continente #019 - nelson rodrigues

100
8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 1/100

Upload: revista-continente

Post on 07-Aug-2018

221 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 1/100

Page 2: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 2/100

Page 3: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 3/100

Diário de uma víbora – Joel Silveira

O jornalista fala da sabedoria dos gatos e da 

diferença entre “analista” e “cientista” político

06Especial – 90 anos

Nelson Rodrigues mostra como se escreve uma 

crônica esportiva sem precisar ver o jogo

Bioética – Dilemas da ciência

Pesquisas nazistas e a Bomba A quebraram a 

harmonia entre ciência e progresso humano

     C     O     N     T     E      Ú     D     O

ContinenteMulticultural

Ferreira Gullar – Bienal A contradição básica entre a manifestação que se

quer rebelde e institucional, ao mesmo tempo 20

22Memória – Sérgio BuarqueHistoriador é lembrado como o exemplo

completo de um brasileiro realmente genial 28

38Cinema – Bressane e George Lucas

Cineasta marginal é premiado. Tecnologia digital

modifica a própria estética cinematográfica 

58Cultura – Luiz Costa LimaCrítico avalia a cultura brasileira e analisa Paulo

Freire, Euclides da Cunha e Gilberto Freyre 62

Folclore – Boi de Máscaras

Em São Caetano de Odivelas (PA), um bumba-

meu-boi que não existe para o consumo turístico 68

72

Entremez – Crime e estética

 A relação entre a morte de um romeiro do Padre

Cícero e o trabalho de Francisco Brennand 90

Página 72

Página 42

Denise Milfontna peça Dorotéia,

de Nelson

Rodrigues.

Foto: AJB

32

42

Marco zero – Poesia

 Análise do livro Corpo lunar, antologia que reúne as

principais vozes da poética feminina pernambucana 80 Antologia – Arnaldo Tobias

Em quatro poemas, a força revolucionária dos

versos do poeta russo Vladímir Maiakovski 82Mil palavras – Walter CarvalhoO grande fotógrafo do cinema brasileiro apresenta 

um ensaio que fixa o olhar em Pernambuco 84

Música – Josefina Aguiar  A grande pianista é chamada de “Dama da 

Resistência” pela defesa da música erudita  92Últimas palavras – A ordem do dia

Inusitado é o bem comum do povo, primeiro

limite para se conceituar a liberdade 96

www.continentemulticultural.com.br 

Conversa franca – ArgentinaEscritor revela como a globalização afetou um

povo que se dizia parte do mundo desenvolvido

 Arquitetura – PatrimônioRestaurações sem critérios bem definidos

terminam por criar realidades desfiguradas

Sabores pernambucanos – FeijãoPrato apreciado por índios, aos poucos

conquistou o paladar dos portugueses

Page 4: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 4/100

CumprimentosQuero cumprimentar o poeta Everardo Norões pelo

lirismo do artigo Entre o alif e o aleph, onde o mesmo enfocoua necessidade de se descobrir os caminhos do afeto para abusca do entendimento entre contrários. Eu me senticontemplada, como se pelas palavras de Everardo estives-sem os meus sentimentos e o meu desejo de expressão, tãoafetuosamente colocados.

Como judia brasileira, de uma segunda geração denascidos e acolhidos neste país em que nunca nos sentimosestrangeiros, guardo, na minha memória de criança, a formafraterna pela qual o meu avô, Salomão Gorenstein, proprie-tário da Ótica Vitória, na rua 10 de Março, tratava porprimo o seu vizinho sírio-libanês, proprietário da loja de ca-ça e pesca, seu Miguel Amin, quando passavam férias juntos, em Fazenda Nova.

O meu pai, falecido engenheiro Marcos Botler, também

se referia ao amigo e colega de profissão, Talfig Asfora,como primo.Parafraseando Everardo, gostaria que o  aleph e o  alif 

simbolizassem a nossa certeza de que, pelo prisma dohumanismo de Maimônides, os brasileiros de origem árabee os judeus brasileiros devam se unir para apontar os cami-nhos da paz.

Como expressou Everado, o conflito do Oriente Médiochega até nós através de imagens partidas, e a reconstituiçãodas mesmas só será possível através do entendimentopolítico e da tolerância cultural e religiosa entre os primos.

Aronita Rosenblatt – Recife – PE

2 Continente Multicultural

Companhia Editora de Pernambuco – CEPE

PresidenteMarcelo Maciel

Diretor Financeiro Diretor IndustrialAltino Cadena Rui Loepert

Conselho EditorialPresidente: Marcelo Maciel

Conselheiros: César Leal, Cícero Dias,Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello,

Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva,

Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly 

Diretor Geral

Carlos Fernandes

EditorMário Hélio

Editores ExecutivosHomero

 Fonseca e Marco

 Polo

Assistente de edição ArteAlexandre Bandeira Luiz Arrais e Manoela Leão Editoração eletrônica Ilustradores

André Fellows Lin e Mascaro

Tratamento de imagem RevisãoNélio Câmara Rodrigo Pinto

ColaboradoresAlberto da Cunha Melo Arnaldo Tobias Daniel Piza Fábio Lucas

Ferreira Gullar Geneton Moraes Neto George Moura Geraldo Gomes

Heitor Reali Hugo Fernandes Júnior Joel Silveira José Mário Pereira

Kleber Mendonça Filho Luciano Trigo Luiz Carlos Monteiro

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti Rivaldo Paiva Ronaldo Correia de Brito

Silvia Reali Tatiana Resende Walter Carvalho Weydson Barros Leal

Gerente GráficoSamuel Mudo

Gerente ComercialAlexandre Monteiro

Equipe de ProduçãoAna Cláudia Alencar, Carlos Eduardo Glasner, Cláudio Manoel,

Douglas Rocha, Elizabete Correia, Elizeu Barbosa, Emmanuel Larré,Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis,Mauro Lopes, Paulo Modesto, Roberto Bandeira e Sílvio Mafra

Continente Multicultural é uma publicação mensal daCompanhia Editora de Pernambuco

Circulação, assinaturas, redação, publicidade, administração e correspondência:Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife/PE – CEP 50100-140de 2ª a 6ª das 8h às 17h30 – Fone: 0800 81 1201 – Ligação gratuita

Assinaturas: 3217-2524 / e-mail: [email protected]ção: fone:3217.2551 / fax: 3222.4130

E-mail: [email protected]ções: [email protected]ções: [email protected]

Tiragem: 10.000Impressão: CEPE

Todos os direitos reservados.Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco

ISSN 1518-5095

Apoio: Governo do Estado de PernambucoOs textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem,

necessariamente, a opinião da revista

Expediente

ContinenteMulticultural

Page 5: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 5/100

Continente Multicultural 3

CulináriaMuito boa a matéria de Maria Lectícia Monteiro

Cavalcanti sobre gastronomia (Carême, Bocuse, Joana e Maria, na edição número 16, mês de abril). Fiqueiencantada com aquelas histórias dos  chefs de cozinha. Etambém em saber que Leonardo da Vinci foi o inventor doguardanapo, substituindo os coelhos (!) que eram usadospara limpar as mãos. Isso é que se chama cultura e diversão, juntas. Meus parabéns!

Maria do Carmo Cerqueira – Patos – PB

Qualidade excepcionalAcompanho sempre todas as reportagens da revista

desde que a descobri. Sinto-me muito envaidecido por serpernambucano e ter uma revista de uma qualidadeexcepcional como esta circulando aqui entre nós. Gostaria

que vocês dessem mais oportunidade a quem estáiniciando. Parabéns por esse engenhoso empreendimento.Daniel Fernandes Viana Filho – Recife – PE

A melhorInicialmente, parabéns pela excelente revista, a melhor

do gênero no Norte/Nordeste, motivo de orgulho paratodos nós, nordestinos. Agora, se me permitem, trêssugestões de matérias, de interesse regional: Luís da CâmaraCascudo, a Bienal do Livro de Natal e o centenário doInstituto Histórico e Geográfico do RN, a mais antigainstituição cultural daquele Estado.

 João Bosco de Sousa – João Pessoa – PB

TurismoSou estudante de Turismo, e fui presenteada por um

amigo do Recife, Dr. José Geraldo Eugênio de França, comexemplares da Continente. Tenho divulgado-os da melhormaneira, mostrando a riqueza do nosso Nordeste e Brasil.Os assuntos e fotografias têm-nos auxiliado em diversaspesquisas turísticas. No exemplar de abril, em  Sabores pernambucanos, o meu elogio pela riqueza de publicação.Nós, brasileiros, precisamos conhecer os grandes chefes (ho-mens e mulheres) que comandam a nossa cozinha.

Iolanda Lopes Carneiro – Recife – PE

ParabénsParabéns por Continente, cada vez melhor. Parabéns

pela publicação da tradução de Diego Raphael. Maravilha.A entrevista de Harold Bloom enche as medidas. Comcerteza, uma revista adulta. Parabéns pelo conto de JoséCastelo. Sem provincianismo. Muito bom. Grande abraço.

Raimundo Carrero – Recife – PE

ArmorialAdorei a matéria Os mitos do Brasil em movimento (edição

de fevereiro). Adorei mesmo. Só adoraria mais se falassesobre o teatro armorial e, principalmente, sobre ArianoSuassuna.

Rafael Armando – Recife – PE

DançaFinalmente! Sou uma apaixonada pela dança

contemporânea e já estava ficando agastada por ver que umarevista do quilate intelectual desta Continente, ainda nãotinha prestado a devida importância a esta manifestação tãograndiosa da arte. Mas, fui recompensada. A edição de junho, que traz na capa a bailarina paulista Deborah Colker,

lavou minha alma. La Colker é motivo de orgulho paratodos os brasileiros, pelo que representa na dançacontemporânea mundial. Parabéns pela entrevista, querevela também o quão inteligente é aquela mulher.

Arminda Tavares – Bauru – SP

SexoLi o artigo O sexo que conduz a Deus na Continente e

gostei. Sempre achei que deveríamos ter uma abertura maiorpara outras literaturas, como a da África do Norte, onde vivisete anos, e que tem grandes autores desconhecidos. SobreOs Campos Perfumados, de Nafzawi, observo o seguinte: háoutra edição brasileira, a da Martins Fontes (coleçãoGhandara, de 1994). Trata-se de uma tradução da traduçãofrancesa (La Prairie Parfumée où s ébattent les plaisirs) deRené Khawan (um grande tradutor do árabe para ofrancês). No prefácio do autor (Nafzawi), ele diz que OsCampos Perfumados foi escrito após “um livro de certaimportância” que ele compôs, uma pequena obra intituladaTannwir al-biqa fi asrar al djima - A iluminação dos vales,através da exposição dos segredos da cópula. Portanto, A tocha do Universo é do próprio Nafzawi. Não sei se as outrastraduções têm o prefácio de Nafzawi, o qual dá os detalhessobre o assunto.

Everardo Norões - Recife - PE

Page 6: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 6/100

Anúncio

Page 7: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 7/100

e a história nada mais é do que um desfile decrimes e insanidades, como querem historia-

dores do porte de um Will Durant, o teatro e aliteratura espelham isso. Autores como Ésquilo eShakespeare dizem muito mais sobre os conflitoseuropeus e sua essência do que todos os anais edocumentos oficiais juntos.

No Brasil, um dos espelhos mais bem aca-bados das relações cotidianas é a obra de Nelson

Rodrigues. Na superfície, os seus temas pouco vão além das mazelas de um mundo suburbanodeliciado em morbidez, quase sempre de conteú-do freudiano. Nas estruturas profundas talvez se-

 jam mais do que isso. As suas obras têm caráterfolhetinesco. São retratos mais jornalísticos doque literários de homens e mulheres.

Embora afundados em realismo delirante,as suas personagens nada têm de heroísmo tra-dicional. De onde viria a sua força psicológica?

Onde uns responderiam Freud, outros escolhe-riam Pernambuco, estado natal de Nelson Rodri-gues. Às vésperas dos 90 anos do seu aniversáriode nascimento, um repórter revolveu as entranhasde uma antiga entrevista e a apresenta aos leitores.

Além de narrar os bastidores da conversa,o repórter Geneton Moraes Neto revela a sua ad-miração pelo cronista esportivo e criador de frasesque já se incorporaram ao chamado imaginárionacional. Hoje, Nelson Rodrigues é dessas una-nimidades do país. Se fosse vivo poderia enxergar

isso com ácida ironia. O tantas vezes censurado ea quem coube como uma luva a pecha de “rea-cionário” é um dos gênios da raça.

Para a sua reabilitação concorreram nãosomente as diversas adaptações de suas obras pa-ra o cinema, mas a publicação da biografia dele,escrita pelo jornalista Ruy Castro, O anjo porno-

 gráfico, e as reedições dos seus livros, pela Com-panhia das Letras. Chega de maldição. O antesodiado autor de folhetins obscenos é um dos maisqueridos pelas novas gerações. Talvez menos pre-sas aos seus fantasmas que as duas ditaduras quenum século tentaram amordaçar o país de liber-tinos e homens cordiais.

     E     D     I     T     O     R     I     A     L

Continente Multicultural 5

 F  O  T  O : R  E  P  R  O  D  U  Ç  Ã  O

  D  O

  L  I  V  R  O

 O  A  N  J  O  P  O  R  N  O  G  R  Á  F  I  C  O / C  I  A .  D  A  S L  E  T  R  A  S

S

Amar e odiar Nelson Rodrigues

Page 8: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 8/100

6 Continente Multicultural

“ o cretino f undamental

 As incríveis cenas dos bastidores

de um encontro com Nelson

Rodrigues, maior dramaturgo

brasileiro, pernambucano exilado

no Rio, estilista número um dacrônica esportiva

Geneton Moraes Neto

   E   S   P   E   C   I   A   L

Page 9: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 9/100

Continente Multicultural 7

 água”

Meu primeiro, único e último encontro como gênio Nelson Rodrigues (que, se vivo, estaria com-pletando 90 anos em agosto próximo) começoucom uma dúvida devastadora: por que diabos ele te-ria marcado nossa entrevista justamente para a horade um jogo da seleção brasileira? Não é possível,

deve ter havido algum engano – eu pensava commeus botões, enquanto caminhava pelas calçadas doLeme, na beira-mar, no Rio de Janeiro, em direçãoao apartamento do homem.

Se Nelson Rodrigues escrevia aquelas crôni-cas geniais sobre futebol no jornal O Globo, é óbvioque ele não iria dar uma entrevista a um forasteiropernambucano no exato momento em que a sele-ção brasileira entrava em campo, no Maracanã, com

 transmissão ao vivo pela TV. Se desse, como é queele iria escrever sobre o jogo no jornal do dia seguin-

 te? Não, deve ter havido um grande equívoco. Émelhor que eu desista. Nelson não iria dar entrevistaalguma num momento tão inoportuno. Ou iria?

Mergulhado num poço de constrangimento,aperto a campainha. A entrevista tinha sido marcadapor telefone. Uma mulher abre a porta. Ao fundo,

 vejo a imagem de Nelson Rodrigues esparramadonuma poltrona. Os pés estão fora dos sapatos. Não

 faz frio, mas ele veste um suéter sobre a camisa de

mangas curtas. Pende na parede da sala uma fotoemoldurada dele em companhia de Sônia Braga ede Neville de Almeida – atriz e diretor da versãocinematográfica de A dama do lotação.

Quando a mulher avisa em voz alta que “orepórter de Pernambuco” estava na porta da sala,Nelson ergue os braços,agita as mãos,saúda o ilustredesconhecido com uma exclamação calorosa,comose reencontrasse um amigo de infância: “Conterrâ-neo! Conterrâneo!”.

O cumprimento efusivo não afasta o temor deque Nelson tenha cometido um pequeno equívoco:ao marcar a entrevista para aquele horário, ele bemque pode ter se esquecido do jogo. A hipótese pode

 F  O  T  O  S : R  E  P  R  O  D  U  Ç  Ã  O

  D  O

  L  I  V  R  O

 O  A  N  J   O P  O  R  N  O  G  R  Á  F  I  C  O / C  I  A .  D  A  S L  E  T  R  A  S

Page 10: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 10/100

8 Continente Multicultural

parecer absurda, mas quem sou eu para menos-prezar as possíveis excentricidades de nosso herói?

Tento uma solução alternativa para escapar deum vexame: digo que posso voltar depois; não queroimportuná-lo naquela hora. Teatral, Nelson Rodriguesrepousa a mão direita sobre o peito, como se sugeris-se uma pontada no coração. Olha para a televisão, pe-de à mulher: “Tirem o som desse aparelho! Tirem osom desse aparelho! O Brasil me faz mal! O Flumi-nense me faz mal!”. A mulher e a irmã de Nelson riem

da cena. Hiperbólico, épico, exagerado, o homem éuma fábrica de tiradas dramáticas. Desconfio de queacabo de me transformar em solitário e privilegiadís-simo espectador de um espetáculo chamado NelsonFalcão Rodrigues, encenado pelo próprio autor.

 A ordem – “tirem o som desse aparelho!” –é imediatamente atendida. O aparelho de TV ficamudo. Assim, este forasteiro se vê de repente nacondição de coadjuvante de uma cena surrealista:diante de uma TV sem som, que transmitia o jogo

da seleção brasileira contra o Peru, o autor das maisbrilhantes crônicas já escritas sobre o futebol brasi-leiro simplesmente tira os olhos do vídeo para res-ponder ao interrogatório de um visitante que che-gou em hora inconveniente.

Fui testemunha ocular de uma verdade inape-lável: Nelson Rodrigues era um cronista tão perfeitoque nem precisava ver o jogo. O resultado da par-

 tida, as escaramuças dos jogadores, os esquemas táticos, todas essas bobagens não passavam de deta-lhes secundários aos olhos do gênio. A Nelson Ro-

drigues, importava a escalação do adjetivo certo na frase certa. Pouco interessava a distribuição de be-ques ou atacantes no retângulo verde. O relato des-sas banalidades é tarefa que cabe aos “idiotas daobjetividade” – estes pobres seres que só são capa-zes de enxergar a rala superfície dos fatos.

 A missão que Nelson Rodrigues outorgou a simesmo era outra: traduzir em palavras a dimensãoépica da maior paixão brasileira – o futebol. Para que,então, perder tempo com miudezas? Para que ouvir o narrador descrever o jogo na TV? Para que saber os nomes dos jogadores do Peru? Para que saber seo meio-de-campo do Brasil estava ou não estavainspirado?

“Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola. A mais sórdida pelada é de uma complexidadeshakespeariana. Às vezes, num córner bem ou malbatido, há um toque evidentíssimo do sobrenatural”,ele escreveu uma vez.

Nelson Rodrigues preferia se ocupar de ques- tões metafísicas – como, por exemplo, a inapetênciade nossos escritores brasileiros em tratar do futebol.Numa de suas tiradas clássicas, reclamou: “Nossaliteratura ignora o futebol – e repito: nossos escrito-res não sabem cobrar um reles lateral.”

 A frase é erradamente citada nove a cada dez vezes em que aparece em textos publicados emnossos jornais. Virou lugar-comum dizer que NelsonRodrigues reclamava de que nossos escritores nãosabem nem bater um escanteio. É uma inexatidão.

 A implicância de Nelson era com literatos incapazesde cobrar um lateral.

 Alheio a essa fraqueza nacional, Nelson pare-ce distante da disputa que se desenrola ali, no vídeo.

Faz ao repórter uma pergunta incrível: “Quem é onosso adversário hoje?”. Informo que é o Peru.Fique registrado para a posteridade que o

maior cronista do futebol brasileiro não precisava ne-cessariamente saber quem era nosso adversário.

Quando Zico faz um a zero, aos trinta e qua- tro minutos do primeiro tempo, Nelson inter-rompe a entrevista para inaugurar, aos brados, umanova expressão exclamativa: “Que coisa beleza!Que coisa beleza!”

Depois, pede à família: “Pessoal, com licença

dos nossos visitantes, vamos fechar essa máquinaporque já estou começando a ficar nervoso”. Aosnão iniciados nas sutilezas do dialeto rodrigueano, es-clareça-se que “fechar a máquina” significa desligar aTV – o que, aliás, não foi feito. Nelson dispara, então,um julgamento entusiasmado sobre o escrete dirigi-do por Cláudio Coutinho: “Mas esses rapazes sãouns gênios! Uns gênios!”

O repórter seria novamente surpreendido.Nelson já perguntara quem era “nosso adversário”.

 Agora, ao ver o replay do gol recém-marcado, tomaum susto: “Mas já houve dois gols?”. Digo a ele quenão: é apenas a repetição do primeiro gol. O placar é um a zero. O gênio da raça concorda com um “ah,

“Tire o som desse aparelho! Tire o som desse aparelho!O Brasil me faz mal! O Fluminense me faz mal!”.

Hiperbólico, épico, exagerado, o homem é uma fábricade tiradas dramáticas

Page 11: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 11/100

Continente Multicultural 9

sim !”. Teria dois outros motivos para vibrar: o mi-neiro Reinaldo – que entraria no lugar de Nunes –

 faria dois gols, aos 20 e aos 40 minutos do segundo tempo, para fechar o placar: Brasil 3 x 0 Peru.

Corro à banca no dia seguinte para comprar o jornal. O que diabos Nelson Rodrigues teria escri-

 to sobre o jogo que eu não o deixara ver? Eis:“Vejam vocês como o futebol é estranho – às

 vezes maligno e feroz. Mas não quero ter fantasias es-plêndidas. O jogo Brasil x Peru, ontem, no Mário Fi-lho, não assustou a gente. Diz o nosso João Saldanha:‘O Brasil fez seu jogo, jogo brasileiro’. Vocês enten-dem? Não há mistério. O brasileiro é assim. Quandoum de nós se esquece da própria identidade, ganhade qualquer um. Outra coisa formidável: na semanapassada, um craque nosso veio me dizer: ‘Nelson, épreciso que você não se esqueça: ao cretino funda-mental, nem água’. O jogo foi lindo”.

Penso com meus botões que Nelson nãoprecisou esperar pelo início do jogo para escrever acrônica. Com certeza, despachou o texto para o jor-

nal antes da chegada do repórter intruso. Os “idiotasda objetividade” se encarregariam de registrar, naspáginas esportivas, o jogo real. Porque o jogo deNelson seria lindo de qualquer maneira. E aos cretinos

 fundamentais? Aos cretinos fundamentais, nem água. A lista de surpresas nessa tarde no Leme não

se esgotaria aí. Quando deu por encerrada a entre- vista, Nelson pergunta ao repórter: “E então, vocême achou muito reacionário?”. Não, claro que não.Em seguida, pega o telefone, liga para a cozinha doHotel Nacional, identifica-se e faz uma pergunta a ummaitre provavelmente atônito: “Companheiro, aqui éNelson Rodrigues. Qual é o prato do dia?” Ouve aresposta em silêncio, desliga o telefone. Recolhido aosossego do lar, no fim de tarde de um feriado, jáparcialmente debilitado por doenças que lhe encur-

 tavam o fôlego, Nelson jamais se animaria a ir até oHotel Nacional para saborear o prato do dia. Mas fezquestão de tirar a dúvida com o maitre. Para quê?

 As cenas que Nelson Rodrigues protagonizounesta tarde no Leme já valiam por uma entrevista.

Mas o interrogatório ainda iria começar. A fera dis-pensa ao repórter um tratamento afetuoso: chama-me de “meu bem”. Alheio ao eventual cansaço deNelson, estico a conversa até o limite máximo. Nãoquero desperdiçar a chance de ouvir de viva voz as

 tiradas do cronista inigualável. A irmã do gênio é que,delicadamente, interrompe o questionário no instan-

 te em que Nelson fez uma pausa para engolir unscomprimidos. Ao autografar o exemplar do livro decrônicas O reacionário – consultado durante a entre-

 vista – Nelson Rodrigues oferece-me uma dedicató-

ria dúbia: “A Geneton, amigo doce e truculento –Nelson Falcão Rodrigues”.

Quase um quarto de século depois (a entre- vista foi gravada no dia 1 de maio de 1978) ouço no- vamente a fita, releio a transcrição da entrevista.Confirmo que Nelson Rodrigues é um caso rarís-simo de escritor que falava como escrevia. Só háoutro caso: Gilberto Freyre. Transcritas, as entrevistasdos dois em certos momentos se assemelham aos

 textos que escreviam, o que é uma façanha: a lingua-gem falada normalmente é mais pobre que a lin-guagem escrita. Mas a regra – guardadas as naturaisdiferenças entre o que se fala e o que se escreve –nem sempre valia para os dois.

Nelson Rodrigues,um cronistaesportivo quenão precisava ver o jogo

 F  O  T  O : R  E  P  R  O  D  U  Ç  Ã  O

Page 12: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 12/100

10 Continente Multicultural

Quando

 foi

 que

 Nelson

 Rodrigues

 descobriu

que

 nascera

 para

 escrever?

A coisa é a seguinte: escrever para mim, muito

mais do que uma decisão profissional, é um destino!Não é um caso de opção. Eu só tinha esta opção, uma vez que nasci assim.

O

 senhor

 se

 considera

 um

 escritor

 por

 vocação?

Digo que, no meu caso, eu nem precisava de vo-cação, porque o negócio era o óbvio – o óbvio ululante!Eu tinha de ser aquilo. Se você chegasse junto de mime pedisse para eu ter outra profissão, podia até dar di-nheiro para que eu tivesse outro destino, não seria abso-lutamente possível.

O

 início

 foi

 com

 ficção

 ou

 com

 jornalismo?

Eu estava no quarto ano primário na EscolaPrudente de Morais. Uma dia, a professora – quemandava a gente desenhar e colorir uma vaca de estam-pa, para que nós, alunos, fizéssemos em torno da vacatoda uma história – disse: “Olhem aqui: hoje, vocês vãoter de escrever da própria cabeça. Agora não é mais so-bre a vaca pintada”. E então deixou que cada um denós fizesse o seu drama, o seu projeto dramático.

Duas histórias tiveram o primeiro lugar. A domeu adversário era uma história de um daqueles mag-natas que davam passeios. Ele descrevia o passeio deum rajá no seu elefante favorito. E pronto. A minha foiinteiramente diferente. Eu fiz a história de uma moçaque era uma fera. Quase uma dama do lotação. Umdia, o marido chega em casa mais cedo e, quando em-purra assim ( imita o gesto de alguém forçando o trinco de uma porta), entra em casa, segura o amigo traidor e en-fia nele uma faca. Eu tive o primeiro lugar e empata-mos. O prêmio ao rajá e ao respectivo elefante era uma

concessão ao convencional.Isto foi a primeira vez em que eu era ficcionista.Todo o meu futuro está aí. Era a história de uma pobreadúltera que morreu de maneira tão melancólica. Otraidor morreu também de maneira melancólica: direi,a bem da verdade, que a minha história causou um hor-ror deliciado. Eu era, para todos os efeitos, um pequenomonstro.

Eu comecei com treze anos a trabalhar como jornalista profissional e repórter: esse é o caso. Não teria jeito: eu teria de meter uma bala na cabeça...

Para

 o

 senhor

 –

 que

 é

 considerado

 um

 mestre

nesse

 ofício

 –

 o

 que

 é

 necessário

 para

 retratar num

 tex

-

to

 teatral o

 mundo

 desses

 personagens

 suburbanos

 das

nossas

 cidades?

Em primeiro lugar, o sujeito tem de ser ficcio-nista. Precisa ser inteiramente sensível ao primeiro cha-mamento da profissão. Não basta apenas o gosto. Nãoé apenas uma facilidade, mas um destino ( pronuncia a

 palavra em tom dramático).

A

 inspiração

 é

 uma

 entidade

 que

 existe

 para

 o

senhor?

O negócio da inspiração é o seguinte: eu consi-dero a inspiração ao contrário de Valery, que só via amáquina individual do ficcionista. Aquilo é uma coisaque o ficcionista apura com o tempo, desenvolve com aexperiência.

Dentre

 as

 peças

 já

 escritas qual

 é

 a

 sua

 predileta?

Tenho várias prediletas. Eu diria mesmo quesão todas as prediletas. Não tenho prediletas ( ri). Todassão favoritas. Já pensei muito em querer discriminarqual a minha melhor peça, mas não sei.

Que

 autores

 brasileiros

 de

 hoje

 o

 senhor

 consi

-dera

 como

 verdadeiros

 artistas

 do

 teatro?

Vou pular esta, porque tenho autores que sãoinimigos meus. Pior do que o inimigo é o amigo. Umautor que é um amigo tem todos os defeitos...

O resultado da partida, asescaramuças dos jogadores,os esquemas táticos, todasessas bobagens nãopassavam de detalhessecundários aos olhos do gênio

coro dos vizinhos,na peça

Senhora dosafogados

Nelson Rodriguesmostrando suafaceta de ator 

hiperbolicamentedramático

Page 13: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 13/100

Continente Multicultural 11

O

 senhor

 diz

 sempre

 que

 “a

 admiração

 corrom

-pe”.

 É

 o

 caso?

É isso, é o caso. A admiração corrompe. O ami-go que é o nosso maior torcedor não é o maior coisa ne-

nhuma, porque ele próprio não consegue se prender.Então, começa a fazer insinuações e etc... Por isso euprefiro o inimigo ( ri).

Se o

 senhor

 fosse

 levado

 a

 fazer

 uma

 hipotética

opção

 entre

 o

 teatro

 e

 o

 jornalismo qual

 dos

 dois

 pre

-feriria?

