controle estatal das transferÊncias de recursos … · 2015. 6. 10. · iv resumo em um contexto...

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RODRIGO PAGANI DE SOUZA CONTROLE ESTATAL DAS TRANSFERÊNCIAS DE RECURSOS PÚBLICOS PARA O TERCEIRO SETOR TESE DE DOUTORADO ORIENTADOR: PROFESSOR DOUTOR SEBASTIÃO BOTTO DE BARROS TOJAL FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO SÃO PAULO – 2009

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  • RODRIGO PAGANI DE SOUZA

    CONTROLE ESTATAL DAS TRANSFERÊNCIAS DE

    RECURSOS PÚBLICOS PARA O TERCEIRO SETOR

    TESE DE DOUTORADO

    ORIENTADOR: PROFESSOR DOUTOR SEBASTIÃO BOTTO DE BARROS TOJAL

    FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

    SÃO PAULO – 2009

  • ii

    CONTROLE ESTATAL DAS TRANSFERÊNCIAS DE

    RECURSOS PÚBLICOS PARA O TERCEIRO SETOR

    Tese apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, sob a orientação do Professor Doutor Sebastião Botto de Barros Tojal, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Direito do Estado.

    Candidato: Rodrigo Pagani de Souza

    Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

    Departamento de Direito do Estado

    São Paulo, dezembro de 2009

  • iii

    Banca Examinadora:

    _____________________________________________

    _____________________________________________

    _____________________________________________

    _____________________________________________

    _____________________________________________

  • iv

    RESUMO

    Em um contexto de crescimento do volume de transferências de recursos públicos para

    entidades do terceiro setor e, ainda, de aumento do número de parcerias do Estado com tais

    entidades, cresce também a importância do controle estatal sobre as suas políticas de fomento

    e sobre a aplicação dos recursos transferidos. Paralelamente, a mídia, os órgãos estatais de

    controle e a academia jurídica manifestam preocupações com a corrupção na destinação desses

    recursos e com a ineficiência no seu emprego. Todos ainda enfrentam o desafio de fortalecer o

    terceiro setor, simultaneamente ao fortalecimento do controle do fomento estatal. A legislação

    federal brasileira, contudo, ainda não trata do assunto com o devido cuidado. Há um

    descompasso entre a importância do tema para o país, de um lado, e a insuficiência da

    legislação que o rege, de outro. Com este pano de fundo, esta tese descreve, primeiramente,

    qual é o direito vigente em matéria de controle estatal das transferências de recursos públicos

    da União para o terceiro setor. Em segundo lugar, aponta alguns dos principais problemas

    deste direito. Finalmente, sugere soluções para o seu aperfeiçoamento. Como ponto de partida

    para essas três vertentes de investigação, a tese trabalha com a hipótese de que tal controle é

    disciplinado por uma complexa teia de textos normativos que necessita ser reformada. O

    resultado das investigações é a confirmação desta hipótese, à medida que são reunidas

    evidências de que o quadro normativo geral é demasiado complexo, lacônico, excessivamente

    talhado pela via infralegal, descompassado com a Constituição Federal e ainda ineficaz – a

    despeito de suas últimas reformas –, demandando, sim, uma reforma legislativa. Com

    inspiração em projetos e anteprojetos de lei, assim como nas experiências espanhola e

    estadunidense pertinentes ao assunto e, ainda, levando em conta o diagnóstico de problemas

    efetuado, a tese defende seis medidas para reforma da legislação brasileira. Sustenta que tais

    medidas podem contribuir para a solução de parcela importante dos problemas da legislação

    vigente, tornando o controle estatal das transferências de recursos públicos para o terceiro

    setor mais democrático e consentâneo com os princípios constitucionais da impessoalidade,

    publicidade, motivação e eficiência.

    Palavras-chave: terceiro setor, entidades privadas sem fins lucrativos, controles externo e

    interno da administração pública, recursos públicos, parcerias, fomento, transferências,

    subvenções.

  • v

    ABSTRACT

    In a context of growth in the volume of government transfers to nonprofit

    organizations, as well as in the number of partnerships between the state and these entities,

    there is also a growing need for the state to control its own funding policies and the use of the

    transferred resources. Simultaneously, the media, the state controlling agencies and the legal

    academia manifest their concern with the corruption involved in the destination of those

    resources and the inefficiency in its application. They also face the challenge of strengthening

    the nonprofit sector while curbing illegal behavior and strengthening state control of

    government stimulus initiatives. The federal legislation, however, still does not cope with the

    matter in a cautious way. There is a mismatch between the importance of the subject to the

    country, on one hand, and the limitations of the legislation that should govern it, on the other

    hand. Against this backdrop, this thesis describes, first, what is the current law governing

    federal control of its own funding of nonprofit organizations. Second, it points out some of the

    key problems of the existing legislation. Finally, it suggests solutions for its improvement. As

    a starting point for these three lines of investigation, it works with the hypothesis that the state

    control over grants to nonprofits is regulated by a complex net of legal norms which needs to

    be reformed. The result of the investigations confirms this hypothesis, as the thesis assembles

    evidences of an existing legal framework extraordinarily complex, laconic, excessively

    tailored through regulations in lieu of statutes, not totally aligned with the Federal Constitution

    and inefficient in spite of its latest reforms – all these characteristics demanding,

    unequivocally, a statutory reform. Taking into account the diagnosis made and with an

    inspiration in bills and other legislative proposals in Congress, as well as in the Spanish and

    American experiences in the matter, the thesis pinpoints a number of six initiatives for the

    reform of the Brazilian legislation. It sustains that these initiatives should contribute to the

    solution of an important part of the flaws of the existing legislation, turning the state control of

    governmental transfers to nonprofits more democratic and tuned with constitutional principles

    governing the public administration, such as equality, publicity, reasoning and efficiency.

    Key words: third sector, nonprofit organizations, external and internal control of the public

    administration, public resources, partnerships, stimulus, transfers, grants, subventions.

  • vi

    RÉSUMÉ

    Dans un contexte de croissance du volume d’acheminement de ressources publiques à

    des entités du troisième secteur (associations à but non lucratif), et en plus un croissant

    nombre de partenariat entre l’état et les dites entités, augmente aussi l’importance du contrôle

    de l’état sur ses politiques d’appui et d’application de recours transférés. Parallèlement, le

    média, les organismes d’état de contrôle et l’Académie Juridique manifestent leur

    préoccupation au sujet de la corruption lors de la destination des ressources transférées et du

    manque d’efficacité quand à l’emploi. Tous encore font face au défi de fortifier le troisième

    secteur, simultanément à l’affermissement du contrôle d’appui de l’état. La législation fédéral

    brésilienne, cependant, ne traite pas encore ce sujet de la façon qu’il mérite. Il y a un

    désaccord entre l’importance du sujet pour le pays, d’une part, et l’insuffisance de législation

    pour qui le contrôle d’autre part. Après les énoncés ci-dessus, cette thèse fait la description,

    premièrement, de l’état du droit en vigueur en matière de contrôle sur les transferts des

    ressources publiques de l’Union pour le troisième secteur. En second lieu, elle signale certains

    des principaux problèmes de ce chapitre du droit. Finalement, elle propose des solutions pour

    son perfectionnement. Comme point de partie pour ces trois lignes de recherche, la thèse

    travaille avec l’hypothèse que son contrôle est régis par un complexe réseau des textes

    normatifs qui doivent passer par une réforme. Le résultat des recherches est la confirmation de

    cette hypothèse. À fur et à mesure que les évidences sont réunis on constate un cadre normatif

    trop complexe, laconique, excessivement taillé sur les règlements, en désaccord avec la

    Constitution Fédéral et encore inefficace en dépit des derniers changements, demandant,

    certainement une réforme législative. S’inspirant sur les projets et avant-projets de loi, ainsi

    que les expériences espagnoles et nord-américaines à ce sujet, et, aussi, tenant compte du

    diagnostique des problèmes réalisé, la thèse défend six points pour actualiser la législation

    brésilienne. Elle soutient que ces mesures peuvent contribuer à la solution d’une partie

    importante des problèmes de la législation en vigueur, en transformant le contrôle de l’état sur

    les transferts de ressources publiques au troisième secteur plus démocratique et conforme aux

    principes constitutionnels d’impersonnalité, publicité, motivation et efficacité.

    Mots clé: troisième secteur, associations à but non lucratif, contrôles externe et interne de

    l’administration publique, ressources publiques, partenariat, appui, subvention.

  • vii

    AGRADECIMENTOS

    Registro aqui a minha gratidão a pessoas que me apoiaram durante o período de

    elaboração desta tese.

