conto d'o cachorro

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 Ainda está escuro quando acorda e, já com fome, percebe que os outros ainda dormem. Abre os olhos e, deitado de lado, espia por alguns instantes. Acompanha o movimento de uma folha conduzida pelo vento. Ouve um pássaro. Estica então as patas e se espreguiça longamente. Recolhendo-as, vira-se sobre as costelas e começa a se levantar. Sacode a cabeça, as orelhas pendem para trás. Antigamente permaneciam erguidas, sempre alertas, mas hoje já não funcionam tão bem, o que se nota devido à necessidade de contato visual. Antes, não apenas ouvia qualquer ruído, como também  percebia o odor mais sutil, olfato poderoso que não d eixava p assar despercebidas as co isas mais saborosas que aquelas pessoas às vezes comiam. Hoje, porém, apesar de sentir na  pele as consequências dos anos, não faz uma ideia precisa das mudanças por que passou. Sabe que acordou e que está com fome. Bebe um gole d água e caminha até um canto onde há um vaso grande do qual pendem algumas folhas verdes. Não sem alguma dificuldade, levanta a pata direita traseira e se alivia da urina acumulada durante o sono. A tarefa já foi mais prazerosa. Atualmente, apesar de a sua natureza obrigá-lo a portar-se como um macho autêntico, já admite que não haja mal em urinar como as fêmeas, isto é, sem o esforço desnecessário de levantar alguma das patas. Incomoda-se, contudo, ao  perceber que assim suja toda a parte central daquele espaço em que habita, e não as extremidades, como dele se espera. Esforça-se, portanto, em continuar a levantar as patas e, no fim, sente-se feliz porque sempre há felicidade em satisfazer essas necessidades. Importante, agora, é receber o que comer. Aproxima-se então de uma janela e começa a latir. Nunca viu um galo cantar, mas, sem o saber, há muito assumiu essa função e na maioria dos dias se adianta aos despertadores. A experiência mostra ser esse o meio mais eficaz de obter o que deseja, ainda que num primeiro momento seja recebido com extremo mau humor. Na verdade, tem acordado cada vez mais cedo e por isso exige que aquelas  pessoas também o façam. Dirão palavra duras, haverá ameaças, é verdade, mas a fome, conforme lhe parece, não pode esperar. No fim, tudo se perdoa. Late, late, desespera-se. Após cinco minutos diante da janela fechada, dirige-se à porta, que não deve tardar abri r.  Não pode porém conter certa inquietação e faz questão de demonstrá-lo, raspando as unhas crescidas na porta de ferro. De repente surge aquela figura repreensiva, mas igualmente tão cara, fitando-o com severidade. Naquele ser singelo nasce então um sentimento de culpa. Abaixa a cabeça e recebe um afago entre as orelhas. Age sempre do mesmo modo, mas sempre com espontaneidade. Por mais duros que os donos possam  parecer, sempre é tomado de alegria em sua presença. Tem enfim o que comer. Mastiga uma pequena parte, contempla o resto, bebe um pouco de água e procura um tapete junto

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Obra de Henricão

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  • Ainda est escuro quando acorda e, j com fome, percebe que os outros ainda

    dormem. Abre os olhos e, deitado de lado, espia por alguns instantes. Acompanha o

    movimento de uma folha conduzida pelo vento. Ouve um pssaro. Estica ento as patas

    e se espreguia longamente. Recolhendo-as, vira-se sobre as costelas e comea a se

    levantar. Sacode a cabea, as orelhas pendem para trs. Antigamente permaneciam

    erguidas, sempre alertas, mas hoje j no funcionam to bem, o que se nota devido

    necessidade de contato visual. Antes, no apenas ouvia qualquer rudo, como tambm

    percebia o odor mais sutil, olfato poderoso que no deixava passar despercebidas as coisas

    mais saborosas que aquelas pessoas s vezes comiam. Hoje, porm, apesar de sentir na

    pele as consequncias dos anos, no faz uma ideia precisa das mudanas por que passou.

    Sabe que acordou e que est com fome. Bebe um gole dgua e caminha at um canto

    onde h um vaso grande do qual pendem algumas folhas verdes. No sem alguma

    dificuldade, levanta a pata direita traseira e se alivia da urina acumulada durante o sono.

