contribuiÇÃo para uma sÍntese da teoria da ideologia …

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO DANILO PEIXOTO DE MIRANDA CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SÍNTESE DA TEORIA DA IDEOLOGIA NAS OBRAS DE LOUIS ALTHUSSER MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAS SÃO PAULO 2020

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Page 1: CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SÍNTESE DA TEORIA DA IDEOLOGIA …

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

DANILO PEIXOTO DE MIRANDA

CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SÍNTESE DA TEORIA DA IDEOLOGIA NAS

OBRAS DE LOUIS ALTHUSSER

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAS

SÃO PAULO

2020

Page 2: CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SÍNTESE DA TEORIA DA IDEOLOGIA …

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

DANILO PEIXOTO DE MIRANDA

CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SÍNTESE DA TEORIA DA IDEOLOGIA NAS

OBRAS DE LOUIS ALTHUSSER

Dissertação apresentada à banca

examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para

obtenção do título de MESTRE em

Ciências Sociais, sob a orientação

do Prof. Dr. Lúcio Flávio Rodrigues

de Almeida.

SÃO PAULO

2020

Page 3: CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SÍNTESE DA TEORIA DA IDEOLOGIA …

DANILO PEIXOTO DE MIRANDA

CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SÍNTESE DA TEORIA DA IDEOLOGIA NA OBRA

DE LOUIS ALTHUSSER

Dissertação apresentada à banca

examinadora da Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para

obtenção do título de MESTRE em

Ciências Sociais, sob a orientação

do Prof. Dr. Lucio Flávio Rodrigues

de Almeida.

Aprovado em: ___/___/___

BANCA EXAMINADORA

Dr.

Dr.

Dr.

Dr.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao meu orientador, Lúcio Flávio, a quem devo a minha maturação

intelectual durante o período de mestrado; e a todos os professores e aos

funcionários administrativos da PUC-SP. Os comentários de Jair Pinheiro e Patrick

Andrade, no exame de qualificação, foram decisivos para o rumo final deste

trabalho. Portanto, meu agradecimento a eles também. Cesar Mangolin, a quem

sou muito grato, foi quem me apresentou Louis Althusser, há 5 anos. Aos meu pais,

Vera e Paulo, e à minha irmã, Fernanda, cujo apoio emocional e material foi decisivo

para que esta pesquisa se realizasse. À minha companheira, Mariana, pela parceria

e pelas valiosas dicas durante a redação deste trabalho; e aos colegas de curso,

Pedro, Thiago, Dani, Sofia, Mariza e Peter, companheiros de longos e divertidos

debates (nem sempre) intelectuais.

O presente trabalho teve o imprescindível apoio da Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), sem o qual esse trabalho

dificilmente seria realizado. Portanto, meu agradecimento.

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RESUMO

Esta dissertação procura apresentar uma síntese da teoria geral da ideologia nas

obras do filósofo franco-argelino Louis Althusser. Para tanto, em um primeiro

momento, foram selecionados quatro importantes textos em que Althusser expõe

os aspectos principais de sua formulação do conceito de ideologia. Em seguida, no

segundo capítulo, nos ativemos às retificações e reiterações que o autor fez em

obras ulteriores. No capítulo três, fizemos uma exposição detalhada das suas

principais teses sobre a ideologia. Finalizamos, no quarto capítulo, com uma análise

dos mecanismos de funcionamento da ideologia.

Palavras-chaves: Louis Althusser; Ideologia; Marxismo.

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ABSTRACT

This thesis intend to present a synthesis of the general theory of ideology in the

works of the Franco-Algerian philosopher Louis Althusser. To do so, at first, four

important texts were selected in which Althusser presents the main aspects of his

formulation of the concept of ideology. Then, in the second chapter, we turn to the

corrections and reiterations that the author made in later works. In chapter three, we

gave a detailed exposition of his main theses on ideology. We conclude, in the fourth

chapter, with an analysis of the mechanisms of functioning of the ideology.

Keywords: Louis Althusser; Ideology; Marxism.

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É preciso compreender que O Capital, tal como chegou a nós, limita-se essencialmente à ‘esfera da produção e da reprodução capitalista’ e às suas leis determinantes. Isto não exclui a necessidade de se ‘completar’ aquilo que Marx não conseguiu terminar, e falar da superestrutura jurídico-política e da ideológica na qual os homens, os mesmos ‘homens’, não têm o ‘estatuto’ teórico que tinham na esfera da produção. Especialmente a ideologia, ‘elemento no qual’ se desenvolve um aspecto determinante da luta de classes (é onde os homens tomam consciência de que pertencem a uma classe e levam ‘até o fim’ sua luta), transforma o ‘estatuto teórico’ desses homens: eles se transformam em ‘sujeitos’ (e não mais em simples ‘suportes’)

(Althusser, 1979, p. 86).

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..........................................................................................................8

CAPÍTULO 1 – AS BASES DA TEORIA ...............................................................18

1.1 A ideologia em Marxismo e humanismo (Outubro de 1963) ......................18

1.2 A ideologia em Prática teórica e luta ideológica (1966) .............................23

1.2.1 Ideologia e luta ideológica.............................................................................26

1.3 A ideologia em Filosofia e filosofia espontânea dos cientistas (outubro-

novembro de 1967) ..............................................................................................33

1.4 A ideologia em Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado (1969-70)...37

CAPÍTULO 2 – OS AJUSTES DA TEORIA...........................................................51

2.1 Os aparelhos ideológicos de Estado............................................................51

2.2 Prática ideológica...........................................................................................59

2.3 Ciência e ideologia: em defesa do proletariado..........................................63

CAPÍTULO 3 – UMA RUPTURA COM CONSEQUÊNCIAS..................................67

3.1 O corte epistemológico: gênese.............................. ....................................67

3.1.1 Sobre o jovem Marx (Questões de teoria) ....................................................68

3.1.2 A autocrítica.............................. ....................................................................72

3.1.3 Elementos para uma abordagem política do “Corte” ....................................80

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3.1.4 Linha de demarcação como alternativa ao corte epistemológico? ...............84

3.2 O anti-humanismo no campo teórico...........................................................87

CAPÍTULO 4 – OS MECANISMOS DE FUNCIONAMENTO DA IDEOLOGIA.....95

4.1 Ideologia jurídica............................................................................................95

4.2 Imaginário......................................................................................................104

CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................111

REFERÊNCIAS....................................................................................................113

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INTRODUÇÃO

Muito se escreveu sobre ideologia desde a criação do termo, há pouco mais

de dois séculos. Tal foi a profusão de significados e tentativas de conceitualização,

que a palavra acabou adquirindo um sentido profundamente negativo: “ninguém

gostaria de afirmar que seu próprio pensamento é ideológico [...] a ideologia, como

o mau hálito, é, nesse sentido, algo que a outra pessoa tem” (EAGLETON, 1997, p.

16).

Contudo, cumpre-se notar que a origem da palavra ideologia nasce de um

propósito louvável, digno do Iluminismo europeu, que pretendia, através da razão,

estabelecer o porto-seguro do homem – daí a necessidade de desenvolvimento de

todas suas faculdades do saber. Destutt de Tracy (1754-1836), criador do termo, se

auto-incumbiu de sistematizar e aprimorar a tarefa1 iniciada por Étienne de Condillac

(1714-1780), que, por sua vez, havia criado uma teoria do conhecimento em

contraposição à de John Locke (1632-1704):

Propus-me suprir essa falta [de sistematização das investigações de Condillac]. Tentei uma descrição exata e circunstanciada das nossas faculdades intelectuais, dos seus principais fenômenos e suas circunstâncias mais notáveis, numa palavra, verdadeiros elementos de Ideologia (TRACY, s/d, s/p).

Algumas décadas mais tarde ao lançamento do livro de Tracy, o termo

ideologia é apropriado criticamente por Marx2. Segundo ele, o modo como a

concepção de ideologia vinha sendo tratada - como ideias falsas de si mesmo –, e

a forma de superá-la – com uma educação emancipadora para a transformação da

realidade -, não passava de “sonhos inocentes e pueris [...] da filosofia atual dos

Jovens-Hegelianos” (MARX; ENGELS, 2001, p. 3). A ideologia, segundo Marx, não

seria uma ideia falsa de si mesmo, mas uma concepção falsa da história (Ibid., p.

107). É a partir de uma lógica material que, segundo Marx, devemos conceber a

1 O livro de Tracy, no qual ele sistematiza o conceito de ideologia, Eléments D'Idéologie, foi

lançado em quatro tomos, sendo a primeira edição de 1801. 2 Nos referimos à obra publicada postumamente que recebeu o nome de A ideologia alemã

(1845). Essa obra foi escrita conjuntamente com Engels. Assim, quando escrevemos “Marx” (que optamos por comodidade), leia-se Marx e Engels.

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ideologia em geral: “A produção das ideias, das representações e da consciência

está, a princípio, direta e intimamente ligada à atividade material e ao comércio

material dos homens; ela é a linguagem da vida real” (Ibid., p. 18). Segundo

Eagleton, a teoria da ideologia de Marx foi formulada com base em sua concepção

de “alienação”, desenvolvida nos Manuscritos econômicos e filosóficos (1844) –

que, como veremos mais adiante, integra uma de suas obras de juventude, com

prevalência de “conceitos” ideológicos –, tendo como principal a ideia de que “os

poderes, produtos e processos humanos escapam ao controle dos sujeitos

humanos e passam a assumir uma existência aparentemente autônoma”

(EAGLETON, 1997, p. 71). Dessa forma, apesar de A ideologia alemã, segundo

Althusser – como veremos –, dar início ao corte epistemológico que inicia a fase

científica de Marx, sua concepção de ideologia, segundo Eagleton, estará ainda em

consonância com os conceitos levados a efeito em sua juventude:

A teoria da ideologia apresentada em A ideologia alemã de Marx e Engels (1846) diz respeito a essa lógica generalizada de inversão e alienação. Se os poderes e instituições humanos podem ser submetidos a esse processo, então a consciência também pode. A consciência está, na verdade, estreitamente vinculada à prática social; no entanto, para os filósofos idealistas alemães de que falam Marx e Engels, ela se torna dissociada dessas práticas, fetichizada a uma coisa-em-si, e assim. Mediante um processo de inversão, pode ser erroneamente compreendida como a própria origem e fundamento da vida histórica. Se as ideias são apreendidas como entidades autônomas, então isso ajuda a naturalizá-las e a desistoricizá-las; esse é, para o jovem Marx, o segredo de toda ideologia (Ibid., p. 71).

Já Motta (2014, p. 66) chama atenção para o fato de que, n’A ideologia

alemã, Marx “dá um novo significado ao conceito de ideologia, demarcando uma

descontinuidade com a sua fase filosófica anterior”. Motta parte da tese de

Althusser, segundo a qual, em 1845, com A ideologia alemã, Marx inicia sua fase

de maturidade, ao começar a operar com conceitos científicos (modo de produção,

forças produtivas, entre outros). O autor teria, segundo Althusser, descoberto um

“novo continente científico” – precedido pela descoberta do continente das

Matemáticas por Tales de Mileto, do continente da Física por Galileu, e, talvez, pelo

continente do Inconsciente por Freud, Marx inaugura o continente História (cf.:

ALTHUSSER, 1974, p. 31-32). Assim, “pertence ao consenso geral dos estudiosos

do marxismo a tese de que A ideologia Alemã assinalou o nascimento do

materialismo histórico (GORENDER, 2001, p. VII).

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A ideologia representa, para Marx, uma consciência falsa da realidade,

imposta pela dinâmica material das formações sociais. No modo de produção

capitalista, as relações sociais são relações burguesas; do mesmo modo, as ideias

provenientes dessas relações – que são as ideias dominantes – são ideias

burguesas.

Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas, os pensamentos dominantes; em outras palavras, a classe que é o poder material dominante numa determinada sociedade é também o poder espiritual dominante. A classe que dispõe também dos meios da produção intelectual, de tal modo que o pensamento daqueles aos quais são negados os meios de produção intelectual está submetido também à classe dominante. Os pensamentos dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais dominantes; eles são essas relações materiais dominantes consideradas sob forma de ideias, portanto a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante; em outras palavras, são ideias de dominação (MARX; ENGELS, 2001, p. 48).

Portanto, para Marx, a transformação da sociedade não residiria em uma

“educação emancipadora”, como queriam os jovens-hegelianos, mas na revolução

social que transformaria as estruturas materiais da sociedade. Motta nos lembra

que n’O capital, “a ideologia não é mais redutível à falsa consciência, a exemplo do

seu significado em A ideologia alemã” (MOTTA, 2014, p. 70). Ancorado em

Eagleton, ele diz que “a ideia de falsidade persiste na noção de aparências

enganadoras, mas estas são menos ficções da mente do que efeitos estruturais do

capitalismo” (Ibid.). De todo modo, o conceito de ideologia levado a efeito por Marx

adquiriu um novo significado e importância, diferenciando-se radicalmente do termo

original de Tracy.

Contudo, relata Eagleton (1997), em Ideologia, que Emmet Kennedy, autor

de um livro sobre a vida de Tracy, observou que Marx, provavelmente, nunca leu a

obra de Tracy dedicada exclusivamente à ideologia, mas apenas seu escrito sobre

economia, e daí derive talvez a acusação que faz a Tracy em O capital, chamando-

o de “burguês doutrinário e insensível”. Isso, segundo Kennedy, pode ter sido o

motivo que levou Marx a mudar sua concepção de ideologia.

Assim, o surgimento do conceito de ideologia não é um mero capítulo na história das ideias. Ao contrário, está intimamente relacionado com a luta revolucionária e figura, desde o início, como uma arma teórica da guerra de classes (EAGLETON, 1997, p. 70).

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Não obstante, o conceito de ideologia – embora nunca tenha sido, de fato, tratado

conceitualmente por Marx – enveredou no marxismo de forma heterogênea. Georg

Lukács, influente filósofo marxista do século XX – “a maior expressão idealista do

pensamento marxista”, segundo Motta (2014, p. 71) – opunha a ideologia não à

ciência, mas ao conceito de “totalidade”. Assim, a ciência (marxista) seria uma

expressão da visão de mundo da classe proletária, e, portanto, de sua ideologia. A

autoconsciência do proletariado, por sua vez, realizaria esta totalidade, pois “é uma

classe potencialmente ‘universal’, já que carrega consigo a emancipação potencial

de toda a humanidade” (EAGLETON, 1997, p. 91). Segundo Motta:

O idealismo e o essencialismo de Lukács fica nítido na sua concepção teleológica (de fundo judaico-cristão), na qual concebe o proletariado como classe-sujeito portadora da verdade, e de uma visão totalizante da sociedade que possibilita a descortinação da reificação da sociedade superando, desse modo, a alienação de classe. Assim sendo, o processo teleológico, que para Hegel o sujeito seria a Ideia, é substituído pelo proletariado, classe essa que, além de sujeito, também é objeto de conhecimento; e esse conhecimento de si significa, para Lukács, o conhecimento correto de toda a sociedade (MOTTA, 2014, p. 71).

Lukács opera com conceitos da fase de juventude de Marx3, conceitos estes

que gradativamente se tornarão resíduos em sua fase de maturidade – como

veremos adiante. Fetichismo, alienação e coisificação são alguns desses conceitos.

A ilusão fetichista da ideologia burguesa, que leva à “coisificação” do mundo, seria,

assim, superada pelo método “totalizante” (Ibidem). De acordo com Eagleton, a

teoria da ideologia de Lukács é “uma mistura perversa de economismo e idealismo”:

Economismo porque adota acriticamente a implicação posterior de Marx de que a forma da mercadoria é, de alguma maneira, a essência secreta de toda consciência ideológica na sociedade burguesa. [...] Consequentemente, está em funcionamento nesse caso uma espécie de essencialismo da ideologia, homogeneizando o que, na verdade, são discursos, estruturas e efeitos muito diferentes. No que tem de pior, esse modelo tende a reduzir a sociedade burguesa a um conjunto de “expressões” de reificação cuidadosamente superpostas, em qual cada um de seus níveis (econômico, político, jurídico, filosófico) imita e reflete obedientemente os outros. Além disso, [...] essa insistência obcecada na reificação como pista para todos os crimes é, ela própria, veladamente idealista: nos textos de Lukács, tende a deslocar conceitos mais

3 “Por intermédio da classe-sujeito, o papel designado à ideologia é assim o de princípio de

totalização de uma formação; é aliás, exatamente a posição do jovem Marx, para quem, sendo as ideias que conduzem o mundo, são as armas da crítica que o podem mudar” (POULANTZAS, 2019, p. 202).

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fundamentais, como a exploração econômica (EAGLETON, 1997, p. 94-95).

Outro autor marxista, muito caro à Althusser, que teve importantíssimo papel

no estudo da ideologia é Antonio Gramsci. Ele opera com o conceito de

“hegemonia”, “uma categoria mais ampla que a ideologia: inclui a ideologia, mas

não pode ser reduzida a ela” (Ibid., p. 105). O conceito de hegemonia “significa a

direção político-ideológica da classe dirigente sobre as demais classes sociais”

(MOTTA, 2014, p. 74). Logo, a Ideologia, para Gramsci, não possui o caráter

negativo que encontramos em Marx e Lukács – ela não falseia a realidade: é sempre

condizente à uma realidade histórica e, por conseguinte, válida em determinado

contexto4. Por exemplo, a ideologia burguesa que hoje expressa-se negativamente

foi importante positivamente quando do enfrentamento ao feudalismo e a

aristocracia (Ibid.):

A ideologia refere-se especificamente à maneira como as lutas de poder são levadas a cabo no nível da significação, e, embora tal significação esteja envolvida em todos os processos hegemônicos, elas não são em todos os casos o nível dominante pelo qual a regra é sustentada. Cantar o Hino Nacional aproxima-se tanto quanto se pode imaginar de uma atividade puramente ideológica; certamente não parece cumprir nenhum outro propósito além de, talvez, irritar os vizinhos. A religião, de modo similar, é provavelmente a mais puramente ideológica de todas a várias instituições da sociedade civil. Mas a hegemonia também é mantida em formas culturais, políticas e econômicas – em práticas não-discursivas, assim como em todas as elocuções retóricas (EAGLETON, 1997, p. 106).

Em Gramsci temos, portanto, uma primeira concepção de ideologia não

apenas como um conjunto de ideias, mas como prática social. Essa materialidade

da ideologia se expressa em “aparelhos de hegemonia”.

A hegemonia, assim, é centrada em instituições da sociedade civil chamadas de “aparelhos de hegemonia” (escolas, sindicatos, universidades, partidos, etc.). Os “aparelhos de hegemonia”, por sua vez, são transformadores de interesses e valores particulares de classe em normas sociais. São internamente um conjunto articulado de saberes e práticas, isto é, absorvem e criam padrões ideológicos dominantes, dando-lhes uma sistematicidade e coerência, ao mesmo tempo em que possuem

4 “Na medida em que são historicamente necessárias, as ideologias têm uma validade que é a

validade ‘psicológica’: elas ‘organizam’ as massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua posição, lutam, etc.” (GRAMSCI, 1978, p. 62-63).

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um poder de normatividade no cotidiano dos diversos grupos e classes sociais (PERRUSI, 2015, p. 435).

Veremos que Althusser compartilha, nesse sentido – e de certo modo –,

algumas características das ideias de Gramsci. Não obstante, sua formulação de

ideologia é outra:

O posicionamento de Althusser é exatamente o oposto do de Gramsci; ideologia não é consciência, nem consciência social, nem coletivo. Mas também é contrário ao de Lukács, na medida em que a ideologia não é singularmente alienação ou falsa consciência. Ideologia - no sentido althusseriano é a inconsciência, da qual as formas de consciência são apenas um aspecto e uma consequência (SAMPEDRO, 2004, s/p, tradução nossa.).

Encontraremos em Althusser uma concepção original de ideologia, ancorada

na concepção marxiana, mas sem deixar de ser crítica a ela – Althusser pretendia

realizar uma teoria geral da ideologia tal qual não se encontrava na obra de Marx.

A partir da segunda metade da década de 1960, e até meados da década de 1970,

Althusser esteve na vanguarda intelectual do marxismo. Duas importantes obras de

análise marxista – Por Marx (que é uma coletânea de textos escritos na primeira

metade da década de 1960) e Ler o capital (escrita em conjunto com seus alunos:

Étienne Balibar, Jacques Rancière, Roger Establet, Pierre Macherey) – introduziram

Althusser de maneira explosiva no cenário marxista mundial. Tais obras tinham

como intuito declarado “resgatar” Marx de um invólucro ideológico no qual foi

inserido, notadamente a partir da segunda metade da década de 1950, por

intelectuais marxistas. Com efeito, houve uma motivação política, fruto de um

episódio histórico.

O XX congresso do PCUS (Partido Comunista da União Soviética), em 1956,

denunciou os “crimes de Stalin”: assassinatos, deportações, expurgos, e abusos em

geral cometidos pelo antigo Secretário-Geral do PCUS, Josef Stalin, e divulgados

por seu sucessor, Nikita Khrushchov. A partir de então, houve, por parte de vários

intelectuais marxistas, uma recuperação dos textos de juventude Marx e de sua

herança humanista. Segundo Althusser, isso seria um retorno ao idealismo juvenil

de Marx, à época em que o autor, preso aos conceitos hegelianos, encontrava-se

em uma fase “pré-marxista”, ou seja, não havia desenvolvido ainda as bases da

ciência da história. (Cf: ALTHUSSER, 1978c). Althusser, então, publica, em 1965,

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dois livros, Ler o Capital e Por Marx, que vão na contramão de tudo estava sendo

produzido na época, “negando” as obras de juventude de Marx, e propondo teses

até então inéditas no marxismo. Voltaremos a esta questão no Capítulo 2.

Em meio a essa conjuntura política delicada para os comunistas, Althusser

se encontrava no auge de sua produção intelectual, desenvolvendo conceitos como:

corte epistemológico, sobredeterminação, todo-complexo-com-dominante,

generalidade, causalidade estrutural, problemática, prática, entre outros. Outrossim,

nenhuma de suas teses “fez mais barulho” do que aquelas que dizem respeito `a

ideologia.

A ideologia, na concepção de Althusser, se expressa na totalidade social de

dois modos principais: epistemologicamente, ela se realiza no embate com a

ciência; socialmente, ela designa as práticas sociais5 dos homens e a reprodução

destas práticas. Althusser se empenha em demonstrar a materialidade da ideologia

e estabelecer sua função social. Assim, o conceito é deslocado do campo das ideias

e tratado de modo material: “uma ideologia existe sempre em um aparelho e em sua

prática ou práticas. Essa existência é material” (ALTHUSSER, 2008, p. 206).

Segundo Althusser, “a ideologia representa a relação imaginária dos

indivíduos com suas condições reais de existência” (Ibid., p. 203). Isto é: a ideologia

se apresenta enquanto um sistema imaginário de representações que distorce a

relação que os indivíduos têm com “suas condições reais de existência”. Em última

instância, a ideologia (dominante) impede que os indivíduos se reconheçam como

explorados e como parte de uma sociedade de classes; ou seja, é uma cortina de

fumaça na luta de classes.

O modo de funcionamento da ideologia é, a seguir, resumido por Almeida

(2016, p. 79):

A ideologia interpela os indivíduos como sujeitos, no duplo e contraditório sentido do termo, ou seja, como livre e como assujeitados (assujeitados livremente). Desta forma, eles “trabalham sozinhos” (ou seja, em relativa ausência dos mecanismos diretos de repressão), comportando-se adequadamente à reprodução das várias dimensões do modo de vida necessário à reprodução das relações de produção. Este deslocamento

5 A rigor, todas as práticas são sociais. Veremos isso mais adiante.

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[...] avança no sentido de desvendar os dispositivos por meio dos quais a ideologia é vivida pelos agentes.

A interpelação ideológica é uma das principais teses da teoria da ideologia

de Althusser. De acordo com essa tese, as ideologias existem apenas através dos

sujeitos e para os sujeitos; ela “funciona” por meio do reconhecimento ideológico,

isto é, sempre nos reconhecemos em uma ideologia antes e apesar do nosso

conhecimento dessa estrutura, como, por exemplo, quando reconhecemos alguém

(um reconhecimento entre amigos, por exemplo) na rua, acenamos indicando este

reconhecimento ao nosso amigo e, ao mesmo tempo, reconhecemos o

reconhecimento do outro. Esse reconhecimento tem, segundo Pinheiro (2019, p.

54), um triplo significado:

1) A afirmação do eu de cada um, uma vez confirmada em sua identidade (reconhecimento) pelo outro; 2) interpreta (conhecimento como representação do objeto ≠ esclarecimento) os dados do mundo exterior relativo a esta prática ritual segundo essa categoria de amigo e, por conseguinte, 3) ignora (desconhecimento) o que não é contemplado por esta prática ritual, por exemplo, outros rituais de reconhecimento e as implicações neles contidas ou que deles possam ser derivadas. Portanto, este movimento de inversão dialética veicula as ideias de amizade e reciprocidade e abre espaço para conexão com outras ideias, veiculadas por outras práticas rituais materiais.

Toda ideologia, como diz Althusser, se realiza em um aparelho e em suas

práticas: através dos aparelhos ideológicos de Estado (AIE). Os AIE são “um certo

número de realidades que se apresentam ao observador imediato sob a forma de

instituições distintas e especializadas” (ALTHUSSER, 2008, p. 264). Eles se

diferenciam do Aparelho (repressivo) de Estado. Este opera, fundamentalmente, por

meio da violência; aqueles, primordialmente, através da ideologia. No que diz

respeito à sua função, os AIE são responsáveis pela reprodução da ideologia

dominante e pela naturalização das ações dos indivíduos e suas relações:

[...] entre a história real e as massas há sempre uma cortina, uma

separação: uma ideologia de classe da história, uma filosofia de classe da história, na qual as massas humanas crêem ‘espontaneamente’, já que essa ideologia lhes é inculcada pela classe dominante ou ascendente e serve à unidade dessa classe e assegura a sua exploração (ALTHUSSER, 1978c, p. 32).

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Althusser, no texto Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado (2008),

destaca os seguintes aparelhos: o AIE religioso, AIE escolar, AIE familiar, AIE

jurídico, AIE político, AIE sindical, AIE da informação e o AIE cultural. Dentre esses,

o AIE escolar é o que deveria receber mais atenção, no entendimento de Althusser,

naquela época (década de 1960-70) e pela conjuntura (francesa). Dominante – à

época – pois reproduz as relações de produção, isto é, “regras de respeito à divisão

social técnica do trabalho e, no final das contas, regras da ordem estabelecida pela

dominação de classe” (ALTHUSSER, 2008, p. 75, grifos do autor). Seria mais

acurado, no século XXI, tratar o aparelho midiático – principalmente no que diz

respeito às mídias sociais digitais – como o aparelho hegemônico de nossa época.

O pensamento de Althusser ficará, como veremos, fortemente marcado pela

oposição ciência/ideologia. De fato, Althusser até o fim de sua vida (salvo, talvez, a

partir da década de 1980, em que, como alguns defendem, rompeu

epistemologicamente com suas teses anteriores) insistiu no caráter científico do

marxismo, na inauguração levada a efeito por Marx da ciência da história ou

materialismo histórico. O conceito de “corte epistemológico” tem como base essa

“polarização” (ciência/ideologia). Com efeito, veremos que essa oposição comporta

uma dinâmica dialética, que o autor observará ao longo de suas investigações.

O presente trabalho, em consonância com o que Décio Saes (2019, p. 61)

afirma a partir de Humberto Eco, tem um objetivo relativamente modesto:

“apresentação sintética de análises produzidas por autores anteriores, comparação

entre essas análises, algumas breves conclusões”. Muito já se escreveu sobre as

teses althusserianas. Na década de 1960, uma escola de seu pensamento se

formou e rapidamente se diluiu, e talvez nenhum intelectual marxista tenha recebido

tantas críticas e tenha impactado tanto a atmosfera intelectual-comunista nas

décadas de 1960-70. De fato, se o marxismo fosse um parque de diversões,

Althusser certamente seria a montanha-russa: na década de 1960, a “explosão

althusseriana” (DOSSE, 1993, p. 335); em seguida, uma avalanche de críticas,

culminando com seu “enterro” intelectual após o triste episódio em que ele, num

surto psicótico, estrangula sua esposa até a morte, em 1980. Não obstante, na

conjuntura atual, “uma enxurrada de textos traduzidos de Althusser, ou artigos

favoráveis a Althusser, de autores brasileiros e estrangeiros [vêm sendo

publicados]” (MOTTA, 2014, p. 4). Como diz Montag (2018, s/p.)

Page 19: CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SÍNTESE DA TEORIA DA IDEOLOGIA …

17

[...] sua morte paradoxalmente o trouxe de volta à vida. Não apenas trouxe

de volta os elogios e louvores que deveriam (mas talvez não poderiam) ter sido proferidos durante sua vida: as palavras de louvor e admiração, os tributos esperados e inesperados, que revelaram que o silêncio em torno de Althusser foi determinado por causas externas e não internas a seu trabalho, como se o desejo de dar a Althusser o que lhe era merecido apenas estivesse esperando o momento apropriado para se expressar.

Nas páginas a seguir, no Capítulo 1, apresentaremos quatro textos em que

Althusser se debruça sobre a questão da ideologia. Nos arriscamos a fazer isso sem

o apoio de comentadores para, na medida do possível, expor de modo “puro” as

teses do autor – sabendo da impossibilidade de êxito total, uma vez que o que está

exposto é um recorte e, portanto, a minha perspectiva. Entretanto, pensamos que a

cada comentador que adicionássemos seria a inclusão de mais uma perspectiva

além da minha; e, como dissemos, pretendemos preservar o tanto quanto possível

o ponto de vista do nosso autor. Os comentadores entrarão nos capítulos seguintes,

e será resgatado por diversas vezes, nestes capítulos, o capítulo inicial. Logo,

apresentaremos os textos acriticamente, a fim de retomá-los posteriormente sob

uma análise crítica

Em seguida, no Capítulo 2, nos ateremos a retificações e reiterações que o

autor fez em obras ulteriores – este capítulo tem como objetivo expor as reflexões

de Althusser em relação a seus textos anteriores. Nos concentraremos, assim, nas

discussões sobre a) os aparelhos ideológicos de Estado, b) a prática ideológica, e

c) ciência e ideologia. No Capítulo 3, iniciaremos a exposição detalhada das

principais teses sobre a ideologia – no referido capítulo serão expostas as teses de

“corte epistemológico e “anti-humanismo teórico”. Finalizaremos, no Capítulo 4, com

uma análise dos mecanismos de funcionamento da ideologia, quais sejam, a

“interpelação” e a “relação imaginária”.

Apenas uma observação. A escolha dos quatros textos, em detrimento de

outros, para expormos no Capítulo 1, tem uma explicação: julgamos que, neles,

encontram-se os aspectos fundamentais da teoria da ideologia de Althusser. Não

significa, portanto, que é apenas neles em que Althusser fala de ideologia. A opção

por esta seleção de textos tão somente atende à metodologia que julgamos mais

conveniente.

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18

CAPÍTULO 1

AS BASES DA TEORIA

1.1 A ideologia em Marxismo e humanismo (Outubro de 1963)6

Ideologia aparece, em primeiro lugar, na seguinte proposição: “No contexto

da concepção marxista, o conceito de ‘socialismo’ é realmente um conceito

científico, mas o de humanismo é apenas um conceito ideológico (p. 185, grifo do

autor). E continua:

Ao dizer que o conceito de humanismo é ideológico (e não científico), afirmamos ao mesmo tempo que ele designa um conjunto de realidades existentes, mas que, diferentemente de um conceito científico, não dá os meios de conhecê-las. Ele designa, de um modo particular (ideológico), existências, mas não dá a essência delas. Confundir esses dois domínios seria interditar todo conhecimento, alimentar uma confusão e arriscar-se a cair em erros7 (Ibid., p. 185).

Ideologia é “um conjunto de realidades existentes”, às quais não temos

acesso, pois, ao contrário de um conceito científico, que nos aproxima da essência

das coisas, a ideologia nos obsta essa possibilidade. Ora, neste sentido, ideologia

parece ser uma “cortina de fumaça” ao verdadeiro conhecimento, a ciência.

Sua definição – a qual ele confessa ser esquemática – vem a seguir.

[...] uma ideologia é um sistema (com sua lógica e seu rigor próprios) de

representações (imagens, mitos, ideias ou conceitos, conforme o caso) dotado de uma existência e de um papel históricos no interior de uma sociedade dada. Sem entrar no problema das relações de uma ciência com o seu passado (ideológico), digamos que a ideologia como sistema de representações se distingue da ciência pelo fato de que, nela, a função prático-social prevalece sobre a função teórica (ou função de conhecimento) (Ibid., p. 192).