    Ao professor Sebastião Botto de Barros Tojal, por ter acreditado em meu trabalho,

    desta vez no Doutorado, e me orientado, pacientemente, nos momentos de necessidade.

    Ao professor Carlos Ari Sundfeld, por ter me apoiado com o diálogo e com sua

    habitual generosidade sempre que solicitado.

    Aos professores Susan Rose-Ackerman, Henry Hansmann, Jerry Mashaw, John Simon

    e Jill Manny, com os quais tive a oportunidade e a satisfação de dialogar sobre o direito norte-

    americano das entidades sem fins lucrativos, em diferentes ocasiões.

    Às colegas Natasha Salinas e Janaina Schoenmaker, que gentilmente se dispuseram a

    conversar, em distintas ocasiões, sobre temas relacionados ao terceiro setor, dando-me

    valiosas sugestões de leitura.

    Aos professores e colegas Jacintho Arruda Câmara, Vera Monteiro, Henrique Motta

    Pinto, Rodrigo Campos, Guilherme Jurksaitis e Liandro Domingos, pelo apoio que me deram

    ao longo desses anos.

    A todos os colegas e professores de pós-graduação, no Brasil e nos Estados Unidos,

    com os quais aprendi e aprendo tanto.

    Aos meus pais, Isabel e Giovani, e ao meu irmão André, pelo incentivo aos meus

    estudos e carinho sempre presentes.

    À Cristina, minha amada, interlocutora de todas as horas, que viveu comigo os desafios

    da elaboração desta tese, por toda compreensão e apoio.

    Registro, enfim, que, embora afoturnado pela oportunidade de elaboração do trabalho e

    pelo apoio de tantas pessoas, só a mim cabe a responsabilidade pelos seus desacertos.

  • viii

    SUMÁRIO Resumo.............................................................................................................................................. iv Abstract............................................................................................................................................. v Résumé.............................................................................................................................................. vi Introdução........................................................................................................................................ 1 Parte 1. O DIREITO VIGENTE................................................................................................... 6 Capítulo 1. Terceiro setor: direito e realidade............................................................................. 8 1. A expressão “terceiro setor” e outras correlatas........................................................................ 8 2. O terceiro setor no Brasil: complexidade e diversidade............................................................ 15 3. O fomento estatal ao terceiro setor............................................................................................ 22 4. O controle da administração pública fomentadora.................................................................... 24 5. O controle das transferências de recursos públicos para o terceiro setor.................................. 27 5.1. Controle do quê................................................................................................................ 27 5.2. Controle por quem?......................................................................................................... 30 5.3. Controle como e com quais finalidades?......................................................................... 33 5.4. Em síntese........................................................................................................................ 35 6. O direito vigente em matéria de controle do fomento estatal ao terceiro setor......................... 36 Conclusão.......................................................................................................................................... 40 Capítulo 2. O fomento estatal ao terceiro setor e a técnica da subvenção................................. 42 Introdução......................................................................................................................................... 42 1. O fomento estatal: conceito e relevância atual.......................................................................... 43 2. A paulatina submissão do fomento estatal ao império do direito.............................................. 49 3. O fomento estatal ao terceiro setor também se “juridifica”...................................................... 51 4. Duas disciplinas normativas: a da atividade de interesse público e a do fomento

    estatal.........................................................................................................................................

    52 5. O fomento estatal e sua submissão a múltiplos ramos do direito.............................................. 55 5.1. O fomento estatal e o Direito Constitucional.................................................................. 56 5.2. O fomento estatal e o Direito Orçamentário.................................................................... 60 5.3. O fomento estatal e o Direito Tributário.......................................................................... 61 5.4 O fomento estatal e o Direito Financeiro......................................................................... 65 5.5. O fomento estatal e o Direito Administrativo.................................................................. 66 6. A transferência de recursos públicos para o terceiro setor........................................................ 67 6.1. Conceito de subvenção.................................................................................................... 68 a) Recursos do erário público....................................................................................... 69 b) Transferência............................................................................................................ 70 c) A fundo perdido....................................................................................................... 71 d) Em favor de particulares.......................................................................................... 72 e) Com a finalidade de fomento de atividade de interesse público.............................. 73 6.2. Conceito de transferência de recursos públicos............................................................... 79 Conclusão.......................................................................................................................................... 79 Capítulo 3. Regimes Especiais de Controle.................................................................................. 81 Introdução......................................................................................................................................... 81 1. O controle prévio....................................................................................................................... 85

  • ix

    1.1. Proibições relativas à destinação de recursos.................................................................. 85 1.2. Planejamento geral........................................................................................................... 86 1.3. Credenciamento............................................................................................................... 88 1.4. Processo de seleção.......................................................................................................... 94 1.5. Planejamento da execução de parceria............................................................................ 97 1.6. Contrato de parceria......................................................................................................... 101 2. O controle concomitante............................................................................................................ 104 2.1. Proibições relativas à aplicação de recursos.................................................................... 104 2.2. Processo de contratação de fornecedores......................................................................... 106 2.3. Acompanhamento da execução....................................................................................... 109 3. O controle posterior................................................................................................................... 115 3.1. Prestação de contas.......................................................................................................... 115 3.2. Infrações e sanções administrativas................................................................................. 120 Conclusão.......................................................................................................................................... 122 Capítulo 4. Regime Orçamentário-Financeiro............................................................................. 126 Introdução......................................................................................................................................... 126 1. Formas de destinação de recursos ao setor privado................................................................... 128 2. O setor privado legitimado a receber transferências.................................................................. 131 3. Requisitos para transferências a entidades privadas sem fins lucrativos................................... 131 4. Requisitos fixados nas LDO federais......................................................................................... 132 4.1. Objetos vedados............................................................................................................... 133 4.2. Transferência a título de subvenção social...................................................................... 134 4.3. Transferência a título de auxílio...................................................................................... 137 4.4. Transferência a título de contribuição corrente............................................................... 138 4.5. Transferência a título de contribuição de capital............................................................. 139 4.6. Outros requisitos.............................................................................................................. 140 4.7. A importância dos sistemas informatizados de gestão.................................................... 144 Conclusão.......................................................................................................................................... 147 Capítulo 5. Regime do Controle Interno....................................................................................... 150 Introdução......................................................................................................................................... 150 1. Sistema de Controle Interno do Poder Executivo Federal......................................................... 152 1.1. Visão geral: objetivos, ferramentas e estrutura................................................................ 152 1.2. O controle na prática........................................................................................................ 158 2. Síntese........................................................................................................................................ 166 Conclusão.......................................................................................................................................... 167 Capítulo 6. Regime do Controle Externo...................................................................................... 169 Introdução......................................................................................................................................... 169 1. Visão geral: objetivos, ferramentas e estrutura.......................................................................... 169 2. O controle na prática.................................................................................................................. 178 2.1. As “CPIs das ONGs”....................................................................................................... 178 2.2. A jurisprudência do TCU em matéria de transferências.................................................. 191 a) Transferências a Entidades Conveniadas................................................................. 193 b) Transferências às OSCIP......................................................................................... 200 c) Transferências intergovernamentais........................................................................ 206 d) Transferências a ONGs............................................................................................ 210 e) Transferências em geral........................................................................................... 217 3. Síntese........................................................................................................................................ 220 3.1. Publicidade às transferências........................................................................................... 220

