrofe, exatamente com este clima que temos.

    Por outro lado, tambm no convm usar o termo convivncia com a seca. Seca possui um atributo negativo, de sofrimento. No isso que queremos,

  • O Semirido Brasileiro: uma regio mal compreendida - 33

    viver com sofrimento e com falta de recursos. No! Queremos conviver com o clima que existe aqui h 8 ou 10.000 anos, onde, com alguns anos de muita chuva e outros com pouca, a natureza criou um sistema ecolgico nico, de grande riqueza e variedade. Quem conhece a caatinga de uma ou duas geraes atrs, fala da vegetao fechada, dos seus animais, das seriemas, veados, das nuvens de revoada, dos bandos barulhentos de periquitos. Quem, hoje em dia, tem notcia de uma ona suuarana?

    Para entender mais sobre nossa regio, o que ela oferece, onde fi cam os limites e quais so as propostas para uma vida econmica estvel, quero destacar em primeiro lugar alguns elementos.

    Sobre o clima no Semirido

    A estiagem recente no Semirido brasileiro se enquadra no comportamento previsvel do tipo climtico, com suas chuvas irregulares, no tempo e no espao geogrfi co. Quer dizer, nunca se sabe quando se ter outra chuva nem em que rea ela cair. O padro macroclimtico prev somente o perodo provvel da chuva. Por exemplo, na regio de Juazeiro ela comea no incio de dezembro e se estende at fi ns de maro. Mas nunca se sabe quando iniciar mesmo o perodo chuvoso, nem quando ser a ltima chuva. E tem mais: a irregularidade muito mais acentuada em certos anos. No novidade1, pois desde a grande seca dos anos 1980 patente que acerca de cada 26 anos h uma estiagem forte.

    So muitos os ingredientes que fazem chover ou que impedem a chuva no Semirido. A Zona de Convergncia Inter Tropical, el nio, la nia, frentes frias do sul, a temperatura da gua da poro do Oceano Atlntico que se encontra entre o Nordeste do Brasil e a frica. Alm das contribuies feitas pelos humanos, atravs de desmatamentos, plantios extensos de pastos e gros inadequados, trazem consequncias, uma vez que a terra despida da sua roupa de caatinga aquece o ar demasiadamente e, por sua vez, empurra as nuvens em alturas inadequadas.

    Podemos dizer que a cobertura intacta da Caatinga o regulador da temperatura e da chuva, mantendo a fertilidade das terras e amenizando as in uncias naturais sobre o clima. O clima semirido se instalou entre 8 e 10.000 anos atrs e o comportamento das chuvas mais documentado pelos viajantes e 1 No uma seca inusitada, mas prevista de longas datas pelos estudos do Instituto de Atividades Espaciais (IAE) de So Jos dos Campos. Esta previso foi chamada de Prognstico do Tempo a Longo Prazo e baseia-se em interpolaes e pesquisas cuidadosas fundamentadas no histrico pluviomtrico da regio nordeste. A cada 26 anos ocorre uma grande seca, como aconteceu a de 1979/84 quando o DNOCS e outros rgos dos estados nordestinos receberam antecipadamente relatrios sigilosos analisando e alertando para o que poderia ocorrer. No um mo-delo matemtico na acepo do termo, mas um Mtodo Estatstico de Correlao, estudo que passou a merecer toda a credibilidade dos tcnicos e dos poderes administrativos. Dr. Manoel Bomfi m.

  • 34 - CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO BRASILEIRO: Autonomia e Protagonismo Social

    padres portugueses. A populao nativa, porm, adaptou-se perfeitamente s chuvas irregulares, cobrindo toda rea do Semirido com suas aldeias e caminhos migratrios.