O teatro! E não é um problema de qualidadeintelectual, não.

O

 jornalismo

 brasileiro

 continua

 padecendo

 de

objetividade

 –

 que

 o

 senhor

 considera

 uma

 “doença

grave”?

O idiota da objetividade é o jornalistaque tem grande fama, todo mundo, quandofala dele, muda de flexão. Mas eu acho oidiota da objetividade um fracasso. Isso num

 julgamento absoluto. O idiota da objetivida-de é também um cretino fundamental.

Quais

 foram

 as

 causas

 da

 ocorrência

desse

 culto

 à

 objetividade

 que no

 conceito

 do

senhor corresponde

 à

 falta

 de

 emoção?

Pois é, é esse o negócio ( ri de novo). Éa falta de complexidade do sujeito que diz sóa coisa certa ou aparentemente certa e não vêque todo fato tem uma aura. A verdade é que

o fato só, em si mesmo, é uma boa droga.Olhe aí (e mostra a crônica A desumanização da manchete):

Háquem considere Nelson Rodrigues o maior frasista da língua portuguesa. Acoleção de pérolas rodrigueanas daria para encher uma enciclopédia. O 

 jornalista Ruy Castro reuniu as “mil 

melhores frases” de Nelson no livro Flor de obsessão, da Cia. das Letras.Geneton Moraes Neto e Weydson Barros Leal também fizeram uma seleção de frases do teatrólogo.O primeiro, as mais contundentes; o segundo, as mais reflexivas. Leia a seguir: 

“O brasileiro é um feriado”.

“O Brasil éum elefante geográfico.Falta-lhe, porém,um rajá, isto é, um líderque o monte”.

“Sou a maior velhiceda América Latina. Jáme confessei uma múmia, com todos os achaques das múmias”.

“Toda oração élinda.Duas mãos postas sãosempre tocantes, ainda que rezem pelo vampiro de Düsseldorf”.

“O grande acontecimentodo século foi a ascensão espantosa e fulminante do idiota”.

“Na vida, o importanteéfracassar”.

“A Europa éuma burrice aparelhada de museus”.

“Hoje, a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar. O repórter mente pouco, mente cada vez menos”.

“Daqui a duzentos anos,os historiadores vão chamar este final de século de ‘a mais cínica das épocas’.O cinismo escorre por toda parte, como a água das paredes infiltradas”.

“Sexo épara operário”.

“Sem alma não se chupa nem um chicabom”.

 F  O  T  O  S : R  E  P  R  O  D  U  Ç  Ã  O

Page 14: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 14/100

O Diário Carioca não pingou uma lágrima sobreo corpo de Getúlio. Era a monstruosa e alienada obje-tividade. As duas coisas pareciam não ter nenhuma co-nexão: o fato e a sua cobertura. Estava um povo inteiroa se desgrenhar, a chorar lágrimas de pedra. E a re-

portagem, sem entranhas, ignorava a pavorosa emoçãoda população. Outro exemplo seria ainda o assassinatode Kennedy. Na velha imprensa, as manchetes chora- vam com o leitor. A partir do copy desk, sumiu a emoçãode títulos e subtítulos. E que pobre cadáver foi Ken-nedy na primeira página, por exemplo, do  Jornal doBrasil. A manchete humilhava a catástrofe. O mesmo eimpessoal tom informativo. Estava lá o cadáver, aindaquente. Uma bala arrancara o seu queixo forte, plástico, vital. Nenhum espanto na manchete. Havia um abis-

mo entre o Jornal do Brasil e a cara mutilada.A

 ausência

 de

 um

 ponto

 de

 exclamação

 numa

manchete

 faz

 falta

 ao

 leitor

 comum?

Faz. Eu digo o seguinte: na minha infância, ha- via primeiro o Correio da Manhã, um jornalaço. E havia A Noite – que vendia muito mais. E era um jornal mui-to mais amado pelo leitor. A Noite era um jornal amado(acentua a voz, ergue os braços). O sujeito comprava  A Noite disposto a ler ou disposto a não ler. Não fazia malisto. Ler ou não ler era um detalhe insignificante. Mas

o povo gostava desse jornal. E esse antigo jornalismopermitia, por exemplo, que você fosse fazer a coberturade um incêndio e levasse na mão uma casa de pássaro,

uma gaiola, e metesse a gaiola com um pássaro lá numcerto ponto da casa em chamas. E aí o repórter que nãoera idiota da objetividade dizia que o nosso queridofotógrafo ouviu toda a cantoria do canário. E terminavadizendo: “Morreu cantando” ( a essa altura, Nelson

 Rodrigues concede uma entonação teatral a esta frase). O re-pórter fora cobrir um incêndio. Mas o fogo não mataraninguém. E a mediocridade do sinistro irritara o repór-ter. Tratou de inventar um passarinho: enquanto o par-dieiro era lambido, o pássaro cantava, cantava. Só paroude cantar para morrer.

A história desse canário fez um sucesso tremen-do. Um sujeito queria uma vala especial para o canário,o nosso querido canário cantor. Era lindo. O jornalismode antigamente era mais ou menos assim. Hoje, a

reportagem de polícia está mais árida do que uma pai-sagem lunar. Lemos jornais dominados pelos idiotas daobjetividade. A geração criadora de passarinhos parouem Castelar de Carvalho, o autor dessa reportagem so-bre o incêndio. Eis o drama: o passarinho foi substituí-

12 Continente Multicultural

“Hoje, o bêbado é umsujeito que a psicanálisecura depois de quinze anos

de tratamento, quando,aliás, a cura já não adiantamais nada”

Foto da equipede O Cruzeiro,

em 1945(Nelson é o 4º

à esquerda).Para ele a nova

imprensa édominada pelos

idiotas daobjetividade

Na páginaseguinte,

Nelson nomomento da

entrevista aGeneton Moraes

Neto, em 1978

   F   O   T   O  :   R   E   P   R   O   D   U   Ç    Ã   O

Page 15: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 15/100

Continente Multicultural 13

do pela veracidade que, como se sabe, canta muito me-nos. Daí porque a maioria foge para a televisão. A no- vela dá de comer à nossa fome de mentira.

O

 senhor

 lê

 a

 chamada

 imprensa

 alternativa?Alternativa o quê?

A

 imprensa

 alternativa esses

 novos

 jornais

 que

têm

 surgido o

 senhor

 lê?

Eu leio de vez em quando, mas não faço ques-tão, porque jornal é uma coisa inquietante. O jornal nãoé o jornal do dia, é o jornal da véspera. Há anos não leioum jornal que não seja rigorosamente o jornal da vés-pera. Só sai o jornal da véspera e nunca o jornal do pró-prio dia. São fatos da véspera, figuras da véspera. O fatodo dia não existe e ou só existe para rádio e as TV’s. Nopassado, a notícia e o fato eram simultâneos. O atrope-lado acabava de estrebuchar na página do jornal. E as-sim o marido que matava a mulher e a mulher que ma-tava o marido. Tudo tinha a tensão, a magia, o drama-tismo da própria vida. Mas, como hoje só há jornal da véspera, cria-se uma distância entre nós e a notícia,entre nós e o fato, entre nós e a calamidade pública ouprivada. Servem-nos a informação envelhecida. Nós, jornalistas, é que estamos mais obsoletos, mais fora de

moda do que charleston, do que o tango.Não

 há

 nenhum

 fato

 do

 dia...

Pelo menos a gente tem essa impressão. O quenós chamávamos antigamente de furo não existe mais.Todos hoje acham que podem viver sem o furo, aopasso que, no meu tempo, quando eu era garoto, umfuro de reportagem era tudo. Era o grande momentoda carreira.

Agora, para falar de manchete, outro fato for-midável foi o seguinte: antigamente, o Largo do São

Francisco era o local próprio para o sujeito se manifes-tar. E quando havia muitos interessados em se mani-

festar, havia o diabo, o diabo! Um dia, fize-ram uma coisa qualquer com o chefe depolícia. E o chefe de polícia – que era umsanto – assinou uma portaria proibindo os

estudantes não sei de quê, nem ninguémsabe. Tudo que houve foi por conta da faltade bossa, da falta de inteligência dos nossosqueridos estudantes. E então os estudantesresolveram fazer um “enterro” do chefe depolícia – que era um velho general, sujeitoque acreditava em honra, num tempo emque ninguém sabia o que era honra. O ge-neral era um santo homem e então achouque aquilo era brincadeira de estudante. Elá foi ele dizendo aos queridos investigado-res que não queria machucar ninguém.Nada de bala, nada de punhal, dizia o nos-so general. E no dia do “enterro”, os estu-dantes carregavam o caixão, todos levandouma vela acesa. Era uma coisa só, com mil vozes cantando a marcha fúnebre, dando vivas à morte. Dois ou três homens de polí-cia, furiosos com a questão, simplesmenteacharam de matar três estudantes. Aí foiaquela coisa tremenda. Houve então uma

manchete, a manchete mortal da imprensabrasileira. Um jornal descobriu uma man-chete fantástica ( muda a flexão de voz, entu- siasmado). A manchete quase derruba a Pre-sidência da República, a Vice-presidência, ochefe de polícia imediatamente se demitiu,foi embora, não quis mais nada, achando-seculpado. Inventaram uma manchete queaté hoje eu gosto de ouvir...

Qual

 foi?

Era assim: “Primavera de Sangue”( pronuncia cada uma das sílabas devagar, como se saboreasse as palavras). A manchete quasederruba o presidente da República, o minis-tro da Guerra, um negócio terrível. E tudoisso pela beleza que se atribui à manchete.Quero dizer que, se você quiser, com umafrase bem trabalhada, você resolve o caso.

De

 quando

 foi

 essa

 manchete?

Eu era garoto, tenho agora sessentae cinco anos. E foi na altura dos meus dezanos. Agora, eu sei disso tudo pelas infor-mações do pessoal. O cara que fez esta

“O socialismo ficará como um pesadelohumorístico da História”.

“A pior forma desolidão éa companhiade um paulista”.

“Subdesenvolvimentonão se improvisa.Éobra de séculos”.

“As grandes convivênciasestão a um milímetro dotédio”.

“Todo tímido écandidatoa um crime sexual”.

“Todas as vaias são boas,inclusive as más”.

“O presidente quedeixa o poder passa a ser,automaticamente,

um chato”.

“Não gosto deminha voz.Eu a tenho sob protesto.Há, entre mim e minhavoz, uma incompatibilidade irreversível”.

“Sou um suburbano.Acho que a vida émais 

profunda depois da praça Saenz Peña. O único lugaronde ainda háo suicídio por amor, onde ainda se morree se mata por amor,éna Zona Norte”.

“O adulto não existe.O homem éum menino perene”.

“Como se sabe, a solidão humana são os outros”.

 F  O  T  O : W  I  L  S  O  N U  R  Q  U  I  Z  A

Page 16: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 16/100

14 Continente Multicultural

manchete ganhou uma fortuna, quinhentos mil-réis. Sóo Rockfeller tinha esse dinheiro na ocasião ( ri).

Quais

 são

 os

 políticos

 brasileiros

 que

 o

 fascina

-ram

 ou

 fascinam

 hoje?

( Pausa de alguns minutos) Num desses momen-tos, quem é o sujeito? Já começo a ficar amargurado,porque para achar um sujeito, poder dizer um polí-tico interessante... Eu acho que só Napoleão Bona-parte! ( ri).

O

 senhor

 já

 disse

 que

 um

 dos

 traços

 do

 caráter

nacional

 é

 o

 fato

 de

 que

 o

 brasileiro

 adere

 a

 qualquer

passeata.

 Quais

 seriam

 os

 principais

 traços

 do

 nosso

 ca

-ráter

 nacional?

O diabo é que o brasileiro não pode se esforçarmuito porque, senão, cai na chanchada trágica. O bra-sileiro é um sujeito que gosta de fazer farra, é um dessesque, em pleno velório, põe a mão na viúva. E a viúva étambém um caso sério, porque este negócio de viúva vocacional é um fato.

 Weydson Barros Leal

Nelson Rodrigues é uma unanimidade em pe-daços. Melhor: é cada um dos dois lados de uma outraconclusão: diante dele, ama-se ou odeia-se. Não se viuaté hoje a imparcialidade ou a passividade dos queconhecem sua obra – isto, uma “unanimidade”. E estapalavra, que também é um sentimento, como todas asoutras tocadas por ele, se transformou em uma po-tência aumentada ou invertida em sua grandeza, pois,

neste caso, foi chamada de “burra”. Assim nascia amaioria das máximas rodrigueanas, as expressões reco-nhecidamente suas, os axiomas que se transformaramem sua marca. Por isso é muito fácil – ou dificílimo(outra vez os dois lados) – recolher em sua obra frasesque possam enfeixar um “livro de frases”. Quase tudoque escreveu se presta ao espanto ou ao incomum. Daíporque considerar inestimável o trabalho de seu bió-grafo, o escritor Ruy Castro, ao organizar o volume Flor de obsessão (Companhia das Letras, 1997), noqual, com quase 1.000 frases, intenta um compêndiode máximas do autor pernambucano. É o próprio Ruy Castro que afirma, com a autoridade de seu conhe-cimento, que Nelson Rodrigues é “talvez o maior fra-sista da história da língua portuguesa”. E não exagera.O gênio do melhor criador do teatro brasileiro é equi-parável ao de qualquer gigante da literatura universalem invenção e originalidade. Infelizmente tal cons-tatação ainda causa polêmica e, como uma unanimi-dade, será sempre contestada.

A maneira de pensar e expressar de Nelson

Rodrigues era, no mínimo, original. Sua coragem paradizer o “indizível” ao revelar os mais secretos labirintosdo espírito humano fazia-o possuidor de um dom su-

perior entre os escritores universais: como um Tolstoi,ele apontava a verdade, e a verdade, às vezes, esconde-se escura em nós. Em sua obra reflete-se a vida abertae crua, e se não vivida por todos, reconhecida ou ima-ginada por muitos. Suas “perversões” – assim cos-tumam-se rotular os temas e abordagens de seus dra-mas e tragédias – fazem do espectador um condenadoa vivenciar, no livro ou no teatro, realidades que já ins-piraram mal-estar e indignação, mas nunca a confissãode que se estaria a ver uma ficção absurda: em Nelson,o pornográfico e suas permissividades constituem o te-cido em que a família é o núcleo deflagrador de tudo, ocentro em que toda danação se pressente ou se origina.

O drama rodrigueano, seja no conto, no ro-mance ou no teatro, é trágico quando o identificamospelas vicissitudes do desmoronamento moral; é épico,

 A desconstrução do lírico

   F   O   T   O   S  :   R   E   P   R   O   D   U   Ç    Ã   O

Page 17: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 17/100

Olhe: houve tempo em que a mulher mais sériado mundo, mais digna, mais respeitável se deixavaenvolver por um poeta, se abandonava por um soneto.Era outra vida. De repente eu fico olhando: era outra vida, outro homem. E havia a figura do bêbado. Hoje,o bêbado é um sujeito que a psicanálise cura depois dequinze anos de tratamento, quando, aliás, a cura já nãoadianta mais nada. Eu tinha um tio que se enamorouda minha tia Yayá. E se você perguntar: “Qual foi omaior homem que você viu no mundo?”, eu acho que

esse tio está no segundo ou terceiro lugar,porque o desgraçado, ele amava a minha tiaYayá. Ele já não precisava mais beber para

estar bêbado, de alto a baixo. E, com isso,fazia uma considerável economia de dinhei-ro... Em minha família houve um bêbadoindubitável, foi este meu tio Chico. Comosujeito que bebe muito, ele durou pra burro.Morreu com oitenta e tantos anos, semprebêbado, rigorosamente. Vem desse tio antigoo meu horror ao bêbado. Mas ele me en-sinou também uma série de coisas lindas.Por exemplo: o amor. Meu tio Chico meensinou a amar. Embriagou-se em cada mi-

nuto da lua-de-mel. Bebeu antes, durante edepois. Yayá costurava para o casal não mor-rer de fome. Mas eu, menino, queria amar eser amado como esse alcoólatra enlouque-cido. Era um amor que hoje não existiria. Aminha tia Yayá deu graças a Deus que ele ti- vesse se apagado. Agora, ninguém amamais, eis o que comecei a descobrir desde ostreze anos de batalha.

Por

 que

 é

 que

 o

 senhor

 diz desse

 jei

-to que

 hoje

 ninguém

 ama

 mais?

Meu bem, se a evidência objetiva eespetacular vale alguma coisa, o homemnão ama mais. E não ama mais porque onosso cenário se povoa de sujeitos que sãodébeis mentais absolutos. O sujeito já nãoacredita em amor, pra começo de conversa.Não acredita em amor. O sujeito acha quetodo mundo é a mesma coisa, e apesardisto, se diz marxista.

E eu me lembro de uma meninagrã-fina mesmo... Mas é incrível esse ne-gócio da mulher moderna ( fala com a voz arrastada, como se entoasse um lamento).Nunca ela foi tão infeliz e tão pouco femi-nina. Eu tive um cachorro, o nossoquerido Boogie-Woogie, que ficava diante daminha casa amando sua querida cachorra.Ela ficava lá, digníssima, empinada, rece-bendo as homenagens. Os carros passa- vam e achavam o cachorro louco. E essenosso amigo, o cachorro, era muito maishumano que a mulher dos nossos tempos.Elas se meteram a bestas.

Continente Multicultural 15

“Realmente, somos uns impotentes da admiração.Cochichamos o elogio e 

berramos o insulto”.

“O amigo éa desesperada utopia que todos nós perseguimos atéa última golfada de vida. Mas o trágico da amizade éa convivência.Talvez a solução fosse pôr um deserto entre nós e o amigo”.

“O amor éo casal. O simples casal basta para inundar o universo. E o casal funda a grande solidão”.

“Sempre que um homeme uma mulher se gostam precisam estarprodigiosamente sós,como se fossem o primeiro,único e último casal

da Terra”.

“A úlcera nasce doendo.Não hádúvida, dói nos primeiros dias. Mas, a partirda primeira quinzena,começa uma adaptação recíproca. A lesão e o doente passam a se entender maravilhosamente. Éo que sucede com as longas 

conveniências matrimoniais”.

“Pode-se viver para um único livro de Dostoievski. Ou uma única peça de Shakespeare.Ou um único poema denão sei quem. O mesmo livroéum na véspera e outrono dia seguinte. Pode haverum tédio na primeira leitura.Nada, porém, mais denso,mais fascinante, mais novo,mais abismal do que a releitura.”

ao expressar a procura ou a revelação de um des-conhecido interior – nosso também – às vezes íntimoe monstruoso, às vezes alheio e heróico; mas, acimade tudo, é um drama lírico, poético, que talvez nãoseja melhor compreendido por tratar o autor de des-onstruir a nossa dor, distribuí-la com outros, codifi-cá-la com os mais sofisticados processos psicológicosidentificados em manias, angústias, traumas, revol-tas, taras, obsessões. Essa desconstrução nos põe di-

luídos em cada um de seus personagens: e não so-mente o nosso medo, a nossa secreta identidade, mastambém a nossa repulsa ao descartarmos o compor-tamento que não julgamos à nossa altura, digno detão imune caráter, e que nos divide em pedaços entreo santo e o canalha, desconfiados que somos apenashumanos. Assim se resumem os personagens naobra de Nelson Rodrigues: o homem (o pai, o mari-do, o noivo, o amante); a mulher (a mãe, a esposa, afilha, a prostituta); o amor (o pêndulo da fidelidade,suas tentações) e, por trás de tudo, a imensa solidãohumana – a busca do outro.

Em Nelson, opornográfico e suaspermissividades constituemo tecido em que a família éo núcleo deflagrador de tudo, o centro em que toda a danação sepressente ou se origina

 Weydson Barros Leal é poeta

Page 18: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 18/100

Dizem-me que um “colunista” – pobre palavrade origem tão nobre quanto, quase sempre, degradada– estranhou que, em artigo para uma revista do Rio, eu

considerasse Nelson Rodrigues não só “um novo Eçade Queiroz” como, na prosa jornalística, “mais vigorosodo que Eça”.

Nada mais cristalinamente exato como equiva-lência. Estou agora mesmo procurando desenvolvernum pequeno ensaio o que chamo Sugestões para uma sociologia das equivalências literárias. Uma sociologia que,dentro da Sociologia da Literatura, considere equiva-lências de conteúdos sociais – em poemas, em roman-ces, em ensaios, em peças de teatro – ao mesmo tempoque coincidências de formas de expressão literária.

As equivalências da espécie aqui sugerida exis-tem. Precisam, é certo, ser identificadas com extrema

acuidade. Mas, uma vez identificadas, dão ao estudocomparado de literaturas que se faça sob um critériosociológico, complementar do estético, uma extraordi-

nária riqueza.Nelson Rodrigues avulta, na literatura atual doBrasil, como o nosso maior teatrólogo. O maior de hojee o maior de todos os tempos. Pode ser considerado umequivalente, nesse setor, do Eugene O’Neill: do que foiO’Neill na literatura dos EUA.

Mas ele é também o mais incisivamente escritor,sem deixar de ser vibrantemente jornalístico, dos cro-nistas brasileiros de hoje. O maior dos jornalistas lite-rários – potentemente literários – que tem tido o Brasil.Nesse setor é um equivalente do que foi e é – quem o

superou? – Eça de Queiroz na literatura portuguesa.Apenas com esta diferença: no brasileiro há um vigor

16 Continente Multicultural

Nelson Rodrigues, escritor Gilberto Freyre

   F   O   T   O  :   R   E   P   R

   O   D   U   Ç    Ã   O

Page 19: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 19/100

Continente Multicultural 17

Nelson Rodrigues avulta,na literatura atual do Brasil,como o nosso maior  teatrólogo. O maior de hojee o maior de todos os tempos

de expressão maior do que em Eça – um Eça até hojeinatingido e, talvez, inatingível, na graça artística quesoube dar ao seu jornalismo literário.

Por jornalismo literário não se deve entender o jornalismo que se ocupe de assuntos literários; e sim o

que se caracterize pela potência literária do jornalista-escritor. Um característico relativamente fácil de sercaptado: contanto que se dê tempo ao tempo.

O escritor-jornalista ou o jornalista-escritor é oque sobrevive ao jornal: ao momento jornalístico. Aotempo jornalístico. Pode resistir à prova tremenda depassar do jornal ao livro.

As correspondências de Eça de Queiroz, deParis e da Inglaterra, para jornais portugueses e brasi-leiros, passaram a ter seu maior esplendor quando pu-blicadas em livro. E esse esplendor continua. Enquan-to artigos, para o momento em que aparecem em jornais, magníficos – magníficos como pura expressão jornalística – reunidos em livros não resistem à terrívelprova: morrem. Fenecem. Rosas de Malherbe. Con-chas de Emerson. Vários exemplos poderiam ser invo-cados dessa precariedade da expressão apenas jorna-lística: os artigos reunidos em livro de Costa Rêgo – jornalista magistral; os de Anibal Fernandes – outro jornalista magistral; os de Plínio Barreto – ainda outro jornalista admirável. Mas admiráveis, os três, quando

lidos quentes e quase intoleráveis quando frios.Em Nelson Rodrigues, como em Eça de Quei-roz, o escritor vence o tempo como escritor, emboraservindo-se do jornal; da correspondência para jornal;do comentário ao acontecimento do dia. Nelson Rodri-gues é, dos dois, o mais vigoroso nessa espécie de ex-pressão literária: a transferível de jornal para livro. Eleé lido em livro, tão forte de virtude literária, quanto lidoem jornal. Repete Eça. Repete Eça, neste particular,com maior vigor do que Eça.

A Companhia das Letras estálançando toda a obra não teatral deNelson Rodrigues. São, por enquan-to, 16 títulos. Desses, dois publicadospela primeira vez em livro ( A mentirae Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo, que ele escreveu com o pseu-dônimo de Myrna). A coleção foicoordenada na primeira parte peloescritor Ruy Castro e agora passa às mãos do diretor

teatral Caco Coelho.Os livros são em sua maioria compilações defolhetins publicados em jornais, durante umperíodo de 30 anos. Na coleção há ainda umareunião das maiores crônicas esportivas escritas peloteatrólogo e uma coletânea organizada por Ruy Castro das cem melhores frases rodrigueanas. Dos16 títulos, apenas O casamento foi feito diretamenteem formato de livro e, na época do seu lançamento,em 1966, foi censurado pelo governo de CasteloBranco. Entre os lançamentos, provavelmente,  A

 vida como ela é... seja a obra mais conhecida. Sãoquase 2.000 histórias publicadas, diariamente, no jornal cariocaÚltima Hora, durante dez anos, todascentralizadas no adultério, que deixaram a fama de“tarado” do escritor ainda maior.

Além de Myrna, Nelson Rodrigues tam-bém escreveu suas histórias com outro pseudônimofeminino: Suzana Flag. Com esse nome elepublicou folhetins nos jornais de Assis Chateau-briand nos anos 40. O segundo deles, Escravas do

 amor, foi lançado em livro na época, mas só agoratem a segunda edição, pela Companhia das Letras. Núpcias de fogoé o outro livro da coleção que sai como pseudônimo de Suzana Flag.

Embora tenha sido muito tempo visto comdesconfiança pela crítica literária brasileira, oessencial da prosa rodrigueana está nessa coleção. Opróximo lançamento para este mês chama-se O profeta tricolor, um livro de crônicas sobre o Flu-minense organizado por Nelsinho, filho do mestre.Toda a complexidade e drama do escritor podem

ser vistos por quem ainda não teve nenhuma chancede conhecer o mundo desse gênio que pode parecerpolêmico, mas não é nada óbvio.

O outro lado do dramaturgo

Excerto de texto utilizado em prefácio da primeira edição dolivro O reacionário, de 1978

Page 20: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 20/100

18 Continente Multicultural

Apesar de ter sido criado e feito toda a carreirano Rio de Janeiro, foi do Recife que Nelson Rodriguesherdou suas raízes. Ele nasceu no dia 23 de agosto de1912 e, aos três anos e meio, mudou-se para a CidadeMaravilhosa com a mãe, Maria Esther, e mais cincoirmãos. O pai, Mário, diretor do Jornal da República,tinha ido antes por causa de desavenças com políticosinfluentes da época, como Manuel Borba e DantasBarreto. Admirador de soldados audaciosos e estrate-gistas, Mário homenageou o almirante inglês LordNelson, vencedor da Batalha de Trafalgar, em 1805,

pondo-lhe o nome em um dos filhos.Nelson Rodrigues Filho, o Nelsinho, diz que o

pai sempre lembrava a cidade onde nasceu quando iaà praia, mesmo tendo deixado a capital pernambucanaem tão tenra idade. “Ele dizia que tinha uma relaçãomuito forte com o mar, que o fazia recordar a infânciano Recife”, afirma. As marchinhas de frevo eram outrapaixão do dramaturgo, pois elas o faziam ficar maisperto da terra natal. “Uma, em especial, Evocação nº1,de Nelson Ferreira, ele ouvia sempre”, comenta Nel-

sinho, que, de tanto escutar, acabou decorando os ver-sos: “Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon,cadê teus blocos famosos...”

 Joffre Rodrigues lembra apenas que o pai ado-rava pitangas e, sempre que as saboreava, falava daVeneza Brasileira. Na biografia O anjo pornográfico, oautor Ruy Castro relata que Nelson voltou ao Recifeapenas uma vez, para passar férias, na adolescência. Ospais convenceram-no a ir para que esquecesse as pai-xões “avassaladoras” que tinha a cada mês no Rio de Janeiro. Corria o mês de maio de 1929 e Nelson tinha17 anos, idade que, segundo Ruy Castro, “lhe permi-tiu redescobrir Olinda, conhecer a praia de Boa Via-gem e mergulhar fundo na boêmia local, pois não saía

da zona de mulheres do Cais do Porto, consideradaproporcionalmente a maior da América do Sul”.

Sangue pernambucano

Tatiana Resende

Explique

 as

 causas

 do

 rancor

 e

 da

 ironia

 feroz

que

 o

 senhor

 cultiva

 diante

 de

 seus

 personagens como

por

 exemplo “as

 verdadeiras

 grã

-f inas”...

O que eu acho é que a gente diz “grã-finas” sem

achar que elas tenham obrigação de agir como grã-fi-nas. E elas não agem como deviam ser. Maria Antonie-ta podia dizer: “Ah, eu sou grã-fina...”. Por isso, certa vez, o povo estava urrando de fome de fora do palácioe ela disse: “Se não têm pão, comam brioche”. Então, aMaria Antonieta é que poderia bradar: “E, portanto,eu posso dizer que sou grã-fina”. Ela derrubou um er-ro, derrubou um regime horrendo. A única grã-fina domundo é a Maria Antonieta. De então para cá nuncamais vi uma grã-fina. E muito menos uma grã-fina

paulista, que é gorducha, porque tem dinheiro à beçapara comer. E come. Mas não existe. A nossa queridagrã-fina precisa de dinheiro. Como precisa de dinheiro,e está furiosa porque não tem, então assume diversas

atitudes, como, por exemplo, dizer numa mesa: “Naminha casa, só as criadas vêem televisão”. As grã-finasnão existem. A única descoberta que eu fiz com as grã-finas foi esta: elas não existem.