  • x

    3.2. Influência na produção normativa sobre processo de seleção de entidades parceiras..... 221 3.3. Influência na produção normativa sobre seleção de fornecedores.................................. 223 3.4 Aperfeiçoamento do controle estatal............................................................................... 224 3.5 Auditorias focalizadas em transferências a ONGs.......................................................... 226 Conclusão.......................................................................................................................................... 227 Parte 2. OS PRINCIPAIS DESAFIOS.......................................................................................... 230 Capítulo 7. Problemas fundamentais do vigente sistema de controle estatal............................ 232 Introdução......................................................................................................................................... 232 1. Lacônica disciplina legal da matéria e instabilidade jurídica.................................................... 232 2. Alcance ainda restrito das inovações importantes do final dos anos 90.................................... 235 3. Redundância perniciosa de regimes jurídicos............................................................................ 246 4 Indefinição de paradigma: controle de meios ou controle de resultados?................................. 249 Conclusão.......................................................................................................................................... 252 Capítulo 8. Problemas relativos ao controle prévio..................................................................... 253 Introdução......................................................................................................................................... 253 1. Planejamento.............................................................................................................................. 254 1.1. Déficit democrático no planejamento do fomento estatal............................................... 254 2. Credenciamento......................................................................................................................... 262 2.1. Redundâncias................................................................................................................... 262 a) Títulos de Utilidade Pública e Entidade Beneficente de Assistência Social............ 262 b) Títulos de OS e OSCIP............................................................................................ 265 2.2. Discricionariedade na outorga......................................................................................... 270 2.3. Lacônica disciplina.......................................................................................................... 273 3. Processo de seleção.................................................................................................................... 284 3.1. Menoscabo ao princípio da igualdade............................................................................. 284 3.2. Clientelismo na elaboração da lei orçamentária anual..................................................... 294 4. Contratualização........................................................................................................................ 298 4.1. Tratamento único para parcerias público-públicas e público-privadas........................... 298 a) O convênio ou os convênios........................................................................................ 298 b) O excessivo viés de parceria intergovernamental do convênio................................... 304 c) Conseqüências perniciosas do viés de parceria intergovernamental do convênio...... 307 4.2. Excessiva fragmentação do regime de parcerias público-privadas................................. 312 Conclusão.......................................................................................................................................... 318 Capítulo 9. Problemas relativos ao controle concomitante......................................................... 319 Introdução......................................................................................................................................... 319 1. Processo de contratação de fornecedores................................................................................... 319 1.1. A impropriedade da licitação........................................................................................... 319 2. Acompanhamento da execução do objeto.................................................................................. 330 2.1. Lacônica disciplina legal da matéria................................................................................ 330 2.2. Acompanhamento falho ou inexistente............................................................................ 332 Conclusão.......................................................................................................................................... 333 Capítulo 10. Problemas relativos ao controle posterior.............................................................. 335 Introdução......................................................................................................................................... 335 1. Lacônica disciplina legal da prestação de contas final.............................................................. 336 2. Controle falho ou a destempo da prestação de contas............................................................... 338 3. Prestação de contas dos resultados alcançados ou dos meios empregados?.............................. 340

  • xi

    Conclusão.......................................................................................................................................... 344 Parte 3. AS REFORMAS PROPOSTAS...................................................................................... 346 Capítulo 11. Soluções em projetos e anteprojetos de lei.............................................................. 348 Introdução......................................................................................................................................... 348 1. Panorama.................................................................................................................................... 348 1.1. Projetos de lei.................................................................................................................. 348 1.2. Anteprojetos de lei........................................................................................................... 352 2. Análise....................................................................................................................................... 357 2.1. Um conceito jurídico de terceiro setor............................................................................. 357 a) Projetos de lei........................................................................................................... 357 b) Anteprojetos de lei................................................................................................... 358 2.2. Cadastros nacionais......................................................................................................... 363 a) Projetos de lei........................................................................................................... 363 b) Anteprojetos de lei................................................................................................... 365 2.3. Credenciamento de entidades.......................................................................................... 368 a) Projetos de lei........................................................................................................... 368 b) Anteprojetos de lei................................................................................................... 371 2.4. Processo de seleção.......................................................................................................... 371 a) Projetos de lei........................................................................................................... 371 b) Anteprojetos de lei................................................................................................... 374 2.5. Contrato de parceria......................................................................................................... 378 a) Projetos de lei........................................................................................................... 378 b) Anteprojetos de lei................................................................................................... 378 2.6. Prestação de contas.......................................................................................................... 382 a) Projetos de lei........................................................................................................... 382 b) Anteprojetos de lei................................................................................................... 385 Conclusão.......................................................................................................................................... 388 Capítulo 12. Soluções no direito estrangeiro................................................................................ 390 Introdução......................................................................................................................................... 390 1. O direito estadunidense.............................................................................................................. 391 1.1. Tipos de entidades privadas sem fins lucrativos.............................................................. 392 1.2. Legislação........................................................................................................................ 394 1.3. Regulação........................................................................................................................ 399 1.4. Análise............................................................................................................................. 403 a) Diferenças com relação ao caso brasileiro............................................................... 403 b) Semelhanças com relação ao caso brasileiro........................................................... 407 2. O direito espanhol...................................................................................................................... 412 2.1. Legislação........................................................................................................................ 412 a) Registro de associações............................................................................................ 418 b) Declaração de associações como de utilidade pública............................................. 420 c) Objeto da Lei Geral de Subvenções......................................................................... 422 d) Etapa inicial: planejamento e concessão.................................................................. 426 e) Etapa intermediária: gestão, prestação de contas, liberação e controle

    financeiro.................................................................................................................

    431 f) Etapa final: reintegração de valores e sancionamento de infratores........................ 440 g) Transparência das medidas de fomento................................................................... 443 2.2. Análise............................................................................................................................. 446 a) Comparação com o caso brasileiro: problemas fundamentais................................. 449

  • xii

    b) Comparação com o caso brasileiro: controle prévio................................................ 450 c) Comparação com o caso brasileiro: controle concomitante..................................... 452 d) Comparação com o caso brasileiro: controle posterior............................................ 454 Conclusão.......................................................................................................................................... 455 Capítulo 13. Soluções propostas: por uma reforma da legislação de controle.......................... 457 Introdução......................................................................................................................................... 457 1. Pontos centrais da reforma proposta.......................................................................................... 458 2. Detalhamento e justificativa de cada solução proposta............................................................. 462 2.1. Planejamento mediante consulta pública......................................................................... 462 2.2. Credenciamento objetivo e diretriz do predomínio da subvenção a entidades

    credenciadas.....................................................................................................................

    465 2.3. Processo de seleção universal e lastreado em publicidade, igualdade e motivação........ 468 2.4. Regime mínimo e universal de contratação administrativa............................................. 471 2.5. Ênfase no controle estatal de resultados.......................................................................... 475 2.6. Ampliação da transparência e do controle social............................................................. 480 3. Conclusão................................................................................................................................... 485 3.1. Soluções para problemas fundamentais........................................................................... 485 3.2. Soluções para problemas de controle prévio................................................................... 487 3.3. Soluções para problemas de controle concomitante e posterior...................................... 488 Conclusões........................................................................................................................................ 489 Bibliografia....................................................................................................................................... 504

  • xiii

    SUMÁRIO DE TABELAS E QUADROS Quadro 4.1: Tipos de transferência segundo a LRF.................................................................. 130 Tabela 1.1 Fomento estatal ao terceiro setor e controle do fomento estatal ao terceiro

    setor: finalidades e técnicas..................................................................................

    34 Tabela 1.2: Regimes jurídicos de controle do fomento estatal ao terceiro setor..................... 38 Tabela 2.1: Finalidades do fomento estatal ao terceiro setor, segundo técnicas de fomento,

    de acordo com o direito brasileiro........................................................................ 74

    Tabela 3.1: Os Regimes Especiais e as técnicas de controle das subvenções ao terceiro setor.......................................................................................................................

    83

    Tabela 4.1: Leis de Diretrizes Orçamentárias federais examinadas........................................

    127

    Tabela 4.2: Leis de Diretrizes Orçamentárias federais: objetos que não podem ser socorridos com recursos orçamentários................................................................

    133

    Tabela 4.3: Requisitos para a destinação de subvenções sociais nas LDO federais................ 137 Tabela 4.4: Requisitos para a destinação de auxílios nas LDO federais................................. 138 Tabela 4.5: Requisitos para a destinação de contribuições correntes nas LDO federais......... 139 Tabela 4.6: Requisitos para a destinação de contribuições de capital nas LDO federais........ 140 Tabela 4.7: Outros requisitos gerais para as subvenções sociais, auxílios e contribuições

    nas LDO federais..................................................................................................

    141 Tabela 4.8: Disponibilização de dados sobre contratos e convênios no SIAFI,

    SIASG e SICONV, segundo as LDO federais.....................................................................

    146

    Tabela 4.9: A Internet e a transparência da destinação de recursos federais ao setor privado

    147

    Tabela 5.1: Valor total, em Reais, das transferências feitas pelo governo federal a entidades sem fins lucrativos, por ano..................................................................

    163

    Tabela 6.1: Acórdãos citados do TCU sobre controle das transferências financeiras da União.....................................................................................................................

    192

    Tabela 7.1 Problemas fundamentais relativos ao controle estatal das transferências de recursos públicos para o terceiro setor..................................................................

    232

    Tabela 8.1: Problemas relativos ao controle prévio das transferências de recursos públicos para o terceiro setor...............................................................................................

    254

    Tabela 8.2: Lacunas nas leis que disciplinam o credenciamento de entidades privadas sem fins lucrativos........................................................................................................

