controvérsias sobre a natureza de cristo na antiguidade cristã · 2014. 12. 13. · de uma alma...

29
Controvérsias sobre a Natureza de Cristo na Antiguidade cristã Daniel Alonso de Araujo 1 Resumo Durante o século V, acesos debates agitaram as Igrejas do Oriente a respeito da natureza de Cristo. As especulações teológicas procuravam responder a questão de como se realizava a união entre o Logos divino e a natureza humana assumida na incarnação. Na tentativa de responder a essa questão, duas tendências opostas se formaram nas duas grandes escolas teológicas de Antioquia e Alexandria, a saber: o difisismo e o monofisismo, respectivamente. Todavia, esses termos eram vagos, podendo compreender doutrinas condizentes ou não com a tradição cristã, dependendo do conceito que se fazia do termo physis. No auge das discussões, realizaram-se dois Concílios a fim de dirimir a questão: o de Éfeso, em 431, e o de Calcedônia, em 451. Embora tivessem definido a doutrina ortodoxa, algumas regiões não aceitaram as decisões conciliares, rompendo a comunhão eclesiástica, movidas sobretudo por questões culturais e políticas. Tendo isso em vista, o presente estudo visa explanar sobre os conceitos-chave que levaram a estas discussões dentro de seu contexto histórico, bem como suas causas e consequências. Para maior clareza, serão brevemente expostos os precedentes imediatos: as controvérsias anti-arianas, o apolinarismo e as escolas teológicas antioquena e alexandrina. Por fim, pretende-se demonstrar o quanto tais querelas que levaram aos cismas eclesiásticos se fundamentaram num problema de linguagem e de formulação, sem que a essência do dogma fosse alterada. Introdução Foi no século II que o cristianismo tomou contato com a filosofia helênica, quando alguns convertidos de cultura grega passaram a encarar a sua nova fé com as perspectivas filosóficas. O Evangelho de São João, bem como as cartas de São Paulo, continham muito material que propunha um verdadeiro diálogo da fé com a filosofia. Desse modo, os filósofos cristãos passaram a usar a linguagem filosófica para explanar e refletir o cristianismo, dando sem dúvida um sentido novo a muitos conceitos e expressões. Um dos intuitos era tornar a doutrina cristã palatável aos pensadores “pagãos”. Na tentativa de harmonizar os dados da revelação com os da razão, produziu acirradas controvérsias referentes aos princípios fundamentais da fé cristã: a unicidade da natureza divina na 1 O autor é formado em Letras Clássicas na área de Língua e Literatura Latina pela Universidade de São Paulo. Sua linha de pesquisa é Filosofia, História e Literatura Patrística e Medieval, abrangendo a Europa latina, as civilizações bizantina e islâmica e a cultura judaica. É membro do Grupo de Tradução e Pesquisa/CNPQ “Filosofia Árabe e História do Pensamento”, liderado pelo Prof. Dr. Miguel Attie Filho, da Área de Língua e Literatura Árabe (USP), no qual desenvolve uma pesquisa referente à versão latina da Metafísica de Avicena, filósofo muçulmano do século X. É colaborador da Área de Língua e Literatura Armênia da mesma Universidade.

Upload: others

Post on 05-Feb-2021

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • Controvérsias sobre a Natureza de Cristo

    na Antiguidade cristã

    Daniel Alonso de Araujo1

    ResumoDurante o século V, acesos debates agitaram as Igrejas do Oriente a respeito da natureza de

    Cristo. As especulações teológicas procuravam responder a questão de como se realizava a união

    entre o Logos divino e a natureza humana assumida na incarnação. Na tentativa de responder a

    essa questão, duas tendências opostas se formaram nas duas grandes escolas teológicas de

    Antioquia e Alexandria, a saber: o difisismo e o monofisismo, respectivamente. Todavia, esses

    termos eram vagos, podendo compreender doutrinas condizentes ou não com a tradição cristã,

    dependendo do conceito que se fazia do termo physis. No auge das discussões, realizaram-se dois

    Concílios a fim de dirimir a questão: o de Éfeso, em 431, e o de Calcedônia, em 451. Embora

    tivessem definido a doutrina ortodoxa, algumas regiões não aceitaram as decisões conciliares,

    rompendo a comunhão eclesiástica, movidas sobretudo por questões culturais e políticas. Tendo

    isso em vista, o presente estudo visa explanar sobre os conceitos-chave que levaram a estas

    discussões dentro de seu contexto histórico, bem como suas causas e consequências. Para maior

    clareza, serão brevemente expostos os precedentes imediatos: as controvérsias anti-arianas, o

    apolinarismo e as escolas teológicas antioquena e alexandrina. Por fim, pretende-se demonstrar o

    quanto tais querelas que levaram aos cismas eclesiásticos se fundamentaram num problema de

    linguagem e de formulação, sem que a essência do dogma fosse alterada.

    Introdução

    Foi no século II que o cristianismo tomou contato com a filosofia helênica, quando alguns

    convertidos de cultura grega passaram a encarar a sua nova fé com as perspectivas filosóficas. O

    Evangelho de São João, bem como as cartas de São Paulo, continham muito material que propunha

    um verdadeiro diálogo da fé com a filosofia. Desse modo, os filósofos cristãos passaram a usar a

    linguagem filosófica para explanar e refletir o cristianismo, dando sem dúvida um sentido novo a

    muitos conceitos e expressões. Um dos intuitos era tornar a doutrina cristã palatável aos pensadores

    “pagãos”.

    Na tentativa de harmonizar os dados da revelação com os da razão, produziu acirradas

    controvérsias referentes aos princípios fundamentais da fé cristã: a unicidade da natureza divina na 1 O autor é formado em Letras Clássicas na área de Língua e Literatura Latina pela Universidade de São Paulo. Sua

    linha de pesquisa é Filosofia, História e Literatura Patrística e Medieval, abrangendo a Europa latina, as civilizações bizantina e islâmica e a cultura judaica. É membro do Grupo de Tradução e Pesquisa/CNPQ “Filosofia Árabe e História do Pensamento”, liderado pelo Prof. Dr. Miguel Attie Filho, da Área de Língua e Literatura Árabe (USP), no qual desenvolve uma pesquisa referente à versão latina da Metafísica de Avicena, filósofo muçulmano do século X. É colaborador da Área de Língua e Literatura Armênia da mesma Universidade.

  • trindade de pessoas e a incarnação do Logos divino ou na divindade de Cristo. A ideia central estava

    em conservar a unicidade da natureza divina tão solenemente proclamado pelo Antigo Testamento e

    repetido como uma “profissão de fé” pelos judeus: “Escuta, ó Israel, o Senhor é nosso Deus, o

    Senhor é Único”2. Seria o Filho e o Espírito Santo uma mera manifestação do único Deus na relação

    com o mundo (modalismo), seria Jesus um simples homem, adotado por Deus e divinizado

    (adopcionismo)? Estaria o Filho e o Espirito Santo subordinados ao Pai como deuses inferiores

    (subordinacionismo) ou eram meras criaturas do Pai (arianismo)? Estas e outras questões agitaram

    os cristãos dos primeiros séculos. A mais forte corrente foi o arianismo, no século IV, que ensinava

    que o Logos fora criado pelo Pai e usado como instrumento para a criação do mundo.

    No presente estudo, abordaremos as controvérsias cristológicas do século V, que tratam de

    como se realizou a união do Logos divino com a natureza humana assumida na incarnação e,

    portanto, a questão sobre qual é a verdadeira natureza de Cristo, e suas consequências históricas.

    Observamos que adotamos o termo Logos ao invés de “Verbo”, por nos parecer mais

    expressivo o termo no original grego que significa “discurso”, “razão”, “pensamento”, quanto que

    “Verbo” não tem essa carga significativa, não sendo outra coisa que um nome próprio da segunda

    Pessoa divina, perdendo sua carga semântica e teológica original. Nos textos citados respeitamos os

    tradutores conservando o termo “Verbo”.

    I. Os Precedentes: As controvérsias anti-arianas e o apolinarismo

    As controvérsias anti-arianas foram as principais causas dos debates referentes à natureza de

    Cristo. Por isso, convém repassar rapidamente pelos dois fatos que precederam esses debates,

    criando a condição propícia para que surgissem, a saber: a realização do Concílio de Niceia, a

    doutrina de Santo Atanásio e as teses apolinaristas.

    I.1. Santo Atanásio e o Concílio de Niceia

    O primeiro Concílio ecumênico de Niceia (325) havia definido solenemente a divindade do

    Logos e, por conseguinte, a natureza divina de Cristo, condenando as teses arianas que considerava

    o Logos apenas uma criatura do Pai, embora fosse a primeira e a mais excelente, mediante a qual

    criou o mundo: “Deus nem sempre foi Pai; houve um tempo em que era somente Deus [...] o Verbo

    de Deus foi feito a partir do nada; houve um tempo em que ele não existia”3. O Concílio refutou

    essas teses afirmando ser Cristo “Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro,

    gerado, não criado, consubstancial ao Pai”4.

    2 Cf. Dt 6, 5.3 Fragmenta ex Thalia, in Enchiridion Patristicum, nº 648ss, citado em: BETTENCOURT, E., Curso de

    Cristologia. Rio de Janeiro, p. 77.4 Cf. DS 150.

  • O arianismo foi uma das maiores crises, senão a maior, enfrentada pelo cristianismo na

    Antiguidade. Mesmo condenado, não se diluiu facilmente, tornando-se também uma forte facção

    política no interior do Império5. Quase todos os Padres da Igreja desse período o combateram

    violentamente, entre outros, Santo Atanásio, Santo Hilário, São Jerônimo e Santo Ambrósio.

    Atanásio, bispo de Alexandria, foi praticamente a alma do Concílio de Niceia. Chamado o

    “Campeão da ortodoxia nicena”, refutou vivamente o arianismo em seus vários escritos, enfatizando

    sempre a divindade do Logos e sua incarnação pela assunção de um corpo:

    Assumiu, no entanto, um corpo como o nosso e não o fez simplesmente, mas o quis nascido de

    uma virgem sem pecado, imaculada, intacta. Era puro o corpo, inteiramente alheio a qualquer

    união humana. Sendo poderoso e criador do universo, edificou para si, na Virgem, qual um

    templo, um corpo. Dele se apropriou, fê-lo um instrumento para se dar a conhecer e onde habitar.

    E assim, de algo que é nosso, tomou um corpo semelhante ao nosso, e como estamos todos

    sujeitos à corrupção da morte, Ele o entregou à morte, em prol de todos, apresentando-o ao Pai6.

    Querendo responder aos gnósticos, a quem o corpo de Cristo era aparente7, Atanásio

    enfatizou o corpo a fim de evidenciar a realidade da incarnação; insistiu no corpo como instrumento

    do Logos, uma peculiaridade de seu pensamento, que na tradição patrística mais antiga só se

    encontra em Tertuliano, e que se tornará característica da escola alexandrina, como veremos

    adiante. Contudo, seu silêncio à respeito da alma de Cristo, embora não a negasse, teve

    consequências nas discussões cristológicas posteriores.