O

 senhor

 não

 volta

 ao

 Recife

 porque

 tem

 medo

de

 avião?

Acho chato viajar de avião, não quero voar, a nãoser caso de vida ou morte. Tenho horror às viagens. Apartir do Méier, começo a ter saudades do Brasil.

Nelson voltou ao Recife apenasuma vez, para passar férias,na adolescência. Os paisconvenceram-no a ir para queesquecesse as paixões“avassaladoras” que tinha a cadamês no Rio de Janeiro

Page 21: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 21/100

Continente Multicultural 19

O acompanhante nessas aventuras era o primoAugustinho, embora, de dia, Nelson preferisse ficarcom a prima Netinha, que só conheceu naquela época,mas com quem já se correspondia há muito tempo.Em Alma infantil, inclusive, dedicou-lhe poemas, mes-mo só a tendo visto em fotografias até então.

Naqueles dias, o jovem Nelson adorava ficar jogando bolinhas de pão nos tios e acusar a prima,além de brincadeiras bem mais nefastas, como se deitarno meio da rua e fingir que tinha sido atropelado.“Eles eram os primos mais queridos. Netinha sempredizia que Nelson a chamava de ‘Netinha, minhaadolescência’, pois ela conseguia alegrá-lo sempre”,recorda Augusto Rodrigues, filho de FernandoRodrigues, irmão de Augustinho.

Atualmente proprietário da Rodrigues Galeria

de Arte, no Torreão, Augusto diz que se encontroupoucas vezes com o primo ilustre, todas no Rio de Janeiro, quando estudava na Tijuca. “Apesar de tudo

que escrevia e das polêmicas que causou, ele era umconservador”, define. A opinião é compartilhada poroutro primo distante de Nelson, Reinaldo de Oliveira,filho de Valdemar de Oliveira e Diná, que, por sua vez,era filha de Alfredo Rosa Borges, primo de MárioRodrigues.

“Foi o teatro que nos aproximou. Quandofomos fazer uma turnê no Rio de Janeiro, em 1953, elenos visitava quase todos os dias”, diz Reinaldo. Outrarepresentante ilustre dos palcos pernambucanosconheceu Nelson nessa temporada carioca, Geninhada Rosa Borges, esposa de Otávio, irmão de Diná.“Ele era uma pessoa maravilhosa, simples, mas, comoéramos muito jovens naquela época, ele preferia ficarconversando e trocando idéias como o Dr. Valdemar”,conta Geninha.

O

 senhor

 não

 pensa

 em

 voltar?

De vez em quando eu faço evocações. Toda aminha infância tem gosto de pitanga e de caju. Pitangabrava e caju de praia. Ainda hoje, quando provo uma

pitanga ou um caju contemporâneo, sou arrebatadopor um desses movimentos proustianos, por um dessesprocessos regressivos e fatais. E volto a 1913, ao mes-mo Recife e ao mesmo Pernambuco. Alguém me le- vou à praia e não sei se mordi primeiro uma pitanga ouprimeiro um caju. Só sei que a pitanga ardida ou o cajuamargoso foi a minha primeira relação com o universo.Ali eu começava a existir.

Geneton Moraes Neto é jornalista

Tatiana Resende é jornalista F  O  T  O : R  E  P  R  O  D

  U  Ç  Ã  O

Nelson Rodrigues tinha paixão pelofrevo, emparticular oEvocação nº1, deNelson Ferreira

Page 22: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 22/100

20 Continente Multicultural

FERREIRA GULLAR

m estudante de Jornalismo, de 21 anos, cha-mado Cleiton Campos, entrou na 25.ª Bienal de

São Paulo com um pequeno quadro de sua autoria e o

pôs em uma das salas da mostra, como se o quadrofizesse parte dela. Deixou-o ali e foi embora. A partirdaquele momento, tornara-se expositor no famosocertame internacional do Parque Ibirapuera.

Embora a imprensa não tenha dito isto, estoucerto de que foi o próprio Cleiton quem telefonou paraalgum jornal ou emissora de televisão para dar notíciade sua traquinagem, que logo virou manchete. Se nãotivesse feito isso, ninguém teria notado a presença desua pequena tela clandestina em meio a tanto treco semgraça que a Bienal expõe, desde pedaços de madeira

ou metal até papelão rasgado, tudo isso preso nasparedes ou pendurado, ou mesmo solto no chão.

O gesto não regimental de Cleiton tornou-seconhecido da mídia e da direção do certame. E sabemqual foi a reação do sr. Carlos Bratke, presidente daFundação Bienal de São Paulo? Ele aprovou a ini-ciativa do jovem por considerar que a tela representava“uma obra de arte conceitual”.

“Acho que o rapaz é muito inteligente”, decla-rou. “A polêmica que causou foi digna de um bom ar-tista performático”. Perguntado se a pequena tela seriamantida como parte da exposição, Bratke respondeu:“Não vou analisar o quadro em si, mas [Cleiton] con-seguiu superar, em comoção, os outros artistas perfor-

máticos. E sem ter sido convidado! Acho que tem fu-turo na arte conceitual”.

O fato merece algumas considerações por ser

bastante elucidador de um certo tipo de atividade ditaartística e das instituições que o promovem. O presi-dente da Bienal afirma que o jovem Cleiton tem futurona arte conceitual, pois superou os outros artistas per-formáticos que fazem parte da mostra, “e sem ter sidoconvidado!”. O sr. Carlos Bratke parece não se darconta do que afirma: se o rapaz tivesse sido convidado,seu gesto simplesmente não teria ocorrido, já queconsistiu em introduzir sua tela numa mostra para aqual não fora convidado. A “obra” é isso! E se com es-se gesto ele superou os que foram convidados – con-

forme a avaliação do próprio presidente da Bienal –devemos concluir, primeiro, que os bons artistas são osque não aceitam o convite da Bienal para expor; se-gundo, que os que expõem na mostra não têm qual-quer importância, pois o que realmente conta é pro- vocar escândalos. Arte (se se pode chamá-la de Arte)para a mídia, o que não passa de exibicionismo.

Dessa forma o sr. Bratke põe em luz, sem seaperceber disso, a contradição básica deste tipo demanifestação que se quer rebelde e institucional, aomesmo tempo. É essa contradição que o torna para-doxal ao aprovar um ato que infringe o regulamentoda instituição que dirige e considerar o infrator “artis-ticamente” superior aos que se submeteram ao regula-

O preço do fingimento

Sem se dar conta, o presidente da Fundação Bienal de SãoPaulo, sr. Carlos Brakte, expõe a contradição básica de um tipo

de arte que se quer rebelde e institucional ao mesmo tempo

U

Page 23: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 23/100

Continente Multicultural 21

mento. E nisso ele tem razão, pois, quem opta por

manter-se fora de qualquer norma ou limite, como ar-

tista, não deveria nunca aceitar participar de exposições

institucionais, uma vez que “institucional” é o que ins-

titui, estabelece, obedece a normas. Seria possível con-ceber Rimbaud ou Lautréamont candidatando-se à

Academia Francesa?

Com isso fica evidente a pouca seriedade de tal

arte e de tais instituições, assentadas sobre uma base

farsesca: “Você finge que é rebelde e eu finjo que

acredito...” Sim, porque também um dos luxos da

burguesia, hoje, é ser,

além de rica, anti-

burguesa, “rebelde”,

apropriando-se assim

da única coisa querestava aos seus opo-

sitores. Por isso mes-

mo, a bunda fica de

fora: o presidente da

Bienal não pode con-

denar a violação do

regulamento da insti-

tuição que dirige por-

que, se o fizer, estará

contra a “rebeldia”,que a Bienal está ali

para acolher e presti-

giar. Ou seja, se a

Bienal punir o rebel-

de, se desmascara,

mostra que é uma

instituição como as

demais, põe em questão a modernidade da burguesia

brasileira que, desse modo, pareceria burguesa...

Outros artistas já procuraram explorar as con-

tradições das mostras oficiais. Na mesma 25.ª Bienal,surgiu uma proposta que, embora partindo de um ar-

tista convidado, atingia diretamente as normas da ex-

posição: abrir, em algum ponto do prédio, uma porta

clandestina por onde o público pudesse entrar sem pa-

gar. E mais uma vez os responsáveis pelo certame en-

contraram-se diante da velha contradição: como rejeitar

uma proposta rebelde se somos uma instituição de-

fensora da arte rebelde? Acredito que, secretamente, eles

devem ter pensado que “rebeldia tem limites”. Deitar-

se no chão, no dia do  vernissage, para ser pisado pelos

convidados, é uma rebeldia aceitável, mas abrir uma

porta clandestina para que o público entre sem pagar é

demais, é atentar contra o faturamento da mostra.

A verdade, porém, é que, mesmo praguejando

contra o autor da proposta inconveniente, os respon-

sáveis pela Bienal encontraram uma saída concilia-

tória: far-se-ia sim uma entrada clandestina, mas ela só

ficaria aberta durante uma hora, e por ela só poderiamentrar, no máximo, cinco pessoas por dia. Trata-se,

como se vê, de um novo tipo de rebeldia: a rebeldia

regulamentada...

Ora, se a arte conceitual é coisa velha, os

problemas que a envolvem também o são. Estão na

sua origem mesma e começaram com o primeiro

gesto rebelde de seu

criador. Em 1917,

Marcel Duchamp,

que fazia parte do

conselho do Salão

dos Independentes

de Nova Iorque, en-

 viou para lá o seu

hoje célebre urinol,

assinado Mutt. O

 júri (rebelde) teve de

aceitar a “obra”, mas

a contragosto, tanto

que, na hora de ex-

pô-la, a escondeu.No dia do vernissage,

Duchamp procurou

por seu urinol e só

foi encontrá-lo, de-

pois de muito tem-

po, atrás de um ta-

bique, nos fundos

do salão. Zangou-se e se demitiu do conselho. Queria

que sua rebeldia fosse aceita pela instituição. Ele foi,

portanto, não só o inventor da “antiarte” (mudada pa-

ra “arte conceitual”), como também o primeiro a vivera condição contraditória que haveria de acompanhá-la

até os dias de hoje: a de ser rebeldia financiada e ofi-

cialmente reconhecida.

A lição que se deve tirar disso tudo não é a de

que não se deve ser rebelde, mas, sim, a de que não se

deve fingir-se de rebelde. Fora disso, sabe-se que o

 valor da arte não está em ostentar rebeldia, mas em ser

efetivamente expressão do talento e da mestria do

artista, para com isso deslumbrar ou comover as pes-

soas. O cinismo niilista de Duchamp, compreensível

em sua época, não tem mais cabimento.

 F  O  T  O : R  E  P  R  O  D  U  Ç  Ã  O

O célebre urinol queDuchamp enviouao Salão dosIndependentes deNova Iorque,em 1917. O júri teveque aceitar a “obra”,mas, na hora deexpô-la, a escondeu

Ferreira Gullar é poeta, ensaísta e crítico de arte

Page 24: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 24/100

triunfalismo cedeu ao derrotismo, a vanglóriadeu lugar à tristeza e o orgulho virou humilha-

ção. Eis o resumo da história da Argentina nas últimasdécadas. Um país marcado pelas feridas de desmandose corrupção, onde os intelectuais falam para governan-tes sem ouvidos, segundo o jornalista e escritor Tomás

Eloy Martínez. Uma terra cujo povo que se gabava desua ligação com o mundo desenvolvido, sobretudo como Velho Continente, e hoje reclama da globalização.

Diretor do Programa de Estudos Latino-Americanos da Rutgers University, em Nova Jérsei,nos Estados Unidos, Martínez deu um precioso teste-munho de como os seus conterrâneos têm sofrido asdores da crise econômica e política que assola o país.Ele foi o vencedor da última edição do Prêmio Alfa-guara, para autores de língua espanhola, com o ro-mance O vôo da rainha, que enfoca a Soberba e fechaa coleção Plenos Pecados, da editora Objetiva. Ocenário do livro é uma Argentina desolada pela açãode políticos populistas e corruptos, numa trama livre-mente inspirada no passado recente e amarrada pelasrelações entre a imprensa e o poder. Uma história deamor vivida dentro de uma redação de jornal servecomo fio condutor para apontar os pecados da nação.

Nesta entrevista, o autor de Santa Evita, best- seller com mais de 150 mil exemplares vendidos nomundo, explica por que a crise argentina é uma crise

de autoritarismo, denuncia a ignorância dos presiden-tes no seu país e diz que a elite cultural é impotentediante de uma elite política analfabeta.

Fábio Lucas Ospecadosde uma

nação

 Autor do best-seller Santa Evita e do romance O vôo da rainha,lançado pela editora Objetiva, dentro da coleção Plenos Pecados,o jornalista argentino Tomás Eloy Martínez analisaa situação política e econômica do seu paíse a literatura latino-americana atual

O

  C  O  N  V  E  R  S  A  F  R  A  N  C  A

22 Continente Multicultural

Jornalista e escritor rgentino Tomás Eloy Martínez, ganhador o Prêmio Alfaguara,

ara autores de línguaespanhola

Page 25: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 25/100

Para os chineses crise é também oportunidade.

É verdade que para os artistas a crise é necessária para

a criação?

Como a palavra chinesa indica, uma crise podeir em duas direções. Uma direção positiva e uma nega-tiva. Uma pode destruir você, a outra pode convertê-

lo numa pessoa melhor. Depende da força interna quese tenha, da harmonia interna e da vontade que se pos-sua para desafiar a crise. A crise revela os homens, ospaíses e as famílias, tal como são. Na crise você enxergaexatamente a sua identidade. Se ela for positiva, forte,harmoniosa, você poderá sair bem da crise. Se estiverfragmentada, se você é muito pessimista, a crise o des-truirá. Depende da qualidade do ser humano, da fa-mília ou da nação que desafia a crise.

Então podemos dizer que o que está em jogo

na Argentina é a identidade da nação?

A crise argentina é uma crise de autoritarismo.A Argentina nunca superou o autoritarismo que co-meçou em 1930, com o primeiro golpe militar, se acen-tuou no peronismo e continuou com a alternância degovernos democráticos débeis e ditaduras militares.

O autoritarismo se instalou na sociedade. Nestemomento o autoritarismo se encarna em uma série desenhores feudais, que são os governadores peronistas.Cada um deles está arrancando pedaços do país, para

se apropriar do pouco que resta da Argentina.A Argentina sofreu com muitos maus gover-nantes. Diferentemente do que ocorre no Brasil, no

Chile ou no Uruguai, quase todos os nossos governan-tes têm uma inteligência e uma honestidade inferioresà média dos habitantes. A responsabilidade é dos ar-gentinos que os elegeram. Mas em muitos casos nãohavia opções.

Como  o  senhor  descreveria  os  últimos  presi-dentes argentinos?

Padecemos de um governante cheio de pro-messas, como Alfonsín, depois da horrível ditaduramilitar. Alfonsín quis julgar os militares e depois osliberou. Esse movimento de caranguejo causou muitosdanos ao país. Depois veio um presidente como Me-nem, a máxima corrupção e a máxima frivolidade, queconseguiu o milagre de vender todos os bens da Ar-gentina e endividar ainda mais o país, simultaneamen-te. É um milagre raríssimo. É como se alguém ven-desse sua casa, seus móveis, sua roupa, e depois termi-nasse mais pobre. Isso foi Menem. E logo depois foi a vez de um presidente inepto, uma espécie de zumbi,como De La Rua. Agora vivemos o momento dosgovernadores-senhores feudais.

E como sair dessa seqüência?

No momento em que o país encerrar a batalhapelo poder, do peronismo, por um lado, e da torpezados radicais, por outro, haverá um país melhor. Tocará

o fundo do abismo e saltará adiante melhor. Pior doque está, não pode ficar.

 F  O  T  O  S : ( T  O  M  Á  S E  L  O

  Y M  A  R  T  I  N  E  Z ) D  I  V  U  L  G  A  Ç  Ã  O

 ; (  D  E  M  A  I  S  F  O  T  O  S ) D  I  D  A S  A  M  P  A  I  O

 / A E

Para Martínez, os trêsúltimos presidentesargentinos antes dacrise são culpados. Alfonsín, por nãocumprir o queprometeu; Menem,por ser frívolo ecorrupto; De La Rua,

por ser umpresidente inepto,“uma espécie dezumbi”

Continente Multicultural 23

Page 26: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 26/100

   F   O   T   O   S  :   R   E   P   R   O   D   U   Ç    Ã   O

  ;   A   L   I   B   U   R   A   F   I   /   A   F   P

24 Continente Multicultural

O protagonista de Vôo da rainha, Camargo, é odiretor de redação de um  jornal, o representante daelite cultural argentina. A história dele pode ser vistacomo um exemplo do comportamento e da reação daelite cultural argentina frente à crise?

Sim, por duas razões. Ele também pode ser umsímbolo do que a Argentina é, como país. Por um lado,Camargo não tolera o abandono. Para a Argentina,também é uma enorme surpresa sentir que é um paísabandonado, que sua queda não tem importância para

quase ninguém. Essa é uma enorme surpresa. Segun-do, Camargo começa lutando contra a corrupção polí-tica e econômica. Ao mesmo tempo, é vítima de umacorrupção de outro tipo, moral. Que não tem a vercom dinheiro, mas com a destruição de si mesmo. Dealgum modo, é a destruição da identidade. Na crise,Camargo aparece como uma pessoa negativa, e isso éimportante para a história.

Qual seria o papel dessa elite cultural, que sem-pre  se  orgulhou  de  ser  atuante  e  venerar  seu  país,diante de uma nação humilhada?

A elite atua, fala e grita. E aponta os males dopaís incessantemente. O que acontece é que os inte-lectuais argentinos, agora, não têm nenhum peso nopaís. Porque o intelectual só pode ser ouvido quandoos governantes lêem. Se os governantes são analfabe-tos, não há nenhuma possibilidade de diálogo. Paraque um intelectual tenha peso na comunidade, é pre-ciso que o poder o reconheça como tal. Como no Bra-sil, no México, na Venezuela e na Colômbia.

O seu romance trata do pecado da soberba. Atéque ponto a soberba se misturou com o orgulho nopassado da Argentina?

O pecado da soberba foi o primeiro pecado dahumanidade, pecado que Satanás cometeu contraDeus. A Argentina, mais do que a soberba e o orgulho,cometeu o pecado da onipotência. Os argentinos di-ziam: “Isso não pode acontecer comigo”. O sentimen-to de imortalidade era algo muito argentino. “Quemsou eu para merecer isso?”, se perguntam agora.

A crise  também  traz um  lado  simbólico, poisafeta um país, dentro da América Latina, que era uma

vitrine cultural e detinha uma  ligação cultural muitogrande com a Europa. Por muito tempo se disse que aArgentina era culturalmente superior aos demais paísesdo continente. O senhor concorda com essa visão?

A cultura argentina é muito viva, forte, mas nãoacho que se possa colocá-la acima da cultura do Brasil,por exemplo, que é muito rica também. Aqui há cine-ma de enorme vitalidade, literatura, artes plásticas,música. Nenhum argentino sensato pode dizer quenossa cultura é mais importante que a do Brasil. To-davia, essa cultura está viva. Em plena adversidade, ocinema e a literatura argentinos seguem adiante – eesse é o único oxigênio que possui a sociedade, nestemomento, para sentir-se viva.

A vida  cultural  intensa  também  significava  aintegração do cidadão argentino com outras partes domundo. Não chega a ser irônico que agora esse mesmocidadão argentino, que se gabava de ser globalizadoculturalmente, se veja vítima de uma globalização eco-nômica?

É irônico. Na ordem cultural é algo curioso.Acabo de voltar da Espanha, e este é um momento emque a cultura argentina, os filmes e a literatura estãosendo procurados com muito interesse. A globalização

O jornalista brasileiroPimenta Neves, ex-retor de redação do

jornal O Estado deão Paulo, processado

pelo assassinato danamorada, é citado

no livro do autor argentino

Page 27: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 27/100

Continente Multicultural 25

está ajudando a cultura argentina. Mas a globalizaçãoeconômica destruiu a Argentina. Há que separar umpouco as coisas. De um lado, a globalização econômi-ca, e de outro, a globalização cultural.

A globalização cultural é positiva, na medidaem que nos permite ver, primeiro, muitos filmes deHollywood, o que é péssimo, mas também o cinemabrasileiro, que é ótimo, o cinema espanhol, o cinemafrancês, o cinema escandinavo. Também nos ofereceuma forma de comunicação tecnológica, através da In-

ternet, que é positiva. O problema é quando os conglo-merados culturais, jornalísticos e de grandes empresas,oprimem o artista. Eles somente publicam o que vendemilhares de exemplares, é rentável. Isso é perniciosopara a arte, porque a arte cresce e melhora através daexperimentação e da busca de outras linguagens.

O senhor afirmou recentemente que “em todasas  diferenças  há  semelhanças,  e  em  todas  as  seme-lhanças há diferenças”. Como o senhor compararia omodo como o Brasil e a Argentina têm encarado suascrises e evoluído, do ponto de vista cultural, após operíodo autoritário?

Tanto no Brasil como na Argentina, os ditado-res militares foram assassinos e torturadores. Na Ar-gentina, além de assassinos, foram ladrões. Assaltantesde bancos, roubaram as casas, as propriedades, comoum batedor de carteiras comum. Os militares argen-tinos foram depredadores. Foi difícil reconstruir umpaís depois desse roubo gigantesco. No Brasil, houveuma alternância democrática positiva. Com governan-

tes discutíveis, porém que reorganizaram o país. Ape-sar dos conflitos econômicos e dos níveis de desem-prego, o Brasil é um país que está vivo e em cresci-mento. E tem um presidente que, erros à parte, é um

intelectual. E um intelectual é uma figura importante àfrente de um país, porque tem consciência da História.E sabe que seu mandato, seu destino pessoal, tem umarelação estreita com o destino de seu país. Na Argentinaisso não aconteceu. Não tivemos a sorte que o Brasilteve nesse sentido. Tivemos presidentes idiotas, frívolose analfabetos. Não tivemos presidentes intelectuais. Aevolução dos dois países tem sido muito diferente, apartir das ditaduras militares.

O que o levou a escrever um livro remexendonas feridas atuais da Argentina?

A trama do livro é a história de amor entre dois jornalistas que vivem no presente. E os fatos do pre-sente atuam sobre os dois personagens. Se tivessemoutra profissão, talvez fosse diferente. Mas é uma his-tória de amor em meio aos fatos da atualidade.

Por ser uma obra imersa no presente, seu livrolevanta  questões  quanto  ao  exercício  da  atividadeliterária num país mergulhado na crise. Que diferençapode fazer um livro?

Um livro pode fazer muita diferença, ou ne-nhuma. Há livros que marcaram época. Na Argen-tina, O jogo da amarelinha, de Cortázar, por exemplo,foi uma espécie de Bíblia para os jovens nos anos 60.Como Cem anos de solidão, de Garcia Marquez, quemarcou um novo modo de ver a realidade, ou Grande

 sertão: veredas, ou Clarice Lispector. Mas não é fácil,nem freqüente, escrever um grande livro. Na Argen-tina não há um grande livro agora, mas há muitos ex-

celentes livros que permitem ao leitor encontrar modosde refletir sobre a crise. Espero que O vôo da rainha

seja um deles.

Tanto no Brasil como na Argentina, os ditadoresmilitares foram assassinose torturadores. Na Argentina, além disso,foram ladrões

Martinez acha que osargentinos pecarampor soberba, orgulho eonipotência. Agora,perplexos, seperguntam como umacrise dessas foi seabater justamentesobre eles

Page 28: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 28/100

   F   O   T   O   S  :   R   E   P   R   O   D   U   Ç    Ã   O

   /   A   E

gundo Eloy Martínez,

Borges, que sedestacou no chamado“realismo fantástico”,

 também escreveuobras que eram

espostas às realidadespolíticas da Argentina,assim como Dickens,ue fez uma minuciosa

análise crítica dasescolas inglesas

O  realismo  fantástico uma  tradição  na  lite-

ratura argentina está perdendo força?

A literatura argentina é vasta e não pode ser

limitada ao que se chama de “realismo fantástico”. Au-

tores como Borges, Cortázar ou Bioy Casares, que se

destacam nesse gênero, escreveram também obras que

eram respostas às realidades políticas da Argentina. No

caso de Borges, contos como Emma Zunz, O evangelho

 segundo São Marcos,  A intrusa, e quase toda a última

parte de sua obra, se inscrevem nessa linha. O mesmo

se poderia dizer de todos os últimos contos de Cortázar,

dos quatro últimos romances de Bioy Casares e da obra

inteira de autores importantíssimos como Roberto Arlt,

Manuel Puig, Ricardo Piglia. Portanto, dizer que orealismo fantástico prevalece na literatura argentina é

empobrecer essa literatura. Seria o mesmo que dizer

que toda a literatura brasileira é de tradição regional.

Qual a influência do jornalismo literário sobre

sua obra já que ela é inspirada pela realidade?

A maior influência neste romance vem do

cinema. Com exceção do episódio do jornalista brasi-

leiro Pimenta Neves, que abre o terceiro capítulo, você

não encontra nada no livro que seja uma crônica da

realidade: na Argentina recente não há senadores que

se suicidam, nem presidentes com visões místicas,

tampouco diretores de jornais com o poder que tem

Camargo. Alegra-me que você pense que o que acon-

tece no livro seja inspirado pela realidade, porque quis

criar essa ilusão. Mas trata-se de uma ilusão. A Argen-

tina que está lá é uma metáfora.

Uma metáfora bem próxima da realidade aliás. 

Quase todos os romances são inspirados pela

realidade, e nem por isso se supõe que haja neles in-

fluência do jornalismo literário. O que você diria de

Guerra e paz, onde Tolstoi explorou cada detalhe bo-

tânico ou militar para não se separar do real? Ou de

 Nicholas Nickleby, em que Dickens faz uma minuciosa

análise das escolas inglesas? Ou de Adeus às armas de

Hemingway, de Crônica de uma morte anunciada de

Garcia Marquez, de  Agosto de Rubem Fonseca, so-

mente para citar obras de culturas diferentes? Diriaque são jornalismo literário? O vôo da rainha se passa

Em relação à prosa, omelhor da literaturalatino-americana seencontra numa zona de

penumbra entrerealidade e ficção

26Continente Multicultural

Page 29: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 29/100

Continente Multicultural 27

Martínez conta queentrou em contatocom a literaturabrasileira há 40 anos,quando ficoudeslumbrado com asobras de ClariceLispector e GuimarãesRosa

na redação de um jornal, e seus personagens são jor-nalistas, mas o livro foi escrito com as técnicas de umromance, que exigem ambigüidade e cumplicidadecom a inteligência do leitor. Não acho que o jornalismoliterário tenha isso.

De um modo geral, como o senhor vê a pro-dução literária latino-americana atual?

Em relação à prosa, o melhor da literatura la-tino-americana se encontra numa zona de indecisão oude penumbra entre a realidade e a ficção, como quasetoda grande literatura contemporânea, desde W.G. Se-bald e Claudio Magris a Don DeLillo, Antonio Ta-

bucchi e os grandes romancistas ingleses, de JulianBarnes e Martin Amis a Kazuo Ishiguro e IanMcEwan. Na América Latina escrevem-se romancestão bons quanto em qualquer outro lugar – em algunscasos, romances até melhores.

O que o senhor conhece da literatura brasileiracontemporânea? 

Há pelo menos quarenta anos que leio comatenção a literatura brasileira. Fiquei deslumbradocom as obras de Clarice Lispector, Guimarães Rosa,

 João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond deAndrade. Com a freqüência que posso, continuo len-

do Machado de Assis. E sempre vi essas obras relacio-nadas com o riquíssimo Cinema Novo, com a músicapopular ou clássica (as Bachianas de Villa-Lobos e asóperas de Chico Buarque estão entre as minhasfavoritas), com a pintura e a arquitetura. AcrescentariaEuclides da Cunha, Mário de Andrade, NélidaPiñon, Rubem Fonseca e Patricia Melo, talvez porquecada um deles tenha me enriquecido. Não conheço arecente poesia brasileira, infelizmente.

O que mais lhe chama a atenção na literaturabrasileira?

Vocês criaram uma linguagem própria, em que

a diversidade brasileira está de corpo inteiro: a vio-lência urbana de hoje já estava em Clarice Lispector, acomplexidade verbal de Guimarães Rosa tem a vercom os diversos níveis de linguagem que há nas cida-des – e não falo apenas de níveis sociais, mas tambémde linguagens que se movem, se transformam, refle-tindo um país em mudança veloz e perpétua.

Fábio Lucas é jornalista

Page 30: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 30/100

Page 31: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 31/100

Page 32: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 32/100

Gilberto Freyre recorda em Vida, forma e corcomo tentou e não conseguiu aproximar José Linsdo Rego de alguns modernistas do Rio, entre elesSérgio Buarque, após recomendá-los veementemen-

te à simpatia e à atenção do paraibano: “Simpatiaque, da parte dele – José Lins –, dificilmente se fi-xou em Prudente, Rodrigo, Sérgio e Drummond,embora tivesse imediatamente aderido à poesia e àpersonalidade de Manuel Bandeira”.