Além de reforçar a ideologia pela função oposta à ciência –qual seja,

enquanto esta desempenha um papel teórico, aquela desempenha um papel

6 Este texto será resgatado ulteriormente – no capítulo 3 -, pois trata de um assunto de suma

importância que, por hora, deixaremos de lado: o anti-humanismo teórico. Neste momento, abstrairemos o conceito de ideologia da problemática geral do texto. 7 A sessão a seguir esclarece a diferença levada a efeito por Althusser entre ciência e ideologia.

Page 21: CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SÍNTESE DA TEORIA DA IDEOLOGIA …

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prático-social –, Althusser nos indica mais duas características da ideologia. A

primeira é que ela é um sistema, com lógica e rigor próprios. Ora, se ideologia possui

uma função prático-social com lógica e rigor próprios, ela não pode ser um mero

devaneio subjetivo, nem uma auto-imposição consciente; deve estar relacionada a

outro fator. A segunda característica decorre do fato de esse sistema ideológico ser

“dotado de uma existência e de um papel históricos no interior de uma sociedade

dada”. Esse complemento desenvolve a tese da ideologia possuir uma função

prático-social, isto é, ela tem uma existência concreta no interior de uma sociedade

concreta.

Em seguida, o autor discorre com mais acuidade sobre a função social da

ideologia. A teoria marxista da história, segundo ele, nos ensina que as sociedades

humanas dadas são os “sujeitos” da história, constituem-se como totalidades em

unidades complexas, e se expressam em instâncias que podem,

esquematicamente, ser reduzidas a três: a econômica, a política e a ideológica.

Disso, decorre que a ideologia se expressa na totalidade social. Por não ser seu

objetivo – nesse momento – a elaboração de uma teoria da ideologia, Althusser se

vale de uma acurada descrição de sua importância:

Tudo ocorre como se as sociedades humanas não pudessem subsistir sem essas formações específicas, esses sistemas de representações (de nível diverso) que são as ideologias. As sociedades humanas secretam a ideologia como o elemento e a própria atmosfera indispensáveis à sua respiração e à sua vida históricas (ibid., p. 192, grifos do autor).

De alguma forma, portanto, a ideologia possui algo de vital na história das

sociedades humanas, sendo o elemento por meio do qual a forma das sociedades

humanas se expressa. Aqui, aparece pela primeira vez, uma tese que Althusser,

baseado n’A ideologia alemã de Marx e Engels, desenvolverá em Ideologia e

aparelhos ideológicos de Estado: a tese de que a ideologia é oni-histórica.

Falaremos mais adiante sobre isso. Uma sociedade sem ideologias, segundo

Althusser, seria impossível. Logo, seria uma utopia imaginar que a moral, a religião

e a arte, da forma como se apresentam – e por serem em última instância ideologias

–, poderiam deixar de existir com a ciência.

Nesse sentido, “a ideologia não é uma aberração ou uma excrescência

contingente da História: é uma estrutura essencial à vida histórica das sociedades”

Page 22: CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SÍNTESE DA TEORIA DA IDEOLOGIA …

20

(Ibid., p. 193). Apesar de seu efeito “negativo”, a de “obstruir” o caminho da ciência,

a ideologia possui, também, um efeito “positivo”: ela é a forma essencial da estrutura

social. De tal modo, uma possível sociedade comunista se valeria

imprescindivelmente de uma ideologia, ainda que essa forma ideológica fosse

substancialmente distinta da ideologia burguesa. Isto posto, “unicamente a

existência e o reconhecimento de sua necessidade podem permitir agir sobre a

ideologia e transformar a ideologia em instrumento de ação refletida sobre a

História” (Ibid., p. 193).

Dizíamos acima que a ideologia não pode ser um mero devaneio subjetivo –

pois diz respeito a uma forma de expressão de sociedades concretas – nem uma

autoimposição consciente. A ideologia, segundo Althusser, é profundamente

inconsciente. É um sistema de representações impostas à maioria dos homens sem

que o menor vestígio disso passe por suas consciências. “São objetos culturais

percebidos-aceitos-suportados, que atuam funcionalmente sobre os homens por um

processo que lhes escapa” (Ibid., p. 193). Poder-se-ia dizer, então, que a ideologia

é o motor (ou um dos motores) das relações entre os homens.

[A ideologia é] uma relação de relações, uma relação de segundo grau. Na ideologia, os homens exprimem, com efeito, não suas relações com suas condições de existência, mas a maneira pela qual vivem sua relação com suas condições de existência, o que supõe simultaneamente relação real e relação “vivida”, “imaginária”. A ideologia é, então, a expressão da relação dos homens com seu “mundo”, ou seja, a unidade (sobredeterminada) de sua relação real e de sua relação imaginária com suas condições de existência reais. Na ideologia, a relação real está inevitavelmente investida na relação imaginária: relação que mais exprime uma vontade (conservadora, conformista, reformista ou revolucionária), até mesmo uma esperança ou uma nostalgia, do que descreve uma realidade (Ibid., p. 194, grifos do autor).

Ideologia não é uma simples distorção da realidade, é uma distorção

imaginária da relação concreta com a realidade. Em termos kantianos, diríamos que

a ideologia (relação “vivida”, “imaginária”) é o fenômeno – isto é, o efeito - da

relação dos homens com suas condições de existência (relação real). Dito de outra

forma, é inacessível aos seres humanos a consciência de suas relações com suas

condições de existência; assim, esse “acesso” se daria, inevitavelmente, pelas

lentes da ideologia.

Page 23: CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SÍNTESE DA TEORIA DA IDEOLOGIA …

21

Um componente central da teoria marxista da história entra em cena: a luta

de classes. Esse elemento é um fator estruturante da ideologia, tendo em vista

como ela se realiza nas sociedades de classes. A ideologia, portanto, apesar de

imposta exteriormente a todos os homens, em uma sociedade de classes impõe-se

verticalmente e “descendentemente” (para nos valermos, com fins didáticos, de um

modelo tópico), na medida em que “a ideologia dominante é então a ideologia da

classe dominante [...]” (Ibid., p. 194). Ainda assim, seria equivocado pensar que,

uma vez havendo seres humanos que, pertencendo à classe dominante, estariam

“vivendo de acordo” com sua ideologia, e portanto isentos dos seus efeitos, ou

conscientes dos mesmos. Ao contrário, “encontram-se presos nela, tomados por ela

no momento mesmo em que se servem dela, e acreditam ser seus senhores

incontestes” (Ibid., 194).

Do mesmo modo, aqueles que pertencem às classes dominadas, em sua

imensa maioria, não se dão conta de que vivem e reproduzem a ideologia

dominante, com a ilusão de que esta representa os seus interesses . Pois,

Quando a “classe ascendente”, burguesa, desenvolve, no decurso do século XVIII, uma ideologia humanista da igualdade, da liberdade e da razão, ela dá à sua própria reivindicação a forma de universalidade8, como se assim ela quisesse alistar do seu lado, formando-os para esse fim, os próprios homens que ela não libertará senão para os explorar (Ibid., p. 194).

A ideologia não é simples manipulação ou persuasão. Sem dúvidas, estas

existem; entretanto, a ideologia compreende todos – ainda que de modos diferentes

– que vivem em sociedades de classes. A constatação, é necessário esclarecer,

não excetua as classes dominantes, por estas se encontrarem sob os efeitos da

ideologia, tal qual as classes dominadas. A ideologia burguesa apenas “legitima” a

vontade da classe dominante sobre as classes dominadas,

para mantê-los sob controle, pela chantagem da liberdade, quanto a necessidade da burguesia de viver sua própria dominação de classe como a liberdade de seus próprios explorados (Ibid., p. 195).

8 Mais adiante, quando expusermos a crítica levada efeito por Althusser à ideologia jurídica,

veremos a importância da noção de universalidade

Page 24: CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SÍNTESE DA TEORIA DA IDEOLOGIA …

22

Encerrando sua breve reflexão sobre ideologia burguesa, o autor destaca e

enfatiza a dupla “função de classe de uma ideologia”:

Quando se fala da função de classe de uma ideologia, é preciso, portanto, compreender que a ideologia dominante é efetivamente a ideologia da classe dominante, e que ela lhe serve não só para dominar a classe explorada, mas também para se constituir ela mesma como classe dominante, fazendo-a aceitar como real e justificada a sua relação vivida com o mundo (Ibid., p. 195, grifos do autor).

Em um “exercício de futurologia”, que não tem nada de leviano, pois

Althusser segue com rigor sua linha de raciocínio, ele põe a questão: “o que

acontece à ideologia numa sociedade onde as classes desaparecem [?]” (Ibid., p.

195). Como dissemos acima, ideologia não é manipulação; caso fosse, em uma

sociedade sem classes, a ideologia desapareceria. No entanto,

Mesmo no caso de uma sociedade de classes, a ideologia está ativa sobre a própria classe dominante e contribui para modelá-la, modificar suas atitudes para adaptá-la às suas condições reais de existência (Ibid., p. 195).

Não havendo outra forma, as sociedades, sejam elas de classes ou sem

classes, existem na, e através da, ideologia. Assim sendo,

Numa sociedade de classes, a ideologia é o intermediário pelo qual, e o elemento no qual, a relação dos homens com suas condições de existência se resolve em benefício da classe dominante. Numa sociedade sem classes, a ideologia é o intermediário pelo qual, e o elemento no qual, a relação dos homens com suas condições de existência é vivida em benefício de todos os homens (Ibid., p. 196, grifos nossos).

Vimos que, neste texto, Althusser desenvolve, ainda que embrionariamente,

vários pontos que servirão para uma tentativa de criação de uma teoria da ideologia.

São eles: a diferença entre ideologia e ciência; a existência e o papel histórico da

ideologia; o aspecto oni-histórico da ideologia; o fato de que ela se dá

inconscientemente e através de uma relação imaginária com as condições reais de

existência; e, finalmente, que, em sociedades de classes, ela adquire uma forma

particular – a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante, ainda que esta

não estabeleça uma relação de exterioridade com a ideologia que a privilegia. Nas

seções a seguir, abordaremos a ideologia, o como ela é desenvolvida, em Prática

Page 25: CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SÍNTESE DA TEORIA DA IDEOLOGIA …

23

teórica e luta ideológica e em Filosofia e filosofia espontânea dos cientistas.

Veremos, ademais, o tratamento muito mais estrito que Althusser dá à ideologia.

1.2 A ideologia em Prática teórica e luta ideológica (1966)9

Esse texto inaugura uma das teses centrais de Althusser a respeito da

ideologia, qual seja, que ela é diametralmente oposta à ciência (tese esta que será

retificada posteriormente por Althusser). Como veremos, o filósofo tentará

demonstrar nesse texto – ainda que esquematicamente –, as particularidades da

prática teórica e da luta ideológica, bem como as suas “ligações decisivas na união

da teoria marxista e do movimento operário” (ALTHUSSER, 2005, p. 67).

Logo no primeiro parágrafo, Althusser expõe o tema de seu texto ao chamar

a atenção para a doutrina de Marx, que é científica em relação às doutrinas

socialistas anteriores a ele, que eram ideológicas. Algum novo elemento, portanto,

foi introduzido, por Marx, ao movimento operário, de tal modo que pôde ser

designado de científico, em relação às doutrinas anteriores, ideológicas.

Ao utilizar-se de categorias morais e jurídicas – ou seja, categorias

ideológicas burguesas – para definir os fins do socialismo, os socialistas utópicos

consequentemente definem meios de ação para o alcance desses fins através de

princípios ideológicos: “cooperação operária de Owen, os falanstérios dos

discípulos de Saint-Simon, o banco popular de Proudhon no terreno econômico, o

da educação e da reforma moral no terreno político, etc.” (Ibid., p. 23). Tais

princípios, fundamentalmente ideológicos e burgueses, ainda que pertencentes ao

movimento operário, permanecem anarquistas ou reformistas.

A diferença fundamental da doutrina marxista, que é científica, reside no fato

de ela não apenas utilizar os princípios morais e jurídicos burgueses para a crítica

à realidade burguesa, mas de criticar os princípios morais e o sistema político-

econômico com um todo (Ibid., p. 24). Este todo “constitui uma totalidade orgânica,

9 O texto utilizado é uma versão em castelhano. Todas citações são traduções livres minhas. Cf.:

ALTHUSSER, L. Práctica Teórica Y Lucha Ideológica [Prática teórica e luta ideológica]. In: ALTHUSSER, L. La filosofia como arma de la revolucíon. Madrid: Siglo Veintiuno editores; Vigesimoquinta edición, 2005.

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24

cuja economia, política e ideologia são ‘níveis’, ‘instâncias’ orgânicas, articuladas

umas sobre as outras segundo leis específicas” (Ibid., p. 24). A doutrina marxista,

por conseguinte, é um conhecimento teórico e objetivo que permite, entre outras

coisas, definir as formas de luta ideológica.

Althusser divide a doutrina marxista em duas disciplinas científicas: o

materialismo histórico (ou ciência da história) e o materialismo dialético (ou filosofia

marxista). O materialismo histórico é:

A ciência dos modos de produção, de suas estruturas próprias, de suas constituições, de seus funcionamentos, e das formas de transição que fazem passar de um modo de produção a outro (Ibid., p. 26, grifos do autor).

Já o materialismo dialético distingue-se, essencialmente, por seu objeto, qual

seja, a história do pensamento – aquilo que a filosofia clássica chamou de teoria do

conhecimento, “ou o que nós podemos chamar de história da produção de

conhecimentos, ou a diferença histórica entre a ideologia e a ciência” (Ibid., p. 29,

grifos nossos). Isto é, enquanto o materialismo histórico lida com processos

concretos de transição e constituição dos modos de produção, bem como com seus

modelos possíveis, o materialismo dialético intervém no processo de produção de

conhecimentos na medida em que esses conhecimentos podem ser classificados

como científicos ou ideológicos.

A teoria filosófica marxista é levada necessariamente a definir a natureza das práticas não científicas ou pré-científicas, as práticas da “ignorância” ideológica (prática ideológica) e todas as práticas reais sobre as quais está fundada a prática científica, e com as quais está em relação (a prática da transformação das relações sociais, ou prática política; a prática da transformação da natureza ou prática econômica. Esta prática põe o homem em relação com a natureza, que é a condição material de sua existência biológica e social) (Ibid., p. 30).

A rigor, portanto, o materialismo dialético tem uma dupla função: definir as

diferenças essenciais entre as práticas científicas e as práticas ideológicas e, ao

identificar essas diferenças, resguardar as práticas políticas e econômicas da

“contaminação” ideológica. A ciência está, naturalmente, exposta a certas

influências (históricas, políticas, etc.) que podem interferir negativamente em seu

Page 27: CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SÍNTESE DA TEORIA DA IDEOLOGIA …

25

desenvolvimento. A influência ideológica, por sua vez, ainda que menos aparente,

produz impactos tão significativos ou até maiores.

Todas as ciências, tanto as da natureza como as sociais, estão submetidas constantemente ao assédio das ideologias existentes e em particular a essa ideologia que, devido a seu caráter aparentemente não ideológico, é convincente, aquela em que o sábio reflete “espontaneamente” sua própria prática: a ideologia “empirista” ou “positivista”. Como dizia já Engels, todo sábio, querendo ou não, adota inevitavelmente uma filosofia da ciência, não pode carecer de uma filosofia. Todo o problema consiste então em saber que filosofia deve ter como companheira: uma ideologia que deforma sua própria prática científica, uma filosofia científica que dá conta efetivamente de sua própria prática científica? Uma ideologia que o escravize a seus erros e suas ilusões ou, ao contrário, uma filosofia que o liberte das ilusões e o permita dominar verdadeiramente sua prática? (Ibid., p. 34, grifos do autor).

Segundo Althusser, portanto, há uma “filosofia científica” (o materialismo

dialético) e uma “ideologia filosófica” (o empirismo). Tratar-se-ia de o cientista – que

não pode abdicar de uma filosofia – escolher qual filosofia melhor o serve. A filosofia

marxista, fundada em bases científicas, seria a escolha adequada. O empirismo,

por seu turno, travestido de uma filosofia convincente, não passaria de uma

ideologia filosófica. Mas, por que? Para Althusser, o empirismo acredita que a

ciência reflete direta e naturalmente o real, como um dado puro, quando, na

realidade, se trata de “um processo complexo de produção de conhecimentos”

(Ibid., p. 37).

Como não percebe a ideologia, toma sua percepção das coisas e do mundo pela percepção das “coisas mesmas”, sem ver que essa percepção não é dada senão sob o véu das formas insuspeitas da ideologia, sem ver que está de fato recoberta pela invisível percepção das formas da ideologia (Ibid., p. 52, grifos do autor).

Assim,

Conhecer não é extrair das impurezas e da diversidade do real a essência pura que pode estar contida nelas, como se extrai o ouro da ganga de areia e terra na qual está contido: conhecer é produzir o conceito adequado do objeto por colocar em ação de meios de produção teóricos (teoria e método) aplicados a uma matéria prima dada. Esta produção do conhecimento em uma ciência dada é uma prática específica, isto é, distinta das outras práticas existentes (prática econômica, prática política, prática ideológica) e, a seu nível e em sua função, absolutamente insubstituível (Ibid., p. 38-39, grifos do autor).

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26

Chegamos, então, a uma definição de prática teórica: é uma prática

particular, que se diferencia das outras práticas – política, econômica, ideológica.

Tem por objetivo intervir cientificamente no conhecimento, diferenciando-se, assim,

do empirismo, que seria uma ideologia filosófica. Sua condição de existência e

aplicabilidade é o materialismo dialético, ou seja, a “teoria da prática teórica”.

1.2.1 Ideologia e luta ideológica

Por se tratar de uma forma pré-científica, poder-se-ia pensar que, com o

advento da ciência, a ideologia deixaria de existir. Contudo, “não só a ideologia

precede a toda ciência, mas se perpetua com a constituição da ciência, e apesar de

sua existência” (Ibid., p. 47). Pois a ideologia não existe apenas em contraponto à

ciência, ela se manifesta na sociedade inteira:

Propomos, sob o termo de ideologia, uma noção que questiona realidades sociais que, tendo a ver com uma certa representação (com um certo “conhecimento”, por consequência) do real, transborda amplamente, no entanto, a simples questão do conhecimento, para pôr em jogo uma realidade e uma função propriamente sociais (Ibid., p. 48, grifos do autor).

Logo, existe uma dupla relação da ideologia: por um lado, se relaciona com

o conhecimento, desempenhando uma função epistemológica, por outro lado, a

ideologia cumpre uma função social, relacionando-se com a sociedade. Essa

constatação, por sua vez, exige o seguinte esclarecimento: é crucial definir o

marxismo como uma ciência e, por extensão, uma realidade absolutamente distinta

da ideologia. Não obstante, as organizações revolucionárias fundadas sobre a

teoria científica do marxismo desenvolvem-se (sua luta e sua consciência) na

medida em que lutam na sociedade, confrontando-se, assim, com a existência

social da ideologia (Ibid., p. 48). A função social da ideologia, sobre a qual Althusser

inicia seu desenvolvimento nesse texto (ele havia falado en passant em Marxismo

e humanismo), será a pedra angular para o desenvolvimento de sua teoria da

ideologia desenvolvida em Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado (que nos

deteremos mais adiante).

Page 29: CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SÍNTESE DA TEORIA DA IDEOLOGIA …

27

Como nos ensinou Marx, em uma dada sociedade os homens participam de

três instâncias: a produção econômica (relações de produção), a atividade política

(relações de classe) e a atividade ideológica (religião, moral, filosofia etc.) Ora,

O “nível” ideológico representa, portanto, uma realidade objetiva, indispensável à existência de uma formação social; realidade objetiva, isto é, independente da subjetividade dos indivíduos que estão submetidos – sempre no que se refere aos indivíduos mesmo – e pelo qual Marx emprega a expressão “formas de consciência social” (Ibid., p. 49).

Mesmo sendo uma realidade objetiva, a ideologia representa o mundo de um

modo falseado. Portanto, essas representações não são conhecimentos

verdadeiros – ainda que possam conter elementos verdadeiros. Na prática

cotidiana, seja ela econômica ou política, os homens se convencem da existência

da realidade, percebem os efeitos de suas estruturas. No entanto, a essência

dessas estruturas lhes aparece dissimuladas. Com efeito, é através da prática

teórica que se realiza o conhecimento do mecanismo das estruturas.

Os homens que não têm o conhecimento das realidades políticas, econômicas e sociais em que devem cumprir as tarefas que lhes atribui a divisão do trabalho, não podem viver sem guiar-se por uma certa representação de seu mundo e de suas relações com ele. Esta representação eles a encontram primeiro ao nascer, existindo na sociedade mesmo, da mesma maneira que encontram existentes antes que eles as relações de produção e a relações políticas em que deverão viver. Do mesmo modo que nascem como “animais econômicos” e “animais políticos” se pode dizer que os homens nascem “animais ideológicos” (Ibid., p. 50, grifos do autor).

Por conseguinte, a ideologia é “uma certa representação de mundo, que liga

os homens com suas condições de existência” (Idem, grifos do autor). Ela ocorre

tanto nas sociedades sem classes (como, por exemplo, através da religião nas

sociedades “primitivas”), quanto nas sociedades de classes, desempenhando a

função de garantidora da execução das tarefas nas relações de produção e também

enquanto atenuante da exploração capitalista. A ideologia constitui, assim, um

“cimento” de natureza particular que assegura o ajuste e a coesão dos homens em

seus papéis, suas funções e suas relações sociais” (Ibid., p. 51). Ou ainda: tem por

função assegurar a ligação dos homens entre si e nos conjuntos das formas de sua

existência, a relação dos indivíduos com as tarefas que lhes fixa a estrutura

social(Ibid.).

Page 30: CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SÍNTESE DA TEORIA DA IDEOLOGIA …

28

Uma das características essenciais da ideologia, assim como de todas as

realidades sociais, é que ela só é inteligível através de sua estrutura, ou seja, não

será através de seus símbolos, imagens, idiossincrasias, etc., que apreenderemos

a ideologia; afinal, “é seu sistema, seu modo de se dispor e se combinar que dão

seu sentido, é sua estrutura que determina seu sentido e sua função” (Ibid., p. 52,

grifos do autor). Não obstante, essas estruturas não são imediatamente visíveis, de

modo que os homens vivem a ideologia, mas não a conhecem. Justamente por estar

determinada estruturalmente, e, portanto, não se limitar às formas subjetivas de

apreensão da realidade pelos indivíduos, a ideologia pode ser objeto de um estudo

objetivo (Ibid.).

Ainda que ideologia se realize enquanto estrutura, é possível identificar

“regiões relativamente autônomas no próprio seio da ideologia: a ideologia religiosa,

a ideologia moral, a ideologia jurídica, a ideologia política, a ideologia estética, a

ideologia filosófica” (Ibid., p. 52-53). Essas regiões expressam áreas de relativa

autonomia à ideologia em geral, sendo históricas e exercendo influência em grau

maior ou menor nos diversos modos de produção e formações sociais distintos –

sempre havendo uma região ideológica dominante:

O conhecimento das diferentes regiões existentes na ideologia, o conhecimento da região ideológica dominante (seja religiosa, política, jurídica, moral, etc.) é de primeira importância política para a estratégia e a tática da luta ideológica (Ibid., p. 53, grifos do autor).

Tanto a identificação de regiões relativamente autônomas, quanto a

afirmação de que sempre existe uma região ideológica dominante, são insumos

teóricos de primeira importância para a elaboração de uma teoria da ideologia, que

Althusser levará a efeito em Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado (e que

veremos mais adiante). A ideologia, em suas regiões relativamente autônomas,

pode se expressar de forma mais menos consciente e mais ou menos

sistematizada. A ideologia religiosa, por exemplo, pode se expressar em ritos, sem

que seja uma teologia – que é sua sistematização teórica. O mesmo se passa com

as ideologias política e moral. Já a forma de teorização da ideologia como um todo,

é a filosofia.

Page 31: CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SÍNTESE DA TEORIA DA IDEOLOGIA …

29

É como laboratório da teoria que a ideologia filosófica desempenhou e desempenha ainda um papel de grande importância no nascimento das ciências e no seu desenvolvimento. [...] De todo modo devemos saber que à exceção da filosofia em sentido stricto, em cada um de seus diferentes domínios a ideologia não se reduz a sua expressão teórica, a qual não é geralmente acessível a mais que um pequeno número de homens, mas que existe na grandes massas sob uma forma não-refletida teoricamente, que a estende muito mais além de sua forma teorizada (Ibid., p. 54, grifos do autor).

A ideologia, no que diz respeito à sua função epistemológica, é importante –

e mesmo inevitável – no nascimento das ciências: a ideologia filosófica é a matéria-

prima da constituição de uma ciência. Nesse estágio (o pré-científico), a ideologia

desempenha, por extensão, um papel positivo. Contudo, como já dissemos acima,

a ideologia começa a adquirir um caráter negativo, quando “se perpetua com a

constituição da ciência, e apesar de sua existência” (Ibid., p. 47).

Já em relação à função social da ideologia, no que diz respeito às sociedades

de classes, chegamos à seguinte definição:

Em uma sociedade de classes, esta função é dominada pela forma que toma a divisão do trabalho na diferenciação dos homens em classes antagônicas. No damos conta então que a ideologia está destinada a assegurar a coesão das relações dos homens entre si e dos homens com suas tarefas na estrutura geral de exploração de classe, que as estende então a todas as outras relações. A ideologia está pois destinada antes de tudo a assegurar a dominação de uma classe sobre as outras e a exploração econômica que lhe segura sua preeminência, fazendo aos explorados aceitar como fundada na vontade de Deus, na “natureza”, no “dever” moral, etc., sua própria condição de explorados. Mas a ideologia não é somente um “belo engano” inventado pelos exploradores para manter afastados os explorados e enganá-los: é útil também aos indivíduos da classe dominante, para aceitar como “desejada do Deus”, como fixada pela “natureza” ou mesmo como atribuída por um “dever” moral a dominação que eles exercem sobre os explorados; é útil para eles ao mesmo tempo esse laço de coesão social, para comportar-se como membros de uma classe, a classe dos exploradores (Ibid., p. 55, grifos do autor.).

Para entendermos a ideologia nas sociedades de classes, é imprescindível,

com efeito, um elemento: a luta de classes. A ideologia naturaliza a condição de

explorados à uma classe, ao passo que naturaliza a exploração da outra classe. Isto

é, em ambos os lados, a maioria dos indivíduos que compõe cada classe, entende

seu papel como natural, não fruto de uma luta de classes antagônicas, mas de

fatores religiosos e/ou morais.

Page 32: CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SÍNTESE DA TEORIA DA IDEOLOGIA …

30

Ora, se o efeito da ideologia nas sociedades de classe é, em última instância,

a manutenção das relações de exploração, apesar de ser uma representação do

real, a ideologia é necessariamente uma representação falseada. Ou, em outras

palavras, ela é deformante e mistificadora, pois exerce na “consciência [dos sujeitos]

e em seus comportamentos imediatos, o lugar e o papel que lhes impõe a estrutura

dessa sociedade” (Ibid., p. 56, grifos do autor).

Por ser uma representação, a ideologia é uma alusão ao real, mas apenas

na medida em que apresenta uma ilusão da realidade. Do mesmo modo, a ideologia

é a forma de reconhecimento do homem no mundo, mas apenas na medida que

proporcione um desconhecimento do mundo. “Alusão-ilusão ou reconhecimento-

desconhecimento: tal é, pois, do ponto de vista de sua relação com o real, a

ideologia” (Ibid., p. 56, grifos do autor). Se o objetivo da ideologia, no que diz

respeito a sua função social, é um “desconhecimento social e objetivo do real” (Ibid.,

p. 57), entende-se, portanto, o porquê de a ideologia subsistir com o advento da

ciência:

Se compreende também que a ciência não possa, em sua função social, substituir a ideologia, como acreditavam os filósofos do Iluminismo, que não viam na ideologia mais que a ilusão (o erro) sem ver nela a alusão ao real, sem ver nela a função social desta união (Ibid., p. 57).

Althusser retoma o desenvolvimento de uma tese consagrada de Marx, que

havia exposto em Marxismo e humanismo, qual seja, “as ideias dominantes são as

ideias das classes dominantes” (Ibid., p. 57, grifos do autor). Se, como dissemos

anteriormente, a ideologia, em última instância, chancela a exploração de classes,

ela, ao mesmo tempo, pode servir como ferramenta para a luta ideológica das

classes exploradas.

Se a ideologia expressa em seu conjunto uma representação do real destinada a consagrar uma exploração e uma dominação de classe, pode também dar lugar, em certas circunstâncias, à expressão de protesto das classes exploradas contra sua própria exploração. [...] a ideologia não está dividida unicamente em regiões, mas também em tendências, no interior de sua própria existência social (Ibid., p. 57, grifos do autor).

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31

Quando Marx afirma que “as ideias dominantes são as ideias da classe

dominante”, infere-se que existem, também, ideias dominadas, isto é, ideias das

classes dominadas. É nessa ideologia das classes exploradas, mesmo subordinada

à ideologia dominante, que reside a possibilidade de resistência e enfrentamento no

campo da luta ideológica.

A pressão da ideologia burguesa é tal, e em tal medida a única que proporciona a matéria-prima ideológica, os quadros de pensamento, os sistemas de referência, que a classe operária ela mesma não pode, por seus próprios recursos, libertar-se radicalmente da ideologia burguesa. Pode em todo caso expressar seu protesto e suas esperanças utilizando certos elementos de ideologia burguesa, mas permanece prisioneira desta, presa em sua estrutura dominante. Para que a ideologia operária “espontânea” chegue a transformar-se até o ponto de libertar-se da ideologia burguesa, é necessário que receba de fora socorro da ciência, e que se transforme sob a influência de um novo elemento, radicalmente distinto da ideologia: a ciência precisamente. A fundamental tese leninista da “importação” no movimento operário da ciência marxista não é, portanto, uma tese arbitrária ou a descrição de um “acidente” da história: está fundada na necessidade mesma, na natureza da ideologia mesma e nos limites absolutos de desenvolvimento natural da ideologia “espontânea” da classe operária (Ibid., p. 58, grifos do autor).

Este excerto é, essencialmente, um resumo do fio condutor pelo qual

Althusser pretende demonstrar sua tese: 1) a ideologia pressupõe um conjunto de

normas, costumes, etc., que naturalizam a exploração de classe – tanto do lado do

explorado quanto do lado do explorador; 2) existe uma ideologia dominante, a

ideologia da classe dominante; 3) as ideias da classe dominada, subordinadas às

ideias da classe dominante, não têm forças suficientes para inverter essa equação;

4) logo, é necessário uma força exterior que a auxilie na luta ideológica – a ciência

marxista.

A luta ideológica implica uma batalha, que em um primeiro momento pode

parecer uma “batalha de ideias”. Afinal, “toda luta põe em questão um conflito entre

convicções, crenças, representações do mundo’’ (Ibid., p. 65, grifos do autor).

Entretanto, ideologia, para o filósofo, tem uma realidade objetiva e material, que

permeia as outras lutas sociais e direciona as práticas política e econômica:

A luta ideológica está em todas as partes, já que é indissociável da concepção que os homens fazem da sua condição em todas suas lutas e, por conseguinte, das ideias em que vivem os homens sua relação com a sociedade e seus conflitos. Não pode existir luta econômica ou política sem

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que os homens comprometam nelas suas ideias ao mesmo tempo que suas forças (Ibid., p. 65).

Não obstante, a luta ideológica possui um domínio e um objetivo próprios.

Seu domínio é o domínio da ideologia e seu objetivo é a libertação da dominação

da ideologia burguesa, para substituí-la por uma ideologia que atenda aos

interesses da classe operária. Assim Althusser resume sua análise:

A natureza mesma do movimento operário, independentemente de toda influência da teoria científica

de Marx, a compromete em uma tríplice luta: luta econômica, luta política, luta ideológica. Na unidade

dessas três lutas distintas, a representação que faz o movimento operário da natureza da sociedade

e de sua evolução, da natureza dos fins a alcançar e dos meios a empregar para levar a cabo

corretamente luta, define a orientação geral desta. A luta depende, portanto, da ideologia do

movimento operário. É a ideologia que o orienta diretamente a concepção que este faz de sua luta

ideológica e por conseguinte a maneira em que se conduz para transformar a ideologia existente, é

essa ideologia a que orienta diretamente a concepção que o movimento operário faz de sua luta

econômica e política, de suas relações e por conseguinte da maneira em que conduz sua luta (Ibid.,

p. 66, grifos do autor).

No entanto, é imprescindível o apoio da ciência marxista, pois,

A luta ideológica acompanha todas as outras formas de luta e é absolutamente decisiva para todas as formas de luta da classe operária, [mas a] insuficiência das concepções ideológicas do movimento operário entregue a si mesmo, produz concepções anarquistas, anarcosindicalistas, e reformistas de sua luta econômica e política (Ibid., p. 66, grifos do autor).