    I.2. O Apolinarismo

    Os grandes debates cristológicos referentes à natureza de Cristo, que agitaram as Igrejas do

    Oriente no decorrer de todo o século V, tiveram, como precedentes, as controvérsias anti-arianas

    que ainda estavam bem acesas mesmo após o arianismo ter sido condenado pelo Concílio de Niceia,

    em 325. O ponto de partida foi dado por Apolinário quando este reagiu contra polemistas anti-

    arianos antioquenos que realçavam excessivamente a distinção entre as duas naturezas de Cristo.

    Apolinário era amigo de Atanásio e fora eleito bispo de Laodiceia (361), na Síria, sua cidade

    5 A corrente do arianismo foi um dos muitos elementos de romanização e cristianização dos povos germânicos, em que o cristianismo já se fazia presente desde muito cedo, como por exemplo, entre os godos. O curioso Wulfila, cristão grego de cultura goda, tendo sido sagrado bispo por Eusébio de Nicomédia, de tendência ariana, acabou por aderir ao arianismo e levou a cabo uma grande atividade missionária entre os godos, constituindo até mesmo uma Igreja gótica ariana, com uma liturgia própria, que mais tarde seria introduzida na Hispânia por ocasião da conquista visigótica, levando a um forte antagonismo entre a Igreja gótica ariana e a Igreja católica romano-hispânica. Outros povos, como os burgúndios, os ostrogodos e os longobardos, eram de fé ariana, provocando fortes dissenções com a população dominada romano-católica. Curiosamente foram bárbaros pagãos, como os francos sálios, mais tarde convertidos ao catolicismo, em que os galo-romanos, de fé católica, se apoiaram contra as investidas gótico-arianas.

    6 ATANÁSIO, S., A Incarnação da Verbo, II, 8, 3-4.7 Desde os seus primórdios, a Igreja teve de enfrentar a heresia docetista (do grego dókesis, “aparência”), à qual já se

    refere escritos do Novo Testamento, que atribuía a Cristo um corpo apenas aparente, negando assim a realidade da incarnação e consequentemente a redenção.

  • natal, pela facção nicena. Era exegeta de Sagrada Escritura e seguia a escola antioquena. Ele

    sustentava que havia em Cristo uma única physis, isto é, “natureza”, entendida concretamente como

    princípio operativo, fonte de ação. Segundo ele, Cristo não poderia ter duas naturezas completas,

    pois, a união entre dois perfeitos não pode redundar em verdadeira união, mas apenas numa

    justaposição. Levantava-se, então, a seguinte questão: Que tipo de homem é Jesus Cristo, visto ser

    ele o Logos incarnado? Apolinário procurava responder da seguinte maneira:

    Não confessamos que o Verbo de Deus veio num homem santo, como acontecia com os profetas,

    mas que o próprio Verbo se fez carne sem assumir um intelecto humano, um intelecto mutável e

    prisioneiro de raciocínios sórdidos, sendo Ele próprio o intelecto divino, imutável e celeste.

    O Filho, que é uno, não é duas naturezas, uma adorável e outra não adorável, mas uma só

    natureza, a do Verbo de Deus incarnado8 e adorado, juntamente com a carne dele, numa única

    adoração9.

    Apolinário radicalizara a doutrina de Atanásio ao afirmar que o Logos assumira uma

    natureza incompleta, privada de nous, isto é, do principio de racionalidade ou, em outras palavras,

    de uma alma intelectiva ou espiritual. O próprio Logos fazia às vezes de alma racional em Jesus.

    Para ele, se Cristo tivesse uma natureza humana completa, não seria impecável, pois, tendo o livre

    arbítrio, que é princípio de pecado, não estaria capacitado para realizar nossa redenção. A partir

    disso, Apolinário cunhou a fórmula que se tornou a base das disputas que se seguiram: Mía phýsis

    tou Theou Lógou sesarkooménee, “uma só natureza do Logos divino incarnado”.

    A tese apolinarista provocou oposição de várias partes. O princípio invocado por São

    Gregório Nazianzeno converteu-se na divisa da ortodoxia: “O que não foi assumido, não foi

    remido”10, isto é, se o Logos não assumiu integralmente a natureza humana, esta não foi

    integralmente salva. Atanásio, em diversas obras suas, respondeu a Apolinário segundo os mesmos

    princípios:

    O próprio Verbo se fez carne, embora continuasse a existir na condição de Deus. Em favor dos

    homens, Ele se fez homem segundo a carne em Maria [...] Este Salvador não teve um corpo

    inanimado ou carente de sentidos, nem um corpo privado de alma. Não era possível que existisse,

    no Senhor feito homem por causa de nós, um corpo sem alma, pois por Ele foi realizada a

    salvação não só do corpo, mas também da alma […] Nem devemos distinguir aquele que

    ressuscitou Lázaro, e aquele que perguntou a respeito de Lázaro, pois era o mesmo aquele que

    disse como homem: “Onde está sepultado Lázaro?” e aquele que, como Deus, o ressuscitou11.

    8 O grifo é nosso. Essa frase será a base para as disputas cristológicas que se seguiram.9 Citado em: BETTENCOURT, E., Curso de Cristologia. Rio de Janeiro, p. 79.10 Cf. Epístola 101,87.11 ATANÁSIO, S., Tomo aos Antioquenos, 7.

  • O apolinarismo foi condenado pelo Sínodo de Alexandria, em 362, como também pelo Papa

    Dâmaso I, em 377 e 382, e, em 381, a condenação foi confirmada pelo Concílio ecumênico de

    Constantinopla I. Todavia, embora enfraquecido o apolinarismo, a fórmula “uma só natureza do

    Logos divino incarnado” foi divulgada pelos discípulos de Apolinário como sendo de autoria de

    Santo Atanásio. Isso rebentaria mais tarde na crise monofisita.

    II. As Escolas teológicas: Alexandria e Antioquia

    Não é unívoco o entendimento do conceito de “escola” quando nos referimos às duas linhas

    teológicas que se desenvolveram nos dois grandes centros eclesiásticos do Oriente cristão,

    Alexandria e Antioquia. Enquanto que, na primeira, se refere à uma instituição acadêmica sob a

    autoridade episcopal, a segunda é, antes de tudo, uma corrente de pensamento que se constitui em

    torno de algumas personalidades de relevo, geralmente bispos e monges, não necessariamente

    ligados juridicamente à Sé antioquena, mas sob sua zona de influência espiritual, ou seja, as Igrejas

    de cultura sírio-helênicas.

    Cada uma das duas escolas desenvolveu sua própria cristologia partindo de premissas

    relativamente opostas entre si, provocando um certo antagonismo ideológico, que foi a causa das

    inflamadas discussões em torno da natureza de Cristo no decorrer do século V. Contudo, a oposição

    das duas linhas cristológicas era somente aparente e, portanto, não se excluíam mutuamente, sendo

    complementares, porquanto cada qual especulava uma face da questão, ao mesmo tempo que se

    utilizavam de métodos distintos. Ao serem radicalizadas, ambas as escolas deram origem a

    doutrinas heterodoxas diametralmente opostas.

    A fim de deixar mais claro a compreensão dessas querelas teológicas em suas causas e

    circunstâncias, faremos uma breve exposição histórica e de conteúdo das referidas escolas,

    procurando estruturar seus conceitos e indicar seus métodos e pressuposições e, em seguida,

    sintetizar tudo num quadro sinótico com o intuito de facilitar o entendimento de modo ilustrativo.

    II.1. Escola de Alexandria

    Fundada por Alexandre Magno em 331 a.C., a cidade de Alexandria (Egito) se constituiu no

    centro de uma brilhante vida intelectual onde se fundiram as culturas oriental (persa), egípcia e

    grega. Lá, a cultura judaica sofreu forte influencia helenística cuja síntese filosófica foi feita por

    Fílon, filósofo judeu de Alexandria a quem se reconhece como um dos fundadores do

    neoplatonismo.

    Sabe-se que o cristianismo se estabeleceu nesta cidade em fins do século I. Atribui-se a

    fundação da Igreja alexandrina a São Marcos evangelista, discípulo do apóstolo Pedro e por este

  • enviado de Roma, o que parece plausível embora pouco documentado12. O cristianismo aí se

    desenvolveu a partir das sinagogas helenistas da grande cidade13, mas foi bem lento, pois, ainda no

    século III, parece que a comunidade cristã pouco contava em Alexandria.

    Como cidade cosmopolita, uma diversidade de crenças de caráter esotérico e pseudo-

    filosófico pululavam em toda parte. Com o fim de desenvolver uma formação cristã mais sólida, por

    volta do século III, foi fundada uma escola catequética sob a autoridade do bispo da Igreja local,

    voltada sobretudo aos catecúmenos, isto é, aos que estavam se preparando para receber o batismo.

    O mais antigo diretor da escola foi Panteno, tido, por alguns, como o fundador. Contudo, foram

    Clemente e Orígenes aqueles que configuraram o método e a linha de pensamento da escola. “O

    meio ambiente em que se desenvolveu lhe imprimiu seus traços característicos: marcado interesse

    pela investigação metafísica do conteúdo da fé, preferência pela filosofia de Platão e a interpretação

    alegórica das Sagradas Escrituras”14.

    Os alexandrinos davam preferência à cristologia descendente que, inspirada no Evangelho

    de São João, partia da preexistência divina do Logos e da sua incarnação, colocando a natureza

    humana (de Cristo) como instrumento da divindade. Sendo assim, a redenção constitui na

    divinização do cristão que participa da graça divinizante de Cristo e toda a vida de Cristo é uma

    constante santificação da natureza humana.

    É nesse contexto que surge na Igreja de Alexandria, já no terceiro século, a festa da

    Teofania, isto é, da manifestação divina de Cristo no momento do Batismo por João, manifestação

    aos magos e aos pastores, manifestação no primeiro milagre de Caná (a transformação da água em

    vinho), fixada a 6 de Janeiro15.

    II.2. Escola de Antioquia

    Fundada por Seleuco I Nicator, filho de Antíoco, em 300 a.C., a cidade de Antioquia (Síria),

    antiga capital da dinastia selêucida, era um grande centro cosmopolita de cultura helênica onde a

    12 Antigas tradições que remontam ao século II, e portanto bem próximas dos eventos, supõe a ida de São Marcos a Alexandria após o martírio de São Pedro no ano 64, ou um pouco antes, por ocasião das perseguições contra os cristãos movidas por Nero. Marcos teria levado consigo o Evangelho que compôs a partir da pregação do apóstolo Pedro, por volta do ano 42, ligando as duas Igrejas, Roma e Alexandria, à herança apostólica petrina. Recentes descobertas arqueológicas tendem a confirmar os antigos relatos.

    13 De fato, com a expansão cristã nessa cidade, houve cada vez menos judeus até que, poucos séculos depois, já haviam desaparecido totalmente.