Sua primeira coletânea, Cobra de vidro, somen-te será publicada em 1944. Na edição mais recente, de1978, ainda refeita por ele, além dos textos jornalísti-cos de 1940-41, aparecem outros redigidos até 1952.É notável o texto sobre a poesia de Manuel Bandeira,Trajetória de uma poesia, que se prestou também para aintrodução às obras completas do pernambucano. Noesboço comparativo entre Bandeira e dois modernis-tas consagrados, Ronald de Carvalho e Guilherme deAlmeida, considerando-se certos processos líricos uti-lizados pelos três, conclui-se facilmente quem sairáganhando. Ronald era o “colorista” artificioso, en-quanto que a musicalidade até certo ponto “provoca-da” de Guilherme o imobilizará como numa camisa-de-força. Para o crítico, Bandeira é o poeta quase semdefeitos, aquele que não sacrifica o melhor de sua voz

íntima em favor de elementos externos, às vezesfalseados e deslocados da poesia. Sérgio faz tambémelogios rasgados ainda à poesia singular de DanteMilano, pelas temáticas pouco encontráveis em ou-tros poetas e pelo conteúdo essencialmente filosóficode muitos de seus poemas.

Revelam-se ainda exemplares as análises dapoesia de Drummond e João Cabral. Do mineiro,questionará a qualificação de primeiro “poeta públi-co” brasileiro, proposta anteriormente por Otto Ma-ria Carpeaux, pensando nos poemas de Sentimento do

 mundo e na sua suposta ligação, em 1940, com a“moderníssima corrente da poesia inglesa”. Tomacomo ponto de partida, no caso de Cabral, o ensaioque este escreveu sobre Joan Miró, para melhoravaliar o poeta a partir de suas concepções peculiaressobre a arte do pintor espanhol.

Em artigo recente, Antonio Arnoni Prado,organizador de parte da obra de Sérgio Buarqueinédita em livro (O Espírito e a letra, 1996, em dois

 volumes que somam 1.100 páginas), intenta mostrarcomo se processa a influência exercida pelo historia-dor sobre o crítico em termos de argumentação econtextualização de tempo e espaço apreendidas dohistórico. A outra parte dessa crítica foi organizada

por Antonio Candido em Capítulos de literatura colonial (1991) e no Livro dos prefácios (1996). Can-dido não esconde a inteireza do elogio a Sérgio,companheiro de longas datas e de interesses polí-ticos, sociológicos e literários em certos instantesconvergentes e até comuns: “Como crítico, Sérgiofoi um mestre incomparável, talvez o mais impor-tante do Brasil no século 20”. O fato é que Sérgio

completou, de algum modo, com sua antologia depoetas e seus estudos sobre a fase colonial, o trabalhocrítico de Candido, que principia sua Formação da literatura brasileira com os árcades mineiros. Nestesentido, é sintomática a homenagem feita por Sérgioa Candido no ensaio Gosto arcádico, para o livro Es- boço de figura.

Sérgio Buarque tinha um posicionamentoclaro sobre a função da crítica e dos críticos, enfatiza-da na “Apresentação” que fez de outro livro que or-ganizou em vida, Tentativas de mitologia (1979). A vi-

são que mostra dos críticos é demolidora, semesquivar-se contudo de sua própria inclusão nela, aoadiantar que o crítico é um “personagem natural-mente presunçoso, pois que se faz passar, no fundo,por onisciente”. Ele conta ainda detalhadamente, naapresentação, como veiculou-se o seu percurso inte-lectual no Brasil e na Europa, a sua relação contro-

 vertida com os modernistas, o seu afastamento tem-porário da crítica literária e como foram memoráveisas polêmicas sustentadas com os historiadores Oli-

 veira Viana e Jaime Cortesão.Neste livro, mais que em Cobra de vidro, os

motivos históricos e culturais aparecem em váriostextos, tendo como pano de fundo a simples resenha

30 Continente Multicultural

O que pode ajudarna tentativa de

definição crítica paraSérgio Buarque é,

numa palavra,a argúcia assumida

diante do objetoiterário interpretado

   F   O   T   O  :   R   E   P   R   O   D   U   Ç    Ã   O   /   A   E

Page 33: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 33/100

Page 34: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 34/100

32 Continente Multicultural

Geraldo Gomes

 A ação do serviço público a quem competepreservar a integridade de nosso patrimônio

cultural terminou por criar um grande equívoco,de conseqüências desastrosas

Patrimônio reinventado

 A R Q U I T E T U R A

Page 35: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 35/100

Continente Multicultural 33

m 1937 foi criado o Serviço do Patrimônio His-tórico e Artístico Nacional (SPHAN), por um

grupo de intelectuais brasileiros, dentre eles algunsarquitetos modernistas.

Os criadores desse serviço público foramtambém os coordenadores e orientadores das atividadesque se desenvolveram visando à preservação do nossopatrimônio cultural edificado. Até a década de 70 doséculo passado, o SPHAN vivia às custas da perseve-rança e sacrifício dos seus dirigentes e apesar dos escas-sos recursos financeiros que o Tesouro Nacional lhereservava.

Assim, as obras de restauração dos nossos mo-numentos, nos primeiros 40 anos de existência doSPHAN, limitaram-se à conservação e a reparos, semintervenções radicais e de grande vulto.

Eventualmente se conseguia algum recurso ex-traordinário, logo empregado nas restaurações de nos-sas igrejas barrocas, alvos das melhores atenções naque-las oportunidades.

O espetáculo de cores e brilho dos interioresdessas igrejas era proporcionado pelas magníficas obrasde madeira entalhada, policromada ou dourada.

Nenhuma das obras de talha que revestiu os in-teriores de nossas igrejas foi concebida para aparecer

sem revestimento, isto é, expondo a cor e a textura na-tural da madeira. Todas as talhas foram concebidas eexecutadas para serem revestidas com pinturas policro-madas ou com finíssimas folhas de ouro.

No século 19 surgiu a moda de pintar debranco as talhas policromadas. Como o gosto artísticodos criadores do SPHAN pendia para a valorizaçãode nossas obras nos estilos maneirista, barroco e roco-có, subestimando o neoclassicismo e ecletismo, a prá-tica oitocentista foi considerada herética e as cores ori-ginais de nossas talhas foram resgatadas através de

obras de restauração, sempre que havia algum recursofinanceiro disponível.

No entanto muitas de nossas obras de talha fo-ram restauradas com recursos mínimos, o que, naque-les tempos, era a regra geral. Em um grande númerode casos, por mais cuidadosa que fosse a retirada dascamadas de tinta branca, sempre se retiravam, involun-tária e irremediavelmente, camadas das tintas em outrascores que estavam por baixo, chegando-se, assim, àsuperfície da madeira somente com seus veios preen-chidos com as mãos de selador branco que haviam re-cebido para serem pintadas.

Na impossibilidade de restaurar as cores origi-nais chegou-se a uma terceira textura: nascia o “deca-

pê”, do francês “décaper”, que significa decapar, tirarcamadas. E assim, sob o pretexto da restauração, umagrande parte dos interiores de nossas igrejas ganhouum novo aspecto estranho às idéias de quem os conce-

beu e executou.A realidade é que não se restauraram os es-paços barrocos, na sua origem policromados e dou-rados; criou-se um outro espaço em que as saliênciase reentrâncias das obras de talha se perdem no mono-cromatismo do marrom da madeira esmaecido comas finas linhas brancas do selador entranhadas nassuas fibras.

Podem-se verificar essas práticas, por exemplo,nas igrejas de São Pedro dos Clérigos e na de N.S. doRosário dos Pretos, ambas na cidade do Recife. Quem visitar o interior desses templos vai verificar que o es-paço está envolto numa penumbra, com um certo ar demistério e recolhimento quase românicos e que nadatem a ver com os espaços feéricos, policromados, dou-rados, inundados de brilhos e reflexos do barroco. Adourada capela-mor da igreja do mosteiro beneditinode Olinda e a capela-mor da igreja do convento carme-lita do Recife, restaurada exemplarmente, são exemplosexponenciais da fantasia barroca.

O leigo acredita que a capela-mor das igrejas de

São Pedro dos Clérigos e a de Nossa Senhora do Ro-sário dos Pretos tiveram seus espaços originais restau-rados, o que é muito grave, porque esse equívoco foiprovocado por uma ação do serviço público a quecompete preservar a integridade de nosso patrimôniocultural.

A esse serviço foi conferida, por lei, a autoridadepara definir normas e procedimentos de restauraçãodos nossos bens culturais. “Se o SPHAN agiu dessaforma, deve estar certo e é assim que se faz”, foi a inter-pretação leiga. A precedência do exemplo tem conse-

qüências previsíveis.Logo surgiram as modas de envelhecimento de

móveis, para satisfazer os desejos dos clientes dos nos-sos antiquários, e cursos de “decapê”, que consistiamem pintar uma peça de madeira com selador e em se-guida raspá-la.

A responsabilidade de nossos órgãos públicosde preservação, nesses casos, embora defensável, é irre-futável.

Exemplos desse tipo não são raros em outroscasos e não se limitam a móveis ou interiores de edifí-cios. No caso mais recente de revitalização do bairro doRecife, na cidade do mesmo nome, ocorreu algo seme-lhante ao equívoco oficial referido e divulgado.

Capela-mor daIgreja de São Pedrodos Clérigos,no Recife

 F  O  T  O : G  E  R  A  L  D  O G

  O  M  E  S

E

Page 36: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 36/100

34Continente Multicultural

Uma grande parte dos sobrados do citado bair-

ro teve suas fachadas pintadas de novo, cada uma delas

ostentando uma composição policromada. Esses so-brados não tinham essa coloração e não houve o cui-

dado de promover a prospecção física que identificaria

as cores superpostas e, se fosse desejável, definir a cor

da primeira camada, datada das primeiras décadas do

século 20. Esta foi uma iniciativa da Prefeitura da Ci-

dade do Recife que, a bem da verdade, em momento

algum, declarou que estava restaurando as cores ori-

ginais dos sobrados.

O que aconteceu foi a revitalização do bairro,

nem tanto pelas cores que os edifícios exibem hoje, maspelas novas funções que ali se exercem, essencialmente

diversionais.

Quanto ao patrimônio cultural que esses sobra-

dos representavam, pode-se afirmar que se reinventou

um patrimônio, assim como aconteceu com o interior

de algumas de nossas igrejas barrocas.

No bairro do Recife ocorreu o mesmo fenôme-

no que no “Art Déco District” de Miami, onde todos

os edifícios eram monocromáticos, na sua origem, e

passaram a ser policromados. Por conta desse sucesso

cromático inventado pelos arquitetos locais, a grandemaioria das pessoas, arquitetos pouco ilustrados inclu-

sive, passou a acreditar que a policromia era uma carac-

terística da “Art Déco”.

Na realidade, a policromia nunca foi estranha à

arquitetura. Os templos gregos, paradigmas exempla-

res da arquitetura do ser humano, apresentam-se hoje

na cor natural da pedra com que foram construídos,

mas, quando foram concebidos e concluídos, alguns

séculos antes de Cristo, eram policromados.

No século 19 os arquitetos europeus, sentindo

falta do volume das alvenarias de pedra e de tijolo, uti-

lizaram cores vivas para dar “peso plástico” às delgadas

estruturas metálicas que surgiam para revolucionar a

arquitetura. O uso das grandes superfícies de vidro

aliado à esbelteza das estruturas metálicas tornou trans-

parente e com limites indefinidos o espaço arquitetôni-

co, antes contido entre grossas e opacas paredes de al-

 venaria de pedra e de tijolo.A aplicação de cores, naquela oportunidade, se

fazia segundo pesquisas pretensamente científicas.

Essas normas se aplicariam à arquitetura do fer-

ro. A arquitetura eclética contemporânea, profusamen-

te decorada, era, na origem, monocromática, às vezes

enriquecida com painéis cerâmicos em cores vivas, for-

mando molduras ou valorizando certos trechos de pa-

redes com delicados motivos decorativos figurativos.

A partir de meados do século 19 a arquitetura

dos edifícios e da cidade passou a ser fortemente in-

fluenciada pela higiene e pelo sanitarismo, isto é, as for-mas e as cores dos edifícios e das cidades passaram a ser

definidos pela ciência e não somente pelo gosto artís-

tico. A luz do Sol e o ar em movimento passaram a ser

bem-vindos por razões anti-sépticas. Todos os cômodos

deveriam ter janelas, as ruas deveriam ser largas, pelos

mesmos motivos.

No caso das cores do bairro do Recife, definidas

no início do século 20, quando o bairro foi radicalmente

transformado para as obras de ampliação do porto, fal-

tam referências bibliográficas e iconográficas confiáveis(as fotografias existentes são em preto e branco).

Contudo, alguns textos podem ser indícios do

que ocorreu na arquitetura recifense daquele período e,

mais particularmente, no bairro do Recife, que se re-

construiu nos moldes do ecletismo, o modernismo (de

moda) contemporâneo.

Um texto de 1915, exatamente o período de re-

modelação do bairro do Recife, comemora a derrubada

das “velharias coloniaes” com uma veemência que deve

ser entendida pela ilu-

são do progresso que,naquela época, se tra-

duzia, essencialmen-

te, no urbanismo de-

molidor.

“O camartelo

do alvenel abate reso-

lutamente as velharias

coloniaes e a cidade

chorando ontem pe-

los olhos da saudade

amarga dos que ha

meio século perlustra-

ram tortuosas ruas de

Estação Central doRecife, restaurada

recentemente

Edifício dassociação Comercial,

no bairro do Recife

Page 37: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 37/100

Continente Multicultural 35

sobradões deformes, com janellas de quatro palmos de

alto sobre tres de largura, canos de lata com boca de

 jacaré, pendentes do beiral dos telhados, biqueiras rasas

onde medravam vegetaes, e portões baixos de testa lisa

e chan, a cidade numa viva ardencia de progresso ma-terial que lhe agita e transforma o seio, dando-lhe uns

 vivos tons de graça e belleza, canta hoje a era nova de

sua remodelação nas soberbas columnas de embasa-

mento, no mármore das soleiras, no arco diagonal das

abóbadas góticas, nas flexas dos zimbórios, nas carran-

cas de pedra, nas graciosas linhas systemáticas das arca-

das, na bela symetria das columnatas torneadas de tan-

tos edifícios em construção”.

O autor, provavelmente, se refere às demolições

que se faziam no bairro do Recife, com evidente satis-

fação pela destruição da malha urbana colonial consti-tuída de ruas tortuosas e estreitas e sua substituição

pelas ruas largas e arejadas, exaltando as belezas da no-

 va arquitetura, isto é, da arquitetura eclética, com todo

o seu decorativismo e até mesmo com o seu exotismo

“no arco diagonal das abóbadas góticas”.

O autor observa que, apesar da “viva ardência

de progresso material que lhe agita e transforma o

seio”, a cidade, como um todo, ainda se ressente dos

seus “defeitos” de formação. “Ha uma cousa ressaltan-

te à prima observação daquelles que nos visitam: a es-treiteza das ruas. A maioria das nossas ruas são mesmo

muito estreitas; este é um grave defeito vindo da fun-

dação da cidade. E por que ellas são estreitas (as ruas),

na sua quasi totalidade feitas de sobrados altos, furan-

do o céo com a sua elevação de dois, três, quatro e até

cinco andares pesadões archaicos, ressentem-se de ar,

quando não correm na direcção da costa atlântica, e de

luz, pois a do Sol nessas mesmas ruas não penetra

senão à hora meridiana”.O autor, não satisfeito com a remodelação de

todo o tecido urbano da cidade, isto é, com o alarga-

mento das ruas, recorre à pintura os edifícios para ate-

nuar os malefícios da sombra, pois “em ruas que não

são bem lavadas pelas correntes de ar, a luz profusa do

Sol é absolutamente necessária como elemento depura-

dor da atmosphera”.

A escolha de determinadas cores a serem aplica-

das nas paredes externas dos edifícios se faria em função

da capacidade de reflexão ou de absorção do calor

resultante da insolação.“Sabemos que tem grande importância a cor da

superfície em que a luz se reflecte; e o branco é que tem

effeito mais nocivo, porque os corpos brancos reflectem

toda luz que recebem. Mas em ruas estreitas ou que

pouco largas sejam, e aonde o Sol irradia menos horas,

a claridade é indispensável para que bem se effectuem

as acções chímicas que se passam no organismo”.

Não é possível asseverar que as recomendações

do autor tenham sido levadas em conta por aqueles que

erigiram os edifícios ecléticos no início do século 20, nobairro do Recife, mas, a se julgar pela documentação

iconográfica daquele bairro anterior à “valorização cro-

mática” promovida pela Prefeitura da Cidade do Reci-

fe, é possível que tenha existido, por parte daqueles

construtores, um consenso no uso de cores pastel, cos-

tume que, na realidade, já se introduzira no Brasil no

século 19, com o Império. Trata-se de uma prática que

se diferenciava daquelas em voga no período colonial.

Convém repetir que foi a partir de meados do século 19

que os princípios de higiene da habitação e sanitarismo

passaram a influir no desenho da arquitetura dos edifí-cios e da cidade.

As sugestões do autor parecem premonitórias:

“Não há razão para que a pintura das fachadas seja feita

de uma variedade de cores escuríssimas dando às mes-

mas ruas a feição lobrega de imitação.

Quando a pintura não tivesse fundo claro, azú-

leo, esverdeado, róseo, cor de pérola ou palha seca, de-

 via ter systematicamente a cor natural da pedra, ou da

argamassa de revestimento que a esta cor se assemelhe,

como já temos exemplos dignos de imitação.

Está visto que a cal preta, o core, mais próprios

dos muros, as tintas de roxo terra, azulão, zarcão, púr-

pura, chumbo, e de tantas côres equívocas, indefiníveis,

Edifício-sede do

 Jornal do Commercio,na rua do Imperador,Recife, em 1999e em 2002

Page 38: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 38/100

36Continente Multicultural36Continente Multicultural

porque algumas até parecem com a variada cor do

dejeto multifario, dão às ruas o aspecto de bairros

chineses, muito principalmente quando o calçamento

não é egual ao do novo leito das principaes artérias, e

que orgulho é da cidade em remodelação.O ideal é que as nossas ruas não tenham nunca

aquella feição das ruas de Pekin...”

Há poucas referências bibliográficas ao acaba-

mento dos edifícios que se construíram no início do sé-

culo passado no bairro do Recife. Um deles, no entan-

to, é rico em referências estéticas e, a partir destas, seria

lícito caracterizar, por extensão, os edifícios que esta-

 vam sendo erigidos naquele mesmo período e no mes-

mo bairro. O edifício descrito num artigo de jornal do

Recife é o da Associação Comercial, que acabara de ser

inaugurado.“A parte externa é trabalhada em alvenaria

recortada com relevos que lhe dão um aspecto sombrio

e ‘ao mesmo tempo distincto. Nada muito enfeitado’.

Nada porém que se possa confundir com certas cons-

truções em que a alvenaria, lisa, não apresenta um rele-

 vo, quebrando a monotonia compacta e desagradável à

 vista inteligente, da parede nua”.

Um outro registro sugere a natureza da deco-

ração dos edifícios nas primeiras décadas do século

X20: um cartão-postal de 1916, colorido à mão, mos-tra a “Estação Central do Recife” em cores pastel e foi

utilizado como referência iconográfica para restaura-

ção desse edifício. Convém lembrar que a técnica de

colorir cartões-postais à mão permitia ao artesão utili-

zar cores fortes.

As ruas do bairro do Recife estão longe de pare-

cer-se com “ruas de Pekin” e alguns de seus trechos

apresentam-se com composições cromáticas agradá-

 veis, o que, com certeza, contribuiu para a valorização

do bairro.

No entanto, convém lembrar que foi a definiçãodo novo uso dado aos pavimentos térreos dos edifícios

de algumas ruas do bairro (casas de diversão noturna)

o motivo principal para o sucesso da intervenção. Com

o mesmo uso que se lhes atribuiu e a restauração das

fachadas dos edifícios, ao invés de sua valorização cro-

mática, provavelmente o sucesso comercial teria sido o

mesmo acrescido do resgate da memória visual da ar-

quitetura eclética do início do século 20.

O Recife “antigo” transformou-se num “novo”

Recife, com um patrimônio reinventado em fins do sé-

culo 20: “as suas cores”. Grande parte da população lo-

cal e de turistas passou a acreditar que o bairro do

Recife havia sido restaurado, e que aquelas cores, se não

eram as originais, poderiam ter sido, porque a policro-

mia dos edifícios teria sido a regra.

A mania colorista não se restringiu ao bairro do

Recife. Outros edifícios com estilos diferentes dos cons-truídos no bairro do Recife na primeira década do sé-

culo 20 e situados em outros bairros, foram pintados de

acordo com a nova moda instaurada sob os auspícios da

Prefeitura da Cidade do Recife. Alguns deles nunca

haviam sido pintados porque, quando foram construí-

dos, tiveram suas fachadas revestidas com um reboco

especial que contém pó de pedra, o que lhes garante

maior resistência ao desgaste promovido pela chuva e

pelo Sol. Esse reboco, de fino acabamento e de cor

cinza, foi utilizado em edifícios de vários estilos, mas a

nova moda colorista os ignorava como acontecera com

os edifícios do bairro do Recife.

Assim, o Palácio da Justiça, que era todo cinzen-

to, nunca havia sido pintado desde quando fora con-

cluído em 1930, projetado pelo arquiteto italiano Jaco-

mo Palumbo num estilo eclético neo-classicizante, foi

um dos primeiros a ter suas fachadas “valorizadas”

com cores inéditas.

O edifício-sede da empresa Jornal do Commercio,

no Recife, notável exemplar de nossa arquitetura “Art

Déco”, com todas as suas fachadas revestidas de rebocode pó de pedra, e que nunca havia sido pintado desde a

sua conclusão em 1934, “sofreu” também com a nova

moda recebendo cores vivas em suas fachadas.

Mas a moda colorista não foi adotada somente

para os edifícios do século 20. O contágio provocou

Sobrados noPátio de São Pedro,

Recife, 1991

Page 39: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 39/100

uma epidemia que não poupou edifícios construídos no

século 19, como o da Assembléia Legislativa de Per-

nambuco, com sua fulgurante cúpula dourada e a igre-

 ja matriz de São José, pintada de cor-de-rosa.

Até mesmo a igreja setecentista de Santa Cruz,no pátio de mesmo nome, no bairro da Boa Vista, rece-

beu uma pintura em azul-médio e uma outra novidade;

a pintura de sua torre sineira com faixas verticais em

cores diferentes modificando radicalmente a percepção

de suas proporções.

Hoje, quando o termo “sustentabilidade econô-

mica” passou a ser usado como expressão mágica para

 justificar o investimento do poder público em qualquer

ramo de atividade, não se cogita de preservar nosso pa-

trimônio edificado sem o patrocínio de uma empresa

privada, mas, por outro lado, aumenta o risco da preva-lência dos gostos em moda sobre o interesse da preser-

 vação das características morfológicas essenciais do

bem cultural.

A título de exemplo, há alguns anos uma em-

presa particular concordou em arcar com as despesas

com a pintura das fachadas dos sobrados do pátio de

São Pedro, no Recife. No período colonial, no Brasil,

prevaleciam as cores vivas, os azulejos e o branco da cal

nas fachadas dos sobrados. A empresa patrocinadora

dessa pintura impôs, com êxito, a condição de definiçãodas cores a serem aplicadas por um profissional de sua

escolha, que o fez especificando cores pastel, moda que

só viria a surgir no Brasil no século 19 e, ainda mais,

sugerindo com a pintura, faixas horizontais que

romperam a leitura da individualidade vertical de cada

um dos sobrados.

Tudo isso ocorreu, senão com o beneplácito das

entidades oficiais criadas com a competência e autori-

dade para normatizar a preservação do nosso patrimô-

nio edificado, sem manifestações públicas de desacordo

dessas mesmas entidades com tais práticas.Diante desse silêncio, ou omissão, o que pode

concluir a sociedade leiga em sua grande maioria? Que

está correto o que está ocorrendo! E, o que é mais gra-

 ve, é exemplo a ser seguido.

A manipulação irresponsável, pela mídia, dessas

práticas pseudo-preservacionistas vulgariza o nosso pa-

trimônio cultural.

Poder-se-ia argumentar com o direito da socie-

dade contemporânea de travestir o seu patrimônio cul-

tural, como expressão de uma postura pós-moderna e,

como tal, irônica e também iconoclasta, como foi a ar-quitetura modernista na década de 40 do século pas-

sado. Cabe, nesse caso, pelo menos, uma advertência

das autoridades competentes para que a sociedade não

se iluda quanto ao inequívoco significado da preser-

 vação do bem cultural.

De qualquer forma, gostaria de ser poupado

do pesadelo de um dia ver a igreja de São Pedro dos

Clérigos com sua fachada pintada em rosa, lilás e

 verde-claro.

Continente Multicultural 37

 Assembléia Legislativade Pernambuco,Recife, 2002

Geraldo Gomes é arquiteto

Page 40: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 40/100

38 Continente Multicultural

umandá com farinha de mandioca. “Cumandá” vem de “cumã”, alimento retirado de vagem.

Era prato muito apreciado por nossos índios. Mas osportugueses, ao chegarem por aqui, não lhe derammuita importância. Continuaram preferindo oslegumes e as hortaliças do cozido lusitano. Depois,mas só aos poucos, começaram a gostar do saborespecial desse cumandá a que chamaram feijão, porlhes lembrar na forma o “feijon” – uma leguminosa

asiática introduzida, pelos mouros, na Península Ibéri-ca. Não por acaso semelhanças alimentares podem serencontradas em todos os países que, um dia, formaramo grande Império Português – Angola, Cabo Verde,Timor Leste, Goa, Moçambique, Macau. Pratos abase de feijão, por exemplo, levavam sempre chouriço,porco defumado, cebola e alho. Com pequenas varia-ções em termos de ingredientes e temperos. Em Goausa-se gengibre. Em Cabo Verde acrescem-se de vários grãos – é a “cachupa”, ainda hoje um prato tra-dicional. Mas feijão, como fava e ervilha, era então im-

portante na alimentação apenas dos camponeses

europeus. Não nas boas mesas. Nenhuma referência aele se encontra, por exemplo, no primeiro livro deculinária portuguesa – o famoso A arte de Cozinhar, deDomingos Rodrigues.

Os nomes vão mudando. É alubia na Espanha, fagioli na Italia, haricot na França, bohne na Alemanha, beans na Inglaterra e Estados Unidos. Mas em ne-nhum lugar do mundo o feijão é tão prestigiado quan-

to aqui. Prato que não pode faltar na mesa diária do

  S  A  B  O  R  E  S  P  E  R  N  A

  M  B  U  C  A  N  O  S

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti

C

Feijão,preferência

nacional

Que prazer mais um corpo pede

 Após comido um tal feijão? 

 Evidentemente uma rede

 E um gato para passar a mão.

Vinícius de Morais, em Feijoada a Minha Moda

De um alimento indígena,o feijão caiu no gosto dos

colonizadores e hoje é um pratogenuinamente nacional

Page 41: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 41/100

Continente Multicultural 39

brasileiro. Até porque o feijão, como o conhecemos,nasceu em nosso continente americano. Pizarro en-controu no México, ao chegar, mais de 100 variedadesda planta. Depois queimou seus navios, todos sabem.Mas essa é outra história. O desenho do legume estáem muitos tumbas Inca. É famosa, por exemplo, apintura em que aparece índia carregando milho emuma mão e feijão na outra.

Feijoada é mesmo um produto genuinamentenacional. Vem de fins do séc. 18, início do séc. 19. Nãohá consenso em relação a como nasceu. A versão mais

difundida, e provavelmente equivocada, sustenta queos senhores nos engenhos de açúcar, nas fazendas decafé e nas minas de ouro davam aos escravos restos dosporcos – orelha, rabo, pé. Vindo o prato do cozimentodesses ingredientes, misturados com feijão e água.Mas essa teoria romanceada das relações entre patrõese escravos, naquela época, não se baseia em nenhumafonte documental. E não encontra amparo nos fatos.

Os escravos vindos da África, como nossos índios,nunca tiveram o hábito de cozinhar alimentos mistura-dos na mesma panela – feijão era só feijão, milho só

Page 42: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 42/100

40 Continente Multicultural

milho, batata só batata, carne só carne. No mais, ofeijão dos escravos era servido sempre ralo, junto comfarinha de mandioca. Zelosos com seus pertences, epara evitar o escorbuto, o máximo que concediam os

senhores era que os escravos tivessem, no pomar, asfrutas que quisessem. Assim escreveu Francisco Pei-xoto de Lacerda, Barão de Paty, em seu Manual aos

 Produtores de Café (1847): “O preto trabalhador de ro-ça deve comer três refeições ao dia, ao almoçar, às 8horas, jantar à uma hora e cear às sete horas. Sua comi-da deve ser simples e sadia. Em serra acima, em geral,não se lhe dá carne, come feijão temperado com sal egordura, e angu de milho, que é comida substancial.”

Além disso, pés, rabos e orelhas de porco nãoeram nunca desprezados pelo colonizador. Sendo basede muitas receitas de prestígio, na Europa – Tripas àmoda do Porto e Pezinhos de porco de coentrada(Portugal); Spaghetti à Carbonara (usando gordura dabochecha do porco), Trippa alla Fiorentina e Paiata allaCacciatora (Itália); Tripes a la mode de Caen, Oeufs àla Tripe e Terrine de Queue de Boeuf (rabo de boi) emGelée d’Estragon (França); Einsbein (joelho deporco) com Chucrute (Alemanha).