    276

    Tabela 8.3: Os regimes jurídicos das parcerias........................................................................ 302 Tabela 9.1: Problemas relativos ao controle concomitante às transferências de recursos

    públicos para o terceiro setor................................................................................

    319 Tabela 10.1: Problemas relativos ao controle posterior às transferências de recursos públicos

    para o terceiro setor...............................................................................................

    335 Tabela 11.1: Proposições no Congresso Nacional para reforma da legislação do terceiro

    setor.......................................................................................................................

    351 Tabela 11.2: Anteprojetos de lei sobre reforma da legislação do terceiro setor........................ 354 Tabela 13.1: Sugestões de aprimoramento do direito vigente................................................... 459

  • 1

    INTRODUÇÃO O Estado brasileiro transfere recursos públicos, crescentemente, a entidades privadas

    sem fins lucrativos que atuam em seu território. Segundo dados do Instituto Brasileiro de

    Geografia e Estatística (IBGE) e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA),1

    existiam aproximadamente 338,2 mil fundações privadas e associações sem fins lucrativos no

    Brasil em 2005.2 O número de entidades do gênero – chamadas “FASFIL” no levantamento

    feito pelos institutos brasileiros – teve crescimento significativo no interregno de 1996 a 2005:

    foi da ordem de 215,1% entre 1996 e 2005, saltando do patamar das 107,3 mil entidades em

    1996 para o das 338,2 mil entidades em 2005.3 Parcela significativa dessas entidades recebe

    algum tipo de recurso público do Estado, seja sob a forma de transferências – subvenções

    sociais, auxílios ou contribuições, na terminologia da legislação orçamentária –, seja sob

    outras forma indiretas, como isenções tributárias.4 Doadores privados, sejam eles pessoas

    físicas ou jurídicas, também se beneficiam financeiramente do fomento estatal às entidades

    privadas sem fins lucrativos, pois o Estado lhes concede que suas doações privadas sejam

    revertidas em seu benefício sob a forma de deduções ou benefícios tributários.

    Ao mesmo tempo em que esta transferência de recursos públicos ao setor privado sem

    fins lucrativos torna-se paulatinamente mais significativa, setores da mídia, dos órgãos de

    controle e da academia jurídica manifestam preocupação com a corrupção na destinação

    desses recursos e com a ineficiência no seu emprego. Desde a última reforma legislativa

    atinente ao fomento estatal ao terceiro setor, ao final da década de 90 do século XX, que teve

    como marcos as Leis das Organizações Sociais (OS) e das Organizações da Sociedade Civil de

    1 Cf. BRASIL, IBGE, As Associações Privadas e Fundações Sem Fins Lucrativos no Brasil 2005, Rio de Janeiro, IBGE, 2008 (doravante denominado FASFIL 2005). A FASFIL 2005 está disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/fasfil/2005/fasfil.pdf (acesso em 17.12.2008). 2 O exato número era: 338.162 fundações privadas e associações sem fins lucrativos. Cf. ibid., p. 21 (“Tabela 3 – Número de Fundações Privadas e Associações Sem Fins Lucrativos, segundo classificação das entidades sem fins lucrativos – Brasil – 2005”). 3 Os números exatos deste crescimento foram: de 107.332 entidades em 1996 para as 338.162 entidades, como mencionado, em 2005. Cf. ibid., p. 46 (“Tabela 21 – Evolução das entidades constantes no Cadastro Central de Empresas – CEMPRE, em números absolutos e percentual de variação – Brasil – 1996/2004”). 4 Dados do Portal da Transparência, mantido pelo do governo federal na Internet, revelam que, no ano de 2008, mais de 3,4 bilhões de reais foram transferidos pela União para entidades sem fins lucrativos (cf. http://wwwportaldatransparencia.gov.br; acesso em 1º.07.2009). A respeito do volume anual de transferências desde 2004, extraído do citado Portal, cf. capítulo 5 desta tese.

  • 2

    Interesse Público (OSCIP)5, houve ao menos duas comissões parlamentares de inquérito

    (CPIs) instauradas no Congresso Nacional e focadas na apuração de fatos diretamente

    relacionados a organizações não-governamentais (ONGs), diversos projetos de lei

    apresentados para a introdução de alterações na legislação setorial6, duas auditorias do

    Tribunal de Contas da União (TCU) focadas em ajustes celebrados entre o Poder Público e

    entidades do terceiro setor7 e, recentemente, significativa elaboração normativa por parte do

    Poder Executivo federal, seja pela via de atos normativos infralegais, seja pela via de medida

    provisória.8 Todo este interesse pelo terceiro setor e, em especial, por problemas atinentes ao

    controle estatal das transferências de recursos públicos para a iniciativa privada sem fins

    lucrativos, esteve fomentado por denúncias ou suspeitas de corrupção e desvios de recursos

    transferidos noticiadas pela mídia.

    Tal contexto – no qual cresce a subvenção pública ao terceiro setor, de um lado, e

    surgem notícias de irregularidade e corrupção, de outro – demanda reflexão sobre o direito

    brasileiro em matéria de controle estatal das transferências de recursos públicos para a

    iniciativa privada sem fins lucrativos.

    Com vistas a contribuir para esta reflexão, a presente tese pretende enfrentar três

    questões fundamentais. Primeiramente, quais são os principais aspectos do direito vigente em

    matéria de controle estatal das transferências de recursos públicos para entidades do terceiro

    setor na esfera federal? Em segundo lugar, quais os seus principais problemas? Finalmente,

    como este direito pode ser aperfeiçoado com vistas ao enfrentamento dos problemas

    diagnosticados?

    Como ponto de partida para o enfrentamento destas três indagações, a hipótese com a

    qual se trabalha é a de que, em matéria de controle estatal das transferências de recursos ao

    terceiro setor, há um direito constituído por uma complexa teia de textos normativos,

    excessivamente fragmentados, que resultam em normas repletas de lacunas e insuficiências,

    5 Leis 9.637, de 15 de maio de 1998 e 9.790, de 23 de março de 1999, respectivamente. Sobre o conteúdo dessas leis e sua comparação com o direito anterior, cf. capítulo 3. 6 Foram a CPIs realizadas, grosso modo, em 2001/2002 e 2008/2009. A respeito dessas CPIs, cf. capítulo 6. 7 Sobre tais auditorias, cf. capítulo 6. 8 Sobre esta elaboração normativa por parte do Poder Executivo, cf. capítulo 3.

  • 3

    compondo um quadro normativo que necessita ser reformado. Parte-se da suspeita, noutras

    palavras, de que problemas no próprio direito que disciplina o controle dessas transferências

    contribuem, em certa medida, para o contexto de irregularidades crescentemente evidenciado.

    E acredita-se que tais problemas jurídicos mereçam diagnóstico preciso e que as normas

    vigentes podem ser aprimoradas em busca de soluções. A hipótese é cabalmente confirmada

    ao longo do trabalho, por uma série de evidências nele reunidas e sistematizadas.

    O trabalho está dividido em três partes, cada qual dedicada a responder a uma das três

    questões que o movem. Num primeiro momento procura-se identificar e descrever aspectos

    relevantes do direito vigente em matéria de controle, por parte do Estado brasileiro, sobre as

    transferências de recursos públicos para entidades privadas sem fins lucrativos. A busca pela

    compreensão deste direito não prescinde do apontamento de alguns dados relevantes sobre a

    realidade que o circunda. Tudo isso se faz na parte 1.

    Nela, o capítulo 1 estrutura-se ao redor da noção de terceiro setor, procurando reunir

    dados estatísticos a respeito das entidades que o compõem no Brasil e apontar em linhas gerais

    o tratamento jurídico que lhe é dado no país. No mesmo capítulo delimita-se, ademais, o

    objeto da tese, situando o controle estatal das transferências de recursos públicos para o

    terceiro setor como uma vertente do controle da administração pública fomentadora. O

    capítulo 2 explora mais detidamente a noção de administração pública fomentadora,

    esclarecendo que uma de suas técnicas é a subvenção ou transferência de recursos públicos,

    muito empregada para fins de fomento a entidades privadas sem fins lucrativos. Passa-se a

    enfrentar diretamente, nos demais capítulos desta primeira parte, o desafio de descrever

    aspectos do direito vigente em matéria de controle estatal das transferências de recursos

    públicos para o terceiro setor. O capítulo 3 cuida de explorar os diversos sistemas normativos

    que se voltam ao assunto – seis ao todo –, apelidados, para os fins desta tese, de Regimes

    Especiais de Controle. São os Regimes das Entidades de Utilidade Pública, das Entidades

    Beneficentes de Assistência Social, das Fundações de Apoio, das Entidades Conveniadas,

    das OS e das OSCIP. Na seqüência, os capítulos 4, 5 e 6 cuidam de explorar outros três

    sistemas normativos que também servem ao controle estatal das transferências em questão,

    embora não tenham nisto o seu foco. Formam o bloco dos Regimes Gerais de Controle,

  • 4

    assim apelidados para os fins desta tese. São os Regimes Orçamentário-Financeiro, de

    Controle Interno e de Controle Externo. Com isto finaliza-se a apresentação de um quadro

    geral descritivo de aspectos relevantes do direito brasileiro pertinente ao tema do controle

    estatal das transferências de recursos públicos para o terceiro setor.

