conversaÇÃo, gramÁtica e ensino da lÍngua … · quando escreveram suas frases no ... as formas...
TRANSCRIPT
2
Rio de Janeiro
2002
CONVERSAÇÃO, GRAMÁTICA E ENSINO DA LÍNGUA MATERNA.
CARLA DA COSTA ARAÚJO
Dissertação apresentada à Universidade Federal
do Rio de Janeiro como requisito parcial para a
obtenção do grau de pós-graduação Lato Sensu
em Língua Portuguesa.
4
AGRADECIMENTOS
A Todos os Professores organizadores do Curso efetuado. Ao Centro de Estudos de
Pessoal. Aos alunos do Instituto de Educação Carlos Pasquale, do Colégio Estadual
Dom Adriano Hypólito e do Colégio Vetor de Nilópolis e Mesquita. À família. Em
especial agradecimento a Deus, O Criador de todos nós.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO:............................................................................................................... 7
1. A GRAMÁTICA - AGENTE ORGANIZADOR DA LÍNGUA .............................. 8
1.1. Certo e o Errado - Dois Conceitos que Sempre Predominaram na Gramática
Tradicional........................................................................................................... 8
1.2. - O Segredo de Pandora que o Falante Desconhece........................................... 9
2. A LÍNGUA ESCRITA E SEU CARÁTER NOBRE .............................................. 10
2.1. Alguns Motivos que Explicam o Privilégio da Língua Escrita ........................ 11
3. HOMO LOQUENS-A IMPORTÂNCIA DA ORALIDADE ................................. 12
4. A INFLUÊNCIA DA ORALIDADE NA LÍNGUA ESCRITA ............................. 13
4.1. A Língua Oral- Uma Senhora de Vestido de Chita .......................................... 13
5. A GRAMÁTICA DA CONVERSAÇÃO - O LIAME ENTRE A ESCRITA E
FALA ....................................................................................................................... 14
5.1. Gramática Conversacional - Uma Disciplina não mais ignorada ..................... 15
5.2. Novos Conceitos Gramaticais a Serem Considerados...................................... 15
6. A INFLUÊNCIA DA ORALIDADE NA ESCRITA - ALGUNS EXEMPLOS
GARIMPADOS EM NOSSO COTIDIANO ......................................................... 16
7. ENSINO DA LÍNGUA MATERNA NAS ESCOLAS BRASILEIRAS ................ 24
8. CONCLUSÃO ......................................................................................................... 25
9. Referências Bibliográficas ....................................................................................... 26
7
INTRODUÇÃO
O presente trabalho objetiva demonstrar a importância da gramática conversacional
como disciplina renovadora e sua aplicação no cotidiano dos usuários da língua
portuguesa.
Desde o início da pesquisa, procurou-se estabelecer a diferenças existentes entre a
língua escrita e a falada e como a nova disciplina tenta conciliar tais diferenças. Tarefa
árdua, como pôde-se perceber, afinal as diferenças existentes entre as duas modalidades
lingüísticas, em diversas situações, parecem inconciliáveis, principalmente do ponto-de-
vista do falante, que possui verdadeira aversão às regras impostas pela linguagem
padronizada ensinada na escola, cujo paradigma é a linguagem escrita.
Mas, não se consegue definir Gramática Conversacional, sem definir, primordialmente,
o que é Gramática e quais são suas funções dentro de um idioma.Isto foi o primeiro
passo do trabalho em questão.
Posteriormente, as diferenças existentes entre língua falada e escrita foram abordadas,
pois não se deve falar do caráter conciliador da Gramática Conversacional se não forem
reconhecidos os aspectos dicotômicos entre essas duas modalidades lingüísticas.
Exemplos da influência da oralidade no código escrito também foram colhidos, ao
longo da pesquisa, comprovando ,assim, que a língua portuguesa é um ser vivo,
submetido a diversas mutações, muitas delas irrevogáveis.
A última etapa foi dedicada ao ensino da língua materna nas escolas brasileiras, terreno
ainda pouco cultivado pelas inovações da Gramática Conversacional.
Muito mais poderia ser dito a respeito do tema proposto, muito mais. Porque não há
nada como escrever sobre o nosso próprio idioma, responsável não só pela
sobrevivência de nossas raízes culturais, como também responsável pela nossa própria
sobrevivência, enquanto seres humanos.
8
CAPÍTULO I
A GRAMÁTICA - AGENTE ORGANIZADOR DA LÍNGUA
Há alguns atrás, no Instituto de Educação Carlos Pasquale, localizado no município de
Nilópolis, foi realizada uma experiência muito interessante com uma turma da 1ºsérie
do curso de Formação de Professores. O professor de língua portuguesa sugeriu aos
alunos que escrevessem como falavam, ou seja, eles deveriam esquecer as regras
impostas pelo sistema ortográfico oficial e reinventar um novo sistema ortográfico,
baseado unicamente na língua oral. O resultado surpreendeu não o professor,
logicamente, mas os alunos, que perceberam a enorme confusão ocasionada com seu
código escrito particular. Quando escreveram suas frases no quadro-negro, houve
completa discordância em relação à pronúncia de determinadas palavras. A conclusão
foi simples e imediata: se todos escrevessem como falavam, não haveria entendimento,
logo não haveria comunicação.
A experiência, a princípio simples, conseguiu esclarecer aos alunos a importância da
gramática como disciplina responsável pela organização e uniformização da língua.
Sem os princípios ou regras gramaticais, seria muito difícil a um idioma se organizar,
pois a linguagem oral, por si só, não seria suficiente para organizar as variações
existentes em uma mesma língua. Mas, se a gramática é parte constituinte de uma
língua e é inerente à sua natureza, por que o falante a rejeita tanto? Por que a gramática
é vista como obstáculo ao ato comunicativo?
1.1-O Conceito e o Errado-dois conceitos que sempre predominaram na gramática
tradicional.
Quando o termo gramática é mencionado diante do falante, surge a noção básica do
certo e do errado. Isto porque nosso primeiro contato na escola é com as gramáticas
normativa, disciplina que recomenda como se deve escrever e falar, segundo a
autoridade de escritores consagrados.
Ferdinand de Saussurre, ao se referir à polissemia do termo gramática, diz que essa
gramática tradicional , de inspiração grega, “está fundada na lógica(...)e desinteressada
da própria língua, porquanto seu único interesse é unicamente das regras para distinguir
as formas corretas das incorretas; (...) por ser uma disciplina normativa, encontra-se
muito distante da observação pura, o seu ponto de vista é restrito.”(1)
Fruto de pesquisas lingüísticas dos gregos, a gramática normativa herdou o preconceito
cultural com que esse povo mirou sempre o estrangeiro com que entrava em contato,
designando, inclusive, as outras línguas desses povos como “rudes e ininteligíveis”.