    14 QUASTEN, J. Patrologia I, Madrid, p. 317.15 Disseminada pouco a pouco em todas as Igrejas orientais e chegada a Roma somente no quarto século quando lá se

    estabelecia a festa da Natividade de Cristo (Natal), a 25 de Dezembro, em que se comemorava o nascimento físico do Salvador, celebrado como a verdadeira “luz do mundo” em franca oposição ao culto pagão do Sol invictus. No quinto século, a festa do Natal foi formalmente introduzida na liturgia bizantina. Enquanto a Igreja romana celebrava no Natal o nascimento físico e na Teofania ou Epifania a manifestação aos magos, a Igreja grega celebrava no Natal a manifestação aos magos e na Teofania, o Batismo de Cristo. A festa do Batismo só seria introduzida no rito romano no século XX, após a reforma litúrgica promovida pelo Concílio Vaticano II, no domingo que se segue à Epifania. No caso da Igreja armênia, não foi adotada a festa do Natal, conservando somente a Teofania a 6 de Janeiro, em que se comemora numa única festividade todo o mistério da incarnação e manifestação divina de Cristo.

  • população falava predominantemente o grego e o siríaco. Era uma das cidades mais populosas do

    Oriente. Antioquia era chamada também Epidafne, por causa do bosque de Dafne que se encontrava

    nos arredores e que constituía um dos principais centros religiosos helenísticos (pagãos).

    O cristianismo chegou lá muito cedo, formando-se a partir de judeu-cristãos helenistas

    provindos de Jerusalém16. No Livro dos Atos dos Apóstolos, relata-se a conversão de um centurião

    romano e sua família pelo Apóstolo Pedro17, os primeiros não judeus convertidos à fé cristã. Foi

    nesta cidade que pela primeira vez se usou a alcunha de “cristãos”18, não se sabe ao certo como e

    porque. A primitiva comunidade cristã de Antioquia era mista: conviviam pacificamente fieis

    provindos tanto do judaísmo19 como dentre os gregos20 e cujas práticas judaicas foram praticamente

    abolidas, provocando um certo desentendimento com a comunidade judaico-cristã de Jerusalém21.

    O apóstolo Pedro se fixara em Antioquia por um certo tempo, estabelecendo lá sua sede

    antes de se transferir para Roma e o apóstolo Paulo permaneceu um ano lá pregando antes de ser

    enviado para suas viagens missionárias. Tudo isso contribuiu para fazer de Antioquia um dos

    centros do cristianismo ao lado de Roma e Alexandria, ou seja, o princípio apostólico e petrino.

    A escola de Antioquia foi fundada por Luciano de Samósata, em 312, em direta oposição aos

    excessos e fantasias do método alegórico de Orígenes e dos alexandrinos. Esta escola centrava

    cuidadosamente a atenção no próprio texto e encaminhava seus discípulos para uma interpretação

    literal e o estudo histórico e gramatical da Escritura. Utilizava-se dos métodos da filosofia

    aristotélica, mais realista e empírica. A escola antioquena atingiu o seu apogeu com Diodoro de

    Tarso em fins do século IV. São João Crisóstomo foi seu discípulo mais ilustre e Teodoro de

    Mopsuéstia, o mais extremista. A tendência racionalista da escola antioquena foi causa do

    surgimento de muitas heresias, por exemplo, Luciano, o fundador, foi o mestre de Ário.

    A cristologia antioquena era a ascendente, partia da humanidade de Cristo sob a qual se

    velava sua divindade cuja manifestação paulatina se culmina na ressurreição, inspirando-se, desse

    modo, na cristologia paulina da redenção. Esta se dá sobretudo pela morte de Cristo, como

    sacrifício expiatório, e sua ressurreição pela qual venceu o poder da morte e do pecado. A Escola

    antioquena fazia nítida distinção entre a humanidade e a divindade de Cristo.

    II.3. Duas fontes do pensamento cristão

    Por métodos diferentes, as duas escolas teológicas contribuíram para a formação do

    16 Cf At 11,19-20.17 Cf. At 10, 1-48.18 Cf. At. 11, 26.19 No sentido de povo judeu, nação judaica.20 No sentido amplo de não judeus, “pagãos”.21 Os cristãos de Jerusalém eram predominantemente de origem judaica e exigiam que todos os convertidos aceitassem

    a circuncisão e as práticas judaicas. Isso levou a uma certa desconfiança para com a comunidade antioquena que cada vez mais abandonava todas as práticas judaicas e aceitava numerosos gregos, “pagãos”, ao batismo.

  • pensamento teológico e filosófico do cristianismo antigo, pois, nem todas as suas teses eram tão

    antitéticas que não poderiam se complementar e moderar os excessos que uma ou outra parte

    poderiam tomar. Enquanto que a corrente alexandrina tendia ao misticismo, a antioquena se

    encaminhava ao racionalismo, ambas as tendências igualmente perigosas se radicalizadas e ambas

    foram berços das correntes heterodoxas que se digladiavam em torno da questão da natureza de

    Cristo e que mais tarde foram agrupadas sob os termos monofisismo e difisismo.

    Convém lembrar que essas duas correntes de pensamento não estavam restritas aos

    complexos geográficos que lhe deram origem: o Egito e a Síria, respectivamente. Orígenes, o

    grande mestre alexandrino, fundou mais tarde uma escola em Cesareia da Capadócia que também se

    tornou centro de irradiação do pensamento alexandrino. Os pensadores mais importantes que lá se

    formaram, foram: São Basílio, São Gregório Nazianzeno e São Gregório de Nissa, os chamados

    Padres capadócios, que juntamente com São João Crisóstomo, de tradição antioquena,

    fundamentaram a tradição teológica da Igreja bizantina, sintetizada no século VIII por São João

    Damasceno, em pleno domínio islâmico.

    Quanto ao pensamento estritamente antioqueno, teve seu desenvolvimento sobretudo entre

    os cristãos sírio-orientais da Pérsia por influência da corrente nestoriana, embora não tivessem

    adotado exatamente as teses heterodoxas de Nestório. Todavia, a sua preferência pelo cultivo da

    filosofia aristotélica e de uma teologia racionalizante esteve na base da formação do mutazilismo22 e

    na origem da recepção das obras filosófico-aristotélica pelos árabes.

    Podemos sintetizar o que até aqui foi dito sobre as duas escolas teológicas, alexandrina e

    antioquena, no seguinte quadro sinótico:

    E s c o l a s T e o l ó g i c a sAlexandrinos Antioquenos

    Linha exegética Alegórica LiteralMétodo filosófico Platônico Aristotélico

    Cristologia Descendente (joaneia) Ascendente (paulina)

    III. Monofisismo x Difisismo

    Sob esses dois termos um tanto genéricos, monofisismo e difisismo, colocam-se várias teses,

    umas compatíveis, outras não, com a ortodoxia cristã, dependendo de como se entende o termo

    grego physis e, consequentemente, como se aplica em relação à pessoa de Cristo. Não sendo o caso

    de aprofundar a significação de physis na filosofia helênica, basta para nós, de momento, entendê-la

    por “natureza”, enquanto expressão da essência ou condição própria de um ser.

    22 Corrente teológica racionalista do Islam que berçou a formação da falsafa, a filosofia entre os árabes.

  • A questão medular que provocou as grandes discussões cristológicas estava no conceito que

    os teólogos heleno-cristãos faziam de physis ou “natureza” humana. Havia duas tendências, não

    necessariamente ligadas a uma ou outra escola, que se defrontavam:

    a) physis é a natureza em sentido concreto como princípio operativo ou fonte de ação; a

    natureza humana consiste num corpo orgânico animado cujo principio vital (psyché, alma) é

    idêntico a um nous (intelecto, espírito, mente);

    b) physis é a natureza no sentido individual concretamente subsistente num sujeito agente,

    num “eu”; acrescenta à definição anterior a noção de subjetividade e nesse sentido physis equivale a

    hypostasis (subsistência, subsistente, pessoa).

    A partir disso, levantava-se a seguinte questão: a união do Logos divino com a natureza

    humana assumida na incarnação resultou em Cristo duas physis (difisismo) ou uma physis

    (monofisismo)? A resposta dependia do conceito que se fazia de physis e que podemos reduzir a

    quatro teses: duas monofisitas e duas difisistas, em que cada uma apresentava uma tese ortodoxa e

    outra heterodoxa e, portanto, havia duas teses ortodoxas e duas heterodoxas. Abaixo serão expostas

    as teses em questão.

    III.1. O Monofisismo

    O termo monofisismo23 foi cunhado muito tardiamente para designar a doutrina da única

    natureza de Cristo. Todavia, isso se presta a equívocos, pois, sendo um termo genérico, abarca pelo

    menos três teses distintas e, até certo ponto, contrárias: o apolinarismo, o miafisismo e o

    eutiquianismo. Pode-se, no entanto, afirmar que o monofisismo não é tanto uma doutrina, mas uma

    tendência ligada à escola alexandrina que colocava em evidência a divindade de Cristo em relação à

    sua humanidade, vista como instrumento passivo do Logos24.

    O ponto de partida das teses monofisitas estava na polivalente fórmula de Apolinário, que

    seus discípulos atribuíram a Santo Atanásio: Mía phýsis tou Theou Lógou sesarkooménee, “uma

    só natureza do Logos divino incarnado”. Como já vimos, Apolinário negava que Cristo possuía uma

    alma racional, função assumida pelo Logos, e, portanto, tinha uma natureza humana incompleta.

    Quanto ao miafisismo e ao eutiquianismo, estas teses surgiram como réplica às tendências

    extremadas dos antioquenos que se ocupavam de tal modo em distinguir a divindade da humanidade

    de Cristo, colocando em risco a noção da unidade de pessoa.

    III.1.1. São Cirilo de Alexandria e o miafisismo

    Cirilo, arcebispo de Alexandria, aceitando a fórmula apolinarista como sendo de Santo

    23 Monofisismo, do grego monos, “um só”, e physis, “natureza”.24 Lembremos que Santo Atanásio considerava o corpo de Cristo como instrumento do Logos.

  • Atanásio, quis dar-lhe uma interpretação ortodoxa por ocasião da controvérsia nestoriana. Esta

    defendia a tese de que, em Cristo, havia duas pessoas distintas, uma divina e outra humana. Cirilo,

    entendendo physis como equivalente a hypostasis (pessoa), afirmava que as duas naturezas (physis),

    antes da união, resultou da união de ambas em uma só natureza (mia physis) subsistente, uma

    hypostasis, o Logos, em que todas as características da divindade e da humanidade se unem

    substancialmente num único sujeito, Cristo, Deus e homem.

    A fórmula cirílica foi adotada pelo Concílio de Éfeso como doutrina ortodoxa mediante a

    qual o nestorianismo foi condenado como heresia. Posteriormente, a doutrina cirílico-efesita foi

    denominada miafisismo, aludindo às primeiras palavras gregas da fórmula apolinarista: mía phýsis

    tou Theou Lógou sesarkooménee. A seguir, um importante trecho da carta de São Cirilo aprovada

    pelo Concílio como expressão da reta fé:

    Não afirmamos que a natureza [physis] do Verbo se tenha transformado para tornar-se carne.

    Também não afirmamos que a natureza do Verbo se tenha transformado para tornar-se um

    homem completo, constituído de corpo e alma. Mas professamos que o Verbo uniu a si

    hipostaticamente25 [kath'hypostasin] uma carne animada por uma alma racional e se fez homem

    de modo inexplicável e incompreensível, e assim assumiu o título de Filho do Homem não por

    simples vontade ou benevolência, nem simplesmente porque assumiu uma pessoa.