    Nesta primeira parte do trabalho, mais importantes do que a fotografia do direito

    positivo – o que ele é – são as impressões que fotografia permite acerca do que ele não é,

    assim como do que ele poderia ser. Deveras, este panorama descritivo já contém as sementes

    do que se desenvolverá nas partes subseqüentes da tese, quando se apontam os problemas do

    direito em vigor e se buscam soluções. Afinal, a tese ambiciona, para além de alguma

    descrição do que o direito efetivamente é – árdua por si só, dado o cipoal normativo que o

    caracteriza –, contribuir para uma reflexão sobre o que ele poderia ser. E fica claro, a partir do

    grande esforço necessário para se mencionar apenas aspectos relevantes do direito aplicável à

    matéria, que se faz útil um diagnóstico de alguns de seus principais problemas. Este

    diagnóstico é feito na parte 2 do trabalho.

    É nesta segunda parte da tese que se busca enfrentar a questão: afinal, se o direito

    vigente parece problemático, quais são exatamente estes problemas? Parte-se da constatação

    de que existem problemas fundamentais, que perpassam toda a atividade de controle estatal

    das transferências de recursos públicos ao terceiro setor, e problemas mais pontuais, que

    dizem respeito apenas a aspectos e momentos específicos do exercício do controle. Assim, os

    problemas fundamentais são identificados e descritos no capítulo 7, reservando-se para os

    capítulos 8, 9 e 10 o tratamento dos problemas mais pontuais, atinentes, respectivamente, ao

    controle estatal incidente antes dos ajustes de transferência de recursos públicos,

    concomitantemente à execução desses ajustes e após esta execução. Fica comprovada, ao cabo

    desta segunda parte, a hipótese inicialmente levantada, de que existem problemas no próprio

    direito que rege o controle estatal das transferências de recursos públicos para o terceiro setor,

    que dão margem, por sua insuficiência, a desvios na aplicação de recursos.

    Segue-se o derradeiro passo do caminho percorrido pela tese, consubstanciado na

    parte 3, em que se apresentam e se discutem soluções para os problemas previamente

  • 5

    identificados. Procura-se, afinal, responder à questão: como aprimorar um direito que enfrenta

    os problemas identificados? Neste sentido são levantadas e discutidas, no capítulo 11,

    soluções apresentadas em proposições legislativas em tramitação no Congresso Nacional,

    assim como em anteprojetos de lei existentes que tangenciam aspectos do controle estatal

    sobre as transferências de recursos ao terceiro setor. No capítulo 12 passa-se a descrever e

    examinar soluções existentes nos direitos estadunidense e espanhol, cuja análise é útil seja

    pela pujança do terceiro setor nos Estados Unidos da América, seja pelo cuidadoso tratamento

    das subvenções públicas na Espanha.9 No capítulo 13, enfim, com base em toda a

    investigação realizada ao longo do trabalho – que produziu um retrato do direito vigente no

    Brasil, de alguns de seus problemas e de possíveis alternativas para o seu enfrentamento –,

    apresenta-se uma proposta de reforma do direito em vigor, baseada em seis tópicos: i)

    planejamento da constituição de vínculos de fomento e parceria mediante consulta pública, ii)

    credenciamento objetivo e diretriz do predomínio da subvenção a entidades credenciadas, iii)

    processo de seleção universal e lastreado em publicidade, igualdade e motivação, iv) regime

    mínimo e universal de contratação administrativa, v) ênfase no controle estatal de resultados e

    vi) ampliação da transparência e do controle social. Dita proposta, em sua maior parte, vem

    apoiar as proposições constantes do Anteprojeto de Lei Orgânica da Administração Pública,

    de 2009, para a disciplina dos vínculos de colaboração entre Estado e terceiro setor.10 Ao final

    apresentam-se conclusões que sintetizam as principais constatações feitas e proposições

    defendidas ao longo da tese.

    9 As citações da legislação e da doutrina estrangeiras neste capítulo, como, de resto, em toda a tese, é feita em vernáculo, mediante tradução livre deste autor. 10 A respeito desse anteprojeto de lei, cf. capítulo 11.

  • 6

    PARTE 1 – O DIREITO VIGENTE

  • 7

    PARTE 1 O DIREITO VIGENTE

    Esta primeira parte segue dedicada, fundamentalmente, à apresentação de um

    panorama do direito vigente acerca do controle estatal das transferências de recursos públicos

    para o terceiro setor. O panorama normativo é, contudo, antecedido da apresentação de uma

    visão panorâmica da realidade do terceiro setor no Brasil e, ainda, da delimitação do objeto do

    trabalho.

    Neste sentido, o capítulo 1 explora a noção de terceiro setor e a sua configuração na

    realidade brasileira, apontando, ainda, em linhas gerais, o tratamento jurídico que lhe é dado

    no país. Delimita, ainda, o objeto da tese, situando o dito controle estatal das transferências

    de recursos públicos para o terceiro setor como uma vertente do controle da administração

    pública fomentadora. O capítulo 2 explora a noção de administração pública fomentadora e

    esclarece que uma de suas técnicas é a subvenção ou transferência de recursos públicos. Os

    capítulos 3, 4, 5 e 6 já enfrentam diretamente o desafio de descrever as aspectos relevantes do

    direito pertinente à matéria. Assim, no capítulo 3 cuida-se dos seis Regimes Especiais de

    Controle – das Entidades de Utilidade Pública, das Beneficentes de Assistência Social,

    das Fundações de Apoio, das Conveniadas, das OS e das OSCIP. Nos demais capítulos são

    tratados os Regimes Gerais de Controle – o Regime Orçamentário-Financeiro no capítulo

    4, o do Controle Interno no capítulo 5 e o do Controle Externo no capítulo 6. Constrói-se,

    assim, um panorama descritivo do direito positivo, que servirá de pano de fundo para as etapas

    subseqüentes do trabalho.

  • 8

    CAPÍTULO 1 TERCEIRO SETOR: DIREITO E REALIDADE

    1. A expressão “terceiro setor” e outras correlatas: significados. 2. O terceiro setor no Brasil: complexidade e diversidade. 3. O fomento estatal ao terceiro setor. 4. O controle da administração pública fomentadora. 5. O controle das transferências de recursos públicos para o terceiro setor. 5.1. Controle do quê. 5.2. Controle por quem? 5.3. Controle como e com quais finalidades? 5.4. Em síntese. 6. O direito vigente em matéria de controle do fomento estatal ao terceiro setor. Conclusão.

    1. A expressão “terceiro setor” e outras correlatas

    A expressão “terceiro setor” designa o conjunto de entidades que não fazem parte nem

    do mercado (“primeiro setor”) nem do Estado (“segundo setor”), mas de uma terceira seara da

    vida em sociedade. Nesta seara, os agentes realizam atividades de interesse público, sem, no

    entanto, almejarem o lucro como o fazem os agentes de mercado, e sem, tampouco, integrarem

    o aparelho do Estado como ocorre com os órgãos e entidades governamentais. O uso da

    expressão disseminou-se no Brasil e no mundo, a ponto de tornar-se lugar comum na literatura

    das ciências políticas e sociais e rivalizar com outras denominações empregadas para designar

    o mesmo fenômeno.1

    1 Um panorama das expressões encontradas na literatura, especialmente a norte-americana (mas não só), para designar este universo de organizações e atividades – “terceiro setor”, “setor sem fins lucrativos”, “setor do voluntariado”, “setor das organizações não-governamentais (ONGs)”, “setor independente”, “setor das entidades das isentas de tributação”, “setor das instituições filantrópicas ou de caridade”, “dos comuns” e “das organizações não-proprietárias” –, pode ser encontrado no livro de Peter FRUMKIN, On Being Nonprofit: A Conceptual and Policy Primer, pp. 10-16. Nele, o professor da Kennedy School of Government da Universidade de Harvard aponta os períodos históricos em que cada uma dessas expressões esteve em evidência, as principais razões que motivaram o seu emprego, bem como as virtudes e imperfeições de cada qual. Constata, em suma, que o processo de busca de um único termo para designar esta esfera de atividades tem sido longo e conflituoso, que cada um dos termos já disseminados tem a sua própria bagagem histórica e política e que o debate terminológico continua ainda hoje. Na sua avaliação, isto se deve, nalguma medida, à diversidade de atividades a serem cobertas, seja qual for o termo escolhido. Sugere que conhecer este debate é importante, de todo modo, pois ele serve para ilustrar o escopo do setor, mesmo que “...a defesa definitiva de qualquer termo em particular seja impossível”. Cf. ibid., p. 10.