Nesse sentido,

Tudo se resume, portanto, à transformação da ideologia da classe proletária: à transformação que faz com que a ideologia da classe operária escape da influência da ideologia burguesa, para submetê-la à uma nova influência, a da ciência marxista da sociedade (Ibid., p. 67, grifos do autor).

Por fim,

A luta ideológica pode ser definida como a luta levada a cabo no domínio objetivo da ideologia contra a dominação da ideologia burguesa por meio da transformação da ideologia existente (ideologia da classe operária, ideologia das classes que podem converter-se em suas aliadas), no sentido tal que sirva aos interesses objetivos do movimento operário em sua luta pela revolução e mais tarde na luta pela construção do socialismo.

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A luta ideológica é uma luta na ideologia: para ser levada a cabo sobre uma base teórica justa, supõe como condição absoluta o conhecimento da teoria científica de Marx, supõe, portanto, a formação teórica10. Essas duas ligações: luta ideológica e formação teórica, ainda que sejam ambas decisivas e não estejam no mesmo plano, implicam do ponto de vista da sua natureza uma relação de dominação e de dependência: é a formação teórica que dirige a luta ideológica, que é sua base teórica e prática (Ibid., p. 67).

Vimos que, nesse texto, Althusser se preocupa em analisar a função social

da ideologia. Para tanto, ele estabelece o princípio sine qua non da luta ideológica

da classe operária, qual seja, sua vinculação com a formação teórica, com a ciência

marxista. A seguir, em Filosofia e filosofia espontânea dos cientistas (1976),

veremos Althusser recuar um pouco, e se debruçar sobre os aspectos

epistemológicos da ideologia.

1.3 A ideologia em Filosofia e filosofia espontânea dos cientistas (outubro-

novembro de 1967)

A primeira menção ao conceito de ideologia que encontramos em Filosofia e

filosofia espontânea dos cientistas (FFEC) é a seguinte:

Uma proposição ideológica é uma proposição que sendo o sintoma duma realidade diferente da que visa, é uma proposição falsa na medida em que tem por objeto a própria realidade que visa (ALTHUSSER, 1976, p. 23).

Na medida em que é falso o que pretende anunciar, a proposição ideológica

é um sintoma de uma outra realidade, diferente daquela anunciada. A proposição

ideológica é, logo, um efeito da realidade.

É importante salientar que, neste caso, Althusser se refere a uma proposição

ideológica e não à ideologia em si. Portanto, uma proposição (sentença, asserção)

ideológica é uma determinação da ideologia em geral. Uma proposição ideológica

10 “Por formação teórica entendemos o processo de educação, de estudo e de trabalho, pelo

qual um militante é posto em possessão, não só de conclusões das duas ciências marxistas (materialismo histórico, materialismo dialético), não só de seus princípios teóricos, não só de alguma análises e demonstrações de detalhe, mas de todo o conjunto da teoria, de todo seu conteúdo, de todas as suas análises e demonstrações, de todos seus princípios e de todas as suas conclusões em sua ligação científica indissolúvel. Entendemos, portanto, ao pé da letra, um estudo e uma assimilação profundos de doas as obras científicas de primeira importância sobre as que repousam os conhecimentos da teoria marxista” (Ibid., p. 69, grifos do autor).

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é, por exemplo, a forma que a filosofia adquire quando tenta responder a questões

sobre a “origem” e “fins últimos”, questões essas que pertencem à moral e à religião.

“A questão da ‘origem’ e dos ‘fins últimos’ é uma proposição ideológica” (Ibid., p.

30).

A seguir, temos uma tentativa de definição da ideologia por sua função e

contraposição à ciência: “O ideológico é qualquer coisa que tem relação com a

prática e a sociedade. O científico é qualquer coisa que tem relação com o

conhecimento e as ciências” (Ibid., p. 63). Observa-se a característica sui generis

da ideologia: ela se relaciona com a prática e a sociedade. Além disso, o autor nos

apresenta seu oposto: a ciência (no caso, as ciências da natureza). Não obstante,

não nos apresenta uma definição de ciência, mas nos indica sua principal

característica: todas as ciências (da natureza) são matematizadas, o que as confere

um estatuto epistemológico.

Vejamos agora, como Althusser entende a ideologia relacionada com a

prática.

As ideologias práticas são formações complexas de montagens de noções-representações-imagens nos comportamentos-condutas-atitudes-gestos. O conjunto funciona como normas práticas que governam a atitude e a tomada de posição concreta dos homens em relação a objetos reais e problemas reais da sua existência social e individual, e da sua história (Ibid., p. 30).

Ideologia religiosa e ideologia moral são, nesse sentido, ideologias práticas.

Moral e religião estão ligadas a práticas, na medida em que suas existências só se

realizam na reprodução destas.

Em Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado, encontramos duas

características gerais de ideologia: 1) ideologia – relação imaginária com as

relações reais; e também 2) a ideologia tem uma existência material. Isto é,

podemos dizer que Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado, que é de 1970, ou

seja, três anos após FFEC, já contém, neste último texto, noções embrionárias do

que chamaremos provisoriamente de teoria da ideologia de Althusser.

“A ideologia prática, portanto [é] uma realidade social exterior e estranha à

prática científica [...]” (Ibid., p. 31). Mas, o que distingue o científico do ideológico?

Page 37: CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SÍNTESE DA TEORIA DA IDEOLOGIA …

35

Nesse ponto, temos um terceiro “elemento”, através do qual realizar-se-ia a

diferenciação entre o científico e o ideológico. Esse elemento é a filosofia. A filosofia

enuncia teses (proposições dogmáticas) que se distinguem da ciência pois não

podem se afirmar como “verdadeiras” ou “falsas”, mas sim como “justas” ou não. As

teses filosóficas, assim,

não são suscetíveis de demonstração estritamente científico (no sentido em que se fala de demonstração em matemática e lógica), nem de prova no sentido estritamente científico (no sentido em que se fala de prova nas ciências experimentais) [...]. As teses filosóficas, não podendo ser objeto de demonstração ou de provas científicas, não podem se afirmar ‘verdadeiras’ (demonstradas ou provadas com em matemática e em física). Podem apenas afirmar-se ‘justas’” [...] o atributo ‘verdadeira’ implica antes de mais uma relação com a teoria; o atributo ‘justa’, antes de mais uma relação com a prática (Ibid., p. 14-15).

Posto isso, Althusser explica que “justo não é o adjetivo de justiça [...] a justiça

[é uma] noção ideológica sob e na qual os homens ‘vivem’ as suas relações com as

suas condições de existência e as suas lutas” (Ibid., p. 68). Por exemplo:

uma guerra é justa quando é conforme a uma posição e a uma linha justas, na conjuntura duma determinada relação de forças: como intervenção prática conforme ao sentido da luta de classes, justa porque ajustada ao sentido da luta de classes (Ibid., p. 69).

Fala-se, portanto, não em justiça, mas em justeza. E a justeza é resultado do

ajustamento. Voltando a nossa questão, o que distingue o científico do ideológico?

O científico é desembaraçado do ideológico – e assim ambos se determinam –,

através do raciocínio filosófico. Ao falar da noção ideológica de interdisciplinaridade,

por exemplo, Althusser demonstra que, em ciências exatas, a relação entre

matemática e ciências naturais não tem o sentido de aplicação da primeira para a

segunda, como há na aplicação de um desenho sobre um tecido, de um verniz sobre

uma telha, entre outros. Assim, não há uma aplicação no sentido de uma técnica,

de uma instrumentalidade. Há, isso sim, uma troca orgânica; uma relação, logo, de

constituição. Desta forma, a nova palavra demarca a noção ideológica de aplicação

da categoria justa de constituição. (Ibid.).

Isto posto, em ciências exatas, o termo interdisciplinaridade é uma

designação ideológica para relações orgânicas que “obedecem a necessidades

Page 38: CONTRIBUIÇÃO PARA UMA SÍNTESE DA TEORIA DA IDEOLOGIA …

36

puramente científicas” (Ibid., p. 40). O que Althusser denomina, provisoriamente, de

“ideologia científica”, são “obstáculos epistemológicos”, tendo em vista que

combatê-los significa “evitar certas concepções, certas tendências ou tentações em

matéria de colaboração ‘interdisciplinar’ cega e favorecer todas as práticas

fecundas” (Ibid., p. 41). Em contrapartida, nas ciências humanas, cabe a categoria

de aplicação, pois sua relação com as matemáticas não é orgânica, como no caso

das ciências exatas, mas uma relação exterior.

No que tange às ciências humanas, estas se utilizam, também, das

categorias filosóficas como base teórica que lhes falta, o que é chamado pelo autor

de substituto ideológico: “as filosofias servem de substituto ideológico duma base

teórica que falta às ciências humanas”, com exceções, como “a psicanálise e, em

certa medida, a linguística, etc.” (Ibid., p. 47). Os cientistas possuem uma ideologia

própria, a qual Althusser denomina filosofia espontânea dos cientistas (F.E.C).

Por F.E.C., entendemos não o conjunto das ideias que os cientistas têm sobre o mundo (isto é, a sua ‘concepção do mundo’) mas apenas as ideias que têm na cabeça (conscientes ou não) que dizem respeito à prática

científica e à ciência (Ibid., p. 127).

A F.E.C expressa-se de dois modos:

[1.] [Por meio de] “’convicções’ ou ‘crenças’ resultantes da experiência e da prática científica em si, imediata e cotidiana: ‘espontânea’”. Esta expressão é intracientífica e materialista. (Ibid., p. 128). [...] [2.] [Por meio de] “reflexão sobre a prática científica mediante Teses filosóficas elaboradas fora desta prática, por ‘filosofias da ciência’, religiosas, espiritualistas ou idealistas-críticas, fabricada por filósofos ou cientistas. Esta expressão é idealista e extracientífica. (Ibid., p. 129).

A primeira expressão (materialista) quase sempre é dominada pela

segunda expressão (idealista) (Ibid.). Como pudemos ver, fundamentalmente, a

ideologia aparece como um dos elementos – junto à ciência e à filosofia – de um

jogo epistemológico, onde ela representa o elemento “negativo”, isto é, a ser

negado (através da filosofia), em benefício da ciência. A bem da verdade, a

ideologia não aparece nesse texto apenas como o Outro da ciência.

Brevemente, Althusser expõe a importância da ideologia jurídica. No entanto,

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37

essa é uma questão sobre a qual ele se debruçará com mais rigor em outros

textos, sobre os quais falaremos mais adiante.

1.4 A ideologia em Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado (1969-70)

Nesse texto, a ênfase recai sobre a importância da ideologia no que diz

respeito à sua função de reprodutora, em parte, das forças produtivas11, e,

principalmente, das relações de produção12. Antes de adentrar às “funcionalidades”

da ideologia, entretanto, é necessário demonstramos o conceito de ideologia levado

a efeito por Althusser.

No intuito de propor uma teoria da ideologia em geral, Althusser desenvolve

uma proposição, a princípio paradoxal, que Marx enuncia n’A ideologia alemã: a

ideologia não tem história. No referido texto, a tese de que a ideologia não possui

história reside no fato de esta ser:

Um bricolage imaginário, um puro sonho, vazio e inútil, constituído pelos “resíduos diurnos” da única realidade plena e positiva, a da história concreta dos indivíduos concretos, materiais, que produzem materialmente sua existência (ALTHUSSER, 2008, p. 276).

Contudo, Althusser pretende desenvolver uma tese “radicalmente diferente

da tese positivista-historicista dessa obra” (Ibid., p. 276). Desse modo,

11 “[...] essa reprodução da qualificação da força de trabalho tende (trata-se de uma lei

tendencial) a ser garantida não mais com a ‘mão na massa’ (a aprendizagem no decorrer da própria produção), mas com uma frequência cada vez maior fora da produção: através do sistema escolar capitalista e de outras instâncias e instituições [...] a reprodução da força de trabalho exige não só uma reprodução de sua qualificação, mas, ao mesmo tempo, uma reprodução de sua submissão às regras da ordem estabelecida, isto é, por parte dos operários, uma reprodução de sua submissão à ideologia dominante e, por parte dos agentes da exploração e da repressão, uma reprodução da capacidade para manipular bem a ideologia dominante, a fim de que garantam também ‘pela palavra’ a dominação da classe” (Ibid., p. 256-257). 12 “[...] ela é garantida, em grande parte, pelo exercício do poder de Estado através dos

Aparelhos de Estado: por um lado, o Aparelho repressor de Estado, e por outro, os Aparelhos Ideológicos [...] Em grande parte. Com efeito, as relações de produção são, em primeiro lugar, reproduzidas pela materialidade do processo de produção e do processo de circulação [das mercadorias]. No entanto, não se deve esquecer que as relações ideológicas estão, imediatamente, presentes nesses mesmos processos” (Ibid., p. 268).

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diferentemente do sentido negativo que Marx a impeliu, a não-história da ideologia

possui um sentido absolutamente positivo:

O caráter próprio da ideologia é ser dotada de uma estrutura e de um funcionamento tais que estes a transformam em uma realidade não-histórica, isto é, oni-histórica no sentido que essa estrutura e esse funcionamento estão presentes, sob uma mesma forma, imutável, no que se chama a história inteira, no sentido que o Manifesto a define como a história da luta de classes, isto é, a história das sociedades de classes (Ibid., p. 277).

Portanto, a não-história da ideologia reside no fato dela ser “eterna” - como

na concepção freudiana da eternidade do inconsciente. E, se quisermos uma

imagem, a ideologia seria o cimento13 da sociedade, isto é, a forma sine qua non de

expressão do todo-social. Feito este primeiro esclarecimento teórico, Althusser

apresenta duas teses estruturantes (uma negativa e uma positiva) de sua teoria da

ideologia, e mais uma terceira tese, que será um gancho para o fundamento de uma

de suas mais importantes contribuições à teoria da ideologia: aquela que diz

respeito à ideologia jurídica.

A primeira delas é: “A ideologia representa a relação imaginária dos

indivíduos com suas condições reais de existência”. Como vimos anteriormente, em

Marxismo e humanismo, Althusser já iniciara a elaboração dessa tese, que

desenvolverá com mais rigor no texto em que estamos nos debruçando. Ainda, o

filósofo designa esta primeira fase de negativa, pois diz respeito à forma imaginária

da ideologia.

Em uma primeira concepção, ideologia é uma não-correspondência da

realidade, isto é, constitui uma ilusão. De tal modo que, sendo uma ilusão da

realidade e uma alusão14 à realidade, bastaria o esclarecimento da ilusão para

chegarmos à realidade, tal como ela verdadeiramente é. Ou seja, “Ideologia =

relação imaginária com as relações reais” (Ibid., p. 281). No entanto, o que levaria

os homens a “iludirem-se” com a realidade, e não a representarem tal como ela é?

A resposta estaria no fato da

13 Conferir o subcapítulo “Ideologia” em Prática teórica e luta ideológica. 14 Conferir o par “ilusão/alusão”, no subcapítulo “Ideologia” em Prática teórica e luta ideológica.

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Existência de um reduzido número de homens cínicos que consolidam sua dominação e exploração do “povo” sobre uma representação falseada do mundo, imaginada por eles para subjugar os espíritos pelo domínio de sua imaginação [?] (Ibid., p. 278).

Ou, talvez, como elaborou Marx em sua juventude, influenciado por

Feuerbach, “os homens formam uma representação alienada ( = imaginária) de

suas condições de existência porque essas condições são em si mesmas alienantes

[?]” (Ibid., p. 279). Dessas duas possibilidades, Althusser tira uma conclusão: “o que

é refletido na representação imaginária do mundo, que se encontra em uma

ideologia, são as condições de existência dos homens, portanto, seu mundo real”

(Ibid., p. 279).

Finalmente, portanto, desenvolve sua tese:

Na ideologia, os “homens” “representam” não suas condições de existência reais, seu mundo real, mas antes de tudo sua relação com essas condições de existência. É essa relação que se encontra no centro de toda representação ideológica, portanto, imaginária, do mundo real. É nessa relação que está contida a “causa” que deve explicar a deformação imaginária da representação ideológica do mundo real. [...] Para utilizar uma linguagem marxista, se é verdade que a representação das condições de existência real dos indivíduos que ocupam postos de agentes da produção, da exploração, da repressão, da ideologização, e da prática científica, depende em última instância das relações de produção e das relações delas derivadas, nós podemos dizer o seguinte: em sua deformação necessariamente imaginária, toda ideologia representa não as relações de produção existentes (e as outras relações que delas derivam), mas antes de tudo a relação (imaginária) dos indivíduos com as relações de produção e com as relações delas derivadas. Portanto, na ideologia, está representado não o sistema das relações reais que governam a existência dos indivíduos, mas sim a relação imaginária desses indivíduos com as relações reais sob as quais vivem (Ibid., p. 279).

Segunda tese: “A ideologia tem uma existência material” (Ibid., p. 206). Ora,

essa tese decorre de outras teses desenvolvidas anteriormente por Althusser, já

expostas aqui – quando, em Marxismo e humanismo, ele diz que a ideologia é

“dotada de uma existência e de um papel históricos no interior de uma sociedade

dada” (2015b, p. 192) e, em Prática teórica e luta ideológica, diz que “o nível

ideológico apresenta uma realidade objetiva” (2005, p. 49) .

Essa tese presuntiva da existência não espiritual, mas material, das “ideias” ou outras “representações” é, com efeito, necessária para progredir na nossa análise relativa à natureza da ideologia. Ou antes, é simplesmente útil para fazer aparecer com maior clareza o que toda

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análise um pouco séria de uma ideologia qualquer mostra, imediata e empiricamente, a qualquer observador por menos crítico que seja (op.cit., p. 280).

Obviamente, a ideologia não se expressa concretamente como um objeto

qualquer, mas apenas na medida em que “a matéria se exprime de vários modos”,

fazendo um jogo de palavras com uma das máximas aristotélicas, “o ser se exprime

de vários modos” (Ibid., p. 280-281). Se a ideologia se realiza materialmente, o

termo “ideias” desaparece na teoria da ideologia de Althusser, na medida em que

A existência das ideias da sua crença é material, no sentido de que suas ideias são seus atos materiais inseridos em práticas materiais, reguladas por rituais materiais, reguladas por rituais materiais que, por sua vez, são definidos pelo aparelho ideológico15 material do qual dependem as ideias do sujeito (Ibid., p. 282, grifos do autor).

E continua:

As ideias desaparecem como tais (enquanto dotadas de uma existência ideal, espiritual) justamente na medida em que ficou patente sua que existência estava inscrita nos atos das práticas regulamentadas pelos rituais definidos, em última instância, por um aparelho ideológico. Portanto parece que o sujeito age enquanto é movido pelo seguinte sistema (enunciado segundo sua ordem de determinação real): a ideologia existe em um aparelho ideológico material que prescreve práticas materiais regulamentadas por um ritual material as quais existem nos atos materiais de um sujeito que age com plena consciência segundo sua crença (Ibid., p. 283).

A “ideia”, assim é material na medida em que ela existe apenas enquanto

ritual: as práticas dos indivíduos dentro de um aparelho ideológico específico. Logo,

a reprodução da materialidade da ideologia, em sua prática e seus rituais, depende,

por sua vez, de um termo fundamental, ao qual toda ideologia se converte: a noção

de sujeito.

Terceira tese: “A ideologia interpela os indivíduos como sujeitos”. Isto posto,

verifica-se que: 1) “toda prática existe por meio de e sob uma ideologia”; e 2) “toda

ideologia existe pelo sujeito e para os sujeitos” (ibidem). A transformação dos

15 O conceito de Aparelho ideológico de Estado é desenvolvido mais adiante.

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41

indivíduos em sujeitos, levada a efeito pela ideologia, pode ser melhor observada

com este exemplo de ideologia religiosa cristã:

Dirijo-me a ti, um indivíduo humano chamado Pedro (todo indivíduo é chamado pelo nome próprio, no sentido passivo; nem quer ele que se dá um nome) para te dizer que Deus existe e que deves prestar-lhe contas. E acrescenta: é Deus quem se dirige a ti pela minha voz (a palavra de Deus foi recolhida na Sagrada Escritura, transmitida pela tradição, fixada para sempre, pela infalibilidade Pontifícia em seus “pontos delicados”). Diz ainda: Eis quem tu és: tu és Pedro! Eis a tua origem: foste criado por Deus desde toda eternidade, embora tenhas nascido em 1920 depois de Cristo! Eis o teu lugar no mundo! Eis o que deves fazer! Nesse caso, se observares a "lei do amor", tu serás salvo, Pedro, e farás parte do Corpo Glorioso do Cristo! etc. (Ibid., p. 288).

O indivíduo concreto é interpelado já a partir de seu nome, que lhe é dado

exteriormente e pelo qual ele se reconhece. O dever, também, lhe aparece como

natural, como missão, como parte substancial de sua formação. Camadas e mais

camadas de valores sobrepõe-se ao indivíduo, de tal forma que ele só se reconhece

enquanto sujeito.

Você e eu somos sempre já sujeitos e, como tal, praticamos ininterruptamente os rituais do reconhecimento ideológico que nos garantem que somos efetivamente sujeitos concretos, individuais, inconfundíveis e, naturalmente, insubstituíveis (Ibid., p. 285, grifo do autor).

Não obstante, isso nos leva à seguinte aporia:

É necessário levar em consideração que tanto aquele que escreve estas linhas, quanto o leitor que as lê, são eles mesmos sujeitos, portanto, sujeitos ideológicos (proposição tautológica), isto é, o autor como o leitor destas linhas vivem “espontaneamente” ou “naturalmente” na ideologia, no sentido que dissemos que “o homem é, por natureza, um animal ideológico”. Que o autor, enquanto escreve as linhas de um discurso que pretende ser científico, esteja completamente ausente, como “sujeito”, de “seu” discurso científico (com efeito, todo discurso científico é, por definição, um discurso sem sujeito, não há “Sujeito da ciência” a não ser em uma ideologia da ciência), trata-se de uma outra questão que, por enquanto, deixaremos de lado (Ibid., p. 284).

Aqui, Althusser retoma a tese que já analisamos nas seções anteriores,

aquela segundo a qual a ciência se difere da e esclarece a ideologia. Nesse ponto,

é necessário indagar: Althusser e outros comunistas estariam livres das amarras da

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42

ideologia? Teriam uma relação exterior para com ela, de tal modo que, como a

personagem que saiu da caverna na alegoria de Platão, nos indicariam os

mecanismos da ideologia e o caminho para uma existência não-ideológica? Ora, tal

como os biólogos e médicos que estudam o sangue humano, sem prescindir de sua

necessidade vital, é possível também uma análise da ideologia sem escapar de sua

implacabilidade.

O aspecto proeminente da ideologia, no que diz respeito à sujeição dos

indivíduos, se realiza no reconhecimento do sujeito por si mesmo:

a garantia absoluta de que tudo está bem assim e de que, com a condição de os sujeitos reconhecerem o que são e se comportarem como convém, tudo decorrerá da melhor forma “Assim seja!” (Ibid., p. 291, grifos do autor).

Podemos, agora, entrar nas “funcionalidades” da ideologia; isto é, o como ela

opera no processo de reprodução das forças produtivas e, principalmente, das

relações de produção. Tal como desenvolveu brevemente em Marxismo e

humanismo, Althusser enfocará a ideologia dominante, isto é, a ideologia das

classes dominantes, como motor da reprodução.

Todos os agentes da produção, da exploração e da repressão, sem falar dos “profissionais da ideologia” (Marx), devem ser “impregnados”, de um modo ou de outro, por essa ideologia para cumprirem conscienciosamente suas tarefas – seja a de explorados (os proletários), seja a de exploradores (os capitalistas), seja as de auxiliares da exploração (os quadros), seja as de sumos sacerdotes da ideologia dominante (seus “funcionários”), etc... A reprodução da força de trabalho faz aparecer, assim, como sua condição sine qua non, não só a reprodução de sua “qualificação”, mas também a reprodução de seu submetimento à ideologia dominante, ou da “prática” dessa ideologia, devendo ser esclarecido que não basta dizer: “não só, mas também”, porque, segundo parece, a reprodução da qualificação da força de trabalho é garantida nas e sob as formas do submetimento ideológico (Ibid., p. 257, grifos do autor).

Neste excerto, o autor chama a atenção para uma dupla função da ideologia,

qual seja, a reprodução da qualificação e a reprodução do submetimento à ideologia

dominante. Reprodução da qualificação: é necessário que os agentes da produção

(diretos e indiretos) cumpram normas e condutas necessárias à reprodução da força

de trabalho:

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Regras de moral, de consciência cívica e profissional, o que significa dizer, de forma clara, regras de respeito à divisão social-técnica do trabalho e, no final das contas, regras da ordem estabelecida pela dominação de classe (Ibid., p. 257).

Reprodução do submetimento à ideologia dominante: ora, antes de tudo, é

necessário que haja uma “livre vontade” dos agentes em cumprirem suas tarefas. É

necessário que eles estejam comprometidos, não forçosamente, mas conscientes

de que participam de um processo em que todas as partes estão de acordo e

mediante um contrato – ao qual elas livremente se submetem – que garante a

reprodução desse processo. Isso diz respeito ao papel da ideologia na reprodução

da força de trabalho, que, junto à reprodução dos meios de produção (matérias-

primas, máquinas, instalações, etc.), reproduzem as forças produtivas.

O materialismo histórico nos demonstra que os modos de produção

existentes, no que diz respeito à sua estrutura econômica, são a unidade das forças

produtivas com as relações de produção. A reprodução das relações de produção

é a esfera na qual Althusser intervirá com uma original contribuição. Antes, porém,

ele retoma dois temas polêmicos da ciência da história, o par infraestrutura e

superestrutura e a questão do Estado.

Conhecemos bem a famosa metáfora espacial que Marx elabora no prefácio

da Contribuição à crítica da economia política (MARX, 2016): a imagem de um

edifício, onde seu “primeiro andar” seria a representação da infraestrutura, isto é, a

base econômica; e onde o “segundo andar” representaria a superestrutura, ou seja,

os níveis jurídico-político e ideológico. Segundo Althusser,

O caráter revolucionário da concepção marxista do “todo social” [em relação à] “totalidade” hegeliana [...] [é que] Marx concebe a estrutura de toda sociedade como constituída por “níveis’ ou “instâncias’, articulados por uma determinação específica: a infraestrutura [...] (op. cit., p. 258).

A “vantagem teórica capital” dessa representação, segundo Althusser,

residiria na possibilidade de articulação entre as instâncias, que ele denominou

“índice respectivo de eficácia” (Ibid.). Por se tratar de uma metáfora, seu objetivo é

ser descritivo, “fazer ver alguma coisa”: no caso, a dependência estrutural do nível

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superior em relação à sua base. É, portanto, o jeito que Marx encontrou de

demonstrar sua tese da “determinação em última instância” da base econômica. A

eficácia de cada nível, ainda de acordo com Althusser, se expressa de duas formas

na tradição marxista: “1) a existência de uma ‘autonomia relativa’ da superestrutura

em relação à base; 2) a existência de uma ‘ação retorno’ da superestrutura sobre

base” (Ibid., p. 259). A fim de superar a imagem descritiva do edifício – que levantou

discussões e equívocos teóricos, justamente por não passar de uma metáfora -,

Althusser, a partir do conceito de reprodução, dá uma resposta conceitual a este

problema.

Na tradição marxista, o Estado é tido fundamentalmente como aparelho

repressor. Pormenorizando-o, temos o aparelho de Estado formado pela polícia,

pelos tribunais, pelas prisões e pelas forças armadas “’a serviço das classes

dominantes’, na luta de classes travada pela burguesia e seus aliados contra o

proletariado” (Ibid., p. 260). Ora, aqui, nada mais temos do que uma “teoria

descritiva”. A contradição entre “teoria” e “descritiva” explica-se: os elementos que

possuímos nos fornecem a “matéria-prima” para a elaboração de uma teoria;

portanto “teoria descritiva” assinala uma “fase” da qual toda teoria passa, para

chegar à “teoria propriamente dita”. Deste modo, “para compreender melhor os

mecanismos do Estado em seu funcionamento, é indispensável acrescentar algo à

definição clássica do Estado como aparelho de Estado” (Ibid., p. 262, grifos do

autor).

No que tange à teoria marxista do Estado, a distinção entre poder de Estado

e aparelho de Estado é fundamental. Segundo Althusser, essa distinção inaugura-

se com as obras de Marx, O 18 brumário de Luís Bonaparte e As lutas de classes

na França (Ibid.). Dessa maneira, quatro pontos caracterizam a teoria marxista de

Estado:

1. O Estado é o aparelho (repressor) de Estado; 2. É necessário estabelecer a distinção entre o poder de Estado e o aparelho de Estado; 3. O objetivo da luta de classes diz respeito ao poder de Estado e, por consequência, à utilização do aparelho de Estado pelas classes (ou alianças de classes ou de frações de classes) detentoras do poder de Estado, em função de seus objetivos de classe; e 4. O proletariado deve assenhorar-se do poder de Estado para destruir o aparelho de Estado burguês existente e, em uma primeira fase, substituí-lo por um aparelho completamente diferente, proletário, e depois, nas fases

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ulteriores, instalar um processo radical, o da destruição do Estado (fim do poder de Estado e de qualquer aparelho de Estado) (Ibid., p. 263).

É, portanto, para a teoria marxista de Estado que Althusser traz sua

contribuição. É, também, o que permitirá, como veremos, solucionar o problema

da metáfora espacial levada a efeito por Marx, e responder o como se dá a

reprodução das relações de produção.

Assim, Althusser diz que o Estado é “uma realidade mais complexa do

que a que consta na definição que lhe é dada na ‘teoria marxista de Estado’”

(Ibid., p. 262), ainda que Gramsci, segundo ele, tenha sido o único que avançou

na ideia de que o Estado não se reduz ao seu aparelho repressivo. Logo, além

da distinção entre aparelho de Estado e poder de Estado, o autor intervirá

teoricamente com um novo conceito: os aparelhos ideológicos de Estado.

Na teoria marxista, o aparelho de Estado inclui o governo, a

administração, as forças armadas, a polícia, os tribunais, as prisões, entre

outros. Althusser denomina-os, em seu conjunto, aparelho repressor de Estado,

estando estes vinculados pela intervenção “legítima” da violência, ainda que na

esfera da administração a violência se apresente de forma não-física.

Já o aparelho ideológico de Estado é constituído “sob a forma de

instituições distintas e especializadas” (Ibid., p. 262), que não devem ser

confundidas com o aparelho repressor de Estado. Essencialmente, o aparelho

repressor de Estado pertence exclusivamente ao domínio público, enquanto os

aparelhos ideológicos de Estados, em sua maioria, dependem do domínio

privado. São aparelhos ideológicos de Estado (Ibid., p. 264):

● O AIE religioso (o sistema das diferentes igrejas);

● O AIE escolar (o sistema das diferentes “Escolas”, públicas e

privadas);

● O AIE familiar;

● O AIE jurídico;

● O AIE político (o sistema político, incluindo os diferentes

Partidos);

● O AIE sindical;

● O AIE da informação (imprensa escrita, rádio-TV, etc.);

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46

● O AIE cultural (Letras, Belas-Artes, esportes, etc.).

Todos os aparelhos ideológicos de Estado, sejam eles quais forem, concorrem para o mesmo resultado: a reprodução das relações de produção, isto é, das relações de exploração capitalistas. Cada um deles concorre para esse único resultado da maneira que lhe é própria. O aparelho político submetendo os indivíduos à ideologia política de Estado, a ideologia “democrática”, indireta (parlamentar) ou direta (plebiscitária ou fascista). O aparelho da informação empanturrando, por meio da imprensa escrita, rádio e televisão, todos os “cidadãos” com doses cotidianas de nacionalismo, chauvinismo, liberalismo, moralismo, etc. Ocorrendo o mesmo procedimento com o aparelho cultural (o papel desempenhado pelo esporte na difusão do chauvinismo é de capital importância), etc. O aparelho religioso lembrando em seus sermões e nas outras grandes cerimônias do Nascimento, do Casamento e da Morte que o homem não é mais do que pó, salvo se souber amar seus irmãos até a ponto de oferecer a outra face a quem lhe esbofeteou a primeira (Ibid., p. 272).

Alguém poderia objetar, dizendo que, sendo a maioria dos AIE

instituições privadas, não teria o porquê denominá-las aparelhos ideológicos de

Estado16. A isso, Althusser contrapõe-se, lembrando que:

A distinção entre público e privado é uma distinção intrínseca ao direito burguês e válida nos campos (subordinados) em que o direito burguês exerce seus “poderes”. [...] Pouco importa se as instituições que os realizam sejam “públicas” ou “privadas”. O que importa é o seu funcionamento. Instituições privadas podem “funcionar”, perfeitamente, como Aparelhos Ideológicos de Estado. Para fazer tal demonstração, bastaria proceder a uma análise mais aprofundada de qualquer um dos AIE (Ibid., p. 265).