    Afirmamos, além disso, que, embora as duas naturezas sejam diferentes uma da outra, elas se

    uniram em verdadeira união, de tal modo que de ambas resulta um só Cristo e Filho. Isto não

    quer dizer que desapareceu a diferença das naturezas por causa da união, mas, sim, que a

    Divindade e a humanidade, por um misterioso concurso em prol da unidade, constituem um só

    Senhor e Cristo […]

    Não se diga que num primeiro momento nasceu da Santa Virgem um homem, no qual, num

    segundo momento, desceu o Verbo26. Mas, sim, afirmamos que desde o seio materno o Verbo se

    uniu à carne humana numa concepção carnal, de tal maneira que tornou sua a geração carnal […]

    E assim os Santos Padres não hesitaram em chamar Theotókos27 a Santa Virgem. Isto não

    significa que a natureza do Verbo ou a sua Divindade tenha tido origem no seio da Santa Virgem,

    mas, sim, que foi gerado por ela o corpo santo, animado e racional, ao qual se uniu

    hipostaticamente28 [kath'hypostasin] o Verbo; em consequência, este foi gerado segundo a

    carne29.

    III.1.2. O Eutiquianismo ou monofisismo estrito

    25 Isto é, “no plano da pessoa”.26 Refere-se ao ebionismo ou adopcionismo, doutrina herética do século II cuja tese era de que Jesus era um homem

    comum e que por ocasião do batismo por João, fora revestido de uma energia divina tornando-se Cristo e sendo adotado por Deus como Filho.

    27 Literalmente: “Aquela que dá à luz Deus”.28 Isto é, “segundo a pessoa”.29 DS 250-251.

  • Em meio aos debates anti-nestorianos, Eutíquio, arquimandrita30 de um mosteiro de

    Constantinopla, um monge piedoso, mas pouco versado em teologia, no intuito de seguir São Cirilo,

    afirmava que a partir da incarnação do Logos só ficava uma natureza em Cristo, a divina. Segundo

    ele, Cristo não era consubstancial com os homens, isto é, não compartilhava da mesma substância

    ou natureza com eles, das duas naturezas antes da união, resultava uma natureza após a união, pois a

    divina teria absorvido a humana. Por conseguinte, o corpo de Cristo já não seria igual ou

    consubstancial ao nosso, pois teria sido divinizado. Para ilustrar essa tese, usava-se da seguinte

    imagem: assim como uma gota de mel lançada na imensidão do oceano aí se dissolve totalmente, da

    mesma forma a humanidade de Cristo se dissolveu na divindade do Logos, que a assumiu31.

    O pensamento de Eutíquio era mais confuso do que errôneo. Faltava-lhe clareza em certos

    conceitos, no entanto, sua tese foi condenada por ter negado a realidade humana de Cristo. Mesmo

    assim, o eutiquianismo propagou-se rapidamente, especialmente entre os monges e os cristãos mais

    simples, pois, tendo Cristo por modelo, propunha-se a divinização de todos os cristãos fieis e,

    portanto, uma doutrina mística neoplatonizante.

    Por afirmar a única physis (divina) após a incarnação, sem nenhuma noção de dualidade

    divino-humana, ao eutiquianismo convém propriamente o termo de monofisismo. Essa corrente

    heterodoxa deu origem a numerosas seitas populares, muitas das quais com doutrinas um tanto

    extravagantes, que se multiplicaram nas regiões desérticas da Síria e do Egito, e que certamente

    estiveram na origem do sufismo32.

    III.1.3. Um quadro sinótico dos monofisismos

    No intuito de salvaguardar a unidade de Cristo após a incarnação do Logos, os teólogos

    alexandrinos, em polêmica com os antioquenos, desenvolveram teses que foram agrupadas sob o

    termo monofisismo. O problema central estava na interpretação da obscura fórmula apolinarista:

    Mía phýsis tou Theou Lógou sesarkooménee, “uma só natureza do Logos divino incarnado”,

    atribuída falsamente a Santo Atanásio, dando a ela, desse modo, uma autoridade indiscutível. Sendo

    assim, tal fórmula deveria ser interpretada de modo coerente com a fé cristã que, ao mesmo tempo,

    se distanciasse do apolinarismo. Daí, duas teses foram formuladas, uma de caráter erudito,

    ortodoxa, e outra de caráter popular, confusa e herética: o miafisismo e o eutiquianismo

    respectivamente.

    O miafisismo, nome dado à fórmula de São Cirilo, é uma doutrina monofisita somente na

    aparência. A doutrina confirmada pelo Concílio de Éfeso, se bem observada no trecho de carta de

    30 Arquimandrita, do grego archós, “superior”, mandra, “monastério”, o mesmo que abade nas Igrejas gregas.31 Cf. BETTENCOURT, E., Curso de Cristologia. Rio de Janeiro, p. 85.32 Sufi, corrente mística islâmica. Vale lembrar que a modalidade de cristianismo conhecida por Maomé e pelos

    primeiros muçulmanos foram certamente os monofisitas e nestorianos.

  • São Cirilo acima exposta, afirma a dualidade divino-humana de Cristo: “Isto não quer dizer que

    desapareceu a diferença das naturezas por causa da união, mas, sim, que a Divindade e a

    humanidade, por um misterioso concurso em prol da unidade, constituem um só Senhor e Cristo”. A

    fórmula apolinarista pseudo-atanasiana, porém, era um obstáculo à afirmação da união de duas

    physis em Cristo numa única hypostasis. E, por outro lado, uma afirmação difisista pareceria

    incorrer no erro dos antioquenos que afirmavam as duas physis ou pessoas em Cristo. Era

    necessário uma maturação das ideias, algo sempre muito arriscado.

    Para maior clareza, colocamos no quadro sinótico abaixo, uma síntese das três teses

    monofisitas:

    Monofisismo(alexandrinos)

    heterodoxo

    apolinarismo Cristo não possui uma natureza humana completa, uma alma racional, função assumida pelo Logos.

    eutiquianismo A natureza humana de Cristo foi absorvida pela divina na incarnação, restando apenas uma natureza, a divina.

    ortodoxo miafisismoA divindade e a humanidade realizam uma perfeita união hipostática, isto é, substancial, na única pessoa do Logos divino incarnado.

    III.2. O Difisismo

    O termo difisismo, diofisismo ou diafisismo designa a doutrina da escola antioquena das

    duas “naturezas” de Cristo. Possui suas raízes nos primeiros escritos cristãos que distinguem, em

    Cristo, um elemento divino (pneuma-logos), e um elemento humano (sarx)33. Com as disputas

    contra o paganismo e as heresias dos séculos II e III, reforçou-se a ideia de uma dualidade em

    Cristo: Melitão de Sardes falava de duas ousiai, isto é, duas “essências” ou “substâncias”; Origines,

    de duas physis ou “atributos” e Tertuliano, de duas substantiae, “substâncias” ou “naturezas”.

    A controvérsia anti-ariana contribuiu para o desenvolvimento da concepção de geração

    divina distinta da humana, induzindo à elaboração mais acurada dos conceitos das duas naturezas e

    das duas consubstancialidades. Levantava-se então o problema de como se realizam a união das

    duas naturezas num único Cristo. A escola antioquena procurava ressaltar a natureza humana

    distinguindo-a da divina em franca oposição às teses alexandrinas, quer contra o apolinarismo, quer

    contra Cirilo de Alexandria.

    A tese difisista tem como principais mentores Diodoro de Tarso e Teodoro de Mopsuéstia,

    discípulo do anterior. Teodoro entendia por physis uma natureza completa subsistente num sujeito

    agente. Portanto, reconhecia, em Cristo, duas naturezas distintas e dois sujeitos. Preocupado,

    todavia, com o divisionismo que a doutrina poderia redundar e que era criticada pelos apolinaristas,

    negava a afirmação de haver dois Senhores e dois Filhos. Ensinava que as duas naturezas estão

    33 Termos gregos: pneuma, “espírito”; logos, “razão”, “intelecto”, “pensamento”; sarx, “corpo”.

  • unidas de modo inefável e eternamente indissolúvel num único prosopon34, que a união não destrói

    a distinção das physis, nem a distinção não impede que as duas physis sejam um Cristo.

    Na verdade, porém, existem duas teses difisistas distintas: o nestorianismo e a doutrina do

    Concílio de Calcedônia, fundada na definição do Papa Leão I, o Grande. A primeira, heterodoxa, é

    uma radicalização das teses de Teodoro de Mopsuéstia; a segunda, ortodoxa, assemelha-se à

    doutrina cirílico-efesita, dita em termos antioquenos, e se aproxima da fórmula de união assinada

    por São Cirilo e por João de Antioquia após o Concílio de Éfeso, que trataremos a seguir.

    III.2.1. O Nestorianismo

    Nestório, piedoso monge e sacerdote de Antioquia, era discípulo de Teodósio de Mopsuéstia.

    Em 427, foi nomeado arcebispo de Constantinopla. Era conhecido por suas excelentes qualidades

    de orador e pelos ataques violentos aos hereges. Levando as teses difisistas ao extremo, condenou a

    devoção popular, muito difundida entre os monges e os fieis, a Maria “Mãe de Deus”, Theotókos,

    pois a considerava apolinarista e não dava, segundo ele, o devido reconhecimento à natureza

    humana de Cristo. Ensinava que Maria era Christotókos, “Mãe de Cristo”35, ou seja, Mãe de Jesus

    em sua união com o Logos, mas proibia que se dissesse anthopotókos, mãe do homem Jesus, para

    se evitar o perigo do adopcionismo. Eis um texto de Nestório:

    Com frequência é suscitada entre nós uma dificuldade: “Deve-se falar da Theotókos, isto é, de

    uma mulher que tenha gerado Deus, Maria, ou antes se deve falar de uma mulher que deu à luz

    um homem, anthropotókos? Mas será que Deus tem mãe?” […] Uma criatura não pode dar à luz

    o Criador, mas deu à luz um homem, instrumento da Divindade […] Mas mesmo assim, Jesus é

    um Deus para mim, visto que encerra Deus. Adoro o vaso por causa do seu conteúdo, a

    vestimenta por causa do que ela cobre36.

    A sua preocupação, como bom antioqueno, é a de salvaguardar, contra apolinaristas e

    arianos, a integridade da natureza humana de Cristo, entendida como completa personalidade, capaz

    de livre iniciativa, enquanto os alexandrinos a reduziam a mero instrumento passivo do Logos. Por

    isso, ele mantém cuidadosamente distintas as propriedades das duas naturezas e os nomes que a

    estas se referem. Mas, não obstante a distinção, ele recusou a acusação de Cirilo de pregar dois

    Cristos, reafirmando constantemente a indivisibilidade e a unidade de Cristo. Para indicar a união

    das duas naturezas, ele fala também de “unidade inefável”, mas prefere synápheia, “cunjunção”,

    para evitar que a união fosse considerada mistura. Ele adota a terminologia tradicional antioquena e

    fala do homem assumido pelo Logos, de templo em que o Logos veio morar, isto é, uma

    34 Prosopon, em grego: “aparência”, “aspecto externo”, “figura”, e por extensão, “pessoa”, mas em sentido não equivalente a hypostasis.

