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Conto de Aruanda Prosa, Poesia e Sagrado na Umbanda Gregorio Lucio (2016)

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Conto de Aruanda

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Conto de Aruanda Prosa, Poesia e Sagrado na Umbanda

Gregorio Lucio

(2016)

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Conto de Aruanda

Prosa, Poesia e Sagrado na Umbanda

Gregorio Lucio

(2016)

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Lucio, Gregorio Fernandes

2016: Conto de Aruanda. Prosa, Poesia e Sagrado na Umbanda (livro

eletrônico / Gregorio Fernandes Lucio) –

São Paulo (SP), 2016

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS

Il.; ePUB / impresso

Umbanda – Religião – Espiritualismo - Romance

Contato pelo email:

[email protected]

Site:

www.umbandadenegoveio.blogspot.com

Capa:

Denise Beraldo

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Palavras do Autor

A intenção de escrever sobre questões do espírito é

sempre um desafio. De um lado, um campo aberto de

possibilidades e sentidos a serem devassados que é a

própria alma humana; de outro, a necessidade de ir além

dos temas e lugares comuns já tão repisados - até

cansativamente - dentro da literatura espiritualista sobre

a vida além da morte, moradas no plano espiritual, etc.

Mas, ainda assim, possuía essa necessidade. A de

expressar algumas imagens, ideias, cenas, cenários,

diálogos e impressões que com certa frequência emergem

à minha consciência, seja no dia a dia, seja durante as

experiências espirituais realizadas por meio das

vivências mediúnicas às quais me dedico, mostrando-me

um mundo novo e, ao mesmo tempo, encantado.

Espiritual, porque despido de quaisquer complexidades e

necessidade de objetos exteriores. Espiritual, porque

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 6 ]

presente em meio a natureza. Espiritual, porque cheio de

presença humana, emoção e lembrança.

E, acima de tudo, espiritual, porque repleto de símbolos

da psique e da atuação marcante da anima deste autor.

Parte dessa anima é externa, imponderável e autônoma.

Dispõe de elementos e memórias próprias e concilia-os

com aqueles que pertencem ao meu interior, trabalhando-

os inteligentemente na construção literária e, por que

não, material desta dimensão imagética, intuitiva,

dinâmica - e mesmo real - do espírito humano.

Leva consigo um nome. Clara. Uma menina de

aproximados 19 anos de idade. Sorridente. Estatura

baixa, cabelos encaracolados, presos para trás, com

simplicidade. Pele morena. Olhos pretos e arredondados.

Vestido estampado em cores claras.

É assim que se me aparece. Sempre acompanhada por um

simples senhor de meia idade que lhe parece tutelar.

Paletó claro, pele escura, barba rala e já grisalha.

Chapéu panamá. Colar com crucifixo de ouro e anel

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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brilhante na mão direita. Óculos arredondado em

armação prateada. Transmite calma em um semblante

profundo. Salvador é seu nome. Teria sido professor e

poeta nas ruas de Maceió/Alagoas, nas primeiras décadas

do século XX.

E é essa singela e encantadora menina, junto de seu

companheiro, quem vem contribuir com essa minha

jornada interior, de lançar-me por dentro de mim mesmo,

na dimensão religiosa e espiritual que se ordenam em

meu campo íntimo, e trazer para o livro parte desse

imaginário e sentimentos que tocam e pertencem ao

universo religioso da Umbanda.

São suas as memórias e emoções. São meus os símbolos e

expressão. É nossa a obra.

Espero que o amigo leitor aprecie.

O autor.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Se olhares no fundo de si mesmo,

Verás as belas imagens que brotam daí

E o que se encontra também na escuridão.

É o que de si mesmo desconhece,

A sua própria imensidão.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 9 ]

Dedicatória

À minha esposa, Denise Beraldo, essa tão agradável e

amorosíssima companheira de todos os momentos, a qual sempre

me apoiou, assim como no projeto do livro Umbanda de Nego

Véio – Compêndio de Estudos, em mais este projeto pessoal.

Gratidão pela sua compreensão e carinho.

Gregorio Lucio

São Paulo.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Índice

Para ler “Conto de Aruanda” ............................................. 12

Prólogo ................................................................................ 14

Anoitecer na Aruanda ......................................................... 20

Amor e Devoção .................................................................. 30

Preparação do Caminho ..................................................... 38

Flores Acompanhadas de Espinhos ..................................... 46

Curimba é Canto Sagrado .................................................. 56

A Estrela Que Brilha Mais Forte ........................................ 66

A Cruz, a Prece e o Rosário ................................................ 75

A Imagem de São Jorge Guerreiro ..................................... 87

Santa Bárbara, rogai por nós. ............................................ 102

O Renascer das Flores ........................................................ 109

A Coroa do Divino.............................................................. 115

Quem caminha por cima da folha... ................................... 124

Encante de Mar .................................................................. 139

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Bandeira Branca de Umbanda ........................................... 153

Samborê, Pemba de Angola ............................................... 166

O Cruzeiro do Sul .............................................................. 184

Simiromba .......................................................................... 197

“Quando eu morrer, vou passar lá na Aruanda”.............. 207

Vitória da Luz ................................................................... 226

Sagrado Coração ............................................................... 238

O Mestre Divino ................................................................ 247

Alvorada ............................................................................ 260

Palavras Finais .................................................................. 275

Conto de Aruanda e Imaginário: Lista de Músicas, Filmes e

Exposições ......................................................................... 277

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Para ler “Conto de Aruanda”

Amigo leitor e Amiga leitora, em tempo, gostaria de compartilhar uma

proposta, a fim de que você possa ter a experiência de leitura da obra

“Conto de Aruanda” enriquecida e ampliada em termos de

possibilidades de imersão no universo simbólico e imaginário que o

texto lhe trará.

Sabemos hoje que a linguagem é composta das mais variadas formas

de expressão que não somente a escrita, contemplando aquelas de

caráter verbal, assim como aqueloutras de caráter não-verbal.

Portanto, compõem manifestações da linguagem, além da fala e da

escrita, também as expressões gestuais, musicais, cinéticas,

imagéticas, entre outras.

Todos esses múltiplos níveis de linguagem tomaram parte da minha

experiência criativa ao longo do período de concepção da presente

obra que está prestes a ler. Com isso, gostaria de deixar sugestões de

músicas, filmes e exposições artísticas, cuja relação consta nas páginas

finais do livro.

Dessa forma, o amigo e a amiga poderá entrar em contato com essas

outras linguagens, enquanto dure o período de leitura da obra (ou

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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mesmo após esse) e, assim, também terá a possibilidade de

experimentar esse mesmo nível de deslocamento sensorial e mental

para outras maneiras de perceber e identificar o universo inspirador

de Conto de Aruanda.

Espero que aprecie essa vivência, assim como o livro! Não esqueça de

olhar a listagem ao final da obra antes de iniciar a leitura!

Saravá!

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Prólogo

Na Aruanda não há tempo, assim como há no mundo dos

homens. Mas era tempo de algumas décadas atrás. Na Terra, em

torno da década de 1950. E, naquele recanto de Aruanda, chovia

abundantemente. A paisagem verde e montanhosa, preenchida

por árvores, contorna e protege aquela comunidade que se estende

ao longo do vale. Outro mundo. Quase um mundo mágico.

Naquele dia, as claridades que vinham do céu encontravam-se

com as gotas suaves, formando uma aura dourada que iluminava

a atmosfera, como a purificar ainda mais aquele ambiente já tão

carregado de energias sutis e curadoras.

A figura de um ancião, negro retinto, sentado sob a entrada de um

casebre pitando seu cachimbo, olhando serenamente a água que

escorria tranquilamente pelo chão. Parecia meditar.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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-Irmão José, temos chuva aqui assim, novamente.... Essa aura

dourada...

-Sim, Caetano.

-Teremos que pensar melhor no que faremos a partir de agora....

É o sinal que aguardávamos, não é?

-Sim...

-Bem...vou avisar aos demais.

-Isso, vá avisá-los...diga-lhes que teremos novos compromissos

de agora em diante.

- Nosso Vilarejo...quem diria, não é? Irmão José?

- É, meu amigo. Há quem mais for dado...

- ... mais será pedido...

A chuva parecia enfraquecer seu ímpeto, enquanto isso a

luminosidade dourada ia se dissipando pelo ar, deixando um

aroma proveniente da mata circundante, tornando-o cada vez

mais perceptível. Era como se a Natureza já soubesse – e de fato

sabia - sobre os planos da Providência Celeste para aquele lugar

e por isso preparava-se.

Agora, anoitecia. E algumas lamparinas iluminavam o conjunto

de casebres que percorriam aquela localidade. À entrada de

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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alguns deles, pequenos grupos conversavam entre si com

naturalidade. Com o passar de mais um terço de hora, mais

pessoas iam saindo de suas casas e dirigiam-se, agora, para o

centro do Vilarejo.

Silêncio absoluto. O momento soava como de grande importância

para aquela comunidade. O ancião aguardava, serenamente, a

chegada de todos para junto de si, antes de iniciar a conversa.

- Meus irmãos e amigos, peço a atenção de todos para essas

breves palavras. Hoje, recebemos o último sinal, provindo dos

Numes Celestes, com a confirmação de um novo rumo que

deveremos trilhar, diante de nosso compromisso junto a

Divindade e as Leis da Vida.

Estamos sendo convocados à tarefa de abrirmos nossas portas

para recebermos um contingente maior do que estávamos

habituados, os quais passarão ao nosso cuidado, advindos das

mais diversas regiões das zonas sombrias situadas nos campos

inóspitos de purgação. É tempo de renovação, em que muitos

receberão novas oportunidades de tratamento e ensejo de

despertar.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Em adição a esta tarefa que prenuncia modificações e necessidade

de darmos novas diretrizes para os destinos de nossa comunidade,

em cujas atividades passaremos a aplicar esforço e cuidados

redobrados, também estamos sendo requisitados a cumprir uma

tarefa em especial.

Conhecemos, no plano terrestre, um campo de cultura religiosa

que vêm se tornando cada vez mais popular, envolvendo um

corpo crescente de fiéis e que possuirá papel importante na

condução dos caminhos espirituais de muitos irmãos encarnados.

Nossa querida Umbanda vem promovendo uma reforma nos

níveis e estruturas espirituais estabelecidas na dimensão astral

onde a sociedade brasileira alberga-se e cumpre-nos a

responsabilidade de prestarmos auxílio aos irmãos especialmente

ligados a este caminho espiritual.

Abriremos nossas portas para os irmãos que têm feito sua

passagem para o lado de cá, identificados com as crenças e

experiências espirituais situadas neste círculo religioso. Nossos

irmãos umbandistas, não somente aqueles seus trabalhadores,

mas todos aqueles que tenham seu sentimento de fé ligado a esta

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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religião em questão, passarão a ter aqui um lugar de amparo e

destinação para onde se dirigir após a sua desencarnação.

Estaremos, para eles, como uma “escola”, um “hospital” e uma

“sociedade”, nos quais prosseguirão sua jornada, a partir do ponto

em que se encontrarem, cada um em sua singularidade, conquanto

sempre respeitadas as Leis que regem a realidade da vida no

mundo espiritual.

Certamente, a Umbanda não lhes renderá, por si mesma, uma

condição de mérito ou de distinção aqui. Tão pouco, não serão

seus títulos, nomes, posses ou símbolos de qualquer natureza que

possam ter tido ou desfrutado enquanto na Terra, que os fará

livres das consequências e dos resgates naturais a que, porventura,

venham a obrigar-se por meio das escolhas e hábitos que tenham

construído em suas vidas.

Conforme já de há muito temos observado nas experiências

humanas em todos os tempos, certamente, raros serão os que irão

aportar aqui coroados de luz e consciência íntegra. Ao contrário,

lidaremos com os muitos que têm deixado a vida terrena chagados

e inconscientes, por ainda não entenderem as lições de grande

valor que a Sagrada Umbanda os têm a oferecer.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Contudo, não esteja o julgamento e a crítica gratuita em nossas

mentes e corações ao nos depararmos com estes novos irmãos.

Sejam nossas palavras para elevar a todos, agradecendo a

oportunidade que a Providência Divina nos concede para

prosseguirmos nas experiências de redenção de nós mesmos,

enquanto aguardamos, também nós, o momento de retomarmos

as experiências na Terra, da qual talvez também saiamos

necessitados de ajuda e socorro.

Oremos essa noite. Amanheçamos renovados em nossas forças,

rogando a Nosso Senhor que estejamos preparados para os novos

labores que nos aguardam.

Fiquemos todos com a Paz de Deus.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Anoitecer na Aruanda

“Vira-te um dia para o Céu e clama

Para que a Glória que o Azul expressa

Possa também estar em ti,

Para limpar-te do mal pensar,

E, com isso, poderes, tu também,

Espelhar a Luz que repleta

Todo esse Vilarejo”.

Não foi fácil, para mim, ter conhecido tão bela paragem.

Após muitos anos de espera, via-me ali, sem nem mesmo dar

conta do quão esplendoroso era poder tomar lugar, mesmo

que brevemente, em um vilarejo tão calmo, onde a sensação

de paz e completude refaziam em meu coração as esperanças

de recomeço a que ainda irei de lançar-me.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Montanhas imponentes, verdejantes e pródigas em vegetação

de variadas espécies, embelezam sobremaneira este lugar, o

qual estas circundam, dando não só testemunho das

maravilhas que Deus Pai pode conceber, quanto formam as

delimitações territoriais deste local de convivência fraterna e

refazimento. Isso porque “lá fora”, além destes limites,

sabemos que há um mundo inóspito e desconhecido,

perdendo-se ao derredor e cujo trânsito só se realiza por

poucos irmãos daqui tamanha é a dificuldade de tal intento.

Lembro que estamos ainda bem próximos da “dimensão-

Terra”, e as construções naturais que configuram o espaço

daqui, são proporcionais, e ainda mais extensas, do que as

conhecidas no plano físico. Isso porque, conforme já

sabemos, “neste lado” estão as bases de tudo o que se cria e

se manifesta no mundo corpóreo, físico. Por isso, as excursões

por estes ambientes exigem perícia e conhecimento (e

permissão, é claro), além de uma certa dose de coragem, para

nos permitirmos andar “por aí”.

Em realidade, a grande maioria de nós que ali nos

encontrávamos na condição de “alunos e pacientes” não

sabíamos ao certo como ocorrera nosso “transporte” para lá.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Sendo mais sincera, pouco nos lembramos também do

instante anterior ao “sono” ao qual nos entregamos quando

ainda nos encontrávamos entre os encarnados. Sabemos, tão

somente que, alguns mais outros menos, demoramos relativo

tempo até darmos conta de onde nos encontrávamos e qual

era a nossa real situação.

Mas, não pretendo adentrar, pelo menos por agora, em

detalhes quanto a minha última experiência no corpo físico,

tão pouco tecer detalhes em relação a personalidade que

carreguei na anterior romagem terrena. Deste lado, junto ao

sr. Salvador, nossa intenção será a de trabalhar o imaginário,

a afetividade, as memórias, a simbologia e a poesia que existe

nessa Aruanda Maior. Tudo isso permeado, é claro, pelas

nossas experiências “do lado de cá” ...

Mas então, eu olho, maravilhada, esse vilarejo.

E ouço, enquanto olho este céu que se vai recamando de

estrelas, as cantilenas entoadas pelo povoado humilde que se

reúne em volta de pequena fogueira, acesa ao centro do

vilarejo, trazendo em seus braços os frutos de um dia de labor.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Flores e frutos dos mais diversos tipos. Pães, farelos, caldos,

sucos, e temperos com sabores e aromas desconhecidos por

mim. Artesanatos, instrumentos para diversos fins, cestos,

tigelas, vasos, picuás, vestimentas, mantas. Remédios. Há

uma rocha de formato peculiar, localizada próximo a humilde

fogueira. Tudo isso é depositado em seu redor, lado a lado, de

maneira harmoniosa, em grandes cestos, vasilhames e

alguidares, que parecem ter sido confeccionados com folhas

espessas, alguns, outros em argila, e ainda outros em algum

tipo de pedra nobre com um brilho intenso.

Todo trabalho e seu resultado é compartilhado e integrado,

com respeito e carinho, ao grupo social.

Ouço mais sons, percutindo de direções variadas. Vozes,

graves e agudas, compunham uma melodia e somavam-se ao

tamborilar que parecia vir com o vento...vento de brisa mansa

e fresca que nos tocava as mãos e os dedos. Então eu me

lembro: Meu Senhor! Eu estou viva!

O que e como isso acontecera, ainda não sabia bem. Mas sabia

- e sentia - que os rostos e olhares amigos destes seres

respeitáveis e bondosos que via ali diante de mim, embora não

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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os reconhecesse como sendo parte de minhas lembranças

afetivas, davam-me ânimo e inspiravam-me confiança e

tranquilidade para prosseguir serena. Então, rendi graças e

entreguei-me a pensar no Senhor da Vida, elevando minhas

preces e agradecimentos.

A quantidade de habitantes do vilarejo ao nosso redor

aumenta, em pouco tempo. Agora, estávamos todos ali, no

centro do povoado, sem algazarra. Sem essas expressões

exageradas e bulhentas que nós na Terra, na vida corpórea,

aprendemos a cultivar como sendo demonstrações

perturbadas de uma suposta alegria. Fomos todos ajuntando-

nos, conversando em tom moderado e jovial, acomodando-

nos em torno de pequenas chamas que passaram a ser acesas

ao longo de todo o caminho que interligava, fazendo-se via

principal, aqueles pequenos e humildes casebres, construções

singelas, embora de requintada beleza, os quais serviam de

morada para aqueles corações amorosos. Percorria, este

contínuo de luz, quase uma linha reta, e terminava à beira de

um riacho, deixando mais ou menos iluminada, mas possível

de se ver, a sua pequena margem.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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A confraternização que ali ocorria, era para mim belíssima,

porque destituída de toda e qualquer formalidade banal. Mãos

dadas, abraços afetuosos, conversações felizes, cantigas

populares que faziam menção à Divindade, louvando a Vida

e agradecendo aos ancestrais de toda a Humanidade. Um

“rito” social sutil, espontâneo e simples...

Simplicidade. Essa é a alma da beleza.

Quando o luar alvinitente e radioso já tomava conta do céu

estrelado e as cantigas, os louvores e os risos das crianças nos

conduziam a quase um êxtase indizível, eis que,

discretamente, pequeno ancião, destaca-se de um pequeno

grupo localizado mais distante, próximo às margens

iluminadas do riacho, caminhando calmamente em direção ao

núcleo da confraternização, estampando um sorriso bondoso

e paternal. De aspecto simples e traços característicos do

homem que vive pelo emprego das próprias mãos na terra que

cultiva. Pele escura, semblante marcado pelos anos de intenso

trabalho, possivelmente desde a sua última jornada “na

matéria”. Aproxima-se tranquilamente daquela “rocha

peculiar”, de formato esférico, que se localizava próximo aos

alimentos e demais “ofertas” ali depositadas. Senta-se

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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naquela pedra, como se, curiosamente, ela tivesse sido feita

por suas próprias mãos, a fim de servir-lhe de “cadeira”.

Ato contínuo, lança um olhar para os presentes. Mesmo de

longe, podia-se notar a profundidade e a luz que estava nele

contida. Todos reconheceram o momento e puseram-se,

gradativamente, em silêncio respeitoso, dando ensejo a que

aquele pequeno ancião pudesse trazer algumas poucas

palavras, em um discurso que jamais me esquecerei.

Passando a vista, vagarosamente, em seu redor, parecia

penetrar no coração de todos nós ali presentes, auscultando-

nos, identificando sentimentos, expectativas, dificuldades,

incertezas e esperanças.

Por fim, fita também, particularmente, a nós, que por

acréscimo de misericórdia ali nos encontrávamos e, então,

palavras saem de seus lábios, em voz firme que faz ouvir-se

ao longe:

- “Filhos Amados. Irmãos perante a Vida. Mais uma vez nos

encontramos aqui reunidos, como é de nosso costume e

preferência, sob a luz deste Luar que nos faz recordar a

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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grandiosidade da existência, à qual estamos vinculados.

Rendamos graças ao Bom Senhor-Deus, por mais este dia.

Rumamos, todos nós, para o encontro com a Felicidade, em

suas expressões mais abrangentes, quantas possam haver, por

ação da Lei que nos direciona ao encontro e identificação com

Deus. Se há alguma fatalidade real em nosso existir, se há

alguma razão, embora ainda não totalmente conhecida por

nós, para o nosso viver, em última análise, veremos que é a

de descobrirmos e encontrarmos o nosso “Caminho de Volta

a Deus”.

Tudo é oportunidade de renovação. Tudo se converte em

meios para aprendizados. Mesmo a dor e o sofrimento

tornam-se professores habilidosos, diante dos mecanismos

das Leis da Vida, com a finalidade de nos educar para o Bem-

Viver.

Alegrias, felicidades, satisfações, dores, sofrimentos,

angústias, ansiedades, tristezas, medos, amores. Tudo é

experiência para nos tornarmos conscientes a respeito de

quem somos, como somos e o que poderemos “vir-a-ser”.

.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Buscamos aqui, neste vilarejo, praticar as lições do Bem-

Viver. A disciplina interior, a qual obedecemos todos os dias,

é constituída de diretrizes que nos permitem viver aqui e

sustentarmos essas paisagens de riqueza e ternura que emana

deste ambiente.

Todos os que aqui aportam, por ordem e permissão dos

Numes Celestes que vigiam e guardam esse nosso Lar

Bendito, devem também inteirar-se dessa Educação a

benefício, principalmente, de si mesmos. Os princípios são

simples e, aos poucos, pelo incentivo e pelas ocasiões que a

convivência irá propiciar, poderão ser integrados e

assimilados pelo entendimento e pelo coração de cada um de

nós que nos encontramos seja na condição de aprendiz ou de

professor, uma vez que necessitados de reabilitação e de

crescimento, todos estamos. Inicialmente, somente lembrarei

destes quatro pequenos versos:

Ao despertar, agradecer.

Ao trabalhar, agradecer.

Ao repousar, agradecer.

Ao orar, agradecer.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Como podem ver, a Gratidão aqui é a base que nos sustenta

em nossos objetivos de aprendizado e de cura. O sentimento

e a prática da gratidão são os princípios que emanam de

nossos pensamentos e alimentam todo esse local. Meditemos

todos e mantenhamos em nossas recordações os nossos

propósitos de amadurecimento e libertação de nossos males

interiores.

Daqui a pouco, iremos repousar para nos prepararmos para o

dia de amanhã, então levemos a gratidão pelo dia que se

encerra, conservando a alegria serena desse nosso encontro.

Estejamos todos em paz”.

E, rogando em prece, fez com que sentíssemos o abraço de

um Anjo a nos envolver a todos, tocando-nos, por breves

instantes, e clareando os mais profundos anseios dos nossos

corações, levando-nos, alguns, às lágrimas, pelo desejo de

estar em Paz.

E a noite se ia, com aquele brilho fascinante e indescritível do

Luar e dos Céus Estrelados, acompanhados pelas sonoridades

naturais do cândido e singelo Vilarejo.

Page 30: Conto de Aruanda_livro

Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 30 ]

Amor e Devoção

“Caem das lindas madeixas escuras,

Que te embelezam a fronte,

Brilhos de Estrelas Pequeninas.

Ainda eras menina,

Quando entrastes neste mundo de quimeras

E conhecestes estes encantos”.

Rio de flores ornamenta determinadas épocas do ano aqui.

Sim, é um rio de flores. Árvores floridas que compõem os

sopés de montanhas próximas ao nosso Vilarejo derramam,

sazonalmente, flores perfumadas e de coloração sutil sobre as

águas límpidas desse riacho que alimenta e enriquece de paz

esse recanto.

Page 31: Conto de Aruanda_livro

Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 31 ]

Geralmente, é no entardecer que as flores começam a aparecer

nas águas, porquanto o vento leve se encarrega de ir

derrubando-as, cada vez mais, até que ao passar de hora

inteira estas aparecem completando o riacho de uma margem

à outra.

Espetáculo lindo. Belíssimo.

Quando, nestas tardes de clima ameno, avisto essas flores

banhadas pela água límpida que espelha o pensamento e o

coração desse povo que aqui vive, lembro-me do rosto de

minha mãezinha. Queria tanto que ela estivesse aqui. Eu seria

ainda mais feliz. Mas, já me fizeram compreender que nosso

encontro ainda não irá ser possível. Uma das lições que

aprendo aqui é sobre o tempo. O tempo como remédio, como

terapia e método de educação.

Saber aguardar serenamente para realizar alguma tarefa, para

pedir uma ajuda, para ajudar, para começar algo, para

terminar, para conversar, para encontrar alguém, para orar,

para obter respostas...aqui o tempo deve ser aprendido e

compreendido como elemento que determina os nossos dias,

naquilo que nos é dado saber ou fazer. Tenho, com isso,

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 32 ]

conquistado o benefício de aprender a comandar meus

impulsos e ansiedades, estruturando pensamentos de maneira

clara. Algo que, em geral, nossa cabeça inquieta não nos

permite fazer com tanta facilidade...

As flores passavam e lembravam, cada uma delas, as orações

a Nossa Senhora que eu havia aprendido na infância e

carregava comigo, em meus hábitos cotidianos, nas vezes que

precisava fechar-me comigo mesma, refletindo e procurando

encontrar respostas. Percebi-me balbuciando Ave-Marias,

enquanto fitava o cortejo florido que descia pelas águas.

Sentada à margem do riacho, via que moradores do povoado

colhiam as flores, retirando-as aos punhados, depositando-as

em vasilhames. Soube que estas flores, retiradas das águas,

eram utilizadas para lavar as cabeças dos que chegavam,

como nós, para pousar por aqui, assim como para limpar os

corpos daqueles que vinham enfermos, tratando ferimentos,

cicatrizando feridas, além de vitalizá-los, recobrando as

energias e propiciando o seu “despertar” deste lado.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 33 ]

A própria Natureza fornece o remédio paras os enfermos. E

todos nós que estamos aqui somos agraciados por esse Lar

Bendito, por essa Morada Sagrada.

Em celebração a essa vida de bênçãos que aqui desfrutamos,

festejamos e adoramos as forças da Divindade, pelas graças

que recebemos e pela lucidez com que podemos nos perceber,

por influência desse ambiente de refazimento e reflexão.

Participo, também eu, destes festejos.

Reunimo-nos em um grupo de mais de quarenta pessoas.

Compunha essa pequena caravana, além dos moradores do

vilarejo, outros na mesma condição que a minha. Éramos

liderados por um grupo de cinco anciões. Todos trajados com

roupas simples, de tonalidades variadas, simbolizando

principalmente nos semblantes e no modo de se comportar

qual era a importância e a sacralidade daquele momento. Um

dos anciões parecia carregar um pequeno rosário feito com

sementes. Na ponta desse rosário, uma pedra brilhante de cor

azulada. Rapidamente, pude perceber que seria ele quem iria

nos conduzir nessa experiência.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 34 ]

Ao atravessarmos a margem do riacho, seguimos pequena

trilha que nos levaria a uma adorável paisagem. É entardecer

ainda. Aqui, assim como o amanhecer, ele demora tempo

superior ao da Terra. Preparávamo-nos para esse ato de

comunhão e agradecimento.

As flores, parte daquelas mesmas colhidas das águas, frutos e

outros objetos reluzentes que não tenho como descrever, são

levados, por alguns dos anciões, próximo de pequenas quedas

d’água, presentes na clareira onde nos encontrávamos. Podia

contar dezenas delas. Olhava para o Céu e via que uma

claridade intensa reluzia por todo o ambiente, enquanto

pequeninas libélulas e borboletas de cores azuláceas,

amarelas e avermelhadas dançavam no ar. Ao longe, cantos

de pássaros. Pequenos insetos de brilho distinto, rodeavam o

nosso grupo. Pareciam vagalumes, no entanto, muito menores

e com brilhos de coloração variada.

Formamos uma roda. As ofertas foram entregues ao lado das

quedas d’água, na parte em que estas escorriam pelas pedras.

O líder dos anciões passou então a comandar aquele rito,

pedindo que fechássemos os olhos, por breves instantes, e nos

lembrássemos daqueles que tínhamos mais saudades. Logo, o

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 35 ]

rosto de minha mãe surgiu em minha memória e algumas

lágrimas discretas rolaram de meus olhos.

O ancião mantinha-nos ligados a lembrança de alguém que

nos era caro ao coração e nos conduzia a pensar no resgate a

que deveríamos nos entregar pelo amor à Vida, em retribuição

e agradecimento por termos podido desfrutar de uma vida, ou

parte dela, ao lado de seres que tanto amamos.

Essa reflexão mexia fundo em mim e em muitos dos que ali

se encontram. E o amigo orientador, repleto de sabedoria, nos

esclarecia de que era esse o Amor de renúncia e gratidão que

movimenta as ações dos Mestres da Luz, seres ascensionados

e dos Numes Celestes que sustentavam toda a criação

universal.

Aprender a amar, agradecendo a oportunidade de poder amar.

Isso e nada mais. Amar, sem querer para si. Sem apegar-se.

Sem projetar no outro o desejo que é nosso.

Suas palavras moviam sentimentos íntimos em nós. Seguindo

o culto, fomos solicitados a realizar uma pequena dança, de

mãos dadas, em círculo, enquanto uma prece cantada era

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 36 ]

pronunciada e dirigida a Divindade e também, fazendo

memória aos nossos ancestrais.

Passei a lembrar-me de minha infância. Dos cabelos

ondulados e compridos que me caiam nos olhos. Minha mãe

sempre os afastava, carinhosamente, com os dedos,

prendendo-os de lado. Lembrei-me do rosto de meu pai, o

qual havia “perdido” ainda na juventude. Via o seu rosto

adornado pelos óculos de lentes grossas e escuras, seu terno

cinza-escuro... suas mãos estendidas como a me chamar. Via

os rostos dos meus avós. Via outras pessoas mais velhas,

outras mais novas. Destas, não me recordava, mas sentia

fortemente como se tivessem feito parte direta na minha

existência... tudo era muito intenso.

A uma ordem do sábio ancião, abrimos os olhos, e pudemos

ver um facho de luz radiosa, como um arco-íris que

contemplava um espectro de cores maior do que aquele que

havia conhecido na Terra. Belo fenômeno ocorria. Formaram-

se sobre as ofertas, uma claridade dourada que parecia se

intensificar e após poucos instantes, subia, como um raio de

sol, para os Céus, somando-se ao esplêndido arco-íris.

Sentíamos como se a própria Divindade estivesse ali,

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 37 ]

recebendo as nossas rogativas, congratulando-Se conosco.

Abençoando-nos com um toque de Paz.

Fizemos, em seguida, uma prece de agradecimento e

retornamos. Ao sair da “clareira encantada” pude ver que,

enfim, anoitecia. Já conseguia ver, na outra margem do

riacho, as chamas se acenderem, iluminando, aos poucos, o

vilarejo.

Levávamos de volta os frutos, as flores e os demais objetos

ofertados. Eles seriam utilizados para outros fins que no

momento eu desconhecia.

Mais uma vez meu coração estava cheio de esperança. Senti-

me aliviada.

Saudades de minha mãezinha. Espero que um dia eu a

reencontre.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Preparação do Caminho

“O Caminho é Preparado

Com o que oferte de si próprio.

Surge de inopino, amedronta,

Mas um dia precisamos adormecer

Para acordar na Terra,

E reiniciarmos o ciclo”.

Mamãe me levava sempre a um pequeno terreiro localizado na

cidade onde vivi. Não sei ao certo dizer quais suas “correntes” e

“firmezas”, qual a “linha”, “tradição”, qual “Umbanda” era ali

cultuada ou seguida. Confesso que sempre fui leiga a respeito.

Mas minha mãezinha gostava muito de lá e levava-me com

grande frequência, de modo que se conservaram as minhas

lembranças daquele simpático local.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Era um “terreirinho”, como eu vinha dizendo. A construção, em

formato circular, situava-se bem no centro de um terreno amplo,

o qual era rodeado por canteiros. No fundo, o portãozinho que

dava acesso à casa da “Babá”.

Chegávamos sempre lá por volta das 17h. “As giras” ocorriam

aos sábados. Mas também havia “trabalho” as quartas-feiras. Isso

sem contar em outros dias que a “Babá”, sozinha, ou com a ajuda

de alguns filhos, atendia uma ou outra pessoa necessitada que

sempre aparecia. Entretanto, nesses eu nunca vim. Minha mãe

dizia que era “fechado” para algumas pessoas da casa, além de

morarmos relativamente longe.

Posso me recordar, como se estivesse lá, do portãozinho de

entrada, baixinho, com os “ferros” encurvados formando círculos

que me lembravam uma flor. Adorava balançar-me naquele

portão... até quando mamãe via e me dava uma bronca.

Dentro do quintal, nos canteiros, havia roseiras com rosas

vermelhas, amarelas e cor-de-rosa. Um pé de arruda muito grande

beirava o muro dos fundos, ao lado do portão da casa da “Babá”.

Também adorava esfregar minhas mãos nas suas folhas, para

deixá-las perfumadas (risos). Havia também uma touceira de

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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guiné, de boldo, capim-limão. Hortelã e erva cidreira. Alecrim.

Babosa. Espadas de São Jorge. Ervas-de-cheiro, outras. Era um

“cheiro” só aquele lugar.

E tinha um pé de tomate também. O chão era de terra e às vezes

subia uma poeira que formava uma “nuvem vermelha”. Eu corria

por todo aquele espação...para mim, era enorme.

Eu fazia essa “farra” até que parecia chegar a noitinha. O pôr-do-

sol vinha e os “filhos-de-fé” do terreiro chegavam com ele.

Pessoas humildes. Donas de casa, operários, pedreiros, faxineiras,

“peões”. Residiam na região, em sua grande maioria. Também

haviam aqueles que vinham de mais longe. Tinha uma moça que

era professora. E um gerente de banco também. Um médico e um

importante comerciante local também figuravam como “filhos-

de-santo” naquele “cazuá”.

Mamãe me chamava. Portas de ferro pesadas eram abertas. Toda

a gente entrava neste pequeno Templo Sagrado. A assistência

devia reunir uma média de cinquenta pessoas. Não mais do que

isso.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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O teto do “terreirinho” era todo enfeitado de fitas coloridas. O

alto das paredes era adornado de bandeirolas, também coloridas.

O “congá” era pequeno, com as imagens dos santos. Jesus e Nossa

Senhora Aparecida ficavam ao centro. São Jorge, São Sebastião,

Iemanjá, São Lázaro, São Francisco de Assis, São Benedito, São

Jerônimo, também compunham aquele pequeno espaço,

complementado com pequenos vasos de flores e velas coloridas.

Uma vela de “sete dias” branca ficava acesa “aos pés” de Jesus.

Poucas cadeiras eram espalhadas no fundo do salão, próximo a

sua “entrada”. Não havia divisórias entre o congá e a assistência.

Tudo muito limpo, cheirando a água com alfazema. Algumas

senhoras vinham toda semana ajudar a “Babá” na limpeza e no

asseio do terreiro... Minha mãe não podia vir. Afinal, tinha que

trabalhar para sustentar quatro filhos sozinha. Por isso,

trabalhava, inclusive, aos fins de semana. Mas, sempre arrumava

um tempinho para nos levar para a “babá” benzer. Para “tomar

passe” com o Caboclo Junco Verde e aconselhar com o “seu”

Itaguaré. Pedir proteção e saúde para a Cabocla Potira. Vovô

Benedito e Mãe Rosa também “rezavam a cabeça” dela e nos

abençoavam.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Numa “gira” bonita, as pessoas batiam palmas. Nem sempre tinha

tambor. Babá puxava o canto e tinha duas moças, irmãs, que

ajudavam a cantar. Irmãs morenas, quase negras. Cantavam

afinado, com simplicidade. Com uma doçura e uma fé que a gente

não se esquecia mais. Tanto que estou falando delas aqui, agora.

Babá saudava os Orixás. Pedia proteção para a Casa e para os

filhos todos. Pedia consolo e conforto para o coração dos

sofredores e aflitos. Beijava os pés de Nossa Senhora. Imagem

ornada de fitinhas azuis e flores brancas colhidas dos canteiros lá

de fora.