  • 9

    No Brasil, o terceiro setor costuma ser identificado, mais precisamente, como o

    conjunto de pessoas jurídicas de direito privado, não estatais, sem fins lucrativos e voltadas à

    persecução de finalidades de interesse público. É este também o significado com que a

    expressão segue empregada nesta tese.

    Um aspecto marcante das entidades do terceiro setor, no sentido assinalado, reside na

    circunstância de que são entidades que se dedicam a finalidades de interesse público. Atuam,

    em suma, em prol de interesses públicos. Este aspecto costuma ser realçado para o fim de

    distingui-las das ditas “entidades de benefício mútuo”, que, embora não estatais, privadas e

    sem fins lucrativos, têm por missão a promoção de interesses de um grupo exclusivo de

    associados – como é o caso, geralmente, dos clubes recreativos. Dessa forma, apartam-se, de

    um lado, as “entidades de benefício mútuo”, cuja clientela restringe-se aos seus associados e,

    de outro, as “entidades de benefício público”, ou do terceiro setor, que têm como clientela o

    público em geral.

    A diferenciação não está isenta de dificuldades, já que nem sempre é fácil a distinção

    entre a entidade que atua em benefício de seus associados e aquela que tem clientela incerta.

    Como alertou Joaquim FALCÃO, por mais que seja de benefício público, uma entidade faz

    sempre seleção de sua clientela. E com o passar do tempo, “... no dia-a-dia operacional, a

    clientela vai ficando cada vez menos incerta e cada dia mais selecionada. A entidade de

    benefício público, por motivos operacionais, tende a se assemelhar mais e mais à entidade de

    benefício mútuo.”2 A distinção, portanto, não é infalível. Todavia, em que pesem as possíveis

    dificuldades na sua aplicação prática, tem sido adotada para circunscrever o universo do

    terceiro setor ao das entidades consideradas de benefício público.

    Também é freqüente no Brasil o uso a expressão “organizações não-governamentais”,

    ou ONGs. O uso da expressão difundiu-se mundialmente a partir dos anos 70 do século

    passado e, ainda hoje, permanece popular em diversos países. Peter FRUMKIN especula a

    razão desta popularidade mundial do termo, especialmente em países em desenvolvimento:

    2 Democracia, direito e terceiro setor, p. 171.

  • 10

    “O que é interessante sobre o termo ‘não-governamental’ é o fato de que ele define estas organizações independentes em oposição ao governo, em vez de em oposição às empresas de negócio. Uma possível explicação para a popularidade do termo internacionalmente é o poder e a dominação que o estado usufrui em vários países em desenvolvimento e a relativa ausência de uma oposição organizada. O setor é então definido como aquele que não é parte do estado, em vez de como aquele que não está orientado para fins lucrativos. Esta escolha também reflete, implicitamente, o papel opositor de organizações não-governamentais locais, as quais realmente desafiam governos e exigem-lhes que prestem contas.”3

    Independentemente deste seu viés de definir-se por oposição ao governo, a expressão

    ONG, tal como usualmente empregada, assemelha-se à de terceiro setor na medida em que

    tanto uma quanto a outra servem para designar entidades que partilham os traços de não

    pertencerem à estrutura governamental, serem organizações privadas, não terem finalidade

    lucrativa e terem por missão alguma atividade de interesse público. Sem embargo, as ONGs

    não raro são vistas como mero subconjunto do terceiro setor – não o seu todo. É assim que as

    vê, por exemplo, Simone de Castro Tavares COELHO, para quem as ONGs corresponderiam

    a uma fração do terceiro setor constituída por organizações criadas recentemente e dedicadas a

    atividade de interesse público estreitamente ligada a algum aspecto da cidadania;

    corresponderiam, em suma, àquela fração constituída por organizações mais modernas e

    dedicadas à promoção da cidadania.4

    A distinção entre as ONGs e o restante do terceiro setor também pode ser encarada

    como uma expressão da classificação entre entidades “assistencialistas”, de um lado, e

    entidades “político-mobilizadoras”, de outro, que seriam as ONGs. Os diferenciais entre

    “assistencialistas” e “político-mobilizadoras” seriam muitos, todos bem sintetizados por

    3 On Being Nonprofit: A Conceptual and Policy Primer, pp. 11-12. 4 Com efeito, em sua obra Terceiro setor: um estudo comparado entre Brasil e Estados Unidos, fruto de tese de doutoramento defendida na USP sob a orientação de Ruth Cardoso, Simone de Castro Tavares COELHO identifica esta peculiaridade do universo das ONGs no Brasil. Sustenta que “ONGs” é uma denominação que expressa certa “carga de valores positivos ligados à cidadania” (ibid., p. 64) e observa, ainda, que “…quando pesquisadores e ativistas utilizam o termo ‘organização não-governamental’ estão se referindo a uma parte ou subconjunto dessas entidades [as do terceiro setor] – aquelas mais modernas, voltadas para defesa da cidadania.” Ibid., p. 65. Aponta, para ilustrar essa diferenciação, que várias entidades da Região Metropolitana de São Paulo, dedicadas à educação infantil e investigadas em sua pesquisa, não se identificaram como ONGs, embora apresentassem todos os traços característicos de entidades do terceiro setor. Cf. ibid., p. 67.

  • 11

    Joaquim FALCÃO.5 É suficiente destacar aqui, apenas como ilustração, três dos diferenciais

    apontados pelo jurista: i) as “assistencialistas” são “mais antigas, criadas, sobretudo, até a

    década de 70”; ii) “não pretendem representar politicamente seus públicos-alvo”; e iii) “atuam

    nos seguimentos clássicos da assistência social, como creches, asilos, hospitais e esportes, ou

    no setor de artes e cultura, através de fundações”. Já as “político-mobilizadoras” são: i) “mais

    jovens, surgem basicamente a partir dos anos 70, na luta pela redemocratização e pelos

    direitos humanos”; ii) pretendem, sim, “representar politicamente e defender os direitos de

    seus públicos-alvo perante governos”; e iii) “atuam com meios e em áreas mais politizadas,

    como assessoria e consultoria, defesa de direitos e de minorias, combate à desigualdade

    socioeconômica, mobilização comunitária e ecologia”.6 É na categoria das “político-

    mobilizadoras” que parece enquadrar-se o universo das ONGs.

    De qualquer forma, é preciso reconhecer que resta um tanto nebulosa a linha

    demarcatória do subconjunto das ONGs dentro do conjunto mais amplo do terceiro setor. Por

    vezes, as expressões são empregadas de maneira intercambiável, sem preocupação com

    eventuais distinções de alcance, como se ONGs e terceiro setor fossem a mesma coisa.

    Vale observar que também é comum, no Brasil, o uso da expressão “instituições

    filantrópicas” ou “beneficentes”, também para designar universo semelhante, mas não

    idêntico, ao das entidades do terceiro setor. A expressão realça a essência da missão dessas

    entidades, que seria a de servir, com compaixão ou desinteressadamente, ao próximo. Seu uso,

    porém, é inconveniente para designar todo o universo de entidades do terceiro setor, não

    apenas pela dificuldade de surpreender-se na realidade concreta esta carga psicológica de

    compaixão ou desinteresse que a filantropia quer designar, mas, sobretudo, pelo fato de o

    direito brasileiro já ter reservado expressões como “entidade com fins filantrópicos”,

    “instituições filantrópicas” ou “entidade beneficente de assistência social” para a designação

    de um universo mais restrito de entidades, que não esgota a variedade de organizações do

    5 Sobre a lista completa de traços diferenciais, cf. Democracia, direito e terceiro setor, pp. 166-168. 6 Ibid., p. 167.

  • 12

    terceiro setor.7 Tudo isso torna o universo subjacente à expressão “instituições filantrópicas” e

    outras variantes algo difícil de se delimitar, talvez uma mera fração do terceiro setor também.