    35 Cf. nota 26. Tokein, “parir”, “dar a luz”.36 Sermão 9. Citado em: BETTENCOURT, E., Curso de Cristologia. Rio de Janeiro, p. 81.

  • terminologia que realçava a distinção entre o homem e Deus.

    III.2.2. A Fórmula de União

    A fórmula cirílica adotada pelo Concílio de Éfeso não agradara a muitos bispos antioquenos,

    aos quais pareceram não fazer clara distinção entre a divindade e a humanidade de Cristo e

    consideravam perigosa a fórmula Theotókos por parecer desviar-se do conceito de Deus imutável.

    Por isso, em 433, estabeleceu-se um acordo entre João de Antioquia e o arcebispo de Alexandria,

    Cirilo, que assinaram uma fórmula dita “de União”, provavelmente redigida por Teodoreto de Ciro.

    Essa fórmula procura expressar a ortodoxia de Éfeso em termos antioquenos, afastando-se do

    nestorianismo. Eis o seu trecho principal:

    Confessamos que nosso Senhor Jesus Cristo, Filho Único de Deus, é Deus perfeito e homem

    perfeito, [composto] de alma racional e corpo, gerado pelo Pai antes dos séculos segundo a

    Divindade, e nos últimos dias por nós e pela nossa salvação, nascido da Virgem Maria segundo a

    natureza humana. Ele é consubstancial com o Pai por sua Divindade, e é consubstancial conosco

    por sua humanidade. Já que havia a união das duas naturezas, confessamos um só Senhor, um só

    Cristo e um só Filho. Visto que compreendemos esta união realizada sem confusão de uma parte

    com a outra, confessamos que a Santa Virgem é Theotókos, pois o Verbo de Deus se incarnou e

    se fez homem, e desde o momento de sua concepção, uniu a si o templo que dela assumiu.

    Quanto às expressões dos Evangelhos e dos Apóstolos concernentes ao Senhor, sabemos que os

    teólogos ora as usam no singular como referentes à única pessoa de Jesus, ora usam no plural

    aludindo às duas naturezas; atribuem à Divindade de Cristo as que se aplicam à Deus, e a sua

    humanidade as que exprimem humilhação37.

    Esta fórmula, ao expressar a ortodoxia de Éfeso, serve-se de um vocabulário apto a não ferir

    os adversários de Cirilo. Assim, por exemplo, não fala de uma união kath'hypostasin, “hipostática”,

    mas professa a união, sem confusão, de duas naturezas. Não fala de uma natureza do Logos feito

    carne, expressão de Apolinário que Cirilo julgava ser de Santo Atanásio. É perceptível a réplica a

    Apolinário na afirmação “Deus perfeito e homem perfeito, [composto] de alma racional e corpo”. A

    fórmula fala de duplo nascimento: um a partir do Pai, o outro a partir da Virgem Maria, mas

    reconhece um só Senhor, Filho e Cristo. Faz uma alusão também ao Concílio de Niceia quando

    menciona a consubstancialidade com o Pai e a consubstancialidade conosco.

    III.2.3. São Leão Magno e o Concílio de Calcedônia

    Em reação à controvérsia eutiquiana (monofisista), o Papa Leão I dirigiu uma “carta

    dogmática” ao arcebispo Flaviano de Constantinopla, conhecida como Tomus ad Flavianum38, em

    37 DS 271-273.38 Epístola XXVIII do epistolário leonino.

  • que esclarecia a questão das naturezas de Cristo nos termos da teologia latina. Este documento

    tornou-se referência à toda Igreja ocidental e base à definição promulgada pelo Concílio de

    Calcedônia. Eis um importante trecho:

    Salvaguardadas, pois, as propriedades de ambas as naturezas e substâncias, unidas numa só

    Pessoa, foi assumida a humildade pela majestade, pela força a fraqueza, pela eternidade a

    mortalidade. Para obter o débito de nossa condição, a natureza inviolável uniu-se à passível.

    Assim, como remédio conveniente à nossa cura, um só e mesmo mediador entre Deus e o

    homem, o homem Cristo Jesus, de um lado podia morrer, e doutro lado não o podia. Nasceu o

    verdadeiro Deus com a íntegra e prefeita natureza de um verdadeiro homem, todo o que é seu,

    todo inteiro o que é nosso. Por “nosso” entendemos aquilo que o Criador fez em nós no início e

    que assumiu para ser reparado [...] O aniquilamento pelo qual o invisível se fez visível e o

    Criador e Senhor de todas as coisas quis ser um dos mortais, era compassiva, condescendência

    não deficiência de poder. Quem na natureza de Deus criou o homem, fez-se homem na condição

    de servo. Cada uma das duas naturezas conservou, sem alteração suas propriedades. Como a

    natureza de Deus não eliminou a natureza de servo, assim a natureza de servo não diminuiu a

    natureza de Deus [...] Dignou-se o Deus impassível tornar-se homem passível, o imortal

    submeter-se às leis da morte [...] Recebeu o Senhor de sua mãe a natureza, mas isenta de culpa. A

    natureza humana de nosso Senhor Jesus Cristo, nascido do seio da virgem, não difere da nossa

    por ter tido ele admirável natividade. Sendo verdadeiro Deus, é também verdadeiro homem.

    Nesta unidade não há mentira, pois mutuamente se coadunam humildade humana e grandeza

    divina. Como Deus não se altera por tal misericórdia, o homem não desaparece, absorvido pela

    natureza divina39. Age cada uma das naturezas em consonância com a outra, quando a ação é

    peculiar a uma delas. O Verbo opera o que lhe é próprio, e a carne executa o que lhe compete.

    Uma resplandece pelos milagres, enquanto a outra é sujeita aos opróbrios. Como não se aparta o

    Verbo da igualdade da glória paterna, a carne não perda a natureza do gênero humano. Um e o

    mesmo, convém repeti-lo, é verdadeiramente Filho de Deus e verdadeiramente filho do homem40.

    São Leão Magno reafirma a consubstancialidade de Cristo com o Pai e a

    consubstancialidade do mesmo com Maria, donde resultam duas naturezas completas não mutiladas

    nem confundidas entre si. Cada uma dessas naturezas realizou, durante a vida terrestre de Jesus, o

    que lhe era próprio. Portanto, uma doutrina difisista. Todavia, o sujeito responsável pelos atos de

    uma ou outra natureza, era Deus Filho, o Logos divino. Desse modo, a doutrina do Papa Leão I se

    afasta do nestorianismo ou das teses antioquenas extremadas, rejeita o apolinarismo e o

    eutiquianismo.

    O eutiquianismo foi condenado pelo Concílio de Calcedônia (451), durante o qual foi lida

    solenemente o Tomus ad Flavianum, que juntamente com a Fórmula de União, foi base para a

    39 Alusão à tese de Eutíquio. O grifo é nosso.40 LEÃO MAGNO, S., Tomo (28) a Flaviano. In: Sermões, p. 265-267.

  • composição de uma nova fórmula de fé que, após hesitações e debates, foi aprovada e promulgada

    pelo Concílio a 22 de outubro de 451. Eis a fórmula calcedonense:

    Seguindo os Santos Padres, ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho, Senhor

    nosso, o mesmo perfeito no tocante à Divindade, e perfeito no tocante à humanidade: Deus

    verdadeiro e homem verdadeiro em corpo e alma, consubstancial ao Pai quanto à divindade e

    consubstancial conosco quanto à humanidade; semelhante em tudo a nós, exceto no pecado;

    gerado pelo Pai segundo a divindade desde todos os séculos, e nos últimos tempos gerado de

    Maria Virgem Theotokos, por causa de nós e de nossa salvação. O mesmo e único Cristo, Senhor

    e Filho Unigênito em duas naturezas sem confusão, nem divisão, nem mudança, nem separação,

    há de ser o termo de nosso reconhecimento, sem que de algum modo desapareça a diferença de

    naturezas por causa da união, antes salvando-se as propriedades de cada natureza, embora as

    duas se encontrem numa única pessoa e subsistência. Não separado nem dividido em duas

    pessoas, mas uma só Pessoa, que é o único e mesmo Verbo, Deus, Filho Unigênito e Senhor

    Jesus Cristo41, como em outros tempos nos ensinavam os Profetas a respeito dele, e o próprio

    Jesus Cristo ensinou a respeito de si mesmo, e como nos transmitiu o símbolo de fé dos Padres 42.

    Uma vez redigidas todas estas coisas com todo cuidado e diligência e em todos os seus aspectos,

    este Santo Concílio Ecumênico as define, de modo que a ninguém é lícito professar outra fé, ou

    escrever, compreender, sentir ou transmitir outra crença aos seus semelhantes43.

    A fim de que fique mais claro o teor da definição conciliar, dispomo-la num quadro sinótico,

    que evidenciam bem a natureza divina e a natureza humana num só Cristo44:

    “Um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus CristoPerfeito em sua Divindade, Deus verdadeiro, Perfeito em sua humanidade, verdadeiro homem,

    constando de alma racional e corpo,

    consubstancial ao Pai segundo a Divindade consubstancial a nós segundo a humanidade, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado,

    gerado do Pai antes dos séculos segundo a Divindade gerado de Maria Virgem, Mãe de Deus, segundo a sua humanidade, nos últimos tempos, por causa de nós e de nossa salvação”

    “Um só e mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, reconhecido em duas naturezassem confusão nem mudança; a diferença de naturezas não é extinta pela união, mas, ao contrário, são ressalvadas as propriedades de cada uma das duas naturezas

    sem divisão, nem separação, unem-se numa só pessoa e não em um ser dividido em duas pessoas,

    mas um só e único Filho Unigênito, Deus, Verbo, Senhor, Jesus Cristo”

    41 O grifo é nosso.42 Refere-se ao Símbolo Niceno-Constantinopolitano, que sintetiza a definição de fé aprovada pelos dois primeiros

    concílios da Igreja, Niceia (325) e Constantinopla (381) e ainda hoje usada e solenemente cantada na Liturgia dominical em todos os ritos eclesiásticos do Oriente e do Ocidente.

    43 DS 301-303.44 Cf. BETTENCOURT, E., Curso de Cristologia. Rio de Janeiro, p. 87-88.

  • Percebe-se que a primeira parte desta definição confirma o Concílio de Éfeso, professando a

    unidade em Cristo. A segunda parte acrescenta a doutrina típica de Calcedônia: as duas naturezas,

    sem confusão, nem divisão ou mudança.

    A comunicação ou comunhão de propriedades é professada, na medida em que é

    reconhecida a unidade de pessoa (de sujeito ou de “eu”). É o mesmo “eu” de Jesus que por sua

    natureza humana, chora sobre Lázaro, e, por sua natureza divina, o ressuscita. Evitemos a confusão,

    pois, Deus, como Deus, não pode chorar, e o homem, como homem, não pode ressuscitar um morto.