Por instantes, parecia que o Céu, o Mundo da Luz, surgia no meio

de nós, aliviando a pobreza em que vivíamos, a miséria de tantos

outros, as doenças e as aflições. Quantos não estavam ali por

encontrarem-se, ricos ou pobres, vivendo situações tão

dolorosas...

.... Quando olho para o riacho e vejo aquelas flores passando,

colho uma delas. Retenho-a em minhas mãos. Cheiro-a. Mesmo

na água, o seu perfume não acaba. Tenho tantas memórias.

Nossos orientadores daqui são figuras paternais, bondosas e

muito sérias. Mas não menos joviais. Dizem-me, sempre, para

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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não procurar encontrar todas as respostas de uma só vez. Por que

conhecer a vida leva tempo. E, para entender a total dimensão da

condição em que me encontrava, levaria o seu devido momento.

Lembrava-me daquele “terreirinho”, porque vejo muitas

semelhanças entre o povo do Vilarejo com a comunidade do

cazuá da “Babá”. A simplicidade e a singeleza de ambos os locais.

A lembrança das flores e das ervas.

Das brincadeiras no quintal. Assim como vejo uma criançada

correndo para cima e para baixo por aqui... A minha mãe... a

lembrança do quanto ela ficava feliz e de como seus olhos

brilhavam, feito pérolas, quando era dia de ir no terreiro.

Ela cantava as louvarias e os “pontos” pela manhã inteira. A tarde

inteira. A noite inteira. Parecia que ficava mais forte e mais bonita

nesses dias.

É como aqui. O povoado reúne-se com frequência para cultuar e

louvar a Divindade. Isso ocorre tanto em situações coletivas,

quanto com pequenos grupos, em atividades especiais, conforme

situações que já narrei anteriormente.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Curioso notar é que chegam aqui, às centenas, enfermos de todo

o tipo. Seres que saem das matas, os quais ainda não tivera

oportunidade de conhecer, conversam, numa língua que me é

estranha, com os nossos anciões e, depois de um tempo em que

voltavam para a floresta, regressavam transportando doentes em

padiolas. Eles ficavam recolhidos por um tempo numa gruta,

entrada de cachoeira e lá são guardados e atendidos por alguns

“mestres” que aqui residem.

Nas festas de louvor, os atos de devoção envolvem orações

coletivas, breves explanações dos nossos amparadores e um rito

ofertório. Participei de um destes ritos, em que, na ocasião, eram

utilizados mais de uma dezena de vasos contendo “água das

quedas”, daquela clareira onde nosso ancião nos levou, flores e

uma espécie de lama argilosa que era extraída da nascente do

riacho.

A consagração era feita com pequenas chamas, perfumes e óleos

feitos com a seiva de determinadas plantas, os quais eram

misturados, ao final, com a água, a “lama” e as flores, enquanto

eram entoadas cantigas e pronunciadas preces de unção e

agradecimento.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Corpos espirituais disformes, feridas profundas, condições de

perturbação variadas, eram tratadas com aquele “emplasto”

fabricado nos ritos devocionais. A devoção convertia-se em

medicamento para o tratamento dos enfermos.

São cerimônias breves. São medicamentos puros e eficientes. São

frutos do amor e da devoção vividas por aqueles que creem no

Criador e que tornam produtiva a sua fé, convertendo-a em favor

do próximo.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Flores Acompanhadas de Espinhos

“As pedrinhas de Aruanda

Formam castelo no Coração

Daquele que ‘inda vivo

Cultivou amor e devoção.

Pedrinha miúda,

Como hoje lhe vejo,

Ouça o som da pedra pequena

Que atirada ao chão se pôs a rolar,

Pois não sabe, não almeja

Reconhecer que em si um Rochedo,

Construído na fé,

Um dia será”.

Sentia-me mais tranquila em relação a minha própria condição

nesta nova etapa da minha existência, vista agora como não

findada pela passagem da pulsação orgânica.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Interrogava-me, no meu íntimo, qual era a razão para permanecer

atada às recordações da minha infância e de outros episódios

marcantes da última encarnação. Lembrar-me ainda menina era

uma recorrência muito forte e intensa, surgindo de repentino, por

várias vezes, como se algo em mim procurasse repassar aqueles

fatos ocorridos no passado para que eu pudesse revê-los...e, mais

tarde, compreendi que o sentido dessa “projeção” de memória era

o de me fazer “olhar” para elas novamente, dando-lhes novos

significados. Afinal, eu já não estava mais, agora, na condição de

menina. Toda a experiência na encarnação apresentava-se para

mim como um acumulado de recursos e conteúdo para refletir e

repensar os acontecimentos que me marcaram a fundo,

principalmente os dolorosos e com os quais, na época, não pude

ou não soube como lidar.

Via-me de retorno às localidades humílimas e toscas da vila de

periferia em que residi. Os dias de fome, em que não tínhamos o

que comer; o rosto sofrido de minha mãe; a boneca feita de pano

e gravetos que minha irmã mais velha havia feito para mim; a

desencarnação abrupta e violenta de meu irmão; as lágrimas de

minha mãe; os sorrisos de minha mãe; a roseira no quintal; as

crianças com quem brincava na viela, correndo atrás da bola; as

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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cantigas da minha mãe; as rezas da “babá”; o portãozinho onde

me pendurava; o nosso terreirinho...

Quando dava por mim, horas até já haviam transcorrido. E

“acordava”, como de um sonho. Estava ali, parada, diante do

riacho no Vilarejo ou me pegava, imóvel, enquanto deveria estar

colhendo frutos e ervas nas áreas de cultivo, junto aos demais

trabalhadores. Eram segundos, breves momentos, os quais, a

princípio, traziam estas recordações. Depois, passaram a vir com

mais “volume”, mais “força”.

Os Anciões haviam me orientado que este “estado de

rememoração” em que me encontrava era natural e fazia parte

ainda do processo mais amplo de despertar de minha consciência

para a condição da vida nesta realidade onde me encontro.

Entretanto, pude saber, nas alas que haviam dentro das grutas, da

existência de irmãos em tratamento que se demoravam em ligação

com suas memórias pretéritas, entregues a um estado muito

próximo ao coma (conforme conhecido no plano físico).

Um dos Mestres destas galerias, onde íamos auxiliar nas tarefas

de limpeza e preparação dos remédios utilizados nos “primeiros-

socorros”, nos informara que ali havia irmãos que padeciam, por

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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décadas a fio, naquele estágio de letargia, trazendo perturbações

profundas, uma vez que estavam imersos em um sono profundo,

cujos sonhos eram repletos de recordações dolorosas, os quais

passam a repetir-se incessantemente... Tudo isso devido às altas

cargas de culpa e remorso que estes seres traziam consigo

decorrentes dos desatinos que experimentaram em sua última

encarnação.

Sinto por eles. Mal sabem eles que a Misericórdia da Vida é tão

grande, com a qual Deus nos envolve, que um dia, em ocasião

própria, irão despertar em um local tão belo e acolhedor como

este, onde receberão ensejo de se recuperar e iniciar seus

próximos passos no sentido da reabilitação, preparando-se para

uma nova oportunidade de habitar um corpo físico, refazendo

experiências com o intuito de corrigir e reparar seus atos que,

acreditavam, ficariam escondidos nas noites do passado.

Receberão arranjos de flores, entregues em cestinhas, como

presente e símbolo de recomeço. Serão saudados e, em seguida,

banhados com ervas medicinais para favorecer a sua

revitalização. Serão ungidos, num rito de passagem para o seu

“despertar” nesta nova condição de existência, como espíritos.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Poderão ver e sentir o calor e o amor que irradia deste recanto e

deste povoado.

E terão, assim como todos nós, facultada a possibilidade do

trabalho para a renovação interior.

Mas, a beleza das flores também é acompanhada de espinhos...

Embora a paz e o conforto que este Lar Bendito nos proporciona,

o sentimento de culpa e remorso que muitos carregam não se

esvai. A “dor” que o sofrimento causa só pode ser aliviada, no

máximo. A dor, o sofrimento, a culpa e o remorso são os espinhos

que carregamos, todos nós, cada um à sua maneira, entre as flores

que recebemos em dádiva e ensejo para a cura de nossos males

internos.

Entre a beleza e a simplicidade deste lugar radioso e divino,

carregamos as nossas necessidades de reajuste, as quais não se

perdem em nossas memórias. Ainda vivas, não adormecidas, a

conduzir-nos ao sempre oportuno arrependimento e vontade de

nos reconduzirmos ao Bem e a retidão, para nos reconciliarmos

com as Leis Divinas.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Nessa condição de existência, nos chamados Planos Espirituais,

podemos sentir tanto a felicidade como o sofrimento de maneira

intensa e quase indizível. Os que se encontram felizes, mostram-

se envoltos em raios luminíferos e multicoloridos, conforme o seu

estágio de consciência espiritual. Já, aqueles que padecem dos

espinhos do sofrimento, feridos gravemente em seu mundo

íntimo, pelo remorso e culpa, apresentam-se com expressões de

muita angústia, com a face deformada, envoltos em sombras,

como se uma “força” tenebrosa os atraísse para um abismo

inóspito e devorador...nossos Anciões já receberam irmãos em

tão grande sofrimento que haviam, lamentavelmente, perdido

inclusive a forma humana.

Obramos, incansavelmente, nas grutas junto aos Mestres para

tentarmos minorar os pesadelos e as dores destes seres adoecidos

e hebetados.

Óleos aromatizados com efeito medicamentoso, compostos de

ervas, seivas e minérios específicos, eram espargidos sobre os

seus corpos, têmporas e alto da cabeça. Flores perfumadas

envolviam seus leitos. Caldos e pomadas também eram

ministrados para os pacientes, com o intuito de nutri-los e

cicatrizar feridas.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Havia casos em que intervenções mais incisivas eram necessárias.

Processos “cirúrgicos” também eram realizados com o objetivo

de remover contrapartes energéticas de tumorações

(possivelmente as mesmas que os levaram ao desencarne)

encrustadas em seu corpo espiritual e, até mesmo, para a

desvinculação de seres espirituais em forma degenerada que se

encontravam unidos ao corpo espiritual do paciente, por conta de

processos prolongados de afinidade obsessiva, ocasionados por

viciações diversas, desordens morais e desejos inconfessos de

vingança.

Medicamentos, alimentos e oração. Essa é a parte que compete

aos “primeiros-socorros” dos irmãos sofredores, visitantes

entregues aos nossos cuidados por acréscimo de responsabilidade

e compromissos com a Bondade Eterna de Deus.

Cultivamos a matéria-prima para nosso trabalho nas

proximidades do Vilarejo. Ao atravessarmos o riacho, partimos

com um grupo grande de trabalhadores, liderado por um Mestre

de Cura, ao longo de uma trilha, traçada e de conhecimento dos

Mestres, cujo caminho levava para além das quedas d’água onde

estivéramos anteriormente.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Após uma pequena jornada por este caminho que, apesar de claro

e fácil, parecia se esconder por entre as matas e os rochedos,

deparamos com uma nova clareira, rodeada por árvores

frondosas. O chão era de uma areia fina e alvacenta, lembrando

uma praia. Era anoitecer. O céu, como sempre, repleto de estrelas.

Archotes foram acesos e presos em fendas nas rochas que nos

fronteavam.

Acompanhamos os passos de nosso Líder, Mestre Caetano, o qual

pediu-nos que depositássemos os nossos materiais abaixo dos

archotes para que pudéssemos preparar o ambiente propício para

o trabalho que se iria iniciar.

Dispusemo-nos em volta, formando um círculo, prática muito

comum utilizada pelos instrutores e orientadores daqui.

Passamos, então, a ouvir as palavras do nosso venerando Mestre

Caetano:

- “Amados irmãos, reunimos nossos corações e pensamentos,

diante deste anoitecer de paz, nessas paragens que nos abençoam

a vida, embora sem o merecermos, para mais uma vez evocarmos

a intercessão dos Planos Superiores, onde vivem Aqueles que

habitam próximo da Celeste Presença, servindo-nos de Numes

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Tutelares, para conseguirmos a essência curativa que

emprestamos aos nossos medicamentos.

Nessa noite oraremos à Divindade na esperança de sermos

atendidos em nossa rogativa e com isso auxiliarmos aqueles que

hoje se encontram sob os nossos cuidados, necessitados, como

também somos, do conforto e do alívio que só pode vir das esferas

celestes.

Em nossos pensamentos, congregados, concentraremos nossas

orações a pedir que estas forças divinas recaiam sobre este

ambiente em que estamos. Como uma Luz que jorra do Alto e

clarifica, como a Lua Nova que daqui avistamos, todo esse portal

de natureza.

Vem Senhor da Luz, e abraça-nos com seu coração amoroso.

Atende ao nosso pedido humilde para alimentarmos e

medicarmos, conquanto nossas poucas possibilidades, aqueles

que como nós, precisam de amparo e refazimento!

Coroa-nos o intento, Senhor da Vida, por intercessão dos Numes

Bondosos que lhe espelham a Misericórdia e a Brandura,

distendendo-nos sua Graça, para que esse Amor que nos é

essência para a Cura possa materializar-se aqui, recolhendo-se em

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 55 ]

nós para o cumprimento de nosso labor, em favor da renovação e

do alívio do nosso sofrimento.

Permite-nos, por sua Bondade e Consentimento extrairmos de seu

pensamento luminoso as essências que nos farão cumprir nossa

tarefa!

Vem Senhor da Luz!

E nos abençoa nessa hora com a Paz e a oportunidade do trabalho

caritativo.

Vem, Senhor! ”

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Curimba é Canto Sagrado

“Caem as pétalas,

Suaves e Aureoladas.

Exalam perfume adocicado

Que lembranças traz.

Felizes e plenas,

Iluminando o Caminhar.

É o efeito da oração,

Do pensamento a serenar...

Com a cantiga...”

Com a noite chegada, encimada de estrelas, víamo-nos

rodeados pela luz branda e alvinitente que percebíamos

irradiar-se do venerando Mestre Caetano.

Junto de pétalas perfumadas que se derramavam pelos ares e

nos osculavam a face, víamos caindo dos Céus, fachos

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 57 ]

luminíferos que deixavam ao redor pontículos brilhantes, os

quais cercavam o local onde nos encontrávamos.

Sentia-me surpresa e não imaginava o que estava a suceder.

Percebi que outros companheiros de caravana, novos como

eu, também pareciam atônitos e, ao mesmo tempo,

encantados, com uma cena tão bela. A oração tocada de

humildade e devoção, entoada pelo Mentor, enlevava-nos a

alma e nos conduzia a acompanhá-lo na postura de súplica e

agradecimento, no interesse sincero em recebermos o auxílio

que ali era evocado junto aos Numes Celestes.

Entretanto, eu notava que uma modificação no ambiente se

operava. Podia perceber também que muitos companheiros

demonstravam compreender seguramente o que estava

ocorrendo naquele momento e a que nosso orientador e mestre

estava nos conduzindo.

Certamente, muitos deles também já haviam passado por essa

experiência em outras oportunidades.

Um silêncio profundo e comovedor parecia calar-nos a alma.

Enquanto observávamos a circunspecção de nossos amigos e

de nosso Mestre, a luminosidade ambiente tornava-se mais

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 58 ]

intensa, da mesma forma que o perfume se acentuava. A

princípio, um leve torpor foi tomando conta de mim, embora

me sentisse firme e disposta, mas uma força muito intensa me

induzia a esse estado de “sono”, como num adormecer...

...uma sensação de peso... o tempo parecia ter parado ou se

tornado mais vagaroso... ao longe, passei a ouvir sons que me

tocavam fundo, mas não os pude reconhecer de

pronto...batidas repetidas, batidas que foram tornando-se cada

vez mais nítidas. Eram palmas, batidas de mãos, seguidas de

palavras de evocação e orações.

Após, uma sequência de estalidos secos, retumbando junto às

palmas. Eram tambores...

Uma percepção muito esquisita e peculiar me tomava naquele

instante. Via-me ali, na clareira da mata, junto de Mestre

Caetano e dos demais companheiros de nossa caravana e,

concomitantemente, podia ver, como uma “segunda

realidade” que se passava como que por trás de uma vidraça,

em volta de nós, cenas muito vivas e reais de um local que

logo identifiquei como um terreiro de Umbanda, tal qual o

terreirinho que trazia na minha lembrança de menina.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 59 ]

Os tambores tocavam agora mais alto. Curiosamente, parecia

que estávamos lá no meio de tudo aquilo, mas, ao mesmo

tempo, com os pés tocando a areia e a relva verde, sob o céu

enluarado.

Vozes começaram a cantar, trazendo mensagens de amor, de

súplica e de fé. O ambiente parecia festivo, com flores por

todos os lados. Velas coloridas. As roupas brancas se

agitando. Saias rodadas, rodando. Guias e colares brilhando.

Eu vivia em dois mundos. Estávamos todos ali, presenciando

tudo, por aquela “janela” que se abrira no clarão de luz, pelo

efeito de evocação que a oração de Mestre Caetano provocara.

O ambiente deste terreiro parecia envolto em luminosidade

suave e reflexos multicoloridos pareciam espocar de vários

locais, tais como “flashes”.

Notei que Mestre Caetano passou a movimentar-se com

naturalidade, demonstrando um completo domínio e

compreensão do que ocorria naquele momento. Dirigia-se ao

ponto onde havíamos depositado os materiais que nos

serviriam de repositórios das essências que viéramos colher.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Espantei-me quando observei que por entre as duas pedras

grandes, nas quais estavam fixados os archotes

incandescentes e para onde Mestre Caetano se conduzia,

transportando os nossos vasos, abrira-se uma passagem onde

ao fundo era possível ver a festa que nos cercava.

Direcionando um discreto sinal para alguns companheiros, os

quais prontamente o seguiram, Mestre Caetano foi

adentrando-se por aquela passagem. Embora ele não houvesse

expedido nenhuma ordem direta, continuamos prostrados em

nossos lugares, sustentando o pensamento e as preces a que

nos entregávamos, por compreendermos, interiormente, a

gravidade do que ali estava se desenvolvendo.

Voltando-me novamente para a percepção que passei a ter,

quando concentrada no clima de preces que todos

realizávamos, comecei a ouvir os cânticos, os quais foram

tomando forma cada vez mais clara. Tratavam das matas, das

folhas. Faziam menção aos rios, a Deus, ao Orixá Oxóssi e

pediam aos Seres Espirituais, chamados de Caboclos, para

que viessem “trabalhar”, ajudar, proteger, curar,

alegrar...alguns desses “pontos” traziam uma imagem muito

próxima daquela que eu, naqueles instantes, pudera vivenciar.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 61 ]

O “clarão na mata”, o “clarão no congá”, essa luz que ilumina

a mata, vinda dos anjos, a qual era citada em muitas cantigas

entoadas com visível sentimento de fé por parte das pessoas

presentes, faz referência direta ao que acabara de ver.

Será que eles também estavam vendo, “do lado de lá”, o que

eu e os demais víamos daqui? Se não todos, creio que pelo

menos alguns podiam “ver”.

Eu estava emocionada. Aquelas palavras tão simples e aquele

ritmo cadente e simplório, características daquela “curimba”

que estava vibrando em fé e respeito, fazia-nos aproximar,

abrindo “portas” para que nos entrelaçássemos por aqueles

instantes... Nossos mundos se abraçavam, pela ação simples

da prece e da canção. Refletia, enquanto lágrimas me

escorriam dos olhos. Como era possível tamanha misericórdia

por parte de Deus, para com nossas vidas...

Eu que em momentos pensei que a morte, apesar de não ser o

fim, seria o distanciamento de tudo, estava novamente ali,

colocada diante de um fato que era produzido por uma ação

simples de comunhão, ocasionada pelos viventes de ambos os

“lados da moeda” da vida. Nossas intenções nos tocaram e,

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 62 ]

pela prece e pela canção, nossos corações se uniam em torno

de uma mesma motivação: a de agradecer, de louvar a vida e

de pedir socorro para os necessitados e aflitos, que também

nós não deixamos, pelo menos em parte, de sermos.

As cantorias prosseguiam, direcionadas aos caboclos e suas

histórias. Eu podia ver como os corpos dos “filhos-de-santo”

se tornavam iluminados, como se uma luz branda, alva com

raios dourados, os envolvesse pelo alto da cabeça, pelas mãos,

pelos olhos e pelo centro do tórax, na região do coração,

estendendo-se até os pés, em alguns deles.

Seres espirituais, os quais não tenho permissão para

descrever, formavam um círculo em torno dos presentes, por

toda a extensão do ambiente, reforçando aquela luminosidade

que passava a se irradiar não só dos seus corpos, mas também

do congá e de outros pontos do terreiro.

Outras Entidades Espirituais pareciam unir-se a determinados

filhos-de-santo, os chamados “cavalos-de-santo”, formando

um clarão intenso que os envolvia, provocando as

incorporações e os fazendo girar, dançando. Neste momento,

grande luz se expandia do alto de suas cabeças, dos pés e do

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 63 ]

centro de seu corpo, mãos, peito e costas, variando a sua

expansão de acordo com os movimentos feitos. Os médiuns

em transe, tornavam-se lâmpadas acesas, estrelas brilhantes,

irradiando cores intensas e variadas.

Agora, eu ouvia e via, cantarem para os pretos-velhos.

Depois, para o Povo do Mar. A profusão de cores e luzes que

acompanhavam as falanges de espíritos que seguiam os

chamados e as evocações era fascinante e encantadora. Era

uma verdadeira corrente de luz que circulava em torno de nós.

Pude vislumbrar, à distância, Mestre Caetano e os

companheiros, parados no ponto de passagem entre nosso

local, nosso mundo, e os “do lado de lá”. Tomando uma

postura de prece, a determinada altura dos trabalhos, Mestre

Caetano foi envolvido pelos companheiros que o seguiam, os

quais permaneceram de mãos dadas. Neste momento, uma

Entidade que não pude reconhecer, envolta em claridade

muito intensa, embora pudesse notar seu semblante feminino,

dirigiu-se ao pequeno grupo, abraçando nosso Mestre,

seguida também por outras entidades. Eram os responsáveis

pelo trabalho espiritual feito naquele terreiro. Pareciam

dialogar, por alguns instantes.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 64 ]

Passado algum tempo que não saberia precisar, alguns

trabalhadores espirituais daquela casa, seguem na direção de

Mestre Caetano e do grupo, entregando-lhes vasos repletos de

um líquido que foi despejado, imediatamente, em nossos

recipientes. Após isso, a Veneranda Entidade, entrega ao

nosso orientador uma pedra, ou algo parecido, com um brilho

muito cintilante e de rara beleza, me fazendo lembrar uma

pequena estrela. Mestre Caetano envolve-a em um tecido

claro e a deposita numa pequena urna. Seguidamente, toma as

mãos nobres daquele Ser Iluminado, beija-as e retira-se,

seguido dos companheiros.

O pequeno grupo retorna pela passagem, a qual aos poucos

vai se esvaindo, conforme a luz perde sua intensidade. As

imagens e os sons vão se afastando...o perfume vai se

abrandando, o clarão da lua é mais vivo. A areia e a relva

úmida tocam-me os pés. Os estalidos das chamas, os

murmúrios da natureza retornam... o sonho... pareço

despertar...

Olho em volta, tão emocionados quanto eu, alguns amigos se

abraçam. Alguns choram. Outros rendem graças a Deus.

Mestre Caetano nos observa com seu olhar bondoso e nos

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 65 ]

abraça a todos, agradecendo pela ajuda e pela compreensão.

Promete-nos o esclarecimento adequado sobre tudo aquilo

que ocorrera, tão logo estejamos em condições de

compreendê-lo. Nos garante que isso será em breve. Ou, mais

breve do que possamos imaginar.

Quando estávamos já de retorno da nossa caminhada,

chegando à beira do pequeno riacho, Mestre Caetano pede-

nos para guardarmos em nossas lembranças tudo que vimos e

sentimos, pois, certamente, muito mais ainda iríamos

vivenciar.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 66 ]

A Estrela Que Brilha Mais Forte

“Mas, o que é isso, menina?

Que Brilho é esse

Que você traz?

Chega perto de mim,

Cantando.

E com seus olhos

Doces, que me encantam,

Pela Luz daquela Estrela.

Foi tu quem a fizestes brilhar! ”

Amanhecendo o dia que outrora se havia findado, ainda em

minhas lembranças mantinha as cenas do ocorrido naquela

clareira da mata. Naquele terreiro.

Mestre Caetano convidara-nos para, logo cedo, acompanhá-lo a

uma tarefa junto das galeras de tratamento e recuperação de

nossos irmãos sofredores e adoecidos.

Page 67: Conto de Aruanda_livro

Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 67 ]

Confesso que estava apreensiva quanto ao que poderia presenciar

ali. Isso porque nunca houvera permanecido junto de pessoas

gravemente doentes, como enfermeira ou cuidadora, tão pouco

havia estagiado nestas alas que, inclusive, constituíam uma região

de trabalhos distante do nosso Vilarejo, na qual nem todos tinham

permissão para transitar. Contudo, conservava-me feliz pela

oportunidade que fora ofertada por Mestre Caetano, dando ensejo

a novas experiências para meu aproveitamento.

Sem demora, tão logo o encontramos na passagem entre o riacho

e a pequena ponte que nos levaria à entrada de uma das trilhas na

Mata, o venerando Mestre, após nos cumprimentar breve e

bondosamente, depressa nos conduziu à jornada em direção aos

postos de trabalho no atendimento àqueles que nos aguardavam o

socorro.

Transportava consigo, e também alguns de seus ajudantes, alguns

frascos que pareciam ser feitos de cerâmica, nos quais havia

determinado líquido, cujo doce perfume era possível notar com

facilidade, pela sua exalação que preenchia o ar já puro daquelas

paragens. Também carregavam sacolas de tecido rústico, cru,

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 68 ]

onde transportavam alguns materiais, cuja finalidade eu

desconhecia, envoltos em folhas verdes e espessas. Nosso Mestre,

além disso, carregava um pequeno picuá, de tecido vermelho,

amarrado por um cordão ao pescoço.

Enquanto percorríamos a distância que nos separava do nosso

destino, o amigo Orientador nos dirigia algumas explicações

referentes ao trabalho que era desenvolvido naquelas localidades

e qual deveria ser nosso comportamento ao adentrarmos as

instalações de tratamento.

- “Meus filhos, reconhecemos a importância de os conduzir às

instalações de refazimento e socorro, pois que todos os que aqui

nos encontramos devemos reconhecer a responsabilidade de que

nos vemos imbuídos perante toda essa comunidade humilde e

gentil que aqui habita, compartilhando da vida conosco e

propiciando-nos nosso próprio sustento.

Aqui, ninguém vive só. E desejamos que todos os que aqui

ingressam tomem contato, dentro do possível, com todas as

atividades que vão desempenhadas, de maneira a poderem

ampliar sua visão a respeito das conexões envolvidas entre todos

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 69 ]

os tipos de labores executados por nós. Isso, segundo nosso

parecer, facilita a cooperação e a consciência de responsabilidade

sobre o todo.

Hoje, vocês irão tomar contato com uma pequena parcela de

irmãos nossos, para aqui conduzidos em nome da Misericórdia

Divina, pelas Rosas de Maria1, por meio da intercessão de nossa

Mãe Amantíssima, cujo Coração nos envolve a todos. Muitos

desses irmãos, tal como muitos de nós, chegaram ao “nosso lado”

da vida nas mais diversas condições. Geralmente, transportando

sofrimentos e dores, necessidade de repouso, de refazimento, de

orientação bondosa e fraternal. Há também aqueles que aportam

em nossa humilde comunidade, chagados pelas feridas intensas

ocasionadas pelas décadas e séculos em que se conservaram em

situação de revolta, ódio e violência contra a realidade das Leis

Divinas, das quais pretenderam se esconder, a fim de fugirem de

suas próprias consciências culpadas pelas consequências de seus

atos de insânia e crime, contra si e contra os outros.

1 Rosas de Maria: apesar da referência a esse símbolo Místico feita pelo

Mentor, sabemos da existência de uma fraternidade espiritual de servidores

dedicados ao socorro das almas em purgação que leva o mesmo nome (nota do

autor).

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Enlouquecidos e deformados até, carecem de muitos cuidados,

observações e carinho, uma vez que seu tratamento se desenrolará

por largo curso até a melhora (e não, necessariamente, a cura) do

seu quadro de enfermidade.

Naturalmente, vocês visitarão as alas que abrigam aqueles em

condições mais amenas, ou que já estão positivamente renovados.

De igual forma, a condição de vocês será, pura e tão somente, a

de aprendizes, não cabendo a nenhum de vocês a obrigação de

cuidar, ao menos por enquanto, destes nossos pacientes.

No entanto, não se esqueçam de, enquanto lá estiverem,

especialmente, manter seus pensamentos e suas expressões em

um padrão positivo e saudável, pois conforme vocês já bem

sabem, necessitamos das criações mentais salutares para

gerarmos um ambiente próprio para a cura e o tratamento que aqui

são desenvolvidos. Olvidem todo o tipo de expressão menos feliz.

Não se ajuntem pelos cantos para tecer comentários

desnecessários de qualquer natureza. Não se atenham à condição

dos irmãos com os quais iremos nos deparar. Aqui, somos todos

pacientes necessitados do Remédio Divino, o qual ainda estamos

tomando, em gotas (às vezes amargas), pois nos recusamos,

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 71 ]

muitas das vezes, a cicatrizar as nossas próprias feridas

interiores...estamos chegando...”

Chegando em frente ao portal que nos dava passagem às Sete

Cachoeiras, por trás das quais albergavam-se as instalações de

Pronto-Socorro, nos vimos diante de uma construção de enorme

beleza.

Em meio às quedas d’água, podíamos avistar um grande

monumento, talhado nas rochas imponentes, o qual formava a

imagem de Nossa Senhora. Águas cristalinas escorriam por sobre

seu corpo, desaguando em um leito calmo e convidativo para o

nosso breve descanso, meditação e oração preparatórias para as

tarefas que estávamos prestes a desempenhar. Avistamos, à

margem direita daquela piscina de águas translúcidas, que se

formava aos pés da Santa Mãe, uma pequena capela, também

construída em pedras e adornada em folhas e arbustos, por cuja

entrada podíamos ver cintilando, enquanto nos aproximávamos,

as chamas de algumas velas acesas.

Estramos naquela Capelinha. Tudo nela era simples e encantador.

Um quadro, feito de madeira, no qual estava pintada a figura de

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Jesus, era a única imagem ali presente. Um aroma distinto e suave

de frutos e flores tomava conta do ambiente. Fresco e arejado,

aquele cantinho de paz por si só já nos induzia, mesmo sem

percebermos, a um estado oratório e contemplativo.

Entregávamo-nos, por alguns instantes, a momento de prece

silenciosa e coletiva, junto daqueles que nos acompanhavam e

que também se encontravam no mesmo estado de paz e silêncio.

Focada nos pensamentos carregados de imagens belíssimas que

brotavam em grande volume e intensidade da minha mente,

comecei a notar um brilho intenso a surgir do pequeno altar no

qual encontram-se as velas e o modesto quadro de Jesus.

De olhos fechados sentia-me tomada por uma indizível paz

interna e, nesta condição, desejava manter-me orando e sentindo

meu coração em profunda alegria e contemplação. Parecia que eu

sentia uma mão suave e delicada a tocar-me ligeiramente os

ombros. Uma presença serena parecia adentrar e preencher todo

aquele espaço onde estávamos. Abri os olhos. Quase não pude

conter o ímpeto de me arremessar de joelhos ao chão, perante a

cena que transcorria diante de mim.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Uma moça belíssima, envolta em túnica azul e dourada pairava

no ar. Irradiando grande luminosidade, embora não de maneira a

nos cegar os olhos, nos tocava interiormente e nos levava a uma

sensação de plenitude e de prostração, tamanha a sua presença

bendita, numa postura quase que de veneração profunda. Para

mim, aquela bela aparição afigurava-se como um verdadeiro

Anjo que nos visitava.

Com a face encantadoramente suave, o olhar sereno e feliz, mãos

postas ao peito e que depois se distenderam em nossa direção,

como num gesto a nos envolver, disse-nos:

- “Amados, recebemos a todos com grande carinho. Sejam bem-

vindos em nossa Morada.

Lições importantes e oportunas aguardam-nos. Agradeçamos

pelo ensejo de trabalho e de esclarecimento. Necessitamos da

dedicação e do compromisso de cada um, pois estejam certos de

que aqui não estão por acaso. Olhem para cada um dos irmãos

que aqui habitam, tal como entre vocês mesmos, como se

estivessem diante do próprio Cristo. Amamos a todos. Estejam

ligados nesse Amor”.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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A claridade que se expandia daquele ser iluminado ia se

espalhando em raios azulados e dourados, como se suas vestes

estivessem a se dissolver em meio ao clarão. Pude ver Mestre

Caetano, prostrado de joelhos, retirando do pescoço o pequeno

picuá, abrindo-o e de lá retirando um pequeno cristal com brilho

intenso. Ao erguê-lo sobre a cabeça, notei que era aquele mesmo

cristal que houvera sido entregue ao Instrutor por aquela nobre

entidade quando da nossa “visita” ao terreiro.

Não me era mais possível vislumbrar os contornos daquele ser de

rara beleza, somente a emanação de sua aura iluminada.

Entretanto, tinha a impressão de que Mestre Caetano continuava

a vê-la e parecia dialogar com ela, embora não percebesse

nenhuma palavra dita por ele. Pude notar que aquele pequeno

cristal foi envolvido pela irradiação que se concentrava em torno

de nós, ampliando ainda mais o seu brilho, tal como se colhesse

naquela pedra, como um âmbar, a essência espiritual do ser

Angélico que nos houvera agraciado pela sua excelsa companhia.

A claridade diminuía, aos poucos, nos fazendo “retornar” para o

ambiente, conservando aquele estado de alumbramento.

Esplendor! Meu Deus, que Esplendor!

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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A Cruz, a Prece e o Rosário

“Pequenas contas entre os dedos

Orando sempre, com ardor.

Verás florescer na existência,

Um novo olhar para dispor...

E viver com mais felicidade”.

Dona Izaldina era uma “senhorinha” que vivia lá no meu bairro.

Era baixinha, trajando sempre vestido longo, muito simples.

Cabelos bem crespos e curtos, presos por grampos. Negra

“retinta”, como se dizia. Rosto de “vó”.

Era benzedeira famosa na comunidade. Mãe-pequena no

terreirinho da “babá”.

Muito querida por todos, já aposentada e com uma vida bastante

modesta, tendo criado todos os seus quatro filhos com grande

esforço, entre a costura e o serviço de limpeza em escola pública

da região, vivia com a casa repleta de pessoas que a buscavam

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 76 ]

pedindo os mais diversos tipos de ajuda. Principalmente, doentes

de toda espécie. Crianças também, eram muitas.

Certo dia, dona Izaldina fora chamada a atender um rapaz que

possuía problemas muito sérios de ordem psiquiátrica.

O jovem, com um histórico já “complicado” na vida escolar,

marcada por expulsões, pequenos furtos, envolvimento com

drogas, etc. Era ainda muito novo. Acabara de completar 19 anos.

Entretanto, esse rapaz sofria de ataques convulsivos, enfrentando

crises epilépticas, caindo pela rua ou por qualquer lugar onde

estivesse.

Suas convulsões, porém, tinham uma característica específica.

Quando dos seus “acessos”, ele mantinha-se em um estado de

congelamento do rosto, os olhos voltavam-se para cima e,

vidrado, permanecia balbuciando palavras desconexas, as quais

não eram facilmente compreendidas. Noutras vezes, dizia

palavrões e outros termos chulos e rudes, com a voz

enrouquecida...como se estivesse “possuído”.

