conto d'o cachorro
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Obra de HenricãoTRANSCRIPT
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Ainda est escuro quando acorda e, j com fome, percebe que os outros ainda
dormem. Abre os olhos e, deitado de lado, espia por alguns instantes. Acompanha o
movimento de uma folha conduzida pelo vento. Ouve um pssaro. Estica ento as patas
e se espreguia longamente. Recolhendo-as, vira-se sobre as costelas e comea a se
levantar. Sacode a cabea, as orelhas pendem para trs. Antigamente permaneciam
erguidas, sempre alertas, mas hoje j no funcionam to bem, o que se nota devido
necessidade de contato visual. Antes, no apenas ouvia qualquer rudo, como tambm
percebia o odor mais sutil, olfato poderoso que no deixava passar despercebidas as coisas
mais saborosas que aquelas pessoas s vezes comiam. Hoje, porm, apesar de sentir na
pele as consequncias dos anos, no faz uma ideia precisa das mudanas por que passou.
Sabe que acordou e que est com fome. Bebe um gole dgua e caminha at um canto
onde h um vaso grande do qual pendem algumas folhas verdes. No sem alguma
dificuldade, levanta a pata direita traseira e se alivia da urina acumulada durante o sono.
A tarefa j foi mais prazerosa. Atualmente, apesar de a sua natureza obrig-lo a portar-se
como um macho autntico, j admite que no haja mal em urinar como as fmeas, isto ,
sem o esforo desnecessrio de levantar alguma das patas. Incomoda-se, contudo, ao
perceber que assim suja toda a parte central daquele espao em que habita, e no as
extremidades, como dele se espera. Esfora-se, portanto, em continuar a levantar as patas
e, no fim, sente-se feliz porque sempre h felicidade em satisfazer essas necessidades.
Importante, agora, receber o que comer. Aproxima-se ento de uma janela e comea a
latir. Nunca viu um galo cantar, mas, sem o saber, h muito assumiu essa funo e na
maioria dos dias se adianta aos despertadores. A experincia mostra ser esse o meio mais
eficaz de obter o que deseja, ainda que num primeiro momento seja recebido com extremo
mau humor. Na verdade, tem acordado cada vez mais cedo e por isso exige que aquelas
pessoas tambm o faam. Diro palavra duras, haver ameaas, verdade, mas a fome,
conforme lhe parece, no pode esperar. No fim, tudo se perdoa. Late, late, desespera-se.
Aps cinco minutos diante da janela fechada, dirige-se porta, que no deve tardar abrir.
No pode porm conter certa inquietao e faz questo de demonstr-lo, raspando as
unhas crescidas na porta de ferro. De repente surge aquela figura repreensiva, mas
igualmente to cara, fitando-o com severidade. Naquele ser singelo nasce ento um
sentimento de culpa. Abaixa a cabea e recebe um afago entre as orelhas. Age sempre do
mesmo modo, mas sempre com espontaneidade. Por mais duros que os donos possam
parecer, sempre tomado de alegria em sua presena. Tem enfim o que comer. Mastiga
uma pequena parte, contempla o resto, bebe um pouco de gua e procura um tapete junto
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quela porta, a fim de se acomodar mais confortavelmente. No tinha, alis, tanta fome.
Sentia mais a necessidade de por fim ao isolamento que lhe imposto durante as horas
noturnas. Ainda que aquela porta seja o mais prximo que possa chegar do interior da
casa, o importante que esteja aberta. Adormece novamente.
Na juventude, apesar de nunca ter sido posto prova, foi valente e agressivo.
Acreditava espantar todos aqueles que, pela rua, inadvertidamente se aproximavam de
seus domnios, demarcados por um porto de garagem e um outro menor, que juntos
contavam cinco metros de largura. Pessoas grandes, pessoas pequenas, pessoas que
enfiavam papis numa caixa presa grade do porto. Todas afugentadas. Latia por
princpio, como se cumprisse um dever. Mal sabia que era a casa que o guardava e no o
contrrio. Nessa poca, no obstante o porte mdio, era robusto. A pelagem, na maior
parte amarela como o trigo, era branca na parte inferior e mais escura no focinho. Com
patas finas e compridas, mas de musculatura bem desenvolvida, corria de um lado a outro
do quintal, na maioria das vezes sem motivo aparente. Numa dessas ocasies, chocou-se
contra um dos donos, que, perdendo o equilbrio, caiu, torceu o p direito e fraturou a
extremidade de um dos ossos do tornozelo. Hoje j passa a maior parte do tempo deitado
junto porta. Os pelos, em geral, conservaram o mesmo tom de amarelo, porm mais
claro no focinho, onde os bigodes esto todos brancos. Os cotovelos das patas dianteiras
esto calejados e apresentam formaes tuberculares enegrecidas. As unhas esto muito
compridas, porque abandonada a prtica de apar-las raspando as paredes (na primeira
casa em que viveu, parecia ter a inteno de cavar uma passagem para o terreno vizinho).