A afirmação mais provável, portanto, é quenossa feijoada acabou mesmo nascendo não em sen-

zalas, mas nas casas grandes. A partir da adaptação depratos tipicamente da Europa, onde se preparavam co-zidos de várias carnes – vaca, porco, carneiro, touci-nho, pato, ganso. Aos quais juntavam-se legumes ehortaliças, com maior ou menor variedade. Tudo sen-do fervido conjuntamente, quase sempre em panelasde barro. Assim é com o cozido e a caldeirada portu-gueses; o bollito e a  casoeula italianos; a olla podrida, a paella, o pringá, a pilotae a fabata espanhóis; e o cassoulet

(panela de barro) francês, claro. Nossa feijoada pareceseguir essa tradição européia das paneladas, mistura de

leguminosas e carnes de todas as espécies. Do cozidoportuguês terá, provavelmente, vindo a idéia de mistu-rar feijão – preto (no sul) ou mulatinho (no nordeste)– com carnes e verduras, na tentativa de obter uma re-feição única, com sabor e sustança. Pouco a pouco pas-sando a ter o feijão, em razão de seu sabor marcante,ou da preferência que merecia por aqui, uma posiçãohegemônica no prato. Nossa feijoada seria, assim, felizcasamento de técnica portuguesa com ingredientesnacionais. Um casamento, diferente de tantos outros,que deu certo.

RECEITA: FEIJOADA (15 pessoas)INGREDIENTES PARA O FEIJÃO: 2 ½ kg de feijão preto*,1 kg de charque, 250 gr de orelha de porco salgada, 250g depé de porco salgado, 250 g de rabo de porco salgado, 1kg de

costela de porco defumado, 250 g de toucinho, 250 g delombo de porco defumado, ½ kg de paio, ½ kg de lingüiçaportuguesa, ½ kg de carne de peito refogada.PARA OS TEMPEROS: 2 talos de salsão, 2 cebolas, 6 dentesde alho, 4 talos de cebolinha verde, 4 ramos de coentro, 4folhas de louro, ¼ de colher de sopa de pimenta do reino,250 g de bacon picado e frito, 1 laranja pequena com casca,100 ml de cachaça, sal a gostoPARA O REFOGADO FINAL: 50 g de bacon bem picado, 1cebola bem picada, 2 dentes de alho bem picados, 2 talos decebolinha verde bem picados, 1 folha de louro, 25 ml decachaça, 25 ml de suco de laranja. ACOMPANHAMENTO: arroz branco, couve cortadafininha (frita em azeite de oliva e temperada com sal, pimentae alho), laranjas descascadas e cortadas em fatias, pimenta,farofa.

PREPARO:•Escolha e lave o feijão. Lave as carnes salgadas e deixe demolho, por 48 horas.•Leve o feijão ao fogo com a água que ficou de molho. Deixe

levantar fervura e escorra, descartando a água.•Troque a água das carnes. Ferva e escorra.•Pique e triture todos os temperos, misturando a cachaça(indispensável para ajudar a digestão).•Junte os temperos ao feijão e deixe marinando, por quatrohoras.•Leve o feijão ao fogo, com bastante água, juntando primeiroas carnes mais duras. Deixe cozinhar até ficar macio.•Junte por último as carnes mais tenras – lingüiça, lombo,paio e o peito refogado. Pingue água fria durante ocozimento, se o feijão começar a secar.

•Quando o feijão estiver cozido retire e corte as carnes.Troque o feijão de panela e junte as carnes cortadas.•Para realçar o sabor faça um refogado com cebola, alho,cebolinha, louro e bacon bem frito. Adicione cachaça e sucode laranja. Misture esse refogado ao feijão e ajuste o sal.

* Os sertanejos usam uma medida que não falha, para calcular o

 tanto de feijão por pessoa – juntam-se os dedos da mão em cuia,

cheia de grãos. Essa é a porção por pessoa. Como feijoada é prato

 generoso, sugere-se colocar, no fim, uma porção extra na panela.

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professorae-mail: [email protected] 

Page 43: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 43/100

Anuncio

Continente Multicultural 41

Page 44: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 44/100

al concluiu seu longa-metragem Dias de Nietz-

 sche em Turim, recém-lançado no Rio e em SãoPaulo e premiado no último Festival de Veneza, o ci-neasta Julio Bressane, 56 anos, já está mergulhado nospreparativos de seu próximo projeto, Filme pornográ-

 fico. Será seu 36o filme, numa carreira iniciada nosanos 60 e sempre caracterizada pela inventividade, pe-la ousadia formal e pelos baixos orçamentos.

Apesar de historicamente ligado a um cinemade resistência, Bressane vem acumulando prêmios emfestivais internacionais com seus últimos trabalhos, co-mo Miramar, O mandarim e São Jerônimo. Outro sinal

42 Continente Multicultural

Julio Bressane

 Apesar de historicamente ligado aum cinema de resistência, o

cineasta vem acumulando prêmiosem festivais internacionais com seus

últimos trabalhos, como Miramar ,O Mandarim e São Jerônimo

Luciano Trigo

Marginal e premiado

M

Bressani acaba

de concluirDias de Nietzscheem Turim,

seu 36º filme

  C  I  N  E  M  A

Page 45: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 45/100

de reconhecimento é a retrospectiva completa de suaobra que será feita no segundo semestre em Turim –cidade que o cineasta visitou em diversas ocasiões nos

últimos anos com sua mulher, a co-roteirista Rosa Dias. Dias de Nietzsche em Turim recria a passagem do

filósofo alemão pela cidade italiana entre abril de 1888e janeiro de 1889, período de grande fertilidade paraNietzsche, que escreveu ali alguns de seus principaislivros, como Ecce homo e O crepúsculo dos ídolos. Alémde receber o Prêmio Bastone Bianco em Veneza – hon-raria só concedida a Stanley Kubrick, Jean-Luc Go-dard e Abel Ferrara – o filme foi recebido com en-tusiasmo nos festivais de Frankfurt, Roterdã e Brasília.

Bressane começou a filmar ainda criança. Pro-fissionalmente, estreou como assistente de direção deWalter Lima Junior em Menino de engenho (1965), par-ticipando em seguida da criação do chamado Cinema

Marginal. Em 1967 dirigiu seu primeiro longa, Cara

 a cara, e três anos depois fundou a produtora Belaircom seu amigo Rogério Sganzerla. Em três meses, os

dois produziram sete filmes. Outros títulos de desta-que em sua carreira foram O anjo nasceu, Matou a fa-

 mília e foi ao cinema e Brás Cubas

Nesta entrevista exclusiva, Bressane fala sobre Dias de Nietzsche em Turim, critica os orçamentos milio-nários do cinema brasileiro, reafirma seu impulso ex-perimentador como cineasta e lembra suas conversastelefônicas com Jorge Luis Borges.

Fale  sobre  seu próximo projeto, Filme porno-

gráfico

.

É uma fábula popular, suburbana, que trans-cria o mito das três graças, o mito da Vênus terrestreque projeta e é protegida por uma trindade. É um as-sunto que já foi muito bem estudado por teóricos dapintura moderna. É uma história passada hoje, sobretrês pessoas comuns – um barbeiro, uma manicure euma ascensorista – que se encontram e, através de umprocesso que envolve o prazer sexual e o espiritismo, sepõem em contato com essas entidades. De alguma ma-neira elas revivem essa fábula das graças, pois ocorre

uma espécie de hiato no martírio da vida de cada um,no seu cotidiano de calvário. É uma ilusão temporária,uma ilusão do prazer.

Você  considera que  ainda  faz um  cinema deresistência?

Se for no sentido de uma resistência criadora,sim. A resistência é uma forma de estar aberto para ofuturo. Do ponto de vista da criatividade e da graça, ascoisas estão muito banidas, muito ausentes. Eu façoum cinema experimental, mas todos os conceitos liga-

dos à idéia de “cinema de autor” hoje estão afásicos,dizem muito pouco sobre o que é importante, repetem jargões e clichês velhos. Escondem muito. “Poucos re-cursos, muita inventividade”: isso é uma fórmula quenão quer dizer nada, porque o experimentalismo nãoestá aí, e sim numa dificuldade, num esforço, que sóacontece depois da saturação e da sedimentação demuitas coisas.

Você  é  contra,  então,  movimentos  como  oDogma 95, que chega a propor um decálogo com re-gras para um cinema de invenção?

Isso é algo infantil e inútil. Mas, por outro lado,é bom que se faça, porque há coisas muito piores sendo

Continente Multicultural 43

 F  O  T  O : T  A  S  S  O

 M  A  R  C  E  L  O

 / A E

Page 46: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 46/100

feitas por aí. Esses decálogos só não ensinam uma coi-sa: como fazer. Esta é a questão. A montagem dos fil-mes do Dogma não me agrada, porque no Brasil já fi-zemos aquilo há 25, 30 anos. Câmera na mão, luz am-

biente, som direto... Isso tudo é velho. Mas ainda assimpode servir como um alerta, como um foco de luz parao que conta, que é o cinema em si. O Dogma apontapara a linguagem do cinema, e nesse aspecto, é bom.

O  impulso que o movia a fazer filmes há 30

anos ainda é o mesmo?

A única coisa que revoluciona de verdade é odesejo. O amor é uma coisa contínua, permanente. Oque muda são os seus objetos. No cinema é a mesmacoisa, os objetos mudam, os temas que me emocioname entusiasmam mudaram, mas o prazer continua. Oentusiasmo leva ao encontro, que é uma maneira desair de si mesmo. Acho que sempre buscamos isso, oextra-si, o movimento para fora, o multiplicar-se. Na verdade, quando você dirige um filme, você faz umacoisa que não sabe o que é. Se soubesse, talvez nãofizesse, porque perderia o prazer. Você faz para se livrarde algo que não sabe bem o que é. Você conduz oprocesso criativo só até um determinado ponto. E,partir dali, é ele que te conduz. Eu procuro interferir o

mínimo possível nesse processo...Todos os seus últi

mos filmes foram premiados

na Europa. Não é estranho que alguém ligado ao ci-nema marginal viva hoje uma rotina de premiações em

festivais internacionais?

Essa história de cinema marginal é muito com-prida e desconhecida, é uma história ainda sem his-tória. Quem viveu, quem fez, ainda não narrou essahistória, continua algo interdito. Mas eu realmente mesurpreendo com a minha sobrevivência no cinema; é

um milagre sobreviver fazendo filmes criativos. É cla-ro que não sou insensível a prêmios, mas isso nunca foiuma coisa importante. Por outro lado, se eu nuncapensei no reconhecimento, ele nunca esteve longe demim. Sempre tive estímulos.

Como nasceu o projeto de filmar ias

 de

 Nietz

-

sche

 em

 Turim

?

Li Nietzsche de maneira selvagem, mas a apro-ximação maior, mais sofisticada, se deu sob a orien-tação da minha mulher, Rosa Dias, naturalmente. Elafaz há mais de dez anos uma pesquisa que inclui a pas-sagem de Nietzsche por Turim. A partir de 1994, eu

também mergulhei na pesquisa, lendo não só Nietz-sche, mas uma série de outros autores que mediaramesse contato com o filósofo. Em Nietzsche, o estilo e acomplexidade do texto estão imbricados com as idéiasfilosóficas. Ele é um artista, ele põe a arte na filosofia.De 95 em diante, fizemos uma viagem ano sim, anonão a Turim. A pesquisa foi extraordinária, e eu reunium material enorme sobre o que aconteceu com ofilósofo na cidade, os cadernos que ele escreveu etc. Euqueria fazer um pequeno filme sobre um grande tema,mas a questão era ver como fazer cinema desse ma-terial, identificando o que, no texto, podia ser trans-criado em imagens, traduzido de uma linguagem paraoutra, intersemioticamente. Busquei os textos que su-gerissem um movimento, uma imagem, um conceito...

Isso sim foi difícil. Escolhi três idéias do Nietzsche: o jogo das perspectivas, o esmaecimento do sujeito e osentimento do apolíneo e do dionisíaco. Trabalhei comesses três núcleos, por exemplo, vertendo em imagenso conceito de relatividade das verdades, que traduzicom as diferentes texturas da película. Usei sete ou oitotexturas diferentes – 35mm, 16mm ampliado, cines-copagem – para traduzir esse conceito. Tudo no filmetem um sentido, até o copo d’água que acompanhaNietzsche. Ele dizia que o copo d’água era como umcachorro, que sempre o acompanhava. Até nisso ele

inseria a filosofia. Nietzsche quebrou a barreira entrefilosofia e vida, misturou as duas coisas. Ele escrevepara uma mulher convidando-a para vir a Turim to-mar sorvete, e também insere a filosofia aí, ou numpasseio pela ponte... Tudo isso é muito forte, mas difícilde transformar em filme, a não ser que seja uma merailustração. Um filme que recrie Nietzsche com auto-nomia é algo muito raro. A idéia de transformar umaimagem fixa em movimento, também nietzschiana, es-tá presente na animação de 12 fotos que compramosnos Arquivos Weimar, algumas delas quase inéditas.As fotos ganham um movimento sutil, como se fosseuma filmagem feita no final da vida do filósofo.

44Continente Multicultural

“É um milagre sobreviver nocinema fazendo filmes

criativos, como eu faço.Não sou insensível a prêmios,mas isso nunca foi uma coisaimportante”

Page 47: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 47/100

Essa idéia de tradução é muito presente em seutrabalho não?

Poucos cineastas, como Godard e Straub, sou-beram fazer bem essa tradução intersemiótica. Porque,

no cinema, de uma maneira geral, e não apenas emHollywood, o que se valoriza é o entrecho, a história,o enredo, o plot. Mas isso é apenas uma pequena parte,um ingrediente entre muitos outros do cinema. A tra-dução intersemiótica se preocupa com o estilo, e comsua superação. É uma operação experimental, sem re-gras, fórmulas, sistemas... Depende da intuição, dosentimento. Isso me aproxima da zona central doprazer do cinema – e também da música, da literatura,da dança, de algumas ciências... Traduzir um texto deGuimarães Rosa para o cinema exige que se conheçabem o Rosa, claro, mas exige que se conheça aindamais a linguagem do cinema, pois é à tela que você vaichegar. Tem que saber como provocar no espectador oque o texto escrito provoca no leitor. Essa aproximaçãode dois objetos é rara. O processo, de Orson Welles, porexemplo, é um grande filme. É a tradução que oWelles conseguiu fazer do livro do Kafka, mas comum repertório próprio. Há outras versões, outros pon-

tos de vista, mas Welles percebeu a questão da lingua-gem e recriou em cima dela, com a montagem, comalguns paradoxos narrativos, com audácias formais...

Depois de dirigir  ias

 de

 Nietzsche

 em

 Turim

 

você  concorda  com  Caetano  Veloso  quando  ele  diz

que só é possível filosofar em alemão?

Isso é só uma frase, não é uma fórmula. Nemsei se essa frase é do Caetano mesmo, deve ser de outrapessoa... Não sei alemão, mas quero dizer uma coisasobre isso. As línguas não são sinônimas. Cada línguareflete uma maneira diferente de sentir o mundo, umaperspectiva única. O Nietzsche em português exigeuma operação tradutória que, tirante alguns trabalhoslouváveis, como o de Paulo César Souza, ainda não foifeita. É preciso quase criar uma língua dentro da lín-gua portuguesa para traduzi-lo. Nietzsche chegou aoBrasil em 1895, num artigo de João Ribeiro. Depois José Veríssimo, Araripe Junior e Agripino Grieco tam-bém o apresentaram em seus textos. Eu me interessei justamente por essa visão extra-européia do Nietzsche,pelo Nietzsche em português falado no Brasil, umalíngua mais bárbara, com a nossa dicção. A história da

Cena deDias de Nietzsche

em Turim,recém-lançado noRio e São Paulo, epremiado no últimoFestival de Veneza

 F  O  T  O : M  U  R  A  H

 A  Z  E  V

  E  D  O

 / A E

Page 48: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 48/100

recepção de Nietzsche em língua portuguesa, mos-

trando os instrumentos que se criaram na língua paraassimilá-lo, ainda não foi contada. Sequer existe umatradução completa de Nietzsche em português, os es-critos póstumos permanecem inéditos. Ele próprio falada necessidade de uma perspectiva extra-européia, danecessidade de incorporar as forças dos índios peles- vermelhas, da maravilhosa civilização moura de Anda-luzia, forças que seriam um antídoto para as coisas ne-gativas da Europa, como o nacionalismo. A culturaeuropéia precisava de uma visão de fora.

E o público europeu entendeu isso? Sim. Miramar e São Jerônimo já tinham tido umaótima recepção em festivais europeus. Mas imagineique encontraria uma certa resistência ao Dias de Nietz-

 sche, até porque cada europeu tem sua visão particulardo filósofo, há uma briga pelo espólio de seu pen-samento. Eu cheguei com o Nietzsche em português, eo público ficou entusiasmado. Um público selecionado,ligado à filosofia. No dia em que eu ia embora, opresidente do festival ligou para o meu quarto dizendopara eu ficar mais um dia, porque receberia um prêmio.A crítica puramente de cinema não se sente equipadapara falar, mas a platéia mais especializada ficou deli-ciada com o filme, que foi considerado antecipador.

Dias de Nietzsche em Turim custou 250 mil reais.

Você se sente indignado diante dos orçamentos milio-nários de algumas produções brasileiras?

Não pelo orçamento em si, mas pela impostura.Poderiam gastar até mais. Mas é dinheiro público, quedepende de um direcionamento político, através da leido audiovisual. Depende do grau de aproximação como poder, depende de saber quais são as empresas, ge-ralmente as estatais, que têm dinheiro a investir, sabercom quem falar. Os projetos em si não valem nada.Valem os contatos políticos, a intimidade com o poder.Isso num cinema como o brasileiro, que não tem in-

dústria, é absurdo. Importamos negativo, material defilmar, câmera, carrinho... Tudo é importado. Que ne-cessidade temos de seguir o modelo americano de ci-nema, do qual nunca chegaremos nem perto, se qui-sermos copiar? Isso quando temos uma tradição deautonomia, de experimentação, de humor no nossocinema. Os filmes que ficaram foram esses, e não sãomais feitos, porque se elegeu uma política de feudos,fazendária, terrível. Um modelo de filme passou a pre- valecer: o filme de público. Só que ele não tem públicoe dá um prejuízo enorme. Só é bom para o produtor,que ganha milhões com a engenharia de produção...Não com a bilheteria, porque esta não existe. Verda-deiros paquidermes pré-diluvianos. Todo o cinema

46 Continente Multicultural

Rogério Sganzerla,companheiro deBressani nos dias

heróicos do cinemamarginal

   F   O   T   O  :   P   U   B   L   I   U   S   V   E   R   G    Í   L   I   U   S   /   F   O   L   H   A

   I   M   A   G   E   M

Page 49: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 49/100

brasileiro é assim. Um ou dois cineastas brasileirossaem disso aí. Cada um faz o que pode, mas como setrata de dinheiro público e da ausência de bilheteria,deviam dar chance a outros tipos de cinema. Todos osfilmes que conseguem captar milhões são iguais. Os

que não fazem isso são rotulados de experimentais,“pouco orçamento e muita criatividade”. É uma men-tirada, uma impostura que é repetida há 40 anos portoda a imprensa.

Quem se salva nesse cenário?Eu considero Rogério Sganzerla um gênio, um

estilista do cinema, uma coisa rara, um dos melhorescineastas do mundo. Nem tudo é verdade e Tudo é Brasil

são duas jóias, duas obras-primas de invenção inter-

semiótica. Ivan Cardoso, também o admiro muito. Fazum cinema de invenção, tem grande talento.

O que você achou de Lavoura arcaica?

Eu me sinto constrangido de falar, porque seique é gente que gosta de meus filmes, que procura fa-zer coisas que eu fiz, e tem uma certa relação criativacomigo... Mas cinema é uma coisa... Não é como lite-ratura, não é como música, não dá para ensinar. Vocêaprende fazendo, e isso demora. Godard mandava pe-gar um plano do Eisenstein e tentar imitar, para ver

como é difícil. O cinema depende de uma percepçãoque não deriva só da vontade. Uma coisa é falar, outracoisa é a imagem. Televisão e publicidade são coisasdiferentes, e fazer essa mestiçagem é complicado, por-que o cinema já tem um repertório de clichês muito cer-rado. É preciso fazer muito para se livrar de certos ví-cios. Eu vejo uma presença muito forte da linguagemda televisão e do cinema na montagem e no enquadra-mento de filmes como Central do Brasil, por exemplo.

O cinema mundial atravessa uma crise?Aqui e ali tem gente nova, mas há um recuo do

cinema criativo. Quanto mais se avança, maior é a difi-culdade. Há uma grande perplexidade no mundo in-

teiro em relação à ausência de talento. As coisas estãomuito iguais. E hoje as pessoas se contentam com

muito pouco. Mas talvez a verdadeira questão seja a vitória da civilização do trabalho. A arte só pode ir atéum determinado ponto, porque você está falando comgente que está cansada, que passou dez horas traba-lhando num escritório... Então o prazer do pensa-mento é hoje quase inexistente, porque ninguém temmais cabeça para nada, está todo mundo exausto. Ocinema e o teatro têm que se adequar a pessoas que nãotêm formação, que quase não lêem... As pessoas hojeestão muito exauridas, vão ao cinema e dormem. Éuma outra disponibilidade. A pressão do trabalho, da

necessidade de sobrevivência, não tinha essa intensi-dade de hoje. Outra coisa: a televisão hoje é um parâ-metro, um contraponto, um campo de tensão paraquem faz filmes. Então fazem sempre mais ou menoscomo TV. O grau de contaminação semiótica hoje ébanal, e quem está acostumado com a TV talvez nãoqueira pagar 15 reais para ver algo muito diferente,ainda mais se não tem esse dinheiro. É essa falta dediscernimento que torna o Brasil diferente dos outrosmundos. Quer imitar a casca sem ter estrutura paraisso. Mas não precisa estar caudatário disso, não pre-cisava criar essa impostura, esse arsenal de mentiraslevando o minueto, quando se podia fazer outro tipode produção. A “produção experimental marginal”fica com as migalhas, e os outros, que não estãofazendo nada – se fosse uma indústria, ainda vá –,ficam com tudo, por eleição política, sem mérito algumde criação ou público. Autoritarismo e prepotênciaabsurdos, muito típicos de como se dão as coisas noBrasil O cinema, em seu comportamento, suas lide-ranças e seus porta-vozes, é muito semelhante ao que

existe na política brasileira, infelizmente. Essa coisa dea política ser a realidade, a burocracia... Lamentável.

Como avalia a importância de Mário Peixoto?Mário Peixoto fez um filme só, aos 18 anos, o

que é genial. Mas Limite é quase um acontecimentoespírita. Nunca fui da corriola que endeusava MarioPeixoto, mas fui talvez o primeiro cineasta do Brasil aestabelecer uma conversa cinematográfica com Limite,no meu filme A agonia.

Fale sobre o começo da sua carreira, nos anos 60.Eu comecei a fazer filmes antes de 1960. Já em

58, 59, com 12, 13 anos, ganhei numa viagem aos

Continente Multicultural 47

“Cinema não é como

literatura, aprende-se fazendo,e isso demora. Godardmandava tentar imitar umplano do Eisenstein, para ver como é difícil”

Page 50: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 50/100

Estados Unidos uma câmera de filmar de três lentes e

um projetor de 16 mm. Lá mesmo comecei a filmar.

Inseri imagens dessa tomada em A família do barulho,

onde eu apareço menino, mostro uma tomada da

ponte de Nova Iorque... Em 1964, 65, conheci Glau-

ber Rocha, no saguão do teatro Maison de France.

Um crítico, José Paes, nos apresentou. Glauber estava

mixando Deus e o Diabo na Terra do Sol no estúdio da

Atlântida, na rua México. Ele ia filmar em seguida

 Senhora dos afogados, baseado na peça do Nelson Ro-

drigues, e me chamou para ser seu assistente. O filmeacabou não saindo. Glauber ganhou um financia-

mento da Caic, órgão do Carlos Lacerda, para pro-

duzir o filme do Walter Lima Jr., que tinha sido seu

assistente. Ele produziu o primeiro filme do Walter

Lima, e eu passei a ser assistente de Menino de engenho,

filmado na Paraíba, enquanto o Leon Hirzman fil-

mava A falecida, baseado no Nelson. Trabalhei tam-

bém como assistente em A viagem, de Fernando Cam-

pos. Nesse mesmo ano, final de 65, dirigi meu pri-

meiro filme, um curta sobre Lima Barreto. Em segui-da fiz um filme com a Bethania e outro com a Elis

Regina. Cheguei a começar a montar, mas esse mate-

rial desapareceu inexplicavelmente. Era uma produ-

ção do David Neves, que tinha os negativos. Fui para

a Europa em 66. No início de 67, de volta, iniciei a

produção do meu primeiro longa-metragem, Cara a

 cara. Depois fiz dois filmes, ao mesmo tempo em 67,

O anjo nasceu e Matou a família e foi ao cinema. Eram

dois manifestos, em busca de alternativa para o for-

mato de cinema criado pela Embrafilme. Nesse ano eu

e Rogério Sganzerla participamos do Festival de Bra-sília, e nossa admiração recíproca resultou na Belair.

Fizemos sete longas-metragens em dois meses. Mas a

criação desses filmes da Belair provocou uma grande

convulsão, e os filmes teriam feito grande sucesso se

tivessem sido lançados. Matou a família foi lançado em

11 cinemas e, na segunda semana, foi retirado pela

censura. A política da Embrafilme era contra isso.

Esses filmes foram acusados de serem ligados ao

terrorismo. O general Silvio Frota me disse pessoal-

mente que eram filmes financiados pelo Marighella. E

ainda devo a ele não ter sido preso. Mas a censura foi

feita pelo próprio meio, que estava encastelado e se

sentia ameaçado. Na Europa fiz alguns filmes, a maio-

ria se perdeu. Dos 36 filmes que dirigi ao todo, seis se

perderam. Voltei em 74 e continuei, com muita difi-

culdade, remando contra a maré, a fazer filmes, sem-

pre com orçamentos baixos. Você não faz os filmes que

quer, faz os filmes que pode.

Fale  sobre  Glauber  Rocha  como  criador  e

como agitador cultural. O Glauber é um pai que os

cineastas brasileiros precisam matar no sentido psica-

nalítico?

Não gosto dessas fórmulas psicanalíticas. Euainda não fiz, nem sei se ainda vou fazer, uma reflexão

sobre o Glauber. Fiz alguma crítica cinematográfica

sobre coisas que me interessaram, outras nem tanto,

outras desprezíveis na obra dele. Terra em transe me

interessa; é um dos filmes com que eu procurei esta-

belecer um diálogo em Cara a cara. Mas os filmes que

ele fez na Europa eu acho uma porcariada, como O leão

 de sete cabeças, e mesmo O dragão da maldade. Mas

gostei muito de A idade da terra, que, segundo o próprio

Glauber, foi um filme feito para dialogar com o meucinema. Glauber foi muito mal interpretado, e,

curiosamente, não deixou ninguém, nada, nenhuma

influência no cinema brasileiro. Não há nada mais dife-

rente dos filmes de Glauber que os filmes brasileiros de

hoje. Glauber foi um sujeito enterrado pelos amigos.

Em seu livro inem nci

você escreve um belo

texto sobre Jorge Luis Borges que para se evadir da

realidade do peronismo ia buscar fora de seus contem-

porâneos fora do espírito e dos gostos da época influ-

ências  que  convinham  à  sua  intuição refugiando-senos clássicos da literatura inglesa. A maioria de seus fil-

mes trata de personagens de outras épocas – São Jerô-

nimo Padre Antonio Vieira Machado de Assis etc.

Isso é porque você se sente um exilado no presente?

Talvez, mas para mim isso é uma coisa incons-

ciente. A escolha de meus temas é quase involuntária,

são coisas que me dão prazer, das quais me sinto pró-

ximo e que compreendo, até por temperamento. Não

é uma forma de evasão da realidade, porque para mim

tudo faz parte do real: todo o passado, toda a memória,

os sonhos que eu tenho, tudo isso é real. Essa idéia de

separar o mental do físico para mim não existe, aliás,

talvez o físico só exista em função do mental. Fazer um

48Continente Multicultural

Page 51: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 51/100

filme sobre São Jerônimo é uma forma de penetrarprofundamente na realidade, não de me evadir – tantoque acabei entrando numa coisa fortíssima no Brasil, omito do deserto, do sertão.