Apesar desta série de questões que tornavam sua vida um tanto

“complicada”, Marcelo – esse era seu nome – era bem conhecido

no bairro e também muito querido pela sua vizinhança.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Possuía um espírito voluntarioso e gentil, cooperando com muitas

das atividades assistenciais que eram desenvolvidas dentro da

comunidade. Além de estar sempre ajudando e fazendo favores

simples para o pessoal, como ajudar em reformas de casas,

carregar sacolas para donas de casas, jogar bola com a criançada

na rua, enfim. Podia-se notar que, em grande parte, seu perfil

“problemático” era, em muito, o fruto da realidade social na qual

nossa comunidade estava inserida.

Marcelo possuía um senso moral e crítico a respeito de sua

conduta e resolvera, mesmo com todas as marcas de sua infância

e seu passado recente, “mudar de rumo” e, com muito esforço,

voltou a estudar e arrumou um emprego num supermercado local.

Tudo parecia que estava indo bem quando, um dia, Marcelo

começou a ter, sem ele mesmo saber indicar ao certo o porquê,

pesadelos recorrentes. Pensamentos contínuos e repetitivos de

morte, ideias de suicídio, e uma angústia profunda tomavam conta

de seu mundo interior, fazendo-o enfraquecer, acordando-o pela

madrugada, desnorteado, oprimido. Chegava a se atrasar ao

trabalho. Começara a faltar nas aulas da escola.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Misturavam-se, em seu pensamento, imagens atormentadoras de

cenas violentas, as quais o consumiam interiormente, gerando um

sentimento de raiva, acompanhado de ansiedade e amargura.

Como se houvesse uma batalha interna que se travava entre sua

lucidez, que reconhecia seus deveres e qual o caminho certo a

seguir e aqueles pensamentos autodestrutivos que o exauriam

mais e mais, com o passar dos dias.

Voltaram os episódios epilépticos. Sua mãe, já sofrida e com

poucos recursos, extremamente preocupada com seu filho,

buscava com ele o apoio médico, contudo sua realidade financeira

não lhes permitia o atendimento conveniente com a urgência que

o caso exigia, embora procurasse insistentemente, junto ao

sistema de saúde pública, uma oportunidade para que seu filho

fosse tratado de maneira adequada.

Enquanto aguardava, os dias sucediam-se e as crises agravavam-

se, fazendo com que Marcelo se ausentasse do seu humilde

trabalho.

Foi então que, aconselhada por uma vizinha, dona Maria, a

mãezinha devotada e aflita, fora buscar o auxílio de dona

Izaldina...

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Casa repleta de gente. Povo sentado até pelo chão do quintal. Já

era noite começada. Dona Izaldina, que já estava benzendo

criançada desde após o almoço e houvera feito uma pausa para

descansar, reabre a porta do pequeno quarto onde recebe os seus

“pacientes”.

Quarto pequeno e muito simples. Chão de terra batida. Uma

cômoda antiga e quatro cadeiras toscas. Fixadas na parede ao

fundo, duas prateleiras pequenas comportam um singelo altar,

com poucas imagens de santos. Uma vela branca de sete dias

acesa e um vasinho com flores colhidas do seu próprio canteiro.

Bem à frente do paciente, numa parede lateral, próximo à única

janela do cômodo, uma cruz de madeira. Essa cruz parecia

irradiar uma luz suave e especial.

Nas mãos de dona Izaldina, um rosário.

Os pacientes entravam e sentavam-se na sua frente, um a um, cada

um na sua vez, enquanto a benzedeira rezava as contas do rosário,

entre Ave-Marias e Pai-nosso.

Quase não olhava para o paciente. Perguntava, olhando para o

chão, qual a “queixa” e, mal o paciente terminava de contar, ela

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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já estava com as mãos sobre a sua cabeça passando para a área

doente, como se procurasse “sentir” com a mão, onde se

localizava a enfermidade.

Quase não falava. Balbuciava algumas poucas palavras, enquanto

percorria com a mão o corpo do paciente, que permanecia

sentado. Quase em absoluto silêncio e completa introspecção, o

máximo que se podia reconhecer de suas rezas eram, justamente,

a Ave-Maria e o Pai Nosso com que sempre começava e

encerrava seu “procedimento”.

Os pacientes iam passando por suas mãos até que, lá pelas 22/23h,

adentra-se o rapaz, Marcelo, acompanhado de sua mãe.

Um tanto constrangido e com o semblante abatido, Marcelo não

sabia ao certo como se portar diante daquela simples e intrigante

“senhorinha”.

Ao entrar no pequeno cômodo, fora tomado por sensações que até

então nunca havia percebido em si. Confuso, via o ambiente com

uma luminosidade diferenciada daquela que este realmente

possuía, uma vez que uma lâmpada fraca se encarregava de

mantê-lo “a salvo” de uma escuridão completa.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Mas via claridade em todo o ambiente, sentia-se aliviado diante

daquela senhora que lhe inspirava grande respeito e, por isso, não

ousava dirigir-lhe a palavra.

Dona Izaldina, por sua vez, enquanto prosseguia rezando seu

terço em meio ao socorro que prestava aos seus pacientes,

percebera algo peculiar quando Marcelo e sua mãe entraram pela

porta.

Podia notar que o rapaz parecia estar envolto em uma penumbra

e num fluido escuro como piche, o qual lhe descia pela cabeça,

pela parte de traz, “escorrendo” pelas costas.

Na sua visão, dona Izaldina percebia Marcelo com as mãos sujas

de sangue, como a pingar-lhe gotas espessas vermelhas pelo chão

do quarto.

Estava acostumada a receber enfermos de todos os gêneros,

inclusive aqueles que padeciam de influências espirituais

negativas, contudo, aquele caso era de uma gravidade que já de

há muito tempo ela não mais havia lidado.

Naturalmente, servindo-se de toda a sua experiência, rogando

ajuda e proteção à Imaculada Conceição, São Jorge Guerreiro e

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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São Benedito, seus santos de devoção, prosseguia em seu

procedimento normalmente. Fitando o chão, perguntava ao rapaz

“o que ele tinha”.

Marcelo, um tanto embaraçado e tropeçando nas palavras, contou

que estava tendo crises epilépticas; que não entendia o que estava

acontecendo com ele. Contou das vozes que ouvia. Dos

pensamentos e das imagens que o devoravam e minavam suas

forças, provocando mal-estar e desânimo. Disse que queria voltar

a trabalhar e a estudar, porque sabia que sua vida não era fácil e

tinha que ajudar sua mãezinha.... Um acesso de choro o tomou...

A mãe de Marcelo, agoniada e chorosa, ao ver as abundantes

lágrimas do filho, tentava confortá-lo acariciando-lhe os ombros,

enquanto ele permanecia de cabeça baixa, extravasando toda

aquela tensão interior.

Dona Izaldina observava, serenamente, aquela cena, deixando

que mãe e filho se envolvessem naquele momento de afeto e de

busca por alívio.

Então, pôde observar a aproximação de uma entidade espiritual

que parecia surgir das sombras provocadas pela porta entreaberta

do quarto. Exalava um odor fétido. Roupas rasgadas e imundas.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Os olhos petrificados, fixos em Marcelo. Braços estirados para

frente do corpo. As mãos, rígidas, recurvavam-se como garras,

num gesto de ódio, como se intencionasse pegar o rapaz pelo

pescoço e o estrangular.

Avançando decididamente sobre Marcelo, a entidade infeliz e

atormentada enlaça ferozmente as mãos sobre seu pescoço e atira-

se sobre ele, na tentativa enlouquecida de querer engalfinhar-se

com sua vítima. Gritava sons inarticulados. Urrava de ódio.

Tentava esmurrar-lhe o rosto.

Marcelo, inconscientemente, recebendo o choque da

aproximação violenta do infeliz algoz, agita-se em sua cadeira,

sente-se sufocar e percebe o acesso epileptiforme se formando.

Sem tempo para qualquer intervenção, a crise irrompe e Marcelo

tomba no chão do pequeno quarto, convulsionando, no que é

prontamente socorrido por Dona Izaldina e sua mãe, que tentam

acudir-lhe no seu estertor.

Agora, a entidade e Marcelo parecem “unidos no mesmo corpo”.

O rapaz debate-se e espuma pela boca. Dona Izaldina pede à mãe

que se coloque afastada do filho e apoie-lhe as pernas, enquanto

segura a cabeça de Marcelo, virando-a, suavemente, para o lado.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Aguarda a breve crise minorar, enquanto pousa a destra sobre a

fronte do rapaz, agora empapado de suor. Reza e pede auxílio aos

Santos e Guias que lhe amparavam.

Reza, pedindo o amparo de Nossa Senhora dos Remédios, Nossa

Senhora da Luz e Nossa Senhora da Saúde. Pede ao Coração de

Maria o auxílio para que os enfermos (encarnado e desencarnado)

pudessem ser socorridos e aliviados em suas dores.

A cruz de madeira, no alto da parede, parece incandescer

conforme suas preces iam se desdobrando e tornando-se mais

fervorosas.

Um aroma de flores parecia envolver ainda mais o ambiente,

diluindo o mal cheiro das emanações pestilentas carregadas pelo

espírito sofredor.

Marcelo e o seu algoz espiritual pareciam entregues a um estado

de letargia, imóveis, como em um estado de choque emocional,

enquanto iam aos poucos sendo envolvidos por uma luz azulada

que se desprendia dos dedos e dos olhos de Dona Izaldina.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Enviados de Maria observavam o acontecido e uniam-se às preces

de Dona Izaldina, pela intercessão em favor de ambos os

sofredores.

Traziam suas vestes alvas, envoltas em uma auréola luminosa que

variava em matizes de cores diferenciadas. Carregavam a rosa e

o lírio em suas mãos. Preenchiam o ambiente com sua presença,

sem serem notados por qualquer um que estava presente no local,

“de ambos os lados”.

Dona Izaldina não percebia a presença dos enviados de Maria no

local, mas sentia-se amparada e serena. Seu pensamento agora

tinha fortemente impresso a imagem do rosto de Maria, mãe de

Jesus.

Começou a chamar Marcelo pelo nome, pedindo para que ele

“acordasse”, que abrisse os olhos. Suavemente, foi ajudando-o a

recompor-se, bem como a sua mãe que assistia a tudo, atônita.

Segurava as mãos de Marcelo, quanto mantinha sua visão no ente

espiritual que ficara caído, prostrado, ao chão, num estado de

hebetação. Pedia, em pensamento, que aquele sofredor pudesse

ser amparado e que houvesse tempo para a reabilitação daquele

andarilho do mundo espiritual, assim como para o seu paciente.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 86 ]

Certamente, ambos possuem ligações profundas, quiçá perdidas

na noite do tempo, no entanto, agora não era momento para

demorar-se nesta questão. Somente o auxílio e o conforto

interessavam nos objetivos de Dona Izaldina.

Conservando-se em prece, a abnegada senhora pôde registrar e

perceber que a entidade em penumbra ia sendo envolta numa

suave luz e sua imagem parecia dissolver-se ante sua visão.

O sofredor estava sendo envolvido nos braços de um dos

benfeitores que agora o amparavam, infundindo-lhe sua

irradiação salutar. O pobre espírito começava a entrar em sono,

parecendo tranquilizar-se ante o contato com aquele Samaritano.

Dessa forma, fora possível retirá-lo para as paragens de

refazimento e tratamento, nas quais estagiávamos, próximas de

nosso Vilarejo.

Enfim, José, você que tanto sofrera, tem a oportunidade de

encontrar descanso e remédio...

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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A Imagem de São Jorge Guerreiro

“O quadro do Santo Guerreiro,

Cavaleiro soberano

Soldado de Deus,

Senhor dos defensores do Bem.

Ó São Jorge Guerreiro,

Olhai por seus filhos,

‘inda meninos diante da Vida

Cuida desta florzinha

Que com tudo se espanta

Que tem alma, entre vidas”.

A entrada do hospital, naquela pequena cidade onde cresci,

encontrava-se quase completamente tomada de pessoas, as quais

aguardavam atendimento na ala de pronto-socorro. Um carro

transportando um rapaz, que houvera se envolvido em um

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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acidente automobilístico, sobe a rampa de acesso ao

estacionamento que fronteava a ala de emergência. Acorrem os

funcionários e enfermeiros. Ainda haveria condições e tempo

favorável para salvá-lo?

Os dois únicos médicos que atendiam naquele fim de semana

buscaram socorrer aquele jovem com os poucos recursos de que

o pequeno hospital dispunha, no entanto, após várias horas de

atendimento, com tentativas frustradas de remoção para um outro

hospital com mais recursos, localizado em cidade vizinha, o

jovem acabou não resistindo, vindo a óbito.

João era o seu nome.

Trabalhava em uma unidade de uma loja de departamento

conhecida do país, como atendente. Esforçado, honesto, bom

companheiro. João, apesar de sua origem em família humílima,

assim como muitos de nossa cidade, dedicara-se ao estudo em

escola técnica na cidade vizinha, almejando obter melhora em sua

vida. Sonhava arrumar um emprego melhor. Cursar uma

universidade. Ajudar, contando com mais possibilidades, a sua

família, em especial sua mãezinha, faxineira e doceira, de cujas

atividades sempre retiraram os valores que puderam manter a

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 89 ]

dignidade do lar e a possibilidade de João concluir o ensino

médio-técnico.

João contava, então, vinte anos de idade. Aprendera com a

convivência e a figura de sua mãe, dona Rosalina, além do gosto

pelo trabalho, algumas noções de fé que acabara por incorporar

ao seu comportamento. Devoto de Nossa Senhora Aparecida e

São Jorge Guerreiro. Guardava junto de si, qual patuá que

carregava sempre no bolso, a miniatura deste santo de sua

predileção, além das imagens no pequeno altar de seu quarto,

junto a outros santos e imagens de pretos velhos e caboclos. Sim.

João era filho de Umbanda, assim como sua mãe. Com a idade de

então, já exercia sua fé, frequentando o “terreirinho da Babá” nas

giras de sábado, fazendo parte dos filhos de santo da casa.

Médium que era, comparecendo aos trabalhos da casa, sempre

com pontualidade e frequência.

Por outro lado, João também houvera aprendido com a

convivência de seu pai, Arlindo, o gosto pela bebida alcoólica.

Desde o fim da infância, João já havia tido contato com o hábito

de ingerir alcoólicos não só por estímulos do pai (que lhe dava

pequenos goles da bebida, principalmente em ocasiões de festa e

reuniões familiares), mas também pelos tios e irmãos mais

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 90 ]

velhos, os quais também haviam sido iniciados no mesmo hábito

desde pequenos. Já na sua adolescência, era comum João

provando, abertamente, copos de cerveja e outras bebidas nos

almoços e churrascos promovidos, com frequência, por amigos e

familiares.

Na sua cultura familiar era tido como algo normal os jovens

formarem-se para a vida adulta experimentando e adquirindo o

hábito da bebida alcoólica, assim como do cigarro. Afinal, sempre

vira seu pai fumando ou bebendo em seu dia-a-dia.

Assim, João carregara consigo o apreço pela bebida alcoólica. Por

ocasião da rotina do trabalho e do estudo, o rapaz adaptou tal

hábito para os finais de semana, de maneira que pudesse usufruir

destes momentos junto de seus amigos, primos e irmãos,

incluindo alguns também do terreiro que frequentava.

Apesar dos cuidados que João tomava para guardar os preceitos

que lhe eram exigidos para sua participação equilibrada nos

trabalhos da casa, pois não se permitia, julgava ele, que seus

gostos interferissem no exercício de sua fé e no seu compromisso

religioso, era frequente – para não dizer rotineiro – que todas as

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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semanas João buscasse ‘relaxar e descontrair’ com seus amigos e

um copo de bebida na mão.

Dona Rosalina, sua mãe, por diversas vezes, repreendia-o,

buscando alertar-lhe para a realidade escondida por detrás de seus

hábitos e os perigos a que estava sujeitando-se, as implicações

funestas que isso deixaria em sua saúde ao longo do tempo,

citando o exemplo do próprio pai, afastado das atividades

profissionais e incapacitado de providenciar o sustento do lar, já

há anos, por consequência dos vários problemas de saúde que

adquirira, senão diretamente, com grande influência dos hábitos

malsãos da bebida e do fumo .

O rapaz, vendo-se contrariado, saia-se com o recorrente discurso

de que era trabalhador, bom filho e que não devia nada a ninguém.

Sua mãe lembrava-lhe de que seus Mentores o observavam,

demonstrando-lhe não estar convencida de seus argumentos

salientando sempre que o seu compromisso mediúnico-religioso

pedia dele a mudança de hábitos e uma nova programação de

vida.

Para encerrar o assunto, devido ao enfado que sentia por não

querer ouvir as repreensões de sua mãe, João dava-lhe um sorriso,

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 92 ]

por vezes irônico, e abraçava-lhe os ombros externando seu

carinho sincero pela mãezinha. Mas, à noite, antes de adormecer,

Dona Rosalina sempre pedia a Deus, enquanto fitava com

devoção a imagem do Santo Guerreiro, que iluminasse a

consciência de seu filho mais novo, ainda presunçoso e iludido

quanto às realidades ocultas das Leis da Vida. Confiava à Nossa

Senhora Aparecida a sua preocupação cada vez maior com o seu

garoto, pressentindo acontecimentos dolorosos para a sua, assim

como, principalmente, para a vida de João.

João chegara ao ponto de começar a ir aos bares da cidade, com

os amigos, mesmo após ter acabado de participar dos trabalhos

do terreiro.

Enfim, no dia fatídico do acidente que ocasionou a sua

desencarnação, João, mais uma vez, havia passado a noite num

dos tais bares da cidade, após ter saído do terreiro. Seu amigo,

que também era seu irmão de terreiro, conduzia o automóvel por

uma estrada estreita e escura. Passava das três da madrugada.

Leonardo, o motorista, também estava alcoolizado e bastante

falante. Ao contrário, João encontrava-se sonolento e, naqueles

instantes, como se pressentisse vagamente o acontecimento

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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funesto que o acometeria, começou a inquietar-se interiormente,

ensimesmando-se e calando-se cada vez mais.

- João! Que foi, meu chapa?! Tá dormindo, já?! Fraquinho! Não

aguenta tomar nada (risos). Ô João!! Acorda, cidadão!

- Tô acordado, Leo. Só estou meio cansado... só isso...

- Quero conversar, cara! Nesta escuridão, se eu não falar vou

acabar dormindo e a gente vai parar lá embaixo, nesse barranco

aqui!

- Pára! Tá louco?! Vira essa boca pra lá!

- Que foi, meu amigo?! Tá com medinho! Não tem fé nos seus

santos, não?

- Tenho...claro que tenho. Mas, sei lá...

- Que foi agora? Acho que você tá muito bêbado! Tá começando

a ficar paranoico! (risos)

- Não, cara. Sei lá... tava pensando...Minha mãe tem falado muito

comigo sobre essas coisas que tenho feito, de sair direto para

beber...Acho que não tô me sentindo legal. Tô me sentindo

culpado.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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- Deixa disso, Jão! Mãe é assim, mesmo! Fala para encher a

paciência! Sempre acham que a gente é criancinha ainda! Minha

mãe era assim também.

- Cara, mas... por um lado ela têm razão. Como é que eu, sendo

um religioso e trabalhando como médium de um terreiro tão lindo

como o da nossa “Babá”, onde as pessoas vão ter conosco

procurando ajuda, posso me dar esse direito? Não é contraditório

isso que estamos fazendo, Leo? As pessoas buscam-nos para

pedir auxílio pra sua doença, para os sofrimentos que sentem, e

nós simplesmente estamos aqui, nos embriagando toda a semana,

como se não tivéssemos nada a ver com isso, com as esperanças

daquelas pessoas?

- E o que é que tem isso?! Pois eu, assim como você, também sou

umbandista, já faz 18 anos! Não vejo problema nenhum, nisso.

Sempre cuidei das minhas obrigações com o terreiro e com meus

Guias. Cumpro todos os meus deveres e tudo o que eu tenho e

consegui eu devo a eles! É simples assim: eu cumpro as

obrigações que tenho com eles, faço os preceitos que tenho que

fazer antes de ir para os trabalhos, e eles me ajudam como

retribuição. E é isso! Eu os ajudo, eles me ajudam! Inclusive nas

minhas bebedeiras! (risos). Aliás, você acha que eu tô em

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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condições de dirigir?! Eu bebi muito mais que você (risos). São

eles que estão guiando as minhas mãos! – E dizia isso enquanto

balançava o volante do carro para os lados, fazendo o carro

ziguezaguear, no entanto, não percebera que o veículo estava

perdendo o controle.

- Não é isso, cara! Para de brincar, meu! Eu não quero morrer aqui

não! Para, Léo!!...

João começou a ser tomado por uma angústia indizível, enquanto

as recordações do olhar de sua mãezinha apareciam em sua

cabeça sem cessar. Colocando a mão no bolso direito da calça, o

rapaz puxou a miniatura de São Jorge Guerreiro, fechou os

olhos... quando ouviu a voz de sua mãe “te amo, meu filho...te

amo...”.

Infelizmente, a brincadeira do amigo insensato e irresponsável,

acabou resultando na perda de controle da direção do automóvel,

o qual atravessou a pista na contramão, colidindo de frente com

um caminhão.

Leonardo, apesar dos ferimentos sérios, conseguiu sobreviver,

enquanto João, o bom garoto, embora sua inconsequência, passou

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 96 ]

para a Aruanda Infinita, quase que totalmente inconsciente sobre

as condições de sua “morte” ...

... “Meus irmãos, estamos às portas da ala de tratamento dos

nossos irmãos que, desafortunadamente, nos chegam, por

misericórdia Divina, para que possamos ajuda-los e acolhe-los

em seu sofrimento. Mantenham-se atentos as nossas orientações,

procurem conservar-se em prece, guardando uma postura de

respeito e silêncio. Vamos entrar agora”. – Reforçou a lição,

Mestre Caetano.

Chegamos junto aos leitos onde encontravam-se alguns irmãos

que pareciam dormir um sono profundo e, ao mesmo tempo, um

tanto perturbador. Suas faces demonstravam presença de dor e

aflição interior, como se se encontrassem passando por um

pesadelo do qual não pudessem acordar.

Entre estes, foi onde encontrei João.... Seu despertar ocorreu três

anos após a sua desencarnação. Destes, nosso amigo permaneceu

nas alas de tratamento por volta de ano e meio. Durante esse

período, sempre cercado de pesadelos e impressões dos traumas

físicos sofridos no acidente, por conta do efeito etérico que a

impregnação do álcool no organismo, sobretudo sobre o aparelho

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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cerebral, na ocasião de seu desencarne, desencadeou em seu

corpo espiritual, colocando-o em tormentos que perduraram

mesmo após o seu despertar.

Seu lenitivo maior, além dos medicamentos apropriados que lhe

eram aplicados pelos enfermeiros, eram as vibrações de carinho

a ele enviadas pela dolorosa mãezinha, que em seu pranto de

saudade clamava amparo junto a Nosso Senhor Jesus Cristo para

seu filho amado.

Fora o próprio João, com apoio de Mestre Caetano, quem contara

a sua história. Essa mesma que escrevemos. Confesso que fiquei

surpresa ao saber que o rapaz frequentara o terreiro da Babá. Da

mesma forma, fiquei ainda mais surpresa por me deparar com

tamanho sofrimento para um filho de santo e médium daquela

casa. Jamais eu imaginaria que tal situação poderia se abater

sobre aquele jovem religioso, dedicado a praticar a caridade

naquele templo de paz e sabedoria!

Mestre Caetano, mais uma vez, coloca-se diante de nós e, como

amoroso professor, pondera lentamente, enquanto vai refletindo

nas palavras que irá utilizar, para fornecer-nos a valorosa

explicação. E o faz, enquanto abraça João com ternura,

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 98 ]

demonstrando-lhe que o que irá dizer não tratar-se-á de uma

sentença ou condenação moral, mas uma reflexão para elevação

da alma naquele jovem e de todos nós que ali nos encontrávamos.

“Por mais que seja difícil compreender, as Leis que regem a Vida

são inalteráveis. Não importa a condição religiosa ou outras

qualidades exteriores que possamos atribuir a uma personalidade

humana. Na transição da vida na carne para os domínios do

Espírito imortal, somente a maneira como cada qual passa pela

sua própria existência é o que determina o sofrimento ou

serenidade deste momento. Alegria ou dor, para o Espírito, são a

resultante de qual nível de consciência o Ser atinge e vivencia,

predominantemente, ao longo de sua jornada.

Não há sacramentos, obrigações, preceitos ou práticas exteriores

ao indivíduo, de qualquer tipo ou cultura, seja mística ou

religiosa, que possam substituir a realidade existencial do ser

humano, Espírito encarnado.

Maus hábitos nunca poderão ser encobertos pela roupa cerimonial

que vestimos nos dias de trabalho religioso. Velas e incensos não

limpam e purificam uma mente desordenada e viciada. Rezas e

cânticos não promovem crescimento e lucidez naqueles que se

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 99 ]

mantém na ignorância. O contato com Numes Espirituais, Guias

e Protetores, por si só, não preenche de valores íntimos aqueles

que não se empenham em desenvolvê-los dentro de si, por esforço

próprio. A caridade que prestamos a outros, não apaga ou

suplanta nossos equívocos, nem anula o desprezo que mantemos

por nossa própria vida e pelo cuidado que deveríamos manter para

conosco. Vivemos fugindo de nós mesmos. Tudo isso, no

mínimo, só nos faz mostrar o quanto ainda temos vivido de

maneira incompleta e pouco atenta quanto as reais metas da

existência humana.

Mesmo ainda sendo jovem, nosso irmão sofre e ainda sofrerá as

consequências inevitáveis de sua própria ignorância e descuido.

Assim como ele, muitos outros que compartilham daqueles leitos

de tratamento e recuperação, foram irmãos ligados ao trabalho

espiritual, mormente dentro das Leis de Umbanda, e que

aportaram para o mundo espiritual vitimados e chagados pela sua

própria acomodação e imprevidência diante de

responsabilidades, às quais deveriam se apegar com apreço e

denodo.

Porém, pelos méritos que a Umbanda como cultura religiosa de

valor fez-se credora, podemos agora amparar estes irmãos

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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desatentos e infelizes neste local de renovação, abreviando seu

tempo de purgação e lenindo, o quanto possível, suas dores. De

outra forma, estariam, muito provavelmente, ainda entregues as

zonas de escuridão nas quais ainda permanecem muitos seres em

sofrimento, entregues a Lei nua e inexpugnável do tempo. Aqui,

estes irmãos poderão encontrar o acolhimento, refletir seriamente

sobre seus equívocos e omissões, fortalecendo-se e preenchendo-

se com novas esperanças, partindo para o recomeço de suas

lições, retornando para vida no mundo físico”.

- Então, aqui é um hospital para os umbandistas que desencarnam,

Mestre Caetano?

- Se fosse utilizar uma palavra de comparação ao que se conhece

na Terra, irmã Clara, poderíamos dizer que sim. Temos um

hospital aqui. Muito embora nossos tratamentos, medicamentos e

instalações sejam completamente diferentes dos conhecidos no

mundo físico. Aliás, como você pode observar, não temos nada

ligado a fontes de energia elétrica, por exemplo, como é comum

para o funcionamento dos equipamentos hospitalares conhecidos

pelos homens. Nossos tratamentos, como você já pode

acompanhar, servem-se da manipulação de elementos da

natureza, aromas, essências, minerais, substâncias líquidas e

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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outras que escapam completamente ao entendimento do homem

encarnado. Outra questão que importa esclarecermos é que aqui

não são tratados somente umbandistas. Nosso dever é o de

amparar qualquer um que chegue em condições de ser tratado

pelos nossos recursos terapêuticos. No entanto, por uma questão

de compromissos assumidos por nossos Anciões - os fundadores

de nosso Vilarejo -, temos recebido muitos irmãos provenientes

da religião de Umbanda... E, como temos visto, muitos tem

chegado aqui em condições que não deveriam ter se permitido

chegar, não obstante as várias oportunidades de aprendizado que

esta senda espiritual oferece aos seus seguidores. Contudo, não

nos cabe agora julgar. Teremos mais oportunidades de estudo e

observação. Oremos por nossos irmãos.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Santa Bárbara, rogai por nós.

“Santa e virgem mártir,

O fogo que nos rodeia,

Ameaça,

É a provação,

Defende-nos das tempestades

Da existência.

Socorre-nos na dor.

Acende em nós

A Luz Divina que contigo carregas”.

Passado um considerável período após seu despertar, João,

enfim, já caminhava pelas alas de tratamento, prestando-se a

auxiliar alguns irmãos que também passavam pelo momento do

despertar na realidade do lado de cá. Cestos com flores

aromáticas, cuia com água fresca e frutos, colocávamos à

cabeceira dos irmãos, cujo olhar se abria para esta realidade nova

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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da existência. Cortes de tecidos lavados eram entregues para que

pudessem vestir-se de maneira adequada e simples. Uma suave

melodia percorria o ambiente, embora não soubéssemos ao certo

qual a sua origem, uma vez que não dispúnhamos de aparelhos

para transmissão de som.

Na sua presteza em auxiliar aos novos amigos, João acabara por

ligar-se, mais especialmente, a uma jovem senhora, de nome Ana

Maria, talvez até mesmo porque esta mostrava-se visivelmente

mais necessitada de ajuda do que os outros dois irmãos que

também haviam despertado mais ou menos no mesmo período.

Ana M. havia chegado para o tratamento em um estado de

completa hebetação, devido a um dilatado período de purgação

nas zonas umbralinas. Fora fumante compulsiva. “Um cigarro na

bituca do outro”. Foram assim os seus últimos anos, dentre o

período total de mais de trinta anos, portando a doença do

tabagismo.

Como consequência, um câncer voraz tomou-lhe ambos os

pulmões, espalhando suas metástases para a garganta, intestinos

e coluna vertebral, sob cujas dores excruciantes, Ana sobreviveu

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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durante alguns meses antes de sua inevitável e dolorosa

desencarnação.

Quando ainda no hospital, nossa irmã recebia as visitas e o

carinho fraterno dos familiares e amigos mais próximos. A vista

de seu estado de saúde precário provocava comoção em seus

companheiros e o desejo de livrá-la de tamanha provação. Viam,

dia após dia, seu sorriso e o brilho de seus olhos apagando-se,

com o aumento das dores e da administração das drogas em doses

cada vez mais intensas que lhe eram ministradas pelos médicos,

a fim de minorar-lhe o sofrimento.

Algumas semanas antes da hora derradeira, uma amiga de Ana

trouxe-lhe a santinha que ela possuía em sua casa. Santa Bárbara.

A pequena imagem estava enfeitada com fitilhos coloridos. Havia

sido cruzada, preparada, em um trabalho da linha de baianos no

terreiro que Ana frequentava, participando como cambone.

Ana Maria levara a santinha para um trabalho de cura que era

realizado na sua casa de Umbanda, localizada na zona norte da

cidade de São Paulo. Havia descoberto, recentemente, sobre o

sarcoma que se apoderava de um de seus pulmões, na ocasião.

Conversara com um guia de trabalho naquele dia e, desde o

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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primeiro momento, havia sido alertada sobre a gravidade de seu

problema e das implicações espirituais dele decorrentes.

Fora recomendada a resguardar-se e fortalecer-se para as futuras

lutas que passaria no processo de tratamento da doença.

Aconselhada a buscar equilíbrio e serenidade na prece diária e na

vivência dentro do terreiro - onde receberia o auxílio espiritual,

complementando o tratamento médico -, seguindo os preceitos de

limpeza e purificação energética e corpórea que lhe seriam

transmitidos. Recebera, por fim, a mensagem de que os Mentores

de luz, na linha dos Baianos, dispunham-se a socorrer-lhe dentro

do que fosse possível para que ela pudesse atravessar essa

provação de sua existência.

No entanto, um sentimento indizível de frustração e desamparo

começou a crescer em seu coração, ao longo dos dias que se

sucederam após aquele dia de trabalhos no terreiro em que fora

aconselhada. Uma revolta surda foi apoderando-se dos

pensamentos de Ana. Por que uma doença tão cruel fora acomete-

la? Logo ela que havia sido tão dedicada em suas obrigações e

valorosa em sua fé? Onde estariam seus Guias que não a

protegeram deste mal? Onde o auxílio daquele terreiro e do seu

sacerdote, a quem devotava seu tempo e confiança irrepreensível?

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 106 ]

Mais um tempo passou. Quando os gravames da doença foram

conjuminando-se para um quadro clínico que acabara por colocar

Ana em uma condição de grande debilidade, seu afastamento dos

trabalhos fez-se inevitável.

Não obstante os conselhos e avisos que recebera de familiares e

amigos, Ana não cedia a ideia de abandonar o vício e considerar

buscar apoio médico para isso. Julgava-se senhora absoluta de sua

vida e única responsável por saber e decidir a respeito de seu bem-

estar. No entanto, as consequências que advieram com o

surgimento da grave doença, implicaram em um conflito íntimo,

por ver-se agora sendo cuidada por sua irmã, Zélia, e suas duas

melhores amigas, Joana e Clara, as quais a amparavam com

ternura e carinho sinceros, além de silencioso respeito, evitando

exatamente insuflar-lhe a culpa pelo julgamento que se faria

despropositado diante da situação da paciente. Mas agora, elas

estavam ali... justamente elas, contra as quais Ana Maria houvera

por várias vezes revoltado-se e imprecatado.

A frustração, o desamparo e os conflitos provindos do ego ferido,

foram formando um estado psicológico de fechamento e desejo

de solidão. Por conta disso, na ocasião de seu desencarne, Ana

acabara por tornar-se inacessível espiritualmente aos

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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amparadores e socorristas enviados pela corrente espiritual do

terreiro a que estava vinculada como trabalhadora e filha de fé.

Desta forma, fora atraída para os campos escuros carregando

consigo as penosas impressões do desencarne e os reflexos das

dores lancinantes em seu corpo espiritual.

Como é de conhecimento, na condição de Espírito desencarnado,

o ser vive e experimenta as sensações de dor-sofrimento ou

alegria-felicidade em intensidades não alcançáveis pela

compreensão humana terrestre. Podemos ter ideia do calvário de

nossa desafortunada amiga.

Até o momento em que, passados seis anos nesta condição e por

intercessão das preces daquelas almas amigas que lhe eram caras

ao coração, um raio de luz vindo das alturas, preencheu o vale

sombrio onde gemidos e estertores exprimiam a situação de

purgação dos que ali encontravam-se, por mecanismo natural das

Leis Divinas. Uma caravana de socorristas, trajando túnicas

claras em branco e azul, em cujo peito estampavam emblemas em

que se distinguia um ponto riscado de Iansã. A frente, lanceiros e

batedores, portando archotes, varriam ligeiramente aquela

localidade, até que identificaram, dentre outros, a irmã Ana

Maria, trazendo-a para os nossos cuidados desde então.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Agora, ambos, João e Ana Maria, poderão em breve juntarem-se

ao nosso grupo de estudantes-pacientes e se dirigirem conosco

para o nosso Vilarejo, a fim de continuarem seu refazimento,

enquanto aguardarão, assim como nós, novo ensejo de retornar à

Terra e recomeçar. Mas, desta vez, esperando não cometer os

mesmos erros do passado.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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O Renascer das Flores

“Florescer.

O renovar-se como fim último.

Não escapamos desta sina.

Esta manhã nos ensina

Com as suas flores.

Botões que se abrem.

Ressurgir para a vida.

Reaprender”.

Estes jardins são muito belos. Traduzem a singeleza e

tranquilidade deste lugar. Voltamos a nos encontrar com a

inteireza das forças naturais, tão benfazejas a nossa condição

nesta dimensão espiritual, quando caminhamos em meio a estas

flores multicoloridas, cujo aroma calmante e estética delicada nos

enlevava em um sentimento sutil de integração e segurança

íntimas.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 110 ]

A inspiração trazida desta paisagem, conduzia-nos a meditar nas

obras da Criação, colocando-nos em contato direto com o Grande

Criador.

Localizam-se, tais jardins, nos arredores daquele Hospital onde

estagiávamos, por hora. Nossos momentos de descanso,

geralmente, os realizávamos ali, em breves caminhadas, a sós ou

acompanhados, ora em atitude silenciosa, ora em conversas

animadas, conquanto sempre em tom respeitoso. Caminhávamos

entre suas passagens ladrilhadas e sempre limpas. Nada ostentava

luxo ou vaidades pueris, embora a sua encantadora beleza. Todos

aqueles lugares que compõem os arredores de nosso abençoado

Vilarejo, pareciam o fruto de uma mente criativa e serena.