    Sobre a ocupao do Semirido

    A vida da populao indgena integrada ao ambiente Semirido foi brutalmente interrompida pela invaso dos portugueses. Assim, o grande mal que se fez ao Semirido no vem de agora ou do sculo passado. Vem desde a primeira invaso pelos portugueses e tem tudo a ver com a monocultura de cana de acar no litoral nordestino. O gado, indispensvel para o manejo da cana de acar e para a alimentao da populao humana, num certo momento, numa poca em que no existia o arame farpado, no podia mais fi car prximo s plantaes e foi, por decreto governamental, empurrado para o interior. E j em 1640 se estabeleceu o primeiro curral para o gado bovino no mdio So Francisco, dando assim incio a uma sequncia at hoje mantida: uma poltica concebida fora da regio, introduzindo algo no adaptado ao clima, servindo a interesses estranhos. No demorou e se formaram dois imensos latifndios que ocuparam toda a regio desde o Maranho at Minas Gerais: os morgados da Casa da Torre e da Casa da Ponte. Para o povo s existia lugar com o vaqueiro, que mantinha sua rocinha para alimentar a famlia, mas ele nunca poderia ser dono daquele pedao de cho. Essa a origem da agricultura familiar na regio.

    Estamos numa fase de nova invaso do SAB, que mais devastadora que a dos portugueses. So os grandes projetos que expulsam a populao, destroem a caatinga, exploram os bens naturais, sem maiores benefcios para as populaes locais, causando desertifi cao. A exemplo das mineradoras, grandes projetos energticos e de irrigao se instalam na regio e ampliam a concentrao de renda e o xodo rural. Para os grandes fi ca o lucro e para o povo as bolsas, a perda das terras e o subemprego. Prometem emprego para um povo que no necessita de emprego, pois j tem seu ganho de vida, como homem livre na agricultura e na criao de animais, mas ele necessita de segurana na terra e a terra, em tamanho adequado para as condies de semiaridez.

    O que a convivncia com o Semirido (CSA)?

    Aprender da natureza para viver bem no Semirido

    Durante a ltima grande seca de 1979 a 1983 fui convidado a acompanhar uma equipe de reportagem para retratar os acontecimentos no serto nordestino.

  • O Semirido Brasileiro: uma regio mal compreendida - 35

    Partimos de Recife, viajamos longitudinalmente pelo estado da Paraba e atravessamos Pernambuco, em direo Bahia. Foi assustador o que vimos. Levas de gente nas estradas, foges a lenha nas casas sem nenhuma brasa, armazns da Companhia Brasileira de Alimentos (COBAL) saqueados e frentes de servio fazendo estradas, que a primeira chuva aps estarem prontas as levaria, ou barragens em terras de fazendeiros. Mas quando atravessamos a ponte sobre o rio So Francisco e nos dirigimos ao distrito de Massaroca, no municpio de Juazeiro pareceu-nos que tnhamos mergulhados em outro mundo. A feira abastecida de tudo o que se precisa: farinha, feijo, rapadura, roupas e chocalhos.... as rvores em torno da praa estavam ocupadas pelas cordas dos jegues e cavalos amarrados e o povo alegremente festejando seu dia de feira.

    Um dos agricultores nos convidou para irmos at a casa dele para almoar. Relatamos a ele que por onde passamos s vimos fome e misria. E lhe perguntamos: aqui choveu por acaso? Para a roa choveu nada! Foi a resposta. S sobrou um pouco de mandioca na roa. Nem milho, nem feijo. Mas temos o criatrio (cabras e ovelhas) e o pasto para eles a caatinga. Aqui uma grande rea de Fundo de Pasto. Aqui ningum passa necessidade.