Quanto à diferença entre os AIE e o aparelho repressivo de Estado:

O que distingue os AIE do Aparelho (repressor) de Estado é a seguinte diferença fundamental: o Aparelho repressor de Estado “funciona por meio da violência”, enquanto os Aparelhos Ideológicos de Estado funcionam “por meio da ideologia” (Ibid., grifos do autor.).

Mais precisamente, é necessário dizer que nem a violência é atributo

exclusivo do aparelho repressor de Estado, e nem a ideologia é atributo

exclusivo dos aparelhos ideológicos de Estado. No entanto,

16 No capítulo seguinte, veremos uma explicação mais detalhada de Althusser sobre a

necessidade do complemento de Estado.

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O Aparelho (repressor de Estado funciona, de maneira maciça e predominante, por meio da repressão (inclusive, física), embora funcionando, secundariamente, por meio da ideologia (não existe aparelho puramente repressor) [...] Da mesma forma, mas inversamente, deve-se dizer que, por sua conta, os Aparelhos ideológicos de Estado funcionam, de maneira maciça e predominante, por meio da ideologia, embora funcionando secundariamente por meio na repressão [...] (Ibid., p. 266).

Tal como a ideologia dominante recai, predominantemente, sobre o

processo de qualificação (através de normas e condutas da vida cívica e

profissional) e submetimento (pela sensação de livre pertencimento ao

processo produtivo), reproduzindo, assim, juntamente com os meios de

produção, as forças produtivas; essa ideologia dominante recai, também

predominantemente, sobre os aparelhos ideológicos de Estado:

Se os AIE “funcionam”, de maneira maciça e predominante, por meio da ideologia, o que unifica sua diversidade, é esse próprio funcionamento; com efeito, a ideologia que os leva a funcionar é, de fato, sempre unificada, apesar de sua diversidade e contradições, sob a ideologia dominante que é a ideologia da “classe dominante” (Ibid., p. 266, grifos do autor.).

Com o poder de Estado, obtém-se, imediatamente e legalmente, o

aparelho repressor de Estado, isto é, o direito de direção da polícia, dos

tribunais, das prisões, das forças armadas, etc. Entretanto, ainda que seja

fundamental e imprescindível o domínio dos aparelhos ideológicos de Estado –

“nenhuma classe poderá deter, de forma duradoura, o poder de Estado sem

exercer, ao mesmo tempo, sua hegemonia sobre e no AIE17” (Ibid., p. 267) –,

esse domínio é essencialmente diferente daquele exercido no aparelho

repressivo de Estado. Dessa maneira, “uma coisa é ‘agir’ por meio de leis de

decretos no Aparelho (repressor) de Estado e outra [é] ‘agir’ por intermédio da

ideologia dominante nos AIE” (Ibid., p. 266).

17 “Como prova, darei apenas um exemplo: a lancinante preocupação de Lênin no sentido de

revolucionar a Aparelho ideológico de Estado escolar (entre outros) para permitir ao proletariado soviético, que tinha domado o poder de Estado, garantir simplesmente o futuro da ditadura do proletariado e a passagem ao socialismo” (Ibid., p. 267). Outro exemplo histórico é a controversa Revolução Cultural, levada à cabo por Mao Tsé-tung na China, entre 1966-1969.

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Essa diferença de domínio exercido entre o aparelho repressivo de

Estado e os aparelhos ideológicos de Estado abre brecha para uma importante

intervenção política:

Os Aparelhos ideológicos de Estado podem ser não só o objeto, mas também o lugar da luta de classes e frequentemente, de formas encarniçadas da luta de classes. A classe (ou aliança de classes) no poder não dita tão facilmente a lei nos AIE como no Aparelho (repressor) de Estado, não só porque as antigas classes dominantes podem conservar aí, por muito tempo, posições de força, mas também porque a resistência das classes exploradas pode encontrar o meio e a ocasião de se exprimir neles, utilizando as contradições aí existentes ou conquistando pela luta posições de combate (Ibid., p. 267, grifos do autor).

A título de exemplo, Althusser cita o processo de transição do modo

de produção feudal para o modo de produção capitalista. De acordo com a

comparação, o modo de produção capitalista comporta diversos AIE que, no

modo de produção feudal, encontravam-se aglutinados no AIE religioso – a

Igreja -, como o AIE familiar, AIE político, entre outros.

Ora, no período histórico pré-capitalista que estamos examinando em traços largos, é absolutamente evidente que existia um aparelho ideológico de Estado dominante, a Igreja, a qual concentrava em si não só as funções religiosas, mas também escolares, e uma grande parte das funções de informação e de “cultura”. Não foi por acaso, mas em função da posição dominante do Aparelho ideológico de Estado religioso, que toda a luta ideológica do século XVI ao XVIII, desde o primeiro abalo provocado pela Reforma, se concentrou em uma luta anticlerical e anti-religiosa (Ibid., p. 270, grifos do autor).

Com a revolução francesa, além da tomada de poder pela burguesia, ocorreu

uma “violenta luta de classe política e ideológica contra o antigo AIE dominante”

(Ibid., p. 271). Em seu lugar – nas formações capitalistas amadurecidas -, segundo

o autor, se estabeleceu o aparelho ideológico Escolar. A burguesia se mostrou

adaptável a diversas formas de regime político (democracia, império, monarquia,

ditadura, etc.), logo, é errôneo pensar que a democracia parlamentar, com seu

sufrágio universal e as lutas partidárias – ainda que esteja em primeiro plano –, seja

o aparelho ideológico de Estado principal.

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Por trás das representações de seu aparelho ideológico de Estado

político, que ocupava o primeiro plano da cena, a burguesia acabou instalando

como seu primeiro aparelho ideológico de Estado o AIE escolar, sendo,

portanto, o dominante. Por conseguinte, o aparelho escolar, de fato, substituiu

em suas funções o antigo aparelho ideológico de Estado dominante, a saber, a

Igreja.

A escola é a instituição do AIE escolar que, dentre os aparelhos

ideológicos de Estado das formações sócias capitalistas, maior influência

exerce na reprodução das relações de produção. Sem dúvida, também na

família, na igreja, nas forças armadas, nos livros e nos filmes, e até nos estádios,

exercem-se “virtudes” que alimentam as relações de exploração capitalista –

modéstia, resignação, submissão, cinismo, desprezo, altivez, segurança,

grandeza, falar bem, habilidade, etc. (Ibid., p. 273). No entanto, a escola dispõe,

durante muitos anos, de uma preciosa parcela da atenção dos jovens, sendo

esse justamente o período de formação social. Assim, é por meio da escola que

a ideologia da classe dominante se fixará em alguns indivíduos:

Papel de explorado (com “consciência profissional”, “moral”, “cívica”, “nacional” e apolítica altamente “desenvolvida”); papel de agente da exploração (saber dirigir e falar aos operários: as “relações humanas”), de agentes da repressão (saber dar ordens e se fazer obedecer “sem discussão” ou saber manipular a demagogia da retórica dos dirigentes políticos), ou de profissionais da ideologia (sabendo tratar as consciências com o respeito, isto é, o desprezo, a chantagem e a demagogia que convém, acomodados às regras da Moral, da Virtude, da “Transcendência”, da Nação, do papel da Pátria no Mundo, etc.) (Ibid., p. 273).

O AIE escolar desempenha, portanto, na análise de Althusser, papel

central na reprodução das relações de exploração capitalista18. A ideologia

18 Devemos ter em mente que o texto Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado foi publicado

em 1970. À época e na conjuntura francesa, o AIE escolar era protagonista na análise de Althusser. Com certa segurança, não podemos afirmar o mesmo no século XXI. Concordamos com a análise de Sampedro (2010, p. 14): “Como se dá esta reprodução da qualificação diversificada da força de trabalho que assegura o regime capitalista? Tal reprodução – diz Althusser – tende a ser assegurada não já na aprendizagem na produção mesma, senão cada vez mais à margem da produção. E de acordo com a sua época, indica-nos que o sistema escolar capitalista (e outras instituições) é nuclear para tal objetivo [...) Hoje diríamos, creio com razão, que o sistema nuclear na reprodução é o aparelho ideológico construído pelos meios de comunicação”.

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dominante atravessa a escola: enquanto instituição, a escola é instrumento de

difusão da ideologia dominante. Em contrapartida, a ideologia dominante exibe

a escola como um ambiente neutro,

Na qual os professores, respeitadores da “consciência” e da “liberdade” das crianças que lhes são confiadas (com toda a confiança) pelos “pais” (os quais são também livres, isto é, proprietários dos filhos), levam-nas a ter acesso à liberdade, à moralidade e à responsabilidade de adultos através de seu próprio exemplo, pelos conhecimentos, pela literatura e pelas virtudes “libertadoras” (Ibid., p. 274).

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CAPÍTULO 2

OS AJUSTES DA TEORIA

Althusser alertou, em um prefácio elaborado para edições estrangeiras de

Por Marx (dois anos após a primeira edição), que os textos ali contidos são

“resultados provisórios que merecem evidentemente ser retificados” (2015a, p.

209). Esse aviso, no entanto, de nada adiantou. Em obras ulteriores, o filósofo

retomará suas teses, desenvolvendo-as com mais cuidado e esclarecendo alguns

pontos.

Iniciação à filosofia para os não filósofos ([1978] 2019) é uma dessas obras.

Mais do que um mero manual de introdução à filosofia, este ensaio reúne parte das

teses althusserianas. Encontramos no livro os conceitos de: prática, generalidades,

tendência, ideologia, aparelhos ideológicos de Estado e, claro, sua concepção de

filosofia, entre outros.

Althusser combina o que, sob muitos aspectos, parecerá uma síntese, na qual a unidade de uma exposição geral não exclui justaposições, às vezes inesperadas, de proposições feitas pelo autor ao longo de seus sucessivos deslocamentos – desde os cursos de 1967 sobre ‘a filosofia espontânea dos cientistas e Lénine et la philosophie [Lênin e a filosofia] até a Soutenance d’Amiens [Defesa da tese de Amiens] e a conferência de Granada de 1976, ‘La transformation de la philosophie’ [A transformação da filosofia] (SIBERTIN-BLANC, 2019, p. 9).

2.1 Os aparelhos ideológicos de Estado

Como vimos no primeiro capítulo, no texto Ideologia e aparelhos ideológicos

de Estado (2008), Althusser enfatiza a função reprodutiva que a ideologia imprime

nas forças produtivas e nas relações de produção. Os aparelhos ideológicos de

Estado (AIE) reproduzem, fundamentalmente, as relações de produção, ou seja, as

relações de exploração capitalistas, naturalizando-as. Entretanto, Althusser declara,

naquele texto, que a maioria desses aparelhos ideológicos são instituições privadas.

Logo, por que denominá-las aparelhos ideológicos de Estado? Tal resposta não é

suficientemente dada por Althusser naquele momento. Já no livro sobre o qual nos

debruçamos, ele pretende esclarecer essa questão.

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Assim, se pergunta o autor (2019, p. 156): “Por que insistir tanto em declarar

que os aparelhos ideológicos importantes são aparelhos de Estado?”. E, logo em

seguida, responde: “Para pôr em evidência a relação orgânica que existe entre sua

função ideológica de classe e o aparelho de dominação de classe que é o Estado”

(Ibid., p. 156). De outro modo, incorreríamos em uma visão funcionalista, isto é, na

ideia de que a função define a natureza da instituição, tal como o ensino definiria a

escola, o serviço público definiria o Estado, e assim por diante. O Estado, por seu

lado, não “funciona” apenas através da coerção ou pela força, ou seja, através do

aparelho repressivo do Estado (como polícia, prisão e tribunais).

Pois nenhuma classe dominante pode assegurar sua permanência apenas pela força, precisa granjear não só o livre consentimento dos membros da classe que ela domina e explora, mas também o livre consentimento de seus próprios membros, que não concordam tão facilmente em subordinar seus interesses privados, individuais, aos interesses gerais de sua própria classe, e também não aceitam mais a ideia de que para a dominação de sua classe seja necessário reinar de outro modo que não pela violência, mas, justamente, pela ideologia e pela adesão da classe dominada às ideias da classe dominante (Ibid., p. 156).

O Estado assegura a existência material dos aparelhos ideológicos. A

ideologia dominante, por sua vez, é reproduzida nos aparelhos ideológicos sob,

necessariamente, a chancela do Estado – e por isso aparelhos ideológicos de

Estado:

E, se o Estado lhe assegura assim essa unidade relativa, que faz dela não uma das ideologias da classe dominante, e sim a ideologia dessa classe, é claro que o papel do Estado é determinante em tudo o que diz respeito à ideologia dominante e sua realização nos aparelhos ideológicos de Estado. Tudo isso para dizer muitos claramente que, se não pudermos em cena o conceito de Estado, se não designarmos o essencial dos aparelhos ideológicos de Estado, estaremos recusando os meios de compreender como funciona a ideologia nessa sociedade, em proveito de quem se dá a luta ideológica, em quais instituições essa ideologia se realiza e essa luta se encarna (Ibid., p. 157, grifos do autor).

Outrossim, poder-se-ia imaginar que, estando a ideologia incrustada em um

sistema de aparelhos chancelados pelo Estado, não haveria margem para a ação

revolucionária, uma vez que os indivíduos estariam subordinados à determinação

absoluta do sistema da ideologia dominante. Segundo Althusser, seria como se ele

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tivesse “transportado para a ideologia o determinismo da economia, que a

interpretação economicista do marxismo coloca em primeiro lugar” (Ibid., p. 158).

Todavia, um componente essencial desmonta essa errônea interpretação da teoria

dos aparelhos ideológicos de Estado. Esse componente – vital na teoria marxista –

é a luta de classes.

É por isso que digo que a teoria marxista dos aparelhos ideológicos de Estado escapa a todo funcionalismo e a todo estruturalismo – pois o estruturalismo define os lugares das instituições exercendo funções

fixas, não sujeitas aos efeitos da luta de classes –, visto que ela é

apenas a teoria da luta de classes no âmbito da ideologia, das condições de existência e das formas dessa luta, à qual se subordinam os lugares e as funções dos elementos. Isso significa, muito concretamente, que a luta de classes não só tem como focos de interesse, entre outros, os aparelhos de Estado propriamente ditos – como demonstra toda a história da constituição de uma classe em classe dominante e, depois, hegemônica -, mas que ela se desenrola, também nos aparelhos ideológicos de Estado (ver Maio de 68), nos quais, dependendo da conjuntura, pode desempenhar um papel considerável (Ibid., p. 164-165).

À luta de classes, Althusser introduz um conceito que desconstrói a imagem

determinista dos AIE, o de tendência:

[...] em vez de falar de uma ideologia dominante e uma ideologia

dominada, falar, em cada ideologia (local e regional), de tendência dominante e tendência dominada. A tendência dominante da ideologia representa os interesses da classe dominante, e a tendência dominada procura representar, sob a tendência dominante, os interesses da classe dominada. Essa especificação é importante, pois sem ela não se compreenderia que a ideologia da classe dominada possa ser marcada pela ideologia da classe dominante, nem, principalmente, que elementos da ideologia dominante possam figurar na ideologia da classe dominada, e vice-versa (Ibid., 2019, p. 152, grifos do autor).

Disso, resulta que,

De fato, a luta de classes burguesa tende constantemente a impor sua hegemonia ideológica sobre a classe operária, a submeter a si suas organizações de luta e a penetrá-la do interior, revisando a teoria marxista. A teoria dos aparelhos ideológicos de Estado, em todo caso, explica esse fato histórico, essa tendência que a burguesia não pode abandonar, se deseja conservar sua posição dominante. É realmente um fato, inscrito na história da luta de classes, que a burguesia tende sempre a reconquistar as posições que teve de conceder no decurso da luta de classes. Não só tende a voltar atrás, a ‘restaurar’ a ordem antiga, mas também – o que é mais sutil e infinitamente mais grave –

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até mesmo se mostra capaz de assimilar à sua própria luta as concessões que teve de fazer à classe operária (Ibid., 2019, p. 159, grifos do autor).

Sobre essa questão, Poulantzas dá importante contribuição, em um trecho

de Fascismo e ditadura (1978, p. 327):

Numa formação social, não existe apenas uma ideologia dominante: existem várias ideologias ou subsistemas ideológicos contraditórios,

relacionados às diversas classes em luta. A própria ideologia dominante só se constitui como tal ao conseguir dominar, de modo muito particular, estas ideologias e subsistemas ideológicos: o que se faz precisamente por intermédio dos aparelhos ideológicos de Estado. Por sua vez, isso implica em que estes aparelhos sejam a expressão condensada de contradições ideológicas muito intensas, que se exprimem por rupturas entre os “funcionários da ideologia” que deles fazem parte: a autonomia relativa dos aparelhos ideológicos é o seu efeito19.

Portanto, dentro do sistema político-ideológico, existem tendências que, ora

representam avanços e conquistas para a classe operária, ora representam

reconquistas, e apropriações do conquistado, pela burguesia, que “soube

perfeitamente tirar partido do resultado [das conquistas operárias] e ganhar para a

causa do reformismo o grosso dos militantes operários, organizados nos partidos

social-democratas” (ALTHUSSER, 2019, p. 160). Assim, “o resultado é que a luta

de classes burguesa nunca se desarma. Quando tem que ceder terreno, é para

retomá-lo, e com muita frequência em condições superiores às anteriores” (Ibid., p.

160, grifos do autor).

E é justamente na medida em que os aparelhos ideológicos de Estado e a ideologia dominante que veiculam são função e meio de luta da classe dominante que eles escapam a uma concepção funcionalista. Pois a luta de classes não para na fronteira dos aparelhos de Estado, nem dos seus aparelhos ideológicos. De fato, a luta de classes dominante não se exercer no vazio: luta contra um adversário real, de

19 Poulantzas, nesta mesma obra, tece uma crítica a Althusser, quanto à questão de suprimir o

fator luta de classes no conceito de aparelhos ideológicos de Estado. Essa crítica se deu exclusivamente sobre o texto Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado; pois a obra a qual analisamos aqui foi publicada apenas após a morte de Poulantzas. O trecho em que Poulantzas realiza a crítica é o seguinte: “Ora, esta análise [a de Althusser em Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado] é abstrata e formal, na medida em que não toma (concretamente) em consideração a luta de classes: não toma em consideração o fato da existência, numa formação social, de várias ideologias de classe contraditórias e antagônicas; tudo se passa, com efeito, como se Althusser, ao falar da ‘ideologia dominante’ como ‘unidade’ dos aparelhos ideológicos, entendesse, neste caso, por ‘ideologia dominante’ aquilo que ele designa por ‘mecanismo da ideologia em geral’ (?) [sic]” (Op. cit.).

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um lado a antiga classe dominante, do outro a nova classe explorada. E, em sua estratégia e em sua tática, deve levar em conta a existência desse adversário, as posições que ele ocupa e suas armas ideológicas. Sem dúvida, derrota-o pela violência: derrota a antiga classe dominante pela tomada do poder de Estado, e a classe explorada, pela violência da exploração e pela violência do poder de Estado. Mas não poderia exercer seu poder do modo duradouro se também não exercesse sobre ele uma ‘hegemonia’ (uma direção) ideológica, que obtém no geral sua aquiescência à ordem estabelecida (Ibid., p. 164, grifos do autor).

O conceito de AIE, além do que já mencionamos, é, também, o palco da

legalização da luta de classes. Expliquemos: tanto os partidos quanto os sindicatos

são expressões legais da luta de classes travada na ilegalidade, sendo o primeiro

referente à luta de classes econômica e o segundo à luta de classes política.

Caímos, aí, em uma contradição: a luta de classes proletária é,

aparentemente, cooptada por um AIE burguês. No entanto, ainda que infinitamente

menor, há luta de classes dentro do AIE: “essa prática delicada da luta de classes

no interior dos AIE burgueses [...] [correm o] perigo de cair na colaboração de

classes [...] [ou seja] no reformismo” (ALTHUSSER, 2008, p. 122-123).

Já em Sobre a reprodução, Althusser diz que:

[...] a luta de classe que impôs a presença do Partido e do sindicato

proletários nos AIE correspondentes supera infinitamente a luta de classe muito limitada que eles venham a travar nesses AIE. Nascidas de uma luta de classe exterior aos AIE, amparadas por ela, encarregadas de ajudá-la e ampará-la por todos os meios legais, as organizações proletárias que figuram nos citados AIE trairiam sua missão se reduzissem a luta de classe exterior, que se limita a se refletir sob formas muito limitadas na luta de classe travada nos AIE, a essa luta de classe interior aos AIE (Ibid., p. 123).

Não há, portanto, nenhuma esperança para a classe proletária dentro dos

AIE. O motivo exclusivo de sua ocupação, por extensão, é o apoio legal à luta de

classe exterior - esta sim, revolucionária. Sobre isso, nos diz Almeida:

[...] o interior dos Aparelhos Ideológicos de Estado jamais poderá ser o

principal cenário de luta desse partido ou sindicato. Muito ao contrário, é um locus desfavorável no qual as lutas, se deixadas a si mesmas ou transformadas em prioritárias, tendem a ser neutralizadas pelo próprio funcionamento dos referidos aparelhos. Em outros termos, a persistência das lutas proletárias fora dos AIEs é fundamental para que

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56

elas perdurem, sem se descaracterizarem, no interior destes (ALMEIDA, 2016, p. 88).

Logo, os AIE resguardam e reproduzem a ideologia dominante, ainda que

seja possível, dentro deles, existir uma luta de classes muito limitada. Mas, como

se dá essa luta de classes que ocorre nas trincheiras dos AIE? De modo intenso e

explícito, se dá no próprio aparelho ideológico de Estado político (AIE político).

Ainda, Althusser adverte que “sem dúvida essa luta é apenas eleitoral e

parlamentar, mas tem prolongamentos que vão muito além dos escrutínios eleitorais

e dos debates puramente parlamentares” ALTHUSSER, 2019, p. 165).

Lembremos que as diferenças entre aparelho (repressivo) de Estado e

aparelhos ideológicos de Estado constituem-se no fato de, enquanto o aparelho

repressivo age primordialmente pela violência – através da “presidência do Estado,

o governo e sua administração, por meio do Poder Executivo, as Forças Armadas,

a polícia, a justiça e todos os seus dispositivos (tribunais, prisões, etc.)” (Ibid., p.

165) –, os AIE agem primordialmente através da ideologia (igrejas, escolas,

imprensa, etc.). Assim, estamos falando de um AIE que se realiza no âmago do

aparelho de Estado, pois está ligado diretamente ao sistema político – o AIE político.

O aparelho ideológico de Estado político pode então ser definido pelo modo de representação (ou de não representação) da “vontade popular”, perante cujos representante o governo presumivelmente é “responsável”. [...] É a ficção, que corresponde a uma certa realidade, de que as peças desse sistema, bem como seu princípio de funcionamento, se baseiam na livre escolha dos representantes do povo pelo povo, em função das “ideias” que cada qual tem da política que o Estado deve seguir (Ibid., p. 166, grifos do autor).

Ainda que essa ficção seja a expressão maior da ideologia constituinte do

AIE político, há uma realidade, em relação à representatividade dos partidos

políticos, visto que estes realizam, no âmbito do sistema político – isto é, os partidos

legalizados –, os antagonismos e interesses das classes sociais.

[...] então será possível ver com clareza que a existência dos partidos

políticos, longe de negar a luta de classes, está inteiramente baseada nela. E se a classe burguesa tenta perpetuamente exercer sua hegemonia ideológica e política sobre os partidos da classe operária, essa é também uma forma de luta de classes, e a burguesia só

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consegue fazê-lo na medida em que os partidos operários se deixam apanhar em suas armadilhas [...] (Ibid., p. 167).

Todavia, faz-se necessário diferenciar um partido burguês de um partido

revolucionário. Os partidos burgueses representam as classes dominantes e

dispõem de posições privilegiadas, tais como “o apoio e os recursos da burguesia,

com sua dominação econômica, sua exploração, seu aparelho de Estado, seus

aparelhos ideológicos de Estado, etc.” (Ibid., p. 168). A posição na qual se encontra,

por conseguinte, confere aos partidos burgueses ações político-ideológicas distintas

dos partidos revolucionários.

Para existir, ele não precisa unir prioritariamente as massas populares que quer convencer a aderir a suas ideias: é a própria ordem social que se encarrega desse trabalho de convencimento, propaganda e adesão. Quase sempre, basta o partido burguês organizar bem sua campanha eleitoral para receber de bandeja os frutos dessa dominação, convertida em convicções interesseiras (Ibid., p. 168).

Os partidos revolucionários, por sua feita, a exemplo dos partidos

comunistas, não compartilham os objetivos com os partidos burgueses. Ora, o

objetivo de um partido comunista é tomar o poder de Estado para, então, destruí-lo.

Seu objetivo não é limitar sua ação à luta de classes no Parlamento, e sim estendê-la a toda atividade dos trabalhadores, desde a luta de classes econômica até a luta de classes política e ideológica. Sua vocação última não é “participar do governo” e sim derrubar e destruir o poder de Estado burguês (Ibid., p.169).

Não obstante, o partido comunista tem uma arma que é, antes de tudo, vital

para a sobrevivência do partido: a doutrina científica marxista.

Define sua linha e suas práticas políticas não com base na simples revolta dos trabalhadores explorados, e sim em sua teoria científica e nas análises concretas da situação concreta, ou seja, das relações de força existentes na luta de classes atual. Portanto, dá a maior importância às formas e à força da luta de classes dominante, a da classe dominante (Ibid., p.169).

Fica claro, portanto, a organicidade dos AIE com a luta de classes. Essa

ligação, desenvolvida por Althusser no texto que estamos analisando, não é clara

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em Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado, motivo pelo qual ele foi duramente

criticado, inclusive por um de seus mais notáveis discípulos. Em Fascismo e

ditadura, Nicos Poulantzas (1978) tece dura análise ao seu mestre, que “adquire

contornos devastadores, chegando, inclusive, a negar a Althusser qualquer

originalidade na produção do conceito” (ALMEIDA, 2016, p. 82):

Refiro-me aqui a um texto recente de L. Althusser, “Idéologie et appareils idéologiques d’État”, La Pensée, junho de 1970. Penso que este texto de Althusser peca, em certa medida, pela sua abstração e pelo seu formalismo: a luta de classes não ocupa nele o lugar que de direito lhe cabe (POULANTZAS, 1978, p. 321).

Ainda que Poulantzas houvesse lido a “versão final” de Ideologia e aparelhos

ideológicos de Estado, publicada apenas em 199520 na França, sob o título Sur la

reproduction, não seria o suficiente para retificar sua crítica, pois o livro comporta

apenas o primeiro de dois tomos que Althusser pretendia escrever e que,

infelizmente, não conseguiu em vida. Tal como Marx, que interrompeu o manuscrito

do último livro d’O capital em seu momento crucial, no qual falaria das classes

sociais – e por esse motivo deixou aos marxistas muitas questões e um enorme

trabalho a ser desenvolvido –, Althusser, por seu turno, facilitaria muita a vida dos

althusserianos, caso houvesse escrito o segundo tomo de sua obra. Sobre a

questão, em Sobre a reprodução, ele diz:

Este livrinho é o tomo I de um conjunto que deve comportar dois tomos. O tomo I trata da Reprodução das relações de produção capitalistas. O tomo II tratará da luta de classes nas formações sociais capitalistas. [...] Como as análises deste tomo I se apoiam, em determinados casos, em princípios que só serão desenvolvidos no tomo II, peço que me dêem uma espécie de “crédito” teórico e político que tentarei honrar no tomo II (ALTHUSSER, 2008, p. 22, grifos nossos).

Nunca saberemos se este é um recado à Poulantzas – poder-se-ia, com

razão, estender-se a todos os seus críticos.

20 Poulantzas faleceu em outubro de 1979

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59

2.2 Prática ideológica

O conceito de prática é fundamental na obra de Althusser. Tudo parte do

princípio do primado da prática sobre a teoria – perspectiva materialista –, ainda

que haja uma unidade entre as duas instâncias. Para o filósofo, a prática “indica

uma relação ativa com o real” (ALTHUSSER, 2019, p. 110, grifos do autor). Assim,

desde a prática mais elementar à prática mais complexa, está em jogo um processo

social, e nunca individual: “só podem ser individuais na medida em que são primeiro

sociais” (Ibid., p. 112, grifos do autor).

Portanto, toda prática é social [...] [As práticas sociais se realizam] como processos, ou seja, como um conjunto de elementos materiais, ideológicos, teóricos e humanos (os agentes) suficientemente adaptados uns aos outros para que sua ação recíproca produza um resultado que modifique os dados iniciais. Chamaremos então de prática um processo social que coloca os agentes em contato ativo com o real e produz resultados de utilidade social (Ibid., p.113, grifos do autor).

Como dissemos acima, o materialismo – mais especificamente o

materialismo histórico – defende o primado da prática sobre a teoria. No entanto, há

uma relação dialética entre essas instâncias.

Na prática mais elementar (a do cavador que abre valas), há ideias sobre o modo de proceder, sobre o plano a seguir, sobre as ferramentas a utilizar, e todas essas “ideias” só existem na linguagem – mesmo que os homens que utilizam essa linguagem não saibam que ela já era teoria. E, na mais elevada teoria, a do matemático mais abstrato, sempre há prática. Nela não existe só o trabalho do matemático nos seus problemas, mas também a inscrição dos seus problemas nos símbolos matemáticos com giz na lousa, mesmo que ele não saiba que essa simbolização é uma prática. É no interior dessa dependência complexa que está posta a questão filosófica do primado da prática sobre a teoria (que define a posição materialista) ou do primado da teoria sobre a prática (que define a posição idealista) (Ibid., p. 112, grifos do autor.).

Dentre as práticas, existe aquela que não é propriamente material, ainda que,

em última instância, na visão materialista, todas as práticas são materiais - estamos

nos referindo à prática científica ou prática teórica. No primeiro capítulo, quando

analisamos o texto Prática teórica e luta ideológica, dissemos que a prática teórica

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é uma prática particular, que se diferencia das outras práticas – política, econômica,

ideológica. Ademais, esta tem como objetivo intervir cientificamente no

conhecimento, diferenciando-se, assim, do empirismo, que seria uma ideologia

filosófica. Surge, por extensão, a dúvida sobre como devemos compreender a

prática teórica. A resposta vem nas palavras de Althusser:

Como um processo que mobiliza, inicialmente, uma matéria-prima dada, uma força de trabalho definida e instrumentos de produção [tal como a prática da produção]. Nesse processo, a força de trabalho (os conhecimentos, a inteligência do pesquisador) utiliza os instrumentos de produção (teoria, dispositivo material da experimentação, etc.) para trabalhar a matéria-prima dada (o objeto sobre o qual ele experimenta) a fim de produzir conhecimentos precisos (Ibid., p. 135).

A esses três processos, o autor designa o nome Generalidades:

“Generalidade I constituída da matéria-prima ideológica que será transformada em

um conceito científico (Generalidade III) por meio dos conceitos já constituídos, que

é a Generalidade II” (MOTTA; SERRA, 2014, p. 128). Já quando nos deparamos

com a prática ideológica, enfrentamos problemas de ordem conceitual: “O mais

desconcertante da prática ideológica é que não se percebem nela traços da

presença de um agente” (ALTHUSSER, 2019, p. 147). Não observamos na prática

ideológica o esquema “clássico” das Generalidades.

Se uma ideologia é um sistema de ideias relativamente unificadas, está claro que estas agem sobre as “consciências” sem a intermediação visível de qualquer agente que seja, nem mesmo aquele que as divulga, visto que é a evidência e a força das ideias que agem através dele (Ibid., p. 147).

Portanto, na prática ideológica, não são os indivíduos a matéria-prima, como

poder-se-ia imaginar. Pelo contrário, “[...] tudo acontece como se a ideologia agisse

por si mesma, como se ela mesma fosse seu próprio agente [...]” (Ibid., p. 147, grifos

do autor). Dessa maneira,

[...] pode-se então conceber a prática ideológica como uma transformação da ideologia existente sob o efeito da ação direta de outra ideologia, distinta da primeira, do contrário a questão de sua transformação seria absurda (Ibid., p. 148).

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61

No subcapítulo em que analisamos o texto Prática teórica e luta ideológica

(1966), mostramos que, para Althusser, a luta ideológica implica uma batalha que,

em um primeiro momento, pode parecer uma “batalha de ideias”. Afinal, “toda luta

põe em questão um conflito entre convicções, crenças, representações do mundo

(ALTHUSSER, 2005, p. 65). Entretanto, a ideologia, para Althusser, tem uma

realidade objetiva e material, posto que ela permeia as outras lutas sociais e

direciona as práticas política e econômica. No excerto a seguir, de Iniciação à

filosofia para os não filósofos, o filósofo reitera sua tese, incrementando-a:

[...] uma ideologia só constitui um sistema de ideias (ou de

representações) na medida em que é um sistema de relações sociais. Em outras palavras, sob a imagem de um sistema de ideias que age sobre outro sistema de ideias para transformá-lo, é um sistema de relações sociais que age sobre outro sistema de relações sociais para transformá-lo. E essa luta que acontece “nas ideias”, ou melhor, “nas relações sociais ideológicas” (Lenin), não é mais do que uma forma da luta de classes geral (ALTHUSSER, 2019, p. 148, grifos do autor).