Expressões da espiritualidade de um hábil artista, em sua tentativa

de exprimir, por meio de paisagens e construções simples, as

primícias e sentidos profundos contidos na presença Divina em

meio ao mundo dos homens, em todas as dimensões possíveis.

Esplendia em luminosidade e coloração aquele jardim. Era época

de renascimento das várias espécies de flores que lhe faziam

parte. A imagem dos botões a se abrirem, indicavam também o

desejo de renovação e soerguimento interiores que a grande

maioria de nós, que ali nos encontrávamos, almejávamos.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 111 ]

João e Ana, nossos novos irmãos, conquanto ainda na condição

de internos e pacientes, já colaboravam no atendimento de novos

pacientes que aos poucos chegavam aos nossos cuidados.

Emocionavam-se, assim como nós, quando ouviam as histórias

daqueles que eram confiados à sua companhia. Ensejo de

refletirem e reconstruírem suas disposições emocionais por meio

desta troca e contato com outros que traziam histórias e dramas

similares aos seus.

Cada dia, uma nova oportunidade.

Mestre Caetano dava-nos o suporte necessário e direcionava-nos

com sua seriedade e calma costumeiras. Os cuidados

direcionados aos nossos irmãos nos exigiam considerável

esforço, no entanto, a gratificação que nos inspirava o emprego

de nosso tempo em horas úteis era muito maior e suplantava nosso

desgaste.

O tempo sucedia célere, conquanto sem a ansiedade e as

distrações do pensamento tão comuns de experimentarmos em

nossa jornada terrena.

Momento chegou em que, após um dia todo dedicado ao labor,

fomos todos convidados por Mestre Caetano a nos reunirmos no

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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espaço de convívio localizado em meio aos jardins para uma

breve reunião, na qual teríamos novas notícias sobre a

continuidade de nossas atividades a partir daquele instante.

Conduzimo-nos para o referido lugar em silenciosa expectativa.

Depois de um breve momento, o digno Mentor junta-se ao nosso

pequeno grupo de estagiários, trazendo consigo os nossos novos

irmãos, João e Ana Maria. Trazia também um sorriso de

satisfação no rosto, enquanto nossos irmãos pareciam

visivelmente emocionados.

Sem demora, o amigo de todos nós, em seu papel de orientador,

assumiu uma posição em que pudesse ser ouvido e visto por todos

e, tranquilamente, iniciou-nos na reunião:

- Meus amigos, tomei a inciativa de convidá-los a esta conversa,

pois necessito transmitir algumas notícias e orientações gerais de

nosso interesse.

Como sabem, já estamos aqui há um relativo tempo estagiando

junto aos nossos pacientes, na experiência de doação espontânea

de nossos recursos neste trabalho de amparo e recuperação que,

em verdade, é de todos nós, não é mesmo? Pois bem, também

sabemos que esta vivência nos fora concedida e possibilitada

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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pelos companheiros responsáveis por este local. Desta forma,

nossas atividades aqui são de experimentação, tratamento e

estudo, cujo ciclo finaliza-se aqui, a partir de hoje. Quero

agradecer a todos vocês, esperando que tenham podido colher as

lições necessárias e valiosas para o engrandecimento de cada um.

Prosseguiremos, enriquecidos pelos momentos e amizades

construídos aqui, uma vez que outras e novas experiências ainda

nos aguardam...

... E, nesta noite, não iremos retornar sozinhos. Quero informa-

los que, após consultar os irmãos responsáveis pelo

acompanhamento de nossos estimados João e Ana Maria,

chegamos à conclusão de que ambos poderão seguir conosco de

retorno ao Vilarejo, tomando lugar junto de nosso grupo em

nossas próximas atividades, como continuidade de seu tratamento

e restabelecimento. Felicitemos aos nossos novos companheiros

de excursão.

Abraçamos todos os novos integrantes do grupo que não

conseguiam conter a emoção que se lhes impunha, banhando-se

em lágrimas.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Despedimo-nos dos amigos daquele verdadeiro Hospital de

recursos naturais, instalado nas Grutas de Socorro, e partimos

naquela mesma noite de retorno ao nosso remanso. Nosso

Vilarejo já se mostrava inteiramente iluminado, em suas ruas e

casas, pelos archotes que clareavam as passagens e estradas.

Alguns convivas ainda caminhavam calmamente por ali. Outros

confabulavam distraidamente, sentados em alguns bancos

dispostos pelo caminho. Os sons da Natureza preenchiam a

atmosfera.

Finalizamos nossa noite com uma prece proferida em grupo, em

frente a estalagem onde repousávamos habitualmente.

Agradecidos por mais um dia e por todos os outros em que

pudemos trabalhar nas Grutas. Repletos de paz.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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A Coroa do Divino

“A Coroa do Divino

Fora feita de espinhos.

Ferindo a Sua face serena.

Sua dor era o testemunho

De amor pela vida e a verdade.

Quem deseja seguir-Lhe os passos

Certo esteja de seu padecer.

Pela Coroa do Divino

Poder ser coroado

E, pelo Bem, o mal sofrer”.

Toda vez que o senhor Benedito termina seu dia de trabalho nos

campos de cultivo, ele retorna pelo passadouro que entremeia as

plantações. Vem contemplando o céu ainda azul, a iniciar sua

transmutação em nova cor, tornando-se róseo-alaranjado, em

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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razão do astro rei que se põe concluindo calmamente seu périplo

natural, enquanto perdura a travessia do nobre ancião de retorno

ao Vilarejo.

Benedito é responsável pela conservação de um pequeno templo

de oração situado entre dois pequenos montes que se distanciam

brevemente para além do Vilarejo. Do ponto central da

comunidade, pode-se visualizar a entrada do Recanto de Paz e

Oração, colocado entre duas paredes rochosas o seu portão

principal.

Ao sair dos campos, o senhor Benedito caminha rumo aquele

local Sagrado, carregando ramalhete preenchido com flores

colhidas naquela tarde. Ao entrar, observa atentamente os

detalhes daquela passagem, como se fora novo visitante. Repara

em seus portais, delicadamente ornados com armações suspensas,

emolduradas em forma de ramagens que se entrelaçam, como

uma coroa em brilho cobreado. Uma aura emana dali, dessa

passagem, como se procurasse envolver aquele espaço em clima

de proteção e isolamento características dos ambientes criados

para práticas como a oração meditativa e o retiro espiritual.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Passa pela porta de entrada e contempla tranquilamente o altar

simples que embeleza o templo. Imagens talhadas em pedra

peculiar da região daqui. Outras, formadas de argila. Irradiam

diáfana luminescência ao seu redor, como se respondessem aos

pensamentos e as manifestações imponderáveis da mente

daqueles que se encontravam próximos.

“Seu” Benedito ajeita o ramalhete de flores, distribuindo-as em

alguns discretos vasos que circundam o local de preces. Seu

semblante leve e seguro inspira calma e confiança.

- Olá menina Clara. Como vai?

- Olá “seu” Benedito! Estou muito bem! Melhor agora, aliás!

- Estou vendo que realmente está bem melhorzinha. E os seus

amigos, aí? Quem são?

- João e Ana! São nossos novos amigos que vieram conosco lá

das Grutas, quando estivemos por lá com Mestre Caetano...

- Ah, sim! Entendo. Sejam muito bem-vindos, meus irmãos!

- Agradecemos, “seu” Benedito! Eu quis trazê-los aqui, pois

gostaria de apresentar a eles esse recanto de recolhimento. Sinto

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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que eles irão, assim como eu, precisar passar alguns momentos

aqui para refletir e orar. Além de que gostaria também que eles

conhecessem o senhor...

- Compreendo, mocinha. Se eu puder ajudar com algo, basta me

dizerem...

- Claro! Não tenha dúvidas! (risos)

- Esses companheiros, “seu” Benedito, foram umbandistas

quando estavam na Terra e...

- .... Chegamos doentes aqui! – Adiantou-se, ansiosamente, Ana.

E estamos confusos por não entendermos ainda em qual condição

realmente nos encontramos e que lugar é esse para onde fomos

trazidos.... Quer dizer, nós já sabemos que desencarnamos.

Sabemos que estamos no “mundo espiritual”. Mas, esperávamos

encontrar outra coisa por aqui...

- Sim...muitos esperam. Eu diria aos amigos, se me permitem, que

esse lugar é o recomeço. O Vilarejo, esse templo, as Grutas, os

leitos do riacho, os campos...São o nosso recomeço...

- Recomeço? Não estou entendendo direito... Mas, tudo bem. –

Interveio novamente, a aflita Ana.

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- É natural. Sempre se leva um tempo para começar a clarear

nossos pensamentos e passarmos a compreender melhor essa

realidade que nos cerca.

- Pode ser.…. Pelo menos posso dizer que me sinto bem, estando

aqui. Meu corpo ainda dói. Sinto ainda, de certa forma, as dores

por que passei quando estava doente no hospital da Terra, mas

parece que está diferente agora. Está mais suave...

- São os reflexos e as impressões que ficam no corpo espiritual.

Resquício dos sofrimentos que seu corpo físico passou de

maneira tão intensa. Em breve, vai passar...

- É, “seu” Benedito! Eles ainda estão “se adaptando”! Já falei

disso outras vezes para eles...João? O que foi?

João estava em lágrimas, fitando em silêncio e fixamente as

imagens no altar, perdido em lembranças.

- Nada...me lembrei agora de minha mãe...Como ela deve estar

agora, depois do jeito que “parti”...

“Seu” Benedito afagou carinhosamente o ombro de nosso

companheiro e disse em tom suave:

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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- Garoto, a vida é feita de situações que muitas vezes não

podemos compreender ou comandar. Nas despedidas, ficam as

saudades e as memórias, tanto para quem vai quanto para aqueles

que ficam. No entanto, tudo caminha para um novo encontro,

mais a frente, renovado quando nosso amor está mais maduro em

vista das novas experiências a que somos chamados a trilhar. Com

isso, a felicidade futura também é mais intensa. Mais plena.

- É, “seu” Benedito. Mas é que eu...eu sinto muita culpa pela

maneira estúpida e irresponsável em que deixei a Terra. Eu estava

alcoolizado e...

- Não se detenha em detalhes, meu irmão. Não é preciso repisar

seus remorsos a cada instante. Lembre-se: aqui é o nosso

recomeço.... Aproveitem, meus amigos, que estão aqui e façam

uma prece pedindo forças e alívio para seus corações. A

Providência Celeste não nos abandona, em qualquer situação.

Estejam sempre certos! Enquanto isso, vou deixá-los por aqui um

momento, pois preciso terminar de ajeitar as coisas por aqui, tudo

bem? Filhos, fiquem à vontade.

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- Pode deixar, “seu” Benedito. Nós vamos ficar um pouquinho

mais por aqui e depois já vamos voltar para o Vilarejo, pois

precisamos descansar.

Após um tempo em que permanecemos por ali, ouvimos a voz de

“seu” Benedito a nos chamar, vindo de fora do espaço destinado

à sala de preces. Saímos para um dos jardins que ladeavam o

Templo e encontramos o nobre amigo ancião, adornando uma

figura de pedra, representando a imagem de Jesus Cristo coroado

com espinhos.

Ao nos aproximarmos, podíamos observar com mais detalhes o

trabalho de um exímio escultor e artesão. A imagem simples

retratava nos traços delicados talhados na pedra, expressão

indizível na face do Mestre Nazareno ao ser coroado com os

espinhos que foram postos por seus verdugos, inconscientes e

enceguecidos.

- O Martírio sublime do Mestre Divino deve nos servir de motivo

para reflexão, meus amigos. Aquele que fora o Homem mais justo

e bom que já andou pela Terra, cuja Luz iluminou as trevas da

ignorância espiritual humana, recebeu em seu testemunho

máximo, uma coroa de espinhos. Há quem diga que a Cruz foi o

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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ápice de seu sofrimento. É certo. Contudo, gostaria de refletir com

vocês sobre a Coroa de Espinhos. A coroa que fora posta sobre a

cabeça do Nazareno é um símbolo das dores e angústias humanas,

depositadas sobre Aquele que carregara Consigo uma mensagem

libertadora. Jesus recebe a coroa como um símbolo de escárnio,

ultraje. A mensagem era de desprezo e descrédito. De zombaria e

desconsideração. As maiores chagas e os mais dolorosos flagelos

que alguém pode receber em sua intimidade. Ele os recebeu dos

homens. E ainda assim, tudo suportou com paciência e atitude de

perdão. O sangue que lhe escorria da face e fazia arder os olhos,

devido a maneira bruta em que recebera a coroa ignominiosa,

provocaria em qualquer outro homem um desejo de total

separação e afastamento de tudo que remetesse ao convívio com

outros seres humanos. Ao contrário, Jesus reconcilia a

humanidade com o Divino, colocando-a sob uma nova diretriz e

deixando o caminho de ascensão por meio de seu Evangelho.

Após desencarnar, vítima da crucificação, o Amoroso Rabi desce

às zonas escuras, onde tantos clamavam desesperados e sofridos.

Traz a Luz irradiada de sua Coroa, de suas mãos chagadas e sua

fronte ferida. Sua Luz se espalha por toda uma extensão

inimaginável de regiões sombrias, envoltas na Treva do

esquecimento e da purgação. Raio de Luz que emanava de Si vai

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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clareando e trazendo muitas paragens de socorro para próximo

dos sofredores em localidades inóspitas da escuridão. A partir

Dele e da Luminosidade Espiritual que Ele deixou permanente,

surgiram muitas regiões repletadas por Seres Despertos,

comunidades dedicadas ao socorro e alívio, voluntariados e

desejosos de prestarem-se ao acolhimento do próximo e da

renovação do mundo...Você havia me perguntado que lugar é esse

onde você está, não foi, minha amiga? Pois bem, foi assim que

esse lugar surgiu, assim como muitos outros. O Vilarejo, esse

templo, as paisagens daqui. Os Campos. Tudo hoje existe a partir

do Rastro de Luz e Amor que foram deixados pelo Mestre Divino,

Jesus de Nazaré.

Por gratidão a Ele, os primeiros Despertos que aqui chegaram,

fundaram o Vilarejo e os demais espaços de socorro, educação,

trabalho e convivência que desfrutamos.

Em Sua homenagem, meus irmãos, vamos coroá-Lo, mas dessa

vez com uma Coroa de Flores! Vocês me ajudam?

Mais uma vez, estávamos nós em lágrimas.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Quem caminha por cima da folha...

“Caboclo não tem caminho para caminhar.

Caminha por cima da folha,

Por baixo da folha,

Em qualquer lugar”.

Aquela manhã tornara-se diferente e especial para mim. Após o

encontro da tarde anterior com o “seu” Benedito, sentia-me

envolvida por um sentimento indefinido, embora percebesse que

eu me encontrava suave... Era como se minha visão a respeito

dessa dimensão onde estou tivera se tornado mais clara.

Compreender que a existência de um Ser Sublime foi tão

grandiosa a ponto de transformar as paisagens do Mundo

Espiritual próximo à Terra, fez com que uma enxurrada de

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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pensamentos e ideias despontassem dentro de mim, produzindo

uma gostosa inquietação.

Ao mesmo tempo, conviver com esses amigos especiais.

Personalidades simples, repletas de sabedoria e história sobre a

vida e esse “novo mundo” em que me via. E quanta coisa ainda

devia me aguardar pela frente.

Após as atividades de trabalho e aprendizado, ao longo do dia,

estávamos sendo aguardados por Mestre Caetano para uma nova

oportunidade de observação e integração na dinâmica que

envolvia a comunidade do Vilarejo. Iríamos acompanha-lo para

junto de um novo local, ainda desconhecido para nós – os mais

novos do grupo -, em que poderíamos colaborar com os

acontecimentos que ali experienciaríamos.

- Olá, meus amigos. Como vão? Todos bem? Espero que sim!

Saudou-nos jovialmente, Mestre Caetano.

Sob a nossa resposta uníssona e nossos acenos de que todos nos

encontrávamos tranquilos e ansiosos pela nova jornada, o

professor amigo adiantou, sem demora:

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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- Pois bem! Já que estamos todos bem, partiremos agora mesmo

para o compromisso que nos aguarda. Pelo caminho, explicarei

ao grupo sobre nossa excursão. Vamos!

Partimos, então, por uma trilha aclarada por pequenos lampiões

que se estendiam desde os limites do Vilarejo para dentro de um

corpo de mata que se ia adensando, a pouco e pouco, conforme

mais nos embrenhávamos por ali.

Era ainda o término do entardecer. A penumbra começava a

envolver as claridades do dia, e um número cada vez mais

cintilante de estrelas prenunciava o surgimento de mais um belo

anoitecer naquele Recanto.

Em dada altura de nossa caminhada, cessaram as luzes que nos

acompanhavam e nos deparamos com uma entrada bastante

sombria, por entre um denso corpo de arbustos frondosos. A

escuridão causou, por instantes, um início de temor em muitos de

nós, o que não se prolongou por muito tempo, em vista da

segurança e destemor sereno que se estampava no semblante de

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Mestre Caetano, o qual prosseguia, apesar de nossa relutância, em

direção à entrada repletada de breu.

- Vamos, meus amigos! Em frente! Não temam a travessia.

E, passo contínuo, entrou pelas sombras, deixando-nos atrás de

si. Aproximei-me da entrada e, como se fosse cair por um abismo,

dando passos no vazio, lancei-me pela escuridão, tateando....

Sabia que ante o meu gesto, outros se encorajariam a seguir-me.

Mas, conforme avançava, via que o breu parecia ceder ante uma

luminescência indefinida que envolvia aquela atmosfera

purificada. Os sons do ambiente, que antes me pareciam

ameaçadores, com sibilos de cobras e gritos de aves noturnas,

agora suavizam, dando lugar ao som límpido de uma corrente de

água que fluía calmamente, entoando algo como um mantra em

tonalidade contínua, produzindo uma sensação de despertamento

e aguçamento de minhas percepções. Passei a ouvir cantos suaves

de aves canoras. Folhas verdejantes e avermelhadas caiam em

profusão, tal como chuva, sobre nós.

A claridade parecia aumentar, somada aos odores suaves de

folhagens umedecidas pelo gotejo cristalino do sereno da

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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madrugada, nos transportando para uma dimensão nova e, ao

mesmo tempo, tão próxima àquela em que se encontra o Vilarejo.

Sentia-me como naquela oportunidade em que, também com

Mestre Caetano, via-me tanto na dimensão espiritual, quanto em

meio àquele terreiro, no plano físico. Como se minha consciência

pudesse tocar, de maneira lúcida, duas realidades ao mesmo

tempo tão distintas e tão integradas.

Ao prosseguir um pouco mais, raios dourados de amanhecer

envolviam as paisagens por onde transitávamos e, claramente,

nos apontavam o caminho a tomar.

Não dava conta do quanto caminhamos ou da passagem do tempo.

Mestre Caetano seguia a frente como Guia e o acompanhávamos.

Mas não havia cansaço, senão um turbilhão de sensações e

pensamentos que se iam ordenando dentro de mim. Relembrava

vários episódios de minha vinda para o Vilarejo, minha

desencarnação, várias passagens importantes de minha história

pessoal ao longo da minha vida na Terra. Ia além. Via imagens de

outros tempos passados e, embora, aparecessem rostos e figuras

estranhas para minha memória imediata, sabia no fundo e de

modo indescritível que aqueles quadros representavam

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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personalidades minhas em outras encarnações. E tudo parecia se

encaixar numa ordenação coerente e profundamente confortável.

Mais uma vez, um sentido de paz e plenitude apoderava-se do

meu interior.

Tal como se me reconhecesse em um sonho desperto, vi surgir

em meio ao caminho que se encerrava numa abertura, no alto de

uma montanha, um peculiar e belíssimo conjunto de construções

em formato circular, cujos telhados eram cobertos por estruturas

que lembravam folhas ou palhas espessas de cor arroxeada. Suas

bases eram erigidas sobre constructos lineares de cor amadeirada

e que pareciam amarrados por algum tipo de corda ou cipó. Não

possuíam portas.

As construções se distribuíam ao redor da montanha pelo alto, de

onde viéramos, e nos pés desse novo e encantado Vilarejo,

repousava uma piscina natural e extremamente azul, espelhando

o céu, acima de nós, alegrado por revoadas de pássaros.

Fomos recebidos por três guardiões daquele lugar. Expressavam

autoridade e suavidade em seus semblantes. Traziam marcas

características, embora discretas, em seus rostos e mãos. Não

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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portavam armas de qualquer tipo. Vestiam-se com trajes que

lembravam túnicas simples e de cores claras. Falavam com

Mestre Caetano em um modo que não consegui compreender. No

entanto, o sorriso cordial e afetuoso que dirigiram a nós, após o

primeiro contato com nosso tutor, simbolizava nossa acolhida por

parte dos novos confrades.

- Meus amigos, sigamos com eles! Orientou-nos, Mestre Caetano.

Nossos anfitriões nos aguardam para o início das atividades.

Fomos conduzidos pelos corredores que interligavam aquelas

construções até adentrarmos naquela de maior tamanho.

Chegamos a um grande salão circular, onde já se encontravam

várias pessoas sentadas em silêncio, como se estivessem em

meditação ou oração. Assim como o formato sugerido pelo salão,

essas pessoas também se dispunham sentadas em círculos, como

se não houvesse um sentido de hierarquia entre os que ali

estavam. A mensagem era a de que a responsabilidade daquele

momento pertencia igualmente a todos. Somente podíamos

observar é que havia um círculo entre os demais, composto por

indivíduos de semblante amadurecido, que pareciam mais velhos

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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(depois eu vim a saber, tratava-se do conselho dos Morubixabas

da Aldeia Itaguaçu). Curioso notar que atrás desses senhores,

sentavam-se os adultos e, à sua frente, os jovens e crianças.

Fomos convidados a nos sentarmos nos círculos de dentro, à

frente dos mais velhos, junto dos jovens. Mestre Caetano

permanecia conosco e, em seguida, vimos que um membro do

círculo dos Morubixabas ergueu-se e caminhou em nossa direção.

De braços abertos, sorria amplamente para todos nós. Saudou-nos

de maneira breve, mas muito afetuosa. Voltou-se para Mestre

Caetano e agradeceu a ele por nossa presença.

Sem demora, fez um gesto para os demais e iniciou a atividade a

que fomos chamados a presenciar. Cânticos começaram a ser

entoados. Falavam das matas, dos segredos da Natureza, do valor

da Vida e da Comunidade. Exaltavam a Divindade.

Enquanto os cânticos ocorriam, pude notar que em torno de nós

havia muitos vasos iguais àqueles que recebêramos, repletos do

líquido retirado daquele trabalho no terreiro de Umbanda que

presenciáramos. Eles estavam adornados ali por flores, fitas e

outros elementos que não saberia descrever, como se estivessem

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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sendo preparados, tal como remédios e tinturas obtidos pelo

processo fitoterápico.

Em seguida aos cânticos, potes de argila preenchidos com ervas

secas foram trazidos e pequenas brasas foram depositadas em seu

interior, fazendo as ervas queimarem produzindo leve fumaça, a

qual exalava aromas agradáveis, enquanto iam sendo sopradas ao

longo do recinto e, depois disso, tais potes foram deixados sob

cada uma das quatro entradas que o salão possuía.

A um aceno, o silencio retornou. A figura altiva daquele nobre

senhor dirigiu um olhar para o alto e para todos ao redor. Com as

mãos postas, iniciou:

- Irmãos, agradecemos a todos por mais esta oportunidade de nos

reunirmos em nome do Divino. Congratulamo-nos pela presença

amiga de todos nesse dia!

Hoje é dia de grande alegria para nós. Nossa Vila de Itaguaçu

recebe com honra e satisfação os companheiros dos Vilarejos que

nos avizinham, como o Vilarejo da Imaculada Conceição,

Trindade, Itacuruçá, Nossa Senhora da Piedade, Mirim e São

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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João Batista, para confraternizarmos e apresentarmos os nossos

irmãos que assumiram o compromisso junto aos encarnados na

Terra, frente às Sagradas Leis de Umbanda.

Por favor, apresentem-se, nobres companheiros!

Iniciou-se a entrada de uma pequena procissão, acompanhada de

palmas ritmadas e cantigas que davam a mensagem de

apresentação e confirmação de propósitos daqueles que ali

estavam recebendo a distinção.

Pude reconhecer naquele grupo, a figura da Veneranda Entidade

que recebera Mestre Caetano naquele terreiro que visitamos. Ela

parecia acompanhar, assim como outras Entidades Iluminadas,

um grupo de três espíritos trabalhadores apresentados ao centro

do círculo.

Todos os que ali estavam sendo distinguidos, vestiam-se com

batas de cor branca e discretos colares cristalinos de cores

diferentes. Na cabeça, usavam algum tipo de tiara ou faixa feitos

de tecido ou algum outro processo artesanal. Seguravam nas

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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mãos, potes transparentes esculpidos em pedras brilhantes, as

quais já havia visto anteriormente no Vilarejo.

- Irmãos, queremos saudá-los e distingui-los em seu mérito pela

dedicação e compromisso nessa empreitada de Amor e

Responsabilidade que vocês já desenvolvem há mais de três

décadas, junto às comunidades religiosas com quem

compartilham de suas experiências, paciência e compreensão,

neste trabalho anônimo. Recebam de nós as felicitações e

agradecimentos pela maneira operosa e serena com que todos

vocês têm procurado tutelar e engrandecer as almas dos filhos de

fé que batem às portas dos templos onde os companheiros

mourejam, ou mesmo daqueles que, desconhecedores ou

descrentes de sua existência, rogam apelos para o Céu, pedindo

ajuda e alívio para os sofrimentos de suas vidas. Nenhum deles

sabem ou saberão quem os irmãos foram ou o nome que tiveram

quando encarnados. O trabalho anônimo, velado pela gratidão à

Vida e a plenitude pelo servir é que coroa e abençoa o íntimo de

cada um de vocês. É isso que, em verdade, amplia cada vez mais

a Luz que cada um de vocês irradia. Rogamos a Tupã e todas as

suas Manifestações que envolvam vocês, hoje e sempre!

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Alguns jovens retiraram, então, daqueles potes que permaneciam

distribuídos pelo salão, o líquido suavemente aromatizado, tal

qual essência terapêutica e o despejaram nos potes menores que

cada um dos irmãos traziam consigo. Os colares e as tiaras que

traziam, foram retirados e também foram imersos no líquido dos

potes. Mais uma vez, cânticos harmônicos eram entoados. Por

fim, o irmão que Dirigia a Celebração solicitou que os

representantes de cada Vilarejo se dirigissem ao centro onde

estavam os companheiros que passavam pelo Rito de

Confirmação. Vi, nesse momento, Mestre Caetano tirar de dentro

de sua algibeira, aquela pequena urna onde havia guardado a

pedra cintilante que outrora recebera e a estender em direção aos

três espíritos que eram acompanhados pela Veneranda Senhora.

Sob a orientação do Nobre Espírito, os três estenderam as mãos

em direção ao Mestre Caetano e tocaram ao mesmo tempo a

pedra. Percebi que os demais grupos faziam gesto idêntico,

embora parecessem utilizar objetos distintos.

As Luminosidades pareciam se intensificar e se espalharem por

todo o ambiente, o que passou a promover uma comoção na

plateia que presenciava tão bonito rito. Mais uma vez, sentia

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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como se o Plano Divino se aproximasse de nós naquele instante,

elevando de maneira indelével aquele ambiente.

Nesse momento, os demais membros do conselho Morubixaba

daquela Aldeia de Itaguaçu também se levantaram e, junto com

as Entidades Venerandas que tutelavam aqueles Mentores de

Umbanda, pareciam se transfigurar em espectros iluminados que

irradiavam em direção ao Céu, destituídos totalmente de qualquer

forma que os permitiria reconhece-los como seres humanos.

Ouvíamos somente a voz do Mentor, agora transfigurado, a qual

parecia soar dos quatro cantos:

- Vão de regresso aos Templos da Terra! Retornem ao convívio

dos doentes, aflitos e desesperados! Envolvam em seu amor e

compaixão aqueles que nunca saberão os seus nomes, mas que

necessitam da Providência Divina que a partir de hoje passará a

se manifestar por seu intermédio! Plantai as sementes da

esperança e da força interior no coração dos homens! Protejam

com sua influência benéfica os pequenos, os injustiçados e

marginalizados!

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Irradiem suas Luzes e Essências que hoje passam a estar

diretamente sob seu comando e influência por sobre todos os que

imploram por um momento de Paz e Consolação!

Tragam para junto de si os espíritos que sofrem e estertoram nas

sombras! Estendam suas mãos antes seus apelos! Derramem o

bálsamo em suas feridas. Deem um caminho para os que tateiam

cegos na escuridão!

Vão! Agora vocês são Arautos das Leis Divinas!

Retornávamos às percepções habituais. Aquele estado ampliado

de percepção a que nos fora dado, ia desfazendo-se. Passei a

sentir-me de “corpo inteiro” ali. Antes, parecia que havia deixado

as impressões corpóreas para trás e passara a existir tão só a

minha mente navegando entre aquele turbilhão de luzes

cintilantes e energias incomensuráveis, provocado pelas

transfigurações daquelas Entidades Venerandas, que se

apresentavam para mim como verdadeiras Divindades. Seriam

eles aqueles seres “Despertos” mencionados pelo irmão

Benedito?

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Mestre Caetano estava próximo de nós novamente e sequer

havíamos notado, quando ele me tocou o ombro delicadamente e

nos informou sobre nosso retorno imediato para o Vilarejo.

Caminhamos para a saída da Vila Itaguaçu. Recebemos abraços

amigos e nos despedimos. A volta parecia bem mais suave e

menos demorada que a jornada de ida. Meus pés pareciam flutuar.

Breves instantes estávamos todos chegando à entrada de nosso

Vilarejo.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Encante de Mar

“Quando fito o Mar,

Suas ondas. Seu tempo.

Esse ir e vir que me encanta.

Esqueço de mim.

Peço a estas vagas

Que se me abeiram:

Não me deixem ver, não!

Os mistérios que as águas ocultam”

Após nossa última “aventura” fora do Vilarejo, passamos um

tempo considerável dedicados às atividades cotidianas da

comunidade. Com isso, foi possível também a nós conhecermos

um pouco mais sobre nossa atual morada. O Vilarejo da

Imaculada Conceição, conforme citado pelo Mentor naquela

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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oportunidade. Isso me fez compreender também o porquê daquela

imagem belíssima sob a cachoeira que visitamos quando de nossa

visita às Grutas de Socorro e Tratamento dos nossos irmãos.

João e Ana prosseguiam conosco, cada vez mais deslumbrados,

tal como eu, com o que viam e aprendiam, agora que estavam

melhor adaptados e menos ressentidos de sua condição nesse

“novo mundo” em que nos encontrávamos. Nesse momento,

estavam eles estagiando com outros grupos de trabalhadores, ora

nos campos de cultivo, ora auxiliando no preparo artesanal de

utensílios e medicações da comunidade, ora visitando os

enfermos recém-chegados às Grutas. E foi lá na Grutas que eu os

reencontrei, acompanhada por Mestre Caetano e companheiros de

aprendizado e trabalho.

Procurávamos por um irmão, em particular. José. José Aparecido

Magalhães Costa, seu nome completo enquanto vivera na Terra.

Agora, apenas uma sombra triste do que já tivera sido, enquanto

a juventude conferia a si forças e vigor. Fora um militar de caráter

irascível e violento, conforme observara Mestre Caetano. José

acreditava que somente o ímpeto da coerção e da punição física

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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era o instrumento capaz de “dar jeito” naqueles com quem ele

lidava no seu dia-a-dia de trabalho.

Em suas abordagens nunca relutava em utilizar métodos de

agressão para interpelar “suspeitos”. José e seus companheiros já

haviam, inclusive, provocado a morte e a hospitalização de várias

pessoas, devido às torturas que empregavam para obter as

delações dentro das “favelas” e “cortiços” onde realizam suas

rondas.

Foi assim que sua história cruzou com a de Marcelo, o rapaz que

fora socorrido por Dona Izaldina. Quando Marcelo contava 16

anos de idade, em uma “batida” realizada por José e mais dois

policiais, fora arrastado, com seus quatro amigos, para uma viela

escura. Os rapazes foram espancados e torturados até

“entregarem” o que estava sendo exigido pelos truculentos

policiais. Três dos cinco meninos foram mortos, porém Marcelo

e outro amigo conseguiram escapar após fingirem estarem

mortos.

O que José não contava, nem seus comparsas, é que os dois

rapazes viriam, meses depois, testemunhar em um julgamento

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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promovido pela ação da Corregedoria da Policia Militar, após

denúncias realizadas por veículos da mídia, ocasionando uma

grave mobilização social contra as ações do grupo de

“justiceiros”, ao qual José pertencia. O resultado do julgamento

custara a José sua expulsão da corporação militar e uma dolorosa

prisão, cuja “desonra” o orgulhoso e equivocado José, que se

entendia um defensor da paz e da sociedade, não fora capaz de

suportar, cometendo suicídio dentro do próprio cárcere, contando

com a ajuda de um “amigo” inconsequente.

Após acordar no lado das sombras, sentindo as dores lancinantes

na cabeça e o barulho enlouquecedor do estampido da arma de

fogo com que dera cabo da própria existência corpórea, José

lançou-se atormentado em meio aos Vales Sombrios, gritando o

nome de Marcelo, aquele a quem culpava pela sua desdita. Três

anos vagou em indigência e loucura pelas plagas do desespero e

da revolta, preso à ideia fixa de se vingar do rapaz, sem sequer

perceber que estava sendo induzido pelo envolvimento de seres

da escuridão que o manipulavam e de seu ódio se alimentavam,

como mais uma alma perdida em suas hordas. Até que um dia,

após episódio de intenso desespero e tormento, sucumbiu em

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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estado similar à catalepsia, despertando muito tempo depois, na

casa de Marcelo... O resto da história, nós já conhecemos.

No entanto, agora era chegado o momento da renovação. Do

recomeço, conforme gosta tanto de repetir, “seu” Benedito. E

para isso estávamos ali. Mestre Caetano havia sido enviado pelos

anciões do Vilarejo, após o pedido dos Mentores responsáveis

pelas alas de tratamento das Grutas.

A condição na qual José se encontrava exigia, segundo o que nos

fora dito pelo irmão Paulo, líder do grupo dos socorristas e

terapeutas responsáveis pelo caso do irmão sofredor, cuidados

específicos que ali não seria possível administrar-lhe, dados os

recursos de que dispunham. Sendo assim, nossa caravana

objetivava transportar José para um novo lugar, onde poderia

receber a continuidade de seu tratamento.

Assim, partimos, naquele amanhecer, transportando o

companheiro que se encontrava envolto em uma espécie de

sudário que lhe cobria por inteiro, conservando-o dos olhares em

torno de seu estado de enfermidade e convidando-nos ao respeito

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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e silêncio, cabendo-nos a oração em rogativa pela sua melhora e

reerguimento diante das Leis da Vida.

Mais uma vez, Mestre Caetano prosseguia na frente, orientando-

nos o rumo. Seus passos firmes e o olhar lúcido preenchia-nos

com suave confiança e prazer em nos desincumbir da tarefa a que

fôramos chamados.

Pude notar que nosso enfermo era transportado sem maiores

dificuldades, tal como se o peso de seu corpo, em conjunto à lei

da gravidade, fosse facilmente contornado. E, naturalmente, era.

Esqueço-me, ainda com frequência, que nossa dimensão possui

leis diferentes daquelas do lado físico. A maca simples em que o

enfermo era transportado levitava suavemente, sob o comando

mental de Mestre Caetano. E, novamente, pude observar-me

também como a flutuar, vencendo a resistência oferecida pelo

meu corpo astral, e compreendia que esses fatores eram

suplantados pela irradiação mental do Querido Benfeitor, em

conjunto com outros irmãos trabalhadores mais experimentados,

os quais nos acompanhavam na caravana.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Após superarmos as distâncias que nos levavam a cruzar o

Vilarejo em sentido oposto ao das Grutas, passamos por caminhos

novos, mais uma vez, desconhecidos para mim.