    A tarefa j foi mais prazerosa. Atualmente, apesar de a sua natureza obrig-lo a portar-se

    como um macho autntico, j admite que no haja mal em urinar como as fmeas, isto ,

    sem o esforo desnecessrio de levantar alguma das patas. Incomoda-se, contudo, ao

    perceber que assim suja toda a parte central daquele espao em que habita, e no as

    extremidades, como dele se espera. Esfora-se, portanto, em continuar a levantar as patas

    e, no fim, sente-se feliz porque sempre h felicidade em satisfazer essas necessidades.

    Importante, agora, receber o que comer. Aproxima-se ento de uma janela e comea a

    latir. Nunca viu um galo cantar, mas, sem o saber, h muito assumiu essa funo e na

    maioria dos dias se adianta aos despertadores. A experincia mostra ser esse o meio mais

    eficaz de obter o que deseja, ainda que num primeiro momento seja recebido com extremo

    mau humor. Na verdade, tem acordado cada vez mais cedo e por isso exige que aquelas

    pessoas tambm o faam. Diro palavra duras, haver ameaas, verdade, mas a fome,

    conforme lhe parece, no pode esperar. No fim, tudo se perdoa. Late, late, desespera-se.

    Aps cinco minutos diante da janela fechada, dirige-se porta, que no deve tardar abrir.

    No pode porm conter certa inquietao e faz questo de demonstr-lo, raspando as

    unhas crescidas na porta de ferro. De repente surge aquela figura repreensiva, mas

    igualmente to cara, fitando-o com severidade. Naquele ser singelo nasce ento um

    sentimento de culpa. Abaixa a cabea e recebe um afago entre as orelhas. Age sempre do

    mesmo modo, mas sempre com espontaneidade. Por mais duros que os donos possam

    parecer, sempre tomado de alegria em sua presena. Tem enfim o que comer. Mastiga

    uma pequena parte, contempla o resto, bebe um pouco de gua e procura um tapete junto

  • quela porta, a fim de se acomodar mais confortavelmente. No tinha, alis, tanta fome.

    Sentia mais a necessidade de por fim ao isolamento que lhe imposto durante as horas

    noturnas. Ainda que aquela porta seja o mais prximo que possa chegar do interior da

    casa, o importante que esteja aberta. Adormece novamente.

    Na juventude, apesar de nunca ter sido posto prova, foi valente e agressivo.

    Acreditava espantar todos aqueles que, pela rua, inadvertidamente se aproximavam de

    seus domnios, demarcados por um porto de garagem e um outro menor, que juntos

    contavam cinco metros de largura. Pessoas grandes, pessoas pequenas, pessoas que

    enfiavam papis numa caixa presa grade do porto. Todas afugentadas. Latia por

    princpio, como se cumprisse um dever. Mal sabia que era a casa que o guardava e no o

    contrrio. Nessa poca, no obstante o porte mdio, era robusto. A pelagem, na maior

    parte amarela como o trigo, era branca na parte inferior e mais escura no focinho. Com

    patas finas e compridas, mas de musculatura bem desenvolvida, corria de um lado a outro

    do quintal, na maioria das vezes sem motivo aparente. Numa dessas ocasies, chocou-se

    contra um dos donos, que, perdendo o equilbrio, caiu, torceu o p direito e fraturou a

    extremidade de um dos ossos do tornozelo. Hoje j passa a maior parte do tempo deitado

    junto porta. Os pelos, em geral, conservaram o mesmo tom de amarelo, porm mais

    claro no focinho, onde os bigodes esto todos brancos. Os cotovelos das patas dianteiras

    esto calejados e apresentam formaes tuberculares enegrecidas. As unhas esto muito

    compridas, porque abandonada a prtica de apar-las raspando as paredes (na primeira

    casa em que viveu, parecia ter a inteno de cavar uma passagem para o terreno vizinho).

    Acalmaram-se os movimentos bruscos, cessaram as disparadas pelo corredor.

    Aumentaram, porm, as expresses sonoras, no tanto os latidos, mas uma espcie de

    fungadeira que ora exprime inquietao, ora se assemelha a uma lamria.