Assim, se quisermos pôr a prática ideológica nos termos das Generalidades,

ficaria assim:

A ideologia (as ideias) que age (prática ideológica) para transformar a “matéria-prima” existente, ou seja, as ideias (a ideologia) que atualmente dominam as consciências, nada mais faz do que transferir as referidas “consciências” da dominação da antiga ideologia para a nova. Portanto, a prática ideológica se reduz a essa transferência de dominação, a esse deslocamento de dominação. Exemplo: onde dominava uma concepção religiosa do mundo, a prática (luta) ideológica consegue impor a dominação de uma nova ideologia racionalista burguesa. (Vemos isso acontecer entre os séculos XIV e XVIII na Europa) (Ibid., p.149, grifos do autor).

Mas, de fato, como age a ideologia? Qual o mecanismo que se esconde atrás

dessa estrutura implacável? Esse talvez seja um dos pontos mais frutíferos sobre o

qual Althusser se debruçou insuficientemente, mas que rendeu e rende até hoje

importantes estudos21. Refiro-me, precisamente, ao “mecanismo da interpelação

ideológica”.

21 Pedro Davolglio, em seu livro Althusser e o direito, cita o estudo de Mocnik: “Para dar conta

das fórmulas da interpelação expostas por Althusser, Rastko Mocnik propõe pensá-la como articulação de dois movimentos, que expõe em sua ordem lógica: a) a subjetivação propriamente dita; b) a identificação/reconhecimento. Para o autor, a subjetivação propriamente dita seria um

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Já fizemos menção a esse mecanismo, quando analisamos no primeiro

capítulo uma das teses de Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado, segundo a

qual, “a ideologia interpela os indivíduos como sujeitos” (2008, p. 283). Em Iniciação

à filosofia para os não filósofos, Althusser pouco tem a acrescentar. Ele usa,

basicamente, a mesma argumentação do texto anterior, demonstrando o

constrangimento que a ideologia causa, determinando o indivíduo ao interpelá-lo

enquanto sujeito, “[...] como se fosse a ideia, ou o sistema de ideias, que me

interpelasse e me pusesse sua verdade, o reconhecimento de sua verdade [...]”

(ALTHUSSER, 2019, p. 151). Tudo gira, portanto, sobre a relação conhecimento-

reconhecimento; no caso da ideologia, o reconhecimento vindo antes e

“imediatamente, num átimo de segundo” (Ibid., p. 150). No primeiro capítulo, quando

analisamos o texto Prática teórica e luta ideológica (1966), dissemos, ancorados em

Althusser, que: por ser uma representação, a ideologia é uma alusão ao real, mas

apenas na medida em que apresenta uma ilusão da realidade. Do mesmo modo, a

ideologia é a forma de reconhecimento do homem no mundo, mas somente ao

proporcionar um desconhecimento do mundo.

Para Althusser, portanto, o mecanismo da interpelação ideológica transforma

os indivíduos em sujeitos:

E como os indivíduos sempre já são sujeitos, ou seja, sempre já estão assujeitados a uma ideologia (o homem é por natureza um animal ideológico), precisamos dizer, para sermos consequentes, que a ideologia transforma o conteúdo (as ideias) das “consciências”, interpelando os sujeitos como sujeitos, ou seja, fazendo os indivíduos concretos (já sujeitos) passarem de uma ideologia dominante para uma ideologia nova, que luta para alcançar a dominação sobre a antiga através dos indivíduos (Ibid., p.151).

Sobre essa tese, Almeida (2016, p. 128) faz o seguinte comentário:

‘mecanismo simbólico puramente formal’ referente à submissão do indivíduo à ordem da linguagem que, como propôs Lacan, é de natureza inconsciente (‘É toda a estrutura da linguagem que a experiência psicanalítica descobre no inconsciente’) e tem a aparência de uma neutralidade política. Já o mecanismo de reconhecimento criaria uma ‘relação imaginária referente a ‘conteúdos’ ideológicos’. Com isso o autor pode reorganizar o sentido da proposição de que ‘a ideologia interpela os indivíduos como/enquanto [en] sujeitos’: A interpelação ideológica ‘funciona’ estabelecendo a relação [imaginária] de identificação; mas o seu sucesso depende da sua capacidade de ativar o mecanismo [simbólico] de subjetivação’. É dizer, o reconhecimento de uma ideologia, de determinados valores sociais como evidentes só é possível mediante uma captura prévia do plano simbólico” (DAVOGLIO, 2018,p. 195)

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A ideologia interpela os indivíduos como sujeitos, no duplo e contraditório sentido do termo, ou seja, como livres e como assujeitados (assujeitados livremente). Desta forma, eles “trabalham sozinhos22” (ou seja, em relativa ausência dos mecanismos diretos de repressão), comportando-se adequadamente à reprodução das várias dimensões do modo de vida necessário à reprodução das relações de produção.

A ideologia, tal como demonstrou Althusser, opera enquanto prática

ideológica, sob o mecanismo da interpelação ideológica e expressa-se através dos

aparelhos ideológicos de Estado. Não obstante, para compreendermos os

mecanismos da ideologia em sua plenitude – tal como ela se dá nas formações

sociais capitalistas –, necessitamos compreender sua “engrenagem” fundamental -

o como se realiza a ideologia em sua forma primordialmente burguesa: a ideologia

jurídica. Nos deteremos neste problema no Capítulo 3.

2.3 Ciência e ideologia: em defesa do proletariado

Althusser trata a ideologia, em seu sentido epistemológico, como pré-história

da ciência23 (ALTHUSSER, 1979, p. 47), de modo que “toda ciência só pode ser

pensada como ‘ciência da ideologia’” (Ibidem). Essa foi uma posição constante – ao

menos em parte – em seus escritos iniciais. Nos quatro textos que abordamos no

capítulo anterior, com exceção de Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado,

Althusser insiste na diferença essencial entre ideologia e ciência, qual seja, as duas

remetem ao real – na medida em que a primeira tem como efeito o desconhecimento

e a segunda o conhecimento.

Na elaboração do conceito de “corte epistemológico” – que analisaremos no

capítulo seguinte –, a distinção ideologia/ciência é a estrutura teórica sobre a qual

22 A expressão “trabalham sozinhos” encontra-se em aspas pois não é do autor (Almeida), mas de Althusser. Tal expressão aparece por diversas vezes no texto, e, apesar de ser a tradução mais frequente, encontramos outras, como “funcionam”, “andam”, “marcham”. 23 “Indiquemos com precisão: por ciência, entendemos não uma lista de conhecimentos

empíricos (que pode até ser bastante longa: assim, os caldeus e os egípcios conheciam um número considerável de fórmulas técnicas e resultados matemáticos), mas uma disciplina abstrata e ideal, a qual utiliza a abstração e as demonstrações: assim, a Matemática grega criada por Tales ou aqueles designados por esse nome, sem dúvida, mítico” (ALTHUSSER, 2008, p. 34).

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Althusser molda o conceito. Logo, esta é imprescindível na filosofia althusseriana,

posto que, talvez, todas as suas teses ulteriores apoiem-se nesta premissa teórica.

Não à toa, o filósofo invoca com veemência ao longo de sua obra, sem nunca ter

recuado sobre isso – salvo, talvez, a época em que desenvolveu a tese do

“materialismo aleatório” –, a cientificidade do marxismo.

Essa ênfase no aspecto epistemológico do par ciência/ideologia rendeu a

Althusser duras críticas. Entretanto, o autor concentra-se em um desvio teórico que,

em sua concepção, foi o principal: o teoricismo.

Teoricismo quer dizer, na espécie, prioridade da teoria sobre a prática; insistência unilateral sobre a teoria; porém mais precisamente, racionalismo especulativo. Pode-se então explicar-lhe simplesmente a forma pura. Pensar na oposição verdade/erro era de fato racionalismo. Mas era especulação querer pensar na oposição verdades detidas/erros rejeitados em uma Teoria geral da Ciência e da Ideologia, e de sua diferença. Evidentemente, simplifico e forço as coisas ao extremo, raciocinando ‘até o limite’, pois nossas análises estão longe de ter sempre seguido esse caminho, sobretudo até o fim. Mas esse movimento é inegável (ALTHUSSER, 1978b, p. 95, grifos do autor).

De fato, tomando as análises de Althusser como um corpo unificado, não

podemos fazer tais afirmações, que apenas caberiam quando lidos os ensaios

individualmente. Com efeito, a crítica é válida, uma vez que tais ensaios foram

publicados individualmente, ainda que, frequentemente, com alertas – como as

“notas para uma pesquisa”, e ao dizer que tal questão por enquanto será deixada

de lado ou desenvolvida alhures. Não obstante, as críticas vieram, e foram duras.

Mas justamente, nos teóricos da ideologia como 'lugar imaginário' e 'interpelação do Sujeito' são aqueles mesmos que recusam a clareza dessa luta [...]. A verdade é que os maoístas e a vanguarda do movimento estudantil têm acusado Althusser de teoricismo durante todo o curso de ruptura de maio de 68; que por teoricismo entendíamos então, mais precisamente, a impossibilidade onde se encontrava em Althusser de articular corretamente as questões da ciência e da ideologia sobre aquelas da luta de classes. [...] a doutrina althusseriana da ideologia que a reduziu a um mecanismo de ilusão, sem que seja tomado em conta o conteúdo de classe real cuja toda formação ideológica não é mais do que a expressão contraditória (MOTTA; SERRA, 2014, p. 133).

Com efeito, o filósofo reconhece que, em seus textos iniciais, “a luta de

classes estava praticamente ausente” (ALTHUSSER, 1978, p. 80). Nesse ponto,

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tendemos a discordamos do autor. Em Marx e humanismo, Althusser desenvolve a

tese do anti-humanismo teórico (que veremos no capítulo seguinte), com clara

intenção de resgatar o conceito de luta de classes. Logo, ainda que não esteja

explicitamente escrito, basta uma leitura cuidadosa para concluir isto.

Contudo, o par ideologia/ciência adquire outro sentido, quando exposto em

uma dimensão política. Expliquemos. Althusser diz que toda ideologia dominante

tem, por objetivo, o livre consentimento dos explorados, em relação à ditadura que

lhes é imposta pela classe dominante. Tal ideologia ajuda a impedir a revolta e

submete, assim, voluntariamente, as classes dominadas à servidão. Além disso, a

ideologia determina a união da classe dominante, de forma que tal classe viva suas

relações sociais sem – necessariamente - consciência da exploração, mas crendo

em sua autenticidade (ALTHUSSER, 2019).

Na política institucionalizada, os partidos burgueses e os partidos comunistas

operam, ideologicamente, em sentidos opostos. Como já apresentamos acima

(p.57), o partido burguês é, por definição, reacionário - ele existe em um período

histórico que tem como ideologia dominante a ideologia burguesa. Nesse sentido,

“ele não precisa unir prioritariamente as massas populares [...] a aderir a suas

ideias: é a própria ordem social que se encarrega desse trabalho de convencimento,

propaganda e adesão” (Ibid., p. 168). Já um partido comunista sobrevive na medida

em que organiza a classe operária. E, diferentemente do partido burguês, que não

necessita convencer as massas, o partido revolucionário parte da ideologia da

classe trabalhadora24 – que nasce das lutas de classes ocorridas desde o século

XIX – e também da ciência marxista, que lhes fornece conhecimentos objetivos.

Portanto, é uma ideologia muito particular: ideologia por sua forma, visto que, no nível das massas, ela funciona como qualquer ideologia (“interpelando” os indivíduos como sujeitos), mas teoria científica por seu conteúdo (visto que edificada com base numa teoria científica da luta de classes) (Ibid., p. 170).

24 Althusser fala em ideologia proletária. Contudo, para adequar à nossa conjuntura histórica, e

por falta de um conceito que possa definir o “proletariado” de hoje, optamos pelo conceito geral de “classe trabalhadora” – na medida em que quem produz, e, portanto, quem trabalha, são as classes dominadas.

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66

Da mesma forma, para além da esfera da legalidade, na luta de classes, em

geral, a união entre ideologia da classe trabalhadora e ciência marxista é a condição

vital do processo revolucionário. “Sem teoria revolucionária não há movimento

revolucionário”, dizia Lenin. Assim, a ideologia da classe trabalhadora é a única que

tem sentido revolucionário. Ela existe apenas na medida em que luta contra a

dominação da ideologia burguesa, e tem como aliada, diferentemente da ideologia

burguesa, uma doutrina científica: a ciência da história. Isso confere ao par

ideologia/ciência um outro significado, que se dá exclusivamente no modo de

produção capitalista, com o encontro da ideologia proletária com a ciência marxista.

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67

CAPÍTULO 3

UMA RUPTURA COM CONSEQUÊNCIAS

3.1 O corte epistemológico: gênese

A juventude de uma ciência é a sua idade madura: antes dessa idade, ela é velha, tendo a idade dos preconceitos em que vive, como uma criança vive os preconceitos e, portanto, a idade de seus pais

(Althusser, Freud e Lacan, 2000, p. 56).

N’A Ideologia Alemã (2001), Marx expõe uma contundente crítica à filosofia

em geral e, sobretudo, à filosofia idealista – esta muito presente nos círculos

intelectuais alemães da época, principalmente entre os jovens-hegelianos, grupo do

qual Marx havia feito parte em sua juventude. Os jovens-hegelianos partem de uma

explicação idealista da realidade, atribuindo uma ligação direta entre as suas ideias

e o mundo concreto. Marx e Engels pretendem fazer o inverso: demonstrar, a partir

de uma teoria materialista, como as formas de propriedade são determinadas pelos

meios de produção que, por sua vez, determinam as relações sociais e as ideias

dos indivíduos.

Esta obra, publicada postumamente, marca um período na teoria de Marx no

qual ocorre o que Althusser chamou de “corte epistemológico25”. Faz-se necessário

esclarecer essa conceituação – ainda que não seja o objetivo de nosso trabalho –,

pois ela elucida o posicionamento de Althusser diante da ideologia em sua “função

social”. Isso ficará mais claro – assim pretendemos – no desenvolvimento de nossa

investigação.

Como nos lembra Sampedro (2004, s./p.),

25 “Uma ciência reconhecida está sempre liberta de sua pré-história e continua (sua pré-história

lhe permanece sempre contemporânea: como seu Outro) interminavelmente se libertando do modo de sua rejeição como erro, do modo daquilo que Bachelard chamou ‘a ruptura epistemológica’. Eu lhe devo essa ideia e para lhe dar, no jogo de palavras, todo o seu sentido, o chamei de ‘corte epistemológico’. E disso fiz a categoria central de meus primeiros ensaios” (ALTHUSSER, 1978b, p. 87).

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68

A noção de ruptura epistemológica ou corte (coupure) epistemológico deve-se à teoria da história do espírito científico elaborada por Gaston Bachelard, na qual o conceito de “corte” representa uma alternativa teórica totalmente inovadora em relação aos posicionamentos continuístas que dominaram até então a reflexão sobre a história das ciências. Do que Bachelard fala é de ruptura, afastamento, mutação ou profunda descontinuidade do espírito científico na história do mesmo.

Althusser, declaradamente afeito a recorrer a conceitos de outros autores e

outras disciplinas, transmuta, segundo Sampedro (2004), o conceito bachelardiano

de “ruptura epistemológica” em sua tese do “corte epistemológico”. Ainda seguindo

as reflexões do crítico, a novidade apresentada pelo filósofo é a aplicação desta

tese em um novo terreno, o do materialismo histórico, iniciado por Marx e Engels.

Com o advento do materialismo histórico, foram transformadas as ideologias

teóricas anteriores, ou seja, aquilo que Lenin chamou de as três fontes do marxismo:

a economia política inglesa, o socialismo utópico francês e a filosofia alemã. Seria

esta a imensa revolução teórica levada a efeito por Marx e Engels. (Ibid.).

Logo, o advento do materialismo histórico é um acontecimento sem

precedentes, inaugura uma ciência e põe em marcha, a despeito de seu passado

ideológico, uma nova teoria de compreensão da história.

A tal ruptura implica um ponto de não retorno – um posicionamento de caráter descontinuado em relação às interpretações unitárias da obra de Marx, segundo as quais naquela não se produziriam saltos, mutações nem cortes, senão uma progressão linear que se poria já em

marcha nos escritos juvenis de Marx –, a partir do qual se inaugura uma

nova problemática científica, no caso que nos ocupa: o materialismo histórico enquanto ciência das formações sociais. O corte do qual o marxismo constitui o efeito é, em última instância, uma revolução filosófica, uma revolução teórica na filosofia, ademais da fundação de uma nova ciência: a da história (SAMPEDRO, 2004, s./p.).

3.1.1 Sobre o jovem Marx (Questões de teoria)

Em um artigo de Por Marx, intitulado Sobre o jovem Marx (Questões de

teoria) (ALTHUSSER, 2015c), Althusser, na contramão dos marxistas da época –

que buscavam resgatar, nas obras de juventude de Marx, um “humanismo” que

responderia criticamente e daria novo fôlego aos comunistas, depois das denúncias

feitas por Kruschev aos crimes de Stálin –, saiu em defesa da importância, teórica

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e política, de “recusar” o jovem Marx e atentar-se ao Marx da maturidade. Em outro

artigo, também de Por Marx – Marxismo e humanismo –, ele diz:

A partir de 1845, Marx rompe radicalmente com toda teoria que funda a história e a política numa essência do homem. Essa ruptura única comporta três aspectos teóricos indissociáveis: (1) formação de uma teoria da história e da política fundada em conceitos radicalmente novos: conceitos de formação social, forças produtivas, relações de produção, superestrutura, ideologias, determinações em última instância pela economia, determinação específica dos outros níveis etc..; (2) crítica radical das pretensões teóricas de todo humanismo filosófico; (3) definição do humanismo como ideologia (2015b, p. 188).

Há, segundo Althusser, três ordens de problemas fundamentais nas obras

de juventude de Marx. O primeiro é “um debate político” (ALTHUSSER, 2015c, p.

40). Nele, configura-se uma tentativa de atribuir ao jovem Marx a “completude em

potência” do Marx da maturidade; dito de outra forma, é o empenho em encontrar

n’A questão judaica o embrião d’O Capital (ibid., p. 41), em escrutinar o passado

aspirando esclarecimentos do futuro, “como se arriscássemos perder Marx por

inteiro ao submeter sua própria juventude à crítica radical da história, não da história

que ele ia viver, mas da história que ele vivia” (ibid., p. 42, grifos do autor).

Segundo o filósofo, “filósofos, ideólogos, religiosos lançaram-se numa

gigantesca empreitada de crítica e de conversão: que Marx retorne às origens de

Marx e admita, enfim, que o homem maduro não é senão o Jovem Marx disfarçado”

(ibid., p. 40, grifo do autor). E esse ardil, por sua vez, “pode inclinar o filósofo

marxista a uma defesa ‘catastrófica’, a uma resposta global, a qual, para resolver

melhor o problema, de fato o suprime” (ibid., p. 41, grifos do autor).

O segundo problema, caracterizado como teórico, constitui-se em, por um

método comparativo, associar conceitos de sua fase juvenil aos da fase de

maturidade:

[...] como se a história do desenvolvimento teórico do Jovem Marx

exigisse a redução de seu pensamento a seus “elementos”, agrupados em geral sob duas rubricas: os elementos materialistas, os elementos idealistas; e como se a comparação desses elementos, a confrontação de peso, devesse decidir o sentido do texto examinado (ibid., p. 43, grifo do autor).

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Segundo Althusser, há uma enorme dificuldade em “decidir quando Marx

pode ser considerado como materialista, ou melhor, quando ele pode não o ter sido!”

(Ibid., p. 44-45, grifo do autor). Diversos autores diferiram quanto a esta questão, e,

deste modo, seria o caso de nos questionarmos “se essa incerteza em determinar

o momento em que Marx passa ao materialismo etc. não se deve ao uso

espontâneo e implícito de uma teoria analítico-teleológica” (Ibid., p. 45). E, responde

nosso autor: “essa teoria parece desprovida de todo critério válido para se

pronunciar sobre um pensamento que ela decompôs em elementos, ou seja, cuja

unidade efetiva destruiu” (ibid., p. 45, grifo do autor).

O que seria, então, uma “teoria analítico-teleológica”? Martuscelli (2016, p.

217-218) explica:

O pressuposto analítico é aquele que se ampara na ideia de que a unidade de um determinado pensamento, ou seja, a unidade de determinada teoria ou sistema teórico pode ser redutível às suas partes ou elementos isolados, “[...] condição que permite pensar à parte um elemento desse sistema, e aproximá-lo de outro elemento semelhante pertencente a outro sistema” (ALTHUSSER, 1979a, p. 45). O pressuposto teleológico é aquele que considera os desenvolvimentos teóricos ulteriores como simples aprofundamento de uma origem, ou ainda, a evolução de um determinado pensamento seria tratada como um trajeto em direção a um inelutável, já que a própria origem de determinado pensamento instituiria uma espécie de “tribunal secreto da história.

Há, assim, uma tentativa de se encontrar na juventude de Marx uma

“tendência materialista” (ALTHUSSER, 2015c, p. 47). Contudo, essa opção por

desvelar no jovem Marx a essência de sua filosofia madura aproxima-se do

idealismo hegeliano, uma vez que “a ‘tendência’ é apenas a abstração retrospectiva

do resultado, do qual se trata justamente de dar conta, ou seja, o em-si hegeliano

pensado a partir de seu fim como sua própria origem” (Ibid., p. 47, grifos do autor).

Portanto, conclui Althusser, “não se pode começar um estudo marxista das

obras de juventude [...] sem ter rompido com [...] [o] método analítico-teleológico

que é sempre assombrado, em maior ou menor medida, pelos princípios

hegelianos” (Ibid., p. 47). Faz-se necessário, assim, “aplicar a nosso objeto os

princípios marxistas de uma teoria da evolução ideológica” (Ibid., p. 47).

Esquematicamente, isso se constitui em 1) considerar cada ideologia em seu

todo “unificado inteiramente por sua problemática própria” (Ibid., p. 47), de modo

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71

que 2) as ideologias singulares relacionem-se “com o campo ideológico existente e

com os problemas e a estrutura sociais que o sustentam e aí se refletem” (Ibid., p.

48, grifos do autor). Destarte, o desenvolvimento de uma ideologia não está atrelado

à sua origem, mas na “relação existente, nesse desenvolvimento entre as mutações

dessa ideologia singular e as mutações do campo ideológico e dos problemas e das

relações sociais que o sustentam” (Ibid., p. 48). Por fim, 3) conclui-se que o

desenvolvimento de ideologias singulares é impulsionado historicamente “por

vínculos complexos do indivíduo com essa história [efetiva]” (Ibid., p. 48).

Com efeito, Althusser salienta que é necessário respeitar as problemáticas26

históricas, e fundamentalmente distintas, nas quais se encontram o jovem Marx e o

Marx da maturidade. Ao ignorar essa questão, cai-se em uma análise teleológica

idealista que admite um fio condutor da história, sendo essa previamente

determinada.

Finalmente, entramos no último problema: “do ‘caminho de Marx’, ou seja, o

problema da relação entre os acontecimentos de seu pensamento e essa história

real, una mas dupla, que é o verdadeiro sujeito desse pensamento” (Ibid., p. 54).

Esse problema, classificado como histórico, inclui também uma questão psicológica:

“como a maturação e a mutação de Marx foram possíveis?” (Ibid., p. 54). Mais

adiante, Althusser responde:

Foi nesse mundo que Marx começou a pensar [a “ideologia alemã dos anos 1930 a 1840]. A contingência do começo de Marx é essa enorme camada ideológica sob a qual ele nasceu, essa camada esmagadora de que soube desprender-se. Temos demasiada tendência, justamente porque ele se libertou, a acreditar que a liberdade que ele conquistou ao preço de esforços prodigiosos e de encontros decisivos já estava inscrita nesse mundo, e que todo o problema consistia em refletir. Temos demasiada tendência a ter como certa a própria consciência do Jovem Marx, sem observar que ela estava, na própria origem, submetida a essa fantástica servidão e às ilusões. Temos demasiada tendência a projetar essa época à consciência ulterior de Marx e a aprender essa história no “futuro do pretérito” de que se fala, mas não se trata de projetar uma consciência de si sobre outra consciência de si, e sim de aplicar ao conteúdo de uma consciência serva os princípios científicos de inteligibilidade histórica (e não o conteúdo de uma outra consciência de si), adquiridos posteriormente por uma consciência liberta (Ibid., p. 57).

26 Mais à frente, trataremos do conceito de “problemática”.

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Conforme procuramos demonstrar acima, a fase de maturidade de Marx é

marcada não apenas por um amadurecimento de suas ideias, mas, principalmente,

por um rompimento gradual27 com a suas ideias juvenis28 , traduzido no abandono

(gradual) do uso de categorias da filosofias idealista hegeliana e humanista

Feuerbachiana29 (veremos adiante). Como observa Motta (2014, p. 20- 21):

[...] Marx, a partir de 1845, com a ruptura iniciada em A ideologia alemã,

iniciou uma nova fase de sua teoria, que se deslocou do campo da filosofia humanista, isto é, na filosofia de inspiração feurbachiana/hegeliana, cujo centro eram as noções e categorias de homem, alienação, trabalho, essência, liberdade, sujeito, para uma nova perspectiva de caráter científico, a ciência da história, na qual Marx tem como conceitos centrais não mais o homem e o trabalho alienado – na busca da recuperação do homem de sua essência alienada para fixar um novo terreno de liberdade -, mas sim do mundo produtivo constituído pelas contradições de classe, i.e., pela luta de classes.

3.1.2 A autocrítica

Foram muitas as críticas recebidas em relação à tese do “Corte”. Jair Pinheiro

( 2016, p 183), destaca: “Althusser teria: 1) inventado tal ruptura, não identificável

nos textos do próprio Marx (SANTOS, 2012); 2) adotado o positivismo lógico como

método (COUTINHO, 2010); 3) substituído o processo histórico por estrutura

27 Althusser diz, em A querela do humanismo (1999, p. 46), que não se pode “atribuir ao ‘corte’

algo como uma data (1845), ela [‘uma mutação conceitual inédita’] não é senão o começo de um evento de longuíssima duração, e que, em certo sentido, não tem fim”.

28 O próprio Marx escreve, no prefácio da Contribuição à crítica da economia política – em

que faz uma auto avaliação e esclarecimentos de sua obra até então –, o seguinte: “[...]

resolvemos trabalhar em conjunto, a fim de esclarecer o antagonismo existente entre a nossa maneira de ver e a concepção ideológica da filosofia alemã; tratava-se, de fato, de um ajuste de contas com nossa consciência filosófica anterior” (MARX, 2016, p. 6-7, grifos nossos). Marx está se referindo ao manuscrito em conjunto com Engels, publicado postumamente, em 1933, A Ideologia Alemã.

29 No texto Os “manuscritos de 1844” de Karl Marx, contido na obra Por Marx, Althusser faz a

seguinte observação sobre o referido texto: “E se eu não quisesse abusar da liberdade de antecipar essa demonstração, diria quase que nesse aspecto, ou seja, no aspecto da dominação radical da filosofia exercida sobre um conteúdo que em breve se tornará radicalmente independente dela, o Marx mais afastados de Marx é esse, o Marx mais próximo, o Marx da véspera, o Marx do limiar, como se antes da ruptura, e para consumá-la, ele precisasse ter dado à filosofia toda a oportunidade. A última, esse poder absoluto sobre seu contrário, e esse triunfo teórico sem igual: ou seja, sua derrota” (ALTHUSSER, 2015d,: p. 130-131, grifos do autor).

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(SILVEIRA, 1978); 4) adotado a moda estruturalista dos anos de 1960 (PRADO JR.,

1971)”. Ainda, acrescentaríamos a respeitosa crítica de Vázquez (1980, p. 47):

A determinação do “corte” num campo puramente teórico à margem de sua vinculação com a história real é claramente teoricista. Para fugir a isso, é preciso que se faça intervir a prática política na explicação da natureza dos dois termos da relação e na produção do próprio “corte”, como passagem necessária das ideologias com as quais a ciência rompe até a própria ciência. Se cabe falar de “corte” neste campo, nem por isso se pode tratar de um corte puramente teórico. Consequentemente, seria necessário abandonar o qualificativo “epistemológico”, utilizado por Bachelard com relação às ciências positivas, mas inaplicável a uma ciência como o materialismo histórico, que, por seu caráter revolucionário, a elas não pode ser reduzido.

E também destacamos a agressiva crítica de Thompson (1981, p. 43):

A “cesura epistemológica”, com Althusser, é uma cesura com o autoconhecimento disciplinado e um salto na autogeração do “conhecimento”, de acordo com seus próprios procedimentos teóricos, isto é, um salto para fora do conhecimento e para dentro da teologia.

Contudo, Althusser reconheceu, até certo ponto, as críticas dirigidas a ele.

Em A querela do humanismo, texto reproduzido em sua totalidade apenas após a

morte do autor, resume assim sua autocrítica:

Se é possível à vista de certos sinais pertinentes, que manifestam de um lado a tensão extrema de uma impossível síntese desesperada (os Manuscrits de 1844), e de outro lado a distensão repentina de uma mutação conceitual inédita (as Thèses, e L'idéologie allemande), atribuir ao "corte" algo como uma data (1845), ela não é senão o começo de um evento de longuíssima duração, e que, em certo sentido, não tem fim. Corrijo portanto aqui o que as indicações de meu artigo tinham de manifestamente brutal, e que me foi, muito justamente, criticado. Naturalmente, as correções que apresento permanecem descritivas: elas não constituem nem mesmo o rudimento de uma teoria do corte, sobre a qual um dentre nós publicará um ensaio em breve. Destaca-se, no entanto, do que eu disse brevemente demais das Thèses.... e de L'idéologie allemande, que se a "liquidação" anunciada conscientemente por Marx está efetivamente iniciada nos seus textos, ela está apenas iniciada, e que o essencial está por fazer para livrar realmente o espaço teórico no qual se desenrolará, vinte anos mais tarde, Le Capital. O "corte" é, portanto, ele mesmo, um processo de longa duração, que comporta momentos dialéticos cujo estudo detalhado, comparado aos dos outros grandes "cortes" que podemos abordar com documentos suficientes (por exemplo, o de Galileu), fará talvez aparecer a tipicidade e a especificidade. O estudo dos momentos constitutivos de um tal "corte" (inaugurando a abertura de um "continente" novo) poderia constituir uma teoria do processo do "corte", e fazer aparecer a necessidade das modificações (momentos) sucessivos, ou cortes secundários, que, através da aparição, a posição e a solução de uma sequência de problemas novos, conduzem uma ciência dos seus primórdios à sua maturidade, através da sua

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maturação. Essa concepção do "corte" como processo não é um modo distorcido de abandonar seu conceito, como nos sugerem com demasiada ênfase certos críticos. Que seja necessário tempo para o "corte" se complete em seu processo não impede que ele seja efetivamente um evento da história da teoria, e que ele possa, como todo evento, ser datado, com precisão, em seu começo; no caso de Marx, 1845 (as Thèses..., e L'idéologie allemande) (ALTHUSSER,1999, p. 46).

Esclarece Althusser a má interpretação – justa, segundo ele, por falta de

elementos compensatórios – de sua tese do “corte” como sendo algo abrupto.

“Decerto que a ruptura não é imediata, ou iminente30. Há sim uma série de rupturas

ao longo da obra de Marx já que não houve uma desvinculação total das noções

precedentes, não obstante não ocupassem mais um lugar central em sua obra”

(MOTTA, 2014, p. 23).

A abertura de um “continente” científico determina-se no tempo e a teoria por um corte. Este corte nem é pontual nem acabado, mas um corte continuado que prepara, com um trabalho contínuo, o campo teórico que abre. Este trabalho contínuo é o da prática científica, na sua forma específica (ALTHUSSER, 1989, p. 67).

Althusser reconhece, também, que focou em apenas uma dimensão do

“corte”, não dando a devida atenção a outros aspectos igualmente importantes:

em lugar de dar a esse fato histórico toda sua dimensão social, política, ideológica e teórica, eu o reduzi à medida de um fato teórico limitado: o “corte” epistemológico, observável nas obras de Marx a partir de 1845. Assim, fui conduzido a uma interpretação racionalista do “corte” opondo a verdade ao erro sob as formas da oposição especulativa “da” ciência e “da” ideologia em geral, cujo antagonismo do marxismo e da ideologia burguesa tornava-se então um caso particular. Redução + interpretação: dessa cena racionalista-especulativa, a luta de classes estava praticamente ausente (ALTHUSSER, 1978b, p. 80, grifos do autor).