    III.2.4. Um quadro sinótico dos difisismos

    Diferentemente do que ocorreu com as teses monofisitas, que partem de uma premissa

    comum, ou seja, a fórmula apolinarista, as duas teses difisistas se constituíram de modos diferentes

    e, até certo ponto, independentes, tendo em comum somente a profissão da união das duas physis

    em Cristo, divergindo, porém, no conceito deste termo. Enquanto que para Nestório, uma physis

    não tem subsistência, solidez real se não é também uma hypostasis (pessoa), preferindo falar de

    união por complacência (tachada pelos adversários de adopcionismo), entendida como união

    voluntária do Logos com um homem, para São Leão Magno, physis e hypostasis eram conceitos

    distintos e, portanto, poderia falar da perfeita união das duas physis, sem mistura, nem confusão, na

    única pessoa (= hypostasis) do Logos.

    Em outras palavras, enquanto que Nestório professava dois sujeitos em Cristo, um humano e

    outro divino, embora insistisse na unidade perfeita entre ambos, São Leão professava um único

    sujeito, o Logos divino que assumiu e uniu a si de modo perfeito e distinto, a natureza humana, e,

    portanto, duas naturezas, physis, unidas em um único sujeito, Cristo.

    Para maior clareza, colocamos no quadro sinótico abaixo, uma síntese das duas teses

    difisistas:

    Difisismo(antioquenos)

    heterodoxo NestorianismoConceito de natureza não se distingue de pessoa, portanto, as duas naturezas de Cristo constitui dois sujeitos, a do Logos divino e a do homem Jesus, unidos por complacência.

    ortodoxoConcílio deCalcedônia

    As duas naturezas, divina e humana, realizam uma perfeita união, sem mistura, nem alteração, na única pessoa do Logos divino incarnado.

    III.3. Comparação Sinótica do Monofisismo e do Difisismo

    A fim de oferecer melhor uma visão de conjunto, colocamos no seguinte quadro sinótico as

    quatro teses (nestoriana, miafisista, eutiquiana e leonino-calcedonense), distinguindo-as pelas

    correntes (monofisismo e difisismo) e pela situação doutrinal (ortodoxia e heterodoxia):

  • Monofisismo Difisismo

    Ortodoxo

    O Logos divino uniu a si de modo substancial um corpo animado por uma alma racional, isto é, uma natureza humana completa, e se fez homem sem deixar de ser Deus, um único sujeito, Cristo-Logos, perfeitamente divino e perfeitamente humano. (Cirílico-efesita ou miafisismo)

    As duas physis ou “naturezas”, a divina e a humana, realizaram uma perfeita união, sem mistura ou confusão, nem alteração, permanecendo distintas, mas substancialmente unidas em um único sujeito, Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem.(São Leão Magno e Concílio de Calcedônia)

    Heterodoxo

    Após a incarnação do Logos divino, a “natureza” (physis) humana foi absorvida pela divindade do Logos, “como uma gota de mel que se desfaz no oceano”, permanecendo uma única physis-natureza, a divina. (eutiquianismo)

    As duas physis (“naturezas” = pessoas) constituem dois sujeitos, o Logos divino e o homem Jesus, que realizam uma perfeita união indissolúvel por complacência, distinta, sem mistura ou confusão, permanecendo, todavia, dois sujeitos. (nestorianismo)

    Como se pode notar, em outros termos, as teses ortodoxas do miafisismo e leonino-

    calcedonense professam a mesma fé a respeito de Cristo: um único sujeito, o Logos divino, que ao

    encarnar-se une a si a natureza humana completa, realizando uma perfeita união das duas naturezas,

    divina e humana, “sem mistura ou confusão, nem alteração”, um só Cristo, Deus e homem

    perfeitos; uma única Pessoa (divina) em duas naturezas distintas e substancialmente unidas. A

    teologia posterior formaria o termo teândrico, isto é, divino-humano (de theós, “deus”, e aneer,

    andrós, “homem”), Cristo seria, então, um ser “teândrico”.

    As divisões que se deram entre os cristãos que optaram por uma ou outra tese (miafisismo ou

    ortodoxia calcedonense) se deram por mal entendidos a respeito dos conceitos que se discutiam, por

    rivalidades entre as escolas antioquena e alexandrina, bem como por motivos politico-culturais em

    que as regiões sul-orientais do Império bizantino (Egito e Síria oriental) buscavam autonomia frente

    a centralização da corte imperial de Constantinopla e a forte helenização das populações semitas ou

    de outros grupos dentro do Império (como os armênios), cujos argumentos eclesiásticos e teológicos

    eram somente pretexto para os conflitos ocorridos.

    IV. O Monenergismo e o Monotelismo

    O monenergismo45 e o monotelismo46 são duas teses heterodoxas afins ao monofisismo

    propostas pelo patriarca Sérgio de Constantinopla, cuja intenção era reconciliar os monofisitas com

    a ortodoxia calcedonense, sem, todavia, atingirem o seu intento.

    O monenergismo propunha que em Cristo havia um só princípio de operação ou atividade

    (energéia), e este seria o divino. Em outras palavras, no Logos divino estava o princípio de ação de

    Cristo, não havendo nada proveniente da natureza humana.

    O monotelismo atribuía a Cristo uma só vontade, a divina, que absorvera a vontade humana,

    45 Do grego mono, “uma só”, e energéia, “operação”, “atividade”.46 Do grego mono, “uma só”, theleetee, “vontade”.

  • ou seja, Cristo era desprovido de uma vontade humana, o querer de Cristo era o querer do Logos

    divino, sem cooperação com uma vontade humana.

    Sofrônio, patriarca de Jerusalém, reconheceu o perigo dessas duas novas apresentações do

    monofisismo e recorreu ao Papa Honório I, que era pouco versado em grego e em teologia

    bizantina, não compreendeu a gravidade e sutileza da questão, recomendando somente que se

    guardasse a fidelidade ao Concílio de Calcedônia e afirmando que isso era somente uma questão

    linguística e não de fé. E acrescentou que em Cristo não havia oposição entre a vontade divina e a

    humana e nesse sentido poderia falar de uma única vontade de Cristo. Todavia o papa se referia a

    uma unidade moral das duas vontades e não de uma única vontade ontológica, levando a sérias

    discussões.

    Diante do impasse, o Imperador Constantino IV, propôs ao Papa Agatão a realização de um

    Concílio ecumênico a fim de dirimir a questão, o que este consentiu prontamente. Por vontade do

    Papa, realizou-se vários sínodos de bispos no Ocidente a fim de discutirem a questão e por fim, foi

    composta uma fórmula de profissão de fé. O Concílio de Constantinopla III realizou-se de 7 de

    novembro de 680 até 16 de Setembro de 681 em que foi definido o seguinte:

    Este Santo Concílio ecumênico aceita fielmente e recebe de braços abertos a fórmula que propôs

    ao mui piedoso e fiel Imperador Constantino o mui santo e bem-aventurado Papa da antiga

    Roma, Agatão: rechaçou nominalmente aqueles que proclamavam e ensinavam haver uma só

    vontade e operação em Cristo, nosso verdadeiro Deus […] Apregoamos duas vontades em Cristo

    e duas operações, sem divisão, sem separação, segundo a doutrina dos Santos Padres, todavia

    duas vontades não opostas entre si […] A vontade humana de Jesus segue, sem resistência, nem

    oposição, a vontade divina, à qual está sujeita, pois é toda poderosa […] Assim como a carne de

    Jesus é a carne de Deus, assim também confessamos que a vontade natural própria da sua carne é

    do Verbo de Deus […] Assim como a carne de Jesus, santíssima e sem mancha, não foi extinta

    por estar divinizada, mas permaneceu dentro dos seus limites e da sua identidade, assimtambém a

    vontade humana não foi extinta por estar divinizada, mas, ao contrário, substitui usufruindo da

    salvação47

    É de notar que o texto conciliar fala de “carne divinizada” e “vontade divinizada”. O

    adjetivo era muito caro aos bizantinos. Está, porém, longe de significar a absorção do humano pelo

    divino; indica, antes, o fato singular de que a humanidade de Jesus subsistia por efeito de uma

    Pessoa divina; pertencia ao “eu” do Logos.

    V. Uma contextualização histórica dos eventos

    Como dissemos acima, os grandes debates cristológicos que agitaram os cristãos orientais no

    47 Cf. DS 553; 556.

  • século V foram consequência das controvérsias anti-arianas. O apolinarismo havia levantado a

    seguinte questão: como se realizava a união entre o Logos divino e a natureza humana assumida na

    incarnação? A tentativa de Apolinário, ao negar a integridade da natureza humana de Cristo, não foi

    bem recebida pelos teólogos, pois, estes queriam salvaguardar a integridade das duas realidades

    divina e humana de Cristo. Contudo, alexandrinos e antioquenos discordavam quanto ao modo de

    entender e colocar os termos. Enquanto os primeiros consideravam a humanidade como instrumento

    da divindade, os segundos procuravam distinguir de tal modo as duas naturezas que corriam o risco

    de dividir Cristo em dois sujeitos.

    A questão explodiu quando um discípulo de Nestório, então arcebispo de Constantinopla, o

    presbítero Anastácio, condenou do púlpito o título mariano de Theotókos. Isso levou a uma onda de

    protestos, intimidando o arcebispo a desmentir o auxiliar, o que não o fez, confirmando a tese.

    Deste modo, veio a tona a tese divisionista de Teodoro de Mopsuéstia. Estalou um verdadeiro

    tumulto; fieis protestavam durante as cerimônias litúrgicas, monges e bispos denunciavam o

    arcebispo da corte imperial. No Palácio, as princesas que governavam em nome de Teodósio II

    olhavam com crescente desagrado, pois encontravam-se indecisas entre o povo devoto da “Mãe de

    Deus” e os altos funcionários que as aconselhavam a não exacerbar os ânimos nas províncias da

    Síria, onde as teses antioquenas estavam bastante espalhadas.

    Alguns clérigos e monges da capital imperial recorreram a Cirilo, arcebispo de Alexandria,

    que, em vista da tradicional rivalidade entre Antioquia e Alexandria, via com maus olhos na sede

    episcopal de Constantinopla, já então principal sede do Oriente, um antioqueno de prestígio; e sua

    impostação cristológica, de tipo alexandrino, que percebia a unidade substancial das naturezas em

    Cristo, desconfiava de uma distinção nítida demais de suas propriedades humanas e divinas.

    Além disso, São Cirilo era injustamente acusado de ter estado implicado em alguns

    incidentes que haviam agitado Alexandria, tais como a invasão da cidade por um bando de monges

    que quase conseguiram massacrar o prefeito, e o odioso assassinato, por alguns cristãos fanáticos,

    da célebre filosofa Hipácia, cabeça da escola neoplatônica. Assumindo a tarefa de refutar Nestório,

    Cirilo libertava-se de todos esses rumores hostis e agia de acordo com sua fé e o seu temperamento.