    Fora adotado na carrocinha, com pouco mais de duas semanas de vida. Um vira-

    lata. Parece-me que os melhores ces seriam aqueles que no pertencem a raa alguma.

    So os ces normais, por assim dizer, os ces do povo, aqueles que no se compra. Por

    outro lado, o baixo valor econmico deveria contrastar com um alto valor biolgico,

    resultado das mais variadas misturas. Tenderiam a formar espcimes mais fortes, ou

    simplesmente um animal que necessitasse apenas de comida e abrigo da chuva, sem

    maiores cuidados. Naquele co amarelo, porm, havia certa vulnerabilidade. Relevados

    os vermes da infncia, por volta dos quatro ou cinco anos passou a sofrer convulses.

    Desde ento toma diariamente um remdio para os nervos. Hoje mesmo, quando a porta

  • de ferro se abriu e apenas mordiscou a comida, havia ali um comprimido espremido e

    misturado a um molho de carne. Por vrias vezes tambm teve de tratar de uma infeco

    no ouvido, problema recorrente. Lev-lo ao veterinrio sempre foi penoso. Afinal, trata-

    se, at hoje, de um co antissocial. Nenhum estranho o tocaria impunemente, muito menos

    um que tentasse pr as mos nas suas orelhas. Tinha ento de ser imobilizado e a tarefa

    cabia ora ao menino mais velho, ora ao menino mais novo, como nos teria chamado o

    autor de Vidas Secas. O mais difcil, porm, era passar a pomada receitada pelo

    veterinrio, e por esse motivo o tratamento, em casa, raramente era fiel prescrio. Mas

    como se, ao adentrar a velhice, desenvolvesse uma certa resistncia, nunca mais houve

    preocupao nesse sentido. De resto, para os olhos remelentos, toma atualmente algumas

    gotas de uma substncia homeoptica. Quanto aos desarranjos intestinais...

    Continua a dormir junto porta. Seu pensamento vai longe. Pensamento, sim. Os

    ces pensam, disso tenho certeza. Apenas no sabem que pensam. Se soubessem, seriam

    gente, no seriam ces, pois ento teriam conscincia de si. Pensam, pois associam fatos,

    agem e esperam consequncias. Sabem at mesmo o que esperar das pessoas, mas no

    raro se equivocam. E isso acontece mais pela irracionalidade das pessoas do que por conta

    daquela que lhes atribuda. Por vezes, dentre as alternativas disponveis, claramente

    optam pela soluo mais adequada satisfao das suas necessidades, como na ocasio

    em que apoiei as extremidades de um cabo de vassoura sobre dois baldes virados com a

    boca para baixo. A ideia era que os transpusesse com um salto. Na primeira vez, arrastou-

    se por baixo; na segunda, demoliu o obstculo. Instinto, diro. Mas o instinto, por si s,

    sequer poderia explicar a busca por afeto. Se lhe negam a razo, no podem negar o

    sentimento. Muito puro, alis, porque no tm ressentimentos. A culpa que se expressa

    diante de uma repreenso poderia at mesmo revelar certa compreenso de um sistema

    de regras. Todavia, no nos interessa um ser moral. Seria errado deixa-lo ao relento. Basta

    de reflexes. Ir alm seria humaniz-lo e a humanizao de animais s se presta s fbulas

    e s metforas (ao acordar de uma noite de sonhos inquietos, achou-se metamorfoseado

    num co...). O texto no se prope a tanto. Refutar a parbola, porm, no conduz

    necessariamente a um texto naturalista. O co ali deitado ento pensa e, porque dorme,

    antes sonha: levanta-se com desenvoltura, adentra a casa, visita seus cmodos, sente seus

    cheiros. Anda pela cozinha procura do que comer. Vislumbra algo, mas, por mais que

    se esforce, no pode alcan-lo. Caminha sem sair do lugar. As pessoas vm e se vo,

    mas o co permanece. A imagem se turva. De repente, despertado pelo som das asas de

  • um pombo no quintal. Pombo branco. Raridade. To imundo quanto os outros. Faz com

    que a ave desaparea e torna a dormir. Dorme profundamente.