Diferentemente das trilhas que nos levaram a conhecer a Aldeia

Itaguaçu, repletas de vegetação densa e passagens íngremes e

escuras, agora parecia o nosso caminho se desenhar em contornos

mais amplos, alternando entre formações rochosas adornadas por

árvores de regiões serranas. Adentrávamos a serra do mar. Podia

ver pequenas, mas variadas, quedas d’agua que se derramavam

por entre os rochedos formando arco-íris em seu entorno. Curioso

também é que esses arco-íris possuíam formas que se fechavam

em circunvoluções que se moviam e vibravam, exibindo uma

policromia mais abrangente que a paleta de cores que formam

esse mesmo fenômeno na Terra.

Continuamos por entre o caminho da serra até que pudemos

vislumbrar a imensidão de um mar de ondas calmas, tocando areia

branquíssima, enriquecendo ainda mais a visão daquela linda

imagem de praia deserta.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Descemos e tocamos nossos pés naquela areia que emanava um

calor agradável. A brisa parecia purificar-nos interiormente. A

contemplação do horizonte, abrangendo a linha tênue pela qual

Céu e Mar se tocavam, traduzia em mim um sentimento profundo

e inexpressível de ordem e transcendência.

Mestre Caetano acenou para que ficássemos ao redor de si,

formando um círculo. Em seguida, dirigiu-nos algumas palavras

elucidativas:

- Amigos, fomos convocados para essa tarefa de auxílio aos

nossos companheiros das Grutas para ajudarmos no tratamento

do nosso irmão José, conforme todos já sabem. A partir daqui,

iremos entrar em um novo local, tido por nós como Sagrado e,

por isso, precisamos da máxima postura de respeito e reverência

de nossa parte. Conto com o compromisso e a disciplina de todos

para que possamos realizar o transporte desse nosso amigo, da

maneira menos dificultosa possível, dado a delicadeza da

operação que iremos iniciar. Mantenhamo-nos concentrados e em

oração.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Mestre Caetano solicitou ajuda do grupo destacado de irmãos

trabalhadores que nos acompanhavam, os quais se colocaram à

nossa frente, voltando-se de frente para o mar e, após, uma breve

prece, eles passaram a caminhar lentamente e de modo

sincronizado, junto com o nosso Amigo Orientador, em direção

às ondas, no que foram seguidos de perto por nós outros.

Estávamos atônitos e seguíamos caminhando mar adentro. Sentia

a água do mar, sua sensação característica. Mas esta não molhava

meu corpo. Comecei a entender que estávamos em algum ponto

muito próximo da dimensão física e aquela passagem por onde

estávamos trilhando encontrava-se em uma localização imediata

a alguma região litorânea no plano físico. As duas dimensões se

interpenetram de maneira mais intensa nestes pontos naturais.

Prosseguimos por entre as águas. Andávamos em frente, até que

em dado momento a superfície do mar parecia encobrir-nos há

vários metros. E continuávamos, mas agora a sensação era como

a de estar circundada por uma estranha corrente de ar gélida e

intensa, a qual passava por mim continuamente num fluxo

vigoroso. Sentia que aumentava a dificuldade em prosseguirmos

por uma distância maior daquela que já havíamos atingido. A

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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comunicação entre nós estava totalmente anulada. Porém,

imagino que Mestre Caetano e outros colaboradores conseguiam

ainda estabelecer contato devido às suas já aprimoradas

habilidades mentais.

Detivemo-nos em um determinado ponto. Eu não conseguia

perceber ou identificar a presença de peixes ou outros seres

marinhos. Claridades e sombras se entrelaçavam ao nosso redor

e era tudo o que eu podia e conseguia ver. Somente a intensidade

do fluxo etérico da água do mar, em sua forma elementar, é o que

nos envolvia e se impunha a nós. Reconheço com grande clareza

que certamente só estávamos ali devido a companhia dos

Mentores Amigos, que seguiam à frente do Grupo com a

autorização vinda de planos mais altos e a habilidade adquirida

nesse tipo de trabalho.

Pude, então, notar a aproximação de seres que não possuíam

formas humanas, mas que as assumiram ao se aproximarem

lentamente de nosso grupo. A uma distância maior, pareciam

pequenos pontos de luz vindo em nossa direção. Ao se

aproximarem, todavia, foram expandindo seu tamanho e

assumindo forma corpórea. Não era possível ver-lhes as faces,

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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devido a luminosidade que exibiam. Alguns pareciam ter formas

femininas, outros sequer era possível identificar qualquer gênero

que os vinculasse a espécie humana. Em verdade, conforme eu

soubera depois, eram seres que estavam distantes das expressões

humanas, seja por já terem-nas superado há milênios, seja por que

há os que ainda irão passar pela experiência humana. Fato é que

essas consciências não travam contato direto com a mente

humana. Sua realidade dimensional está velada ao contato e ao

intercâmbio com o mundo dos homens, embora coexistam em

regime de silenciosa cooperação. Limitam-se a cumprir o

desiderato a que estão vinculados pela ordem das Leis Espirituais

e Naturais. Acolher, tratar e restituir a forma perispiritual dos

seres que lhes chegam, assim como José, inconscientes e

recrudescidos, em formações degeneradas de seu corpo espiritual.

Seus enfermos entram em seus domínios totalmente

inconscientes e desvitalizados, são tratados e, da mesma maneira

que entraram, são devolvidos às suas dimensões naturais, sem

guardar qualquer recordação dessa realidade dimensional, a qual

nesse momento não somos capazes de captar e compreender.

O grupo de “seres encantados” recebeu o corpo inerme e

involuído daquele que fora José e, delicadamente, foram

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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retornando às profundezas, em um gesto de respeito e reverência

a nós, ao que também nos sentimos compelidos a corresponder.

Nesse momento, os Encantados já haviam assumido novamente a

forma de pequenas luzes, retornando ao seu Lar nas profundezas.

Retornamos com Mestre Caetano e os demais para a praia.

Repisamos a areia branca e quentinha, a nos recarregar e

reconduzir, aos poucos, ao nosso estado natural. Estávamos

entretidos, compartilhando entre nós as nossas percepções sobre

essa nova experiência quando fomos chamados pelo professor:

- Meus amigos, vejam isso! Disse, apontando na direção do mar.

Ao nos voltarmos na direção indicada pelo Benfeitor, reparamos

uma grande formação que parecia emergir das águas a uma

relativa distância de onde nos encontrávamos. Algo que se

assemelhava a uma construção em formato piramidal, constituída

de paredes translúcidas. Parecia agora levitar sobre a superfície

do oceano. Girava de forma lenta e parecia absorver elementos

contidos na água, na atmosfera ao seu redor, assim como a

radiação solar, enquanto um halo dourado formava-se em todo

seu redor, concluindo com uma linha de luz que passou a irradiar

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 151 ]

de seu topo em direção ao Céu. Assim permaneceu por alguns

instantes até submergir e desaparecer nas águas.

Enquanto eu estava ali, surpresa e imóvel, outros amigos

disseram haver notado que formas idênticas àquela construção

haviam emergido em outros pontos do mar.

“Permanece velada a nós essa dimensão em que habitam esses

seres”, afirmou Mestre Caetano. E prosseguiu:

“Estes irmãos são capazes de produzir obras portentosas com o

fruto de suas construções mentais, funcionando como verdadeiros

portais entre a Dimensão Natural e a Dimensão Divina, pelas

quais elas transmutam e renovam os recursos etéricos que

garantem a vitalidade da Natureza e, consequentemente, a

conservação da vida planetária.

Estamos, indubitavelmente, muito longe de conhecer o tamanho

de sua importância para o equilíbrio interdimensional, assim

como qual a extensão real de sua obra em nome das Leis Divinas

e Naturais.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 152 ]

De nossa parte, resta-nos somente respeitá-los, reverencia-los,

colaborando com sua obra grandiosa e inacessível a nós,

oferecendo o equilíbrio de nossas projeções mentais e - porque

não? –, admirar esses verdadeiros espetáculos que a condição de

espíritos desencarnados hoje nos proporciona, não é?

Oremos antes de nosso retorno, meus irmãos”.

Emitimos nossas preces em silêncio e recolhimento.

Era entardecer. Um belo entardecer.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Bandeira Branca de Umbanda

“Flâmula Divina

Tremulas altaneira

Enlevada pelas carícias dos ventos

E dos raios de Sol.

Símbolo da paz e da união.

Totalidade que congrega.

Somos uma e muitas.

Almas que ao Pai se elevam”.

Entardecia. E corriam em minh’alma pensamentos céleres.

Memórias cândidas perdidas em meu silêncio, enquanto

repousava-me à margem do meu adorado riacho. E as flores

voltavam a preencher-lhe as águas de margem a margem.

Delicadas. Luminosas. Perfumadas... Como minha mãezinha....

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Onde ela estaria? Conquanto sentia-me bem e confortada junto

daquelas almas amigas, faltava-me o calor de seu abraço e o

aconchego de sua presença. Lágrimas saudosas molham-me o

rosto.

- Clarinha! Clarinha! – Ouvia a voz infantil de um dos pequenos

daqui a me retirar dos devaneios em que me perdia -. Clarinha!

João e Ana estão procurando por você! Irmão Caetano está

chamando vocês! Venha!

Levantei-me, sem demora. Qual seria a nova jornada que nos

aguardaria?

Pelo caminho até o centro do Vilarejo, encontrei João e Ana.

Fomos todos ao encontro do Benfeitor que nos aguardava.

Ao chegarmos, Mestre Caetano encontrava-se acompanhado dos

Anciões da nossa comunidade. Conversavam em tom leve e

jovial, quando nos avistaram e nos receberam em seu grupo de

semblantes abertos e sorridentes.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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- Como vão, meus amigos? Todos estão bem? Iniciou o Amigo

Orientador, enquanto sinalizava para que todos se colocassem em

forma de círculo, de maneira que todos pudessem se ver e

interagir.

- “Queremos solicitar a colaboração do grupo de amigos

trabalhadores de nossa comunidade no que se refere ao auxílio

em algumas atividades, para que possamos organizar nosso

Vilarejo para receber uma caravana de Almas Queridas para nós

que virão nos visitar, na próxima noite.

Eles veem de longa jornada e repousarão conosco antes de

seguirem com sua missão. Para nós, é sempre uma grata

oportunidade recebermos estes irmãos, uma vez que tal evento só

ocorre a cada 7 anos, se considerarmos o tempo da Terra, de onde,

eles estão vindo em procissão, trazendo consigo uma série de

experiências e almas que deverão ficar conosco, abrigadas em

nosso carinho e solicitude gratuitos.

Iremos destacar alguns irmãos que já conhecem as atividades que

deveremos realizar para prepararmos a recepção dos

caravaneiros. Eles irão lidera-los em pequenos grupos. Ana, João

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 156 ]

e Clara, vocês ficarão com o amigo Marcos. Ele irá transmitir a

vocês as orientações acerca do trabalho que vocês deverão

realizar. Sigam com ele”.

Marcos era um jovem senhor que aparentava uma idade humana

em torno dos 40 anos. Esguio e com olhar tranquilo, era

conhecido por todos na comunidade por conta de seu

comportamento gentil e dedicado às tarefas do Vilarejo. Havia

sido médico e professor universitário enquanto vivera encarnado

e deixado a vida corpórea após um tumor agressivo ter ceifado-

lhe as energias em curto período de tempo após sua descoberta,

obrigando-o a partir para a Aruanda Infinita, deixando esposa e

dois filhos ainda infantes. Conforme ele mesmo nos revelara, a

chegada ao mundo espiritual e sua adaptação ao Vilarejo foram

muito dolorosas para si, no entanto, a paciência e o carinho de

Mestre Caetano e dos Anciões, foram o bálsamo de que precisava

para aceitar a nova condição que a vida tivera lhe chamado e

agora, passados vários anos desde sua partida da Terra,

encontrava-se confiante e seguro, além de já ter a oportunidade

de visitar os filhos e esposa, por algumas vezes, em companhia

de Mestre Caetano.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Conduzimo-nos, então, para a área alumiada pelas lamparinas,

em direção ao riacho. Agora deveríamos nos focar no trabalho a

fazer. Marcos havia nos orientado a buscar algumas ramagens e

folhagens na beira do riacho, pois estas seriam utilizadas na

confecção de objetos que fariam parte do momento da celebração

na chegada da Procissão dos Peregrinos, nossos visitantes.

No entanto, as folhagens que deveríamos obter somente poderiam

ser retiradas ao anoitecer. Toda a fauna e flora que compõe a

Natureza em nossa dimensão obedece a ciclos e ritmos que não

devem ser desrespeitados e, portanto, o sistema de Vida de nossa

comunidade estava construído sobre uma relação de sacralidade

entre as almas humanas e o espaço natural que nos cerca. Lição

que a civilização terrena ainda precisa aprender!

Colhemos, junto de irmão Marcos, as folhagens das quais

brotavam pequenas flores em forma de trevo, em cor azul escura.

Exalavam um aroma cítrico, algo amadeirado que se espalhava

por todo o ar, inebriando o perfume.

João, Ana e eu carregamos as folhagens para o centro do Vilarejo

e as depositamos ao lado da grande Pedra Angular, conforme o

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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ritual cotidiano de partilha dos bens da comunidade, ao qual já

estávamos habituados.

Vi que não somente nós, mas também outros traziam elementos

diversos. Sementes, seixos, varapaus, fitas, cordões, líquidos

aromatizados, cereais, vasilhames, contas brilhantes, tecidos,

entre outros. “Seu” Benedito viera acompanhado de alguns

jovens trazendo imagens esculpidas, fruto de suas mãos de

artesão. Também as colocara em meio à partilha das ofertas.

Encontrava-se emocionado pela ocasião da vinda dos Peregrinos,

conforme relatara aos Anciões e ao Mestre Caetano.

Após o término desse momento de entrega dos elementos que

cada grupo se encarregara de obter, reunimo-nos em torno destes

e fomos conduzidos pelos Anciões a proferir tocante prece. Atrás

de nós, ouvimos o som envolvente de instrumentos de cordas

sendo executados por alguns dos Anciões, acompanhados por

jovens e mulheres. Além de violas e violões, instrumentos

percussivos e de sopro compunham uma orquestra popular muito

bem ensaiada.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Comecei a me lembrar das vezes em que, na Terra, pudera

presenciar apresentações das Congadas em festas devocionais

populares. Dançávamos. Cantávamos. Encantávamo-nos.

Encantávamos o que ali entregamos...

Envolvia-me em um sentimento de profunda alegria e gratidão,

enquanto aquelas mãos amigas seguravam as minhas e me faziam

girar, suavemente. Enlevada por sensações agradabilíssimas,

contemplava o céu e via um luar belo. Não nos preocupamos com

o passar do tempo. Olhava os elementos que compunham a

partilha e percebia que esses emitiam luminescências cada vez

mais irradiantes, conforme as vibrações e as entonações

transmitidas pelos instrumentos e as vozes que cantavam. Da

mesma forma, eles também respondiam às preces que

proferíamos ou mentalizávamos, quando solicitadas pelo Ancião.

Já era, então, o amanhecer. O véu de estrelas ia se dissipando,

enquanto as luzes do Sol iam vencendo as distâncias celestes,

construindo a aurora. Extasiada, eu olhava os rostos de João e Ana

que estavam visivelmente emocionados com tudo aquilo.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Novamente, o irmão Marcos nos chamou a dar continuidade em

nosso trabalho, auxiliando agora nas tarefas de decoração do

Vilarejo e na confecção de alguns dos objetos que fariam parte da

celebração daquela noite.

Passamos todo o transcurso do dia estendendo fitas e bandeirolas,

as quais cruzavam toda a extensão da área central do Vilarejo. Os

casebres todos enfeitados.

As esculturas de “seu” Benedito continuavam ao lado da Pedra

Angular e estavam agora adornadas por fitas e enfeitadas por

arranjos de flores, folhagens e contas brilhantes, encimadas em

andores que foram preparados com varapaus e cordões. Juntos

das imagens, também estavam sendo depositados cestos repletos

de pães, vasilhames com caldos e jarros com sucos.

O Vilarejo estava enfeitado para um importante acontecimento.

Clima de festividade e fé predominava. E, junto disso, uma

grande paz e tranquilidade em todos. Parecia até que a Luz de um

Anjo estava descendo das alturas até nossa humílima

comunidade.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 161 ]

Tudo já se encontrava pronto no final do entardecer. Todos já

estavam no centro do Vilarejo, tomando todas as passagens.

Expectativa.

Ouvia o murmúrio de preces proferidas pelos mais velhos da

comunidade. O brilho nos olhares das crianças e dos jovens. O

tom de seriedade de Mestre Caetano, enquanto caminhava entre

as pessoas, parecendo velar pelo bem-estar de todos. Violeiros

estavam a postos, empunhando seus instrumentos decorados por

fitilhos. Mais cestos com alimentos vinham chegando para o

centro do Vilarejo. As primeiras estrelas daquele novo anoitecer

despontavam no Céu. Silêncio e prece. Risos de crianças. Amigos

de mãos dadas. Luar. As fímbrias da tarde cediam. Lugar do

anoitecer.

Começamos a ouvir ao longe um som que parecia o de uma

trombeta que soava, anunciando a chegada dos Peregrinos. Aos

poucos, iam seguindo-se vozes cada vez mais altas e claras,

embora serenas. Uma aura de devoção muito intensa tomava o

espaço do Vilarejo. As vozes foram se tornando mais altas e já

podíamos vislumbrar uma pequena multidão que vinha cantando

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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canções de fé, que pareciam as louvarias dos sertões e interiores

brasileiros.

Foi quando os Peregrinos adentraram pelo portão principal.

Cantando. Traziam, em procissão, imagens de São Benedito e de

Nossa Senhora do Rosário. Nossa Senhora do Carmo e São

Francisco de Assis. Cantavam. Cantavam mais e mais. E jogavam

ao ar pétalas de flores e um pó cintilante em cores vivas que se ia

espraiando pelo ar. Vinham liderados por um grupo que portava

uma grande bandeira branca, com alguns símbolos inscritos em

seu interior.

Conforme entravam, muitas palmas começaram a soar, vinda das

pessoas do Vilarejo. Almas choravam. Notei que “seu” Benedito

se prostrara, de joelhos, com as mãos no peito e olhos fechados,

em oração. Um círculo de cor alvinitente pairava sobre sua cabeça

grisalha. Junto dele, outros Anciões e Mestre Caetano. O grupo

dos Peregrinos parou em frente aos Anciões do Vilarejo e um

deles, o qual aparentava ser um senhor de idade bem avançada,

trajando camisa e calças simples, tal como um sertanejo, estendeu

as mãos para o nobre irmão, “seu” Benedito, pedindo-lhe que se

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 163 ]

levantasse, seguido dos demais, para que a celebração pudesse

prosseguir.

As imagens trazidas pela procissão foram também colocadas

junto daquelas trazidas por “seu” Benedito e, lentamente, a junção

de suas luzes, formou um intenso clarão que subia aos Céus.

Agora pude notar que, seguindo os Peregrinos, um verdadeiro

cortejo de almas os acompanhavam em silêncio. Olhos baixos.

Direcionados às imagens, fitando-as como se aguardassem uma

resposta de Deus. Pude perceber em seus semblantes que aquela

pequena multidão não irradiava de si aquela luminosidade dos

Peregrinos, mas que era por esta envolvida.

Marcos, então, disse-nos, ao direcionar-lhe minha indagação a

respeito, que aquelas eram almas congregadas pelos Peregrinos,

quando de suas passagens pelas dimensões próximas à Terra. São

aqueles que deixaram o veículo físico, mas que por motivos

vários, não puderam tomar consciência de seu estado atual.

Entorpecidos, confusos ou mesmo apegados a determinados

objetos, pessoas ou lembranças do mundo que deixaram, fixaram-

se dentro de seus antigos lares, leitos de morte, na tentativa de

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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permanecerem ao lado daquilo que amam. Outros, amedrontados

diante de uma realidade que não se viram capazes de apreender,

como muitos de nós quando desencarnamos, mantiveram-se

ligados ao ambiente do lar, aos hospitais, igrejas ou demais

templos religiosos com os quais se identificaram, praças e ruas

familiares à sua memória e, até mesmo, aos Campos Santos, os

cemitérios, onde tiveram o último contato com seu corpo físico.

Os Peregrinos caminham por esses lugares, buscando congregar

e acolher essas almas. Não são almas culpadas ou envenenadas

pelos vícios e desequilíbrios morais. Tão somente, são almas que

ainda não conseguiram, por si mesmas, tal como nós, descortinar

as sombras que povoam a passagem para o mundo espiritual

luminoso, a nossa Aruanda.

A atitude de fé, devoção e carinho dos Peregrinos é capaz de

tocar-lhes o íntimo e demovê-los do temor de avançar na

dimensão de cá, senão pelo completo esclarecimento desta nova

vida a que foram lançados, pelo menos pela confiança de que

essas almas simples e benevolentes podem lhes dar um caminho.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Alguns ficarão por aqui, conosco, quando a procissão seguir, ao

amanhecer. Outros, seguirão com eles para outras comunidades

onde possam fazer morada. Oremos por eles.

As preces e louvarias prosseguiram por toda a noite ao

amanhecer. Chegara o momento de a procissão seguir seu

caminho. As imagens de “seu” Benedito seguiriam com eles.

Nossa Senhora dos Navegantes e São Sebastião. No entanto,

agora foram formados dois grupos distintos. Alguns dos

Peregrinos organizaram uma nova caravana, na qual se juntaria

um destacamento composto por trabalhadores do Vilarejo, entre

eles “seu” Benedito, Mestre Caetano e irmão Marcos. Partiriam

de retorno à Terra. Eu seguiria com eles.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 166 ]

Samborê, Pemba de Angola

“Eu abro a nossa gira

Com Deus e Nossa Senhora.

Eu abro a nossa gira,

Samborê, Pemba de Angola” 2

Seguíamos em direção à dimensão da Terra. E caminhava

ouvindo as sonoridades dos cânticos das orações dos

Peregrinos. Tentava acompanha-los, como podia. Notei que

havia uma energia intensa que envolvia a procissão em que

estávamos.

2 Ponto de domínio público, utilizado pelos terreiros de Umbanda no rito de

abertura dos trabalhos. Traduz um sentido de proteção divina e um momento

de grande força espiritual manifesta no ambiente do terreiro (Nota do autor).

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 167 ]

Notávamos que conforme avançávamos pelos caminhos que

nos conduziriam ao plano imediato ao da crosta planetária,

meus movimentos pareciam se tornar mais dificultosos. Meu

corpo de espírito parecia enrijecer. Não fosse o auxílio do

campo de irradiação mental de Mestre Caetano e daqueles

Mentores Viajantes, certamente eu não teria resistido a

travessia.

Uma região de espessa névoa acinzentada nos envolveu, a

certa altura do caminho. Mais do que nunca, eu sentia como

se houvesse ganhado meus pulmões de volta, assim como

meu coração. Meu peito arfava e eu expressava um acentuado

cansaço. Toda a extensão do meu corpo parecia dormente e

não aceitava mais obedecer à minha vontade. Desfaleci.

Quando acordei, vi a figura de Marcos e Mestre Caetano,

amparando-me, carinhosamente. Olhei ao redor e me vi

dentro de um grande salão, repleto de cadeiras. Ao fundo,

cortinas cobriam uma parte daquele salão. Já sabia que

estávamos em algum lugar da Terra. As energias daquele

ambiente me faziam recobrar a vitalidade dos sentidos,

restabelecendo minhas forças. Pelo símbolo suspenso no alto

do salão, entre o espaço que dividia o lugar onde estávamos e

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 168 ]

a área próxima às cortinas que escondiam por trás de si um

grande altar, prontamente reconheci que estávamos em um

terreiro de Umbanda.

Na entrada à direita do espaço sagrado, a grande maioria das

pessoas reverenciava um ponto específico da casa e se

dirigiam para a área destinada a assistência, aguardando o

início da sessão. Percebia uma série de pessoas sentadas nas

cadeiras daquele salão. E sabia que elas não nos viam.

Diferentemente, notei que no espaço próximo ao congá que

se ia aos poucos preenchendo de trabalhadores daquele

templo, trajando vestes brancas e colares de conta, haviam

espíritos que nos observavam e registravam nossa presença,

assim como alguns dos trabalhadores encarnados que

pareciam nos perceber de alguma forma, embora não fossem

capazes de registrar a totalidade dos espíritos que ali estavam.

Nossa caravana estava inteiramente presente ali. Contávamos

em quase uma centena e os encarnados, salvo as exceções

citadas, não nos notavam a presença. Afora nosso grupo,

havia uma grande assistência que superava em muito a

quantidade de pessoas na assistência do plano físico, sendo

que os encarnados somavam dezenas de pessoas.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 169 ]

Conservávamos todos um silêncio absolutamente respeitoso,

seguindo as orientações dadas pelo líder da procissão.

Do lado terreno, tal postura não era compreendida e seguida

por grande parte da assistência, a qual se mantinha inquieta,

fosse pela conversação entre frequentadores ou mesmo por

aqueles que mantinham a boca fechada, mas que sustentavam

pensamentos por caminhos desordenados dentro da casa

mental. “Se os encarnados soubessem do real valor de uma

mente bem orientada por práticas como a meditação e a

oração, as quais podem lhes ajudar em muito a sustentar uma

postura saudável de ordem nos pensamentos, certamente

dariam uma atenção muito maior a isso, e não encarariam

essas práticas e orientações somente como disciplinas

compostas por ordens tediosas e desnecessárias, impostas

pelos costumes religiosos”, comentara Mestre Caetano. Eu

percebia que as emissões de pensamentos desorientados,

desrespeitosos e agressivos chocavam, como descargas

elétricas, muitas das almas doentes que ali estavam,

conduzidas por entidades que as tutelavam, as quais tinham

que lançar mão de esforços mentais ampliados para que esses

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 170 ]

irmãos não sofressem tanto com aquelas ondas de choques

emitidas pelos encarnados desavisados.

Notei que haviam espíritos trabalhadores naquele templo, que

também se desdobravam em tarefas que visavam a

estabilidade energética daquele ambiente espiritual, enquanto

procuravam inspirar, com até certa dificuldade, aos

frequentadores para que voltassem ao silêncio e a prece

direcionada ao equilíbrio interior.

Não foi sem consideráveis esforços que o ambiente pode ser

devidamente equilibrado, embora do lado terreno as pessoas

supusessem aquela harmonia como gratuita. A assistência

cheia, “de ambos os lados”, agora se encontrava em

expectativa, enquanto observavam o término da entrada do

grupo de médiuns na área a eles destinadas, próximo ao

congá. Colocavam-se em suas posições, após o ritual de

“bater cabeça” aos pés do congá.

Uma vez que todos estavam posicionados em seus respectivos

lugares, deu-se início a um momento de preces e cantorias,

conduzidos por algumas pessoas que pareciam guardar essa

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 171 ]

função e que permaneciam próximas ao líder religioso

daquela comunidade.

Em conjunto ao que ocorria na dimensão terrena, observei que

claridade tênue passara a se formar em torno da cabeça dos

encarnados vestidos de branco, os chamados “filhos de santo”

ou “cavalos de santo”, assim como por sobre todo o corpo de

integrantes de trabalhadores da casa, dentre os quais alguns

encontravam-se do lado de fora do espaço dos trabalhos,

auxiliando nas tarefas de recepção e organização da casa. De

igual maneira, naqueles que permaneciam próximo aos

instrumentos, os chamados ogãs e curimbeiros. Essa claridade

unia a todos, ligando-os pelo alto de suas cabeças, formando

uma verdadeira corrente e assumindo uma aura dourada ao

atingir o centro da cabeça do líder religioso, fechando o ciclo

que a luz percorria continuamente.

Pude notar também que havia membros da assistência sobre

os quais também essa faixa luminescente aparecia, conforme

mais aprofundado seu estado de oração e silêncio.

Page 172: Conto de Aruanda_livro

Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 172 ]

Sob o comando do líder religioso, o qual permanecera até

então em silenciosa oração, iniciou-se um canto que trazia a

mensagem de que aquela reunião teria início. A comunidade

encarnada e mesmo alguns desencarnados passaram a seguir

a canção entoada pelo dirigente do templo, em uníssono,

enquanto as cortinas que tampavam o altar iam se abrindo:

“Os Pretos-Velhos e os Caboclos,

Vamos todos saravá.

Vamos pedir licença a Deus,

Nosso Senhor,

Para os trabalhos começar.

Senhor do Mundo, Oxalá meu Pai.

Baixai, baixai na Umbanda, meu Senhor!

E toda a Terra Iluminai”3

Os batuques assumiam a condução dos cânticos agora, dando

um tom de alegria e de festividade àquela expressão musical,

ao mesmo tempo em que era possível verificarmos a postura

3 Ponto de domínio público, muito conhecido em diversas casas de umbanda e

sugerido pelo Primado de Umbanda em suas orientações litúrgicas (Nota do

autor)

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 173 ]

de reverencia e sacralidade destinada aos instrumentos e aos

seus executores.

Em seguida, dois membros da comunidade religiosa,

devidamente paramentados, entraram pelo espaço sagrado em

direção ao dirigente dos trabalhos, trazendo um pote de argila,

dentro do qual ervas ardiam em brasa, espalhando um aroma

intenso de alecrim e arruda por todo o recinto, conforme a

fumaça do pote era conduzida pelos quatro cantos daquele

terreiro, após o sacerdote ter circundado todo o congá com a

defumação. Os cânticos, assumiam o tema rito-litúrgico do

momento:

“Defuma com as ervas da Jurema,

Defuma com arruda e guiné.

Benjoim, alecrim e alfazema.

Vamos defumar filhos de fé”4

Na assistência espiritual, aquelas almas agitadas e

desgastadas, aparentando profunda falta de vitalidade,

4 Idem (N.a.)

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 174 ]

pareciam agora envoltas nos eflúvios emanados pela queima

das ervas, e a luminosidade suave que as parecia hipnotizar,

modificando seu estado de consciência. De igual forma,

aqueles na assistência encarnada, e mesmo alguns filhos de

santo, cujas emanações de pensamento construíam formas

perturbadas e desarmônicas, denunciando a má condução do

campo emocional em que se encontravam, pareciam ser

diluídas pelo campo energético do ambiente.

Uma sonoridade peculiar passara a ser ouvida por nós, na

dimensão espiritual, ao mesmo tempo em que podíamos ver,

nitidamente, surgirem no centro alto do salão formas

circulares e giratórias, tal como vórtices, desprendendo

grandes descargas elétricas, cujas dimensões ultrapassavam

os limites da construção física do terreiro.

A partir daí, comecei a reconhecer aquele templo de

Umbanda. Estávamos no mesmo local em que fôramos

transportados por Mestre Caetano, quando realizamos aquele

trabalho no clarão das matas, próximo ao Vilarejo. Vi surgir

uma irradiação de luz notável que parecia cobrir toda a

extensão do templo. Reconheci a Veneranda Senhora quando

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 175 ]

seu espectro luminoso passou, aos poucos, a assumir uma

forma corpórea. Os raios de luz que emitia davam conta de

que se tratava de um Ser muito elevado, esplendendo em

sentimentos intensos de Amor e Compaixão.

Observei a assistência espiritual, totalmente emocionada por

aquela presença que pairava no alto do congá. Consigo, ela

trouxera uma grande quantidade de espíritos, tornando-se, por

si mesma, um verdadeiro portal entre mundos, por onde as

chamadas linhas, correntes e falanges espirituais, em nome

das Leis de Umbanda, atingiam o plano hiperfísico,

interpenetrando o plano terreno e conseguindo sintonizar e

envolver-se com os halos luminíferos irradiados pelas

“coroas” dos médiuns.

Um verdadeiro turbilhão de raios, aromas e sonoridades

circulavam o ambiente, num fluxo contínuo e envolvente,

conforme aqueles grupamentos espirituais entrelaçavam-se

com os médiuns, tal como na ocasião anterior em que

presenciamos estes ritos. Baixavam os pretos-velhos, o povo

das águas, caboclos, baianos e boiadeiros.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 176 ]

Alguns médiuns destacados, compondo dois grupos distintos,

agora formavam um círculo sob o comando do dirigente, no

centro do salão. Passaram a aplicar passes nas pessoas da

assistência encarnada. A correnteza de energias circulantes no

ambiente passara a ser conduzida em torno do campo

luminoso que se formara ao redor do corpo dos médiuns. “A

intensidade e estabilidade daquelas irradiações são

comandadas pelos espíritos que ali permanecem junto dos

médiuns, utilizando-se do fluido vital que percorre pelos seus

organismos biológicos, servindo como condutor para que os

elementos e energias manipulados no plano etérico e

espiritual possam repercutir e influenciar as estruturas

orgânicas e sutis daqueles que estão recebendo os eflúvios que

se irradiam dos sensitivos, na esperança de obterem algum

tipo de benefício psicológico, espiritual. Mesmo a cura de

doenças físicas ou males externos de que padecem, como a

falta de emprego, problemas familiares, etc, crendo que a

energia do passe poderá lhes auxiliar a modificar sua condição

atual”, explicou-nos Mestre Caetano.

Aproveitando a oportuna lição do Amigo Benfeitor, Marcos

observou que havia notado condições diferenciadas entre os

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 177 ]

médiuns que ali estavam posicionados na “linha de passe”.

Alguns dos médiuns apresentavam uma condição peculiar em

seu campo energético. Nestes, os eflúvios pareciam se

dispersar de maneira abrupta, quando entravam em contato

com a exsudação do fluido etérico/vital de seus corpos. Ao

contrário dos demais, em que os eflúvios corriam pelo corpo

e se estendiam pelas pontas dos dedos, olhos, boca e nariz,

além dos centros luminosos distribuídos pela linha central de

seus corpos.

Teriam aqueles médiuns alguma dificuldade orgânica ou isso

se dava, talvez, por serem ainda médiuns inexperientes

naquela tarefa?

“Ambas as situações”, explicou-nos Mestre Caetano. “Muitos

irmãos que possuem hábitos propícios para a desvitalização

do organismo físico, tal como o tabagismo, o consumo

habitual de bebidas alcoólicas, preferências alimentares

pouco saudáveis, vida sexual desregrada e, até mesmo, maus

hábitos na hora do sono e repouso, acabam dificultando sua

capacidade de concentração e absorção de campos

energéticos positivos, dado a sua natureza extremamente

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 178 ]

sutil. Tanto é assim que, não raro, tais desvios no cuidado com

a saúde orgânica, se prolongados, provocam, ‘mais dia,

menos dia’ o surgimento de doenças naqueles que assim se

demoram. De outro lado, também a inexperiência e a mente

ainda destreinada quanto aos processos de concentração e

mentalização dinâmica, essenciais para o exercício do

mediunismo de Umbanda, no que se refere ao socorro e

auxílio ao próximo, provocam no médium iniciante uma

maior dificuldade na coordenação e condução dos eflúvios

balsâmicos e curativos, uma vez que o pensamento de dúvida,

ou dispersivo, desestabiliza a coesão do campo mediúnico.

Não devemos desconsiderar, porém, que os Mentores que ali

envolvem os médiuns, em especial nestes casos, empreendem

recursos adicionais, mesmo que lhes exigindo maiores

esforços e extraindo dos circunstantes fluidos

compensatórios, para auxiliar no trabalho destes cavalos de

santo, de maneira que as dificuldades apresentadas por estes

não sejam obstáculo instransponível ao objetivo final do

trabalho, que é o amparo aos irmãos que estão ali em busca

de socorro e pela sinceridade de sua fé.