Pode-se perceber, então, o motivo da intransigência com que certos com que certos
gramáticos se esforçam para incutir no povo as regras da norma culta de sua língua, uma
sobrevivência daquele mesmo preconceito lingüístico dos primeiros gregos.(2)
9
Não é difícil , portanto, compreender o motivo por que o falante da língua, ao se deparar
com o normativismo dogmático da gramática tradicional, sente-se constrangido e quase
incapaz de articular uma idéia e não é raro ouvirmos muitas pessoas afirmarem que não
sabem o português, como se idioma se restringisse somente à língua castiça, à norma
dos professores e escritores consagrados. A gramática, nesse caso, ao invés de auxiliar o
falante a organizar seu procedimento lingüístico, funciona como uma mordaça, capaz de
impedir a espontaneidade da língua oral
1.2- O Segredo de Pandora que o falante desconhece...
Se o usuário do português percebesse que domina “essa língua complicada” desde
pequeno, talvez não se sentiria tão indefeso diante das armadilhas impostas pelas
normas gramaticais. Não só não se sentiria indefeso, como entenderia que o papel da
gramática normativa é fundamental para o seu melhor desempenho lingüístico. Porém,
imbuído pela velha sentença de que só sabe o português aquele que domina as regras
cultas do idioma, ele despreza o seu saber natural, o seu desempenho lingüístico oral,
responsável , aliás, pelas suas primeiras aventuras no ato da comunicação. E aí está o
segredo de Pandora- o falante não só sabe o português desde a mais tenra idade, como
também se valeu dele para defender sua sobrevivência até a idade adulta. Portanto, é
inadmissível aceitar a idéia de que uma criança “precisa aprender português”, quando,
na verdade, ela somente não domina a leis imperiosas da concordância ou das flexões
verbais. Desprezar a linguagem oral manifestada pela criança nos seus primeiros anos
de vida ,é tentar subjugá-la a uma gramática logicista, porém incompreensível para ela,
é a forma mais eficaz de afastá-la das diversas possibilidades de escolha que a língua
,como um todo, oferece.
10
CAPÍTULO II
A LÍNGUA ESCRITA E SEU CARÁTER NOBRE
Observa-se, na maioria das vezes, “uma tendência pronunciada para superestimar o
papel desempenhado pela escrita em nosso tipo de cultura (3)” É óbvio que a linguagem
escrita possui papel importantíssimo na formação do idioma, principalmente no século
XXI, invadido pela Internet e pelo fenômeno da comunicação globalizante. Mas,
persistir no erro de que só a língua escrita é o espelho cultural de um idioma, é olvidar
um aspecto histórico fundamental: que a língua oral é anterior e muito mais antiga do
que a linguagem escrita , cuja invenção é recente. A fala se confunde com a própria
origem do homem e, como escreveu Malmberg (1969): ‘ dizer homo sapiens é dizer
homo loquens’. (4).
Entretanto, a importância da língua escrita e o seu maior afastamento do povo comum
deu-se nos primórdios do português, quando, nos documentos públicos, usou-se
naturalmente um estilo de chancelaria, “algo pretensioso e artificial, cujo objetivo era
infundir respeito no espírito da ralé (...) Nas leis e costumes, nos foros outorgados pelos
reis, nos acordos e tratados, nas cartas e sentenças, usou-se sempre essa linguagem
convencional, envolta de certa atmosfera de superioridade em que mal se saberiam
exprimir os homens de baixa condição.
Não havia outra forma de ser assim, pois as relações políticas e sociais aproximavam
indivíduos de pontos diferentes do reino e cada qual vinha com seu falar nativo, ainda
não havia em Portugal uma língua uniforme, pois estava o reino retalhado em múltiplos
dialetos. Cumpria haver uma linguagem escrita oficial, que servisse de meio de
comunicação a todos.”(5)
A língua escrita assumiu, por conseguinte, um caráter nobre, muito acima dos falares plebeus
da “gente rústica”. Aliada a isto, a gramática, oriunda dos gregos, era primordialmente elitista,
avessa às inovações ocasionadas pela língua popular. Aliás, a língua do povo, da plebe, era
considerada vulgarismo, persistindo tal conceito na Idade Média e na Renascença, onde a
pureza dos textos “clássicos” exigiam a onipresença do latim.
Já no século XIX, houve um relaxamento em relação ao purismo da linguagem escrita,
pois a infiltração da cultura francesa nos países europeus permitiu ao povo “tomar
emprestado” palavras que até então não conheciam e adotá-las como expressão
cotidiana, acendendo nos defensores do português castiço fúria e indignação. Todavia, o
galicismo e outras expressões estrangeiras foram sendo adaptadas ao português, com a
maciça adesão das classes populares.
Ainda no século XXI, percebe-se que o valor da língua escrita permanece inflacionado
por muitos professores e gramáticos, que alimentam ainda o preconceito contra a
oralidade, vista com “maus olhos” por seu caráter modificador e sublevador das normas
e conceitos vigentes.
11
2.1- Alguns Motivos que Explicam o Privilégio da Língua Escrita- A Visão
Saussurreana.
A língua oral e a escrita são dois sistemas distintos de signos: a única razão da segunda
é representar a primeira. Porém, a língua escrita se mistura tão facilmente com a palavra
falada, da qual é a imagem, que acaba por roubar-lhe o papel de protagonista. Então,
observa-se que “dá-se maior importância à representação do signo vocal do que do
próprio signo. É como se acreditássemos que , para conhecer uma pessoa, melhor
fôssemos contemplar-lhe a fotografia do que o rosto.”(6)
Semelhante opinião existiu em todas as épocas e muitas opiniões equivocadas também
sobreviveram, ao longo dos anos. Acredita-se, de modo geral, que um idioma sofra
alterações mais rapidamente quando não existia escrita. O lingüista Ferdinand de
Saussurre, desmitificando tal afirmação, dá-nos um exemplo cabal a este respeito: “O
lituano, que se fala ainda hoje na Rússia oriental , só é conhecido por documentos
escritos a partir de 1540; nessa época tardia, porém, ele oferece no conjunto , uma
imagem tão fiel do indu-europeu quanto o latim do século III, antes de Cristo. Isso
basta para mostrar o quanto a língua independe da escrita.”(7)
Conclui-se, por conseguinte, que a língua possui uma tradição oral independente da
escrita, porém o privilégio da escrita nos impede de observar isto. Aliás, quando se
sugere algum tipo de reforma ortográfica em nosso idioma, os gramáticos
tradicionalistas logo se opõem à idéia, pois, segundo eles, modificar a ortografia ,
mesmo que seja para simplificar o seu uso, é um pecado capital, sem absolvição.