    Após uma correspondência entre os dois arcebispos, mais um pedido de notícias genéricas, a

    segunda carta de Cirilo e a respectiva resposta de Nestório, ambas de cunho doutrinal, marcaram as

    divergências entre as cristologias das duas escolas. Em meio à polêmica gerada, tanto Cirilo como

    Nestório recorreram ao juízo do Papa Celestino I, pois ambos reconheciam a primazia da Sé de

    Roma. O Papa reuniu, então, um concílio (regional) em Roma, em agosto de 430, em que as teses

    de Nestório foram tidas como heréticas e convidou-o a reconhecer e renegar seus erros. São Cirilo

    recebeu delegação do Papa a fim de entregar a Nestório o diktat (decisão) romano e, caso não se

    retratasse, o excomungasse e o depusesse de sua sede.

  • Somente em novembro Cirilo o transmitiu a Nestório, provendo-o com uma série de doze

    anematismos que apresentavam a cristologia alexandrina na forma mais radical: ali se falava, entre

    outras, da unidade de natureza (hénosis physiké) humana e divina em Cristo. Nenhum teólogo

    antioqueno poderia subscrevê-la. Mas, neste ínterim, Nestório, apoiado por bispos antioquenos,

    recorreu ao Imperador Teodósio II, solicitando-lhe a realização de um Concílio ecumênico. Este

    acedeu e, com o consentimento do Papa Celestino, o convocou para realizar-se em Éfeso.

    O Concílio de Éfeso iniciou seus trabalhos a 22 de Junho de 431, na grande basílica da

    Virgem Maria, com a participação de cento e sessenta bispos. Logo na primeira sessão, sob a

    liderança de São Cirilo, Nestório foi condenado e deposto e foi aprovada uma carta de Cirilo de

    Alexandria, tida como confissão de reta fé, e a proclamação de Maria Theotókos, pois, havendo em

    Cristo uma só pessoa (divina) e tendo a Virgem gerado a pessoa do Logos unido à natureza humana,

    competia-lhe esse título que os fieis já estavam familiarizados. Em represália, nos dias seguintes,

    adeptos de Nestório condenaram e depuseram Cirilo, levando o Concílio a uma situação irregular.

    Após alguns dias, com a chegada dos legados do papa, os bispos Arcádio e Projeto e o

    presbítero Filipe, que traziam consigo cartas de Celestino I, as quais indicava a doutrina a ser

    adotada, ratificaram as decisões conciliares tomadas antes de sua chegada, levando à condenação

    definitiva das teses nestorianas e a consagração da fórmula cirílica. A última sessão realizou-se a 31

    de julho. Contudo, a questão não estava totalmente encerrada, muitos bispos antioquenos não se

    sentiram confortáveis com a fórmula cirílica parecendo-lhes um tanto apolinarista.

    Teodósio II, aprovou ambas as condenações e deposições, por lhe parecer que tanto Nestório

    quanto Cirilo eram responsáveis pelas querelas que perturbavam a paz da Igreja e do Império.

    Porém, em relação à Cirilo, que voltara ao Egito, permaneceu inoperante, enquanto que Nestório

    renunciou espontaneamente a uma defesa ulterior e retirou-se para um monastério em Antioquia,

    sendo sucedido por Ático na Sé de Constantinopla.

    Os arcebispos Cirilo de Alexandria e João de Antioquia, após algumas negociações, levaram

    à reconciliação entre alexandrinos e antioquenos em abril de 433, ao assinarem uma fórmula de fé

    dita “Ato de União”, aprovada por ambas as partes: os antioquenos renunciavam a Nestório,

    aprovando sua condenação, enquanto Cirilo renunciava aos doze anematismos. Nestório, então, foi

    exilado primeiro para Petra e depois para o grande Oásis, no deserto líbico.

    Alguns alexandrinos mais radicais, todavia, acusaram Cirilo de fraqueza por ter assinado a

    fórmula de união, o que lhes pareceu aprovar as teses nestorianas. Isso levou à formação de

    doutrinas monofisitas extremistas, entre as quais o eutiquianismo, na verdade uma doutrina confusa

    de um arquimandrita bizantino pouco versado em teologia, mas que conquistou as massas populares

    e numerosos monges de pouca erudição na Síria e do Egito. Influente na corte, Eutíquio conquistou

    para suas teses toda a camarilha imperial, exceto a princesa Pulquéria, irmã do Imperador, que,

  • furiosa por ver a cunhada dominar cada vez mais o seu indolente irmão, se refugiou numa ortodoxia

    cada vez mais ferrenha. O caso teve, portanto, desde o início, nítidas ressonâncias políticas.

    O celeuma produzido levou o arcebispo Flaviano de Constantinopla a convocar um sínodo

    para a capital (448) que resultou na condenação das teses monofisistas e na deposição e

    excomunhão de Eutíquio, informando, em seguida, o Papa Leão I do ocorrido. Indignado, o

    arquimandrita afirmara não poder trair Santo Atanásio e São Cirilo e o tumulto teológico degenerou

    imediatamente: foi o povo contra o Palácio, Alexandria contra Constantinopla. Eutiquio apelou para

    o Papa, para Dióscoro de Alexandria, para muitos prelados e para o Imperador. Dióscoro, homem

    ambicioso e violento, havia sucedido São Cirilo na Sé de Alexandria (444) e pertencia à ala radical

    que recusara o “Ato de União”. Aproveitou-se da situação para impor a sua autoridade contra

    Antioquia e Constantinopla, declarou Eutíquio inocente e levou a imperatriz Eudóxia a conseguir do

    marido a convocação de um concílio para rever o assunto.

    O concílio realizou-se em Éfeso (449), cidade da vitória de São Cirilo, sendo presidido por

    Dióscoro de Alexandria. O Papa, bem informado da questão, evitou refutar as teses heréticas e

    deixar-se engodar pelas argúcias gregas e, com sua sólida racionalidade latina, limitou-se a escrever

    sua famosa “epístola dogmática” dirigida a Flaviano, arcebispo de Constantinopla. Todavia,

    Dióscoro impediu que os legados papais participassem da aula conciliar e lessem publicamente o

    documento; reabilitou Eutíquio e depôs Flaviano. Este, logo depois, faleceria em consequências de

    maus tratos recebidos. Ao ser informado do acontecido, Leão I verberou contra aquilo que chamou

    de “latrocínio de Éfeso”.

    O repúdio a tal assembleia foi geral por parte dos próprios bispos antioquenos e da corte

    imperial, havendo intervenções da multidão e da polícia e com grandes perseguições aos ortodoxos

    organizadas pelos monges fanáticos adeptos do monofisismo. Salvos por um triz, os legados

    levaram ao papa os protestos indignados dos que defendiam a fé ortodoxa. Leão I, sem hesitar,

    ordenou a realização de um novo concílio. “Este certamente não teria se realizado se, por sorte,

    Teodósio II não tivesse morrido nessa ocasião, e se sua irmã Pulquéria não tivesse assumido o poder

    com seu marido Marciano. Subitamente, todos os ambiciosos e todos os intrigantes sentiram

    declinar sua fé na natureza única...”48.

    O Concílio a princípio fora convocado para Niceia, mas por decisão do Imperador Marciano

    foi transferido para Calcedônia, nas imediações de Constantinopla, sendo solenemente aberto a 8 de

    Outubro de 451 na Igreja de Santa Eufêmia, com a presença de mais de seiscentos bispos, em sua

    grande maioria orientais49, sob a presidência do bispo Pascasino, chefe da delegação papal. Este

    procedeu à leitura da “epístola dogmática” do Papa Leão I que, segundo consta nas atas, foi

    aclamada pelos Padres conciliares: “Pedro falou pela boca de Leão”. Deste modo as teses

    48 ROPS, J-D., A Igreja dos Tempos Bárbaros. São Paulo, p. 158.49 O Concílio de Calcedônia foi o mais concorrido da Antiguidade cristã.

  • eutiquianas foram condenadas e Dióscoro, posto em acusação por Pascasino, foi desposto por

    unanimidade, bem como Juvenal de Jerusalém e outros bispos de tendência monofisita.

    Os comissários imperiais propuseram que fosse aberto o debate sobre questões doutrinais a

    fim de compor uma nova fórmula de fé. Isso causou uma certa perplexidade, visto que o próprio

    Papa solicitara que não se tocasse nessas questões, pois, o Concílio de Éfeso de 431 proibira o uso

    de outra fórmula que não fosse a de Niceia (325) e por haverem muitos pareceres discordantes sobre

    a matéria na magna assembleia. Todavia, diante das insistências dos comissários, procedeu-se à

    leitura de documentos referentes às controvérsias cristológicas: os textos de São Cirilo e o Tomus

    ad Flavianum de Leão. Após alguns dias de discussões, foram confirmados solenemente os

    Símbolos de Niceia em conjunto com o de Constantinopla50, as cartas de Cirilo a nestório e a João

    de Antioquia e o Tomus do Papa Leão I. Chegou-se, então, a aprovação de uma nova fórmula cuja

    base era o “Ato de União” de Cirilo e João de Antioquia e a Epístola leonina. Nas sessões seguintes

    foram reabilitados Teodoreto de Ciro e Ibas de Edessa, condenados e perseguidos por Dióscoro.

    Com o encerramento do Concílio e a partida dos legados papais e de outros bispos, alguns

    clérigos de Constantinopla fizeram votar o cânon 28, que fazia da Sé de Constantinopla com os

    mesmos direitos da Sé Romana, dando-lhe jurisdição sobre todas as Igrejas do Oriente. Isso

    causaria uma grande repercussão negativa em toda a Igreja, tornando-se um dos principais motivos

    para as cisões que ocorreriam futuramente51.

    Dois séculos depois, buscando reconciliar-se com os monofisitas, o patriarca Sérgio de

    Constantinopla (610-638) propôs as teses do monenergismo e do monotelismo, que não era mais

    que uma nova edição do monofisismo heterodoxo. Refutado por Sofrônio, patriarca de Jerusalém,

    ambos apelaram ao Papa Honório I, que, pouco preparado para enfrentar as sutilezas da teologia

    bizantina, não entendera a questão, considerando um mero problema de linguagem e dando resposta

    evasivas que poderiam ser mal interpretadas e usadas pelos dissidentes. Após décadas de discussões

    acirradas, diante do impasse, o Imperador Constantino IV propôs ao Papa Agatão a realização de

    um concílio ecumênico. Este consentiu e após a realização de vários sínodos dos bispos ocidentais,

    foi redigido uma profissão de fé da Igreja latina que foi enviada ao Concilio de Constantinopla III

    (680-681)52.

    Este Concílio pôs fim aos debates cristológicos, estabelecendo a fórmula de Calcedônia

    indiscutível: em Cristo há um só pessoa (divina) e duas naturezas completas.

    50 A partir de então se estabeleceu o Simbolo Niceno-Constantinopolitano que a partir do século VI passou a ser cantado em todas as liturgias dominicais das Igrejas do Oriente. Nas Igrejas ocidentais seria introduzido mais tarde.

    51 O Papa Leão I protestará contra este cânon e não será aceito em no Ocidente por toda a Idade Média. Ele será o início de um longo processo que separará da Sé de Roma a Igreja de Constantinopla, que carregará consigo toda a Igreja grega, incluso os patriarcados de Jerusalém e Antioquia, formando a Igreja Ortodoxa grega separada da Igreja Católica Romana.