    Momentos como esse relatado pelo agricultor onde almoamos ajudaram-nos a descobrir e defi nir o novo paradigma da convivncia com o Semirido, jogando para o lixo da histria o combate seca. E no foi muito diferente agora: numa conversa telefnica com o presidente da Cooperativa Agropecuria Familiar de Canudos, Uau e Cura (COOPERCUC), que benefi cia frutas nativas como umbu e maracuj do mato, ele me contou que eles conseguiram facilmente atingir e at ultrapassar a meta do atendimento de todas as encomendas. Foram 190 toneladas de frutas nativas da caatinga. Em 2012 foram inauguradas trs mini-fbricas para o benefi ciamento de frutas nativas, dentro das medidas do programa de ATER e do recaatingamento. As inauguraes foram eventos festivos, com churrasco de carne de bode gordo, que reuniram a vizinhana dos povoados interioranos. Os baldes cheios de umbu maduros davam brilho festa. Os que vieram de fora se admiravam e s faltava perguntarem: mas, onde est a seca da qual se fala tanto? So comunidades tradicionais, que tiram seu sustento bsico da criao de animais de mdio porte nas quais a caatinga preservada o seu fundamento.

    O Fundo de Pasto um jeito que o povo encontrou para viver bem no Semirido, atravs de sua organizao em comunidades de Fundo de Pasto. Esta uma forma tradicional de posse da terra no Semirido, que se originou nos tempos das sesmarias e atende s caractersticas de preservao e viabilidade econmica. As reas de pasto no so individualizadas, nem possuem cercas para separar cada propriedade.

  • 36 - CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO BRASILEIRO: Autonomia e Protagonismo Social

    Os animais de todos os sitiantes pastam livremente em toda a rea, deslocando-se para as manchas verdes onde choveu recentemente. Com isso, eles evitam o super pastoreio e garantem animais bem alimentados ao longo do ano. Organizando-se na terra dessa forma coletiva, a rea necessria por famlia pode ser bem menor, entre 80 e 100 hectares, mesmo na Depresso Sertaneja. A rea do Fundo de Pasto fi ca sob a responsabilidade de uma associao, composta pelos prprios proprietrios. Temos belos exemplos de como essa forma organizacional eleva a conscincia ambiental e protege a caatinga, na regio de Canudos. Infelizmente, o Fundo de Pasto somente possui respaldo legal no estado da Bahia e, mesmo aqui, s em algumas reas restritas. Porm, o processo de escriturao est parado h vrios anos.

    No podemos generalizar esta situao benigna. Pois, a maioria dos agricultores, por circunstncias histricas e polticas, obrigada a sobreviver sobre uma terra pequena e depender principalmente do plantio da roa ambos os casos so inadequados para a realidade do semirido. Isso mostra um erro secular no direcionamento das polticas pblicas para o plantio de roas s para os que tm pouca terra.

    Tamanho apropriado da propriedade da terra para o clima Semirido

    Todos falam agora da falta e da m distribuio da gua, mas a questo de fundo, na verdade, a falta e a m distribuio da terra!

    Precisamos, assim, mais uma vez insistir num fato que muitos preferem no mencionar, por ser incmodo, por tocar em privilgios de uma minoria e de ser perigoso e, em muitos casos, at mortal. a questo da terra, ou melhor, do tamanho da propriedade. Um estudo da Embrapa Semirido afi rma2 que nas reas da grande Depresso Sertaneja, uma das mais secas do Semirido, uma propriedade familiar necessita de at 300 hectares de terra para ser sustentvel, sendo a atividade principal a criao de caprinos e ovinos. Assim, a principal forma de preservar o nosso bioma, a caatinga, garantir s famlias um tamanho de terra adequado s condies de semiaridez. Quanto menor a quantidade de chuva na regio, mais terra se precisa para viver. Ento, qual a realidade? Propriedades de dois, trs ou dez hectares, enquanto no outro lado da cerca uma nica pessoa possui dois, trs ou dez mil hectares? preciso elaborar uma proposta de reforma agrria apropriada s condies socioambientais do semirido. Em muitos casos as famlias possuem terra, so da terra, mas precisam dela em tamanho sufi ciente para terem uma produo

    2 FILHO, C. G., LOPES, P. R. C., SILVA, G. C. P. Elementos para formulao de um programa de convivncia com a seca no Semirido brasileiro. Embrapa, Petrolina 2003

  • O Semirido Brasileiro: uma regio mal compreendida - 37

    estvel, garantirem reservas e assim suportarem as instabilidades climticas. Deste modo, poderamos esquecer para sempre os programas famigerados como, carros-pipa, cestas de alimentos, seguro safra e, ultimamente, a bolsa estiagem.