Ferdinand de Saussurre assim elucida o porquê do prestígio da língua escrita:
1. “A imagem gráfica das palavras nos impressiona como um objeto permanente e
sólido.”(8) O símbolo gráfico se fossiliza, ao longo dos séculos, e esta imagem é
mais latente do que o fugidio som da fala. Como bem escreveu Rubem Braga, em
uma deliciosa crônica há mais ou menos vinte anos, “(...) não ousei telefonar,
preferi escrever cartas, elas ficam vibrando..”
2. “Na maioria dos indivíduos, as impressões visuais são as mais nítidas e mais
duradouras que as impressões acústicas(...)A imagem gráfica acaba por impor-se
à custa do som.”
3. “A língua literária aumenta ainda mais a importância da escrita. Possui seus
dicionários, suas gramáticas; é conforme o livro e pelo livro que se ensina na
escola: a língua aparece regulamentada por um código: ora, tal código é ele
próprio uma regra escrita, submetida a um uso rigoroso: a ortografia , e eis que se
confere à escrita uma importância primordial..”(9)
1-Curso de Lingüística Geral,p.3
2-Edward Lopes,Fundamentos da Lingüística Contemporânea,p.3
3-Edward Lopes,Fundamentos da Lingüística Contemporânea,p.33
4-Ib.,mesma página.
5-M.Said Ali,Dificuldades da Língua Portuguesa,p.274.
6-Ferdinand de Saussurre,Curso de Lingüística Geral,p.34
7-Ib.,mesma página
8- Ferdinand de Saussurre,p.35
9-Ib.,mesma página
12
CAPÍTULO III
HOMO LOQUENS - A IMPORTÂNCIA DA ORALIDADE
O lingüista Edward Lopes sentenciou “ que a fala possui maiores possibilidades de
sobrevivência do que a escrita.”(11) Podemos imaginar um mundo futuro onde a
modalidade escrita da linguagem seja substituída por outra, mas seria quase impossível
que outro sistema semiótico venha a substituir a fala.
A fala, modalidade de expressão universal, independe do grau de desenvolvimento
alcançado por um povo.” A escrita não o é e não há um só exemplo de um povo que não
fale, mas há muitos povos que não possuem qualquer sistema de escrita. Aliás, todos os
sistemas de escrita fundamentam-se na fala, em relação à qual são secundários; o
contrário não acontece.”(12)
Ferdinand de Saussurre defende a importância da oralidade ao exemplificar “que é a
fala que faz evoluir a língua, são as impressões recebidas, ao ouvir os outros que
modificam nossos hábitos lingüísticos.”(13) “Por outro lado”, continua Saussurre, “é
ouvindo os outros que aprendemos a língua materna.”
A importância da oralidade, portanto, é incontestável e foi com o advento da lingüística
e sua consagração como ciência que a linguagem oral ocupou lugar de destaque nas
pesquisas e passou a ser estudada como elemento fundamental na comunicação.
Não se justifica, entretanto, estabelecer oposição entre a linguagem oral e a escrita, pois
ambas estão estreitamente ligadas e se implicam mutuamente; a língua escrita é
necessária para que a fala seja inteligível ( e aí surge o amparo da gramática) e produza
todos os seus efeitos; mas essa é necessária para que a língua se estabeleça.
10-Edward Lopes,Fundamentos da Lingüística Contemporânea,p.33
11-Ib.,mesma página.
12-Ib.,mesma página.
13-Ferdinand de Saussurre,Curso de Lingüística Geral,p.35
13
CAPÍTULO IV
A INFLUÊNCIA DA ORALIDADE NA LÍNGUA ESCRITA
A influência da oralidade na língua escrita é um fator tão evidente que negá-lo é como
“esconder a poeira embaixo do tapete.” Apesar das manifestações contrárias de muitos
gramáticos, que não só negam esse fato como tentam escondê-lo por meio do célebre
conceito “quem não sabe escrever, não sabe a língua portuguesa”. Atualmente,
entretanto, o fenômeno da oralidade está incorporado ao nosso dia-a-dia e, não é sem
razão, que o professor Evanildo Bechara, em sua Moderna Gramática da Língua
Portuguesa, ao escrever sobre concordância, defende como aceitável a seguinte forma:
“a gente vamos”, comuníssima entre os falantes da língua.(14)
O mestre Saussurre, ao se referir à mobilidade da língua, comparando-a a um ser vivo,
consagrou a influência da língua oral sobre a escrita, a primeira mais versátil, ligeira,
responsável por muitas alterações nas regras gramaticais, ao longo dos anos.
É mister, portanto, que a gramática conversacional, como é de sua competência,
preocupe-se com o fenômeno da oralidade sobre as leis imperiosas da língua escrita.
Não só se preocupe, como também interprete e explique como os mecanismos dessa
influência funcionam, estabelecendo, assim, a interação entre essas duas modalidades
lingüísticas tão diferentes.
4.1- A Língua Oral- Uma Senhora de vestido de Chita
Quando se afirma que a língua escrita é influenciada pela oralidade, é óbvio que não há
referência à fala culta, utilizada especialmente em situações formais. Esta modalidade
pertence a uma minoria escolarizada e não reflete a espontaneidade popular. Reflete, ao
contrário, a formalidade da língua escrita padronizada pela gramática convencional,
portanto, não é uma manifestação lingüística relaxada, caseira, que use um vestido de
chita e um par de chinelos e que seja capaz, por isso, de negar a formalidade da língua
padrão, uma dama de vestido longo.
Justamente, por esse motivo, a influência da fala constitui-se uma situação perturbadora
para aqueles profissionais responsáveis pelo ensino da língua materna. É realmente uma
tarefa assaz árdua “arcar” com o peso de ensinar as regras somente, quando se percebe
que elas podem não estar refletindo a veracidade do idioma, como um todo. Muitos
elementos da oralidade se incorporam de tal forma à tradição escrita, que é impossível,
sequer, tentar expurgá-los, pois seu uso cotidiano os consagrou definitivamente. E quem
é responsável pela existência de uma língua, senão o povo que a fala??
14 – Evanildo Becharo, Moderna Gramática Portuguesa, p. 555
14
CAPÍTULO V
A GRAMÁTICA DA CONVERSAÇÃO - O LIAME ENTRE A ESCRITA E A FALA
Como desprezar o ato da conversação, se, como observado anteriormente, a linguagem
oral e a escrita se completam? Como é possível ignorar as peculiaridades criadas pela
fala, se é por intermédio desta que o ato comunicativo, desde os primórdios da história
do homem, é concretizado?