Page 179: Conto de Aruanda_livro

Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 179 ]

Não olvidemos também que, de um lado temos aqueles que,

embora experientes, se demoram em comportamentos e

hábitos verdadeiramente nocivos, por enquanto incapazes de

empreender sua devida superação. De outro lado, estão

aqueles que erram por inexperiência e desconhecimento, mas

que sob orientação e dedicação adequadas, em tempo poderão

superar a dificuldade momentânea. De um lado ou de outro,

ambos merecem de nós compreensão e cooperação

silenciosas, evitando sempre, contudo, a acomodação

inoportuna e o desculpismo imaturo, para que não se

cristalizem crendices fantasiosas dentro do ambiente

religioso, tão pouco fomentando a formação de adeptos

inconscientes da sua responsabilidade diante das Leis da

Vida, contrariando os objetivos da experiência religiosa, a

qual deve ser sentida em profundidade como transformadora

e libertadora da alma humana, amadurecendo-a e tornando-a

sempre, e cada vez mais, saudável física, psicológica e

espiritualmente”, concluiu.

“Seu” João Ordário, simpático senhor e um dos líderes dos

Peregrinos, o qual ouvia atentamente nosso diálogo, interveio,

acrescentando: “ Diante das Leis de Umbanda, o filho de

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 180 ]

santo, médium ou não, deve compreender que é templo vivo

por onde o Sagrado manifesta-se. É ele próprio, seu corpo e

sua mente, a ponte e o portal que interliga os dois mundos.

Mundo dos homens e Mundo Divino. Constitui engano

recorrente nos religiosos encarnados, especialmente dentre

nossos irmãos umbandistas, crer que se pode amealhar

valores para o espírito sem cuidar dos recursos que lhe servem

como sustentáculo para a vida no mundo corpóreo, qual sejam

justamente seu organismo físico e seu mundo íntimo,

emocional. Na Umbanda, nossos amigos encarnados

prosseguem ainda infantes e distraídos, em sua maioria,

perante essas verdades.

Contudo prosseguimos a inspirá-los, na esperança de uma

transformação e amadurecimento de nossos irmãos, a quem

devotamos nossa máxima afeição e carinho. Até lá,

continuamos a acolhê-los em sua crença, sentimentos de fé e

esperança, dores e desilusões, uma vez que em sua grande

maioria, prosseguem aportando do nosso lado, ao mesmo

tempo, desiludidos quanto a realidade que pensavam que

encontrariam e surpreendidos por descobrirem a Aruanda

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 181 ]

Bendita muito mais bela, grandiosa e mágica do que seus

sonhos, cantigas e histórias dão conta”.

Meditamos por breves momentos em silêncio, enquanto

admirávamos a sabedoria nas palavras do nobre senhor.

Realmente, estávamos diante da oportunidade de

compreender acontecimentos tão complexos e defesos à

apreensão dos sentidos de um ser humano limitado às

condições dadas pelos seus órgãos sensoriais dentro da massa

fisiológica.

Enquanto ouvia as palavras do Mentor Amigo, observava que

todo o ambiente daquele templo havia se tornado um

aglomerado energético em que múltiplos campos de forças

sutis e, concomitantemente, tão palpáveis para nós “desse

lado” se entrechocavam, repercutindo uns sobre os outros.

Correntes de pensamentos, vibrações sonoras dos

instrumentos e vozes, cores múltiplas, aromas diversos,

elementos vegetais, a chama das velas, fumaça das ervas,

objetos sacralizados, pontos riscados, centros de força

distribuídos pelo templo. Tudo compunha uma dança

Page 182: Conto de Aruanda_livro

Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 182 ]

universal que rompia com as barreiras do tempo e do espaço,

em cujo fluxo, correntezas poderosas de energias eram

transportadas para dentro daquele ambiente, assim como

outras eram levadas para além deste, carregando consigo

muitas das almas aflitas que estavam ali na assistência.

Momento chegou em que, nesse turbilhão de energias que

giravam em direção ao alto, desencadeou-se um fenômeno de

tunelamento, cujo centro permanecera estável.

“Seu” João e os demais Peregrinos, nesse instante,

levantaram-se. O nobre Amigo dirigiu-se a nós:

- “Vamos, Caetano! Traga seus alunos. Chegou o momento

que aguardávamos! Sigamos”.

Ato contínuo, fui atraída para junto da procissão por força

vigorosa, alçando-nos, em seguida, na direção daquele espaço

interdimensional. Clarão que mais parecia uma estrela. A

estrela de que falava os pontos cantados, entoados pelos

encarnados. Cantavam alegres, desconhecendo a amplitude

do que ocorria nos planos que seus olhos não podiam ver.

Page 183: Conto de Aruanda_livro

Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 183 ]

Falavam daquela estrela. E, enquanto sonhavam e falavam da

Estrela, deixávamos aquele espaço.

“A Estrela D’Alva é minha guia.

Que corre o mundo sem parar.

Alumeia a Mata Virgem

E o Terreiro de Além Mar.

Okê, Caboclo!

Chama seu Cobra Coral.

Abrir trabalho na Mata Virgem

Chama seu Cobra Coral! ”.5

“Estrela Matutina,

Que corre o mundo sem parar.

Ilumina os capangueiros da Jurema

Lá no Juremá”.6

5 Ponto de domínio público, em homenagem ao Caboclo Cobra Coral (Nota do

Autor)

6 Ponto de domínio público, em homenagem aos Caboclos de Umbanda (Nota

do Autor)

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 184 ]

O Cruzeiro do Sul

“Sonhar com Caminho

Saber-te grãozinho, frente ao Universo.

Muitas moradas pela vastidão.

Chegar até a Estrela

Fulgurante. Perpétua.

Pequena fagulha Divina.

Tão imensa, em Ti”.

Éramos transportados por força irresistível que nos levara de

roldão em direção a abertura surgida no plano invisível daquele

terreiro de Umbanda. Transcendíamos os limites da Terra e

rumávamos para um espaço constelado na imensidão escura e

soberana, pontilhada de centelhas estelares. Nossa jornada seguia

célere, vencendo distâncias cada vez maiores.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 185 ]

Podia ver os contornos do planeta em suas dimensões reduzidas,

enquanto transpassávamos nuvens de estrelas. Parecia,

novamente, que houvera perdido contato com meu corpo, minha

forma espiritual. Tornáramos em pura energia irradiante, vagando

pelos caminhos suspensos entre o Tempo e Espaço.

Prosseguíamos cobrindo distâncias e paisagens incompreensíveis

para mim, arrebatada que fui por uma vontade superior à minha.

Não resistia, pois cuidava de que seguia por trilhas que me eram

dadas por desígnios maiores. Com se o Criador falasse ao meu

coração, em palavras inauditas, de que caberia a mim a grata

oportunidade de presenciar uma pequena parcela da

grandiosidade de Sua obra incomensurável e ser dela testemunha

humilde perante os homens.

Conduzida pelos Peregrinos, alcançamos um conglomerado de

estrelas, cuja disposição daquelas mais cintilantes formavam o

desenho de uma Cruz. O Cruzeiro do Sul, orientador dos

navegantes da Terra e dos Peregrinos de Aruanda Maior,

resplandecia em formação destacada daquelas que compunham o

espaço cósmico ao seu redor, perpetuando o périplo das formas

sustentadoras do universo.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 186 ]

Sobre as composições estelares da Constelação de Crux,

formavam-se agregações de aspecto uniforme, qual planícies

regulares sob as quais permaneciam construções estruturadas em

matéria incompreensível ao entendimento humano, por que

desprovidas de quaisquer elementos semelhantes àqueles

utilizados no trabalho arquitetônico terreno.

Mergulhávamos velozmente em meio a estas colunas que

encastelavam uma Comunidade Astral, onde repousavam os

Viajores do Espaço no passar de suas travessias entre a Terra e os

Planos Celestes.

Descemos do alto em direção a uma das formações planas,

pairando suavemente até atingirmos o nível do solo. Pude ver que

havia vários outros seres transitando por ali e, para minha inteira

surpresa, reconhecia-os como seres humanos, tal como nós. Não

imaginava que poderia haver almas humanas vivendo a uma

distância tão grande do planeta.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 187 ]

Uma verdadeira sociedade vivia naquele lugar, espelhando no

semblante de cada Ser ali vivente, a serenidade dos bem-

aventurados de que falara o Mestre Nazareno.

Junto de Mestre Caetano, seguíamos a procissão dos Peregrinos,

enquanto ouvíamos as considerações do devoto João Ordário.

- “No Cruzeiro do Sul residem as comunidades de almas humanas

vinculadas ao progresso das mais diversas culturas no orbe

terrestre. Congregados sob os sentimentos de amor, compaixão e

fraternidade, os quais aqui já passaram de meros ideais e utopias

engendradas pela esperança do homem encarnado, estes Seres

Bem-Aventurados velam pelos Destinos das Coletividades.

No Rastro de Luz deixado pelo Nazareno, quando de sua descida

das Alturas ao plano terráqueo, cuja travessia o Sublime

Peregrino levara mais de 1 milênio inteiro para completar, foram

constituindo-se comunidades interdimensionais, estabelecidas

pelo interesse mútuo na condução da humanidade encarnada,

dada a interdependência das culturas do homem no equilíbrio não

somente das relações sociais, mas também na estabilidade das

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 188 ]

dimensões Natural, Espiritual, Elemental e Etérica que envolvem

o Planeta Azul.

O advento da encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo marcou

indelevelmente a consciência das almas humanas, por meio de

uma emergente centelha a permanecer fulgurante nos recônditos

d’alma, impulsionando a sua transformação e elevação espiritual

em direção ao Divino que repousa nas sombras escuras de si

mesmo, aguardando pelo momento desse encontro, de cujo

despertar cada homem ergue-se modificado e reintegrado com a

Consciência Cósmica e a Alma Coletiva.

Muitos daqueles que ‘despertaram’, após o encontro com o

Divino, quando do contato com o Mestre Jesus em sua

peregrinação pelas paragens terrenas, permanecem aqui,

constantemente em vigília e trabalho operoso em favor do nosso

orbe, muitas vezes até penetrando o ciclo reencarnatório.

Geralmente em sua aproximação à dimensão dos espíritos, trazem

orientações, inspirando as almas trabalhadoras, reanimando os

socorristas e Peregrinos. Mergulhando na escuridão, resgatam

coletividades inteiras das zonas trevosas e abismos de purgação e

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 189 ]

sofrimento. Verdadeiros Arautos do Cristo. Sustentáculos da fé e

da esperança dos povos”.

Caminhávamos agora sobre um plano cujo chão era totalmente

translúcido. Jardins floridos suspensos no ar moviam-se

circularmente, em ritmo harmônico. Adentramos por um

conjunto de arcos formando passarela para a entrada de

imponente construção. Ao olhar para o alto, não consegui divisar

os limites da “atmosfera” daqueles domínios onde nos

encontrávamos em relação ao véu escuro repletado de estrelas e

fachos de luzes cadentes, os quais cruzavam o espaço com grande

frequência.

Com exceção do amigo João Ordário, que se ocupava de nos

entreter, permanecendo conosco, os demais Peregrinos seguiam

em completo silêncio, parecendo meditar. A certa altura, fomos

interpelados por um grupo de Espíritos Amigos que pareciam já

nos aguardar.

Um homem alto, calvo e de porte imponente tomou a frente do

grupo. Dirigiu-se a nós com um gesto afável de acolhimento e

boas-vindas. Interessante é que aquele Ser não se comunicava

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 190 ]

conosco ou mesmo com os Peregrinos utilizando-se da fala.

Aquele pequeno gesto e os instantes breves em que cruzamos

nossos olhares com o dele foram suficientes para que nossa

comunicação fosse inteiramente realizada. Agora eu havia

compreendido o verdadeiro significado da comunicação pelo

pensamento. Como se a mente superior daquele Bem-Aventurado

entrasse inteiramente em meu íntimo, numa interação plena com

meus pensamentos. No entanto, não me sentia violentada em

minha intimidade. A atitude daquele Ser Aureolado de Paz não

era como a de um sensitivo ou hipnotizador que se utilizasse de

recursos psicológicos para exercer influência e controle sobre

outra pessoa para proveito próprio. Seu olhar profundo, ao

contrário, revelava as conquistas que aquela Consciência humana

já havia atingido no descobrimento de si mesma e no

entendimento das Leis Divinas que permeiam todos os universos

existentes. A auto iluminação de que falam os povos do oriente.

Voltando-se em direção à entrada de soberana construção, o Ser

Iluminado pôs-se a nossa frente, enquanto nossa caravana o

acompanhava.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 191 ]

Ouvíamos vozes entoando hinos sem podermos precisar de que

coral provinham, uma vez que não haviam grupos de espíritos ao

nosso redor que pudéssemos identificar expressando

composições artísticas tão belas. As vozes intercalavam-se

harmonicamente e cobriam todo o ambiente com a sonoridade.

Faziam-me lembrar as grandes composições humanas realizadas

pelos gênios da música sacra e erudita.

Ao atingirmos o portal de entrada, uma espécie de muro

espelhado, que se erguia a alturas que nos escapavam do alcance

visual, aguardamos um sinal do Ser Iluminado para que

prosseguíssemos através daquele imenso espelho radiante.

Seguimos. Chegando a um espaço que lembrava um anfiteatro,

em dimensões enormes. O teto ovalado deixava-nos observar a

dança das estrelas e cometas. Estávamos suspensos num vazio,

onde não havia nenhum tipo de chão a nos apoiar. Mas, nada me

assombrava. Sentia-me totalmente confortável e segura. Sentia

como se tudo aquilo fosse um mundo do qual eu já fazia parte,

com o qual já estivera totalmente familiarizada.

Após breves instantes em que nos detivemos admirando o espaço,

através daquela cúpula circular, o Ser Iluminado destacou-se,

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 192 ]

volitando acima de nós, seguido pelos líderes dos Peregrinos,

junto dos quais estava nosso novo amigo, João Ordário.

Aquela Santa Alma parecia transfigurar-se em forma esplendente

de Luz, enquanto os Peregrinos permaneciam em uma postura de

oração. Não trocávamos, qualquer um de nós, nenhum tipo de

palavra. Entretanto, a grandiosidade espiritual nos extasiava,

colocando dispensáveis qualquer tipo de conversa naquele

instante. Somente a presença plena daquelas Almas Benditas

preenchia-nos inteiramente.

A luz das estrelas, que antes podíamos ver cintilando em alturas

distantes, parecia mover-se em nossa direção, clareando com tal

intensidade a cúpula que perdi completamente o que se passara

ali. Então, somente quando o clarão cessou e voltamos a

reconhecer o espaço em que nos encontrávamos, foi que pude

registrar a Alma Santificada entregando uma espécie de cruz que

irradiava brilho semelhante ao da Estrela que nos visitara, a qual

fora guardada pelos Peregrinos em uma pequena urna.

Mais uma vez, fôramos conduzidos pelo Amigo Espiritual para

fora da cúpula e retornáramos para o espaço onde se encontravam

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 193 ]

os jardins suspensos. O Ser Iluminado nos dirigiu seu olhar de

profundo Amor e, pairando sobre nós, em companhia de outros

seus iguais, desapareceu sob nossos olhares.

Os Peregrinos, então, colocando-nos sob o poder de sua vontade,

novamente lançaram-nos para as alturas, em direção às

correntezas de partículas espaciais, onde fomos atraídos por uma

nova abertura interdimensional, a qual nos fez retirar daqueles

domínios sublimes, morada das Almas Bem-Aventuras.

Seguíamos pela luz em direção regressa ao plano espiritual

terrestre. Avistava, cada vez mais distante, o conglomerado

estelar, no qual as cintilantes que se destacavam me deixavam ver

a Cruz novamente. Estrela do Sul.

Perdia os sentidos. Novamente, percebia minha consciência vígil

se apagar perante a injunção de forças que não podia dominar,

mas que, ao mesmo tempo, às quais me entregava abertamente,

por me reconhecer sob mistérios de Deus que minha alma, ainda

tão diminuta, era incapaz de apreender.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 194 ]

Despertei agora sendo amparada por “seu” Benedito e João

Ordário. Olhei ao redor e me vi em uma paisagem natural.

Planície aberta com vegetação rasteira. Montanhas rochosas

distanciadas. Ventos refrescantes. Um sol vermelho na linha

próxima ao horizonte me dizia que o Astro Rei estava a se pôr.

Conforme ia reassumindo minhas faculdades naturais e meus

próprios movimentos, aproximei-me de Mestre Caetano e

Marcos, os quais conversavam com “seu” Benedito e o Peregrino.

“Nossa visita ao Cruzeiro do Sul deve-se a uma condição

excepcional para os tempos da Terra. Peregrinos de todas as

localidades do mundo espiritual tem recebido o chamado vindo

da Estrela do Sul para que de lá retornem imbuídos de novas e

mais amplas responsabilidades perante as almas humanas.

Nesses movimentos de grandes renovações nas paisagens do

plano espiritual, ocasionados por fenômenos imponentes da

Natureza, a qual modifica não somente paisagens terrenas, tanto

quanto também interfere diretamente na organização das

coletividades de espíritos, compete às Consciências Despertas e

aos trabalhadores nas Leis de Deus, operosos e anônimos, a

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 195 ]

condução daqueles que seguem à retaguarda quanto a

compreensão dos propósitos da existência e dos desígnios do

Criador.

Verdadeiras multidões se movem pelas planícies e vales no

mundo dos Espíritos, nos planos próximos à dimensão da Terra,

tal qual andarilhos famintos, clamando por socorro e descanso. É

momento de resgate e soerguimento perante a Vida Maior. Não

sabemos se todos estão prontos para a renovação dos rumos de

suas próprias existências, no entanto, os Bem-Aventurados nos

ensinam que cada consciência desperta, cada alma resgatada, e

mesmo cada valor novo descoberto pela alma humana, deste lado

ou do lado de lá, é capaz de ascender uma legião inteira de

espíritos.

Com isso, temos recebido vários signos dos Amigos Sublimes, tal

como aquele que os amigos puderam observar. Esses signos são

compostos de fragmentos das Virtudes Excelsas emanadas por

estes Seres Santificados. São como reflexo da Consciência

Sublime e podem influenciar coletividades inteiras. Não se trata

de violentar a vontade e o livre-arbítrio das almas. Mas sim a de

compartilhar com estes a Ascensão daqueles que já a

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 196 ]

conquistaram, emulando naqueles que sentem sua influência os

impulsos necessários ao desabrochar dos sentimentos e reflexões

enobrecidos que já se encontram adormecidos no inconsciente

dessas almas.

A experiência de contato com esses fragmentos Celestes, fomenta

o desejo de renovação na alma, reconectando-a com o Deus

interno que possui em seu âmago, como registro arquetípico que

marca para além do tempo a sua origem e natureza divina. As

almas que reencarnam com a memória dessa experiência, trazem

para o plano terreno, perante as sociedades humanas, novas

concepções e ideias, contribuindo para o progresso geral,

dirimindo as sombras da ignorância”.

Nossa caminhada encerrava-se neste ponto. Batíamos à porta de

uma edificação que lembrava um grande monastério, o qual

beirava a estrada por onde vínhamos. Anoitecera.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 197 ]

Simiromba

“ Preces.

Flores.

Olhares de Súplica.

Devoto.

Cordão nas mãos.

Francisco, Irmão Sol.

Il Poverello.

Seu Evangelho,

Prega-o ao Tempo.

Seu templo, a Natureza.

E Deus É. Nela.”.

O Monastério era contornado por paredões que dividiam a área

em duas grandes partes. A primeira, destinada aos que viviam ali,

onde localizavam-se seus alojamentos, contando também com

espaços abertos adornados por jardins e áreas de cultivo, além das

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 198 ]

alas destinadas às práticas de meditação e liturgias restritas aos

monges. A segunda área, de maiores proporções, na qual

estávamos, compunha o espaço do Santuário.

Presenciávamos uma grande multidão de Peregrinos em romaria

naquele lugar. Uma aura de fé e devoção predominava, embalada

pelas canções dos devotos, as quais faziam referência ao Santo de

Assis, o frade Giovanni di Pietro di Bernardone7.

Seguíamos os passos dos Peregrinos, enquanto contemplávamos

aquele imenso grupo de espíritos que se encontravam irmanados

naquele ambiente de prece.

Um monge vestido segundo a forma tradicional da ordem

franciscana veio ao nosso encontro, seu nome era Antônio Di

Vecchio. Estava acompanhado por outros três monges mais

jovens. Como de costume já de nossos anfitriões, espelhavam

simpatia e acolhimento em seus gestos e semblantes serenos.

7 Nome de batismo do Santo Francisco de Assis (nota do autor)

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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- Saudamos aos Irmãos Peregrinos! Que nossa casa, a Casa do

Senhor e de nosso Pai Francisco, seja também sua morada.

Permaneçam o tempo que lhes for necessário! Deixarei os irmãos

Roberto, Paulo e Bianco em sua companhia. Eles poderão lhes

auxiliar no que precisarem. Peço licença, pois iremos iniciar a

liturgia desta noite. Finalizou, afastando-se delicadamente.

Permanecemos em animada e interessante conversa com os

irmãos Franciscanos. Olhando ao redor, percebi que também

haviam religiosos pertencentes a outras ordens fundadas por

Francisco de Assis. Além dos Franciscanos da Ordem dos Frades

Menores, haviam também as Clarissas8 e membros da Ordem

Terceira.

Os jovens frades e os Peregrinos pareciam se conhecer já de há

muito tempo. Mestre Caetano dissera-nos, a Marcos e eu, que os

Peregrinos passam pelo Santuário dos Franciscanos com grande

frequência, sempre se utilizando do local Sagrado como ponto de

rota para a passagem das procissões, inclusive muitas iniciam-se

a partir dali.

8 Também conhecidas como a Ordem das Pobres Damas (nota do autor)

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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“Sim, nós já conhecemos estes irmãos há um bom tempo! Seu

João e suas histórias! ”, falou-nos o irmão Paulo. “Esses nobres

Peregrinos têm muitas coisas para partilhar conosco, em termos

de realizações da fé. Já tivemos, Bianco, Roberto e eu, a grata

oportunidade de seguirmos com os Peregrinos em sua procissão

para a Terra, na qual acolhemos e conhecemos muitas almas

irmãs, dignas do nosso carinho e amor cristão. Visitamos muitos

lares, pessoas humildes e anônimas. Súplices algumas;

descrentes, outras. Muitos doentes e desesperados. Outros,

exercendo a fé e a caridade para auxiliar, mesmo sem ter quase

nenhum recurso para si mesmos, aqueles que lhes batiam as

portas. São rezadores, raizeiros, benzedeiros, curandeiros, beatos.

Devotos em sua fé em Nossa Senhora e no Sagrado Coração de

Jesus. Guardiões da sabedoria da cultura popular. A sinceridade

de sua fé e a nobreza de seus caracteres, nos tocou

profundamente. Lembram-nos a figura de nosso Seráfico Pai,

com seus gestos simples e preces enriquecidas pela confiança em

Deus e em Cristo, ora atendendo aos sofredores e necessitados

debaixo de uma árvore no quintal de suas casas ou de seus

pacientes, ora velando-lhes à beira dos leitos humílimos.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Muitos destes, após sua passagem para este mundo das almas em

purgação, continuam sua missão de trazer conforto e esperança

aos sofredores. Iremos encontra-los todos aqui, junto das

procissões, fazendo suas orações e assistindo às missas no

Santuário. Carregam seus terços, crucifixos ou cordões de São

Francisco em suas mãos.

Deste lado de cá, esses amigos continuam servindo aos propósitos

do Evangelho de Cristo e as três regras de “Il Poverello”9, nosso

Pai Francisco. Pobreza, Castidade e Obediência. Tornam-se

legítimos representantes do nosso Irmão Sol 10e de Nosso Senhor

junto dos homens, chegando mesmo a interagir com as almas

encarnadas, apresentando-se em sonhos, em estados profundos de

oração, em comunicações mediúnicas nas casas espíritas ou nos

templos de Umbanda entre outras religiões mediúnicas que

evocam a mística dos Franciscanos e dos Simirombas.

9 Alcunha pela qual Francisco de Assis era conhecido, significa “O

Pobrezinho”, devido ao seu voto de renúncia a todo e qualquer tipo de posse

(Nota do Autor) 10 Nome carinhoso pelo qual fora chamado por Santa Clara, alma irmã e amiga

do Santo de Assis, a quem este, por sua vez chamava de Irmã Lua (Nota do

autor)

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Seguem conosco, inspirando a fé e a esperança nas almas. Tal

como Francisco de Assis, estes nossos irmãos preocupam-se com

toda a Natureza, reconhecendo cada ser vivente como um filho

do Nosso Pai Amoroso que está nos Céus. Na Natureza,

enxergam a manifestação do próprio Criador e no cuidado com

esta uma das maneiras de também se praticar o Evangelho e

promover a fraternidade entre os homens.

Assim, podemos todos termos a presença de nosso Querido

Francisco! Cumprindo o Evangelho de Cristo, cuidando da

Natureza e vivendo fraternalmente com as almas irmãs”, concluiu

o jovem frade, risonhamente.

Ouvimos uma espécie de sino, convocando-nos à presença no

espaço interno do Santuário, onde iria se iniciar a celebração

litúrgica. Multidão de devotos repletava o local. Cada cântico e

ato da celebração era acompanhado com grande sentido de

compromisso pelos fiéis.

Ao final da homilia, seguida do rito de encerramento da

celebração, acompanharam-nos os jovens frades para a saída do

Santuário. Agora refeita, nossa caravana continuaria sua jornada.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Os jovens franciscanos seguiriam conosco até a próxima parada.

Voltaríamos para a Terra onde receberíamos do nosso lado, almas

irmãs muito queridas ao coração dos nossos Benfeitores, “seu”

Benedito e do Peregrino João Ordário.

“Nossos amigos possuem almas muito caras ao seu afeto,

encarnadas na Terra. Ambas vivem momento limite em sua

jornada terrena, estando a breves horas de sua desencarnação.

Pelos seus méritos e virtudes ilibadas, símbolo da lapidação

interior a que se submeteram pelos anos da existência no plano

terreno, estes irmãos as receberão pessoalmente em sua hora

derradeira, estendendo apoio e amparo necessários, por conta das

ligações espirituais profundas que estas irmãs souberam manter e

conservar junto aos Benfeitores de Aruanda”, explicou-nos

Mestre Caetano.

“Meus amigos”, aproximou-se o frade Roberto, “cearemos por

aqui e, após isso, seguiremos rumo à Terra. Nossas amigas têm

suas passagens programadas para a próxima noite. Dessa forma,

cumpre-nos acompanha-las nesses instantes em que ouvimos

desde aqui suas preces serenas e fervorosas, assim como daqueles

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 204 ]

seus amigos e familiares compadecidos e emocionados com o

momento da despedida que se aproxima”.

“Vô” Benedito, João Ordário e os frades menores, Paulo e

Bianco chegaram para perto do grupo onde estávamos, trazendo

lindos ramalhetes de flores, cesta com pães e pequenos frascos

com aquele líquido aromatizado. “Vô” Benedito parecia o mais

emotivo, com lágrimas nos olhos. Ao mesmo tempo, uma auréola

de luz nimbava todo seu semblante.

O Peregrino, João Ordário, estendendo a destra afetuosamente

sobre os ombros de “seu” Benedito, afagando-o fraternalmente,

abriu sorriso espontâneo e com um olhar iluminado pelas estrelas

distantes no céu, tal como se fitasse uma Sagrada paisagem,

levantou-se e colocou-se ao centro do círculo que formáramos,

enquanto nos alimentávamos, aguardando a partida. Com as mãos

postas sobre o coração, iniciou:

“Temos grandes amigos vivendo entre os homens e mulheres na

Terra, junto dos quais permanecem nossas lembranças e orações.

Suas jornadas pelos anos estiveram marcadas por uma série de

provações e dificuldades a superar, conduzidas por um grande

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 205 ]

espírito de compreensão diante da vida e trabalho silencioso, na

esperança de dias melhores. Buscando alívio para o próprio

sofrimento quanto para o de tantos outros, estas irmãs, em

especial, conquistaram nosso respeito e carinho que mais se

ampliaram com o passar do tempo em que suas condutas

dedicadas e retas lhes conferiram sustentar elos luminosos com o

plano celeste.

É ao encontro destas almas queridas que iremos, a fim de abraça-

las com nosso carinho e amor cristão. Receberemos estas

criaturas em nossos braços e cantaremos louvores em

congratulação pela sua conquista diante do mundo dos homens.

Não sairão daquele mundo com fortunas, nem com títulos de

destaque perante a sociedade humana. São pessoas anônimas.

Muitas vezes invisíveis pela sua classe social e a cor de suas peles.

Mas suas vidas estão repletas de boas histórias e de exemplos

marcantes. São estes os tesouros que levarão às Alturas da

Aruanda Bendita, em que suas Consciências, enriquecidas pela

maturidade e confiança interior, são o mais cristalino espelho

d’alma naqueles que se dizem devotos de Nossa Senhora e filhos

de Umbanda.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 206 ]

Oremos para estas irmãs, assim como para todas as criaturas

encarnadas, em louvor e cumprimento aos ensinamentos deixados

por Nosso Senhor Jesus Cristo”.

Oramos.

Eu estava ansiosa por conhecer quem seriam estas irmãs tão

queridas por nossos Benfeitores.

Partimos.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 207 ]

“Quando eu morrer, vou passar lá na

Aruanda”

“Ogum, tenha pena de mim.

Não me deixe sofrer

Tanto assim, meu Pai.

Quando eu morrer

Vou passar lá na Aruanda

Pra ver Ogum

Saravá filho de Umbanda”.

Os Peregrinos solicitaram que formássemos dois grupos

distintos. “Seu” Benedito, junto com Mestre Caetano, Marcos,

frade Roberto e eu, acompanhados de outros amigos, seguiríamos

para a casa de uma das irmãs que seriam atendidas. O Peregrino

João Ordário e os frades Paulo e Bianco, também acompanhados

de mais alguns irmãos, prosseguiriam até o outro local onde

também seria necessária sua presença.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Chegamos a uma ruazinha pequena e de terra, naquele momento

enlameada pela chuva recente daquela tarde, onde nossa paciente

residia. Avistamos o portãozinho que fronteava sua casa. O

quintal, relativamente largo, no qual algumas pessoas

conversavam. Pareceram-me ser alguns de seus familiares. Um

canteiro bonito, igual de casa de vó. Canteiro com roseiras, pés

de pitanga e limão. Muitos vasos com ervas, dispostos pelo

espaço, envolvendo aquela construção simples. Banquinhos. Ao

fundo do terreno, uma árvore frondosa estendia sombra generosa,

debaixo da qual algumas crianças brincavam, descalças,

parecendo alheias ao que ocorria dentro daquela casinha. Casinha

simples e malconservada, com recortes na parede exibindo tijolos

à mostra, pela evidente escassez financeira daqueles seus

moradores. Parecia ainda daquelas casas antigas, feitas com

barro. Dois cômodos. Uma janela grande permitia que abundante

claridade entrasse no cômodo maior da casinha.

.... Um sentimento inquietante fora crescendo dentro de

mim...como se eu estivesse voltando para algum lugar familiar.

Meu “coração” parecia encher-se dentro do meu peito...

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 209 ]

Seguindo atrás de “seu” Benedito, pude identificar, tão logo entrei

naquela sala-quarto, o corpinho miúdo de simpática senhorinha,

já contando com suas mais de oito décadas de vida. Estava ali,

quase imóvel. A cabeça empapada de suor. Respirava de maneira

tão breve que mal se podia perceber. Segurava pequeno terço nas

mãos. Ao seu lado, um jarro com água fresca e um pequeno

arranjo de flores que fora deixado naquela manhã por uma visita

que recebera.

“Seu” Benedito aproximou-se da pequena senhora, ajoelhando-se

ao seu lado. Passou carinhosamente sua mão sobre a testa da irmã,

que nesse momento abrira suavemente os olhos, exibindo lucidez,

embora suas forças minguantes. Parecia registrar, intuitivamente,

a irradiação amorosa do nobre Ancião. O Bondoso Amigo,

sussurrava aos seus ouvidos:

- Olá, minha amada irmã.! Estamos aqui contigo, agora! Quanto

tempo! Que felicidade em revê-la, minha irmã, Izaldina!

Meu peito parecia que ia explodir. Minha cabeça girava com os

pensamentos agitados. Aquela era Dona Izaldina, a benzedeira do

meu bairro! E se estávamos tão próximos da minha casa.... Minha

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 210 ]

mãe. Minha mãe... Mestre Caetano e Marcos tocavam-me

delicadamente, tirando-me daquele momento em que me

encontrava em ebulição, a ponto de perder os sentidos novamente.

Mas não me atrevia a lhes perguntar sobre minha casa e minha

mãe. Percebia que não era momento conveniente. Irmão Marcos

afagava-me, com olhar bondoso, identificando meus

pensamentos e demonstrando compreensão. Aos poucos fui

voltando a me centrar e tornei a identificar o que se estava a passar

ali.

Dona Izaldina suspirava brandamente em seu leito, envolta na

aura alvinitente que a circundava, emanada por “seu” Benedito.

Cintilação intensa passara a se irradiar do centro de seu peito e do

alto de sua cabeça, somando-se à do Benfeitor, banhando todo o

ambiente.

Banhava a Luz, a pobreza daquele lugar. Os móveis antigos e

gastos. Os retratos de Jesus e da Imaculada Conceição. Seus

lençóis limpos e humílimos. O fogão pequeno. O armarinho que

guardava mantimentos essenciais. A prateleira com as bonecas de

suas netas.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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A Luz iluminava o quartinho ao lado, com sua cruz de madeira,

onde a chama da vela de sete dias acessa, ia minguando-se,

prenunciando o desenlace da devota benzedeira.

O rádio colocado perto da cama de Dona Izaldina, começara a

tocar, baixinho, a Ave Maria. Sua filha mais velha acabara de

entrar, sentando-se à cabeceira, silenciosamente, estendendo-lhe

o copo d’água e uma drágea de algum remédio:

- Filha...filha...

- Oi, mamãe... O que foi?

- Ele está aqui, filha. Nego Benedito... junto com os anjos. Está

na hora de eu partir... filha...

A filha, com lágrimas nos olhos, espelhava o que também nós

sentíamos do lado de cá. Chorávamos. Compadecidos por cena

tão emocionante.

Dona Izaldina, juntando as últimas forças que lhe restavam,

estendeu a mão para que a filha a segurasse. Nesse momento, sob

um gesto de “seu” Benedito, nos acercamos do leito da amável

senhora e começamos a orar. O Mentor retirou do alforje que

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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trazia consigo, o frasco com líquido balsâmico e começou a

aspergir sobre Dona Izaldina, enquanto rezava Ave-Marias,

segurando as mãos da benzedeira, enlaçadas pelas da filha,

emocionada. Dona Izaldina dizia:

- Filha, ajuda-me a rezar o Pai Nosso? Pai Nosso que estás no

Céu... – Iniciava, sendo seguida pela filha.

A voz quase não lhe saia mais, qual suave assobio. Réstia de ar

que ainda teimava por querer resguardar a ânsia de vida no corpo.

Os olhos se iam fechando, devagar. As flores ali, agora

preenchiam o ambiente com seu aroma. Os lençóis brancos

simbolizavam a túnica humilde com a qual se cobrem os

trabalhadores de Aruanda no lado de cá. O terço escorrera pelos

dedos. As mãos caiam sobre o corpo, sob a condução suave da

filha amorosa e banhada em pranto. Dona Izaldina arfava o peito

num longo suspiro. Silêncio e lágrimas de todos nós.

A aura clara que envolvia seu corpinho fora se tornando cada vez

mais radiante. “Seu” Benedito afagava o rosto de Dona Izaldina,

enquanto dizia:

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 213 ]

- Venha, minha querida! A Aruanda te espera! Venha! Venha

encontrar sua mãezinha.

Atrás dos dois, de pé e próximo ao leito, frade Roberto pousava

suas mãos sobre a cabeça da velha benzedeira enquanto fitava o

céu, com se aguardasse a um sinal. À porta do cômodo,

observamos um clarão, qual se um raio de sol cruzasse os ares e

adentrasse aquele recinto. Vimos a claridade assumir uma forma

pálida que aos poucos fora ganhando contornos definidos.