Acalmaram-se os movimentos bruscos, cessaram as disparadas pelo corredor.
Aumentaram, porm, as expresses sonoras, no tanto os latidos, mas uma espcie de
fungadeira que ora exprime inquietao, ora se assemelha a uma lamria.
Fora adotado na carrocinha, com pouco mais de duas semanas de vida. Um vira-
lata. Parece-me que os melhores ces seriam aqueles que no pertencem a raa alguma.
So os ces normais, por assim dizer, os ces do povo, aqueles que no se compra. Por
outro lado, o baixo valor econmico deveria contrastar com um alto valor biolgico,
resultado das mais variadas misturas. Tenderiam a formar espcimes mais fortes, ou
simplesmente um animal que necessitasse apenas de comida e abrigo da chuva, sem
maiores cuidados. Naquele co amarelo, porm, havia certa vulnerabilidade. Relevados
os vermes da infncia, por volta dos quatro ou cinco anos passou a sofrer convulses.
Desde ento toma diariamente um remdio para os nervos. Hoje mesmo, quando a porta
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de ferro se abriu e apenas mordiscou a comida, havia ali um comprimido espremido e
misturado a um molho de carne. Por vrias vezes tambm teve de tratar de uma infeco
no ouvido, problema recorrente. Lev-lo ao veterinrio sempre foi penoso. Afinal, trata-
se, at hoje, de um co antissocial. Nenhum estranho o tocaria impunemente, muito menos
um que tentasse pr as mos nas suas orelhas. Tinha ento de ser imobilizado e a tarefa
cabia ora ao menino mais velho, ora ao menino mais novo, como nos teria chamado o
autor de Vidas Secas. O mais difcil, porm, era passar a pomada receitada pelo
veterinrio, e por esse motivo o tratamento, em casa, raramente era fiel prescrio. Mas
como se, ao adentrar a velhice, desenvolvesse uma certa resistncia, nunca mais houve
preocupao nesse sentido. De resto, para os olhos remelentos, toma atualmente algumas
gotas de uma substncia homeoptica. Quanto aos desarranjos intestinais...
Continua a dormir junto porta. Seu pensamento vai longe. Pensamento, sim. Os
ces pensam, disso tenho certeza. Apenas no sabem que pensam. Se soubessem, seriam
gente, no seriam ces, pois ento teriam conscincia de si. Pensam, pois associam fatos,
agem e esperam consequncias. Sabem at mesmo o que esperar das pessoas, mas no
raro se equivocam. E isso acontece mais pela irracionalidade das pessoas do que por conta
daquela que lhes atribuda. Por vezes, dentre as alternativas disponveis, claramente
optam pela soluo mais adequada satisfao das suas necessidades, como na ocasio
em que apoiei as extremidades de um cabo de vassoura sobre dois baldes virados com a
boca para baixo. A ideia era que os transpusesse com um salto. Na primeira vez, arrastou-
se por baixo; na segunda, demoliu o obstculo. Instinto, diro. Mas o instinto, por si s,
sequer poderia explicar a busca por afeto. Se lhe negam a razo, no podem negar o
sentimento. Muito puro, alis, porque no tm ressentimentos. A culpa que se expressa
diante de uma repreenso poderia at mesmo revelar certa compreenso de um sistema
de regras. Todavia, no nos interessa um ser moral. Seria errado deixa-lo ao relento. Basta
de reflexes. Ir alm seria humaniz-lo e a humanizao de animais s se presta s fbulas
e s metforas (ao acordar de uma noite de sonhos inquietos, achou-se metamorfoseado
num co...). O texto no se prope a tanto. Refutar a parbola, porm, no conduz
necessariamente a um texto naturalista. O co ali deitado ento pensa e, porque dorme,
antes sonha: levanta-se com desenvoltura, adentra a casa, visita seus cmodos, sente seus
cheiros. Anda pela cozinha procura do que comer. Vislumbra algo, mas, por mais que
se esforce, no pode alcan-lo. Caminha sem sair do lugar. As pessoas vm e se vo,
mas o co permanece. A imagem se turva. De repente, despertado pelo som das asas de
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um pombo no quintal. Pombo branco. Raridade. To imundo quanto os outros. Faz com
que a ave desaparea e torna a dormir. Dorme profundamente.