Conte como foi seu contato com  orges.Conheci o Borges pelo telefone, em 1982. Ele

 veio ao Brasil e não fui vê-lo, porque não quis quebrara relação misteriosa que eu mantinha com ele por tele-fone. Borges era um solitário, você telefonava e ele es-

tava em casa. Eu tinha o projeto, que ainda vou reali-zar, de filmar um texto que escrevi a partir da lenda deBilly the Kid, chamado O garoto. Borges tem um textoem História universal da infâmia, com uma visão ex-traordinária e original, uma leitura da infância de Billy The Kid, que retrata um personagem negativo, ummenino ruim que gostava de matar e morreu falandopalavrões em espanhol. Aí liguei para ele querendocomprar os direitos do texto. Consegui o telefone deleno catálogo: Calle Maipu. Atendeu uma governanta

que tomava conta dele, Fanny, que ficou minha amigapor telefone. Ele me sugeriu livros, como The gangs of 

 New York, e outro de um folclorista americano, Nike.Hobsbawm tem um texto muito bom sobre Billy TheKid em Bandidos, mas demonstra um talhe comunistameio datado... Ele tem sempre uma explicação eco-nômica e social, não acredita em psicologia. Todo mêseu ligava para Borges, só uma vez ele me ligou e minhafilha de 5 anos atendeu: “É o senhor Borges”. Saí cor-rendo para atender. Uma vez ele me disse que com odinheiro que eu gastava nas ligações eu poderia com-

prar suas obras completas. Resumindo, ele não quis vender o texto, alegando que não lhe pertencia, que erauma lenda, uma colagem de vários textos... Borgestinha no final da vida um pouco a idéia do Flaubert, defazer um livro só com palavras alheias, sem escrevernada ele próprio. Mas ele era um relojoeiro, bastavatrocar um advérbio para mudar o sentido da frase. Atéque um dia liguei, e ele disse que estava muito doente,pediu que eu não ligasse mais. Logo depois foi para aSuíça e morreu. Casou com a Maria Kodama e mor-reu. Foi para a Suíça para morrer.

Continente Multicultural 49

Filmografia de Julio Bressane

Lima Barreto: trajetória (1966)

Bethania bem perto (1966)

Cara a cara (1967)O anjo nasceu (1969)

 Matou a família e foi ao cinema (1969)

 A família do barulho (1970)

 A miss e o dinossauro (1970)

Barão Olavo, o horrível (1970)

Cuidado, madame! (1970)

 A fada do oriente (1971)

 Amor louco (1971)

 Memórias de um estrangulador de loiras (1971)

Lágrima pantera (1972)

O rei do baralho (1973)O monstro Caraíba (1975)

 A agonia (1977)

O gigante da América (1978)

Viola chinesa: meu encontro com o cinema brasileiro(1979)

Cinema inocente (1981)

Tabu (1982)

Brás Cubas (1985)

Os sermões – a história de Antonio Vieira (1989)

Galáxia albina (1991)Oswaldianas: quem seria o feliz conviva de IsadoraDuncan?  (1992)

Galáxia dark (1993)

 Antonioni Hitchcock: a imagem em fuga (1993)

O cinema do cinema (1993)

O mandarim (1995)

 Miramar (1997)

São Jerônimo (1998)

Dias de Nietzsche em Turim (2002)

Cena de Matou a famíliae foi ao cinema,

1969

Luciano Trigo é jornalista F  O  T  O : D  I  V  U  L  G  A  Ç  Ã  O

 / A E

Page 52: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 52/100

or enquanto, o digital ainda carece da riqueza,precisão e, sobretudo, da força emotiva que a ima-gem fotografada em película inegavelmente tem”. Comessas palavras, o cineasta David Lynch jogou uma de-licada carga de frieza nas discussões em torno do prin-cipal tema em questão, esse ano, no que envolve tecno-logia e cinema: o Sistema Digital. Para se ter uma idéia,o último Festival de Cannes tornou-se a maior vitrine domundo para as mudanças tecnológicas que estão revolu-cionando o olhar da arte cinematográfica. Foi tambémuma edição histórica do festival, que aceitou, pela pri-

meira vez, filmes pensados, realizados e, mais impor-tante ainda, apresentados no novo formato, oficializandoassim uma revolução que está mudando a forma comoo cinema é feito pelo artista, e visto pelo espectador.

Para entender o que está acontecendo, e o por-quê de essa movimentação ganhar  status de “revolu-ção”, é preciso saber que desde que o cinema surgiu,há mais de 100 anos, imagens, até há pouco tempo,eram captadas e apresentadas dentro de um mesmoprocesso fotoquímico.

Com uma câmera de cinema e suas lentes, ima-gens são registradas num filme (ou película cinema-tográfica) de 35mm (ou 16mm como bitola alterna-tiva). O filme é revelado em laboratório através de pro-

cesso químico e copiado em rolos, que são montadosnum projetor dotado de sistema de transporte que faráa película deslizar na frente de uma lâmpada, que jogaa imagem na tela.

Com o sistema digital, a imagem também écaptada por uma câmera, mas armazenada em fitasdigitais ou discos. A linguagem digital transforma assuas informações em seqüências de 0 e 1. Dependendoda qualidade da câmera utilizada, a imagem pode sermais ou menos nítida. Nos últimos dois anos, desen- volvimentos nessa área têm transformado a imagem

digital e feito cineastas repensarem a questão da “qua-lidade”, que já começa a rivalizar com aquela do35mm, muito embora cineastas “puristas”, como opróprio Lynch ou Steven Spielberg, discordem.

Na edição de junho da revista americanaWired , Spielberg disse em entrevista que “fui um dosprimeiros cineastas a utilizar o digital para sublinharmeus filmes, mas serei o último a utilizar o digital paracaptar imagens”. Dos 22 filmes apresentados emCannes, quatro foram realizados digitalmente – Arca

 russa ( Russian ark), de Alexander Sokurov, o iranianoTen, de Abbas Kiarostami, o inglês 24 hour party people,de Michael Winterbottom, e o chinês  Plaisirs

 inconnus, de Jia Zang-Ke.

50 Continente Multicultural

Um novomodo de olhar

Filmes que utilizam o sistema digital estão apresentando modificações naprópria linguagem cinematográfica, bem como na difusão e comércio do

cinema, e podem se consolidar como a nova tendência internacionalKleber Mendonça Filho

P“

   F   O   T   O   S  :   D   I   V   U   L   G   A   Ç    Ã   O

 A equipe defilmagem de

ca russa, percorreus corredores e salaso museu Hermitage

num único take de90 minutos

Page 53: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 53/100

 Já há mais de 10 anos que o formato digital fazparte do cinema, da captação, edição e reprodução desom à montagem dos filmes. Na captação de imagensé mais recente. Cannes mantinha relacionamento es-

treito com o digital, muito embora os filmes, até o anopassado, fossem obrigatoriamente transferidos para oformato película 35mm para exibição.

Em 1998, o dinamarquês  Festa de família

( Festen), de Thomas Vinterberg, rodado com uma câ-mera caseira de vídeo, ganhou o prêmio do júri. Em2000, o presidente do júri foi o cineasta francês LucBesson, um dos maiores divulgadores de novas tecno-logias na Europa. Ele deu a Palma de Ouro a Dançando no escuro ( Dancer in the dark), de Lars VonTrier, inteiramente rodado com pequenas câmeras de vídeo digital.

Esse ano, pela primeira vez na história dofestival, cineastas selecionados não precisaram transfe-rir seus filmes originalmente captados com câmerasdigitais para o suporte filme 35mm, o padrão mundialde projeção e captação há mais de 100 anos.

A diferença é que, ao invés de uma tira de filmecorrendo pelo projetor em frente a um facho de luz, aplatéia viu pela primeira vez filmes projetados a partirde informações armazenadas na memória de um com-

putador e transformadas em luz via projetor digital deimagem. As duas principais salas do festival, a Lu-mière e a Debussy, foram equipadas paraesse novo formato de apresentação.

Mas, que olhar novo é esse?Quais são os principais pontos de dis-cussão? Pelo que pôde ser visto, o digitalpode representar hoje a tomada de no- vos rumos para a imagem, para a lin-guagem cinematográfica, para a difusãodo cinema como arte e comércio. Pode

tanto representar mais um novo e eficazinstrumento de domínio para a indús-tria hollywoodiana, como um canal sau-dável de difusão da arte cinematográficapara pequenos realizadores em circuitosalternativos.

Na verdade, o cenário é mesmoconfuso. George Lucas, que seria nor-malmente associado ao domínio tecnoló-gico de Hollywood no mundo, apre-senta-se como um independente visio-nário, à frente de uma revolução na quala própria Hollywood ainda não põe fé.Todavia, é inegável que essa experiência

técnica só poderia ter sido pensada por um visionário.O produtor de Lucas, Rick MacCallum, explica quecerca de 100 salas especialmente equipadas para pro- jetar o formato digital estão mostrando O ataque dos

 clones, o 2º episódio de Guerra nas estrelas, nos EstadosUnidos. Os estúdios estão interessados nos cerca de800 milhões de dólares que irão economizar por anona confecção de cópias 35mm e no transporte dasmesmas. Cada cópia custa cerca de 1,5 mil dólares epesa 35 quilos. Com o digital, o cinema recebe o filme via satélite, numa versão mais sofisticada de um e-mail

com material anexado e criptografado. Com isso, nãohá custos de copiagem ou transporte. “O problema éque eles querem economizar sem investir, sem investirnuma tecnologia que eles (os estúdios) ainda julgamalienígena”, diz MacCallum.

Num outro lado da discussão, o produtor e exi-bidor independente francês Marin Karmitz, à frenteda sua empresa MK2, em Cannes com Ten, de Kia-rostami, reflete: “A tecnologia será transformada, claro,em mais uma avenida para Hollywood divulgar seusprodutos mundialmente. Essa tecnologia me interessaparticularmente ao viabilizar a difusão de filmes eco-nomicamente modestos e artisticamente ambiciososque, cada vez mais, perdem espaço”.

Karmitz instalou o seu primeiro projetor digitalnum complexo de salas em Beaubourg para exibir

Continente Multicultural 51

Cena de Arca russa,de Mikhail Piotrovsky,mostrando uma dassutuosas salas do

museu Hermitage,em São Petersburgo

Page 54: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 54/100

52Continente Multicultural

 ABC África, filme anterior de Kiarostami, rodado emformato DV ( digital video). “É o caso de adequar aproposta técnica e estética à apresentação”, disse.

O russo Alexander Sokurov apresenta inte-ressante contraponto à carnificina “numérica” deLucas, mostrando 90min ininterruptos captadoscom uma câmera digital de alta definição dentro domuseu Hermitage, em São Petersburgo, Rússia, noseu Arca russa.

Sokurov realizou o sonho que Hitchcock nãopôde concretizar em Festim diabólico ( Rope, 1948), exa-tamente por causa das limitações técnicas do formato“filme” (um rolo de filme 35mm dura, no máximo, 9min). No filme de Hitchcock, a cada 10 min ele tentavaesconder um corte para dar início a um novo plano e darcontinuidade à ilusão de que Festim diabólico era umatomada contínua, filmada e desenvolvida em tempo real.

Sokurov captou seu suntuoso passeio de1.800m pelos corredores e salas do Hermitage numúnico  take de 90 min, fazendo de  Arca russa nãoexatamente um filme, mas uma experiência carregadade história e identidade cultural onde o próprio tempo(o real, 90min) é desdobrado dezenas de vezes dentrodo tempo “cinema”, o filme nos levando a diversas

passagens importantes da história russa.Curiosamente, Arca russa, o primeiro filme pro- jetado digitalmente na história da competição deCannes, apresenta um “defeito” técnico cuja essência étotalmente orgânica dentro da linguagem técnica cine-matográfica, que suscita mais discussão sobre a in-compatibilidade entre os formatos “cinema-fil-me”/“cinema-digital”.

O “defeito” surge da impossibilidade de umfilme de 90 min ser apresentado de forma cem porcento contínua em cópia 35mm, o que nos leva de volta ao problema que Hitchcock tentou driblar.

Ao ser projetado digitalmente em Cannes, Arca russa foi mesmo contínuo, inteiro. Quando for apre-

sentado em 35mm em outros festivais, ou mesmo nocircuito exibidor convencional (a Mais Filmes, deLeon Cakoff e Adhemar Oliveira adquiriu o filme para

distribuição no Brasil), terá que ser dividido em car-retéis de 20 min com as habituais mudanças de rolo.

Cada mudança, por mais discreta que seja,provoca um leve pulo na imagem, neutralizando a sen-sação de fluência e continuidade das imagens de Soku-rov. Seu filme digital será adulterado pelo “cinema-filme” e, com o desgaste inevitável das cópias durante oprocesso de exibição, esses “pulos” serão ainda maiores.

A julgar pela apresentação desses filmes, o queo público pode esperar? Tanto Episódio 2 quanto Arca

 russa revelaram-se experiências de olhar radicalmentediferentes de uma projeção em filme. Não exatamentemelhor, nem pior, uma vez que a projeção “numérica”tem a sua própria identidade de imagem. Nitidez,aparentemente, nunca será motivo de reclamação, nemcores esmaecidas. Não é cinema, nem tampouco aqui-lo que os últimos 20 anos nos ensinaram em relação aoformato “vídeo”.

Interessante observar também em Cannes, esseano, a proliferação de filmes que, auxiliados por essetipo de tecnologia, investiram no “plano-seqüência”,

ousadia nobre de linguagem que tem em Hitchcock eOrson Welles seus grandes padrinhos. Ten, de AbbasKiarostami, cujo título ( Dez) é uma referência aos dezplanos que compõem o filme, todos gravados com acâmera fixa dentro de um carro, registrando a angústiade seis mulheres iranianas novas discutindo a vida.

O plano-seqüência (cerca de 14) também foidigitalmente viabilizado pelo diretor franco-argentinoGaspar Noé, que parece ainda revolucionar a utiliza-ção de ultraviolência no seu controvertido Irréversible.

   F   O   T   O   S  :   D   I   V   U   L   G   A   Ç    Ã   O

Cena deO ataque dos clones,

de George Lucas

Kleber Mendonça Filho é crítico de cinema

Page 55: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 55/100

Continente Multicultural 53

e o cinema é uma representação da realidade,filtrada por uma estética e uma gramática pró-

prias, o que acontece quando a realidade é meticulo-samente perseguida pelo cinema através de novastecnologias, e o foco é a violência na sua forma maisabjeta? O que ocorre quando um cineasta utilizanovas ferramentas para testar os limites da brutali-dade cinematografada? Assistindo a Irréversible, filme

de Gaspar Noé (autor do não menos provocante Seul contre tous, prêmio da crítica em Cannes 1997 e iné-dito comercialmente no Brasil), experimenta umestranhamento o espectador, em grande parte porqueo material projetado tem a aparência e a energia dealgo novo. Nunca a brutalidade chegou tão perto dapornografia no cinema de ficção.

O filme revela-se de interesse mais pela suaforma sensorial do que pela sua estrutura esqueléticade narrativa e significado (Noé nos sugere que “ohomem é um animal” e que “o tempo destrói tudo”).

Mais relevante do que isso, o filme sofreu o tipo deapedrejamento geralmente reservado a obras queradicalizam no tratamento do sexo e da violência.

 Bonnie & Clyde (1967), de Arthur Penn, Meu

 ódio será tua herança (1969) e Sob o domínio do medo

(1971), ambos de Sam Peckinpah, Laranja mecânica

(1971), de Stanley Kubrick,  Assassinos por natureza

(1994), de Oliver Stone,  Funny games (1997), doaustríaco Michael Haneke, foram recebidos com al-gum tipo de reproche, uns mais, outros menos inten-

sos. Irréversible, que deve boa parte de sua fúria a Sob o domínio do medo, de Peckinpah, já entrou para essa lista.Há duas seqüências cardíacas no filme, car-

regadas de uma violência que deixa a platéia zonza e

irritada. A primeira, logo nos 15 minutos iniciais deprojeção, apresenta um assassinato. O rosto de um ho-mem vira uma polpa de carne e sangue rumo à pró-pria caveira ao ser atingido um sem-número de vezespor golpes dementes de um extintor de incêndio. Nãohá cortes na seqüência e o espectador é levado a obser- var a ação explícita sem descanso para os olhos, a nãoser que prefira deixá-los bem fechados. Em razão da

diabólica eficiência da imagem, ninguém cogita dapossibilidade de que aquilo ali não seja um homem,mas um boneco. Daí o choque e a repulsa.

Há também na seqüência a agressão do somnuma orgia de áudio e música – aqui composta porThomas Bangalter, da dupla eletrônica francesa Daft

 Punk. Junte-se a isso também a ambientação, filmada,como se fosse um inferno vermelho, por uma câmeraque gira no seu próprio eixo. Noé consegue orques-trar uma seqüência agressiva em todos os sentidos.

O segundo momento de choque para a platéia,

 já na metade do filme, nos mostra nove minutos de umestupro. O assassinato da abertura é resultado direto doestupro, embora Noé nos apresente primeiro a vingança para, depois, revelar-lhe o motivo. Como em Amnésia (2001), filme de Christopher Nolan, ele utilizauma estrutura narrativa invertida, de Z a A, ou seja,começa pelo fim e evolui até o início. Catorze planos-seqüências fluentes compõem a narrativa: catorze takes

contínuos e, aparentemente, sem cortes.As imagens de Noé são interessantes. Des-

concertam pelo ineditismo de um “realismo” há pou-co tempo impensável no cinema, pois representamum cinema tecnicamente meticuloso que visa extra-polar os limites do aceitável, um “aceitável”, aliás, em

 A realidadenão temcensura

S

Cena de Irréversible,de Gaspar Noé, queutiliza amplamenteos novos recursosdas câmaras digitais

Page 56: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 56/100

54 Continente Multicultural

grande parte estabelecido por ummercado dominado por regras deconduta estética. Assim, as toma-das de violência de Irréversiblepo-

dem ser consideradas “inaceitá- veis” dentro daquilo que foi defi-nido como parâmetro comercial.

Não há aqui os já assimi-lados por todos (seja consciente,seja inconscientemente) plano deum golpe dado e contraplano domesmo golpe sendo recebido.Em Irréversible, a linguagem imi-ta a desconcertante violência real

que o cinema não mostra, talvezpelo fato de o cinema ter a suaprópria gramática de reproduçãodo real. Curiosamente, Noé re-produz o real com o efeito ator-doante de um novo cinema técni-co, experimentando um novo tipode imagem. É uma gramática no- va, tão desconhecida quanto a tec-nologia que a viabiliza.

Gaspar Noé explica: “Na

 verdade, cada plano-seqüência natela, aparentemente sem cortes, éuma seleção dos melhores mo-mentos dos muitos planos-seqüências que foram fil-mados. Tem muita coisa colada secretamente no com-putador por cortes invisíveis. Em vez de escolher umúnico take ‘bom’, como antigamente, eu pude escolheros melhores momentos de vários  takes contínuos emontar algo que aparenta ser um único movimento”.

Descrita na ordem cronológica normal, a tra-ma de Irréversible nos mostra um casal e o melhoramigo deles. Depois de sair de uma festa, ela é brutal-mente estuprada numa passagem subterrânea parapedestres, em Paris. Num acesso de fúria, o namo-rado e o amigo procuram o agressor na boate gay sadomasoquista Rectum, onde a vingança é efetivada.

“O tom da imagem e a estética da violêncianesse filme podem lembrar os snuff movies [filmes queretratam assassinatos supostamente verídicos]. Aidéia de desfigurar um rosto humano daquela forma,por exemplo, veio de uma fita inglesa, onde um ho-

mem era espancado até a morte, talvez a coisa maisbrutal que eu já vi. De qualquer forma, eu sou umdiretor de cinema. Tenho a meu dispor uma lingua-

gem cinematográfica, técnica, eatores de qualidade. Irréversible éum filme de ficção, uma represen-tação filmada da realidade. Não

me interessaria filmar  snuff . Paraisso, já basta o que vemos todos osdias na televisão, que investe cada vez mais na ‘realidade’, seja lá oque ‘realidade’ significa hoje emdia”, disse Noé.

Noé diz que, por ser a cenado estupro uma tomada fixa e semcortes, não teria sido possívelmaquiar o rosto da atriz com san-

gue e hematomas. “O rosto delafoi maquiado na pós-produção,digitalmente. Há também a ima-gem do pênis já não tão ereto, de-pois do estupro, acrescentada viacomputador. Esse tipo de detalhedesconcerta o público e descons-trói a noção de ‘real’ no cinema,uma vez que perguntas simples,do tipo ‘como ela ficou sangrandodesse jeito?’, ou mesmo a presença

do sexo do ator na cena tornam-sedifíceis de responder. No meu fil-me, um estupro é mesmo um ato

inassistível pela sua brutalidade, e fico satisfeito de terpodido representá-lo dessa forma”, diz.

Sobre a forma como filmou o assassinato, umaseqüência talvez ainda mais forte, Noé diz termisturado digitalmente o corpo do ator ao de trêsbonecos, por meio de manipulações digitais que lhedestroçaram a face. “Talvez por a cena ser de uma violência nunca vista, a composição, a manipulaçãoda imagem e a movimentação do corpo/cadáver lhedêem um sentido de realidade ainda maior”.

O que significa esse tipo de tecnologia paraNoé, no cinema de hoje? “Primeiro, a liberdade queme permite fazer um filme no sentido estético etécnico. Segundo, a possibilidade de mostrar a vio-lência não como algo que receberia censura 17 anos[referência à classificação comercial ‘adulta’ ampla-mente aceita por Hollywood], mas como algo inclas-sificável, uma vez que o mundo no qual vivemos não

tem ‘certificado 17 anos’: nossa realidade simples-mente não tem censura”. (KMF)

O diretor criaum cenário de tonsavermelhados,

ue, juntamente coma música, acentua

o clima violentodo filme Em Irréversible, a

linguagem imita adesconcertante violênciareal que o cinema nãomostra, talvez pelo fatode o cinema ter a sua

própria gramática dereprodução do real

Page 57: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 57/100

s impressões digitais de George Lucas estão es-palhadas pela indústria cinematográfica ameri-

cana. Uma ironia, já que ele tornou-se, ao longo dosúltimos 25 anos, o mais poderoso cineasta “indepen-dente” que essa mesma indústria já viu. Com a saga

Guerra nas estrelas, criou a sua própria mitologia e seupróprio império, o Skywalker Ranch, um sítio de trêsmil hectares no norte da Califórnia, perto de SãoFrancisco, onde circula uma moeda interna chamada Lucasbucks. Esse império engloba a LucasFilms, pro-dutora da saga Guerra nas estrelas e da série Indiana

 Jones, a  Industrial Light + Magic, responsável porrevolucionar a área de efeitos especiais no cinema, e amais moderna casa de pós-produção do mundo, o Skywalker Sound , especializada em som para filmes. ÉLucas quem paga do próprio bolso pelos filmes quefaz, como no caso de  Episódio 2 – Ataque dos clones,atualmente em cartaz no mundo inteiro. A Fox, queproduziu e lançou o primeiro Guerra nas estrelas, em1977, tem agora apenas a honra de lançar o filme(custos são cobertos), poisLucas fica com todo olucro. Tudo isso significaque esse senhor de barbaasseada e obrigatória ca-misa xadrez ensacada é o

que a velha Hollywoodchamava de  movie mogul,

um novo Howard Hughes, milionário visionário quedefende e pesquisa o cinema como uma novatecnologia que está sempre em transformação.

Como definiria essa revolução tecnológica que

está acontecendo hoje no cinema e que tem no senhor

o seu principal catalisador?

O “digital” para mim é simples. Toda a arte étecnológica, muita gente esquece isso. O exemplo quesempre gosto de usar é a evolução da pintura, dosafrescos à tinta a óleo. Para mim, representa a mu-dança que ocorre hoje entre o processo fotoquímico decinema e o digital. Os afrescos exigiam grande em-penho técnico na mistura das cores por um certo nú-mero de pessoas que precisavam se certificar de que astonalidades secariam corretamente e de que a pinturaestaria adequada, sem mudanças. Era um processorígido. Mudar de idéia significava ter de refazer, exa-tamente como no processo fotoquímico “filme”, no ci-nema. Com a tinta a óleo, já era possível sair à luz do

dia, mudar as cores, mu-dar de idéia e concepçãoao longo do processo cria-tivo. A nova tecnologia naarte geralmente traz umanova liberdade para o ar-

tista desenvolver idéias.

Continente Multicultural 55

O diretor George Lucasrevela porque tem confiança

no final domínio datecnologia digital no cinema,

por proporcionar recursosque aumentam a liberdade

imaginativa do artista

 A 

Toda arte é

 tecnológica

   F   O   T   O   S  :   D   I   V   U   L   G   A   Ç    Ã   O

Cena de Episódio 2 –O Ataque dos Clones,o novo trabalho

de George Lucas

Page 58: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 58/100

Até

 um

 certo

 ponto.

 O

 senhor como

 artista

tem  utilizado  as  novas  tecnologias  para  revisitar  e

alterar obras suas. Dessa forma nunca teremos uma

obra definitiva pois ela sempre estará sujeita ao influxo

da mais nova técnica disponível.

Eu faço parte da Artist’s Rights Foundation (Fun-dação dos Direitos dos Artistas). A idéia é que apenasos próprios artistas tenham o direito de alterar suasobras. Preciso lhe lembrar que não fui o primeiro nemo único a alterar obras originais. Há milhares de anosque temos exemplos de artistas revisitando suas obrasporque mudaram de idéia, ou de conceito. Se você visitar qualquer ateliê, encontrará sempre por lá umquarto nos fundos onde o artista repensa seu trabalho.No cinema, especialmente em Hollywood, o normal é

 ver o estúdio seqüestrar seu filme e mantê-lo bemlonge de você. No caso de Guerra nas estrelas, que foirelançado em 1997 com mudanças, eu finalmentepude colocar na tela um filme que eu não conseguifazer da maneira que eu queria no passado, por falta detecnologia. Especificamente em relação a meus filmes,me sentia sempre tolhido pelas limitações tecnológicas.Algumas das barreiras foram superadas; outras, não.Em 1976, por exemplo, não foi possível colocar Jabba

 the Hut nas filmagens de Guerra nas estrelas. Por isso elesó apareceu finalmente em 1997, na “edição especial”.

Teria sido um esforço enorme, com resultados ques-tionáveis, construir um  Jabba de borracha que malpodia se mexer. A idéia foi abandonada, até que atecnologia para realizá-la ficou disponível. O atualformato do cinema ainda é muito limitado. A visão deum diretor para uma determinada história pode terperfeitas quatro horas de duração, mas, por questõesde mercado, é preciso cortá-la para duas. É por issoque o formato DVD tornou-se tão popular entre ci-neastas. O DVD transformou-se num canal de escapepara a visão original deles.

Em

 1977 o

 senhor

 liderou

 uma

 revolução

 no

som para cinema estimulando a  instalação em cen-

tenas

 de

 salas do

 então

 novo

 sistema

 olby Stereo  tudo

isso para o  lançamento de Guerra nas  estrelas. Hoje

esse  tipo  de  som  virou  padrão  mundial.  A  imagem

“digital” poderá seguir o mesmo caminho?

Sim, nada irá deter o digital. O problema atual-

mente, e que não havia ocorrido nos anos 70 com oavanço do som, é uma resistência conservadora porparte da indústria, especialmente das cadeias exibi-doras, às mudanças. Há um temor generalizado deque a tecnologia ficará obsoleta rapidamente, o mesmotipo de medo que as gravadoras tinham em relação aoCD ou à edição não linear por parte dos montadores,tecnologias que hoje se tornaram padrão. Em dois outrês anos, o digital terá qualidade superior à do filmede 35mm e poderá atender a todas as exigências de um

roteirista ou produtor. Há hoje uma nova geração decineastas que está repensando a imagem a partir dasnovas tecnologias. Serão eles que levarão adiante essarevolução, e não os estúdios, que, claro, virão logoatrás, como sempre.

Um dos argumentos de Hollywood contra o“digital” é a facilidade de difundir uma

 obra através

dessa tecnologia. A pirataria está se tornando um problema cada

 vez maior, especialmente pelo fato de vivermos hoje

num mundo unido pela mesma tecnologia. É impos-sível fazer algo “aqui” sem pensar que isso irá rever-berar “ali”, principalmente se levarmos em conside-ração um grande lançamento como Guerra nas estrelas.O nosso lançamento mundial e praticamente simul-tâneo tem como objetivo minimizar a ameaça de pira-taria. Eu acredito que o digital, na verdade, dificulte apirataria. É mais fácil pagar cinco mil dólares a umoperador de projeção num cinema para que eleprojete o filme na calada da noite em frente a umacâmera digital do que se debruçar sobre um sofisti-cado servidor e tentar quebrar senhas e códigos desegurança sofisticados, dignos de sistemas de comu-nicação militares.

56Continente Multicultural

   F   O   T   O   S  :   D   I   V   U   L   G   A   Ç    Ã   O

Page 59: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 59/100

Quais as outras vantagens do digital?

Você pode até usar o digital para consertarcenas, apagar orelhões da imagem, fios etc. Se umdiretor não consegue permissão para filmar nas ruas deParis, ele pode criá-las digitalmente e ambientar a sua

ação lá mesmo, no computador, com os seus atores.Com o advento do digital, nos últimos 20 anos, orealizador tem a seu dispor ferramentas que viabilizame democratizam o trabalho.

Como  unir  as  novas  ferramentas  de  trabalho

hoje  disponíveis

 ao

 processo

 de

 criação

 que muitas

vezes surge num papel?