Ainda que sua intenção fosse

defender o marxismo contra as ameaças reais da ideologia burguesa: seria necessário mostrar sua novidade revolucionária; seria portanto

30 “O termo ‘corte’ [ou ruptura] aponta para uma radical virada do Marx ideológico para o Marx

científico, mas os textos althusserianos distinguem juventude, transição, maturação e maturidade, propondo um esquema de progresso linear” (PINHEIRO, 2016, p. 134).

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necessário “provar” que o marxismo é antagônico à ideologia burguesa, que só pôde-se desenvolver em Marx e no movimento operário sob a condição de uma ruptura radical e continuada com a ideologia burguesa, e de uma luta incessante contra os assaltos dessa ideologia. Esta tese era certa: ela é certa (Ibid., p. 79-80, grifos do autor).

Assim, Althusser reafirma enfaticamente sua tese:

Esta tese, que não foi poupada pelas críticas, eu a mantenho. Evidentemente, tal como tive que apresentá-la, e tal como a retomo, é muito esquemática, e exigiria longas pesquisas e análises, das quais ela só é hipótese. Nenhuma das objeções a ela opostas, ainda que pouco sérias, me parece ter sido enfraquecida em seu princípio, pois que, em sua nudez, ela nada mais fazia que registrar um fato (Ibid., p. 82).

A autocrítica de Althusser se limita à forma da exposição. Não obstante, o

conteúdo de sua tese é reforçado, em sua dimensão teórica e política:

[...] temos teoricamente o direito e politicamente o dever de retomar e defender, a propósito do marxismo-leninismo, na trincheira da palavra, a categoria filosófica de “ciência”, e de falar da fundação por Marx de uma ciência revolucionária, encarregada absoluta de nos explicar as condições, a razão e o sentido desse binômio inaudito31, que faz ”mexer” algo de decisivo na nossa ideia da ciência. Retomar e defender, nesse contexto e nesse programa, a palavra “ciência” (Ibid., p. 89, grifos do autor).

Como lembra Sampedro (2004, s./p.), “toda ruptura epistemológica supõe,

pois, uma mudança de problemática, isto é, uma mudança na estrutura sistemática

típica que unifica os elementos de uma teoria”. Danilo Martucelli, por sua vez,

explica o que significa o conceito de problemática teórica na obra de Althusser:

Em sua obra, o conceito de problemática teórica designa tanto o objeto de pesquisa quanto a teoria que orienta toda a análise. Exemplifiquemos. Na análise que faz da alienação política (“A questão judaica”) e da alienação econômica (“Manuscritos de 1844”), Marx emprega a problemática feuerbachiana que antes estava voltada para

31 “Convenhamos que é sempre necessário julgar posições declaradas pelo sistema como

posições detidas e efeitos provocados. Por exemplo, para permanecer somente de um lado, podemos nos declarar a favor da teoria marxista, mas defende-la em posições especulativas, portanto não-marxistas – com todos os efeitos subsequentes. Ora, só podemos defender a teoria e a ciência marxista em posições materialista-dialéticas; portanto não-especulativas e não-positivistas, tentando pensar essa realidade propriamente inaudita, porque sem exemplo: a teoria marxista revolucionária, a ciência marxista como ciência revolucionária” (Ibid., p. 88).

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o exame da alienação religiosa. Ou seja, há aqui um deslocamento do objeto de investigação – antes religião, agora Estado e trabalho – mas não se observa, em decorrência disso, uma mudança significativa no âmbito da teoria empregada para a análise de tais fenômenos sociais. Situação bem distinta ocorre quando comparamos os textos de juventude e de maturidade de Marx. Nesse caso, é possível entrever uma “mudança de terreno”, uma ruptura nos alicerces teóricos. Se nos textos de juventude, as análises de Marx são orientadas pela pergunta “O que é o homem?” e, com isso, ganham relevância noções como alienação, ser genérico, essência humana, emancipação humana; os textos de maturidade passam a ser condicionados por uma nova questão “O que é história?”, advindo daí a formulação de novos conceitos, tais como: modo de produção, forças produtivas, relações de produção, luta de classes e revolução social. Nessa perspectiva, não faz sentido extrair o conceito de trabalho assalariado, desenvolvido em “O Capital”, e tentar aplicá-lo aos “Manuscritos de 1844”, obra na qual a noção de trabalho alienado ou estranhado está no posto de comando. O mesmo exercício de análise poderíamos fazer com a noção de Estado presente na obra “A questão judaica”, que está ligada à ideia de alienação política do homem, e pensá-la ao conceito de Estado formulado nos textos de maturidade, que está vinculado à questão das classes sociais e, portanto, à ideia de que o Estado possui uma natureza de classe, não podendo, assim, ser caracterizado como uma simples negação política da essência do homem perdida na história (MARTUCELLI, 2016, p. 216-217).

Portanto, a problemática à qual Marx se volta em sua juventude se

transforma, isto é, muda qualitativamente. A problemática, levada a cabo nas obras

de juventude, diz respeito à resposta à pergunta “o que é o homem?”. Esta é fruto

da influência da filosofia humanista de Feuerbach. Com efeito, na Ideologia alemã

(2001 [1845]), um ano após os Manuscritos (2007 [1844]), Marx opera uma crítica

(que é também uma autocrítica) ao humanismo feuerbachiano, mudando de terreno

e colocando em cena conceitos como modo de produção, forças produtivas, etc. –

visando, assim a resposta a uma nova pergunta, qual seja: “o que é a história?”32.

32 “É pela aplicação do sistema conceitual dos Manuscritos de 44, uma das obras de ‘juventude’

de Marx, que o corte teórico existente entre os dois textos torna-se visível: é assim, mais precisamente pela aplicação do conceito de ‘trabalho assalariado’ (que figura em O capital) ao conceito de ‘trabalho alienado’ (que figura no Manuscritos de 44) que se torna visível o caráter ideológico, não científico, do conceito de ‘trabalho alienado’ e, portanto, do conceito de ‘alienação’ que está na base. Da mesma maneira, é pela aplicação no interior do próprio O capital, dos conceitos bem definidos de processo do trabalho, de força de trabalho, de trabalho concreto, trabalho abstrato, etc... ao conceito de “trabalho” (que se encontra também em O capital), que se descobre que este conceito de trabalho (só por si) não é em O capital senão uma palavra, uma das formas antigas que pertencem ao sistema ao sistema conceitual da economia política clássica e da filosofia de Hegel. Marx serviu-se dessas formas, mas para chegar a novos conceitos que, em o Capital, tornam essa forma supérflua, e que constituem a sua crítica. É extremamente importante sabê-lo para evitar tomar esta palavra (trabalho) por um conceito marxista: de outro modo, pode-se ser tentado, como hoje vemos tantas vezes, a construir, a partir

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Não é a nossa intenção nesta pesquisa demonstrar que Althusser estava –

em nosso juízo - correto. Rigorosas e detalhadas análises já foram feitas nesse

sentido (cf. BOITO JR (2013), NAVES (2014) PINHEIRO (2016), MARTUSCELLI

(2016)). Nos focaremos na consequência política da tese do “corte” e em sua

influência basilar na filosofia althusseriana. Não obstante, vejamos apenas um

exemplo que demonstra como a tese é correta.

Armando Boito Jr. (2013) escreveu um artigo em que procurou criticar um

texto de Lukács, intitulado O jovem Marx – sua evolução filosófica de 1840 a 1844.

Na esteira de uma tradição Althusseriana de demonstração da ruptura entre o

idealismo de juventude e a ciência observada na maturidade de Marx, ele

argumenta que, diferentemente dos conceitos científicos da fase de maturidade do

filósofo alemão, “os conceitos de Estado político, emancipação política,

emancipação humana, alienação e seus correlatos, presentes nos escritos de 1843-

1844, são, de fato, pré-marxistas” (BOITO JR., 2013, p. 44). Boito Jr., no final de

seu artigo, sintetiza alguns conceitos que demonstram esse argumento que foi

exposto pela corrente althusseriana.

Quadro 1 – Quadro comparativo de conceitos sociológicos e políticos de Sobre a

questão judaica e do Manifesto do partido comunista

Conceitos e teses Sobre a questão judaica

Manifesto do Partido Comunista

Sociedade

Indivíduos isolados, egoístas, e luta um contra os outros e alienados. Não vivem de acordo com a vocação do ser humano cuja essência impele ao congraçamento comunitário. O texto silencia sobre a dominação e a exploração no interior da sociedade

Os indivíduos têm seus interesses e seus valores determinados pela sua inserção na estrutura econômica e social (aristocrata feudal, burguês, pequeno burguês, operário). Esses são interesses e valores de classe, que induzem a formação de agrupamentos coletivos em luta – a luta de classes. A dominação e a exploração de classe estruturam a sociedade.

Estado Moderno

Estado político: realização ilusória do homem que projeta a sua essência na

Estado burguês: comitê que organiza os interesses comuns da burguesia e

dele, todas as interpretações idealistas ou espiritualistas do marxismo como filosofia do trabalho, da ‘criação do homem pelo ‘homem’, como humanismo etc.” (ALTHUSSER, 2017, p. 106).

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comunidade imaginária dos cidadãos criada pelo próprio Estado.

desorganiza a classe operária.

Contradição

Essência humana x existência humana / sociedade civil x Estado político.

Desenvolvimento das forças produtivas x relações de produção / burguesia x proletariado.

Atitude intelectual

Crítica filosófica e moral: presença implícita, mas ativa, do humanismo feurbachiano (o homem aspira ao congraçamento comunitário.

Crítica social e organização revolucionária da classe operária.

Relação Estado/sociedade

Estado separado (formal e realmente) da sociedade.

Estado “unido” com parte da sociedade (com a classe dominante) e “separado” de outra parte (da classe dominada)

Representações

Ilusões alienantes dos indivíduos – religião, Estado, cidadania.

Ideologia da classe dominante burguesa.

Mudança social do século XVIII

Emancipação política com a criação do Estado político.

Revolução burguesa e surgimento do capitalismo.

Mudança social do século XIX

Emancipação humana: recuperação da essência humana alienada na existência. Fim da luta de todos contra todos e realização do congraçamento comunitário.

Revolução proletária: sociedade comunista. Eliminação da propriedade privada, implantação da propriedade coletiva dos meios de produção, liberação do desenvolvimento das forças produtivas, fim das crises econômicas e elevação do padrão de vida do proletariado.

Meio da mudança social do século XIX

Ação dos filósofos para reformar as consciências e está sugerida a supressão do Estado.

Organização do proletariado para a luta de classe e conquista do poder de Estado.

Concepção de história

Circular: a emancipação humana leva à recuperação da essência previamente existente, mas que se encontrava alienada.

Movimento ascendente em espiral – desenvolvimento das forças produtivas, sucessão de diferentes formas de organização social.

Olhar retrospectivo do autor

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A essência humana, o homem em geral e a alienação são criticados como fantasias filosóficas que desviam os socialistas da tarefa de organizar a classe operária.

Problemática

Pergunta mais geral: o que é o homem? Dispositivo conceitual: essência humana, alienação e emancipação humana.

Pergunta mais geral: o que é a história? Dispositivo conceitual: a sucessão de modos de produção propiciada pelo desenvolvimento das forças produtivas e pela luta de classes.

Fonte: BOITO JR, 2013, p.53.

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O próprio Althusser indica o novo dispositivo conceitual, levado a efeito por

Marx, em sua fase de maturação-maturidade:

Conforme afirmei, pode-se verificar, mesmo nas ambiguidades e hesitações da Ideologia Alemã, a existência de um agenciamento de conceitos teóricos de base, que procuraríamos em vão nos textos anteriores de Marx e que apresentam essa particularidade de poder funcionar sobre um modo inteiramente diferente em sua pré-história. Não entrarei aqui no estudo desses novos conceitos, cujo dispositivo original lhes confere um sentido e uma função então inéditos: modo de produção, relações de produção, forças produtivas, classes sociais enraizadas na unidade das forças produtivas e das relações de produção, classe dominante/classe dominada, ideologia dominante/ideologia dominada, luta de classes, etc. Para retomar somente esse exemplo, que permite uma comparação incontestável, lembro que o sistema teórico dos Manuscritos de 44 repousava em três conceitos de base: Essência Humana/Alienação/Trabalho Alienado [...]. De fato, sobre esse novo terreno, é possível colocar, pouco a pouco, pela primeira vez, nos novos conceitos, os problemas reais da história concreta, sob a forma de problemas científicos e concluir (como o faz Marx em O Capital) resultados teóricos demonstrados, isto é, verificáveis pela prática científica e política e abertos sobre sua retificação regulamentada. Ora, o surgimento histórico desse novo Continente científico33, desse novo dispositivo de conceitos teóricos de base, foi paralelo, como se pode ver empiricamente em Marx, mesmo se o processo é aí manifestamente contraditório, com a rejeição teórica das antigas noções de base e/ou de seu dispositivo, reconhecidos e rejeitados como errôneos. [...] esse processo de rejeição explícito começa na Ideologia Alemã mas sob uma forma geral e abstrata, que opõe “a ciência positiva” das realidades empíricas, às desconfianças, às ilusões e ao delírio da ideologia, e muito expressamente da Filosofia, que é então concebida como simples ideologia: melhor, como ideologia por excelência (ALTHUSSER, 1978b, p. 82-84).

Importante salientar, também, que, com o advento de uma nova ciência – o

materialismo histórico ou ciência da história –, há uma evolução política e uma

evolução na filosofia empreendida por Marx, levando em consideração que “o

marxismo não é uma (nova) filosofia da práxis, mas uma prática (nova) da filosofia”

(ALTHUSSER, 1974, p. 68). Como disse Althusser, em Resposta a John Lewis

(1978c, p. 44-45, grifos do autor):

33 Althusser utiliza a metáfora “continentes” para designar as ciências descobertas na história.

“[...] antes de Marx, apenas dois grandes continentes tinham sido abertos ao conhecimento científico por cortes epistemológicos contínuos: o continente Matemáticas com os gregos (por Tales, ou o que o mito deste nome designa) e o continente Física (por Galileu e os seus sucessores)” (ALTHUSSER, 1974, p. 33, grifos do autor).

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Concretamente, isso quer dizer: o jovem Marx, nascido de uma boa família burguesa na Renânia, entra na vida ativa como redator-chefe de um jornal da burguesia liberal renana. Estamos em 1841. Ora, esse jovem brilhante intelectual irá experimentar, em três-quatro anos, uma revolução fulgurante em política. Irá passar do liberalismo radical burguês (1841-42) ao comunismo pequeno-burguês (1843-44) e, depois, ao comunismo proletário (1844-45). São fatos incontestáveis. Ora, podemos observar que essa evolução política tem seu duplo quase exatamente numa evolução filosófica. Portanto, em filosofia, e ao mesmo tempo, o jovem Marx irá passar de um neo-hegelianismo subjetivo (de tipo kantiano-fichtiano) ao humanismo teórico (Feuerbach), antes de rechaçá-lo para passar a uma filosofia que não mais se fixa na “interpretação do mundo”: uma filosofia inédita, materialista-revolucionária. Se aproximarmos a evolução política do jovem Marx de sua evolução filosófica, veremos 1º) que sua evolução filosófica é comandada por sua evolução política; e 2º) que sua descoberta científica (o “corte”) é comandada por sua evolução filosófica. Na prática, isso quer dizer: foi porque o jovem Marx “acertou contas com sua consciência filosófica anterior” (1845), abandonando definitivamente suas posições teóricas de classe burguesa liberal e pequeno-burguesa revolucionária a fim de adotar (ainda que somente no princípio, no momento em que ele larga as velhas amarras) novas posições teóricas de classe, revolucionário-proletárias, foi por isso que ele pôde lançar as bases da teoria científica da história enquanto história da luta de classes. No princípio: pois será preciso tempo para reconhecer e ocupar essas novas posições teóricas de classe. Será preciso tempo, numa luta incessante para conter a pressão da filosofia burguesa.

3.1.3 Elementos para uma abordagem política do “corte”

Com isso, já temos elementos suficientes para justificar o “corte” em sua

dimensão teórica, e também em sua dimensão, e consequências, políticas. Como

bem observou Boito Jr.:

[...] a discussão sobre a ruptura entre os escritos do jovem Marx e sua

obra de maturidade tem consequências teóricas e políticas amplas. Os autores que se apegam aos escritos de juventude de Marx têm uma concepção de socialismo e de transição diferente daqueles que mostram a ruptura promovida pela obra de maturidade. E a diferença entre uns e outros aparece também no terreno prático. A questão é a seguinte: os socialistas devem fazer apelo a todos os homens, indistintamente, para que superem a alienação política, realizando a emancipação humana ou, diferentemente, devem organizar a classe operária para a luta contra a burguesia e pela implantação da sociedade socialista? (BOITO JR., 2013, p. 51).

Assim, é necessário, não apenas teoricamente, mas principalmente no plano

político, insistir na tese do corte epistemológico, pois

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[...] existe realmente na história do pensamento teórico de Marx,

alguma coisa como um “corte”, que não é nada, mas é útil à história inteira do movimento operário. E entre aquele que reconhecem o fato do “corte” e aqueles que querem reduzi-lo a nada existe uma oposição, que se torna necessário confessar qual seja, no final das contas, uma oposição política (ALTHUSSER.,1978b, p. 81).

É possível afirmar que a tese do corte epistemológico é a pedra angular de

toda filosofia althusseriana. Isto pois, da leitura cirúrgica que Althusser fez de Marx,

foi possível a constatação de um primeiro período ideológico (ou pré-marxista) e um

segundo período científico (ou marxista) na obra Marx. E o resultado desta leitura,

como estamos vendo, provoca uma inevitável luta política.

Se voltamos a Marx e colocamos conscientemente, na conjuntura atual, a ênfase sobre problemas teóricos, e, antes de tudo, sobre o “elo decisivo” da teoria marxista, a saber a “filosofia”, é para defender a teoria marxista das tendências do revisionismo teórico que a ameaçam; é para desprender e precisar o domínio onde a teoria marxista deve a qualquer preço se desenvolver para produzir os conhecimentos de que os partidos revolucionários precisam urgentemente para confrontar os problemas políticos cruciais do nosso presente e do nosso futuro. Não pode haver nesse ponto nenhum equívoco (ALTHUSSER, 1999, p. 14).

Essa “descoberta”, levada a efeito por Althusser, trouxe consequências sem

precedentes, que o levaram a seguir uma linha de raciocínio rigorosa e alinhada

com seu dispositivo conceitual. Contudo, Althusser sempre soube que o embate

intelectual é, no fundo, também um embate político, e que a filosofia é, última

instância, luta de classes na teoria.

[...] Não tenho ilusões: trata-se em última análise de um debate e um

confronto políticos [...] como se se tratasse de uma simples querela de palavras! Não é um debate de filólogos! A Manutenção ou o desaparecimento dessas palavras, sua defesa ou seu aniquilamento são o risco de verdadeiras lutas cujo caráter ideológico e político está manifesto (ALTHUSSER, 1978b, p. 87-88).

Ora, correto está Althusser em “tirar o elefante branco da sala”. A filosofia, o

marxismo, as teorias políticas em geral, são um campo de batalha:

As posições de classe em confronto na luta de classes são "representadas" no domínio das ideologias práticas (ideologias religiosas, éticas, legais, políticas, estéticas) por visões de mundo de

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tendências antagônicas: idealistas (burguesas) e materialistas (proletárias). Todos desenvolvem espontaneamente uma visão de mundo. As visões de mundo são representadas no domínio da teoria (ciência + as ideologias "teóricas" que envolvem a ciência e os cientistas) pela filosofia. A filosofia representa a luta de classes na teoria. É por isso que a filosofia é uma luta (Kampf, como disse Kant) e fundamentalmente uma luta política: uma luta de classes. Ninguém é um filósofo por natureza, mas todos podem ser filósofos [...]. Por que a filosofia batalha pelas palavras? As realidades da luta de classes são "representadas" pelas "ideias", que são "representadas" pelas palavras. Na argumentação científica e filosófica, as palavras (conceitos, categorias) são "instrumentos" do conhecimento. Mas na luta política, ideológica e filosófica, as palavras são armas, explosivos ou tranquilizantes e venenos. Às vezes, toda a luta de classe pode ser resumida a um confronto entre palavras. Certas palavras lutam entre si como inimigas. Outras palavras são raízes de uma ambiguidade: são a aposta em uma batalha decisiva, porém não resolvida (ALTHUSSER, [2007, s./p.).

No contexto do marxismo, a luta empreendida por Althusser é teórica e

política e reverbera na luta classe proletária. Por isso, a defesa da ciência marxista

enquanto teoria revolucionária é, talvez, a principal luta ideológica levada a efeito

por Althusser34.

Convenhamos que é sempre necessário julgar posições declaradas pelo sistema como posições detidas e efeitos provocados. Por exemplo, para permanecer somente de um lado, podemos nos declarar a favor da teoria marxista, mas defende-la em posições especulativas, portanto não-marxistas; da mesma forma podemos nos declarar a favor da ciência marxista, mas defende-la em posições positivistas, portanto não-marxistas – com todos os efeitos subsequentes. Ora, só podemos defender a teoria e a ciência marxista em posições materialista-dialéticas, portanto não especulativas e não-positivistas, tentando pensar essa realidade propriamente inaudita, porque sem exemplo: a teoria marxista como teoria revolucionária, a ciência marxista como ciência revolucionária. O que é propriamente inaudito nessas expressões é aliar teoria e revolucionária (“sem teoria / objetivamente / revolucionária, não há Movimento / objetivamente / revolucionário”. Lenin), e porque ciência é o indício da objetividade da teoria, aliar ciência a revolucionária. [...] temos teoricamente o direito e politicamente o dever de retomar e de defender, a propósito do marxismo-leninismo, na trincheira da palavra, a categoria filosófica de “ciência”, e de falar da fundação por Marx de uma ciência revolucionária, encarregada absoluta de nos explicar as condições, a razão e o sentido desse binômio inaudito, que faz “mexer” algo de decisivo na nossa ideia da ciência. Retomar e defender, nesse contexto e nesse programa, a palavra “ciência”. [...] E acrescentaria: temos o

34 Não há contradição objetiva em defender ideologicamente uma ciência. Lembremos que, para

Althusser, a ideologia, em sua função social, desempenha um papel positivo e necessário. “Eu não condenava de maneira nenhuma a ideologia como realidade social: como diz Marx, é na ideologia que os homens ‘tomam consciência’ de sua luta de classe e a ‘levam até o fim’; a ideologia é, na sua forma religiosa, moral, jurídica e política etc. uma realidade social objetiva; a luta ideológica é parte orgânica da luta de classes” (ALTHUSSER, 2015a, p. 211).

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direito de falar também em “corte epistemológico” e de utilizar essa categoria filosófica para designar o fato histórico-teórico do nascimento de uma ciência, inclusive, e apesar de toda sua singularidade, da ciência revolucionária marxista, pelo sintoma visível de sua libertação de sua pré-história, que é sua rejeição dos erros de sua pré-história. Com a condição, naturalmente, de não tomar simples efeitos pela causa – mas de pensar nos sinais e efeitos do “corte” como o fenômeno teórico do surgimento de uma ciência na história da teoria, que remonta às condições sociais, políticas, ideológicas e filosóficas dessa irrupção (ALTHUSSER, 1978b, p. 88-90, grifos do autor, negritos nossos).

Cabe, portanto, a defesa do corte em sua dimensão teórica e política. Vimos

que Althusser, em um primeiro momento – isto é, em suas obras da década de

1960, notadamente em Por Marx –, atribui ao “corte” apenas uma dimensão, a

teórica. A bem da verdade, e em defesa de Althusser, a exposição do corte

epistemológico, tal como ocorreu em seus textos iniciais, foi desenvolvida em forma

de artigos, com o intuito de apresentar ao debate marxista algo absolutamente sem

precedentes à época35. A forma que o filósofo encontrou de fazer isso foi investir,

exclusivamente, no campo da teoria - daí a acusação de seu teoricismo, que ele,

inclusive, assume sob a alcunha de desvio teoricista. Todavia, em textos ulteriores,

como pudemos observar, Althusser retifica sua tese, acrescentando a dimensão

política que, necessariamente, influi na luta de classes36.

35 “Evidentemente, esses textos estão marcados, às vezes sensivelmente, não só por

ignorâncias e inexatidões, mas também por silêncios ou semissilêncios. Não é somente a impossibilidade de dizer tudo ao mesmo tempo, ou as urgências da conjuntura, que explicam todos esses silêncios e seus efeitos. De fato, eu não estava em condições de tratar convenientemente certas questões, alguns pontos difíceis eram obscuros para mim: o resultado foi que não levei em conta nos meus textos, como deveria ter feito, certos problemas e certas realidades importantes” (ALTHUSSER, 2015a, p. 214). 36 “Eginardo Pires, que foi pioneiro, ao lado de Carlos Henrique Escobar, na divulgação e nos

estudos sobre o marxismo althusseriano no Brasil nos anos 1960 e 1970, num artigo em que responde às críticas de Fernando Henrique Cardoso ao texto de Althusser, fez o seguinte comentário sobre as observações de Cardoso em relação à ‘ausência’ da luta de classes: ‘Cardoso manifesta sua insatisfação pelo fato de que Althusser não fala da ‘luta de classes’ tanto quanto ele, Cardoso, gostaria. Althusser presta, segundo ele, ‘uma homenagem verbal’ à luta de classes e desenvolve sua análise distanciando-se de Marx. Uma pergunta: por que razão teria Althusser alguma necessidade de prestar ‘homenagens verbais’ à luta de classes? Em uma passagem de gosto duvidoso que conclui uma nota de rodapé, Cardoso nos sugere, sem ser muito explícito, que Althusser teria alguma culpa a expiar a este respeito. Passemos adiante. Em O capital, existem seções inteiras (a primeira para começar) em que Marx não diz uma palavra sobre a luta de classes. Fica com Cardoso o ônus da prova: demonstrar que estas seções são absolutamente inúteis do ponto de vista da luta de classes’” (MOTTA, 2014 p. 85) O artigo de Eginardo Pires ao qual Motta se refere chama-se “Ideologia e Estado em Althusser: uma resposta”, presente na revista Civilização brasileira n. 6.

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3.1.4 Linha de demarcação como alternativa ao corte epistemológico?

Linha de demarcação é um termo de Lenin que Althusser toma emprestado,

para aplicá-lo à sua concepção da função da filosofia. Segundo ele, desde os seus

primórdios, a filosofia se divide em duas tendências, uma idealista e uma

materialista, sendo que a concepção materialista do mundo se expressa pelo

primado da prática sobre a teoria, enquanto o idealismo é uma “filosofia da teoria”

por excelência (ALTHUSSER. 2019, p. 59). Outrossim, o idealismo sempre foi a

tendência dominante em filosofia, “sendo o materialismo representado apenas por

alguns filósofos que tiveram coragem de ir contra a corrente” (Ibidem). Como isso

se explica? Segundo Althusser, a filosofia nem sempre existiu, sendo necessárias

duas condições para a sua existência: “1 – a existência de classes sociais (e,

portanto, do Estado); 2 – a existência de ciências (ou de uma ciência”

(ALTHUSSER, 2008, p. 34). Neste sentido, Platão é o primeiro filósofo37 - sua

filosofia surge a partir da sociedade grega que comportava classes sociais (1ª

condição) e da primeira ciência que conhecemos, a Matemática (2ª condição) (Ibid.,

p. 34).

Embora nem sempre tenha existido Estado, ciência e filosofia, um outro

fenômeno remonta aos primórdios da humanidade: a religião. Era através das lentes

religiosas que se “via infinitamente mais longe ou pretendia ver infinitamente mais

longe do que os olhos do corpo, esse corpo humano limitado e destinado à morte”

(ALTHUSSER, 2019, p. 61). A religião, portanto, é a primeira ideologia dominante;

e a filosofia, como não poderia deixar de ser, surge em reação à ciência, impondo-

se sobre ela a serviço da ideologia dominante38. A filosofia nega a ciência? Não, ela

a domina e a põe a seu serviço:

O que fez Platão? Concebeu o projeto “inaudito” de restaurar a unidade das ideias dominantes afetadas pelo advento da matemática. De modo

37 “Se os primórdios da filosofia podem ser considerados anteriores a Platão, eles não passavam

de balbucios; foi com Platão que realmente nasceu a filosofia dos filósofos, e é a Platão que eles se referem como fundador, primeiro de seus contemporâneos, aquele que pela primeira vez estabeleceu a existência e a forma da filosofia e a impôs na história” (ALTHUSSER. 2019, p. 62). 38 “Platão tinha escrito no pórtico da Escola onde ensinava a Filosofia: ‘ninguém entre aqui se

não for geômetra’. E servia-se da ‘proporção geométrica’ (que embasava a ideia de igualdade proporcional, isto é, de desigualdade) para estabelecer entre os homens relações de classes convenientes às suas convicções de aristocrata reacionário (existem homens feitos para trabalhar e outros para dar ordens, enfim, outros para fazer reinar, sobre escravos e artesãos, a ordem da classe dominante) ” (ALTHUSSER, 2008, p. 34-35).

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algum combateu a matemática em nome da religião, de modo algum contestou seus resultados e seus métodos; muito pelo contrário, reconheceu-lhe a existência e a validade e copiou o que ela trazia de novo: a ideia de objetos puros aos quais se pode aplicar um raciocínio puro. Foi por isso que ele mandou inscrever no frontão de sua escola de filosofia a famosa frase: “Ninguém entre aqui se não for geômetra”. Mas o mesmo Platão, que, desse modo, parecia entrar para a escola da matemática, realizava toda essa operação tão somente para entregar a matemática para a escola de sua filosofia. Ele não colocava a matemática em primeiro lugar, e sim em segundo... atrás da própria filosofia! Com isso, conseguia dominar a matemática, submetendo-a à sua filosofia, e fazia que entrasse na linha e na ordem, ou seja, na ordem dos valores morais e políticos que por um momento ela havia ameaçado ou podia ameaçar. Com isso, conjurava a ameaça que a descoberta da matemática fazia pesar sobre as ideias dominantes (Ibid., p. 62).

Com efeito, a filosofia está sempre atrasada em relação à ciência:

[...] Hegel afinal não errava ao dizer que a filosofia se ergue ao cair da

noite, quando a ciência, nascida de madrugada, já percorreu o tempo de um longo dia. Sobre a ciência que a faz surgir na sua primeira forma ou ressurgir nas suas revoluções, a filosofia tem sempre, portanto, o atraso de um longo dia, que pode durar anos, vinte anos, meio século ou um século (ALTHUSSER, 1974, p. 35).

Nesse sentido, a ciência a qual reportava a filosofia do jovem Marx era a

ciência “[d]as primeiras gestações de uma teoria da história” (ALTHUSSER, 2008,

p. 37). Foi o próprio Marx, a partir do “caldo ideológico”39 de sua época, que

inaugurou uma nova ciência - lembrando que, para Althusser, ciência é sempre

ciência de uma ideologia (ALTHUSSER, 1979, p. 47).

Esse acontecimento pode ser explicado por uma tese que Althusser emprestou de

Lenin. O autor diz que, com Kant, se inicia uma tradição filosófica de opor o

dogmatismo à crítica:

39 “Uma ciência ou uma filosofia nova, mesmo revolucionária, começa sempre algures, num

determinado universo de conceitos e de palavras existentes, portanto histórica e teoricamente determinado; é em função de conceitos e de termos disponíveis que toda a teoria nova, mesmo revolucionária, deve encontrar com que pensar e exprimir a sua novidade radical. Até para pensar o seu conteúdo contra o conteúdo do antigo universo de pensamento, toda teoria está condenada a pensar o seu novo conteúdo em determinadas formas do universo teórico existente, que ela vai abalar. Nem Marx nem seus sucessores escaparam a esta condição, que comanda a dialética de toda a produção teórica. É por isso que temos, não só de revogar os conteúdos pré-marxistas do pensamento de juventude de Marx, mas também criticar, em nome da lógica e da coerência do sistema dos princípios marxistas, algumas das formas sob as quais surgiu o novo conteúdo” (ALTHUSSER, 2017, p. 105, grifos do autor).

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Teoricamente podemos exprimir este efeito dizendo que a filosofia “divide” (Platão), “traça linhas de demarcação” (Lenin), produz (no sentido de tornar manifestas, visíveis) distinções, diferenças. Toda a história da filosofia o demonstra: os filósofos passam o seu tempo a distinguir entre a verdade e o erro, a ciência e a opinião, o inteligível e o sensível, a razão e o entendimento, o espírito e a matéria, etc. Fazem-no sempre: mas não dizem (só raramente) que a prática da filosofia consiste nesta demarcação, nesta distinção, neste traçado (ALTHUSSER, 1976, p. 15-16).