    Ainda é comum no Brasil o uso da expressão “entidades privadas sem fins lucrativos”.

    A expressão traz a dificuldade de reportar-se a um universo muito grande de entidades,

    bastante variadas entre si. Tem alcance mais amplo que a expressão terceiro setor, pois refere

    indistintamente as entidades de benefício mútuo e as de benefício público. Reúne sob a mesma

    designação entidades paraestatais, como o são várias autarquias profissionais no país, com

    entidades verdadeiramente da iniciativa privada, sem fins lucrativos. De resto, a dificuldade de

    precisar-se a abrangência da expressão não é sentida só no Brasil; nos Estados Unidos é difícil

    precisar-se o alcance, também, de sua correspondente na língua inglesa, “nonprofit

    organizations”8

    O que se pode concluir deste breve passeio pela terminologia utilizada para a

    designação do setor que não representa o mercado, tampouco o Estado, mas um universo

    singular, é que o debate terminológico com vistas a melhor designá-lo persiste ainda hoje no

    mundo e, também, no Brasil. Diante deste cenário de multiplicidade de nomenclaturas e

    significados, torna-se importante reconhecer qual a acepção ou significado de cada expressão

    no contexto em que é empregada. O uso de todas as denominações, em princípio, é possível,

    desde que esclarecido o seu significado – sobretudo nos discursos que almejam alto

    coeficiente de precisão.

    7 Trata-se do universo das organizações de assistência social, assim denominadas na Lei de Organização da Assistência Social (Lei 8.742/93, também referida como LOAS). Cada uma dessas organizações pode pleitear, ao Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), a sua certificação como “Entidade Beneficente de Assistência Social”, que até pouco tempo era chamado de certificado de “Entidade de Fins Filantrópicos”. 8 Marion R. FREMONT-SMITH, que é professora de Harvard e uma das maiores especialistas no direito norte-americano das nonprofit organizations, afirma que a nomenclatura jurídica empregada para referir-se às diversas organizações sem fins lucrativos é confusa e torna-se ainda mais confusa pelas variadas tentativas de se descrever todo o seu universo. Observa que, em reconhecimento à circunstância de que tais organizações constituem parte da economia americana não controlada seja pelo mercado, seja pelo governo, por vezes elas são referidas nos Estados Unidos como “terceiro setor”, “setor independente”, “setor filantrópico” ou da “sociedade civil”. Mas reconhece que, em países que não os Estados Unidos ou o Reino Unido, a denominação “organizações sem fins lucrativos ou ONG” é comumente empregada. Cf. Governing nonprofit organizations: federal and state law and regulation, p. 4.

  • 13

    O uso da expressão terceiro setor nesta tese segue uma tendência recente de estudos

    científicos no país, inclusive na área jurídica, que a utilizam. É feita com o sentido já

    assinalado. Mas isto se faz com consciência de algumas das dificuldades que pode gerar

    (como a de diferenciação perante entidades de benefício mútuo). Além disso, tem-se

    consciência de que não se trata de expressão definida pela legislação brasileira (ao menos, não

    se tem notícia de seu emprego nalguma lei do país).

    O que se pode observar no ordenamento jurídico brasileiro são raras alusões à

    expressão “não-governamentais”.9 Prevalece, nele, o uso da expressão “entidades privadas

    sem fins lucrativos”, a qual congrega, como visto, não apenas entidades caracterizáveis como

    do terceiro setor ou de benefício público, mas também as conceituáveis como de benefício

    mútuo. O direito brasileiro confere, em certa medida, tratamento uniforme a todas elas.

    Há quem critique este tratamento relativamente uniforme.10 Os debates que

    conduziram à reforma da legislação setorial nos anos 90 parecem ter sido influenciados por

    críticas do gênero e marcados pela preocupação de conferir-se maior acesso a transferências de

    recursos estatais a entidades de benefício público. É o que se nota a partir das leis resultantes

    da reforma, que instituíram as qualificações de OSCIP e OS e miraram, justamente, as

    entidades de benefício público, em detrimento das demais. Ambas as leis acenaram para estas

    entidades com a previsão de que, uma vez qualificadas, poderiam celebrar parcerias com o

    9 Tais como a do art. 227, § 1º., da Constituição Federal, que, ao instituir o direito à proteção especial da criança e do adolescente, prevê o correlato dever da família, da sociedade e do Estado de assegurá-lo, conferindo a este último, em especial, a atribuição de promover “...programas de assistência integral à saúde da criança e do adolescente, admitida a participação de entidades não governamentais...” (itálico acrescentado). A Lei 8.742/93 também constitui exceção, quando, no seu art. 26, que trata do incentivo a projetos de enfrentamento da pobreza, dispõe que tal incentivo será baseado em articulação entre diferentes áreas governamentais e “...em sistema de cooperação entre organismos governamentais, não governamentais e da sociedade civil” (itálico acrescentado). 10 É o caso, por exemplo, de Simone COELHO, que defende a necessidade de tratamento legal que diferencie entre as entidades de benefício público e as de benefício mútuo (cf. Terceiro setor: um estudo comparado entre Brasil e Estados Unidos, pp. 64; 82-83; 92-93; e 98). Numa de suas passagens mais sintomáticas neste sentido, a autora, tendo comparado as legislações brasileira e norte-americana sobre o terceiro setor, conclui: “Em ambos [os países, Brasil e Estados Unidos] são colocadas no mesmo saco realidades bem diferentes. Uma primeira providência concreta seria separar as entidades que têm como meta o bem público daquelas que visam a atender os interesses de seus associados, instituidores ou controladores.” Ibid., p. 98. Vale o registro, todavia, de que há no direito norte-americano o Revised Model Nonprofit Corporation Act, chancelado pela American Bar Association em 1987 e utilizado como modelo para a legislação de diversos estados-membros da federação. Tal lei-modelo subdivide as corporações sem fins lucrativos em três tipos: as de benefício público, as de benefício mútuo e as religiosas. A cada tipo confere certo grau de tratamento jurídico especial. A respeito do tema, cf. o capítulo 12 desta tese.

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    Estado e receber recursos em transferência. Ainda que não tenham se valido da expressão

    terceiro setor, as duas leis tiveram como alvo o terceiro setor, procurando direcionar-lhe

    medidas de fomento estatal.11

    Mas ainda que o direito brasileiro tenha passado, a partir daquela reforma, a articular-

    se um pouco mais em torno da idéia de terceiro setor (sem empregar a expressão

    explicitamente, é verdade), permanece como eixo referencial das normas em vigor, acima de

    tudo, a alusão a “entidades privadas sem fins lucrativos”. Parece estar em curso, isto sim, uma

    mudança lenta e gradual, em que o terceiro setor, constituído pelas entidades de benefício

    público, vai pouco a pouco recebendo um tratamento jurídico especial.

    O importante neste processo (e o mais difícil) é realizar algum esforço para que sejam

    bem identificadas as regras e os princípios jurídicos cuja aplicabilidade convém estender-se a

    todo o setor privado sem fins lucrativos, de um lado, e as regras e princípios que serviriam

    apenas ao novo foco legislativo – o terceiro setor –, de outro. Por exemplo: proibir a

    distribuição de superávit entre fundadores, associados, dirigentes ou empregados de uma

    associação ou fundação é regra que merece aplicação a toda e qualquer entidade privada sem

    fins lucrativos, não devendo restringir-se apenas ao terceiro setor; por outro lado, criar-se uma

    credencial apenas para as entidades do terceiro setor, que sirva para canalizar-lhes parcela

    mais expressiva do fomento estatal, já é medida de alcance restrito (o terceiro setor), que tem a

    sua justificativa. Enfim, há de se pensar quais normas convém aplicar ao setor privado sem

    fins lucrativos em geral e quais, por outro lado, conviria aplicar apenas ao terceiro setor. A

    crítica à legislação brasileira como um todo, por nem sempre mirar o terceiro setor em

    particular ou por oferecer um tratamento uniforme a entidades variadas, é vazia. Afinal, é

    preciso saber, ao menos, qual a regra que se está criticando e o porquê da impropriedade de ela

    alcançar muitas ou poucas entidades. Este esforço de identificação, contudo, não parece estar

    em curso no debate brasileiro contemporâneo; nele se dissemina a idéia de que é preciso um

    “marco legal” ou “estatuto jurídico para o terceiro setor”, sem, no entanto, um refinamento

    11 Ainda que a Lei das OS, consoante se discutirá oportunamente, tenha mirado também entidades privadas oriundas do aparelho do Estado, talvez mais próximas das paraestatais do que do terceiro setor.