    52 O Concílio de Constantinopla II se reuniu em 553, mas teve pouca importância cristológica.

  • VI. As consequências históricas

    A condenação das teses nestorianas pelo Concílio de Éfeso (431) levou à ruptura dos

    cristãos sírio-orientais do Império Sassânida (persa), que seguiam a escola antioquena - ainda que

    não adotassem as teses heterodoxas de Nestório - por lhes parecerem um tanto apolinarista a

    fórmula cirílico-efesita. Isso contribuiu para que muitos nestorianos bizantinos emigrassem para as

    regiões da Pérsia.

    Desde o século IV, a Igreja persa – que se autodenominava de “Igreja do Oriente” -

    mantinha uma certa autonomia, tendo a sua frente o arcebispado de Ctesifonte-Selêucia53,

    localizado ao sul da Mesopotâmia, na confluência dos rios Tigre e Eufrates. Num concílio realizado

    em 410, ela declara (ou confirma) formalmente sua autonomia da “Igreja do Ocidente”, isto é, da Sé

    arquiepiscopal de Antioquia, da qual era teoricamente dependente, e introduz os cânones do

    Concílio de Niceia (325). Nessa mesma ocasião, o arcebispo de Ctesifonte-Selêucia se intitula

    “catholicôs”54, fazendo-se, desse modo, chefe da Igreja do Oriente. No concílio de 422, a então

    Igreja Assíria do Oriente declara definitivamente sua independência da Igreja de Antioquia e mais

    tarde, em 486, rompe a comunhão eclesiástica por não reconhecer as definições do Concílio de

    Éfeso55, ocasião em que seu chefe assume o título de “catholicôs-patriarca”. Sem dúvida, causas

    políticas tiveram um grande peso nesse cisma, visto que a Igreja sírio-oriental pertencia a um outro

    Estado rival do Império romano-oriental (bizantino).

    Com o fechamento da escola de Edessa, considerada foco de doutrina nestoriana, seus

    teólogos e filósofos se transferem para Nísibis, em território persa. Daí por diante, a Igreja Assíria

    do Oriente tem um grande desenvolvimento, seus missionários a expandem desde a Armênia até a

    Índia e a China, convertendo muitos curdos e outras tantas tribos mongólicas. Com eles, um grande

    patrimônio do pensamento helênico, sobretudo a filosofia aristotélica, com obras em grego e em

    siríaco, são conservadas e ensinadas a outros povos, continuando a obra de Alexandre Magno na

    disseminação do helenismo em toda a Ásia central. A princípio, os cristãos persas terão forte

    prestígio na corte sassânida, mas posteriormente, sofrerão inúmeras perseguições, motivadas pela

    influência que pouco a pouco exercerão os jacobitas56. Isso contribuirá para que os cristãos assírios

    apoiem os árabes durante a expansão islâmica na Mesopotâmia e na Pérsia. No período do califado

    abássida57, a Igreja Assíria do Oriente será a grande responsável pela transmissão da filosofia

    aristotélica ao mundo árabe. Nesse período, a sede patriarcal será transferida para Bagdá58.

    53 Na ocasião, capital dos sassânidas.54 “Catholicôs”, do grego kathólikos, “universal”, “geral”, “supremo”.55 Por esse motivo, a Igreja Assíria do Oriente é até nossos dias erroneamente tratada de “Igreja nestoriana”.56 Cristãos sírio-antioquenos (ocidentais) não-calcedonenses ou monofisitas ortodoxos (miafisitas).57 Dinastia islâmico-pérsica do século IX ao XIII com sede em Bagdá. Período áureo da civilização islâmica.58 No século XV-XVI, uma grande parte dos fieis e da hierarquia da Igreja Assíria do Oriente retornarão à plena

    comunhão com a Igreja de Roma, criando a Igreja Católica de rito sírio-caldaico com seu próprio patriarca em Bagdá em plena comunhão com a Sé romana.

  • Em 543, foi eleito Jacó Baradai para bispo de Edessa, de tendência anti-calcedonense, ou

    seja, monofisita ortodoxo (não eutiquiano). Preocupado com os fieis monofisitas que estavam

    desprovidos de pastores, conseguiu da Imperatriz Teodora a possibilidade de ordenar padres e

    bispos59, criando assim, uma hierarquia monofisita sírio-antioquena (ocidental) sob sua direção.

    Embora não fosse sua intenção inicial, com o passar do tempo se constituiu em uma Igreja

    patriarcal cismática (antioquena), a Igreja Ortodoxa Síria, chamada vulgarmente de Igreja jacobita

    (miafisita). Esta Igreja teve uma grande expansão missionária em todo o Oriente Médio. Teve

    muitos teólogos e sábios de renome, tais como Severo de Antioquia, Juliano de Halicarnasso,

    Filoxeno de Mabug e Sérgio de Rechaina, que foi um grande médico e um marco entre a ciência

    grega e a civilização islâmica. Os jacobitas foram os responsáveis pela transmissão da filosofia

    platônica aos filósofos árabes e lutariam ao lado dos muçulmanos quando estes ocuparam as

    províncias sírias do Império Bizantino60.

    Impossibilitados de participarem do Concílio de Calcedônia por causa das batalhas contra os

    persas, os armênios tomaram o partido anti-calcedonense por terem entendido este como pró-

    nestoriano e sobretudo por razão do cânon 2861, que constituía o arcebispado de Constantinopla

    como a primeira Sé de jurisdição sobre toda a Igreja greco-oriental, com os mesmos direitos do

    Papa da velha Roma. Isso era visto como um meio de centralização do poder imperial que se usava

    das estruturas eclesiásticas para promover a helenização forçada de todas as províncias do Império

    que tinham outras culturas. Nos concílios de Vagharshapat (491) e de Dvin (527), armênios e

    georgianos confirmam sua rejeição pelo Concílio de Calcedônia e se separam da Igreja Universal,

    instituindo, no século VI, seus próprios arcebispos-catholicôs62.

    59 Ordenou ao todo 27 bispos e muitos padres.60 Durante as Cruzadas uma parte dos fieis jacobitas reatariam a plena comunhão com a Igreja romana com sua própria

    hierarquia. No século XVII, seriam constituídos pelo Papa em patriarcado próprio, católicos de rito sírio-antioqueno.61 A antiga organização hierárquica da Igreja agrupava as Igrejas locais ou bispados em províncias tendo a frente uma

    Igreja metropolitana cujo bispo detinha o título de metropolita e tinha o poder de vigilância sobre os bispos e as Igrejas de sua província. Roma, Alexandria e Antioquia, por serem Igrejas dos grandes centros urbanos do Império, pela sua origem apostólica e centro espiritual e mãe das demais, detinham uma grande preeminência, cabendo ao bispo de Roma, por ser o sucessor de Pedro, a primazia universal. No Concílio de Niceia, cânon 6, reconhecia a essas três Igrejas, na referida ordem, plenos poderes jurídicos acima dos metropolitas de suas respectivas regiões (Ocidente, Egito e Síria), adotando o título da arcebispos. No cânon 3 do Concílio de Constantinopla (381), o bispo da capital imperial, então sufragâneo do metropolita de Heracleia, é feito arcebispo, tendo o segundo lugar depois do de Roma. Reconheceu-se também o título ao bispo de Jerusalém, sufragâneo do arcebispo de Cesareia da Palestina. Éfeso, Capadócia, Ctesifonte-Selêucia, Sevilha e outras vão assumindo também o título arquiepiscopal. É somente no século sexto que se cunha o título de “patriarca” e “catholicôs” em substituição do de arcebispo, que tendeu a ser quase sinônimo de metropolita. Ao bispo de Roma reservou-se o título de Papa, antes comum aos demais bispos.

    62 Foi nessa ocasião que os armênios se apropriaram de uma lenda siríaca do século IV que atribuía aos discípulos Addaí e Mari a evangelização do reino nabateu de Edessa. Segundo a versão armênia, Addaí, erroneamente identificado com o apóstolo Tadeu, teria evangelizado os armênios. Desse modo, atribuía-se uma origem apostólica da Igreja armênia, justificando o cisma. Historicamente, registra-se a presença cristã na Armênia desde o século II, certamente sob o impulso da dinastia edessana. Somente no século IV se daria a definitiva instalação do cristianismo na Armênia por ação conjunta do Rei Tidart III e de São Gregorio, o Iluminador, de origem persa, que foi o primeiro bispo da Armênia, então dependente do arcebispado de Cesareia da Capadócia. Não muito tempo depois, a Igreja Ortodoxa Georgiana retomará a plena comunhão com a Igreja Bizantina. Na Idade Média, a Igreja Armênia buscará diversas reconciliar-se à Igreja Grega e a Romana, pondo fim ao cisma, porém sempre de duração efêmera. Na época das Cruzadas, uma parte dos armênios da Cilicia voltarão à plena comunhão com a Igreja de Roma, efetivada

  • A questão no Egito será mais grave, visto que os dois partidos se sucederão na Sé de

    Alexandria até 536 com Teodósio I, quando este é deposto pelo Imperador e substituído por Paulo I,

    que iniciará a linha sucessória dos patriarcas greco-ortodoxos de Alexandria, enquanto que Teodósio

    permanece até a morte (567) reconhecido pelos não-calcedonenses (monofisitas ortodoxos ou

    miafisitas) que elegerão um sucessor dando início à linha sucessória do patriarcado cismático da

    Igreja copta63. Esta terá também uma expansão para a Etiópia e Eritreia, que constituirão Igrejas

    nacionais oficiais do Estado e no século XX se constituirão em patriarcados próprios64. Porém, ao

    contrário das outras Igrejas, os coptas do Egito tenderão a ser uma Igreja minoritária e quase

    desaparecerá sob a pressão dos muçulmanos, tendo pouca importância histórica.

    Durante os séculos VII e VIII, os cristãos libaneses que viviam sob a orientação espiritual

    dos monges maronitas65, permaneceram afastados de todas as discussões cristológicas, mantendo

    certa reserva para com todos os outros grupos, parecendo terem adotado de boa fé o monotelismo

    por um certo tempo. Esse distanciamento e autonomia fez que se constituíssem em uma Igreja

    patriarcal própria que na época das cruzadas, mais precisamente nos século XII, reatariam a sua

    comunhão com a Igreja de Roma.

    VII. Diálogo teológico e superação das divergências cristológicas

    Como foi demonstrado, não há uma diferença essencial entre o monofisismo ortodoxo

    (miafisismo) e a doutrina de Calcedônia, que se reduzem a problemas de formulação e ajustamento

    de alguns conceitos. Isso levou a uma série de diálogos teológicos no decorrer dos tempos na

    tentativa de superar as divergências doutrinais e por fim aos cismas. A Igreja Armênia foi a que tem

    procurado, desde a Idade Média, essa reconciliação com a Igreja Grega e a Igreja Romana. Em sua

    Carta Universal dirigida a todos os fieis armênios, o Catholicôs Nersês Shnorhali propõe uma

    confissão de fé66, da qual extraímos o seguinte trecho:

    Nos últimos tempos, após o alegre anúncio do Arcanjo Gabriel, Ele desceu ao útero de Maria e,

    tendo tomado corpo, alma e mente a partir da natureza dela, realizou uma nova e inefável união

    com Sua divindade. Após o desenvolvimento