Os defensores do tradicionalismo gramatical sempre abominaram a idéia de reconhecer
uma gramática própria para a conversação, pois confundem a espontaneidade da
linguagem com ignorância popular. Desprezam, assim, as diversas possibilidades de
escolha que o falante possui para se comunicar. Não consideram, por exemplo, que uma
língua para funcionar como mecanismo de comunicação, possui outros elementos além
dos conceitos puramente gramaticais. Por exemplo, não basta ao emissor enviar uma
mensagem, mesmo que esta esteja absolutamente correta , segundo os padrões cultos da
língua, se não houver um receptor “pronto” para entender e interpretar essa mensagem.
Além da atuação organizacional efetuada pela gramática, há outros elementos
envolvidos, a saber: a situação, o conhecimento dos falantes a respeito do mundo e um
estoque lexical satisfatório, capaz de propiciar uma seleção vocabular adequado.
Observemos a seguinte frase: “ Bonito, não é?” Apesar de estar de acordo com as regras
gramaticais padrões, em uma conversação, pode ser analisada de duas formas- um chefe
acabou de flagrar seu subalterno em ato falho ou uma jovem elogia a uma amiga a
beleza física de um homem. A interpretação da frase, por conseguinte, irá depender de
vários fatores, como a situação( o momento, o espaço), a entonação e até mesmo a
expressão gestual do emissor. Portanto, o ato comunicativo não depende somente de
uma análise logicista e fria da morfossintaxe, depende de inúmeros fatores operacionais.
É claro que é mais fácil à língua escrita atender às exigências preestabelecidas da
normatividade, pois, antes de elaborar um discurso escrito, o falante pondera, exclui
possíveis “erros”, seleciona com mais acuidade os vocábulos a serem usados. No texto
oral, todavia, os limites são menos determinados, incentivando, assim, o falante a
construções frasais pouco ortodoxas, recheadas de pleonasmos, concordâncias falhas e
enormes vazios , a chamada pausa de raciocínio- recursos, aliás, pouco aceitos pela
tradição gramatical. É importante, contudo, salientar que mesmo a linguagem oral
apresentando diferenças muito significantes em relação à linguagem escrita, ambas
possuem o mesmo objetivo: a comunicação. O que, então, disso se conclui? Que mesmo
a linguagem oral com toda sua espontaneidade deve respeitar os limites da organização,
o seu usuário, portanto, não pode se valer da língua desordenadamente. Mesmo
cometendo, segundo as normas cultas do idioma, erros considerados imperdoáveis, a
conversação possui regras que devem gerar a produção de um texto inteligível. Um
falante, por mais relaxado que esteja, não costuma assim se expressar: escada a subiu
homem o... O seu interlocutor, certamente, franziria o cenho ou pediria que a mensagem
fosse retransmitida, afinal não houve o feedback. A oralidade possui sua gramática, sua
organização própria e este é o ponto fulcral que todo professor de língua portuguesa
15
deve se apoiar. Mas, a organização da oralidade não pode ser confundida com
agramaticalidade, ou melhor, completa permissividade de textos desordenados.
5.1- Gramática Conversacional - uma Disciplina não mais Ignorada.
Nem tudo é permissível na conversação, porque esta não é sinônimo de desorganização
estrutural. Como citado no capítulo precedente, mesmo que a oralidade ocasione
determinadas rupturas nas regras de normatividade, ainda assim observa-se a existência
de estruturas frasais organizadas, que devem caracterizar a gramática da fala. Esta
disciplina não se concentra nos parâmetros ditados pela gramática clássica, cujo único
objetivo é conquistar a arte de escrever e falar corretamente. O objetivo da gramática
conversacional é mais amplo, pois é seu destino demonstrar como a linguagem oral é
usada realmente e como ela faz parte integrante do corpus do idioma. A gramática
conversacional não estabelece oposição entre a língua escrita e a oral. Ao contrário, o
objetivo fundamental dessa nova modalidade gramatical é “ organizar ou reorganizar a
língua escrita em face da oral. Elas têm autonomia, cada qual tem seu modelo, mas isso
não impede a interação entre elas, daí a preocupação da organização da oralidade.”(15)
5.2- Novos Conceitos a serem Considerados.
Considerando a gramática conversacional uma disciplina pragmática, é necessário
abordar novos elementos introduzidos na tradição escrita pela oralidade, sem olvidar,
entretanto, que tais novidades só devem ser aceitas mediante o conceito de
gramaticalidade/agramaticalidade, abordado no capítulo anterior. Como citado antes, o
objetivo da gramática conversacional é atuar como agente conciliador entre as duas
modalidades lingüísticas, o que significa considerar as mudanças no código escrito
tradicional, quando necessárias, em determinadas situações e também questionar as
interferências que criam dificuldades no uso da língua escrita. Assim sendo, observar-
se-ão , a seguir, alguns exemplos da interferência oral na modalidade escrita; é preciso,
no entanto, que o professor, ao “corrigir essas interferências”, ressalte que a correção
efetuada visa atingir aos padrões estabelecidos pela língua padrão.
15-APOSTILA a Conversação,Léo Barbara Machado,p.33
16
CAPÍTULO VI
A INFLUÊNCIA DA ORALIDADE NA ESCRITA - ALGUNS EXEMPLOS
GARIMPADOS EM NOSSO COTIDIANO
a)- Os Exemplos em Ocorrências não Verbais:
A língua falada tende a adequar determinadas palavras ao seu uso cotidiano, sempre
procurando simplificar o ato comunicativo. Um claro exemplo disso é o uso de
determinados verbos, que possuem seu significado original deslocado, assumindo outro
sentido ou várias acepções. Não raro algumas formas verbais assumem múltiplas faces
no discurso oral e, consequentemente, são utilizados assim na linguagem escrita. Como
exemplificar esse fenômeno?
O mestre Said ali justificou a invasão do galicismo na língua portuguesa como “um
modismo ou preguiça lexical, que impedia o falante de encontrar, dentro do seu próprio
idioma, um sinônimo capaz de substituir o vocábulo estrangeiro.”(16)
Reatando os nós, se analisarmos a justificativa do citado mestre, é possível que se
consiga explicar algumas situações ,onde a mudança ou substituição do significado de
alguns verbos ,ocorra.
No ato dialógico, o emissor, mais relaxado, não se dispõe a revirar o seu “baú lexical”,
pois a oralidade é mais dinâmica e mais ágil, quase não há tempo de realizar uma
elaboração discursiva complexa ou extremamente elaborada. Torna-se mais simples
usar apenas um verbo e dar-lhe vários sentidos. Na linguagem caseira, e isto é apenas
um exemplo, seria uma atitude rara ouvirmos uma mãe apressada pedir ao filho que
arrumasse os talheres, os copos e os pratos sobre a mesa. “É bem mais cômoda a velha
frase imperativa: “Filho, põe a mesa!” Observando todo o contexto, ou seja, a pressa da
dona de casa, a urgência da situação, a necessidade de que a mensagem seja
prontamente captada, não é tolice afirmarmos que o emissor, e aqui o professor Said Ali
será parcialmente plagiado, possui uma boa dose de “ preguiça”, claro, aliada à
necessidade de rápida compreensão de sua mensagem.