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    desta avaliação, que aponte exatamente quais as regras que precisam ser cunhadas apenas para

    o terceiro setor e quais se aplicariam a toda a iniciativa privada sem fins lucrativos.

    Independentemente dos debates terminológicos e da produção legislativa

    contemporâneos, é certo que apenas três tipos de pessoas jurídicas podem reunir os traços

    característicos de uma entidade do terceiro setor. Com efeito, a aquisição da personalidade

    jurídica no direito brasileiro – isto é, da existência como sujeito de direitos, capaz de, em

    nome próprio, exercer direitos e contrair obrigações – é disciplinada pelo Código Civil (Lei

    10.406, de 10.1.2002). De acordo com o seu art. 44, incisos I a V (alterado pela Lei 10.825, de

    22.12.2003), as pessoas jurídicas de direito privado, independentemente de terem finalidade

    lucrativa ou não, podem ser de cinco espécies: associações, sociedades, fundações,

    organizações religiosas e partidos políticos. Considerando-se que os partidos políticos têm

    uma relação muito peculiar com o governo, voltando-se a guiar a máquina governamental, eles

    costumam ser excluídos do universo do terceiro setor.12 As sociedades, tendo fins lucrativos,

    também ficam de fora deste universo. Restam então as associações, fundações e organizações

    religiosas, que podem ser consideradas “entidades privadas sem fins lucrativos”, mas, mesmo

    assim, ainda não se confundem por completo com o universo do terceiro setor. Apenas as que

    perseguem fins de interesse público a ele pertencem.

    2. O terceiro setor no Brasil: complexidade e diversidade

    Complexidade e diversidade são notas características do terceiro setor na atualidade –

    tanto no Brasil como no mundo.

    A complexidade do terceiro setor se manifesta, por exemplo, pelo fato de as

    organizações que o compõem perseguirem interesses públicos e privados. O seu compromisso

    com interesses públicos é mais evidente, revelando-se tanto na sua persecução de objetivos

    prestigiados por toda a sociedade como na sua abstenção da persecução de propósitos

    12 É o que observa Simone COELHO, ao examinar a literatura que trata do modelo que distingue o mercado, o governo e o terceiro setor. Cf. Terceiro setor: um estudo comparado entre Brasil e Estados Unidos, p. 40.

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    lucrativos. Já o seu compromisso com interesses privados (isto é, que beneficiam a si mesmas

    de imediato, ainda que mediatamente devam beneficiar a sociedade) pode revelar-se, por

    exemplo, quando almejam reconhecimento social (para o seu trabalho ou o trabalho de seus

    fundadores, dirigentes ou qualquer um de seus quadros); também pode estar presente quando

    buscam acesso a recursos econômicos disponibilizados por doadores públicos ou privados

    (ainda que tais recursos devam ser transformados em serviços à sociedade); quando buscam

    superávits (ainda que para serem destinados ao cumprimento de seus objetivos estatutários);

    ou mesmo quando buscam eficiência na condução de seus negócios (ainda que tais negócios

    estejam a serviço do público). Toda esta complexidade do terceiro setor parece contribuir, de

    alguma maneira, para que o seu tratamento normativo também tenha a sua complexidade. As

    organizações que o integram se submetem a normas de Direito Público e de Direito Privado.

    Por pertencerem à esfera privada têm sua organização interna estabelecida por normas de

    Direito Privado, como o Código Civil, e usufruem os direitos ordinariamente reconhecidos aos

    agentes da iniciativa privada; de outro lado, por desempenharem atividades de interesse

    público devem observância a normas de Direito Público, que regem o exercício destas

    atividades. Além disso, ao beneficiarem-se de alguma espécie de fomento público, também se

    sujeitam às normas de Direito Público que regem este fomento.

    A diversidade do terceiro setor, para além da sua complexidade, revela-se na medida

    em que nele convivem entidades riquíssimas com entidades pobres; entidades de bairro com

    entidades multinacionais; entidades economicamente auto-sustentáveis com entidades sem

    mínima sustentabilidade econômica; entidades profissionalizadas com outras de caráter

    experimental ou amador; entidades sujeitas a regimes jurídicos especiais em função de

    medidas de fomento estatal com entidades que, por não gozarem de fomento do Estado, ficam

    alheias à disciplina do fomento.

    Neste quadro de contrastes, há também esteriótipos. Talvez um esteriótipo marcante de

    entidade do terceiro setor no Brasil ainda seja o daquela desprovida de recursos econômicos

    significativos, sem inserção no mercado, desprofissionalizada, posta em ação exclusivamente

    na base do voluntariado e da abnegação de seus integrantes, todos comprometidos com alguma

    missão de caridade com viés religioso, cuja esfera de influência é restrita a uma comunidade

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    local. Em suma, riqueza econômica, profissionalismo, eficiência, compromisso com a

    cidadania e impacto em grande escala não são notas típicas do esteriótipo da entidade do

    terceiro setor no país. Mas basta um olhar mais atento para esta realidade que o esteriótipo

    torna-se vivamente contestável. Questioná-lo é tanto mais importante quanto, para além de

    alcançar-se um retrato mais fidedigno da realidade, viabiliza-se, com os questionamentos, um

    juízo mais adequado acerca de quais as políticas públicas e qual o tratamento normativo

    necessários às entidades do terceiro setor.

    Existem hoje, felizmente, levantamentos de dados sobre o terceiro setor no Brasil que

    podem auxiliar quem queira contestar esteriótipos (ou redefini-los), ou mesmo livrar-se de

    preconceitos sobre as organizações do setor. Tais dados podem ser muito úteis, também, para

    a necessária tarefa de cotejo entre o direito vigente e a realidade que o conforma e é por ele

    conformada. De fato, a busca pelo conhecimento da realidade do setor no país começa a ser

    empreendida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em parceria com

    organizações privadas sem fins lucrativos. O IBGE já publicou pelo menos três levantamentos

    setoriais importantes, a saber: a pesquisa FASFIL 2002, divulgada em 2004;13 a pesquisa

    FASFIL 2005, divulgada em 2008 (mencionada na introdução desta tese); e a pesquisa

    PEAS 2006, divulgada em 2007.14

    13 Divulgada em 2004, a FASFIL 2002 apresenta dados – como o próprio nome esclarece – referentes ao ano de 2002 e é a abreviação para o estudo: BRASIL, IBGE, As Fundações Privadas e Associações Sem Fins Lucrativos no Brasil 2002. Trata-se de pesquisa realizada pelo IBGE em conjunto com o IPEA (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas), e, ainda, com duas proeminentes organizações não-governamentais atuantes no país, a ABONG (Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais) e o GIFE (Grupo de Institutos Fundações e Empresas). Tal pesquisa foi pioneira neste tipo de levantamento no país. Considerando a disponibilidade do Cadastro Central de Empresas (CEMPRE), do IBGE, apenas a partir do ano de 1996, e, ainda, considerando o fato de que tal cadastro constituía a fonte primária da pesquisa, a FASFIL 2002 procurou comparar os dados apurados em 2002 com os referentes a 1996. Traçou, assim, um retrato da evolução do universo associativo e fundacional brasileiro de 1996 a 2002. 14 Divulgada em 2007, a PEAS 2006 apresenta dados referentes ao ano de 2006, e é a abreviação para o estudo: BRASIL, IBGE, As Entidades de Assistência Social Privadas Sem Fins Lucrativos no Brasil 2006 (estudo também referido pelo próprio IBGE como Pesquisa das Entidades de Assistência Social sem Fins Lucrativos 2006). O estudo encontra-se disponível no portal do IBGE na Internet, no endereço http://www.ibge.gov.br. Trata-se de pesquisa que apresenta um “quadro geral das entidades de assistência social privadas e sem fins lucrativos em todo o Território Nacional, selecionadas através do Cadastro Central de Empresas – CEMPRE, do IBGE, que se declararam como prestadores de serviços de assistência social.” Ibid., Apresentação. Tal quadro geral foi levantado com o objetivo de “...fornecer aos órgãos gestores de políticas públicas informações detalhadas sobre a oferta destes serviços no Brasil, visando a subsidiar a implantação do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, com informações sobre os serviços prestados, possibilitando uma melhor orientação para os investimentos estratégicos, inclusive no que se refere à capacitação de recursos humanos e subsídios de regulação da qualidade dos serviços.” Ibid., Introdução.

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    Dentre os levantamentos mais abrangentes, o mais recente é a FASFIL 2005, que

    apresenta dados, justamente, do ano de 2005. Tal como a anterior (a FASFIL 2002), ela tomou

    por base o Cadastro Cen