A tese da linha de demarcação é, em nosso entender, perfeitamente

compatível – talvez como complementação e não como substituição – à tese do

corte epistemológico. A filosofia, enquanto linha de demarcação, “não [dá] lugar nem

a demonstrações nem a provas científicas no sentido estrito, mas justificações

racionais de um tipo particular, distinto” (Ibid., p. 16) Ela, por sua vez, intervém a fim

de demarcar o campo da ideologia e o campo da ciência.

Muito esquematicamente, eu diria que esses textos teóricos [presentes em Por Marx] contém uma dupla ‘intervenção’, ou, caso se prefira, eles ‘intervêm’ em duas frentes, para traçar, segundo a excelente expressão de Lenin, uma ‘linha de demarcação’ entre a teoria marxista, por um lado, e tendências ideológicas alheias ao marxismo, por outro (ALTHUSSER, 2015a p. 212).

Assim, podemos perfeitamente dizer, em coerência com a tese do “corte”,

que os “conceitos” levados a efeito nos textos do jovem Marx (homem, alienação,

emancipação, etc.) são proposições ideológicas, tendo em vista que, “sendo o

sintoma duma realidade diferente da que visa, é uma proposição falsa na medida

em que tem por objeto a própria realidade que visa” (ALTHUSSER, 1976, p. 23).

Em outras palavras, é a mesma tese segundo a qual “a ideologia representa a

relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência”

(ALTHUSSER. 2008, p. 277). Dessa forma, uma proposição ideológica remete à

realidade, mas não fornece as ferramentas para seu conhecimento. A crítica

filosófica, enquanto linha de demarcação, portanto, é um elemento importante para

tornar claro, de um lado, o que é ideológico (“qualquer coisa que tem relação com

a prática e a sociedade”), e, de outro, o que é científico (“qualquer coisa que tem

relação com o conhecimento e as ciências”) (ALTHUSSER, 1976, p. 63).

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Marx, a partir de 1845, inicia a construção de uma ciência, que, através de

conceitos como “modo de produção”, “forças produtivas”, “relações de produção”,

“determinação em última instância pelo econômico”, os quais, entre outros, dão

conta do conhecimento do desenvolvimento da história. Inaugura-se, portanto, a

ciência da história. Althusser enxerga esse corte epistemológico e, por meio de sua

filosofia cirúrgica, traça uma linha de demarcação entre o Marx ideológico e o Marx

científico.

3.2 O anti-humanismo no campo teórico

O anti-humanismo teórico é um conceito althusseriano que surge, no plano

teórico, como consequência lógica de suas teses anteriores. Não obstante, no plano

político, ele opera importante papel no que diz respeito à luta ideológica,

empreendida por Althusser. Para sustentarmos esse argumento, voltemos um

pouco ao problema do corte epistemológico.

Como dissemos anteriormente, a fase de maturidade de Marx difere-se

qualitativamente de sua fase juvenil – não é um simples amadurecimento de ideias,

mas uma ruptura gradual com suas ideias de juventude, que significou o abandono

(gradual) do uso de categorias das filosofias idealista hegeliana e humanista

feuerbachiana. É notável a influência de Hegel e Feuerbach no jovem Marx, que o

levava a um indisfarçado humanismo teórico. Vejamos um exemplo:

O comunismo é a abolição positiva da propriedade privada, da auto-alienação humana e, pois, a verdadeira apropriação da natureza humana através do e para o homem. Ele é, portanto, o retorno do homem a si mesmo como um ser social, isto é, realmente humano, um regresso completo e consciente que assimila toda a riqueza da evolução precedente. O comunismo como um naturalismo plenamente desenvolvido é humanismo e como humanismo plenamente desenvolvido é naturalismo. É a resolução definitiva do antagonismo entre o homem e a natureza, e entre o homem e seu semelhante. É a verdadeira solução do conflito entre existência e essência, entre objetificação e auto-afirmação, entre liberdade e necessidade, entre indivíduo e espécie. É a resposta ao enigma da História e tem conhecimento disso (MARX, 2007, s./p.).

A bem da verdade, termos ligados à ideologia humanista permanecem nas

obras de maturidade (como o conceito de “alienação”, n’O capital), mas sempre

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como termos subordinados à problemática principal – modo de produção, forças

produtivas, relações de produção, etc. Assim, o humanismo teórico permanece

como resíduo ideológico da nascente ciência inaugurada por Marx, o materialismo

histórico.

O próprio Marx, como indicamos no capítulo anterior, escreve que o

manuscrito, publicado postumamente com o título A ideologia alemã, cumpriu o

objetivo de acertar as contas com sua consciência filosófica anterior. Portanto,

tomar os conceitos da juventude de Marx com o mesmo valor dos conceitos por ele

desenvolvido em sua maturidade é, antes de tudo, julgar conhecer melhor a obra

do que seu próprio autor. Não obstante, esse argumento é insuficiente para

sustentar a tese do anti-humanismo teórico. Avancemos.

Martuscelli (2016, p. 222) diz que uma das consequências do corte

epistemológico é “romper com o humanismo teórico ou com uma dada ideologia

teórica que ainda não era conhecida com tal”. O anti-humanismo teórico intervém,

portanto, como linha de demarcação entre um Marx ideólogo e um Marx cientista.

É fruto não declarado40 de uma mudança de problemática, “da constituição da

ciência, que nasce na própria ideologia, por uma trabalho teórico que culmina em

um ponto crítico explodindo em uma ruptura que instaura o campo novo onde vai

se estabelecer a ciência” (ALTHUSSER, 1999, p. 46, grifo do autor). É esta ciência,

a ciência da história ou materialismo histórico que será o legado de Marx, a ruptura

com a ideologia burguesa que se expressa em última instância no humanismo.

No texto Glosas marginais ao Manual de economia política de Adolph

Wagner, um dos últimos escritos econômicos de Marx, temos um famoso excerto,

o qual ele diz: “meu método analítico, [...] não parte do homem, mas de períodos

sociais economicamente dados” (MARX, 2017, s./p.). O que explicaria, portanto,

uma volta ao humanismo, notadamente aquela observada por Althusser na URSS?

Em Marxismo e humanismo, Althusser fala sobre o “humanismo de classe” que

ocorria na União Soviética. Tal humanismo, entendemos como “não só a crítica das

contradições, mas também e sobretudo como a realização das aspirações ‘mais

nobres’ do humanismo burguês” (2015b, p. 184). Entretanto, esse quadro evolui:

40 Marx nunca usou o termo “anti-humanismo teórico”. Ele foi elaborado a partir da leitura

sintomal que Althusser faz da obra de Marx.

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Efetivamente, os homens são doravante tratados na URSS sem distinção de classe, ou seja, como pessoas. Veem-se então os temas do humanismo de classe ser sucedidos, na ideologia, pelos temas de um humanismo socialista da pessoa (Ibid., p. 184, grifos do autor).

Do que dissemos até agora, cumpre notar que há um antagonismo insolúvel

entre luta de classes e humanismo. De fato, podemos apenas falar de humanismo

de classe, se quisermos ser rigorosos com os conceitos marxistas, pois este se

expressa na ditadura do proletariado; enquanto o humanismo (burguês) da pessoa

se expressa na “democracia” (exploração) burguesa. Logo, o “humanismo

socialista” é uma contradição de termos:

Ora, o par “humanismo-socialista” encerra justamente uma desigualdade teórica impressionante: no contexto da concepção marxista, o conceito de “socialismo” é realmente científico, mas o de humanismo é apenas um conceito ideológico. Entendamo-nos: trata-se não de contestar a realidade que o conceito de humanismo socialista está encarregado de designar, mas de definir o valor teórico desse conceito (Ibid., p. 185).

Portanto, para o filósofo, o humanismo socialista designa uma realidade,

ainda que uma realidade ideológica – alude à realidade, mas ilude quanto ao seu

significado. Não obstante, tal termo cumpre uma função político-ideológica:

Quando os marxistas enfatizam, em suas relações com o resto do mundo, um humanismo socialista da pessoa, manifestam muito simplesmente sua vontade de vencer a distância que os separa de seus aliados possíveis, e antecipam simplesmente o movimento, confiando à história futura o cuidado de preencher as antigas palavras com um conteúdo novo41 (Ibid., p. 196).

A despeito dos usos do “conceito” de humanismo, a fim de analisá-lo de um

ponto de vista científico – o que leva a classificá-lo enquanto ideologia –, urge a

conceitualização de um anti-humanismo teórico. Com efeito, Althusser diz que “se

não tivesse defendido esta tese, teria que inventá-la” (ALTHUSSER, 1978a, p. 158).

41 “Para que os homens soviéticos precisam assim de uma ideia do homem, ou seja, de uma

ideia de si mesmos que os ajude a viver sua história? [...] por um lado, a necessidade de preparar e realizar uma mutação histórica importante [...] por outro, as condições históricas nas quais essa passagem deve se efetuar. [...] É nessa inadequação entre as tarefas históricas e suas condições que pode explicar um recurso a essa ideologia” (Ibid,, p. 198).

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90

Neste sentido, precisamos explicar por que houve um retorno por parte dos

intelectuais comunistas ao humanismo teórico.

A gênese da elaboração da tese do anti-humanismo teórico remonta a um

importante evento que ocorreu no início da segunda metade do século passado: o

XX congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), onde Nikita

Kruschev denunciou os crimes de Stálin e o culto à sua personalidade que, segundo

o secretário-geral do PCUS, o elevaram a “um super-homem cujas características

sobrenaturais, [são] semelhantes às de um deus” (TIMM, 2016, p. 195). A imediata

reação dos intelectuais comunistas de todo o globo foi a de “recuperar a herança

humanista do jovem Marx ao demarcar que a verdadeira ‘essência’ do marxismo

encontrava-se em suas obras iniciais” (MOTTA. 2014, p. 21). Neste sentido,

“podemos considerar como humanismo uma teoria que toma o homem como meta

e como valor superior42” (SARTRE, 1987, p. 21).

No âmbito do debate político, Althusser se envolve em uma polêmica com

Roger Garaudy, outro intelectual do Partido Comunista Francês (PCF), para quem

o marxismo é um humanismo revestido de uma peculiaridade intrínseca, [...] na medida em que é o único [humanismo] efetivamente capaz de dar ao homem o papel de protagonista da história, [...] é o único apto a propiciar a realização do ”homem total” (MAGALHÃES, 2018, p. 37).

No final, o PCF adere ao humanismo marxista, sem deixar de sofrer duras

críticas de Althusser (como na Carta aos camaradas do Comitê Central), mas

enquanto o filósofo franco-argelino permaneceu no partido comunista, Garaudy foi

expulso do mesmo por inconsistências teóricas43. Contudo, os ecos do anti-

42 Althusser (ALTHUSSER, 2002, p. 47-48) desmembra o humanismo nas seguintes noções

ideológicas. “1. a noção de Homem (essência ou natureza do Homem); 2. a noção de espécie humana ou Gênero humano (essência genérica do homem, definido pela consciência, o coração, a intersubjetividade, etc .); 3. a noção de indivíduo ‘concreto’, ‘real’, etc.; 4. a noção de sujeito (subjetividade ‘concreta’, sujeito constituinte da relação especular, do processo de alienação, da História, etc .); 5. a noção de consciência (por exemplo, como essência diferencial da espécie humana, ou como essência do ideológico); 6. a noção de trabalho (como essência do homem); 7. a noção de alienação (como exteriorização de um Sujeito); 8. a noção de dialética (enquanto ela implicar a teleologia)”. 43 “Em 1970, apenas quatro anos após a vitória do seu marxismo humanista na reunião de

Argenteuil, Garaudy foi excluído do partido devido às posições teóricas e políticas que foi assumindo após o movimento de Maio de 1968 – aproximação com a esquerda autogestionária, condenação da ocupação da antiga Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia e negação do caráter socialista da antiga União Soviética. Após sua saída do PCF, Garaudy

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91

humanismo teórico de Althusser se expandem aos mais diversos círculos

comunistas (ou não) mundiais:

[...] houve uma forte reação às suas posições inovadoras no marxismo,

principalmente por marxistas que se opuseram às suas críticas ao humanismo teórico, e de ruptura entre o jovem Marx filosófico de caráter humanista e o Marx maduro que constituiu a ciência da história. A oposição foi tanto dentro do PCF – através de intelectuais ligados ao Comitê Central, tais quais Lucien Sève e Roger Garaudy – bem como fora dele (trotskistas, stalisnistas, lukacsianos, gramscianos, reformistas, humanistas, liberais). A lista é ampla, mas destacam-se os nomes de Raymons Aron, Michel Lowy, Adolfo Sanches Vásquez, Edward P. Thompson, Leszek Kolakowski, André Glucksman, Ernest Mandel, Daniel Bensaid, Alex Callinicos (MOTTA, 2014, p. 11, grifo do autor).

Essas são algumas das querelas políticas envolvendo Althusser e outros

comunistas ao redor do anti-humanismo teórico. Do Brasil, igualmente, vieram

ataques: Caio Prado Jr., Fernando Henrique Cardoso e Ruy Fausto figuram entre

os mais conhecidos44.

Como dissemos acima, humanismo teórico e luta de classes são termos

antagônicos e inconciliáveis. Aí, reside a principal preocupação de Althusser. E,

também, uma grande ironia, pois Marxismo e humanismo integra a coletânea Por

Marx (2015) – obra amplamente criticada (o que até certo ponto é reconhecido por

Althusser) pelo seu suposto “teoricismo”. Ora, como estamos demonstrando, o

corolário do anti-humanismo teórico é justamente a defesa implacável da realidade

da luta de classes! São notáveis o rigor teórico e o encadeamento lógico das teses

de Althusser, desde que lidas com seriedade.

O conceito de anti-humanismo teórico “renuncia”, de certo modo, a acuidade

teórica para incorporar um significado político. “Disse alhures, e repito, que

rigorosamente dever-se-ia falar do a-humanismo teórico de Marx” (ALTHUSSER.

1980, p. 61). Althusser diz que utiliza o prefixo “anti” propositalmente, “para lhe dar

todo o peso de uma declaração de ruptura” (Ibid., p. 61-62). Assim, podemos inferir

que sua intenção é chamar a atenção, semanticamente, para o peso do conceito.

tornou-se religioso – aderiu ao catolicismo e, posteriormente, converteu-se à religião mulçumana” (MARTUSCELLI 2015, p. 133).

44 Acerca desses debates e as críticas que Althusser sofreu, consultar MAGALHÃES (2018),

MOTTA (2014) e MARTUSCELLI (2016).

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Essa escolha (a do uso do prefixo “anti”, em vez do “a”), na nossa concepção, visa

intervir politicamente no debate teórico - lembremos que, para Althusser, filosofia é,

em última instância, luta de classes na teoria.

Em Marx, com efeito, a nova configuração centrada nas contradições das lutas de classe, e no entendimento do mundo produtivo a partir do conceito de modo de produção, no qual se extrai a análise das diferentes práticas articuladas, provenientes das diversas instâncias (políticas, ideológicas e econômicas), demarca uma descontinuidade com a perspectiva humanista do jovem Marx, que afirmava que o homem é a raiz do homem e a essência de todos os objetos de seu mundo humano. Essa posição de Marx (e do marxismo) delimita, e ao mesmo tempo rompe, com a ideologia moderna burguesa centrada no homem e no indivíduo desde o contratualismo de Hobbes (ALTHUSSER, 2014, p. 23-24).

Althusser alerta para um contragolpe ao anti-humanismo teórico, dizendo que

poder-se-ia pensar que tal anti-humanismo paralisaria a luta revolucionária, por

apagar a chama da indignação contra as explorações burguesas. No entanto, diz

ele, “O capital está repleto de sofrimento dos explorados, desde os horrores da

acumulação primitiva até o capitalismo triunfante, e foi escrito para sua libertação

da servidão de classe (ALTHUSSER, 1978a, p. 162)”. Ademais, “isso não só impede

Marx, mas obriga-o a, no próprio Capital – que analisa os mecanismos de sua

exploração -, fazer abstração dos indivíduos concretos e tratá-los teoricamente

como simples ‘suportes’ de relações45” (Ibid., p. 162). O humanismo que pode se

45 “A relação de produção é, como Marx diz, uma relação de distribuição: distribui os homens em

classes ao mesmo tempo que atribui os meios de produção a uma classe. As classes nascem do antagonismo desta distribuição que é ao mesmo tempo uma atribuição. Naturalmente, os indivíduos são partes interessadas, portanto ativas, nessa relação, desde que, de início, tenham interesse nela. E não é por serem partes interessadas que, como num contrato livre, se interessam por ela, mas por que se encarregam delas é que são partes interessadas. É muito importante observar por que Marx considera então os homens unicamente como ‘suportes’ de uma relação, ou ‘portadores’ de uma função no processo de produção, determinada pelo processo de produção. Isso não acontece absolutamente porque ele reduz os homens em sua vida concreta a simples portadores de funções: ele os considera como tais em função da relação de produção capitalista reduzi-los a esta simples função na infraestrutura, na produção, ou seja na exploração. Efetivamente, o homem da produção, considerado como agente da produção, o é apenas para o modo de produção capitalista, determinado como simples ‘suporte’, de relação, simples ‘portador de funções’, completamente anônimo, permutável, uma vez que pode ser jogado na rua se é operário, ou fazer fortuna ou falir se é capitalista. Em todos os casos, está submetido à lei de uma relação de produção, que é uma relação de exploração, portanto relação antagonista de classe; está submetido à lei dessa relação e seus efeitos. Se não se submete a uma ‘epoché’ teórica as determinações individuais concretas dos proletários e dos capitalistas, sua ‘liberdade’ ou sua personalidade, não se compreende nada da terrível ‘epoché’ prática à qual a relação de produção capitalista submete os indivíduos, tratando-os apenas como suportes de funções econômicas, e nada mais” (ALTHUSSER, 1978a, p. 163-164).

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exprimir em ideologia da “revolta das massas contra a exploração e a opressão”

(Ibidem), de nenhuma forma deve ser visto negativamente, haja vista a importância

da função social da ideologia, a qual Althusser destaca ao longo de sua obra.

Assim, o anti-humanismo teórico cumpre duas tarefas fundamentais: 1) a

análise científica das formações sociais, que visa compreender os modos de

produção enquanto um processo histórico movido pela luta de classes – portanto, a

partir das classes e não do homem. 2) A rejeição da ideologia humanista, que

confere aos homens status iguais, mascarando, assim, as relações de produção

(exploração) capitalistas. De modo que “Marx só pôde fundar a ciência da história

e escrever O Capital sob a condição de romper com a pretensão teórica de todo

humanismo desse gênero” (Ibid., p. 162).

No que diz respeito à sua função política – visando os efeitos políticos

(negativos) do humanismo na luta de classes –, o anti-humanismo teórico cumpre

um dever:

Nosso primeiro dever teórico, ideológico e político, digo bem político, é hoje de expulsar do domínio da filosofia marxista toda quinquilharia “Humanista” que nela se despeja abertamente. Ela é uma ofensa ao pensamento de Marx e uma injúria a todos os militantes revolucionários. Pois o humanismo na filosofia marxista não é nem mesmo uma grande forma da filosofia burguesa instalada em Marx: é um dos subprodutos mais baixos da mais vulgar ideologia religiosa moderna. Seu efeito, senão seu objetivo, é conhecido de longa data: desarmar o proletariado (ALTHUSSER, 1999, p. 44, grifos do autor).

Por fim, a questão fundamental é aquela levantada por Boito Jr. (2013, p. 51),

já exposta na seção anterior. Trata-se, afinal, da superação da “alienação política,

realizando a emancipação humana ou, diferentemente, [os socialistas] devem

organizar a classe operária para a luta contra a burguesia e pela implantação da

sociedade socialista?”. A segunda opção nos parece a mais adequada à ciência

marxista.

A ideologia do humanismo teórico é a condição fundamental para o

estabelecimento de uma outra ideologia, que é a base das relações de produção

(exploração) burguesa: a ideologia jurídica. A categoria de “sujeito” é o centro ao

qual orbitam duas engrenagens de mecanismos de funcionamento da ideologia – a

relação imaginária e o processo de interpelação. Veremos isso no capítulo a seguir.

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CAPÍTULO 4

OS MECANISMOS DE FUNCIONAMENTO DA IDEOLOGIA

4.1 Ideologia jurídica

Não é a nossa intenção expor, aqui, em sua totalidade a análise levada a

efeito por Althusser em relação ao direito no que se refere ao seu papel nas

formações sociais capitalistas. Diversos trabalhos46, aos quais nos apoiaremos para

a redação desta parte da pesquisa, já foram feitos com muito mais propriedade e

profundidade do que nos propomos a realizar, brevemente, agora. Nos limitaremos

à apresentação em linhas gerais, para focarmos naquilo que nos interessa, a

ideologia jurídica enquanto pedra angular da ideologia burguesa. Para tanto,

seguiremos o raciocínio, segundo o qual “O direito ocupa um lugar de importância

crucial na reprodução das relações sociais capitalistas e é ele que empresta à

ideologia burguesa a sua especificidade” (NAVES, 2014, p. 9).

Nos capítulos anteriores, ao abordarmos a função social da ideologia,

insistimos em seu papel de reprodução. Reproduz-se, diariamente, anualmente e

secularmente, práticas que permitem a manutenção de um modelo social e um

modo de produção específicos. Em todos os modos de produção, as relações de

produção são ditadas pela ideologia da classe dominante. No caso do modo de

produção capitalista, as relações de produção são aquelas advindas da ideologia

burguesa. Ora, isto posto, é necessário demonstrar o motivo pelo qual a ideologia

burguesa é reproduzida e a forma que garante essa reprodução.

Em Sobre a reprodução, Althusser – que, segundo Davoglio (2018, p. 206)

“nunca pretendeu oferecer uma interpretação sistemática do direito” – dedica dois

capítulos ao assunto. Esquematicamente, assim ele o define:

O Direito privado47 enuncia, sob uma forma sistemática, regras que regem as trocas mercantis, isto é, a venda e a compra – as quais repousam, em última instância, sobre o “direito de propriedade”. O

46 Thévenin (1974); Edelman (1976); Naves (2014); Davolglio (2018); e Magalhães (2018). 47 “o Direito privado (contido no Código Civil) [...] constitui a base jurídica a partir da qual os

outros setores do Direito tentam sistematizar e harmonizar suas próprias noções e suas próprias regras” (ALTHUSSER, 2008, p. 83).

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próprio direito de propriedade explicita-se a partir dos seguintes princípios gerais jurídicos: a personalidade jurídica (personalidade civil que define os indivíduos como pessoas de direito, dotadas de capacidades jurídicas definidas); a liberdade jurídica de “usar e abusar” dos bens que constituem o objeto da propriedade; e a igualdade jurídica (todos os indivíduos dotados da personalidade jurídica – no nosso Direito atual, todos os homens, exceto a “escória” excluída da igualdade jurídica48) (ALTHUSSER, 2008, p. 83, grifos do autor).

O direito é formal, na medida em que ele compõe um sistema de regras que

visa garantir a forma dos contratos de troca, e não o conteúdo que subjaz à essa

relação social49. Logo, podemos falar em uma “universalidade formal: o Direito é

válido para – e pode ser invocado por – toda pessoa juridicamente definida e

reconhecida como pessoa jurídica” (Ibid., p. 85).

Para o direito, o direito começa pela pessoa: “a personalidade jurídica do homem existe por si mesmo e independentemente da possibilidade para o ser humano considerado de formar uma vontade”. “Chama-se pessoa, na linguagem jurídica, aos seres capazes de terem direitos e obrigações. De forma mais sucinta diz-se que pessoa é todo o sujeito de direito. A ideia de personalidade, necessária para dar um suporte aos direitos e às obrigações [...] é indispensável na concepção tradicional do direito” (PLANIOL apud EDELMAN, 1976, p. 28).

Outra característica do direito é que ele é, necessariamente, repressor.

Afinal, em última instância, a garantia do cumprimento das regras do contrato reside

no fato de que quem violá-las está sujeito a sanções: “não existe Código Civil

possível sem um Código Penal que é sua realização no próprio nível do Direito”

(ALTHUSSER, 2008, p. 90).Althusser nos mostra que a repressão, ainda que seja

a garantidora do cumprimento dos contratos, nunca aparece como o motivo desse

comprometimento – “A repressão é frequentemente, como se diz, “preventiva”

48 “Por razões patológicas – doentes mentais internados automaticamente – ou por razões

penais, ou por razões ‘infrajurídicas’: as crianças, estrangeiros e, em parte, as mulheres, etc.” (ALTHUSSER, 2008, p. 83). Ainda sobre esta citação, Planiol Apud Edelman (1976, p. 28) contradiz Althusser: “Desde a abolição da escravatura que todo o ser humano é uma pessoa. Não é necessário que ele tenha plena consciência de si próprio e seja dotado de inteligência e vontade. As crianças e os loucos são pessoas ainda que não tenham vontade consciente; eles são pois titulares de direitos e de obrigações” 49 “O direito reconhece a todos os homens, sujeitos jurídicos iguais, o direito de propriedade.

Mas nenhum artigo reconhece o fato de que alguns sujeitos (os capitalistas) sejam proprietários dos meios de produção, e outros (os proletários) desprovidos de qualquer meio de produção. Esse conteúdo (as relações de produção) está, portanto, ausente do Direito que, ao mesmo tempo, o garante” (ALTHUSSER, 2008, p. 85).

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(Idem, p. 91). O que subjaz, portanto, à repressão – ou à “rara” necessidade de sua

implementação – é a ideologia jurídica, considerando que, “quando a ideologia falha

no seu objetivo, cabe à esfera repressiva da superestrutura controlar os agentes

nocivos à ordem do valor” (DAVOGLIO, 2018, p.165).

Se a imensa maioria das pessoas jurídicas respeita as cláusulas dos contratos que subscreveram, é, com efeito, sem a intervenção nem tampouco a ameaça preventiva do Aparelho repressor de Estado especializado: é porque elas estão “impregnadas” de “honestidade” da ideologia jurídica que se inscreve em seu comportamento de respeito pelo Direito e permite propriamente ao Direito “funcionar”, isto é, à prática jurídica “agir sozinha”, sem a ajuda da repressão ou da ameaça (ALTHUSSER, 2008, p. 92-93, grifos do autor).

Chegamos em um ponto crucial. A formalidade do direito institui regras que

são de “natureza” ideológica. Aparentemente neutras e isonômicas, as regras do

direito designam regulamentações que chancelam as relações de produção. Essas

regras, que em uma democracia são válidas para todos, se apoiam em um tripé:

[1] todo indivíduo [...] é juridicamente livre50 [...] [2] todos os indivíduos

(salvo a ’escória’, etc.) são juridicamente iguais diante de qualquer ato contratual e suas consequências [...] [3] se deve respeitar os compromissos que foram subscritos (Ibid., p. 93).

Nesse sentido, os contratos firmados são garantidos pelo direito mediante

essas regras. Um empregado que assina um contrato de trabalho, uma pessoa que

assina um contrato de locação, etc., estão todos sujeitos às mesmas regras,

[...] o qual deve estar bem sujeito e consciente, para ter uma identidade,

e poder, assim prestar contas do que deve em função de leis que está obrigado a não ignorar, sujeito que deve ter consciência das leis que o forçam (Kant), mas sem obrigá-los em consciência (ALTHUSSER, 2008, p. 84-85, grifos do autor);

Entretanto, “as regras do jogo” são respeitadas, antes de tudo, por um outro

motivo – a ideologia jurídica:

50 “[...] a liberdade é a capacidade jurídica de se pertencer a si mesmo, isto é, de ser proprietário

de si (por essência). Posso precisar: a liberdade de adquirir é a consequência jurídica da livre propriedade de si próprio” (EDELMAN, 1976, p. 29).

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Quanto à ideologia jurídica, faz um discurso aparentemente semelhante, mas de fato completamente diferente. Ela diz: os homens são livres e iguais por natureza. Na ideologia jurídica, é, portanto, a “natureza” e não o Direito que “fundamenta” a liberdade e a igualdade dos “homens” (e não das pessoas jurídicas) [...] A ideologia jurídica não diz que os homens têm obrigações por “natureza”: nesse ponto, ela tem necessidade de um pequeno suplemento, muito precisamente de um pequeno suplemento moral, o que significa que a ideologia jurídica só se mantém de pé apoiando-se na ideologia moral da “Consciência” e do “Dever” (ALTHUSSER, 2008, p. 94, grifos do autor).

“Naturalmente”, portanto, a ideologia jurídica constitui sujeitos “cientes” de

seus direitos e de seus deveres, afinal, tais direito e deveres se constituem, na

ideologia jurídica, como predicados naturais e intrínsecos aos indivíduos. Nesse

sentido, concordamos com Davoglio (2018, p. 166): “A estrita relação entre a

captura ideológica dos indivíduos e a necessidade da repressão [...] impõe a

Althusser a necessidade de encarar o momento jurídico como um ponto decisivo da

socialização”. Afinal, “Para ser estável [...] uma formação social precisa que as

funções elementares reconhecidas pela sua legislação ‘funcionem sozinhas’, sem

a necessidade da efetividade da sanção” (Ibid., p. 166).

Igualmente, a ideologia oculta seu conteúdo – tornando invisível, ainda que

materialmente presente, a verdadeira relação entre os indivíduos.

Desvelamento/ocultação. Esta é a relação entre o visível da ideologia (a aparência), o que a ideologia deixa ver e parecer reger: a liberdade, a igualdade, e o invisível da realidade das relações, este alhures: a produção, ali onde se dão as relações de produção como relação entre os que possuem os meios de produção e os os que não possuem nada além de sua força de trabalho (THÉVENIN, 2010a, p. 56, grifos da autora).

Em uma outra passagem do mesmo texto, diz Thévenin:

Essa função mistificadora da ideologia jurídica é necessária para a reprodução do modo de produção capitalista: ela mantém os indivíduos em uma representação isolada, escamoteando o processo de conjunto do capital. Reportando-se ao sujeito, ela escamoteia a classe; falando de propriedade, liberdade, igualdade, ela escamoteia a exploração e a desigualdade (Ibid., p. 68).

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Althusser utiliza a expressão “policial ausente” para designar essa

característica sui generis da ideologia jurídica – uma espécie de vigilante invisível

que naturaliza relações de origem burguesa e que reproduz, sem que haja grandes

protestos pela imensa maioria, as relações de produção capitalistas. Assim,

Althusser resume sua exposição acerca do direito:

Percebemos que, em uma certa relação precisa, a reprodução das relações de produção capitalistas é garantida, no próprio âmago do funcionamento das relações de produção capitalistas e ao mesmo tempo que esse funcionamento, pela intervenção relativamente excepcional do destacamento repressor de Estado especializado nas sanções jurídicas e, simultaneamente, pela intervenção contínua, onipresente, da ideologia jurídico-moral que a “representa” na “consciência”, isto é, o comportamento material dos agentes da produção e das trocas (ALTHUSSER, 2008, p. 191, grifos do autor).

Importante salientar que, embora a ideologia jurídica tenha maior

profundidade nos indivíduos do que o direito – isto é, maior efetividade e que, sem

a qual o direito não se realizaria –, este é fruto de práticas materiais que, em uma

concepção materialista da história, precedem a sua ideologia – ainda que esta

sobredetermine sua prática.

O direito é um conjunto de relações e práticas reais criadas na esfera da circulação mercantil com base nas quais a ideologia jurídica é erigida, que encarnam em aparelhos que funcionam dentro e fora de uma legalidade concebida a partir dessa ideologia (DAVOGLIO, 2018, p. 200).

Podemos dizer que é a ideologia jurídica que autoriza todas as outras

ideologias (burguesas). É a ideologia da liberdade, advinda do direito burguês por

intermédio da ideologia jurídica, que imprime nos indivíduos a ilusão da

subjetividade autônoma: “A ideologia jurídica formata todas as outras ideologias a

partir da forma e do conteúdo da subjetividade” (Ibid., p. 204). Os indivíduos são

levados a crer que fazem escolhas livres e, portanto, submetem-se livremente às

“escolhas” estéticas, religiosas, políticas, morais, entre outras.

Não obstante, junto ao “empoderamento” que a ideologia jurídica confere aos

indivíduos, tornando-os sujeitos (interpelando-os enquanto sujeitos) – sujeito de

direito, sujeito autônomo, enfim, sujeito livre. Junta-se a isso, não nos esqueçamos,

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como dissemos acima, o fato de que, em última instância, a ideologia jurídica é

autorizada pelo aparelho (repressivo) de Estado. Isto é, a violência jurídica, por

intermédio do “policial ausente”, se faz sempre presente, e isso, em uma dimensão

estrutural, contribui significativamente para a hegemonia da burguesia, através da

reprodução das relações de produção capitalistas.