Mas, não há novidade alguma nisso, pois, os antigos romanos, já utilizavam as formas
verbais dar, fazer, pôr e ter com vários sentidos, além dos seus específicos. Expressões
como ter em mente,(lembrar-se), pôr dinheiro(guardar dinheiro), fazer(passar o tempo)
eram comuníssimas entre os nossos ancestrais latinos e chegaram até nós por meio da
linguagem escrita, obviamente influenciada pela oralidade.
Se por um lado é absolutamente aceitável e compreensível a pressa da oralidade, pois
esta objetiva a rápida compreensão da mensagem, a economia lexical dessa modalidade
lingüística limita horizonte vocabular do falante e, mais uma vez citando o mestre Said
Ali, “ficou muito reduzida a elasticidade dos recursos nativos, visto como ia afrouxando
o hábito de sua utilização.”(17) Com a influência da oralidade, ficamos reduzidos a
utilizar, na língua escrita, os verbos mais familiares, obliterando, assim, a existência de
inúmeras formas verbais, verdadeiros relicários de nossa língua.
17
b)- A Influência da Oralidade nas Ocorrências Não-Verbais.
Há dois anos atrás, a Nasa mandou a Marte um robô espião, que possuía a árdua missão
de transmitir novidades a respeito de nosso vizinho alaranjado. Até aí, nada demais,
frutos do progresso e conseqüência inevitável da curiosidade humana. Um fator, porém,
tornou o robô nosso velho conhecido: ele foi “acordado” pela música brasileira
Coisinha do Pai, sucesso interpretado por Beth Carvalho. O título e o refrão da música
se referem à “Coisinha tão bonitinha do pai” a todo instante e, quase inconscientes,
repetimos o trecho, sem percebemos que o substantivo “coisinha” é tão abrangente, que
convida o ouvinte a diversas interpretações: a coisinha seria a filha do compositor ou
uma namorada de um homem paternalista e apaixonado?
A tradição oral utiliza-se de alguns substantivos genericamente, sem especificar o seu
significado e não há melhor exemplo como o supracitado. O substantivo coisa serve
para designar uma pessoa a quem o falante pretende menosprezar (Coisinha, qual é
mesmo o seu nome??), representar afetividade (Vou dar uma coisinha tão mimosa a
você) ou designar a imagem demoníaca, sem citar o seu nome (Aquilo é arte daquela
Coisinha ruim). Em todos esses casos, a palavra coisa sugere vários significados e, com
o tempo, transformou-se em uma forma verbal: (Ele vai coisar o carro daqui a pouco).
Consagrada popularmente, quando o falante, no ato da produção escrita, não consegue
encontrar um vocábulo adequado para expressar uma idéia, surge a coisinha, capaz de
preencher as lacunas lexicais ,que surgem eventualmente no ato comunicativo.
c)-Ocorrências não-verbais- A Pontuação e a influência da oralidade .
Segundo o professor Evanildo Bechara “a pontuação é um sistema de reforço da escrita,
constituída de sinais sintáticos, destinados a organizar as relações e a proporção das
partes do discurso e das pausas orais e escritas. Estes sinais também participam de todas
as funções da sintaxe, gramaticais, entonacionais e semânticas; constituem hoje peça
fundamental da comunicação.”(18) Como assinala Nina Catach ‘esses sinais extra-
alfabéticos são essencialmente unidades sintáticas, sinais de orações e sinais de
palavras.’ Prossegue o professor Evanildo Bechara: “Um enunciado não é um
amontoado de palavras e orações. Elas se organizam segundo princípios gerais de
dependência e independência, recobertas por unidades melódicas e rítmicas que
sedimentam esses princípios. Proferidas as palavras e orações sem tais aspectos
melódicos e rítmicos, o enunciado estaria prejudicado na sua função comunicativa.”(19)
Os sinais de pontuação procuram garantir no texto escrito esta solidariedade sintática e
semântica. Por isso, um texto pontuado erroneamente, produz efeitos desastrosos à
comunicação.
A oralidade, justamente por ser menos regrada e apresentar elasticidade na produção de
uma conversa informal, não se preocupa com os aspectos da pontuação.Esta postura, no
entanto, é repassada para a linguagem escrita e raramente encontramos um falante que
consiga dominar a difícil arte de pontuar corretamente um texto escrito.Mas, uma
produção discursiva mal pontuada gera conseqüências trágicas ao ato comunicativo.
Observemos os seguintes exemplos: um condenado à morte está diante de um pelotão
de fuzilamento. A ordem dada pelo comandante é a seguinte: “Não podem atirar!”
Imediatamente compreendemos que a pena de morte foi comutada por algum motivo
18
desconhecido e que o prisioneiro recebeu o perdão na última hora. Mas, a mesma frase,
com a vírgula deslocada, é assim lida: “Não, podem atirar!” Certamente, o leitor
entendeu que o prisioneiro sofrerá a pena máxima, ou seja, será morto.
Percebemos, então, que a vírgula funcionou como agente modificador do modo verbal
imperativo. Na primeira frase, é bem explícito o uso do imperativo negativo, enquanto
na segunda frase, a vírgula descaracterizou a ordem negativa, tornando o verbo
imperativo afirmativo. A vírgula, nos exemplos apresentados, modificou não só o modo
verbal, como também transformou o destino do nosso prisioneiro. Portanto, não é
leviano afirmarmos que a pontuação é peça fundamental na engrenagem da língua e
quando mal utilizada, provoca ou situações confusas ou mesmo o fenômeno da
agramaticalidade.