    Evidentemente, o tamanho da propriedade necessria para se viver bem no semirido varia de regio para regio, depende da chuva local, da fertilidade do solo e da formao topogrfi ca. Mas sempre deveria ser maior do que aquele que, de fato, as famlias possuem, ou que o INCRA disponibiliza atravs dos assentamentos sob sua incumbncia ou aquele que alcanvel fi nanceiramente pelo Banco da Terra.

    Plantas adaptadas

    O Semirido dispe de uma grande variedade de plantas adaptadas, sejam nativas ou exticas, mas de climas homlogos, tanto forrageiras como para o consumo humano, que se caracterizam por sobreviverem a um estresse hdrico maior, causado pela demora da prxima chuva, sem perderem produtividade. So plantas que sabem esperar (como o sorgo); ou plantas que possuem razes profundas, de vrios metros (o que no o caso do to difundido feijo de arranca, que mal ultrapassam os 20 cm); ou plantas perenes ou semi-perenes. Estas se defendem melhor, pois a fase mais crtica para a sobrevivncia de uma planta o perodo logo depois do seu nascimento, no qual ela precisa estabelecer seu sistema radicular, seu caule e suas folhas. Uma planta perene ou semi-perene j possui tudo isso. Um pouco de chuva j o sufi ciente para ela reativar seu metabolismo, criar novas folhas e proceder para uma nova orao e frutifi cao. O feijo guandu um bom exemplo.

    A pluri-anuidade

    Tudo no semirido diferente do que consta nos livros agronmicos, o que se l nos manuais dos bancos e o que se v na execuo de obras hdricas. Observando a precipitao ao longo dos anos, percebe-se uma grande variao de ano em ano, mas somando vrios anos a mdia fi ca razovel. A caatinga com suas plantas e animais se adaptou perfeitamente a esta variabilidade. Elas acumulam reservas de gua e nutrientes, umas possuem razes profundas e potentes para alcanar a gua, outras as possuem na or da terra para captar at uma garoa, produzem e reproduzem menos em anos mais secos, mas no morrem por causa de um ano assim.

    As atividades introduzidas pelos humanos no Semirido precisam atender ao conceito da pluri-anuidade. A reserva de gua precisa ser planejada, no para oito meses, mas para dois anos ou mais. As forragens no podem se esgotar dentro de poucos meses ou de um ano, mas precisam ser produzidas nas propriedades. Por sua vez, o banco no pode esperar que o retorno do fi nanciamento acontea

  • 38 - CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO BRASILEIRO: Autonomia e Protagonismo Social

    depois da estao chuvosa. Todos os crditos agrcolas e pecurios precisam ser repensados conforme esta pluri-anuidade.

    Educao contextualizada

    S haver convivncia com o Semirido com educao contextualizada. No se pode pensar o semirido brasileiro com seu bioma caatinga de forma isolada, com propostas setoriais. A educao escolar tradicional tem contribudo muito para divulgar uma imagem de inviabilidade econmica, feiura e morte. Ainda recentemente encontramos um livro didtico com um captulo sobre os biomas brasileiros que mostrava uma foto da caatinga nos meses da estiagem, com a legenda inacreditvel: Caatinga morta. Na verdade, os arbustos e rvores retratados somente estavam em hibernao, cheios de seiva e nutrientes, esperando apenas a primeira chuva para se vestirem novamente em abundantes roupas de folhas e ores. Ou seja, precisamos de uma educao contextualizada, que leve o contexto da vida dos alunos, com as plantas da caatinga e as casas de adobe para dentro da sala de aula. Temos experincias magnfi cas nesse sentido, com bons materiais didticos e os alunos que prestam ateno de maneira inacreditvel e as faltas s aulas quase no so registradas. Precisamos que o Ministrio da Educao faa um giro de 180 graus em termos de polticas educacionais, pois no somente necessrio que exista material didtico apropriado. indispensvel que a formao de professores nas universidades seja, desde o incio, no sentido da contextualizao e que a formao continuada do corpo docente acompanhe a proposta. A Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional nos d respaldo total nesse sentido.