[...] se o direito assegura o funcionamento e a eficácia material da

ideologia, pode-se dizer que, em última instância, as categorias do direito constituem o fundamento da ideologia burguesa, que a ideologia jurídica estrutura a ideologia burguesa, lhe assegura a sua permanência, que é a permanência mesma do Estado burguês. Ela mantém a legalidade das funções e dos direitos pela mesma legalidade das relações de produção entendidas como relações naturais, eternas, legalidade que é tão somente a legalidade política do poder político da classe dominante. A democracia burguesa interpela o indivíduo como sujeito (de direito), como sujeito que tem direitos, direitos de um proprietário igual a de todos os outros. É assim que o direito delimita materialmente o lugar de cada qual na sociedade, lhes dando direitos (THÉVENIN, 2010a, p. 70-71, grifos do autor).

Entretanto, não está ainda claro o “mecanismo de funcionamento” da

ideologia jurídica. Sobre isso, Edelman diz:

O que está oculto é o próprio funcionamento da ideologia jurídica. Com isto pretendo dizer que este funcionamento bastando-se a si próprio, esta suficiência é ocultação no próprio funcionamento da sua suficiência. Dito de outro modo, o funcionamento da ideologia jurídica torna “inútil” a questão do seu funcionamento. Um pouco como o Deus de Descartes, o impulso ideológico faz avançar a máquina. A um Relógio apenas se pede que indique as horas e à Justiça que seja justa. Basta ao direito dizer que o Homem tem um Poder, que este Poder protege o seu Interesse, e que a sua vontade livre é uma vontade que quer o seu Interesse para “pôr em andamento” a ideologia jurídica. A tautologia é o processo último que permite agir sobre o real sem o denunciar [...]. Veremos então animarem-se estas categorias, vê-las-emos celebrar contratos de trabalho, vê-las-emos justificar condenações por greve ilícita, vê-las-emos aplicar as regras necessárias das relações de produção. Mais não direi: apenas que tratarei de mostrar o que as anima e não animá-las. O que move as marionetes encontra-se sempre nos bastidores (EDELMAN, 1976, p. 35;37, grifos do autor).

Stuart Hall (2013, p. 175), por seu turno, expõe o problema de modo mais

abrangente:

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101

Mas a questão bem mais pertinente e difícil de saber é como a sociedade permite que a liberdade relativa das instituições civis opere no campo ideológico, dia após dia, sem a direção ou sob a imposição do Estado; e porque o “jogo livre” da sociedade civil, por um processo reprodutivo muito complexo, reconstitui consistentemente a ideologia como “uma estrutura em dominância” [...]. Mas como é que um número tão grande de jornalistas, que consultam somente sua “liberdade” de publicar e o resto que se dane, tende a reproduzir, tão espontaneamente, explicações de mundo construídas dentro de categorias ideológicas essencialmente idênticas? Como é que estas são conduzidas, continuamente, a um repertório tão limitado dentro do campo ideológico? Mesmo os jornalistas que seguem a tradição da denúncia da corrupção, frequentemente parecem se inscrever em uma ideologia à qual não aderem conscientemente e que, em vez disso, “os escreve”.

Já Sampedro (2010, p. 52), desenvolve o problema indicando sua “solução”:

Devemos salientar que esse recrutamento se faz também sob o disfarce da autonomia, de maneira que o sujeito não percebe como imposta a função-suporte. O sujeito, segundo Althusser, unicamente é livre para submeter-se livremente à ocupação do posto e do lugar que a divisão técnico-social do trabalho (máscara da divisão de classes) lhe atribui na produção, assegurando o mecanismo de reprodução das relações de produção. Deste modo, a reprodução dos processos ideológicos supõe a operação de impor dissimuladamente a reprodução da divisão em classes. A lei político-econômica que atribui ao agente de produção a sua posição no processo produtivo é reprimida e dissimulada noutras cadeias significantes que têm por efeito indicar a posição sem que o agente possa evadir-se dela. Assim se produz a identificação subjetiva como ilusão que oculta ao portador a sua posição na estrutura social. Encontramos de novo aqui os ecos da psicanálise que não abandonaram nunca o pensamento de Althusser. O que nos leva a considerar a disciplina inaugurada por Freud como possível e efetiva auxiliar no objetivo de interromper o circuito da reprodução; indispensável para a manutenção da exploração.

Parece, portanto, que o mecanismo de funcionamento da ideologia possui

duas engrenagens principais: uma engrenagem material – que subjaz no processo

de circulação. E uma engrenagem imaterial, que encontra terreno no imaginário e

compreende a psicanálise.

A primeira engrenagem sustenta-se na tese althusseriana segundo a qual “a

ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeitos”. Aqui, temos a pedra angular da

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ideologia burguesa,51 que tem sua origem no processo de circulação e da sua

garantia pelo direito:

O próprio conhecimento da ideologia remete para a produção dos efeitos que ela engendra; que a ideologia só é efectiva através do seu funcionamento, e que o conhecimento concreto do seu funcionamento é o próprio conhecimento teórico da ideologia (EDELMAN, 1976, p. 20).

Para Edelman, a interpelação está diretamente ligada ao funcionamento

prático da ideologia. Ora, se o modo de produção capitalista é o modo de produção

par excellence da classe burguesa (dominante); se a condição de sobrevivência de

todo modo de produção é a reprodução das suas condições de produção; e se

“cimento” dessas condições é a ideologia dominante, logo, um modo de produção

“só pode se reproduzir elaborando uma ideologia ‘correspondente’” (THÉVENIN, p.

54). Por conseguinte, a primeira engrenagem do mecanismo de funcionamento da

ideologia burguesa consiste na produção desta ideologia. O quadro esquemático de

Edelman (1976, p. 138-139, grifos do autor) demonstra esse argumento:

1. A ideologia burguesa idealiza (ideias puras) as determinações da propriedade (liberdade-igualdade). O que a leva a equacionar:

a) que a sociedade (= “sociedade civil” enquanto totalidade das relações sociais) manifesta, nas suas leis imanentes, a totalidade do processo social;

b) que os membros desta sociedade são livres e iguais entre eles;

c) que toda a produção é produção de um sujeito livre;

51 Essa tese, segundo Althusser, é válida para todas as ideologias: “Pretendemos dizer com isso

que a categoria de sujeito (que pode funcionar sob outras denominações: por exemplo, em Platão, a alma, Deus, etc.) – embora não apareça sob essa denominação (o sujeito) antes do advento da ideologia burguesa, sobretudo do advento da ideologia jurídica – é a categoria constitutiva de toda ideologia, seja qual for sua determinação (relativa a um domínio específico ou de classe) e seja qual for o momento histórico, uma vez que a ideologia não tem história” (ALTHUSSER, L. 2008: 283-284). De tal modo que, na ideologia burguesa, a categoria “sujeito” ganharia relevância, mas não seria exclusiva dessa ideologia. Entretanto, é necessário levar em conta a observação de Thévenin (2010a: 70): “Parece-nos que essa preposição [‘os indivíduos são sempre-já sujeitos] contém uma ambiguidade. De fato, ela pode nos levar a crer que em qualquer tempo e lugar a categoria de ‘sujeito’ é a categoria dominante da ideologia. Ora, se a ideologia não tem história, na medida em que ela é ideologia (efeito necessário de ilusão de um modo de produção), a categoria de sujeito tem uma história. Ela não existiu sempre enquanto tal. Ela nasce com a produção mercantil, e só se torna dominante, isto é, ela só intervém como interpelação ideológica privilegiada, com a produção capitalista, isto é, com o nascimento e a reprodução do trabalhador livre. Se, portanto, estamos de acordo com a análise althusseriana do funcionamento da ideologia, e de sua interpelação, o conteúdo histórico dessa interpelação precisa ser definido a cada vez”.

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d) que as leis que permitem assegurar o funcionamento desta sociedade (democracia) são as leis naturais da liberdade e da igualdade, isto é, as leis dum processo que se fecha sobre si próprio.

2. O Direito assegura as formas da circulação e fixa-a como dado natural. O que o leva a equacionar:

a) que a interpelação jurídica do indivíduo, agente da troca (— membro “sociedade civil”) constitui-o em sujeito de direito proprietário, isto é, em pessoa capaz de adquirir e de vender;

6) que a troca do equivalente entre dois sujeitos de direito é a relação jurídica fundamental;

c) que toda a produção social do homem é produção de um sujeito de direito;

d) que o Direito manifesta como compulsivas as leis “naturais “da liberdade e da igualdade, isto é, também as leis de um processo que se fecha sobre ele próprio, no funcionamento das suas categorias.

Portanto, a necessidade de circulação das mercadorias chancelada pela

legalidade do direito realiza a ideologia jurídica. Assim, a ideologia jurídica se vê

produto-refém do processo de circulação: “[...] a liberdade do sujeito é a de um

comerciante cuja única escolha é a desse vender pela melhor oferta” (THÉVENIN,

2010, p. 58).

Thévenin demonstra, analisando a obra de Edelman, que o processo de

interpelação, que é um dos pilares da ideologia burguesa, só pode existir – e,

portanto, é efeito – na medida em que existe a categoria de propriedade privada,

que, por sua vez, é a instância basilar do direito. De tal forma, a própria noção de

homem, enquanto sujeito – isto é, enquanto a noção burguesa ideologicamente

constituída de sujeito – é produzida e autorizada pelo direito: “A propriedade então

dá significado ao homem, e o homem não pode se definir, não pode existir para o

direito, a não ser como proprietário” (Ibid., p. 210, grifos da autora).

Uma coisa só existe, portanto, na medida em que ela se liga a um indivíduo como sendo sua propriedade. A realidade de uma coisa, de um produto, para o direito, só é reconhecida na medida em que eles são legalmente sancionados. Esse é o processo de constituição do real pelo direito: só há o real como propriedade, não há, portanto, realidade do sujeito, existência (real/material) do sujeito, a não ser que ela possa ser sancionada por seus atributos materiais ou imateriais. A coisa “dá significado” ao sujeito. Não há sujeito, o inefável sujeito, a liberdade em si do sujeito, tal como nos faz crer a ideologia burguesa (Ibid., p. 59, grifos da autora).

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Logo, as relações de produção capitalistas, através do processo de

circulação das mercadorias, sancionadas pelo direito, criam/produzem a ideologia

jurídica, que, por sua feita, é a base da ideologia burguesa. Noções como a de

liberdade são efeitos da relação proprietário – não-proprietário, venda-compra. Ou,

como bem resumiu a questão Davoglio, citando Edelman:

O processo geral de trocas é ao mesmo tempo econômico e ideológico – ele movimenta valores e representações: ‘o Direito, que fixa as formas de funcionamento do conjunto das relações sociais, torna eficaz, no mesmo momento, a Ideologia Jurídica’ (DAVOGLIO, 2018, p. 213).

A seguir, veremos o segundo componente – ou, como designamos, a

segunda engrenagem – que estrutura a ideologia em geral e em particular, e com

mais intensidade, a ideologia burguesa, de acordo com o pensamento de Althusser.

4.2 Imaginário

Sabemos que Althusser, ao longo de seu itinerário teórico, foi profundamente

influenciado pela psicanálise, especialmente aquela levada a cabo por Sigmund

Freud e Jacques Lacan. A importância dada a Freud é tamanha que, para Althusser,

assim como Marx desvendou o “continente” História, Freud teria, provavelmente,

desvelado outro importante “continente” do saber humano, o inconsciente: “[...] é

provável que a descoberta de Freud abra um novo continente, que apenas

começamos a explorar52” (ALTHUSSER, 1974, p. 32). Tal como Marx, por ter

descoberto um novo continente do conhecimento, Freud sofreu com a “solidão

teórica” (ALTHUSSER, 2000, p. 52). Afinal, como mostra Althusser, não havia

52 “Em todo caso, a experiência da história da teoria analítica demonstra que abstrações

objetivas, não ideológicas, mas ainda não científicas, podem e devem subsistir nesse estado, enquanto as ciências afins não tiverem atingido um ponto de maturidade que possibilite a reunificação dos ‘continentes’ científicos vizinhos. Assim como é preciso tempo para levar a cabo a luta de classes, também é preciso tempo para levar a cabo a constituição de uma ciência como ciência. Ademais, não há certeza de que a teoria analítica possa assumir a forma de uma ciência propriamente dita” (ALTHUSSER, 2019, p. 197).

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precedentes teóricos53; sendo necessário o empréstimo de conceitos já formados54.

Conceitos, portanto, “manifiestamente importados y que, en todo estado de causa,

para devenir conceptos domésticos tienen necesidad de ser profundamente

transformados” (ALTHUSSER, 1963-64, p. 7). Seria nesse “nevoeiro” teórico que

Freud se debruçaria para “nas profundezas da experiência cega, [encontrar] o peixe

abundante do inconsciente” (ALTHUSSER, 2000, p. 52).

O discurso althusseriano encontra em Marx e em Freud, ainda que em distintas proporções, evidentemente, a principal base de reflexão, os traços fundamentais de formalização, fazendo da aproximação entre Marx e Freud – no que respeita particularmente à teoria da ideologia – um eixo constante de reflexão (SAMPEDRO, 2010, p. 42).

É Freud que desperta Althusser para a importância do inconsciente para o

estudo da ideologia55. Em seu texto, Freud e Lacan, o filósofo expõe o gérmen de

uma de suas três teses acerca da ideologia, ainda que de forma enigmática: “[...] o

53 Apesar de não haver precedentes teóricos, menos ainda uma teoria psicanalítica consolidada,

“a teoria de Freud, tão isolada como uma ilha surgida no meio de um imenso oceano desconhecido, realmente explicava os fatos e ‘funcionava bem’, sem precisar se apoiar nas realidades em que se baseava, mas das quais não dependia” (ALTHUSSER, 2019, p. 196). 54 Para mostrar o momento da transformação do insumo ideológico em conceito, segue uma

longa mas ilustrativa citação de Althusser, comentando a transição do jovem Marx (ideológico) ao Marx da maturidade (científico): “Esse conceito [o de humanismo-real] efetivamente nos parece inutilizável do ponto de vista científico, não porque é abstrato, mas porque não é científico. Para pensar a realidade da sociedade, do conjunto das relações sociais, devemos efetuar um deslocamento radical, não só um deslocamento de lugar (do abstrato ao concreto), mas também um deslocamento conceitual (mudamos os conceitos de base!). Os conceitos com quais Marx pensa a realidade, para a qual apontava o humanismo-real, não fazem mais intervir uma única vez como conceitos teóricos os conceitos de homem ou de humanismo, mas outros conceitos completamente novos – os de modo de produção, de forças produtivas, de relações de produção, de superestrutura, de ideologia, etc. Eis o paradoxo: o conceito prático que nos indicava o lugar do deslocamento foi exaurido no próprio deslocamento, o conceito que nos indicava o lugar da investigação está doravante ausente da própria investigação. Está aí um fenômeno característico de tais transições-cortes que constituem o advento de uma nova problemática. Em certos momentos da história das ideias, vemos aparecer conceitos práticos, cuja característica é serem interiormente desequilibrados. Por um lado, eles pertencem ao antigo universo ideológico que lhes serve de referência ‘teórica’ (humanismo); mas, pelo outro, referem-se a um novo domínio, indicando o deslocamento a efetuar para lá chegar. Pelo seu primeiro lado, eles conservam um sentido ‘teórico’ (o de seu universo de referência); pelo seu segundo lado, eles têm apenas um sentido de sinal prático, indicando uma direção e um lugar, mas sem dar o seu conceito adequado. Permanecemos ainda no domínio da ideologia anterior: aproximamo-nos de sua fronteira e uma placa nos assinala um além, uma direção e um lugar. ‘Atravessem a fronteira e avancem na direção da sociedade, aí encontrarão o real.’ A placa ainda está fincada no domínio ideológico, seu texto está redigido em sua língua, mesmo que empregue palavras ‘novas’, a própria recusa da ideologia está escrita em língua ideológica, como se vê de maneira tão impressionante em Feuerbach: o ‘concreto’, o ‘real’, eis os nomes que têm na ideologia a própria oposição à ideologia” (ALTHUSSER, 2015b, p. 204-205, grifos do autor). 55 “A concepção freudiana do inconsciente cumpre, com efeito, o papel de marco fundamental

para a elaboração althusseriana do conceito de ideologia” (GILLOT, 2018, p.75).

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106

sujeito humano é descentrado, constituído por uma estrutura que também tem um

“centro apenas no desconhecimento imaginário do ‘eu’, ou seja, nas formações

ideológicas em que ele se ‘reconhece’” (ALTHUSSER, 2000, p. 71). Por

conseguinte, é o “desconhecimento imaginário”, a “estrutura desconhecimento, que

interessa, em primeiro lugar, a qualquer pesquisa sobre a ideologia” (Idem). Mais

tarde, em 1966, - lembrando que Freud e Lacan é de dezembro/janeiro de

1964/1965 -, Althusser dirá, no texto Prática teórica e luta ideológica (2005, p. 57) –

apresentado no Capítulo 1 – que “o desconhecimento social e objetivo do real é o

objeto da ideologia”. Segundo o autor,

Com efeito, quando Freud edificou sua teoria do inconsciente, tocou em um ponto extremamente sensível da ideologia filosófica, psicológica e moral, pondo em questão, através do descobrimento do inconsciente e de seus efeitos, uma certa ideia natural, espontânea do homem como sujeito, cuja unidade está assegurada ou coroada pela consciência (ALTHUSSER, L. 2000, p. 83, grifos do autor).

A “consciência”, nesse caso, é a consciência ideológica, aquela que realiza

a identidade, o “sujeito-de-direito” – abordado na seção anterior.Também, é ela que

assegura o cumprimento da lei por um sujeito que é consciente de seu deveres e

direitos. No entanto, nos lembra Althusser: “Regra fundamental do materialismo:

não julgar o ser por sua consciência de si!” (Ibid., p. 84, grifos do autor). Com efeito,

“o homem tem um corpo e um cérebro e, quando pensa, não sabe o que aconteceu

em seu corpo, nem em seu cérebro” (ALTHUSSER, 2019, p. 191, grifos do autor).

A consciência, então, confere ao sujeito a ilusão de que a experiência “real”,

concreta, já está dada, sem filtros: “[...] ao não perceber a ideologia, [o sujeito]

considera a sua percepção das coisas e do mundo como se fosse a das ‘coisas

mesmas’” (SAMPEDRO, 2010, p. 42). Sampedro, ademais, nos lembra que a

ideologia se forma em um compromisso do real com o imaginário, uma vez que a

relação entre o real e o ideal é insuficientemente distinta. Desta forma, “o real vem

sobredeterminado pelo imaginário” (idem). Subverte-se, com isso, a centralidade do

“eu consciente” como sujeito-dono-de-si:

[...] a consciência ou o ego é o lugar do imaginário, lugar de identificações alienantes, o que nada tem a ver com a concepção clássica, que a situa como uma estrutura central do sujeito, dotado de

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107

autonomia, autorreflexão e com uma função eminentemente sintética (CABRAL FILHO; MOTTA, 1980, p. 19).

Resta esclarecer essa “sobredeterminação pelo imaginário”. De que forma e

porquê isso acontece? Em Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado, Althusser

(2008) nos apresenta três respostas para esta questão: duas falsas e uma dele. A

primeira resposta se encontraria formulada assim: são os clérigos ou déspotas os

responsáveis pela manipulação da “verdade”, isto é, um diminuto número de

homens esconde e/ou manipulam a “verdade”, realizando, assim, a exploração e a

dominação do povo. A segunda resposta, igualmente falsa, foi elaborada por

Feuerbach e retomada pelo jovem Marx. De acordo com ela, “os homens formam

uma representação alienada (= imaginária) de suas condições de existência porque

essas condições são em sim mesmo alienantes” (MARX, 2008, p. 279). Finalmente,

a resposta de Althusser aponta para o fato de que nenhuma das explicações

precedentes atentou para a relação que é representada dos homens com suas

condições de existência:

É essa relação que se encontra no centro de toda representação ideológica, portanto, imaginária, do mundo real. É nessa relação que está contida a “causa” que deve explicar a deformação imaginária da representação ideológica do mundo real. Ou antes, para deixar pendente a linguagem da causalidade, é necessário propor a tese segundo a qual é a natureza imaginária dessa relação que suporta toda a deformação imaginária que se pode observar em qualquer ideologia (se esta não é vivida como a verdade). [...] em sua deformação necessariamente imaginária, toda ideologia representa não as relações de produção existentes (e as outras relações que delas derivam), mas antes de tudo a relação (imaginária) dos indivíduos com as relações de produção e com as relações delas derivadas. Portanto, na ideologia, está representado não o sistema das relações reais que governam a existência dos indivíduos, mas sim a relação imaginária desses indivíduos com as relações reais sob as quais vivem (ALTHUSSER, 2008, p. 279, grifos do autor).

Essas respostas, bem como a tese de Althusser, já foram apresentadas no

Capítulo 1. Como a intenção daquele capítulo foi apresentar acriticamente as teses

althusserianas, as retomamos, aqui, no intuito de realizar uma análise crítica com o

amparo de comentadores. Ora, se a estrutura imaginária se apoia nessa relação,

de tal forma que se torna impeditivo ao sujeito uma apreensão não-ideológica de

suas condições de existência – e, portanto, “mascarando” as relações de produção

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tais como elas são –, compreende-se o porquê da importância desta tese para o

marxismo:

Com efeito, o que nos ensinam tanto Freud como Marx é que o sujeito só se constitui como conjunto de relações, do qual ele não é a origem. Resulta, pois, necessária a articulação do discurso marxista como ciência das formações sociais, e o psicanalítico, enquanto ciência do inconsciente, a fim de dar conta do modo de proceder ideológico. Tal articulação revela-se especialmente pertinente na hora de definir o lugar imaginário – não real – do sujeito como suporte das relações sociais, uma vez que fica estabelecida uma dupla determinação sobre o indivíduo: a das relações produtivas, e a do inconsciente – a da “outra cena”, como dizia Freud. Do que se trata em suma, para Althusser – cremos nós -, é de considerar a psicanálise como disciplina dirigida a dar conta das formas a priori (se nos está permitido usar o jargão kantiano) nas quais o motor e a gênese da ideologia se insere). [...] os mecanismos inconscientes não são condição determinante da ideologia em última instância. O conhecimento da estrutura geral onde se geram esses efeitos depende do trabalho do materialismo histórico (SAMPEDRO, 2010, p. 45).

Importante notar a correlação dialética e necessária entre o materialismo

histórico e a psicanálise56. Conforme Carvalho (2017, s/p.), “faltaria à psicanálise,

segundo Althusser, a teoria geral da qual ela seria uma teoria regional”. Logo, não

podemos assimilar corretamente a psicanálise sem seu vínculo com a ciência

marxista. Ou nas palavras do editor da edição de Freud a Lacan, “[...] nenhuma

teoria da psicanálise pode ser produzida sem baseá-la no materialismo histórico”

NOTA DO EDITOR, 2008, p. 104). No entanto, faz-se necessário, para a

consolidação da psicanálise enquanto ciência, uma revolução teórica, tal qual

aquela operada por Marx em seu período de maturidade e continuada por Lenin,

Rosa Luxemburgo, Gramsci, Mao-Tsé-tung, entre outros.

Se uma ciência quiser preservar sua independência e simplesmente perdurar, precisa aceitar viver, às vezes, muito tempo, e talvez indefinitivamente, na solidão de suas próprias abstrações definidas, sem querer confundi-las com as abstrações das outras ciências (ALTHUSSER, L. 2019, p. 200).

56 “Também nisso a prática analítica se aproxima da prática revolucionária, com a diferença de

que, evidentemente, o objeto de ambas não é o mesmo, pois a primeira transforma somente o dispositivo do inconsciente de um indivíduo, enquanto a outra transforma a estrutura de classes de uma sociedade” (ALTHUSSER, 2019, p. 200).

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De Lacan, Althusser se apropria57, além da leitura sintomal de Freud, da

concepção de sujeito, modificando-a e ressignificado-a. Motta (2014, p. 81),

apoiando-se em Emílio de Ípola, afirma a “clara influência lacaniana, em particular

no texto O estádio do espelho como formado da função do eu”. O conceito de

“estádio do espelho”, por sua feita, explica Lacan, é “[...] uma identificação, no

sentido pleno que a análise dá a esse termo, ou seja, a transformação produzida no

sujeito quando ele assume uma imagem ” (LACAN, 1999, p. 98, grifos do autor). O

assujeitamento, portanto, é a aceitação de uma estrutura simbólica que é desde

sempre atribuída aos indivíduos; “[...] da Ordem humana, da norma humana (as

normas dos ritmos temporais da alimentação, da higiene, dos comportamentos, das

atitudes concretas do reconhecimento) [...]” (ALTHUSSER, 2000, p. 65). Assim, “o

sujeito é determinado pelos significantes do Outro58. A identidade – que é imaginária

– do eu vem do outro; mas o sujeito é sem identidade” (QUINET, 2012, p. 11).

Os indivíduos vivem uma relação imaginária com suas condições reais de

existência, – “relação que mais exprime uma vontade (conservadora, conformista,

reformista ou revolucionária)” (ALTHUSSER, 2015b, p. 194) - e representam essa

relação em práticas ideológicas. Com efeito, é estabelecida uma relação intrínseca

desta tese com a tese da materialidade da ideologia, qual seja, a de que “a ideologia

é material, e não espiritual, na medida em que ela só existe sob a forma de práticas,

57 “A esse esforço teórico, durante longos anos solitário, intransigente e lúcido de J. Lacan, é

que devemos, hoje, esse resultado que subverte nossa leitura de Freud. Numa época em que o legado radicalmente original de J. Lacan começa a passar para o domínio público, em que cada um pode, a seu modo, fazer uso e proveito dele, devo reconhecer nossa dívida para com uma lição de leitura exemplar [...]. Devo reconhece-la, de público, para que o ‘trabalho do alfaiate [não] desapareça na roupa’ (Marx), mesmo que seja a nossa” (ALTHUSSER, 1979, p. 14). 58 Zîzek nos apresenta uma didática explicação do conceito de “Outro” em Lacan: A ordem

simbólica, a constituição não escrita da sociedade, é a segunda natureza de todo ser falante: ela está aqui, dirigindo e controlando os meus atos; é o mar em que nado, mas permanece essencialmente impenetrável - nunca posso pô-la diante de mim e segurá-la. É como se nós, sujeitos de linguagem, falássemos e interagíssemos como fantoches, nossa fala e gestos ditados por algo sem nome que tudo impregna. [...] O grande Outro opera num nível simbólico. De que, então, se compõe a ordem simbólica? Quando falamos (ou quando ouvimos), nunca interagimos simplesmente com outros; nossa atividade de fala é fundada em nossa aceitação e dependência de uma complexa rede de regras e outros tipos de pressupostos. Primeiro há as regras da gramática, que tenho de dominar de maneira cega e espontânea: se eu tivesse de ter essas regras em mente o tempo todo, minha fala se desarticularia. Depois há o pano de fundo de participar do mesmo mundo/vida que permite que eu e meu parceiro na conversação compreendamos um ao outro. As regras que eu sigo estão marcadas por uma profunda divisão: há regras (e significados) que sigo cegamente, por hábito, mas das quais, se reflito, posso me tornar ao menos parcialmente consciente (como as regras gramaticais comuns); e há regras que ignoro que sigo, significados que ignoro que me perseguem (como proibições inconscientes). E há regras e significados cujo conhecimento não devo revelar que tenho – insinuações sujas ou obscenas que silenciamos para manter o decoro” (ZIZEK, 2010, p. 16-17).

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de condutas ou de disposições socialmente instituídas, de rituais provenientes,

precisamente, dos Aparelhos Ideológicos de Estado” (GILLOT, 2018, p. 95). Por

sua vez, essa tese, da relação imaginária, “funciona”, pois todos indivíduos já, e

desde sempre, encontram-se assujeitados. Ou, para usarmos a expressão de

Althusser: os indivíduos são interpelados enquanto sujeitos. O sujeito, por fim, é a

categoria que, segundo o filósofo, constitui toda a ideologia. Notemos, portanto, a

ligação orgânica e elíptica entre as teses que formam a teoria da ideologia

althusseriana. Tais teses são sobredeterminadas: sua eficácia realiza-se sobre uma

causa ausente59; não obstante, a estrutura concreta das relações de produção as

determina em última instância.

Parece-nos, entretanto, e em conformidade com Thévenin, que a tese da

interpelação vigora com veemência nas formações sociais capitalistas – é essencial

para a reprodução das relações de produção burguesas. Já a tese da ideologia

enquanto representação da relação imaginária vigora em todas as formações

sociais, pois é a condição sine qua non da apreensão do real – uma apreensão

sempre sobredeterminada pelo imaginário. É o que Sampedro chamou de “ideologia

matricial”, sendo ela

Definível como um sistema de representações que asseguram a relação dos indivíduos com as tarefas fixadas pela estrutura da totalidade social, e que constitui uma forma específica de necessidade que assegure o desempenho efetivo das tarefas prescritas pelo sistema social (SAMPEDRO, 2010, p. 44-45).

Com efeito, o mecanismo de funcionamento da ideologia, do qual fala

Althusser – no que diz respeito às relações de produção capitalistas -, reside nessa

interação das “leis” da ideologia, quais sejam: a relação imaginária e a interpelação,

sobrepostas às relações concretas entre os indivíduos.

59 Saes (2007, p. 32) assim define “causa ausente: “a ‘estrutura’ (causa) só existe concretamente

através de seus efeitos: práticas dotadas de uma certa orientação valorativa. [...] a estrutura é imanente a seus efeitos, isto é, [...] ‘toda a existência da estrutura consiste em seus efeitos’. É nesse sentido que a estrutura se configura sempre uma ‘causa ausente’”.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tentamos, nestes quatro capítulos, sintetizar aquilo que julgamos o principal

da teoria da ideologia de Althusser. Parece-nos – pautados nas análises dos

comentadores em quem nos ancoramos – que a trajetória intelectual de Althusser

se confunde, como não poderia deixar de ser, com sua trajetória política. Como um

marxista e comunista no ambiente acadêmico da filosofia. Contudo, observamos

uma coerência teórica em suas teses ao longo dos anos. Também o filósofo não

facilitou a vida de seus leitores, pois não há um único livro de sua autoria em que

suas teses sejam compiladas e plenamente desenvolvidas. Assim, é necessário o

árduo trabalho de coleta entre seus breves artigos, ensaios, conferências, notas de

pesquisa etc. Também por isso, nos últimos anos, profícuos livros, artigos, teses e

dissertações vêm sendo escritos a partir dos textos que ele nos deixou.

Althusser sempre teve uma preocupação em intervir política e

ideologicamente no debate teórico. Espantam, portanto, as acusações – como

vimos – de seus textos serem “teoricistas” ou “funcionalistas”. Ele nunca nos

entregou um sistema acabado, um grande livro teórico. A maioria de seus textos

são curtos: ensaios, artigos, notas para pesquisas, transcrições de cursos e

palestras. Essa característica, longe de ser um desleixo, ou uma “preguiça teórica”,

expressa, ao nosso ver, um estilo condizente com aquilo que acreditava: que o

marxismo é uma ciência ainda nova, em constante criação e retificação; e que seu

campo específico de atuação – a filosofia – é, sempre, e em última instância, luta

de classes na teoria. É justamente isso que Althusser nos oferece: textos

combativos, inacabados de propósito, com caminhos abertos e ao mesmo tempo

com teses rigorosas, alinhadas sempre com a ciência marxista. Como disse nosso

autor:

Para compreender e julgar estes ensaios, é preciso saber que foram concebidos, redigidos e publicados por um filósofo comunista, numa conjuntura ideológica e teórica precisa [...] são ensaios filosóficos, que têm como objeto pesquisa teóricas e como objetivo intervir na conjuntura teórico-ideológica existente, para reagir contra tendências perigosas” (ALTHUSSER, 2015a, p. 209; 212, grifos nossos).

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Esses alertas de Althusser podem – e devem – ser estendidos para todos os

seus textos, inclusive os de autocrítica. Com efeito, é a evidente constatação de que

tudo que é escrito e teorizado, em ciências humanas, pode, em última instância, ser

datado. Não obstante, com esse lembrete não se descarta o valor teórico de uma

obra, apesar de alguns de seus elementos serem compreendidos apenas na

conjuntura em que foram escritos.

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REFERÊNCIAS

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ALMEIDA, L. Um texto discretamente explosivo: Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Revista Lutas Sociais, São Paulo, ed. Louis Althusser: 50 anos depois, v.18, n. 33, 2014.

ALTHUSSER, L. [1968] A filosofia como arma da revolução. In: Marxists Internet Archive. [S. l.] 22 maio 2007. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/althusser/1968/02/filosofia.htm. Acesso em: fev. 2020.

ALTHUSSER, L. A Querela do Humanismo. Crítica Marxista, São Paulo, ed. Xamã, n. 9, 1999.

ALTHUSSER, L. A Querela do Humanismo II. In: Crítica Marxista, n.14, São Paulo: Boitempo, 2002.

ALTHUSSER, L. A Transformação da Filosofia. Seguido de Marx e Lenin perante Hegel. São Paulo: Mandacaru, 1989.

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