Não é raro, contudo, surpreendermos alguns professores ensinarem o uso da pontuação (
mais especificamente, o uso da vírgula) da seguinte maneira: o aluno deve pontuar um
período conforme seu esforço respiratório. Quando o fôlego se extingue, no ato da
leitura oral, deve-se, então, colocar a vírgula. Isto, ao que nos parece, está mais próximo
a uma aula de ginástica aeróbica, pois, em inúmeras situações, um período pode ser lido
“ em um sopro só”, ocasionando uma grande confusão. Utilizando o método acima
exposto, apresentamos a seguinte frase: “Um fazendeiro tinha um bezerro e a mãe do
fazendeiro era também o pai do bezerro”. A possibilidade de lermos esta mensagem sem
pausa, confunde, sem sombras de dúvida, o seu receptor, o que comprova a falibilidade
do método novidadeiro. A mensagem é logo compreendida se pontuarmos a frase do
seguinte forma: “ Um fazendeiro tinha um bezerro e a mãe, do fazendeiro era também o
pai do bezerro.”A vírgula estabeleceu a ordem na casa e limitou o período a duas
orações distintas; a cada termo foi atribuída uma função e, desse modo, a mensagem
pôde ser elucidada.Por que o professor, então, insiste em apregoar o uso da pontuação
de forma tão simplista, ou melhor, tão física, e desconsidera os aspectos mentais
inclusos na organização frasal? Simples, talvez. O professor transfere os mecanismos da
oralidade para a linguagem escrita. A comunicação oral, como dito anteriormente,
possui a rapidez e o ato de improviso, o que obriga o falante a verdadeiras peripécias e
malabarismos para ser prontamente compreendida. As pausas podem significar
descontentamento ou aceitação de um determinado argumento (Quem cala, consente); a
ausência das vírgulas, um esforço hercúleo de obrigar o interlocutor a não contra-
argumentar. A pontuação oral é representada também por gestos- as aspas são
representadas por um sinal característico, realizado pelos dois polegares. A mão
espalmada diante do receptor pode significar o ponto final e, levemente balançada,
explicita um ponto interrogativo (E aí? Não entendi). Portanto, nada mais justo, segundo
alguns educadores, do que traduzir essa linguagem gestual ou os artifícios físicos da
linguagem oral para a modalidade escrita. Ressaltamos, todavia, que a gramática
conversacional considera as diferenças existentes e as estuda, na árdua tarefa de uni-las.
Só não se deve aceitar a ausência de limites, pois nem sempre a pontuação dos textos
escritos deve refletir a espontânea forma de pontuar, estabelecida pela modalidade oral.
d)- A Defectividade Verbal- influência da oralidade em ocorrência verbal
Algumas formas verbais, principalmente aquelas pertencentes à categoria irregular,
causam verdadeira estranheza ao falante. Estranheza e constrangimento, porque, por
19
serem desconhecidas pelo grande público, são banidas do uso cotidiano. Pesquisamos
alguns verbos defectivos do latim e percebemos que, uma grande parte, traduzia formas
de cumprimento, saudações e fenômenos da natureza, só podendo ser utilizadas na 3a
pessoa verbal. A lista dos verbos defectivos em língua portuguesa não é desprezível,
porém, em inúmeros casos, quem estabelece a defectividade é o próprio falante,
justamente porque desconhece a conjugação verbal, segundo às normas cultas da
língua. É bem verdade que o falante “ estabelece a defectividade extra-oficialmente,
pois a língua culta, na maioria das vezes, ignora tal procedimento popular. O problema,
entretanto, persiste e, apesar de não ter sido feita uma avaliação diacrônica do assunto,
parece-nos que a pena de banimento de algumas formas verbais foi escrita pelas mãos
da tradição oral...
Avaliemos, por exemplo, o verbo caber, no presente do indicativo: eu caibo. A língua
oral descontraída raramente a utiliza, preferindo adequá-la à locução verbal: eu vou
caber. Na língua padrão, eu caibo é a forma correta e cabo, a inadequada. O falante, em
dúvida, prefere pedir socorro à forma locucional: eu vou caber. Fenômeno semelhante
ocorre com o verbo parir (eu pairo é completamente desconhecido pela maioria dos
falantes) e com o verbo competir, ambos atirados ao limbo, ao esquecimento.
Dificilmente, a oralidade os flexiona na 1a pessoa do singular do presente do indicativo.
Além do desconhecimento da foma pessoal adequada, o fenômeno da oralidade, ao
recorrer às formas locucionais, criam outro problema para a tradição gramatical - o uso
inadequado, e cada vez mais freqüente, na linguagem escrita, do verbo ir como marca
de tempo futuro.
Ressaltamos, porém, que a chamada defectividade popular não é reconhecida por
muitos gramáticos consagrados e, durante a trajetória da presente pesquisa, apenas foi
citada pelo professor Said ali, em sua obra Dificuldades da Língua Portuguesa.(20)
e)- Ocorrências Verbais- a influência da oralidade no futuro do subjuntivo do verbo Ver.
Os verbos ver e vir causam, às vezes, uma série de embaraços ao falante da língua
portuguesa. O motivo disso é, certamente, a homonímia existente entre o futuro do
subjuntivo do verbo (vir) e o infinitivo vir. Aliás, a homonímia, em determinados
momentos da língua, “ é profundamente perturbadora e provoca um processo de
supressão de uma das formas homonímicas”, segundo o professor Mattoso Câmara (20).
Foi justamente por esse processo de supressão, realizado pela tradição oral, que, na
linguagem escrita, o falante flexiona o verbo ver, no futuro do subjuntivo,da seguinte
forma: “Quando eu ver”, ao invés de “Quando eu vir”.O falante sente-se mais à vontade
em repetir o infinitivo do verbo “ver”, pessoalizando-o e desfazendo, não obstante, a
homonímia existente.
f)- Ocorrências não verbais- Expressões desnecessárias
“Eu acho”, “eu penso”, “na minha opinião” são expressões quase que obrigatórias em
uma conversa descontraída. Sem nada acrescentar à frase, por que o falante insiste em
utilizá-las diversas vezes?
20
Parece-nos que essas expressões frasais (quase sempre introdutórias) funcionam como
reforço argumentativo do emissor, que na ânsia de convencer seu interlocutor de algo,
repetem-nas mecanicamente, transferindo-as para a modalidade escrita informal.
A Influência da Oralidade na Sintaxe
g)- Aspectos da Concordância.
Segundo o professor Evanildo Bechara, “em português a concordância consiste em
adaptar a palavra determinante ao gênero, número e pessoa da palavra determinada. A
concordância pode ser nominal(a que se verifica em gênero e número entre o adjetivo e
o pronome (adjetivo), o artigo, o numeral ou o particípio ( palavras determinantes) e o
substantivo e o pronome (palavras determinadas) a que se referem. Diz-se concordância
verbal a que se verifica em número e pessoa entre sujeito ( e às vezes o predicativo) e o
verbo da oração.(21)
A concordância pode ser estabelecida de palavras para palavras ou de palavra para
sentido. A concordância de palavra para palavra será total ou parcial (também chamada
atrativa); a concordância de palavra para sentido se diz ainda concordância “ad
sensum” ou silepse.