Para falar a verdade, eu não sou grande admi-rador do formato narrativo que existe hoje no chamado

“cinema”. Ainda estamos restritos a duas, três horas.Isso me incomoda muito, porque tenho uma tendênciade me entusiasmar por histórias que não cabem nessaestrutura atual. Escrevi o eixo principal da saga 30

anos atrás. Aquele eixo é, em grande parte, o que estásendo feito hoje, ainda, no Episódio 2. Naquela época,eu queria que o design do filme tivesse muito das cines-séries das grandes matinês de sábado, nos anos 30 e40. Minha idéia sempre foi começar pelo episódio 4

(Uma nova esperança). Outro aspecto interessante doroteiro é que, por mais que eu soubesse das difi-culdades técnicas de se realizar um filme desse tipo, eusempre escrevia meu material de uma forma que limi-tes técnicos fossem quebrados. Por eu ter escrito umeixo principal para a saga como um todo, dotadoapenas de perfis dos personagens e suas localizações natrama, muita coisa foi ditada pelas limitações impostaspela tecnologia. Yoda, por exemplo, eu sabia que teriade ser um alienígena pequeno e praticamente imóvel,

uma vez que não seria possível movimentá-lo commuita leveza. Vinte anos depois, Yoda movimenta-se deuma forma outrora impensável. Isso reflete a formacomo a tecnologia muda o trabalho do artista. (KMF).

Seqüência de cenasdo filme O ataque dosclones, no qual Lucaspôde realizar idéiasantes impossibilitadaspor falta de recursos tecnológicos

 A famosa e simpáticadupla de robôs,C-3PO, o magroalto, e R2-D2, obaixinhorechonchudo

Page 60: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 60/100

58 Continente Multicultural

 Joel Silveira

 Associação de idéias1.Qualquer coisa naquela veneranda senhorado nosso soçaite, não sei se por causa dosolhos sempre acesos, me lembra uma corujalésbica – se é que tal coisa existe.

O conto do vigário2.Todo vigário, particularmente aqueles dointerior, com mais de quarenta anos de batinasurrada, tem o seu tanto de vigarista.Ninguém escuta tanta confissão em vão.

Sabedoria felina3.Ah, o desprezo e o sonolento tédio com queos gatos nos olham...

Espelho retrovisor4.Até que é bom de vez em quando olhar paratrás. Mas nunca de supetão. Aos poucos,lentamente, como quem finge não estarolhando...

Constatação5.Todo escoteiro tem alguma coisa dedebilóide. Já as escoteiras são maisespertinhas.

Olhos acesos deuma coruja lésbica

  D  I  Á  R  I  O  D  E  U  M  A  V  Í  B  O  R  A

Page 61: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 61/100

Continente Multicultural 59

 A diferença7.Eu sei, todo mundo sabe, qual a diferença

entre uma banana e uma melancia. O que eunão sei, e duvido que alguém saiba (nem elesmesmos), é qual a diferença entre um“analista político” e um “cientista político”,agora tão pomposamente constantes emnossos jornais.

Tempos insossos8.Não é que meus amigos, os mais antigos,estejam ficando chatos, sem graça e semconversa. Apenas estão envelhecendo e, comotodo mundo sabe, a velhice é essencialmenteenervante, suspirosa, insossa. Pergunto: podeexistir algo mais insípido do que velho falandodo passado, mesmo o mais recente? E velhofalando do futuro? Aí já é pura gaiatice, quiçádeboche.

Que o passado passe9.“O futuro vai chegar”, promete suaExcelência. Nem é preciso tanto. Basta que opassado realmente passe.

De olho no relógio10.Insone, me pergunto: são as madrugadas queestão mais compridas ou são os minutos queestão mais vagarosos?

 A mesinha-de-cabeceira11.Aquele meu conhecido, beato de carteirinha,pergunta-me qual a imagem de santo que eutenho em minha mesinha-de-cabeceira.Limito-me a responder que não tenhomesinha-de-cabeceira.

Planos12.Quando aquele cavalheiro me perguntou o queeu pretendia fazer no futuro, ocorreu-meresponder, embora, por tédio, não o tenha feito:– Já fiz. Meu futuro foi anteontem.

 Joel Silveira é jornalista

Que país é este?6.Perdoem a falta de modéstia, mas o desabafoé sincero: este país não me merece.

Page 62: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 62/100

Anúncio

Page 63: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 63/100

Anúncio

Page 64: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 64/100

Page 65: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 65/100

Em que consiste o método Paulo Freire e quala sua importância atual?

A meta de Paulo era fazer o ensino das cartilhasdo ABC se basear fundamentalmente na linguagem viva. Uma das primeiras tarefas que as equipes deprofessores cumpriam era ir à comunidade-alvo e sa-ber quais palavras diziam respeito às atividades funda-mentais dos alunos. Digamos, tijolo. Então, apresen-tavam a palavra, num quadro-negro ou num projetor,silabicamente – ti-jo-lo – mostrando como a mudançadas sílabas ia dando lugar a novas palavras. E iam-seconstituindo universos, não a partir de um critériomnemônico, mas de um parâmetro concreto, prático,a partir das palavras geradoras.

Obviamente quem tem que dar uma opiniãosobre a importância atual do método Paulo Freire é umtécnico, não sou eu. Mas, empírica e intuitivamente, eudiria que há duas razões para a atualidade do método.

Primeira: ao aumento da nossa população temcorrespondido o aumento da nossa margem de analfa-betos. E o método continua sendo uma boa ferramen-ta educadora.

Em segundo lugar, não é o analfabeto legítimoque mais me incomoda, mas o analfabeto alfabetizado.É o analfabeto letrado. Aquele que não sabe realmenteo que significa a palavra, o que significa pensar. O mé-todo de Paulo não visava a esse tipo de analfabeto.Mas, de toda maneira, à medida que a margem deanalfabetismo real diminuísse, haveria um incrementode atividades de capacidade crítica, e o analfabetoletrado se sentiria, pelo menos, incomodado.

Que  implicações  políticas  o  método  PauloFreire trouxe para a época em que foi implementado?

Eu diria que toda a perseguição a Paulo em1964 era, ao mesmo tempo, altamente injusta e alta-mente justa. Injusta, porque a alegação que a direitaoficializava nas suas comissões de inquérito era a deque Paulo seria um agente do Partido Comunista. Isso

era um absurdo. As relações de Paulo com o PC nun-ca foram boas. Pelo contrário, setores de esquerdadifundiram antes do golpe que Paulo estaria receben-do dinheiro americano e toda uma série de maluqui-ces. Então, por um lado, era altamente injusta toda aperseguição, as prisões, o exílio. Mas, por outro lado,era extremamente justa, porque o que Paulo queria,sem nunca pretender a comunização do país, era tiraro Brasil da pasmaceira terceiro-mundista.

Que  divergências  havia  entre  Paulo  e  esses

setores de esquerda?Para começar, Paulo era um homem católico.

Mas o comunista da década de 60 ainda era literal-mente um ateu violento, porque “a religião é o ópio dopovo”. A segunda divergência era que Paulo não eraum homem político. As suas intenções eram políticas,mas ele não era um homem de práticas políticas. Todoaquele savoir faire político, Paulo não o tinha. Isso atra-palhava as relações com o PC, inclusive com a juven-tude do PC. Um terceiro elemento que me parecemuito importante é que o PC e as esquerdas, em geral,pensavam a cultura em termos didáticos. Fazer teatro,fazer poesia e escrever romances “para ensinar o povoa”. O marxismo ortodoxo implicava uma concepção

Continente Multicultural 63

 F  O  T  O : R  E  P  R  O  D  U  Ç  Ã  O

Page 66: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 66/100

didática da cultura a que se contrapunha uma con-cepção de reflexão sobre a cultura. Estes seriam os trêselementos divergentes entre Paulo Freire e as esquer-

das: o elemento religioso, o fato de que Paulo não eraum homem de práxis política e, sobretudo, a dissençãoquanto à reflexão da cultura.

O que falta para o brasileiro aprender a pensar?É mais fácil entender, antes, por que o brasileiro

domestica tanto o pensamento. Imaginemos um pro-fessor universitário que sabe que, no fim do mês, ga-nhará um salário ridículo. Como não pode sobrevivercom este tal salário, tem que aumentar o número deaulas. Então, passa a dar aulas das 8h até o meio-dia.

Come qualquer besteira, volta a dar aulas às 14h, acabaàs 18h. Simplesmente para poder se sustentar. Então,qual é a disposição que esse camarada tem, ao entrarali, para pensar? Claro que ele vai procurar fazer a coisado modo mais automatizado possível. Se aparece umaluno que está interessado em pensar, ou que tem difi-culdades, o professor não tem disposição anímica paradar conta dessa diversidade. Não é por acaso que opensamento vai se domesticar. Ele é bitolado a partirdo professor, não porque este seja ruim, mas porque ascondições objetivas em que se trabalha o são.

Por outro lado, se você pensa num nível já maisalto de socialização universitária, imaginemos agoraum aluno no início da pós-graduação. Digamos que,

apesar de todos os percalços, esse camarada se dispõea pensar. E se depara com um conjunto de professores,dentre os quais tem que escolher um orientador para asua tese. Todos têm esse hábito de automatização an-terior. Então esse camarada, com 24, 25 anos, no inícioda carreira acadêmica, se dispõe a contestar o que oprofessor diz. Muito provavelmente esse professor não vai aceitar ser o seu orientador. Se esse professor tiverimportância política dentro da universidade, não será afavor, posteriormente, da contratação daquele camara-da. Em outras palavras, aquele germe inicial da con-testação vai estimular a continuação do quadro ruim.

O  Sr.  identifica  algum  sistema  universitário,hoje, no mundo, que pode servir como bom modelo?

Eu conheço razoavelmente bem os sistemasuniversitários alemão e americano. Tomemos o ame-ricano, que está mais próximo de nós. Há uma grandediferença entre o sistema educacional americano e onosso, que é a alternativa que se ofeerta ao aluno: “Oque eu quero fazer? Quero aprender a refletir ou querorapidamente ser um profissional no mercado?” Para is-so, se apresentam diferenças entre universidades maisbaratas, mais fáceis e pragmáticas e outras mais caras emais exigentes, mais reflexivas – e existe um ranking deuniversidades que é feito a cada ano. Em suma, há

meios de você responder ao problema pela diversifica-ção de condições. Eu quero simplesmente ter o meudiploma porque eu sei que o que quero fazer; seragente da bolsa, por exemplo, tem pouco a ver comatividade universitária. Então eu vou para uma uni- versidade barata que exija menos. E isso tudo é sabido.Há condições de opção. Entre nós, há cada vez menospossibilidades de escolha.

E quanto à crise das disciplinas: é outro proble-ma do nosso sistema universitário?

Eu acho o pensamento holístico uma besteira.Mas a crise das disciplinas é uma coisa evidente. Eudiria que o grande desafio é ser capaz de selecionar um

Paulo Freire foi perseguido comosubversivo pela ditadura militar,apesar de ser católico,

divergir dos comunistas quanto àreflexão da cultura, e ser homemavesso à prática política

   F   O   T   O  :   E   D   E   R   L   U   I   Z   M   E

   D   E   I   R   O   S   /   O   G   L   O   B   O

64 Continente Multicultural

Page 67: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 67/100

número “x” de disciplinas que permita constituir umperfil próprio.

Imaginemos alguém que queira ser umhelenista. A primeira obrigação é que tenha um bom

professor de grego. Será importante ele ter, também aolado do grego, um conhecimento de filosofia antiga,que lhe possibilite uma familiaridade suficiente com ospré-socráticos, com Aristóteles, Platão, com os sofistasetc. Até aí ele ainda estará categorizado. Mas ele podesentir a necessidade de ter acesso a antropólogos quetenham trabalhado com temas semelhantes aos tópicoshelenistas, como, por exemplo, a questão da narrativa.Então ele procura o departamento de antropologia edescobre quem são os antropólogos que poderão lhedar uma abordagem, digamos, africanista do proble-ma da narrativa – o mito, a lenda etc. Com isso ele teráuma ponte na sua cabeça que o helenista da geraçãoanterior não teve. E por aí vai. Que coisas mais o nossofuturo helenista pesquisaria, eu não sei.

Mas, dizer que a imagem do novo helenista é ade alguém que domina a ciência da computação, an-tropologia africana e sabe grego é besteira. Não existeisso. A crise das disciplinas não significa que não há apossibilidade de se criar uma nova disciplina que pre-encha os vazios que as existentes têm.

Essa carência das nossas universidades atrapalhaa formação de um pensamento brasileiro do século 21?

O que mais prejudica a formação de um pensa-mento nacional não é simplesmente uma carência ins-titucional. Eu diria que há uma segunda carência muitopior. É a da própria sociedade brasileira. Em quesentido? Eu diria que o que nos caracteriza, a nós todosenquanto membros de uma sociedade de TerceiroMundo, é a insegurança que temos quanto aos nossospróprios valores. A própria insistência do tipo “a tapio-

ca é do Nordeste”, “o meu falar é de tal lugar, isso euaprendi não sei onde”, essa própria necessidade de ma-terializar valores, não é outra coisa senão a insegurançaque você tem em relação aos seus valores. “Eu penso

isso porque estou de acordo com Fulano de Tal”, e aí você precisa achar um nome com bastantes consoantes.

Eu desenvolvo isso no apêndice de um livroque escrevi, chamado Terra ignota: a construção de Os

 sertões. Por conta dessa insegurança, dessa instabilida-de de valores, se um leitor – mesmo um que entendao que está lendo – vir um livro escrito por João daSilva, precisa ir à bibliografia. Se lá houver uns seistítulos em holandês, numa mesma língua – mas, porfavor, que não sejam traduzidos para o espanhol:numa mesma língua e no original – aí então já senteuma certa segurança, uma diminuição de inseguran-ça. Mas se o autor citou esses seis livros para contra-riar a visão do leitor, a insegurança volta. Não que oleitor tenha culpa, é a mesma situação daquele pro-fessor: é o quadro sociocultural em que ele vive quelhe dá essa insegurança.

Um exemplo dessa insegurança é o que acon-tece com as resenhas de livros. Em 1984 publiquei umlivro que se chamava O controle do imaginário: razão e

 imaginação nos tempos modernos. Logo depois fui para osEstados Unidos, onde tive a oportunidade de desen- volver a hipótese do livro formando uma trilogia, quesaiu em inglês. Recebi, então, convite de um editor ita-liano encarregado de fazer uma obra em cinco volu-

mes sobre a história do romance. Ele me pediu umacontribuição especial sobre o controle do imaginário eo romance. O que já é uma coisa que, entre nós, eununca recebi, um convite como aquele. Porque en-quanto esse livro circulou simplesmente em línguaportuguesa, eu não sei sinceramente como é que aspessoas reagiram, porque as resenhas eram muito poli-das: “que livro erudito”, qualquer besteira dessas. Se você for juntar o número de apreciações críticas queisso teve daria umas três resenhas, razoáveis, no máxi-mo elogiativas.

O resenhista tem medo de incomodar o autor?Não exatamente. Na medida em que o livro

não está sendo apresentado como seqüência ou subor-dinação a algo, com o respaldo de um nome bastanteconsonantal, o que é que eu vou dizer em relação a ele?Não é tanto o medo de ferir o autor, é o medo deapostar no cavalo errado. Mas a partir do momentoem que esse negócio esteja publicado no estrangeiro...

Qual é a raiz dessa nossa insegurança?Eu diria que é porque não temos história de um

pensamento reflexivo. Não esqueçamos que esse não éum problema só brasileiro, mas latino-americano, o

Continente Multicultural 65

Euclides da Cunha, emretrato autografado.Toda a sua genialidadeera cortada peloestreitismo dasmatrizes positivistas

 F  O  T  O : R  E  P  R  O  D  U  Ç  Ã  O

Page 68: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 68/100

que remete ao colonizador português e espanhol. O

português e o espanhol, tendo se antecipado a todos os

expansionistas europeus, rapidamente perderam esse

 élan que vai dar lugar ao pensamento moderno, eu

diria, já na segunda metade do século 16 e começo do17, quando já há uma censura, um policiamento muito

forte do pensamento.

Se você pensa em relação à colonização, o nosso

colonizador é todo preso por estruturas inquisitoriais,

censura política. Enquanto todo o mundo moderno

está se armando, a Península Ibérica está reagindo.

Pensa, agora, no Brasil independente. Qual é a

herança de pensamento filosófico que recebemos entre

nós? Nos tempos do Império o que se entendia por

filosofia era simplesmente ecletismo, mistura de Rous-

seau, muita escolástica, muita porcaria. Mistura enor-me de conhecimentos, como uma escola de samba.

Em meados do século 19, a primeira reação

contra a tradição herdada se dá através do positivismo.

Positivismo significa horror à filosofia, porque filosofia

é entendida como essa mixórdia.

Daí vem o meu interesse em estudar Euclides

da Cunha. Toda a genialidade euclidiana termina

sendo completamente cortada por conta do estreitismo

das matrizes evolucionistas, positivistas. Mas o muito

curioso, daí o interesse que eu tenho por ele, é que vocêsente aqui e ali Euclides crispando, quicando diante da

sua própria matriz, e ao mesmo tempo nota que a

repressão é mais forte. Por exemplo, logo na primeira

parte, na “Terra”, ele começa a divagar sobre a origem

do Sertão, se afinal de contas tudo aquilo não era um

continente só etc. Lá pras tantas, umas treze páginas

depois, ele diz: “Deixemos de especulação. Copiemos,

copiemos.” Quer dizer: “vamos aos fatos”.

Mas esse é um dos pontos mais elogiados da

obra Os sertões essa fidelidade ao fato essa isenção

severa.

Pois é, mas essa é a mesma opinião crítica que se

fez sobre a obra, do começo até agora. Como eu tive o

trabalho de ler o acervo crítico sobre Euclides, eu posso

dizer que a crítica, em termos médios, não mudou na-

da. E essas primeiras críticas sobre Euclides já partem

de um negócio enlouquecedor: que ele fazia história e

simultaneamente era um romancista. Como é que ele

pode ao mesmo tempo ser isso e aquilo?Isso está afirmado em Veríssimo. Mas com ele dá

para entender por quê. Porque ele estava tendo uma con-

cepção retórica de literatura que não tem nada a ver com

a concepção moderna de literatura, que supõe um dis-

curso fundamentalmente ligado à experiência do eu. En-

quanto que a concepção clássica, retórica, não se refere à

literatura, mas a belas letras. E belas letras não excluem

história, por exemplo. Belas letras é escrever bem, o que

não define o discurso literário. Então muito provavel-

mente Veríssimo estava pensando em literatura assim.Mas isso se repete até hoje tranqüilamente, vo-

cê encontra historiadores dizendo que a genialidade de

Euclides foi ser historiador e romancista ao mesmo

tempo.

Quando conheceuas intenções políticas

de Gilberto Freyre,a Esquerda pós-64

 tornou-se cegaao seu valor

66Continente Multicultural

Page 69: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 69/100

Gilberto Freyre preferia  ser  chamado de umescritor a ser considerado sociólogo. Você tem reservasquanto a essa postura de Freyre, não tem?

Paulo Freire tinha razão em me aconselhar a lermais Gilberto Freyre e menos Rui Barbosa. Se eu metornasse leitor de Rui, estaria aprendendo um discursoretórico vazio. Nesse sentido Gilberto Freyre tinhauma grande qualidade. Mas o que eu digo é que paraas ciências sociais – não é por acaso que Gilberto fazia

tanta questão de ser chamado de escritor – o discursode Freyre era uma maneira de se defender, porque nãotinha nenhum rigor conceitual. Gilberto realmenterepresentava um passo adiante, na argumentaçãoretórica. Mas isso não quer dizer que a linguagem e oestilo de Gilberto não me pareçam criticáveis por outrarazão. Se eu quero ser sociólogo ou antropólogo eunecessito de um rigor conceitual, o mesmo rigor doqual eu obviamente devo fugir, como o diabo da cruz,se eu quiser ser um romancista.

A  postura  de Gilberto  é  um mecanismo  dedefesa?

É. Porque já que ele não opta por uma redeconceitual, será mais difícil tomá-lo como discípulo deA, B ou C. E mais fácil tomá-lo como gênio. É ummecanismo de defesa facilmente identificado, mas quenão é discutido. Porque aí é que está: faz parte da nossainsegurança, quando você quer louvar uma figura,convertê-la em mito. Intocável. Você não pode criticar.Inúmeras pessoas aqui no Recife me vêem com mausolhos porque eu critico Gilberto. Não critico Gilbertopor questões pessoais, isso é o que menos importa. Euo critico porque eu acho que ele é criticável.

Nem sempre o mito de Gilberto foi intocável.Por muito  tempo  ele  foi  severamente  criticado  porsetores de esquerda. Mas, hoje em dia, o pensamentode Freyre vem sendo revalorizado. O Sr. considera es-sa revalorização mais crítica e menos mistificadora?

Não. A fortuna crítica de Gilberto está para serfeita, e essa mistificação não ajuda. Apesar de haverexceções, de um modo geral, essa revalorização con-

tinua sendo do mito.Eu diria que a revalorização de Gilberto tem a

 ver com o fato de que no pós-64 houve uma repressãoa ele generalizada, porque as intenções políticas deGilberto se tornaram conhecidas. Repressão por umafrente de esquerda cega que não reconhecia inclusive oque era reconhecível, de valor, na obra de Gilberto. Àmedida que essa polarização direita-esquerda se per-deu em termos conceituais, estruturas muito rígidas,como a repressão a Gilberto, por exemplo, se afrou-xaram, permitindo que ele continue tendo o prestígioque tem, ora como figura mitificada, ora como fenô-meno revalorizado.

Continente Multicultural 67

Gilberto Freyre representava um

passo adiante na argumentaçãoretórica; fazia questão de ser chamado de escritor porque não

 tinha nenhum rigor conceitual parao discurso de ciências sociais

 F  O  T  O S : R  E  P  R  O  D  U  Ç  Ã  O / F  O  L  H  A I  M  A  G  E  M ; R  E  P  R  O  D  U  Ç  Ã  O

Page 70: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 70/100

68 Continente Multicultural

Interior da igrejamatriz de São

Caetano da Divina

Providência, patronode Odivelas

 A 120 km deBelém do Pará, uma festa junina com boi de quatropernas e pierrôs-arlequins

   F   O   L   C   L   O   R   E

Dança dos Pirrôsdo Boi Tinga, combatedor-mascote

Gabu ao fundo

  divina

Farra

Texto: Heitor e Silvia Reali

Fotos: Heitor Reali

Page 71: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 71/100

Continente Multicultural 69

foguetório anuncia que hoje ele sai. Tudo pode

acontecer. Não houve ensaio, nada é cronome-

trado. Ninguém compete. O pivô dos festejos é o Boi

que está léguas longe dos simulacros de festas progra-

madas para consumo turístico. Não deve estar muitolonge do paraíso, mas está a 120km de Belém, na ci-

dade de São Caetano de Odivelas.

Os navegadores portugueses careciam de

originalidade na hora de batizar nossas cidades. Ou

era o nome do santo do dia, ou o da cidade de onde

partiram. Aqui, em 1735, na dúvida, colocaram os

dois juntos, e o santo ficou lado a lado com um nobre

safado de além-mar. Conta-se que todas as noites,

quando o príncipe saía para ver uma de suas concubi-

nas, à sua resignada esposa só restava suspirar – “Oh!

Ide vê-las!”Dando nome aos bois, o daqui chama Tinga,

algunha de um famoso “boi garanhão” marajoara. Foi

da ilha de Marajó que os compadres Laudelino Zefe-

rino e Tito Dalmacio trouxeram o esqueleto de uma

cabeça de boi achado no pasto, quando voltavam de

uma pescaria. Tiveram a idéia de levá-lo a Odivelas

para os festejos joaninos. Mandaram confeccionar o

boi o artesão Raimundo Cunha. Hoje, depois de 65

anos de apresentações, do adereço original só sobra-

ram os chifres e parte da queixada: o resto foi bem re-mendado e ainda ganhou sete metros de veludo novo

por pele. Boi macho, único de quatro pernas, de ador-

no só uma fita no pescoço. Afinal, boi de saia todo en-

feitado de babado e baboseira, com duas pernas, não é

boi, é galinha, provocam os odivelenses.

Semanas antes da festa se dá o “cartiá”: José

Zeferino, herdeiro do Boi, percorre as casas de porta

em porta e em troca de pequena contribuição garante

folia em domicílio. Nesse dia, avivados pelos rojões, os

integrantes do cortejo se reúnem na casa do boi.

Chegam os músicos, os “Tripas” – as pernas do boi –,o “Buchudo”, embruxado com sua roupa cheia de

trapos e tralhas, e o “Cabeçudo”. Este se parece com

um personagem da trupe catalã  El Commedians, da

qual aqui nunca se ouviu falar. Lembra que um dia

alguém, não tendo com que se fantasiar, pegou uma

enorme caixa de papelão que lhe cobria até a cintura,

envolveu os quadris com um paletó, pintou uma cabe-

çorra e pronto: criou o personagem. Quando o Cabe-

çudo dança, as mangas soltas e as pernas rodopiam

aleatórias, parecendo um dervixe pirado. Além de tu-

do tem o Pirrô, (pronuncia-se “pirru”). Talvez, desse

saco de gato brasileiro, sempre alegre, gostoso e infan-

til, saia a síntese da nossa criatividade. A Commedia

O

Page 72: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 72/100

70 Continente Multicultural

 dell’arte legou ao mundo dois personagens distintos,

Arlequim e Pierrô. Arlequim, descendente de uma re-presentação medieval do diabo, infernizava o doce e

alvo Pierrô. Já o Pirrô odivelense é puro deleite e delí-

rio onírico. Máscara sibilina, com nariz de Pinocchio,

bigodinho e costeleta de malandro, deixa ver uma aba

de boné. A máscara fica presa à cabeça por um óbvio

barbante que vai do nariz à nuca. A roupa grandalho-

na lembra um Arlequim espandongado. A coroa arre-

mata: cônica, brilhante de lantejoulas, termina em lon-

ga haste enfeitada de flores e fitas coloridas que ondu-

lam ao ritmo do dançarino. “Como o suor do rosto es-

bandalhava a máscara bicuda, era preciso colocar umatoalha. Alguém achou bonito e assim ficou”, conta

Rondi Padilha, dono do Boi Faceiro.

As crianças bolaram o Faceiro Júnior e o Ma-

lhadinho, e a idéia da lhama veio embrulhada no papel

de chiclete. Os outros bichos, nunca vistos por aqui,

chegaram de uma Arca de Noé surrealista: o caribu, o

dinossauro, o veado e a zebra.

Nesse mundo que não perdeu a inocência,

ninguém suspeita ter tamanha arte. O povo escolta a

alegria, e meninos batedores ladeiam os brincantes

com bandeiras listradas. Tudo parece caótico, mas o re-

sultado é pura harmonia. De longe a procissão lembra

cobra-coral ziguezagueando pela cidade, enquanto as

crianças, zaranzando, entram e saem das casas, infor-mando sobre os fatos da festa. O cenário vai mudando,

ora rua, ora trilha, terreiro, chão de pedra, chão socado.

Quando pára a música, saem os Tripas extenuados, o

Boi “desvive” e as crianças correm para lhe dar capim

e revivê-lo. Aos brincantes é oferecido um “manjar”:

mingau de água, aveia e canela, pois é preciso garantir

sustança para tantas horas de reinação.

O poeta disse que o belo desespera. O extraor-

dinário dessa festança carece ser decifrado, mas não dá

para nomear tanto magismo. A apoteose é a liberdade

e puro apetite de viver. In dulci jubilo! Quando Deusquer brincar vem aqui.

Heitor Reali é engenheiro e fotógrafo. Silvia Reali é artista plástica

O artesão Antonio José Monteiro

de Oliveira,mais conhecido como

Cação, molda comzelo a máscaro doPirrô, sobrepondo

 várias camadasde jornais e

 goma de mandioca

No bairro de VilaNova em S. C. de

Odivelas,os chapéus das

fantasias já foramlavados e postospara secar no diaseguinte da folia

Page 73: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 73/100

Continente Multicultural 71

1. Porto de S. C. deOdivelas visto dointerior do mercado

2. No terreiro de ummorador que pegou o“cartiá” para ter foliaem domicílio,apresentação do BoiTinga

3. Crianças servem de“batedores” do Boi

Faceiro

4. O Cabeçudo, cujafantasia lhe veste atéa cintura

Hipertexto: Samba do boi(Composição do maestro odivelenseMarcimiano Monteiro da Silva)

Senhora dona de casaSaia fora vem olhá,Que o Boi Tinga vem chegando aqui

Na frente de seu lar

Vaqueiro corre, pegaA vara de cundãoAmansa o Tinga que a “mossada”Qué brincá vibrandoCom “aplaudio” de mão

PirruBrinca pelo amor eA mossada recebe amorosa

Um dia alguém pegouuma enorme caixa depapelão que lhe cobriaaté a cintura, vestiu um

paletó, pintou umacabeçurra, e pronto:criou o Cabeçudo

1

2

3

4

Page 74: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 74/100

72 Continente Multicultural

Diante de tantas e tão importantes interrogações suscitadaspelo desenvolvimento científico e tecnológico, seria

moralmente justificável, praticamente factível ou juridicamenterazoável a determinação de limites para a pesquisa científica?

Hugo Fernandes Júnior 

A ciência é uma

deusa amoral?