    importante ressaltar que a educao contextualizada tem princpios universais e deve ser trabalhada em todas as realidades, no ser restrita aos ambientes rurais, mas deve alcanar tambm as escolas nas cidades, sedes dos municpios onde muitos dos alunos da rea rural hoje estudam, por fora da legislao das escolas nucleadas. Alm disso, o bioma caatinga circunda todas essas aglomeraes urbanas, muitos dos alunos possuem razes nele e precisam ter a oportunidade de receber as informaes corretas.

    Outro aspecto importante e necessrio que a educao contextualizada seja pautada pelas universidades, nos diversos sistemas de assistncia tcnica e extenso rural (ATER) e, enfi m, em todos os espaos educacionais.

    Gnero e gerao no Semirido

    A proposta de convivncia com o Semirido busca, tambm, re etir sobre as relaes entre as pessoas e delas com o meio ambiente. Em se tratando das relaes

  • O Semirido Brasileiro: uma regio mal compreendida - 39

    pessoais, no podemos deixar de fora a abordagem de gnero. Essa discusso fundamental em qualquer projeto de desenvolvimento no Semirido, principalmente porque busca compreender as relaes histricas construdas culturalmente entre homens e mulheres. Historicamente, a sociedade tem sido estruturada sobre relaes desiguais de gnero, que deixaram as mulheres numa situao de subordinao e opresso em relao aos homens nos espaos de deciso, no trabalho, na famlia e na poltica. O desafi o nesse processo trabalhar uma nova concepo nas relaes entre homens e mulheres, que possibilitem a participao efetiva das mulheres na tomada de decises e na construo de polticas de desenvolvimento. Ou seja, construir as relaes entre homens e mulheres a partir dos princpios da igualdade, da equidade e da justia.

    Assegurar a abordagem de gnero ao se trabalhar a proposta de convivncia com o Semirido implica em romper com a discriminao social e discutir com igualdade o papel de cada pessoa no desenvolvimento humano e sustentvel dessa regio. Nesse processo busca-se garantir o direito da mulher aos recursos como: abastecimento de gua e alimentos em quantidade e qualidade; acesso terra, crdito, trabalho e renda; formao profi ssional, escolarizao, sade, mercado, controle e gesto de benefcios sociopolticos.

    Uma outra abordagem importante nessa proposta a discusso sobre gerao, especialmente com o foco voltado para a juventude. O mote principal pensar no processo de formao da juventude para que ela possa conhecer melhor a sua realidade e, num processo tcnico-educativo, possa socializar esses conhecimentos junto s famlias e comunidades locais e do seu entorno. A formao para a juventude, a partir dos princpios da convivncia com o Semirido, traz vrias possibilidades e oportunidades para se trabalhar novos rumos para a educao e a organizao comunitria, com seu envolvimento nos eventos socioculturais, seu crescimento pessoal/individual e coletivo/comunitrio, sua efetiva participao na construo e na implementao de polticas sociais pblicas e inclusivas.