O usuário da língua coloquial descontraída encontra muita dificuldade em estabelecer os
limites coerentes da concordância (seja nominal ou verbal) e o fato é absolutamente
compreensível Na língua oral, em que o fluxo do pensamento é mais rápido, “mais
apressado”, o falante, antes de estruturar a oração, enuncia primeiro o verbo – elemento
central da narrativa- para depois organizar os outros elementos oracionais. “Nessas
circunstâncias”, ensina-nos o mestre Bechara, “o falante costuma enunciar o verbo no
singular, porque ainda não pensou no sujeito a quem atribuirá a função predicativa
contida no verbo; se o sujeito, neste momento, for pensado com pluralidade, os casos de
discordâncias serão freqüentes. O mesmo ocorre com a concordância nominal, do
particípio.”(22)
Frases como machucou os meninos a cabeça ou conquistou a taça os jogadores
brasileiros são usualmente ouvidas e escritas, no ato comunicativo informal. Conforme
argumentou o professor Evanildo Bechara, “ isso acontece porque o falante, no ato da
fala, antecede o verbo, ponto nevrálgico da oração, ao sujeito, sem se preocupar,
posteriormente,se a concordância verbal será efetuada ou não”.(23) Primeiro, a ação, o
ato de fazer, traduzido pelo verbo; depois, o agente, que sendo plural ou único, é citado
somente como “complemento” da ação narrada.
A silepse é um processo bastante usado no ato da fala espontânea. Durante uma
conversa entre duas pessoas, não é difícil ouvirmos: A gente somos responsáveis. O
grupo de rock Ultraje a Rigor, na década de 80, compôs a seguinte letra de música:”a
gente somos inúteis, inúteis, a gente somos inúteis.’, mostrando, com bom humor, um
costume lingüístico muito comum na oralidade espontânea. Nos dois exemplos
apresentados, o verbo ser está concordando com a gente, expressão denotadora de
coletividade.
21
Tanto a silepse, como a concordância efetuada com o verbo anteposto ao sujeito,
ganharam adesão popular, tornando-se constantes na expressão escrita informal.”É
preciso, contudo, estar atento a que a liberdade de concordância que a língua portuguesa
muitas vezes oferece deve ser aproveitada para não prejudicar a clareza da mensagem e
a harmonia do estilo”.(24)
Quanto à concordância nominal, é interessante citarmos dois exemplos muito usuais na
oralidade e que, pouco a pouco, têm se incorporado à expressão escrita:Carla está meia
chateada e ela tem menas chances do que todos.No primeiro exemplo, o vocábulo meia
só deve, segundo a língua padrão, ser flexionado em gênero e número se possuir o valor
de adjetivo, que não é o caso do exemplo em questão. Meia, nessa frase, possui o valor
adverbial e, por isso, não é flexionável.
No segundo exemplo, procede a mesma confusão. O falante ignora as recomendações
da língua culta e utiliza um adjetivo no lugar de um advérbio, neste caso, a
concordância em gênero e número com o substantivo chance.
Também no registro escrito encontramos com facilidade tais tipos de concordância e é
cada vez mais raro encontrar uma jovem falar ou escrever do seguinte modo: estou meio
enjoada ou um falante articular despretensiosamente: terei menos oportunidades...
A Concordância (continuação)
h)- As placas das imobiliárias estão recheadas da seguinte frase: aluga-se casas.
Apesar de contrariar a língua padrão, a não concordância do verbo alugar com o
sujeito casas torna-se cada vez mais comum. Não só a concordância falha ocorre com
o verbo alugar, como também com o verbo ensinar, escutar e etc, ou seja,com os
verbos, cuja transitividade é direta. O falante, inconscientemente, julga o elemento
posterior ao verbo como um complemento deste e não como sujeito, pois este se
encontra apassivado. É tão forte a influência da oralidade na expressão escrita, que a
maioria dos avisos públicos e das placas propagandísticas apresenta o erro de
concordância verbal citado.
Influência da Oralidade na Sintaxe
i)- O Uso Pronominal.
“Isto é para mim fazer”. Se os passos da oralidade forem seguidos, mim faz tudo, é e
será sempre o agente da ação verbal e não um complemento.O falante, talvez confuso
diante de uma forma infinitiva, emprega o pronome oblíquo como sujeito da oração,
infringindo, assim, as normas cultas do idioma. Mim não pode e não deve executar a
ação, apenas eu. O usuário da língua, contudo, insiste em atribuir àquele pronome
22
oblíquo a tarefa árdua de assumir a responsabilidade de efetuar a ação, representada pela
forma verbal.
j)- Colocação Pronominal
Eu vi ela é uma frase bastante ouvida e, consequentemente, escrita também. Há
discussões intermináveis a respeito desse hábito do português do Brasil, que utiliza o
pronome reto como objeto direto. Eu olhei ele, eu comprei ela são expressões
comuníssimas e, entre a fala descontraída, esse costume propiciou os seguintes versos
populares:” a vida é bela/ a gente que estraga ela”, reforçando a idéia do pronome ele
como acusativo.
l)- A Influência da Oralidade na Regência Verbal
A Regência verbal talvez seja um dos caminhos mais árduos da língua culta, não só da
portuguesa, como também de outros idiomas. As inúmeras preposições a serem
acopladas às formas nominal e verbal transformam-se em um caleidoscópio
multicolorido, cujas cores, às vezes difusas, confundem tanto, que torna-se impossível
distingui-las, se girarmos o aparelho com velocidade. Contudo, assim também o é, na
língua funcional: conforme a velocidade, a pressa com que o falante se expressa, as
frases tornam-se confusas e o uso da preposição, segundo as normas da língua culta, que
já não é dos mais fáceis, torna-se mesmo perturbador. Qual a preposição a ser usada
diante de determinados verbos? E diante de alguns nomes? É lógico que, durante o ato
da fala, essa preocupação é logo substituída pela forma mais trivial, pois a alegação
dada pelo falante “é que ninguém vai entender “preferir a “, ao invés de “ preferir mais
do que.”
O verbo supracitado, aliás, enceta a lista dos mais votados na categoria “vilões da
regência verbal”. Prefiro mais chocolate do que refrigerante é a forma mais comum e,
por isso, mais falada e escrita. A linguagem descontraída consagrou talvez mais do que,
porque queria ressaltar, com o advérbio mais, a intensidade de sua preferência.
Outro verbo que ocasiona confusão no ato da fala é o verbo “implicar”. No significado
de “resultar” é transitivo direto: isso implica erro; no de produzir, acarretar, possui a
mesma regência, ou seja, é também um transitivo direto. Mas, no sentido de demonstrar
antipatia, mostrar-se impaciente é um transitivo indireto: implicava com o colega. O
fato desta última acepção ser a mais corriqueira, parece induzir o falante a generalizar o
uso do verbo implicar como transitivo indireto sempre, sem trégua. Uso inconsciente,
claro, pois o falante da língua, ao coordenar seu pensamento, não se prende à análise
lógica e sim reproduz aquilo que mais ouve. Consequentemente, isso implica erro,
torna-se implicar em erro, pois o falante acostumou-se com a forma verbal implicar,
transitivo indireto, logo supõe que em todos os sentidos e usos do verbo implicar, deve-
se colocar uma preposição.