Após isso, notamos a figura cândida de uma senhora negra, de

semblante sério, mas ao mesmo tempo doce, abeirando-se do

leito. Foi então que pude notar o espírito de Dona Izaldina já livre

do corpo, sendo abraçada demoradamente por “seu” Benedito. O

Benfeitor, dizia-lhe:

- Veja, minha irmã! Olhe para o lado e veja quem veio até aqui

recebê-la!

- Mamãe!

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 214 ]

As duas senhoras abraçaram-se emocionadamente em lágrimas.

Depois riam-se, amorosamente, enquanto se fitavam no fundo dos

olhos.

A filha chorosa corria para avisar aos irmãos e vizinhos que

acompanhavam os cuidados a Dona Izaldina. A meiga velhinha,

conquanto a energia e a firmeza de caráter com que sempre lidara

com os filhos e com os que lhe batiam às portas, solicitando seu

concurso de fé, como benzedeira, inspirava muitas pessoas

daquela comunidade carente, instituindo-se como um bastião de

consolação e esperança para aquelas pessoas tão sofridas.

Quantas mães não levaram seus rebentos enfraquecidos para que

as mãos abençoadas e crentes de Dona Izaldina as restabelecesse

a saúde e a vitalidade? Quantos os doentes desenganados a

procuravam, buscando esperança e consolação? Quantos os

jovens desorientados?

Crianças, idosos, jovens. Pessoas de várias residências das

proximidades, ao saberem da notícia, acorreram até sua casa,

lotando o quintal e a calçada. Marcelo e sua mãezinha correram

para lá, chorando. Levavam flores nas mãos. Sua gratidão era

imensa por aquela senhorinha.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 215 ]

Um grupo de senhoras, algumas benzedeiras novas que haviam

recebido o “dom” da reza bendita diretamente de Dona Izaldina,

iniciaram uma corrente de oração, naquele quintal apertado.

Caso pudessem ver. Se os olhos daquela gente chorosa, pudessem

contemplar o esplêndido quadro que se nos afigurava naqueles

instantes. A velhinha sendo abraçada por aqueles espíritos

luminosos, “seu” Benedito e por frade Roberto, acompanhada da

alma singela de sua mãezinha, dona Maria do Carmo, que a

entregava nas mãos um lindo buquê de rosas envoltas num cordão

de preces.

Dona Izaldina, dirigia-se aos Benfeitores, apreensiva por ver as

lágrimas dos filhos e daquela multidão que ia preenchendo a casa

e a rua toda. Recebia palavras de encorajamento dos Amigos

Espirituais, que a exortavam quanto a grandiosidade das Leis da

Vida e a necessidade de um repouso para recobrar suas forças.

Dona Izaldina não trazia complicações de saúde graves a não ser

aquelas naturais da idade avançada. Sua vitalidade seria

restabelecida em tempo breve, conforme os Mentores lhe

informavam.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 216 ]

Enquanto os vizinhos e familiares permaneciam movimentando-

se para providenciar o funeral da benzedeira, “seu” Benedito dizia

para nós outros, ao mesmo tempo em que amparava o espírito

ainda combalido da devota senhorinha:

- “Vamos, meus irmãos! A Aruanda está em festa! Assim como

nosso Vilarejo! ”.

Mestre Caetano, Marcos e eu, prosseguiríamos ao encontro do

Peregrino João Ordário, que se encontrava em hospital próximo.

Na entrada do hospital, fomos recebidos por frade Bianco que já

nos aguardava. Conduzia-nos até o quarto em cujo leito se

encontrava dona Rosa, alma querida por João Ordário, localizado

na unidade de terapia intensiva.

Do lado de fora, na área de espera, dois filhos e um casal amigo

aguardavam. O casal tratava-se de dois dos seus filhos de santo,

mais próximos da família. Dona Rosa era mãe de santo em um

terreiro localizado também no interior de São Paulo, em uma

cidade vizinha à minha.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 217 ]

Seu labor por dentro do movimento religioso umbandista era

muito conhecido em várias cidades do estado e mesmo em outros

estados do país. Conduzia um terreiro grande e bonito, contando

com uma comunidade de filhos de santo considerável.

No entanto, seus mais de setenta e cinco anos de idade, sendo

destes, mais de cinquenta dedicados à religião e à militância

social em favor das comunidades carentes, trouxeram consigo

complicações cardíacas que foram se impondo às suas condições

físicas, a ponto de não poder mais sustentar sua permanência à

frente do templo.

Dona Rosa era tida como verdadeira mãe para sua comunidade

religiosa. Viuvara ainda jovem, contando ainda quarenta anos,

tendo o esposo desencarnado em acidente de trabalho. A partir

daí, destinou sua vida ao cuidado dos filhos. Tanto os de sangue

quanto os de fé. Abraçara a coletividade que lotava seu terreiro

como filhos do coração. Dentre eles, muitos jovens carentes,

assim como suas famílias.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 218 ]

Trabalhando como “cavalo de santo” do Caboclo Tamandaré,

trouxera fé e esperança para centenas de pessoas que se socorriam

das atividades religiosas e sociais do terreiro, fosse para tomar um

passe e se consultar com as entidades de Umbanda, fosse para

receber a cesta de alimentos e o pacote de roupas. Até mesmo o

encaminhamento para um tratamento médico ou para matricular-

se numa escola, era o terreiro o ponto para onde aquelas pessoas

se dirigiam.

O terreiro tornara-se uma referência para a comunidade em

termos de promoção social, uma vez que suas portas se abriam,

em dias especiais, para ações de acolhimento e palestras de

promoção da saúde, aulas de alfabetização para adultos e

instrução profissional para jovens aprendizes.

A Casa do Caboclo Tamandaré refletia a Luz que tocava o

coração dos homens espiritual e materialmente, digamos assim.

A história daquele templo de Umbanda, em suas mais de cinco

décadas de atendimento, lembrava-me a citação bíblica do

apóstolo Tiago, a respeito da necessidade da fé se confirmar pelas

obras que produz no mundo.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 219 ]

Os braços abertos de Dona Rosa para acolher e atender a quem

quer que fosse, conferiram-lhe grandes méritos perante o povo de

Aruanda, com quem se relacionava frequentemente, fosse nos

dias de gira do terreiro, fosse nos demais dias em que se

formavam verdadeiras filas à porta do Templo para receberem,

tardes e noites adentro, alguma orientação da carismática yalorixá

de Umbanda.

Contudo, o avanço da complicação orgânica seguia celeremente,

minando suas forças físicas. Em pouco menos de um ano, Dona

Rosa já havia se afastado da condução da Casa de Santo, deixando

um grupo de três médiuns, então pais e mães-pequenos do

terreiro, um deles seu filho carnal, como responsáveis pela

continuidade dos trabalhos e atendimento do público. Seu

comparecimento ao terreiro fora se tornando cada vez mais

espaçado, sendo agora acompanhada de sua filha mais nova que

a amparava, devido à dificuldade de movimentação.

Mas Dona Rosa seguia tranquila, apesar da falta que sentia em

estar presente nos trabalhos, aos quais dedicara toda a sua vida.

Contudo, a oração e a meditação silenciosa e serena, aprendida

durante tantos anos sob a inspiração de Caboclo Tamandaré, e

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 220 ]

mesmo sob a influência do Peregrino João Ordário, que se

apresentava a Dona Rosa como um guia de Umbanda, na linha

dos baianos, fizera com que recolhesse equilíbrio suficiente para

providenciar sua sucessão no terreiro, assim como seu

afastamento definitivo, de maneira tranquila, embora a comoção

da comunidade religiosa, muito apegada à sua figura e presença.

Dona Rosa, acamada em seu leito no hospital, demonstrava

registrar lucidamente, nossa presença ali. Embora seu corpo

cansado, aparentando grande inchaço devido às últimas

complicações da cardiopatia, travava contato mental consciente

com o Peregrino, que lhe afagava as mãos, à beira do leito.

Quando se aproximava o relógio das vinte horas, Dona Rosa

agitou-se sob o impacto de abrupto incômodo no corpo. A família

já havia sido informada pelo corpo médico que seu quadro era

crítico e com baixas expectativas de melhora. O Peregrino,

Mestre Caetano e os frades Bianco e Paulo distenderam suas

mãos sobre o corpo da paciente e finos raios de luz começaram a

delas se desprenderem, banhando o leito e recobrindo todo seu

corpo, ao que Dona Rosa pareceu registrar, reconfortando-se.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 221 ]

O irmão Peregrino olhou para nós e nos solicitou que nos

mantivéssemos em prece, pois a hora derradeira daquela irmã

estava chegando.

Enquanto Marcos e eu nos mantínhamos concentrados em oração

e os Benfeitores circundavam o leito de Dona Rosa, na UTI do

hospital, de súbito ouvimos a voz balbuciante da yalorixá, junto

de seus pensamentos, dizendo:

- Muito obrigado, meu Baiano! Muito obrigado, meus irmãos....

Meu pai está chegando para me buscar...

Começamos a ouvir um som parecido com o dos maracás11

indígenas e um tipo de cântico nativo. Fenômeno similar ao que

ocorrera na casa de Dona Izaldina iniciara ali, uma fímbria de luz

dourada, como raio de sol, surgira no meio de nós, tornando-se

cada vez mais intensa, até tomar a forma de portentosa imagem

de um indígena, com semblante grave e sereno, trajando uma

túnica de tecidos verde e vermelho, entrelaçados. O peito desnudo

exibia alguns colares com signos que não soube compreender.

11 Maracá é o nome dado a uma espécie de chocalho indígena, utilizado nas

pajelanças do norte do país (nota do autor)

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 222 ]

Sobre sua cabeça, exuberante auréola luminosa expandia-se em

direção ao alto. Vinha acompanhado de outros guerreiros, de

postura altiva que carregavam vasilhames com folhas verdes,

água cristalina, além de um corte de tecido branco.

- Saúdo aos irmãos! – Disse-nos seriamente, o Guerreiro.

Eu não conseguia expressar nenhum gesto. A presença imponente

daquele espírito, para mim tão indecifrável, era quase como se eu

estivesse diante de uma entidade encantada, mística, de que falam

as lendas dos povos do mundo.

- Seja bem-vindo, Tamandaré! – Respondeu-lhe o Peregrino.

Aguardávamos sua chegada.

Tamandaré aproximou-se do leito e pousou sua mão sobre o peito

de Dona Rosa, que agora estava de olhos fechados. O Guerreiro

ficou naquela posição por alguns momentos até que se iniciaram

os estertores mais intensos no corpo da yalorixá. Conquanto os

espasmos de seu corpo, por reflexo natural das reações motivadas

pela ação do mal que a acometida, podíamos notar que o espírito

da mãe de santo pairava por sobre o corpo e através deste, em

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 223 ]

forma expandida, exibindo contornos luminíferos. Parecia

anestesiada, em espírito, pouco ou nada ressentindo-se da ação

orgânica.

Nesse momento, a equipe de atendimento da UTI já havia

percebido as reações do organismo de Dona Rosa, características

da eclosão de um ataque cardíaco fulminante. Correram para

providenciar o socorro, alertando ao médico responsável, o qual

prontamente entrou no quarto, para comandar os devidos

procedimentos. Tentavam reanimar o corpo de Dona Rosa, o qual

ia se tornando inerme perante o olhar sereno e seguro de Caboclo

Tamandaré e dos Mentores Amigos. O Nobre Guerreiro

aguardava a finalização dos procedimentos médicos para, junto

do Peregrino João Ordário, romperem os liames tênues entre o

corpo espiritual da mãe de santo e o invólucro orgânico.

A equipe fora dar conta do ocorrido para os familiares. Estes, por

sua vez, informaram aos membros da comunidade religiosa, os

quais voltaram-se para providenciar os preparativos para o

velório do corpo daquela mãe amada e querida por todos.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Horas depois, o corpo fora recebido no Templo de Umbanda e lá

fora velado e visitado por centenas de pessoas que iam até lá dar

seu “adeus” à yalorixá, Dona Rosa. Pontos eram cantados. Muitos

filhos de santo. Todos de branco. Rezavam. Choravam.

Abraçavam-se. Os atabaques rufavam, em homenagem à líder do

terreiro.

O ataúde que continha seu corpo estava recoberto por flores e fitas

coloridas. Seu corpo vestido com roupa de santo. E seus colares

de conta. E os símbolos das correntes espirituais que compunham

a firmeza e sustentação de seu trabalho mediúnico nas Leis de

Umbanda. Cantava-se aos Orixás maiores e menores. Oxalá,

Oxóssi e ao Caboclo Tamandaré e demais Guias de sua coroa.

Mas, Dona Rosa já se encontrava nos braços da Aruanda.

Envolvida pelo Caboclo Guerreiro e pelos Peregrinos, enquanto

seu corpo astral era banhado pelas ervas, sendo em seguida,

envolta nos tecidos que os Caboclos trouxeram. O espírito da

yalorixá permanecia inconsciente, devido à debilidade que a

doença cardíaca havia ocasionado. No entanto, Mestre Caetano

chamava-nos a atenção para isso, víamos claramente os pontos de

luz no alto de sua cabeça, centro dos olhos e sobre o peito,

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 225 ]

cintilando. Fulgurantes. Demonstravam a integridade de sua

saúde mental e espiritual, embora sua falta de lucidez

momentânea.

Envolta naqueles tecidos alvos, Dona Rosa fora conduzida,

brevemente, até o local onde estava sendo realizado seu cortejo

fúnebre, para que esta pudesse ainda receber as vibrações vivas

que se irradiavam dos cânticos e orações entoados pelos seus

filhos de santo. Seu corpo era aos poucos descido ao solo, no

Campo Santo, enquanto era ovacionado por todos os presentes.

Clarão abrira-se em meio à multidão. Tamandaré fez sinal para

que fôssemos em direção ao foco luminoso, enquanto seguia à

frente carregando nos braços o espírito Dona Rosa, ao lado do

nosso Amigo Peregrino. Ouvíamos as palmas e os cânticos de

despedida. Dona Rosa estava entregue à sua Nova Morada, a

Aruanda Infinita.

Atrás, acompanhávamos, Mestre Caetano, Marcos e eu, junto

com os irmãos Franciscanos, dos quais nos despedimos em

seguida. Retornávamos ao Vilarejo.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Vitória da Luz

“Umbanda,

Mundo de Amor.

Umbanda,

Recanto de Paz.

Triunfo da Luz

Sobre as Trevas.

Reino de Deus,

Santos e Orixás”.

Meses haviam se passado. Continuávamos nossos dias de

trabalho e aprendizado no Vilarejo. Nesse período, tão necessário

para que eu pudesse assimilar e refletir sobre tantas coisas

fantásticas que havia presenciado. Tudo provocava em mim uma

série de dúvidas e anseios. Todos os Mentores Amigos do

Vilarejo, tal como Mestre Caetano e “seu” Benedito, diziam-me

que estas dúvidas e aflições seriam sanadas e colocadas em seus

devidos lugares com o passar do tempo.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 227 ]

Ao mesmo tempo, era fascinante para mim saber que me era

concedida a graça de vivenciar tantas experiências neste mundo,

sobretudo vivo e mágico, de energias manifestas, como o é esta

Aruanda Maior.

O sistema de vida. A relação entre as pessoas. Para mim, um

modelo muito diferente do que conhecera na Terra. Não obstante

a ausência de tecnologias e sistemas complexos, tal como os

presentes hoje na sociedade terrena, os fenômenos que nos

envolviam eram extremamente mais intrincados e distantes da

compreensão racionalizada do homem hodierno.

Um mundo extremamente sensível a todas as nossas emoções e

pensamentos. Realmente, a condição de ser Espírito traz consigo

um grande espelho a refletir, sem possibilidades de máscaras ou

qualquer dissimulação, como mecanismos de defesa, qual a

realidade psicológica de cada ser.

Víamos grandes exemplos a cerca disso quando estagiávamos,

João, Ana e eu, nas Grutas de Socorro. Enquanto nossas amigas,

Dona Izaldina e Dona Rosa, levaram poucas horas em repouso,

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 228 ]

recebendo algum tipo de cuidado, para logo após despertarem em

total posse de suas forças e faculdades espirituais, outros havia

que lá estavam sob cuidados há meses e até anos, ou, nos piores

casos, necessitando de remoção para outros planos, tamanha

gravidade de seus desequilíbrios, assim como o caso de José, o

ex-policial.

Da mesma forma, quando estávamos auxiliando no cuidado das

crianças daqui. Os pequenos, devido a intensidade de algumas de

suas faculdades psíquicas, como a fantasia, por exemplo, faziam

com que estas se tornassem grandes produtoras de fenômenos

diversos. Enquanto brincavam ou entretinham-se com as histórias

que lhes contávamos, a criançada tornava-se o centro originador

de espectros luminosos que pairavam no ar, além de flores,

brinquedos e outros objetos que se corporificavam ali, fruto do

pensamento intenso, impregnado de emoção e da imaginação

criativa dos pequenos.

Aliás, João e Ana encontravam-se cada dia melhor. Eles também

puderam experimentar aquele fenômeno de “transporte”

dimensional que fora realizada por Mestre Caetano

anteriormente, lá na Clareira da Mata. Retornaram muito

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 229 ]

emocionados por terem retomado contato com um trabalho de

Umbanda na Terra. Mestre Caetano, dissera que para eles era

muito importante, pois como iniciados e adeptos da religião, a

presença dos irmãos em meio às correntes de energias, emitidas

pelos cânticos e preces ao longo da gira, beneficiava-lhes

sobremaneira sua condição espiritual, fortalecendo suas

condições emocionais e a integridade de seus corpos espirituais,

auxiliando em seus restabelecimentos.

Certo dia, recebemos novo convite de Mestre Caetano para

revisitarmos aquele Terreiro de Umbanda que havia conhecido

junto dos Peregrinos.

João e Ana estavam bastante ansiosos por retornar e ter contato,

dessa vez diretamente, com a dimensão terrena. Chegamos ao

Templo umbandista e lá encontramos a assistência repleta de

pessoas. Os médiuns já estavam todos em seus lugares, orando e

entoando cânticos antecedentes ao início dos trabalhos daquela

noite.

Após o início dos trabalhos, com a defumação e a evocação da

linha dos Pretos-Velhos, o médium dirigente incorporara, em um

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 230 ]

fenômeno de intensa interpenetração mental, um nobre Espírito,

cuja Coroa Iluminada, perante as Leis Sagradas de Umbanda,

trazia o nome de Pena Vermelha.

Pena Vermelha não costumava “baixar em terra”, como se diz

popularmente no meio umbandista, mas nesse dia viera para

atender a um caso especial.

Após a formação da corrente de médiuns, estabelecida para o

trabalho de passes e atendimento da assistência geral, “seu” Pena

Vermelha solicitou que fossem chamados ao centro do terreiro

duas pessoas que haviam vindo de cidade distante, em busca de

consolo para seu drama pessoal. Reparei que se tratava de um

casal. Na verdade, uma senhora já idosa, aparentando mais de

sessenta anos e um jovem senhor, em torno de quarenta e cinco

anos. Estavam juntos, mas até então não conseguira entender qual

a relação entre eles. Conversavam ao centro do terreiro com o

sacerdote umbandista, o qual se encontrava totalmente envolvido

na irradiação espiritual de Pena Vermelha que os escutava com

semblante sério e atento, conforme a máscara que imprimia na

face do médium que lhe assimilava com grande fluidez seus

pensamentos e expressões.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 231 ]

Permaneciam ambos de pé ali, até o momento em que “Seu” Pena

Vermelha solicitara aos médiuns que formassem um círculo em

torno deles, dando-se as mãos. Percebi uma sensação diferente,

qual uma vibração manifestada por alguém ao meu lado. Nosso

amigo, João, estava parado, rígido, como se estivesse

hipnotizado, com o olhar fixo naquelas pessoas. Mestre Caetano

já o abraçava suavemente, demonstrando saber antecipadamente

do que se tratava. Na hora me veio a recordação de sua história e

pude reconhecer aquela senhora. Era Dona Rosalina, sua

mãezinha. O homem que a acompanhava ali era Leonardo, o

infeliz irmão de santo de João.

Foram trazidas duas cadeiras para que ambos pudessem se sentar.

Dona Rosalina, pelas condições emocionais e pelo cansaço.

Leonardo, devido às visíveis limitações físicas, características de

algumas das sequelas resultantes do fatídico acidente. Agora,

ambos se encontravam unidos ali. A mamãe saudosa e chorosa. E

o amigo ressentido pela culpa na tragédia.

Sob o sinal do Caboclo, os médiuns, de mãos dadas, passaram a

rezar em voz alta o Pai Nosso. “Seu” Pena Vermelha prosseguia

dizendo algumas palavras aos dois assistidos, enquanto mantinha

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 232 ]

as mãos do médium sobre a cabeça de ambos. Os ogãs passaram

a cantar um ponto de louvação a Oxalá, ao Pai Maior, solicitando

a cura e a limpeza para as almas sofridas daqueles irmãos.

O médium, imantado ao espírito Pena Vermelha, mantendo as

mãos espalmadas sobre Dona Rosalina e Leonardo, fechara os

olhos em profunda concentração. Pena Vermelha, fitava o Céu,

como se pedisse auxílio ao Plano Celeste, evocando as energias

vibrantes que passaram a construir um halo protetor dentro

daquele círculo formado pela corrente mediúnica, onde os

assistidos permaneciam.

As vozes da curimba entoavam agora uma cantiga, mais ou menos

com essas palavras:

“Foi Zambi quem criou o mundo,

É Zambi quem vai governar.

Foi Zambi quem criou as Estrelas

Que Iluminam Oxóssi

Lá no Juremá”12

12 Ponto de domínio público, entoado nas casas de Umbanda na linha de

Caboclos de Oxossi (nota do autor)

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Uma grande emoção tomava conta do ambiente. Do lado de cá,

espíritos trabalhadores também se uniam em corrente de oração,

em favor daquele momento. Raios luminosos luarizavam o rosto

daqueles dois irmãos ali, banhados em lágrimas, enquanto “seu”

Pena Vermelha, agora ajoelhado, tocava os ombros da mãezinha

e do amigo de João, dizendo:

- A filha acredita na força de Zambi? E o filho? Acredita na glória

de Zambi? Então, esse Caboclo vai trazer sinal do Céu para

colocar alegria no coração dos irmãos amados”.

Levantando o médium, Pena Vermelha estendia sua destra para o

alto, gesto esse repetido exatamente pelo cavalo de santo, o qual

nesse instante irradiava de si grande quantidade de fluido vital,

espalhando-se por dentro dos limites do halo luminoso que os

envolvia, qual substância leitosa e vaporosa.

Nesse momento, vimos surgir, diante de nós, onde nos

encontrávamos, Mestre Caetano, Marcos, João, Ana e eu, um

ponto brilhante, o qual em seguida estendera-se em direção a João

que estava totalmente entregue aos braços de Mestre Caetano.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 234 ]

João ia sendo envolvido naquela Luz, sendo por esta totalmente

recolhido.

Avistamos o espírito João surgir no centro do terreiro, abraçado

por “seu” Pena Vermelha e, em seguida, sendo imantado aos

centros nervosos e perispirituais do médium. Em questão de breve

minuto, o sacerdote, após imperceptível alteração corporal, sem

exibir trancos, gritos, tremores e sacolejos violentos,

demonstrando disciplina e a educação mediúnica saudável, abrira

os olhos, sustentando em sua corrente mental o espírito do nosso

amigo João, num fenômeno conhecido, em linguagem popular de

algumas casas de Umbanda, com o nome de “puxada” ou

“transporte”. Dizia:

- Mamãe! Mamãe! - João irradiava seu pensamento

espontaneamente, sendo repetido automaticamente pelo médium,

em profunda concentração.

- João, meu filho! – Dizia a senhora, prostrada.

- Mãe, quanto tempo! Que saudades da senhora! Oi Léo, meu

amigo! Saudades. Muitas saudades de vocês. Desde aquele dia...

Mãe, me perdoe! Aquele dia eu saí e nem me despedi da senhora!

Não dei atenção ao que você dizia, nem quis pegar o terço que a

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 235 ]

senhora queria que eu levasse lá no terreiro, naquela noite. Me

perdoe! E, você, Léo, não se sinta tão culpado. Eu errei. Fui eu o

responsável maior pela minha sina. Agora, vivemos de lados

diferentes da vida. Vocês aí e eu aqui. Mas saibam que eu estou

bem! Tenho muitos amigos por aqui que cuidam de mim e com

quem eu moro desse lado de cá, trabalhando e aprendendo.

Mãe, saiba que estou indo muito bem! Muita saudade! Mas oro e

peço a Deus que proteja a senhora todos os dias!

Leo, você sempre vai ser meu irmão e amigo! Não carregue a

culpa com você. Espero que tudo isso tenha servido de lição para

nós dois. Mas a vida prossegue. Não se aprisionem na saudade

que dói ou no remorso que paralisa a gente diante da Vida. Leo,

cuida de minha mãe.

Mãe, saiba que sempre lembro da senhora. Lembro de quando eu

saía para trabalhar e você me dava um beijo, pedindo a São Jorge

proteger-me. Eu estou aqui mamãe, sob a proteção dele e de Deus,

nosso Pai.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 236 ]

Fiquem em paz. Não vou pedir para não terem saudades de mim,

pois eu também tenho muita de vocês! Lembre-se que eu te amo,

mamãe! Eu amo você e o pai. Manda um beijo para todos lá em

casa. Leo, não esquece. Cuida da minha mãe!

Amo vocês! Amo demais! Eu preciso ir, mamãe.... Preciso ir...

Silêncio. O médium calara-se, enquanto o espírito João, agora

quase inconsciente, era desligado dos centros nervosos do

sacerdote, e “seu” Pena Vermelha o entregava aos braços de

Mestre Caetano, com cuidado e carinho.

Ouvíamos os médiuns cantando:

“Oxalá, meu Pai

Tem pena de nós.

Tem dó.

Se a volta do mundo é grande,

Oxalá,

Seu Poder é maior”.13

O médium ia retornando a si, não mais incorporado, mas ainda

sobre o influxo mental do Nobre Caboclo. Via Dona Rosalina e

13 Idem (n.a)

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 237 ]

Leonardo abraçados, chorando. Afagou ambos. Abraçou-lhes.

Pediu que cambones trouxessem água fresca. Deu-lhes de beber.

A corrente mediúnica agora rezava em silêncio. O Sacerdote de

Umbanda aguardava que ambos se refizessem. Saiam agora,

retomando seus lugares na assistência. Seus semblantes aliviados.

Uma marca indelével foi posta em seus corações, assim como no

amigo João, em favor da libertação e do crescimento emocional

dos três.

Eu estava embevecida com mais um acontecimento que

desconhecia. Dar testemunho disso é uma gratidão imensa que

sinto.

Precisávamos ir, agora. João adormecido sobre os braços de

Marcos e Mestre Caetano. Quanta emoção. Enquanto nos

afastávamos, ouvíamos na distância as vozes do terreiro:

“Meu Pai caminha com eu agora.

Meu Pai caminha com eu agora.

Sou filho Seu, pequenino.

Minha missão é tão grande.

Valei-me, Nossa Senhora!

Valei-me, Jesus Menino! ”

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 238 ]

Sagrado Coração

“Sagrado Coração de Jesus

Tende Piedade de nós.

Sagrado Coração de Maria,

Seja a nossa Salvação.

Em romaria suplicamos,

Preenche nosso coração

Desse Amor que só Deus

Pode nos dar”.

Saíamos para mais um dia repleto de trabalho e oração em

companhia dos amigos do Vilarejo. Era uma manhã em que o sol

ainda ia se erguendo no horizonte distante, entremeado de

montanhas altaneiras. Sentia-me com o peito tão suave e cheio de

alegria que não me cabia em mim. Sorria espontaneamente. E

cantarolava. Cantava as cantigas que havia aprendido aqui.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 239 ]

Meus amigos sorriam também. Os olhos brilhavam. Não sei se

contagiados pelo meu entusiasmo. Ou, talvez, porque também

estivessem preenchidos por aquela vibração de plenitude que as

paisagens deste Recanto de Paz, nosso Vilarejo, emanava de todas

as pessoas e lugares.

Cada detalhe. Cada casinha. Cada flor. A beira do Riacho. O

Santuário. As Grutas. Os campos. As plantações. As danças.

Dançávamos, cantando. Rindo. Logo cedo! Um ânimo leve e

repleto de energia nos invadia a todos.

Saindo para uma das passagens que divisavam os limites do

Vilarejo, nos encontramos com um grupo de Samaritanos que

estavam saindo em uma expedição, cuja jornada destinava-se ao

trabalho de resgate e socorro das almas que se encontravam nos

vales próximos. Carregavam consigo uma matilha de cães que

parecia tão animada quanto nós. E alguns Samaritanos seguiam

montados em cavalos, cantando toadas e declamando versos.

Irradiavam muita força e vigor. Homens e mulheres, em

montarias. Semblantes compenetrados. Carregavam padiolas

desmontadas, presas às celas dos cavalos. Mestre Antônio

Quirino, um dos líderes dos Samaritanos, estava à frente da

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 240 ]

expedição, montado em seu ginete. Calado. Fitava o horizonte,

em direção ao sol que ia levantando-se atrás das montanhas.

Parecia aguardar um sinal propício da natureza.

Foi então que a luz do sol, se elevando um pouco mais por detrás

dos montes, atravessou o vale, rompendo entre as árvores e

dissipando as sombras restantes da noite. Vinha em nossa direção,

iluminando a estrada. Mestre Antônio bateu palmas e, entoando

brados, deu comando ao seu corcel belo e altivo, puxando atrás

de si a caravana dos Samaritanos. Os cães iam alegres, correndo

em torno e à frente das montarias.

Na saída da caravana, energia tão grande nos erguera do solo,

atraindo-nos para o meio dos Samaritanos. De pronto, nos

entregaram a guia de alguns cães. Para outros, distribuíram

padiolas menores e alforjes com medicamentos e alguns

instrumentos que me pareciam algumas ferramentas, além de

cantis com água e remédio.

Alguns cavaleiros e amazonas, distribuídos em toda a extensão

do grupo, levavam consigo estandartes com o símbolo do Sagrado

Coração de Jesus.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 241 ]

Uma das amazonas que levava o estandarte era Mestra Mariana

de Souza, braço direito de Mestre Antônio na liderança dos

Samaritanos. Era uma mulher muito bela. Marcada por uma

postura firme e serena. Cabelos longos e negros desciam-lhe

pelos ombros. Olhos grandes e redondos, de cor castanho escuro.

Tiara de couro e brincos de pena. O desenho de suas grossas

sobrancelhas, assim como de seus lábios, harmonizados com os

traços marcantes de seu rosto, davam conta de sua descendência

indígena. Ela era a guardiã da flâmula do Sagrado Coração de

Jesus.

Nós deveríamos andar próximos dela, sem nos afastarmos.

Passaríamos por locais de difícil acesso. Caminhos sinuosos, por

trás das montanhas distantes. Locais que até então ainda não

tínhamos visitado. Os Samaritanos nos disseram serem até

perigosos alguns pontos por onde passaríamos, por isso

deveríamos nos manter dentro do grupo, protegidos pelos cães e

pelos cavaleiros.

Depois de longa caminhada, em que já havíamos percorrido

grande distância a ponto de passarmos a avistar, a muitos metros

abaixo da trilha por onde descíamos, um grande abismo,

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 242 ]

totalmente encoberto pelas sombras. Iríamos até lá, segundo nos

dissera Mestra Mariana. Contudo, por conta da nossa presença,

na condição de aprendizes, a expedição não desceria até os níveis

mais profundos.

- Dentro destes pélagos, em suas profundezas, existem muitas

áreas que nem mesmo nós somos habilitados e autorizados a

entrar. Somente os Anjos e os Seres Despertos podem levar sua

luz, a fim de resgatar as almas que lá habitam, por necessidade e

cumprimento das Leis Divinas” – Asseverou Mestra Mariana.

Fomos adentrando um pouco mais pelo resvaladouro, quando

começamos a ouvir os primeiros gemidos e gritos de socorro que

se passaram a avolumar, conforme nossa aproximação. Sombras

escuras pareciam rastejar em poços próximos a nós. O breu que

nos circundava quase não nos deixava reconhecer onde

pisávamos. Os relinchos dos corcéis em marcha lenta e os latidos

dos cães preenchiam o ambiente, junto dos gritos por ajuda. A

umidade e o som de corpos movendo-se nos charcos, além das

sombras das galhagens retorcidas, trazia um peso àquela

atmosfera, algo sufocante.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 243 ]

Mestre Antônio seguia a frente. Parecia ter objetivo específico

naquela incursão pelo vale sombrio.

Ao me voltar em direção ao ginete que era conduzido por Mestra

Mariana, vi que esta sustentava com as mãos sobre sua cabeça,

uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. A escultura emanava

luz, assim como os estandartes levados pelas montarias.

Avançando ainda mais pelo caminho lamacento, os Samaritanos

estancaram. Sob os brados de Mestre Antônio, alguns

trabalhadores adentraram nos charcos junto com alguns dos cães

da matilha. Com grande dificuldade, eu os via puxando, em um

trabalho sincronizado entre trabalhadores e cães, alguns seres

para fora do pântano, sendo estes em seguida colocados sobre as

padiolas, banhados e envoltos em tecidos. Alguns recebiam água

e remédio.

Havia alguns casos em que, ao se tentar retirar alguns espíritos

dos lodaçais, mãos trevosas, retraídas feito garras agressivas,

tentavam lutar com os cães e os Samaritanos, dificultando a

retirada daqueles que estavam sendo recolhidos. Outra parte da

matilha avançava em direção à estas formações enegrecidas que

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 244 ]

levantavam das sombras, intimidando-as e afugentando-as,

enquanto Mestre Antônio pronunciava Ave-Marias. Por fim, os

Samaritanos resgataram, naquela breve atividade de socorro,

cerca de trinta irmãos.

Uma vez que pouco mais de uma dezena daqueles irmãos haviam

sido devidamente tratados e colocados nas padiolas, as quais eram

montadas sobre uma estrutura que as permitia serem presas às

montarias, Mestre Antônio solicitou que parte dos socorristas

voltassem conosco, os aprendizes, com aquelas almas que

deveriam ser levadas ao Vilarejo, para serem cuidadas. Os demais

socorristas deveriam prosseguir com o trabalho.

Mestra Mariana nos conduziria de volta para nosso Vilarejo.

Tínhamos uma relativa dificuldade no transporte daqueles

irmãos, os quais pareciam colocados sob uma condição de coma

induzido. Isso tornava nosso trajeto de retorno mais demorado.

Quando, enfim, conseguíamos chegar às portas do Vilarejo,

fomos ajudados por Marcos, João e Mestre Caetano, entre outros

companheiros, para que aquelas almas, nossas irmãs, retiradas do

lamaçal da dor e do sofrimento, tivessem a oportunidade de

chegarem às Grutas de Recuperação.

Page 245: Conto de Aruanda_livro

Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 245 ]

Ficamos ali, junto com os amigos e Mestra Mariana, às portas do

Vilarejo. A altiva amazona olhou para nós com carinho, deu-me

um abraço caloroso e partiu, montada em seu cavalo. Voltaria,

junto dos Samaritanos, aos abismos para continuar buscando as

almas aflitas, desejosas do amparo e da redenção ao Amor de

Cristo.

- Nossos Amigos Samaritanos, tal como Mestre Antônio e Mestra

Mariana, abraçaram a fé no Sagrado Coração de Jesus há muito

tempo.

São Devotos de Maria e de seu Filho Amado, adotando como

símbolo o Sagrado Coração de Jesus, como emblema do seu

propósito de fé e relação íntima com Deus, uma vez que o

Coração de Jesus e de Maria têm como significado maior a

compreensão de que o Amor de Deus pelos homens é

incondicional e a fonte inesgotável onde cada um pode obter sua

redenção. A única força. O único dom concedido ao homem,

capaz de promover sua libertação espiritual. Estar no Coração de

Jesus, em seu Sagrado Coração, é ser acolhido pela imensidão do

Seu Amor, o Amor Divino, e por ele receber a Consolação e a

Superação do sofrimento da alma.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 246 ]

Ser devoto do Sagrado Coração é expressar essa devoção como

missão de fé em Deus, com a vocação de prestar auxílio caritativo

e desinteressado ao próximo, em atitude de renúncia e entrega

pessoal em favor do Bem de todas as Almas humanas, em ambos

os lados da Vida.