    Cinco linhas de luta pela gua

    Uma regio semirida precisa diversifi car as fontes de gua, conforme sua utilizao fi nal. Mas preciso estarmos atentos sua formao geolgica. teimosia escavar reservatrios profundos em reas de calcrio ou arenito e querer poos com gua em quantidade com subsolo cristalino (que caracteriza 80% do SAB), onde no h lenol fretico. Apontamos cinco linhas de luta pela gua que valem para o Semirido, desde que observadas as variaes conforme a geologia. Sua realizao precisa ser acompanhada pela preocupao de conquistar o tamanho da propriedade da terra adequado s condies de semiaridez. So estas as linhas:

  • 40 - CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO BRASILEIRO: Autonomia e Protagonismo Social

    A gua de beber, deve vir de preferncia da captao da gua da chuva em cisternas, que sejam construdas no p das casas, dando um acesso confortvel gua aos moradores.

    A gua para o uso domstico, banho, lavar loua, roupas e para os animais, fornecida por meio de tanques, caxios, barreiros trincheira, cacimbas e poos.

    A gua para a agricultura, suprida por meio de barragens subterrneas, irrigao de salvao (cisterna ou barreiro), captao em estradas para irrigao de rvores frutferas, arao em curva de nvel, com sulcos para armazenar gua de chuva in situ; uso de esterco e cobertura seca para reter a umidade do solo para as plantas; e cultivo de variedades adaptadas s condies climticas.

    A gua de emergncia para os anos de longa estiagem, fornecida por poos profundos e pequenas barragens estrategicamente distribudas; este ponto se refere a uma soluo transitria, enquanto os trs pontos anteriores no forem completamente alcanados.

    A gua para o meio ambiente, que requer a proteo de olhos dgua e de mata ciliar, a preveno de poluio de aguadas, no desmatar a caatinga nem queimar as roas; a caatinga intacta e o solo grumoso proporcionam uma boa infi ltrao da gua de chuva, evitando eroso; alm disso, preciso o tratamento do esgoto, o reuso e a reciclagem da gua que pode ser utilizada na irrigao de capineiras e fruteiras.

    Esta viso deve ser a base para a elaborao de Planos de gua Municipais, realizados em todos os municpios do Semirido e elaborados pela sociedade civil e as administraes pblicas. preciso construir propostas adequadas para o abastecimento hdrico dos ncleos urbanos do semirido.

    importante, neste ponto, falar da transposio do rio So Francisco. Esta uma obra que visa benefi ciar grandes empresas e empreendimentos, abastecer cidades litorneas, mas no tem nada a ver com matar a sede do nordestino como a propaganda ofi cial martela. A divulgao dos supostos benefcios (que no fala da situao precria do rio So Francisco) parece muito efi ciente. Recebemos h algum tempo uma mensagem eletrnica de gente do sul do Brasil dizendo que estamos fora da realidade por estarmos contra uma obra que fi nalmente vai resolver o problema da gua para o nordestino. Para responder a tais afi rmaes podemos lembrar as palavras um lavrador de Pernambuco, que falou mais ou menos assim: para resolver os problemas do Semirido no precisamos apelar para o So

  • O Semirido Brasileiro: uma regio mal compreendida - 41

    Francisco, o So Pedro dispe de gua mais que sufi ciente para sermos uma regio prspera.

    Como prosseguir para no sermos pegos de surpresa outra vez?

    Assistimos, neste ano, mais um desfi le de carros-pipa (s no municpio de Casa Nova, no Norte da Bahia, 96 carros-pipa em servio simultneo), o ressurgimento com toda fora da indstria da seca agora enriquecida com novos elementos perversos - e lamentamos, mais uma vez, dcadas perdidas pelos governos nas quais poderiam ter dotado o Semirido com infraestruturas e polticas corajosas, para que nunca mais se repetisse algo como a seca dos anos 1980.