23
m)-Influência da Fala na Ortografia
Percebe-se, principalmente no Rio de Janeiro, a tendência do falante de anular a
oposição entre /e/ e /i/ e entre /o/ e /u/, ocasionando, respectivamente,a grafia
acustumado e sintir-se; nódoa passa a ser nódua e, em vez de ensolarado, fala-se e
escrever-se insolarado.
A ausência do contraste entre /ou/ e /o/ leva à grafia de loro, poso e vo, ao invés de
louro, pouso e vou.
O caso do vocábulo tábua é ainda mais interessante, pois o falante transformou-o em
táboa e, em um esforço de ultracorreção e erudismo popular, táboa passa a ser táuboa,
criando-se assim, dois ditongos no vocábulo. A maioria dos alunos de tanto ouvirem a
distorção vocabular, reproduzem, na linguagem escrita, o erro dramático.
n)- A Influência da Fala nos Aspectos Morfológicos da Língua
Percebemos que o falante, empenhado em formalizar seu discurso, altera a sufixação de
nomes e expressões, como é observado no seguinte exemplo: de repente torna-se
derrepentemente; a locução adverbial de tempo é convertida em um advérbio de modo
em uma tentativa de demonstrar erudição. O mesmo acontece com o substantivo
sutileza que se transforma em sutilidade, talvez porque o usuário da língua estabeleça a
seguinte analogia: fácil=facilidade; sutil( que é pronunciado como um vocábulo
paroxítono acentuado-sútil) e converte em sutilidade.
16- Said Ali, Dificuldades da Língua Portuguesa,p.35
17- Ib.,mesma página
18-Evanildo Bechara,Moderna Gramática Portuguesa,p.544
19- Ib., mesma página
20-Dispersos, p.92
21-Evanildo Bechara,Moderna Gramática Portuguesa,p.544
22-Ib.,mesma página
23-Ib.,p.545
24-Ib.,p.544
24
CAPÍTULO VII
O ENSINO DA LÍNGUA MATERNA
Atualmente, nas escolas brasileiras, em todas as séries, o que se tem percebido, no
ensino de língua portuguesa, é uma verdadeira obsessão em relação à análise sintática.
Muito se analisa e pouco se reflete. A maioria dos professores ainda insiste em condenar
a leitura e interpretação de textos ao ostracismo, superinflacionando, todavia, a análise
de períodos, como se o estudo de um idioma se reduzisse ao famoso binômio: sujeito e
predicado. Tais mestres, ao invés de considerarem a importância de um ensino
pragmático, voltam-se para um ensino irreal, onde a língua culta, e somente ela, fizesse
parte de nosso idioma. Esquecem que a língua caseira, trazida pelo aluno e cultivada ao
longo dos anos, também faz parte integrante de nosso idioma e que o ato comunicativo
só é amplo, quando a língua culta e a coloquial se completam. Condenar os pobres
discentes a um verdadeiro massacre logístico é transformá-los em eternos pacientes do
ato da fala e nunca em agente criadores do ato comunicativo. É lógico que o ensino da
análise sintática, ou melhor, o ensino da gramática, como um todo, se administrado de
forma coerente, é fundamental e imprescindível- nada mais justo do que permitir ao
aluno entender todos os mecanismos de funcionamento de sua língua. A gramática,
como citado em capítulos anteriores, é o fulcro organizacional do idioma e, sem ela, o
caos comunicativo certamente se estabeleceria. A língua culta, outrossim, é necessária e
real, desde que ensinada com métodos e objetivos reais, ou seja, desde que seja inserida
no dia-a-dia do falante.
Cabe ao professor de língua portuguesa ilimitar o horizonte lingüístico do educando,
equacionando o ensino da língua padrão com a praticidade espontaneidade da
linguagem oral. Basta, para isso, aplicar em sala de aula a leitura incessante de textos,
elaborar exercícios, onde essas duas modalidades lingüísticas se auxiliem e se
complementem.
Óbvio ressaltar que o educador não deve olvidar jamais as regras gramaticais e nem
ceder ao modismo também existente de contrariar tudo o que a gramática preestabelece.
Um ensino de qualidade deve ser baseado nas necessidades do aluno e estas estão
intimamente ligadas à normas do seu idioma. Equacionar sim, transformando o aluno
em um falante bilingüe do seu próprio idioma, capaz de escolher como e quando usar a
língua culta e a coloquial. Isto é um ensino moderno e este é o objetivo da gramática
conversacional.
25
CONCLUSÃO
Tanto a oralidade quanto a linguagem escrita, culta, possuem igual importância na
formação idiomática de um povo. A primeira reflete a realidade lingüística usada
cotidianamente; a segunda, organiza, por meio da gramática, essa realidade, porque não
há língua que sobreviva sem a interferência popular.
A gramática conversacional, a partir dessa convergência, demonstra que é possível aliar
essas duas modalidades lingüísticas, sem minimizar o papel que cada uma delas
desempenha na vida do falante.
É mister, entretanto, estabelecer limites, pois, apesar da convergência estabelecida entre
o popular e o acadêmico, há momentos em que as influências orais desencadeiam
confusão no código escrito, o que ocasiona verdadeiro caos comunicativo. Aproveitar as
mudanças benéficas e interferir naquilo que é prejudicial ao entendimento do texto são
dois objetivos fundamentais dessa disciplina renovadora.
Cabe, assim, ao professor de português, conciliar, em sala de aula, a língua exemplar,
regrada, com a oralidade descontraída, com a qual o falante convive desde o seu
nascimento. Como conseqüência disso, o ensino da língua materna tornar-se-á prazeroso
e dinâmico e o estudante conseguirá desenvolver o poliglotismo no seu idioma, o que
irá proporcionar-lhe uma perfeita adequação às regras impostas por uma sociedade cada
vez mais seletiva e exigente.
26
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BECHARA,Evanildo.Moderna Gramática Portuguesa.Rio de Janeiro:Ed.Lucerna, 37
ed.,2000
SAUSSURRE,Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral,São Paulo:Ed.Cultrix.
LOPES, Edward. Fundamentos da Lingüística Contemporânea.S.P.Ed.Cultrix.
CÂMARA,Joaquim Mattoso.Dispersos.R.J: Fundação Getúlio Vargas,1972.
ALI,M.Said.Dificuldades da Língua Portuguesa-Estudos e Observações.S.P.
Ed.Clássico-Científica,4a ed.,1950.