Ser devoto do Sagrado Coração, tal como estes Samaritanos, é

trazer para as almas a oportunidade de redenção, inspirada pelas

mãos estendidas de outra alma humana, emulada e envolvida no

sentimento cristão.

Oremos por estes trabalhadores de Cristo, em sua jornada

incansável de receber em seus braços, sustentados pela fé viva, as

almas sofredoras e cansadas, valendo-se do Sagrado Coração para

dar-lhes Caminho, aqui na Aruanda”.

Enquanto ouvia as palavras de reconhecimento e profundo

respeito de Mestre Caetano, avistava os contornos cada vez mais

distantes dos Samaritanos e da Amazona, sua líder, se perdendo

na estrada iluminada pelo sol daquela tarde.

Page 247: Conto de Aruanda_livro

Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 247 ]

O Mestre Divino

“Mestre Divino,

Amigo Jesus.

Das Estrelas, Sublime Peregrino.

Colore de beleza

Nosso existir.

Na glória de Seu Sacrifício,

Em Suas Mãos buscamos

Alicerce para nossas almas.

Seu Olhar Compassivo,

Permita-nos olhar.

Temos anseio de Paz.

No Seu Abraço,

Aguardamos um dia

Poder repousar”.

Quando me demoro a meditar na vida e em tudo quanto tenho

podido testemunhar por aqui, encho-me de felicidade e plena

confiança de que me encontro amparada no Coração de Deus.

Page 248: Conto de Aruanda_livro

Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 248 ]

Penso que se pudesse materializar partezinha do Criador, essa

ínfima partícula de Sua Imensidão de Amor seria o Vilarejo. Estar

entre essas pessoas, esses corações amorosos e simples, era como

se estivesse em meio a uma grande família, acolhedora e gentil.

Via-me, assim como os meus amigos, cercada de sorrisos e

compreensão. Orientação e carinho. A presença de Mentores tão

amáveis quanto Mestre Caetano e “seu” Benedito, enchia-me de

segurança íntima e tranquilidade para adaptar-me nesse mundo

mágico e encantador. Enquanto refletia e rememorava minha

existência. Tempo de temperança. Consciência diante da Vida.

Caminhando do centro do Vilarejo até o Santuário, passeava pelo

pequeno bosque. Observava as árvores frondosas e seus frutos.

Contemplava, à distância, a margem do riacho. Amava deitar-me

naquela relva fresca e olhar as nuvens a passar no céu. As tardes

em que podia descansar, em um tempo de folga dos trabalhos,

passava-as ali, lendo algum livro da nossa biblioteca. Sim, temos

uma biblioteca aqui também. E temos pessoas que cuidam dela.

Ou, entretinha-me com meu terço entre os dedos, em prece.

Exercício de ligação com Deus, conforme aprendera junto dos

Anciões.

Page 249: Conto de Aruanda_livro

Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 249 ]

Vinha perdida nos meus pensamentos quando cheguei aos portões

abertos do Santuário. Atravessei-os. Os jardins que contornam

toda a construção estavam muito bonitos. As flores com seus

botões todos abertos e coloridos. A passarada voando e cantando

entre os arbustos. Borboletas dançando por todos os lados. O

Santuário estava com suas portas abertas. Ao entrar, notei que

haviam alguns irmãos ali, rezando em silêncio, entregues, cada

um, ao seu próprio diálogo com o Divino.

Olhei o altar. A figura de Jesus, com seus braços abertos estava

no alto. Logo abaixo, a Imaculada Conceição. São Francisco de

Assis. São Benedito. São Sebastião e São Jorge. São João Batista.

Santa Clara. Todos os santos de devoção popular figuravam ali,

em composição harmônica nos andares que lhes sustentavam.

Flores frescas e em tom claro embelezam ainda mais o altar,

adicionando seu aroma àquele ambiente de paz. Algumas velas

acesas. Entreguei-me às horas, ali. Orando. Meditando acerca dos

meus planos. Sobre minha próxima oportunidade de reingressar

na romagem terrena. Pedia à Jesus Cristo, o Mestre Divino, a

clareza interior para saber escolher, se me fosse possível, as

circunstâncias da minha nova encarnação. Seria eu mais lúcida e

consciente de minhas necessidades e características emocionais

Page 250: Conto de Aruanda_livro

Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 250 ]

nessa nova existência? Afinal, progredir espiritualmente implica

em ampliar nosso nível de consciência interior. Mais uma vez,

lembrava-me dos conselhos a respeito do tempo. O tempo. Dar-

me o benefício do tempo.

Precisamos desta tão importante Lei Natural para estabelecermos

nosso equilíbrio. Talvez seja por isso que grandes modificações

no espírito humano levem tantos anos para se consolidarem. A

mudança de hábitos. A execução de novos planos para a vida. O

perdão. Questões tão necessárias à alma humana podem levar

uma encarnação inteira, ou até mais, para florescerem no interior

do homem e da mulher. Talvez por isso o tempo aqui passe num

ritmo diverso do tempo da Terra.

Jesus sabia bem disso. Mais de dois milênios desde que o Meigo

Rabi andara pelo mundo dos homens e, ainda hoje, seu Evangelho

de Luz está distante de ser apreendido em sua inteireza pela

humanidade, conquanto as suas consideráveis conquistas.

Abri os olhos e fitei a paisagem do lado de fora. A tarde já

sinalizava os primeiros passos de transição, para o surgimento do

anoitecer. Saindo para o jardim lateral, vi “seu” Benedito ali,

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 251 ]

sentado em um banco. Pintava uma nova imagem. A imagem de

um Anjo.

- Trata-se do Anjo Ismael, minha menina. Falou o Bondoso

Ancião.

“Junto de São Miguel, os Arcanjos do Senhor, espalham a Luz

Divina, como arautos de Nosso Senhor Jesus. São os guardiões

das Leis Divinas e os faróis que iluminam os vales da existência

humana, em espírito e matéria. Pela passagem do Mestre

Nazareno pelo planeta, ficaram estes Seres Divinos, Ismael e

Miguel, junto de outros Seres Despertos, encarregados de

sustentar com a glória espiritual de que são investidos, as

paisagens no mundo das almas, nessa Aruanda Bendita. Os Bem-

Aventurados e os sofredores, todas as almas se abrigam sob a

Misericórdia destes Seres Angelicais, prepostos dos Nazareno”.

Concluiu, olhando-me nos olhos.

Abracei aquele Mentor Amoroso, meu “avô” aqui na Aruanda e

coloquei-me de regresso ao Vilarejo. Certamente, aquele fim de

tarde estaria muito alegre por lá, com a chegada do momento da

partilha do trabalho do dia.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 252 ]

Ao passar próximo dos campos de cultivo, avistei ao longe, as

irmãs Dona Rosa e Dona Izaldina, ambas estavam com um grupo

de trabalhadores do Vilarejo, auxiliando no recolhimento dos

vegetais que foram colhidos. Sorriam gostosamente. Pareciam

leves e despreocupadas.

- Olá menina. Disse-me a benzedeira, Dona Izaldina.

- Olá Dona Izaldina. Como vai a senhora?

- Estou ótima, minha filha. Agora não tenho mais aquele cansaço

no corpo que nos últimos anos eu sentia. Tenho estado muito bem,

na companhia destes irmãos do Vilarejo e de Benedito. Aqui é

muito parecido com o que imaginava ser esse pedacinho da

Aruanda. Mas tudo muito mais belo! Estou encantada, Clarinha.

Encantada.

- Que bom, Dona Izaldina! E você, Dona Rosa? Como tem

passado?

- Tudo ótimo, menina! - Disse-me com largo sorriso. Não tenho

mais a dor enorme no peito, nem mais as dificuldades para

respirar. Sinto-me mais jovem, até. Veja só! – Rimos juntas.

- Muito bem! Estou muito feliz em vê-las bem! Agora, preciso

voltar lá para o centro do Vilarejo. Vocês vêm também?

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 253 ]

- Agora não. Temos que terminar de colocar a colheita nos cestos.

Mas daqui a pouco já vamos. Encontramos você lá!

- Tudo bem, então! Vou indo!

- Clarinha...Só uma coisa.... Você já teve alguma notícia de sua

mãe? – Perguntou-me Dona Izaldina.

- Não, Dona Izaldina. Por enquanto, ainda não tive

oportunidade... Mas, tudo tem seu tempo, não é?

- Sim, filha. Tudo tem seu tempo. Mas, se eu puder lhe dizer algo,

posso dizer que da última vez que me encontrei com sua mãe ela

estava bem. Muito firme, como ela sempre foi.

- É, Dona Izaldina? Você viu minha mãe?

- Sim, na ocasião não tive tempo de conversar com ela, mas pude

notar que tanto sua mãe quanto seus irmãos, estão bem.

- Que bom! Com isso, já fico feliz!

Despedi-me das sorridentes senhoras e segui. Aliviada pela breve

notícia a respeito de minha mãezinha. Era bom saber que estava

tudo bem com ela e meus irmãos. Mentalizava uma prece por eles.

Pedia a Nossa Senhora que a distância não se fizesse motivo de

grande dor para mim e nem para minha mãe.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 254 ]

Chegando ao centro do Vilarejo, muitas pessoas já se

encontravam por lá. Reunidas em conversação saudável. Marcos,

João e Ana estavam sentados com Mestre Caetano e sorriam.

Juntei-me a eles. Logo após, vi “seu” Benedito chegando com

Dona Izaldina e Dona Rosa. Um ancião dedilhava as cordas de

um violão, cantando algumas modinhas. A tarde ainda imperava,

resistindo à chegada de algumas estrelas que já vinham lhe visitar.

A silhueta da Lua contrapunha-se ao Sol distante, pondo-se no

horizonte, deixando o céu em tom violeta. Pássaros em revoada

dançavam nas alturas sem nuvens.

Observei que um grupo maior de pessoas, além do habitual,

estavam a se reunir junto a nós. Até mesmo os Samaritanos,

Mestra Mariana e Mestre Antônio. Alguns médicos da gruta eu

podia ver caminhando na direção em que estávamos, descendo

pelo pequeno monte colocado ao extremo norte do Vilarejo.

Embora não fosse um chamado formal, sentia que ocorreria

alguma reunião comunitária de importância.

Vi o Ancião José, vindo acompanhado por algumas pessoas. O

Peregrino João Ordário estava com ele. “Seu” José, Pai José,

como é chamado por muitos daqui, vinha de mãos dadas com

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 255 ]

alguns pequenos. Andar firme e ereto. Semblante tranquilo e

profundo. A bata em tom claro que estava usando, deixava

entrever um colar de contas brancas e azuis. Atravessou em meio

as pessoas da comunidade, cumprimentando-nos a todos.

Dirigindo-se à pedra angular, que lhe servia de cadeira, na qual

sentava-se para conversar fraternalmente conosco, nosso líder,

Pai José, aconchegou-se, recostando-se a ela.

Neste gesto simbólico, pleno de significado pela própria

simplicidade, todos compreendiam o momento, silenciando as

conversas e voltando-se todos para a figura do Ancião. Próximo

a ele, pude notar que estavam “seu” Benedito e Mestre Caetano.

Como daquela vez em que cheguei ao Vilarejo, Pai José deitava

seu olhar amoroso sobre nós, parecendo penetrar em nossa alma.

Eu pensava, mais uma vez, comigo mesma. “Seria aquele Ancião

um daqueles Seres Despertos, citados por seu Benedito? ”. Não

saberia dizer, mas a grandeza de sua presença parecia preencher

todo aquele Vilarejo.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 256 ]

“Meus irmãos e irmãs. Desejo saudar a todos e cumprimenta-los

pelo trabalho dedicado que todos vêm realizando, por amor a

Vida e a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Aos nossos irmãos mais novos, chegados mais recentemente ao

núcleo de nossa Comunidade, também quero agradecer-lhes pelo

carinho e gratidão com que laboram nas mais diversas atividades

que exercemos, em especial, no cuidado com os irmãos que nos

chegam, merecedores de amparo e compaixão.

No dia de hoje, nosso Vilarejo completa dois séculos de

existência. Há dois séculos recebemos a incumbência de

edificarmos nestas paisagens abençoadas pelo Criador e seus

Numes Celestes, essa Comunidade protegida e guardada por

nosso Vilarejo.

Os enviados de Maria, a Imaculada Conceição, nos trouxeram até

aqui, entregando-nos, pelo desejo sincero de servir ao Seu Filho

Amado que preenchia nosso coração, as ferramentas de que

precisávamos para construir nossa morada, nesta Aruanda

Bendita.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 257 ]

Cobertos pelo Manto da Senhora da Luz, trabalhamos nestas

terras, junto destes meus amados amigos, Benedito e Caetano,

além de outros Anciões que aqui estão. Maria Rosa, Luiza, João,

Joaquim, Antônio, Tião... Braços amigos e operosos que nos

ajudaram a construir o Lar Abençoado onde hoje podemos sentir

e testemunhar a imensidão deste Mundo Maior, qual é a Aruanda.

Junto a isso, também recebemos muitas responsabilidades que

nos chamavam a estender nossos braços, em tarefa de

acolhimento, a muitas outras almas que aqui viessem aportar,

necessitadas de socorro, consolação e paz. E é isso que buscamos

entregar por amor a Nossa Mãe Imaculada e a Nosso Senhor

Jesus.

Nosso Amado Mestre prometera, pelas palavras que nos foram

ditas por sua Santa Mãe, nunca nos desampararia, sendo para nós

o alicerce de nossa fé e gratidão à Vida. E, realmente, Ele assim

o faz, nos enviando, de tempos em tempos, os Seus Divinos

Sinais”. Pai José estava visivelmente emocionado. Calara-se

agora, por alguns momentos.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 258 ]

Bólidos cadentes cruzaram o Céu. Estrelas cintilavam. O violeta

que tingia o firmamento prosseguia embelezando aquele fim de

tarde, repletado de luzeiros. Até mesmo os pássaros, agora

aninhados nos arvoredos pareciam prestar atenção no Ancião.

“Então, hoje, conforme recebêramos notícias de nossos

Protetores Celestes, Nosso Senhor nos reserva mais uma

demonstração de Sua Amorável Presença entre nós, guardada

para esse fim de tarde, em que Ele, o Nazareno, irradiando Seu

pensamento de amor inalcançável por nós, nos fará sentir a

Verdade de Sua Ternura e Compaixão pelas almas humanas, Seus

humílimos filhos amados. Por conta disso, quero convidar a

todos, nesse momento, para que possamos nos unir num momento

de oração, para que o Sinal de Jesus possa chegar até cada um de

nós e, além disso, para que Seu Amor e Misericórdia possam

atingir, como Luz Salvadora, os abismos e vales de sombra que

nos circundam, onde buscamos socorrer e amparar as almas que

lá estão em purgação”.

Demos as mãos. Todos unidos num sentimento de fé viva,

buscando sentir a presença do Cristo entre nós. Gratuita.

Espontânea. Revelada. Estar entregue aos desígnios do que nos é

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 259 ]

maior e que não podemos apreender, somente sentir e se render.

Orávamos. Sentíamos a brisa leve que trazia um perfume de mata

consigo.

Abri os olhos e olhei para o céu num gesto espontâneo. Não podia

acreditar no que meus olhos viam. Mas, porque não acreditar?

Outros também viam, embevecidos e deslumbrados.

Emocionados.

No firmamento, o violeta da tarde dividia-se com o negro da

noite. Raios de Sol poente emaranhavam-se com as luzes

estelares. E no centro desse baile da Natureza mística desta

Aruanda, a figura luminosa e inconfundível de Jesus, com Seus

braços abertos, desenhada no céu, qual pintura magnífica.

Era o Mestre Divino, manifestando seu pensamento de Amor e

Compaixão, nessa pintura natural. Suas cores e luzes iam se

projetando pelo Céu em direção aos precipícios e aos vales de

sombras.

Abraça-nos, Senhor! Precisamos todos de Ti!

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 260 ]

Alvorada

“Alvorada. Novo dia.

E tu te refaz.

Por que ‘inda menina,

Guardada no Manto da Santa Mãe

Seu Imaculado Coração.

Porque tu és jóia e flor, menina.

És consolação e esperança, menina.

A docilidade da Vida”.

Essa linda flor que sustento entre meus dedos, acariciando suas

pétalas, parece-me a lembrança lúcida e plena do que tenho

vivido. Sinto o chão sob meus pés. O solo úmido. As pedrinhas

miúdas que cutucam. A relva. Sinto o vento soprando em meu

rosto. Enchendo-me de vida. Sopro de Deus.

Vou seguindo pelos singelos caminhos demarcados com pedras

rústicas. Caminho só. Rememoro a mim mesma. Tento me

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 261 ]

desapegar para crescer com as novas aprendizagens e valores que

são ofertados a mim, nessa Aruanda.

Paro entre as árvores. Deito-me entre elas. Sento-me em algum

banco dos jardins do Santuário. Sorrio com memórias. Choro

também por elas. Respiro fundo. Sinto a saudade. Sinto alegria.

Fico em paz.

Levanto-me e vou até as Grutas. Revejo tudo o que aprendi por

lá. José, aquele ex-policial, estava aqui novamente. Havia

recuperado a feição humana. Porém, seu sono continuava

profundo e inconsciente, aguardando momento de despertar,

ainda muito distante.

Ana, amiga do meu coração, era uma das trabalhadoras que

ajudava nos cuidados de José, assim como no de outros pacientes.

Estava refeita das cicatrizes deixadas pelo tabagismo em seu

corpo perispiritual. Parecia também mais calma e resignada.

Confortada diante dessa nova realidade que se lhe era apresentada

pela Vida. Sua saudade da irmã e da amiga fora suavizada pela

visita que realizara a elas. Uma, aqui mesmo no mundo espiritual.

Sua amiga Joana, que havia desencarnado há dois anos. A outra,

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 262 ]

sua irmã Zélia, pudera visita-la em sua casa, em companhia de

Mestre Caetano.

Eu prosseguia minha vida aqui, trabalhando, aprendendo e

aguardando que o tempo me trouxesse novas surpresas e

oportunidades de testemunhar mais histórias de graças e bênçãos

concedidas por Deus na vida de tantas almas nossas irmãs que

pude observar a partir daqui, dessa Aruanda Infinita.

Saio agora em direção ao Riacho. Sento-me em suas margens.

Olho as águas claras e calmas de sua correnteza a passar,

carregando consigo delicadas flores e folhas em sua superfície. O

canto suave de alguns pássaros que brincam próximo a mim, se

harmoniza com as risadas dos pequenos e pequenas que se

entretinham com suas reinações infantis.

Foi quando uma menina, branquinha como neve, aparentando uns

quatro anos de idade, chegou-se próximo a mim, com um sorriso

travesso e as mãozinhas para trás do vestidinho quadriculado que

trajava. Os cachinhos pretos balançando. Estende-me a mãozinha

e me entrega um botão de rosa. Admiro a beleza da flor, composta

por pétalas que exibiam tons variados de rosa, assim como seu

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 263 ]

perfume inebriante. A pequenina menina toma-me as mãos,

puxando-me, sem dizer palavra alguma. Seu olhar cheio de brilho

e candura fazia-me segui-la e atender ao seu chamado, de

imediato.

Ela, levando-me pelas pontas dos dedos, em ritmo acelerado, ria

gostosamente enquanto me fazia percorrer o caminho para o

centro do Vilarejo. Continuamos por entre os casebres, até que

aquele Anjo travesso bateu na porta de um deles. Batia várias

vezes. Eu olhava para ela, atônita. Não conseguia advertir-lhe ou

falar qualquer coisa para que aquela brincadeira não fosse

incomodar aos outros. Eu me sentia como que rendida e

hipnotizada pela energia daquela meiga criança.

A porta abre-se e eu atino que fôramos bater à casa de Pai José,

nosso Líder Ancião. Ele olha para mim sendo segura pela mão da

menininha. Olhava no fundo dos meus olhos e parecia

compreender a intenção daquele anjinho. Eu é que não podia

identificar a lucidez daquela alma iluminada em forma infantil.

Pai José abraçou-me e convidou-nos para entrar. Sento-me em

uma cadeira feita em palha trançada. Observo o ambiente

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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simpático e acolhedor da casa de Pai José. Vejo o café

esfumaçando em uma xícara branca. A viola ao canto do cômodo.

O cesto com frutas. Os arranjos com flores. O retrato de Cristo na

parede. Acima de nós, a Cruz desenhada no teto. Uma vela branca

acesa, no altar próximo ao quadro do Mestre Nazareno. Sentia até

mesmo o aroma de legumes sendo cozidos num caldeirão que

podia ver na cozinha em frente de onde estava. Hortaliças

colhidas das plantações. Todos aqueles alimentos eram

preparados, em forma de caldos, farelos e pães para nutrir

espíritos, assim como eu, que ainda não havíamos ajustado nossa

condição perispiritual a ponto de dispensar o alimento natural. A

grande parte desses alimentos era para nós e para os pacientes das

Grutas.

Via também o rosário de Pai José, com o qual já o avistara por

diversas vezes, passando-o entre os dedos à porta de sua casinha,

orando e fitando o céu.

A menina, branca de neve, sentara-se em meu colo. Brincava com

uma flor que pegara num vaso próximo. Pai José, sentado, fitava-

nos com curiosidade, enquanto aguardava que disséssemos algo.

Em verdade, ele aguardava que o anjo dissesse.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 265 ]

- “Clarinha, Clarinha...”. Começou a menina. “Fala para o Pai

José o que você sente! Fala, Clarinha! Fala! ”

As lágrimas sobrevieram primeiro que as palavras. Meu olhar

parecia dizer muito mais do que qualquer coisa que pudesse

pronunciar naquele momento. A emoção era muita e não

conseguia mais represa-la dentro de mim. A única coisa que podia

pronunciar foram as palavras “mãe” e “casa”.

Após aguardar que toda aquela emoção que transbordava do meu

peito amainasse, Pai José tocou-me o braço de leve, sem dizer

palavra. Colocou a mão sobre minha cabeça e meu coração. A

menininha acariciava meus cabelos. Sentia-me embalada pela

ternura e carinho daquelas duas almas iluminadas.

Adormeci.

Quando acordei, já no meu leito, dentro da estalagem que

compartilhava com outros irmãos, vi-me vigiada e cuidada por

Mestre Caetano e Ana Maria, a qual me oferecera um copo

d’água.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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- Sente-se melhor, Clara? – Perguntou Mestre Caetano.

- Sim, estou melhor...

- Que bom! Temos uma tarefa a fazer. Você vem?

- Sim, eu vou!

- Aguardarei lá fora – Encerrou.

Quando saí, vi que as estrelas já haviam tomado o céu, com a bela

negridão da noite. Não fazia ideia de quanto tempo adormecera.

Mestre Caetano, junto de “seu” Benedito, Marcos e João,

conversavam.

- Estávamos aguardando você, minha amada! – Sorriu, Mestre

Caetano. Vamos?

Saímos do Vilarejo. Percorríamos um caminho que já me era

familiar, embora a escuridão não me permitisse identificar com

precisão onde íamos. Mas, pela sensação de peso e pela

dificuldade de raciocínio, assim como de locomoção que passara

a sentir, automaticamente deduzi que rumávamos, novamente, em

direção à Terra. Buscava manter-me firme, para que dessa vez

não perdesse a lucidez. Em vão. Mais uma vez, não consegui

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 267 ]

vencer as dificuldades da transição para o plano terreno e me via

desfalecer.

Despertando já na dimensão paralela e imediata ao plano terreno,

caminhava sustentada por Mestre Caetano, sem poder contar

ainda com minha própria vontade e disposição. Cruzávamos ruas

escuras, becos, até pararmos diante de um barracão erguido em

tapumes. Estávamos num local muito pobre. Entramos. Uma

família humílima encontrava-se lá, repartindo o diminuto espaço.

Algumas crianças. Uma jovem senhora, mãe dos pequenos. E

uma outra senhora idosa, a avó, acamada. Parecia muito adoecida.

Víamos a imagem de Jesus Cristo e um quadro com o retrato de

um preto-velho, ambos objetos já bastante desgastados pelo

tempo. A jovem senhora aparentava grande cansaço. Certamente

pelo dia de trabalho, vencido arduamente. A dispensa com

pouquíssimos mantimentos. Ao lado do leito da idosa,

frasquinhos com quase mais nenhuma medicação.

A jovem senhora, pôs-se a orar, pedindo a Deus que enviasse

ajuda para sua família. Para sua mãe. “Seu” Benedito aplicava as

mãos sobre a idosa enferma, restituindo alguma soma de energia

sobre aquela alma. Mestre Caetano gotejava líquido balsâmico

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 268 ]

sobre as crianças e sobre a jovem senhora. Não conseguiríamos

suprir a fome de seus estômagos, tão pouco substituir a medicação

terrena para o corpo daquela senhora enferma, no entanto, suas

almas eram envolvidas em forças revigorantes que ajudariam a

garantir a resistência necessária para aquelas criaturas até que

alguma ajuda lhes chegasse.

Depois de hora inteira, ouvimos batidas na porta. A jovem

levantou-se e foi atender. Era um pequeno grupo de voluntários

que haviam recebido um pedido de ajuda por parte daquela jovem

e que se dispuseram a ir até aquele pobre lar levando algo que

pudesse ser de auxílio.

- Boa noite. Como vai, Maria? – Disse uma das senhoras do

grupo, que entrava à frente dos outros e parecia conhece-la. O

barraco era tão pequeno que daquele grupo que contava com

cinco pessoas, três ficaram para fora.

- Tamo indo... Tá difícil, viu? Não fosse vocês.... Seus olhos já se

enchiam de lágrimas.

- Deixa disso, menina. Vamos fazer o que pudermos. Trouxemos

alguns mantimentos, roupas e alguns dos remédios que sua mãe

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

[ 269 ]

precisa. Conseguimos lá no posto de saúde, com aquela receita

que o médico deixou para sua mãe.

- Muito obrigado! Obrigado a vocês também, viu? – Falou a

jovem Maria, colocando o rosto para fora do barraco humilde,

dirigindo-se aos outros do grupo.

- Não há de que, não é minha amiga? Vamos seguindo, porque

tenho fé em Zambi, nosso Pai, que vamos conseguir passar por

isso. Filho de Umbanda não cai!

- Muito obrigado, Dona Cida! Não tenho como agradecer.

- Já falei! Deixa disso. Agora vamos embora porque sei que já

está tarde e você ainda vai levantar de madrugada para levar essas

crianças na creche e ir trabalhar. Vá descansar! Depois nos

falamos. Fica com Deus, Maria – Beijou-lhe e saiu.

- Deus abençoe, Dona Cida.

Com a saída do grupo, aguardamos mais um pouco ali, esperando

que “seu” Benedito terminasse de atender as irmãs, aplicando-

lhes suave luz que lhe irradiava das mãos.

Em seguida, saímos e fomos atrás daquele grupo que viera ajudar

a jovem Maria e sua família. Tratava-se de um grupo formado por

pessoas pertencentes a um terreiro de umbanda daquela região. A

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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jovem Maria havia ido até lá um dia, em busca de ajuda e um

grupo de pessoas responsáveis comprometeram-se com a

responsabilidade de lhe auxiliar dentro do que fosse possível. O

terreiro, embora não tivesse uma diretoria social, por ser uma casa

pequena, ainda assim mantinha o compromisso de contar com um

trabalho de arrecadação de alimentos e roupas para famílias

necessitadas que lhes batiam às portas. Além disso, alguns

trabalhadores comprometiam-se em ajudar com atividades

simples para os assistidos, como ajudar com a obtenção de

remédios junto ao serviço público e o encaminhamento de jovens

para cursos profissionalizantes. Dona Cida fazia parte desse

grupo.

Eles pararam em frente a um ponto de ônibus. Trocaram algumas

palavras e se despediram, quando três pessoas do grupo

embarcaram no transporte que havia chegado. Dona Cida e outra

senhora seguiram a pé, pois moravam próximo dali.

A pedido de Mestre Caetano, seguiríamos junto de Dona Cida.

Observava seu rosto e este me soava familiar, no entanto, não

conseguia lembrar de onde conhecia aquela senhora. Tinha por

volta de cinquenta anos. A pele morena. Seus cabelos já bem

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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branquinhos. Óculos de armação grossa. Os traços no rosto. Ela

seguia ainda por mais algumas ruas até que chegou a uma casa de

portão grande e muros altos, pintada na cor verde. Uma casa

relativamente grande e bem conservada. Despediu-se da outra

senhora, que percebemos ser sua vizinha. Entrou.

Dentro do quintal daquela casa simpática, um canteiro muito belo.

Cheio de tipos de plantas. Tudo muito bem cuidado,

demonstrando o esmero em sua conservação. Entramos pela porta

da sala, seguindo Dona Cida, que se dirigiu até a cozinha.

Percebia que a casa possuía mais alguns cômodos, sendo uma

construção térrea, bem arejada e confortável. Uma energia de paz

a envolvia. Vi duas moças saindo de um dos quartos e indo ter

com Dona Cida. Eram suas filhas. Reparei que ambas se pareciam

comigo, em alguns traços. Meu peito palpitava.

Ouvi uma voz chamando ao fundo, vindo de um dos cômodos.

Sem pensar, segui na direção daquela voz que me chamara a

atenção. Notei que Mestre Caetano vinha atrás de mim.

Ao entrar no quarto, vi uma grande poltrona em que uma senhora

sentada de costas lia um livro, apoiando-o em seu colo. Comecei

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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a olhar ao redor. Via os quadros. Meu coração parecia saltar para

fora de mim. Via fotos de meus irmãos ainda jovens. Via meus

tios. Via nossa casinha. Via.... Via a mim mesma. Tomando

coragem, dei a volta na poltrona e olhei de frente aquela senhora.

A bíblia estava sobre seu coloco e ela a folheava. Evangelho de

Lucas. Eu a olhava. As lágrimas me escorriam. Seus pequenos

óculos. O rosto já sulcado pelo avanço da idade. A neve sobre sua

cabeça. Mas o olhar firme de sempre. O seu perfume. O seu

perfume.... Minha mãe.... Minha mãe!

- Oi, Dona Rita! – Cida havia entrado no quarto.

- Cida, meu filho já voltou?

- Não. Marcos hoje vai voltar mais tarde do trabalho.

Então, Cida era esposa de meu irmão caçula, Marcos. Que

felicidade! Tanta que as abraçava. Beijava-as

.

Minha mãe lia o evangelho. Não me notava com os olhos, mas

certamente o fez com o coração. Colocando o Evangelho de lado,

sobre o criado mudo, recostou-se na poltrona, cobrindo-se com o

xale de lã. Dizia em voz baixa, mas seu pensamento era muito

mais claro para mim:

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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- Ah, Clarinha! Que saudade! Espero que Jesus tenha reservado a

você um lugar especial em seu Coração, junto de Nossa Senhora...

Reservou, sim, mamãe! Estou aqui! Aqui do seu lado e sei que

você pode sentir meu amor. Era só isso o que eu queria poder

fazer, mãezinha. Olhar em seus olhos e poder dizer “eu te amo”,

mais uma vez! Agora eu vou para Aruanda. Sei que vamos nos

rever. Te amo, mãe! Amo.

Despertei na entrada do Vilarejo. Estava nos braços de Mestre

Caetano, enquanto “seu” Benedito e Pai José seguravam minhas

mãos, sorrindo ambos. Eu os abracei. Beijava-os. Não cabia em

mim. Alegria. Paz.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Olhei para o céu.

Era alvorada.

Novo dia, repleto de Deus.

Ao lado de amigos benditos.

Estou no Amor de Cristo,

Vivo nessa Aruanda Infinita.

No mar que mareja.

Na areia fininha.

Na estrela que brilha.

Nas matas que o luar prateia.

No Sagrado Coração,

No colo da Imaculada Conceição.

Nos braços das Santas Almas,

Nas águas calmas.

Agora eu vou,

Vou para lá.

Mas ‘inda vou voltar.

Para contar esse conto.

O conto de lá.

O Conto de Aruanda.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Palavras Finais

Amigo e amiga leitores.

Espero que a presente e despretensiosa obra possa ter

compartilhado com vocês um pouco da fé e do encantamento que

o autor constrói diariamente na sua vivência religiosa como

umbandista.

O desejo era o de falar de Deus e dessa relação íntima, única e

insubstituível de nossa relação com Ele. Espontânea. Silenciosa.

Gratuita. Desvinculada de qualquer condição externa.

Falar dEsse Deus que muitas vezes nos esquecemos e que deixou

uma centelha de Si dentro de nós. Não requer nenhum processo

mágico. Nenhuma evocação específica. Nem roupa branca.

Nenhum aparato. Nenhum ritual, a não ser aquele mais pessoal

que possamos fazer na intimidade nossa, dentro da casa interna

do nosso pensamento, para nos ligarmos a Ele em qualquer lugar

ou momento.

Falar dessa experiência de relação com Deus, permeada pelas

emoções humanas, tal como aquelas reveladas pela menina,

Clara. E podermos notar que de ambos os lados da vida, somente

esse diálogo aberto e franco com o Criador pode nos dar

caminho de paz e segurança interior. Entender também a relação

entre seres humanos, compreendendo que a vida do homem e da

mulher só pode se construir em equilíbrio pelos elos fraternos

que devemos promover a benefício de todos.

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Não nos construímos por nós mesmos. Precisamos de outrem

assim como os outros precisam de nós. Esse um dos significados

possíveis das chamadas correntes espirituais, presentes nas Leis

Espirituais. Seja o povo de Umbanda, seja para os de Aruanda.

Precisamos uns dos outros.

Espero que os sentimentos, memórias e símbolos presentes neste

imaginário possam ter também contribuído e acrescentado

possibilidades de sentido à sua experiência de fé, como

umbandista ou simpatizante da Umbanda. Mas, e principalmente,

que ela possa contribuir para a sua relação íntima com Deus,

Olorum, Zambi, Tupã. Como queira chama-lo.

Saravá fraterno.

Gregorio Lucio

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Conto de Aruanda e Imaginário: Lista de

Músicas, Filmes e Exposições

Músicas e seus Intérpretes

Vilarejo – Marisa Monte

Mama Kalunga – Virginia Rodrigues

Padroeiro do Brasil – Maria Bethania

A Força que vem da Raiz – Mariene de Castro e Maria Bethania

Velhos de Coroa – Fabiana Cozza

Oração ao Tempo – Caetano Veloso

Andar com fé – Gilberto Gil

Ave Maria – Schubert

Sonata ao Luar – Beethoven

Jesus, Alegria dos Homens – J.S. Bach

Magnificat – Marco Friscina

Pontos de Umbanda Diversos – J.B. de Carvalho.

Essas e outras canções poderá conferir pelo Youtube, na playlist

de Conto de Aruanda:

https://www.youtube.com/playlist?list=PLsgOwRiGqSEvzQ6ai

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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Filmes/Documentários sobre Umbanda e Candomblé

Filhos de Umbanda (dir: Andre Di Kabulla e Felipe Perpetuo)

Falando com Deuses (inciativa do cineasta Guillermo Arriaga)

Umbanda no Brasil (dir: Rogerio Sganzerla)

Prova de Fogo (dir: Marco Altberg)

Umbanda do Sol e da Lua (dir: Sergio Rossini)

Umbanda é Brasil (dir: Turma 6ºano Jornalismo -Unesp/Bauru)

Cafundó (dir: Clovis Bueno e Paulo Betti)

Jardim das Folhas Sagradas (dir: Pola Ribeiro)

Exposições e Mostras sobre Cultura Afro-Brasileira

Museu Afro Brasil (Parque do Ibirapuera)

https://www.google.com/culturalinstitute/collection/museu-afro-

brasil

Museu Afro-brasileiro- UFBA

http://www.mafro.ceao.ufba.br/

Doze Profetas e Profeta Daniel (Aleijadinho)

Medalhão com anjo (Mestre Valentim)

Marco Sincrético da Cultura Afro-brasileira (Rubem Valentim)

Ibiri Ati Ejo NiLe – Panteão da Terra (Mestre Didi)

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Conto de Aruanda, por Gregorio Lucio

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