    No entanto, sabemos que para o povo agora a hora de cuidar da vida, providenciar carro-pipa, achar preo bom para os animais, procurar emprego para alimentar a famlia e ir atrs de subsdios do governo. So longos meses de sol quente, poeira e muitas caminhadas e viagens. Uma luta, uma batalha at chegar a prxima chuva. Mas, como em toda batalha, existe sempre o pensamento sobre o que ser depois. E o que podemos e devemos fazer para que nunca mais sejamos surpreendidos por uma situao como esta da estiagem que assola o semirido agora? Ou ser que depois das primeiras chuvas encherem as cisternas e os campos se tingirem de verde, pensaremos que nunca mais se repetir uma estiagem como esta?

    Com certeza se repetir e poder ser pior ainda se desmatamento e a concentrao da terra continuarem sem controle. Provavelmente, se poder juntar at um novo ingrediente: o aquecimento global poder acentuar a irregularidade e aumentar a evaporao da gua.

    Dez preceitos para a produo no Semirido

    O bioma caatinga a garantia para a vida do povo. o patrimnio nativo do Brasil e um bem que deve ser herdado de maneira intacta pelos fi lhos e netos. Onde a caatinga no existe mais, os efeitos de estiagens so muito mais devastadores. Precisamos estudar com profundidade o ecossistema do Semirido. A natureza nos quer ensinar, precisamos saber entender a sua fala e pr a suas mensagens em prtica. Eis os preceitos para uma produo sustentvel no Semirido:

    1. Tamanho da propriedade da terra: os zoneamentos agroecolgicos realizados pela Embrapa precisam, alm de mostrar o uso correto da terra, conforme o conjunto clima-solo, indicar tambm o tamanho de uma rea mnima para que uma propriedade seja vivel, mesmo em

  • 42 - CONVIVNCIA COM O SEMIRIDO BRASILEIRO: Autonomia e Protagonismo Social

    anos mais secos. Estes dados devem ser a base para a titulao de terras e assentamentos do INCRA e o acesso ao crdito bancrio.

    2. Priorizar sistemas descentralizados de abastecimento de gua, tendo a coleta da gua da chuva como ponto de partida.

    3. Perseguir a sustentabilidade para no ocorrer desertifi cao: evitar a criao de animais de maneira inadequada e imprprios para o Semirido, evitar a desnudao de grandes reas e plantas que no suportam o clima, alm da concentrao fundiria, que so as causas da desertifi cao.

    4. Recaatingamento para repor a vegetao e a riqueza da caatinga perdidas.

    5. Priorizar a produo animal de pequeno e mdio porte, pois o Semirido por excelncia uma regio de pecuria.

    6. Para manter a riqueza da caatinga e seu aproveitamento racional para a criao de animais e o extrativismo preciso haver o manejo correto, fazer reservas alimentares para os meses sem chuva e maiores do que para um ano, para no precisar comprar farelos na cidade; isso deve ser o ponto de partida, entre outros, para a Assistncia Tcnica e Extenso Rural.

    7. Em regies com microclimas ou nichos climticos, onde a agricultura pode ser indicada indispensvel a escolha de plantas que se adaptem s grandes irregularidades das chuvas. Porm, para que o agricultor tenha sucesso na venda de seus produtos preciso haver maior exibilidade por parte dos rgos de Estado em relao aos mecanismos de promoo de sua comercializao. Assim, o Seguro Safra poderia ser algo do passado, ou ento existiria somente para anos extremos.

    8. O extrativismo e o consequente benefi ciamento e comercializao de seus produtos, a exemplo do umbu, maracuj do mato e outros tem mostrado o grande potencial econmico e de preservao do bioma, quando a agricultura familiar assume a etapa da transformao dos produtos primrios. A incluso destes produtos nos programas locais de alimentao deve ser prioridade em todas as esferas governamentais. No h como tolerar que uma prefeitura compre doce de goiaba de pssima qualidade de um fornecedor do Rio Grande do Sul se na sua porta esto disponveis produtos locais, orgnicos e reconhecidos pela sua qualidade.

    9. Devido ao grande potencial da caatinga e a pouqussima expressividade