   F   O   T   O  :   R

   E   P   R   O   D   U   Ç    Ã   O   /   A   E

 Josef Mengele chefioualguns dos horrores das

pesquisas nazistas deeugenia e testes de

armas biológicas emcobaias humanas, que

 teve, nos Estadosnidos, desdobramentos

sinistros, como a queanteve homens negrosdo Estado do Alabama

durante 40 anossem tratamento e

informações sobre a

sífilis, para que seobservasse a “histórianatural” da doença

  B  I  O  É  T  I  C  A

Page 75: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 75/100

Continente Multicultural 73

m 1947, o físico J.R. Oppenheimer, um dosprincipais participantes da equipe científica que

desenvolveu a bomba atômica, ao referir-se à ameaça dedestruição representada pelo domínio do processo de

fusão nuclear, declarou que “...os físicos conheceram opecado; e esse é um conhecimento que jamais poderãoesquecer.” Aludia o grande cientista à insistência hu-mana em provar o fruto proibido da “árvore da ciênciado bem e do mal” de que nos fala o Livro de Gênesis.

Mas a Segunda Grande Guerra não repre-sentou a perda da inocência apenas para os físicos. Os20 médicos julgados em Nurenberg por protagoni-zarem um dos mais notórios episódios de abusoscontra os direitos humanos também lhes faziam com-panhia. A Medicina tinha as suas vestes brancas man-chadas não com o sangue dos milhões de civis e mili-tares mortos no conflito, mas pelo apoio ideológico aonazismo e a sua teoria de eugenia, bem como pela con-tribuição “técnica” nos crimes de esterilização em mas-sa, eliminação dos “menos capazes”, experimentaçãonão voluntária, sem contar as execuções, torturas eexperimentos de guerra bacteriológica.

Quebrava-se, dessa forma, a pretensa harmoniaexistente entre, de um lado, a ciência e a técnica e, deoutro, o ideal de progresso humano. Essa harmonia,

corolário do Projeto Iluminista, tornara-se uma dasbases do pensamento moderno, e ensejou a elevação daCiência ao patamar de Deusa, o que possibilitaria odesenvolvimento material e moral do Homem pormeio do conhecimento.

A noção de que ciência e técnica não eramneutras consolidou-se no período do pós-guerra. Aameaça de aniquilação da vida na Terra, como con-seqüência de um confronto nuclear, e de destruição domeio ambiente, resultante da exploração predatória danatureza em nome do progresso, contribuiu decisiva-

mente para tanto.Adicionalmente, a idéia de que a utilização abu-

siva de sujeitos humanos em pesquisas devia-se a uma“anomalia” do horror nazista passou também a serquestionada com a revelação de numerosos ensaios,dentre os quais destaca-se o “caso Tuskegee”. Nessa“pesquisa”, levada a efeito por 40 anos (de 1932 a1972), homens negros do Estado do Alabama forammantidos sem tratamento contra a sífilis e sem infor-mações sobre ela, para que se observasse a “histórianatural” da doença. Destaque-se que um tratamentoeficaz contra o mal, à base de penicilina, já se encon-trava disponível desde 1945, mas não foi utilizado nogrupo por decisão dos pesquisadores. Um número

expressivo de pessoas morreu em conseqüência diretaou indireta da doença, bem como transmitiu o mal asuas esposas e prole. No período citado, entretanto,treze trabalhos foram publicados sobre a “pesquisa”

sem que nenhuma sociedade médica apontasse a fla-grante violação dos direitos humanos que se cometia.Outras situações, aparentemente não tão

agudas como as citadas, concorreram igualmente paraque o suposto papel libertador e progressista da ciência viesse a ser questionado. Frutos da expansão do conhe-cimento das biotecnociências, diversas possibilidadesse abriram para a humanidade, mas seriam todas elasdesejáveis e moralmente aceitáveis? A utilização desseconhecimento e das tecnologias dele advindas propor-cionaria mais bem-estar e qualidade de vida para ahumanidade? E o que dizer da distribuição das benes-ses do progresso entre todos os habitantes do planeta?

Tomemos alguns exemplos. O avanço no co-nhecimento sobre a fisiologia humana e sobre diversassubstâncias naturais ou obtidas em laboratório, bemcomo o desenvolvimento da eletrônica, da mecânica ede novos materiais possibilitou a construção de apa-relhos capazes de mimetizar funções orgânicas im-prescindíveis à atividade dos sistemas cardiorrespi-ratórios e renais, principalmente, e, com isso, ao

“prolongamento da vida”. Esse inegável progressotrouxe consigo, contudo, inevitáveis dúvidas sobre oque é mesmo a “vida” e o que é “estar vivo”, como nofamoso caso de Karen Ann Quinlan. A eutanásia é umrecurso lícito para a interrupção de “vidas” que seprolongam apenas pela manutenção artificial das fun-ções orgânicas? Se a resposta for positiva, a quem ca-beria a decisão de “desligar os aparelhos”? Ao própriodoente, à família ou aos profissionais de saúde?

Do mesmo modo, o aperfeiçoamento da técnicacirúrgica, da tecnologia e das drogas imunossupres-

soras tornou possível a realização de transplantes deórgãos, trazendo esperança e alento a milhares dedoentes renais, cardíacos, pulmonares e hepatopatascondenados a definhar progressivamente à espera damorte. Os transplantes, todavia, não se fazem sem queexistam doadores e, inevitavelmente, algumas questõesmorais e legais foram argüidas. Em que situações e emque momento é lícita a retirada de órgãos para trans-plantes? Apenas após a cessação da atividade cardior-respiratória? Ou seria válido o critério da “morte ence-fálica”? É necessária uma manifestação explícita do po-tencial doador, ou a sua não-oposição pode ser consi-derada aquiescência implícita? Qual o critério para de-cidir a destinação dos órgãos disponíveis? Deve-se obe-

E

Page 76: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 76/100

74 Continente Multicultural

decer a uma fila por ordem de chegada ou seria justo

um critério de “melhor aproveitamento” ou “maioreschances”? A quem caberia resolver tais questões?

Outra problemática não menos complexa ecandente é derivada do aperfeiçoamento da técnicacirúrgica e da assepsia, assim como dos conhecimentosobstétricos: a do aborto. Tida antes como um procedi-mento de risco, marginal e sujeito a grande letalidade,a interrupção cirúrgica da gravidez passou a ser algobastante simples, seguro e factível na grande maioriados casos. À velha contraposição entre direitos da mu-lher e do nascituro, porém, veio agregar-se a discussãomoral do aborto eugênico, diante do desenvolvimentode técnicas que tornaram possível a previsão daocorrência de malformações genéticas ou congênitas.

Não menores são as polêmicas que envolvem asituação inversa à do aborto: a das técnicas de repro-dução assistidas. Apresentadas amiúde como técnicasfantásticas, envoltas em uma aura de heroísmo,pioneirismo e de grande eficácia, essas práticas rece-bem, por outro lado, numerosas críticas por conta deserem pouco avaliadas, de baixa eficácia, extrema-

mente onerosas e por exporem as mulheres a situaçõesindesejáveis, como a da administração de doses eleva-das de hormônios e a das prenhezes gemelares. Ade-mais, no caso da fertilização in vitro (FIV), recebemcríticas de cunho moral a “redução embrionária” e os“embriões excedentes”. A primeira expressão constituieufemismo criado para denominar o abortamento departe dos fetos implantados no útero, procedimento

que garante a eficácia do processo de fertilização. Já a

segunda concerne aos embriões gerados em labora-tório e abandonados congelados pelos doadores deóvulos e espermatozóides ante o sucesso ou insucessoda FIV. O que fazer com tais embriões? Não menoscontroversas são as situações decorrentes das possibili-dades abertas pela técnica, relativas à “barriga dealuguel”, doação de óvulos e sêmen, e de gravidezes demulheres que não apresentam problemas para empre-nhar, mas que buscam uma “produção independente”,ou de lésbicas, que não querem contato sexual com ogênero masculino.

A engenharia genética, incluída a clonagem,por sua vez, parece ser fonte inesgotável, e atualíssima,de contestações. A despeito do tratamento sensacio-nalista – e, freqüentemente, até mesmo oportunista –dado pela mídia, o tema das técnicas de bioengenhariaenseja uma série de considerações altamente relevan-tes. Seria lícita a prática da eleição do gênero do feto,ou de qualquer outra característica fenotípica? E aidentificação ou mesmo seleção do indivíduo a partirde determinado genótipo? É aceitável que tecidos em-

brionários sejam utilizados em pesquisas? Qual osentido de se ter um filho para que sirva como poten-cial doador de medula óssea para um irmão com leu-cemia? Seria justificável a clonagem do próprio indi- víduo para utilização futura como “peça de reposição”?Haveria fundamento moral para que o genoma, ouuma seqüência de ADN, de uma determinada espécieseja objeto de patente mercantil?

Perpassando todas essas conjunturas, semdúvida alguma conflituosas, encontra-se a questão da justiça e da distribuição equânime dos frutos do de-senvolvimento científico. É um fato inquestionávelque a grande maioria das mortes ocorridas em todo omundo é devida a doenças redutíveis mediante o usode tecnologias simples, baratas e já conhecidas hátempos. Também não causa reparo o fato de que apesquisa de drogas e vacinas eficazes, ou mais eficazes,não atrai o complexo médico-industrial, pois, comoescreveu o correspondente de um grande jornal, “émais lucrativo ajudar um norte-americano obeso aperder alguns quilos ou um europeu idoso a manter

uma ereção do que salvar um africano da tuberculose”.Diante de tantas e tão importantes interro-gações suscitadas pelo desenvolvimento científico etecnológico, é forçoso que se indague: seria moral-    F   O

   T   O  :   D   I   V   U   L   G   A   Ç    Ã   O   /   A   E

Não menores são aspolêmicas que

envolvem a situaçãonversa à do aborto: a

das técnicas deeprodução assistidas,com a administraçãode doses elevadas de

hormônios, artilização in vitro e as

chamadas“barrigas de aluguel”

Page 77: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 77/100

Continente Multicultural 75

mente justificável, praticamente factível ou juridica-

mente razoável a determinação de limites para apesquisa científica?

É importante destacar que, no Brasil, assimcomo na maioria dos países democráticos, a liberdadede expressão científica é garantida pela ConstituiçãoFederal. Não obstante, deve-se considerar que talliberdade comporta exceções jurisprudenciais e legais,baseadas no princípio da razoabilidade, bem comopode ir de encontro a outros direitos democráticosprevistos igualmente na Carta Magna.

Os que defendem a tese de que não se poderestringir a atividade em ciência básica argumentamque, além de antidemocrática, a imposição de limites éineficaz. Como alternativa aduzem que, em determi-nados casos, dever-se-iam estabelecer moratórias paraas aplicações práticas derivadas dos conhecimentosproduzidos. Ora, tal alegação é débil, uma vez que aineficácia também pode ser argüida em relação ao uso

do conhecimento derivado da pesquisa básica. Ade-mais, ao que se saiba, não há exemplo de nenhumaaplicação de conhecimento que tenha sido voluntaria-mente abandonada, a não ser quando o seu uso provouser ineficaz ou antieconômico.

Assim, tornam-se legítimos a limitação, o con-trole e até mesmo a proibição de pesquisas e aplicaçõessobre as quais pairem dúvidas relevantes e bem fun-damentadas por parte da comunidade científica e daopinião pública, e que possam representar riscos moraisou biológicos, incluindo-se dentre estes os ambientais.

Para que os limites se façam efetivos é defundamental importância a ação em 3 níveis distintos:o autocontrole dos próprios cientistas, o controle jurí-dico e o controle social.

O autocontrole dos cientistas, embora impor-

tante, tem se mostrado de todos o mais complacente,tendo em vista que diz respeito à própria comunidadede interessados no desenvolvimento das pesquisas oudo uso de determinadas tecnologias. Os limites impos-

tos pelas normas deontológicas são, sem dúvida, neces-

sários, mas, de forma alguma, suficientes. Exemplosde como o autocontrole pode ser exercido com com-placência são os conselhos de fiscalização profissional,muitas vezes condescendentes na fiscalização e no jul-gamento de seus pares.

 Já o controle jurídico, conquanto essencial numcontexto democrático, é, via de regra, de aplicabilidademais lenta. Os prazos para a elaboração de leis são emgeral longos, dadas as características da atividade par-lamentar. Desse modo, comumente, as leis não ante-cedem aos fatos, mas configuram respostas da socie-dade a fatos já estabelecidos. É bem verdade que a jurisprudência, fonte importante do Direito, tem umpapel imprescindível no estabelecimento de limites,muitos deles não clara ou objetivamente previstos nalegislação. Contudo, observa-se que, mormente noBrasil, o Poder Judiciário demonstra dificuldades emtratar de temas com alta densidade científica.

Por fim, encontra-se o controle social, a serexercido em fóruns adequados, em que a sociedade ci- vil se faça representar em toda a sua diversidade: polí-tica, religiosa, ideológica, social, corporativa e de inte-resses. Tais fóruns têm representado em muitos lugaresdo mundo efetivos espaços de diálogo e negociaçãoentre os que pensam diferentemente. Seus relatórios erecomendações sobre questões polêmicas sob a óticamoral ou biológica têm cumprido um papel funda-mental para a fixação de limites à atividade científica,seja subsidiando a atuação do Poder Executivo, sejaorientando a ação legiferante, ou, ainda, fundamen-tando doutrinariamente as decisões do Judiciário.

Para nós brasileiros, o estabelecimento de umcontrole social efetivo sobre a atividade científicareveste-se de um grande desafio, tendo em vista nosso

histórico de corporativismo e de exclusões: social,educacional, cultural, de informação e de participação.

Hugo Fernandes Júnior é medico sanitarista,especialista em Bioética

 A engenharia genética, incluindo clonagem, parece serfonte inesgotável, e atualíssima, de contestações. A par do

 tratamento sensacionalista dado pela mídia, o tema das técnicasde bioengenharia apresenta uma sériede considerações altamente relevantes

Page 78: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 78/100

76 Continente Multicultural

Uma das melhores frases sobre morte é a quediz: “Nossa repugnância à morte cresce

na mesma proporção que nossa consciênciade ter vivido em vão”

Daniel Piza

obre a morte, o escritor francês GeorgesPerec não poderia ter publicado um “manual

do usuário” como fez com a vida. Não há modo deusar para a morte que seja útil, nem mesmo ironi-camente. Vida tem avesso; morte, não. É curiosoque, quando alguém morre, costumamos ouvir:“Fazer o quê? É a vida...” Não, é o fim dela. E amorte vem sem manual tanto para quem morre co-mo para quem perde o ente querido. Ela é tão in-compreensível que esse ente fica ainda mais queridodepois de morto, como as telas de um grande pintorse valorizam depois de seu obituário.

Mas não é de hoje que se sabe – ou não sesabe – tudo isso. Desde Montaigne, no final do sé-culo 16, pelo menos, a morte já deixou de ser umagarantia de passagem para a eternidade, decorada à

moda de cada religião. Em seus  Ensaios, o sábiofrancês, começa escrevendo que a filosofia deve en-

sinar o homem a “aprender a morrer”, invocandopoetas greco-latinos da antigüidade; com o tempo,porém, vê que o homem só pode mesmo é tentaraprender a viver, e diz, entre outras sabedorias: “Umhomem pode pelo costume fortificar-se contra a dor,a vergonha e acidentes semelhantes; mas, quanto àmorte, só a experimentamos uma vez, e somos todosnovatos quando a ela chegamos.”

Não há “convívio” pacífico com a morte, pormotivos que a etimologia já explica. Ainda assim, ohomem moderno insiste em aprender a morrer, emlidar com a morte de algum jeito que a adie ou aenfeite. Mesmo um suicida muçulmano precisaacreditar que será recompensado com um paraíso

S

Morte a débito

Page 79: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 79/100

repleto de odaliscas depois de abalroar uma torrecom milhares de pessoas dentro. No chamado

mundo ocidental, diversas tendências de comporta-mento indicam que, se a expectativa de vida me-lhorou em tantas latitudes, a expectativa de mortenão se atenuou em nenhuma longitude. O serhumano ainda não está satisfeito em viver 70, 80anos em média, mais que o dobro do que vivia háapenas um século. Ao contrário: quanto mais vive,mais se ilude com o culto da juventude, com o so-nho da eternidade. E tomem cirurgias, botox, mo-das e modismos. Uma pessoa de mais de 40 anos,ou até 35, só é considerada bonita se parecer termenos idade do que tem.

Uma das melhores frases sobre morte (comosobre tantos assuntos) é do ensaísta inglês William

Hazlitt, que, num texto de 1815, Sobre o amor à vida, já escrevia:“Nossa repugnância à morte crescena mesma proporção que nossa cons-

ciência de ter vivido em vão.” Issonada mais é do que dizer carpe diem,aproveite o tempo; mas o homematual, embora viva cada vez mais, pa-rece ter cada vez menos tempo. Suasensação é a de que faz coisa atrás decoisa e, no entanto, está sempre de-

 vendo. Como ouve nos comerciais deTV que deve ser profissional, mãe eesposa, além de fazer reeducação ali-mentar, largar de fumar, não perder omais novo point da cidade ou o maisrecente filme de não-sei-qual ator eainda cultivar um tal de ócio criativo,a mulher contemporânea nem sabemais o que faz por prazer ou o que fazpor obrigação. Teme, por isso, a ve-lhice, com suas doenças, sua lentidão,suas rugas – e a proximidade desteNada inevitável chamado morte.

Os tempos, por sinal, pedem

nova versão de A morte de Ivan Ilitch,a novela de Tolstoi. Se no livr o per-sonagem vive uma espécie de morte-em-vida, de papel social que se revelapapel em branco, sua atualização pe-diria uma vida cheia de atividades, namaioria egoístas, “muita adrenalina”,notícias contínuas pela Internet e do-ses cotidianas de vitamina contra o

estresse, quando não de calmantes e estimulantes.Uma vida tão vã quanto a de seu antecessor russo

ou a daquele Macbeth, sem o ouvido de Macbethpara a música das palavras. Daí sua crença em estar“pronto para a morte”, como se isso fosse possível.De alguma coisa se morre, diz o médico SherwinNuland em seu fascinante Como morremos, umadescrição fisiológica do que é a morte, seja precoce,seja tardia.

Outras tendências atuais aparentemente con-tradiriam isso, mas pense um pouco. Os debatesmorais sobre aborto, eutanásia e clonagem termi-nam, não raro, mostrando que tantos os “prós” co-mo os “contras” pensam de modo parecido: a vida éalgo “sagrado” e por ela se deve fazer o possível.Mas há uma diferença menor, nem por isso menos

Continente Multicultural 77

 Jack Kevorkian,conhecido comoDr. Morte por defender a eutanásia

 F  O  T  O : J  E  F  F K  O  W  A  L  S  K  Y

 / A F P

Page 80: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 80/100

78Continente Multicultural

importante. É que os que advogamum arbítrio maior do ser humanosobre a vida preferem levar em contaum dado relativo, o da qualidade de

 vida. Os pró-aborto dizem: “Se vocênão tem condições de criar decente-mente um filho, revogue o processo vi-tal em seu estágio inconsciente”. Ospró-eutanásia dizem: “Se você vai viver

 vegetando, com o mínimo possível deprobabilidade de sobreviver dignamen-te, para que manter os órgãos estimula-dos por aparelhos a custo de outro?” Ospró-clonagem dizem: “Se células e teci-dos podem ser utilizados para fins tera-pêuticos, resolvendo problemas comoas filas dos transplantes, por que não?” De algum mo-do, algum “limite” pode ser estabelecido.

Os que são contrários a essas liberalidadescostumam invocar o seguinte argumento: quem dizqual é esse limite? Que direito tem o ser humano, ouum indivíduo, de determinar o ponto de virada emque a vida se faz, em que o aparentemente inanima-do ganha alma? O feto de um mês teria “vida hu-mana”, mesmo que não possua consciência de sua

própria existência. O sujeito em coma no hospitalpode “voltar” a qualquer instante, por algum cami-nho que a ciência ainda não vislumbra. A reprodu-ção de células humanas interfere no curso naturaldas coisas, dando espaço para o indivíduo fazeropções que causariam grandes problemas éticos esociais, como escolher que seu filho tenha olhosazuis e 1,85m de altura.

A questão parece atual, mas é antiqüíssima.Uma espiada na novela O clone resume o senso co-mum sobre essas questões. O médico autor da clo-

nagem, dr. Albieri, não passa de um vaidoso queacha que pode ser Deus. Como a dependência quí-mica, tal desejo traveste apenas egoísmo e fraqueza,a falta do referencial religioso; é um desejo de poder,de onipotência. Uma vez que a humanidade traz emsua memória recente a defesa nazista da eugenia,qualquer tipo de alteração nos ditames da mãe-natu-reza não será apenas antiética, será também diabó-lico. Esse é o argumento conservador.

Mas, por mais que seja quase universal o te-mor de que su usem tais tecnologias em prol deideologias discriminatórias, convém lembrar que oslimites são flexíveis até certo ponto. Se não tivessesido assim ao longo da história, hoje, boa parte das

sociedades não desfrutaria de uma vida mais longa emais saudável; as vacinas não teriam evoluído; malescomo a Aids e o câncer não poderiam ser atenuados;controles de natalidade não teriam impedido o cres-cimento em progressão geométrica da sociedade atéo esgotamento da própria natureza. Qualidade de

 vida é um conceito subjetivo, mas obviamente oaumento da duração da existência e a possibilidadede redução dos sofrimentos físicos são conquistas

inegáveis. Mesmo os que falam em nome de Deusou da natureza não podem negar que tais avanços,ainda que não garantam, ao menos criam uma pos-sibilidade de respeito à complexidade da natureza eà materialidade da vida.

Mas eis outra questão difícil. Se podemosestabelecer alguns parâmetros – um compromissoda pesquisa tecnológica com o desenvolvimento sus-tentável e o respeito fundamental à individualidade–, não existe a certeza de que a humanidade saberásegui-los; antes ainda, de que saberá defini-los. Um

alerta sobre a tosca faculdade do ser humano de estarà altura de seus próprios conceitos de dignidade edecência é o que qualquer cético depois e antes deMontaigne deve fazer.

Sou, para voltar aos exemplos, a favor do abor-to, da eutanásia e da clonagem terapêutica, serespeitadas as premissas condicionais. Acho que oaborto até três meses de gravidez tem sentido, porqueaté aí não se terminou a formação da estrutura básicado ser humano; que a eutanásia é um direito do indi-

 víduo, eventualmente transferido à família, quandoas chances de reversão são mais que remotas; que aclonagem de células-tronco para formar bancos deórgãos e tecidos mais acessíveis e democráticos é um

Dr. Albieri, vivido por  Juca de Oliveira na

novela O clone,não passa de um

aidoso que acha quepode ser Deus

   F   O   T   O  :   R   E   P   R   O   D   U   Ç    Ã   O

   /   A   E

Page 81: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 81/100

Continente Multicultural 79

alento para muita gente. Mas obviamente repudio asclínicas que realizam aborto por atacado, temo osmédicos e os planos de saúde que convenientementefazem menos do que podem por uma vida terminal,tremo ante a idéia de um casal determinando as ca-racterísticas exteriores de seus filhos. É o problemado progresso: com o carro e a indústria, as socieda-des ganharam riqueza e conforto, mas também po-luição e congestionamento.

Mesmo assim, é o que temos. De certa for-ma, fazemos “interferências na ordem natural” otempo inteiro. A própria existência do Homo sapiensàs vezes parece uma ofensa aos ciclos da natureza.Mas considere a questão da gravidez. Como notouH.L. Mencken, podemos evitá-la com métodos di-

 versos: matemáticos (a “tabelinha”), físicos (cami-sinha, DIU etc.) e químicos (pílula). Por que não“evitá-la” depois da concepção? Mencken pergunta

se seria porque a alma invade o ser humano já naconstituição do zigoto... De algum modo, toda ciên-

cia não deixa de ser uma forma de o homem lidarcom a natureza, de agir sobre ela; (se não pode“controlar”, tente ao menos monitorá-la).

Trata-se, portanto, de uma condição humana.Precisamos estabelecer – e sempre re-estabelecer ou,então, restabelecer – os tais limites. Não existedefinição pura e simples, assim como não existe olivre-arbítrio pleno e simples. Em face da inevita-bilidade da morte, fazemos o que podemos, cada um– ou cada cultura – com suas gradações. “O suicídioé a única questão filosófica”, escreveu Camus, masisso não é verdade: se o certo fosse todos nos ma-tarmos, nem sequer haveria questões filosóficas. Oque não podemos é optar por não morrer.Lembramos o verso da grande Emily Dickinson:“É o fato de ter um fim/ que faz doce a vida.” Se amorte tivesse serventia, se fosse um crédito, vivernão teria exigências.

“Sou a favor do aborto e da clonagem terapêutica,mas tremo diante das clínicas que fazem abortopor atacado e do casal determinando as

características externas de seu filho”

 Autor de A morte de Ivan Ilitch,o escritor russoLeon Tolstoi emseu leito de morte

 F  O  T  O : R  E  P  R  O  D  U  Ç  Ã  O

 / A F P

Daniel Piza é jornalista

Page 82: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 82/100

e me pedissem, de repente, para citar dois fatos

sociais positivos do mais sangrento dos séculosda humanidade, o século 20, eu mencionaria ime-diatamente o avanço extraordinário dos meios de in-formação-comunicação e as vitórias da mulher nocampo político (votar e ser votada) e econômico(participação cada vez maior no mercado de traba-lho). Esses dois processos estão evoluindo em velo-cidade prodigiosa, assustando velhos redutos con-servadores em todo o mundo.

A mulher sempre esteve presente na históriapolítica e social deste país, embora sua presença na

economia só se fez mais notada a partir da segundametade do século passado. Quando recebi, paramodestamente resenhar, a antologia poética Corpo lu- nar, composta de textos, segundo sua organizadora,Edileusa da Rocha, de 26 “poetisas radicadas no Reci-fe”, fiquei meio intimidado, porque estava acostumadoa antologias mistas. Depois lembrei que nas antologiasmistas a presença masculina sempre foi dominadora,como ainda o é em vários outros setores da sociedade.Dentro de um mundo ainda tão preconceituoso, por-tanto, o livro organizado por Edileusa tem sentido,tanto poético quanto revolucionário.

Procurando uma ajuda bibliográfica para fa-

zer esta resenha, deparei-me com dois livros de leitu-ra agradável, em cujos cada parágrafos está subja-cente o desejo de reparar injustiças atávicas ou acen-der nomes femininos mergulhados no esquecimen-to. Consultei os livros Mulheres ilustres do Brasil, deIgnez Sabino (edição sem data, mas, presumivel-mente, de 1899) e Pernambucanas ilustres, de Hen-rique Capitolino Pereira de Mello, edição de 1879.Ambos abrem a sua “humilde galeria”, como dizCapitolino, com duas índias célebres por seus amo-res e habilidades diplomáticas, demonstradas na

aproximação de suas tribos dos colonizadores: Para-guassu e Arco-Verde. A primeira tornando-se mu-lher de Diogo Álvares Corrêa, o Caramuru de nos-sos livros escolares, e a segunda virando a “Eva” dochamado, se não me engano, por Gilberto Freyre,“Adão pernambucano”, Jerônimo de Albuquerque.

São dois livros que procuram dar o valor me-recido a mulheres mortas, mulheres do passado.Um escrito por uma mulher e o outro, por um ho-mem. A organizadora da antologia diz em seu dis-curso de lançamento: “Quando penso em literaturafeminista, incluo aquela escrita por escritoras e escri-

80 Continente Multicultural

 Alberto da Cunha Melo

Cabeça de mulher

 M

 A R C O Z E R O

Uma antologia refinada e de boa qualidadeestética, mas que – de leve – reforça algunsestereótipos

S

Page 83: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 83/100

tores”. No caso citado, Henrique Capitolino talveztenha sido um dos primeiros escritores feministas dopaís (quando escreveu o seu livro não tinha aindaterminado o seu curso de direito, no Recife).

Mas, vamos à antologia Corpo lunar. A capada obra é um bom quadro em tinta acrílica sobre tela,de Margot Monteiro, representando um tronco de

mulher nua. Ora, como deduzo que a proposta deorganização da antologia tem o sentido de valorizar odesempenho da mulher na literatura pernambucana,o melhor significante seria uma cabeça feminina, poisa valorização/exploração do corpo da mulher a gentedeveria deixar com as Globos da vida. No prefácio a Mulheres ilustres do Brasil, Arthur Orlando, sociólogoda Escola do Recife, propõe métodos de ensino di-ferenciados para os dois sexos: “É preciso que aeducação da mulher corresponda ao seu tríplice des-tino de irmã, esposa e mãe”, ou melhor, seja a mulher

biológica, a mulher-tronco, sem cabeça.Corpo lunar é uma antologia que reúne 26

poetisas, algumas, estereotipadamente, sem ano denascimento registrado, e outras apenas a década ci-tada. Das que têm seu ano de nascimento regis-trado, a que nasceu em data mais distante foi IsnarMoura, que também se distinguiu em Pernambucocomo jornalista e educadora. As outras duas maispróximas nasceram em 1915: Celina Holanda eOdile Cantinho. A mais jovem, se é que isso fazalguma diferença, é a poetisa Gabriela Cunha deMelo Cavalcanti.

Aquilatar uma antologia é uma das coisasmais difíceis da crítica literária. Como uma resenhanão permite a análise de poema por poema, a

solução, no meu caso, é procurar regularidades nostextos antologiados. Mas essa é uma solução precá-ria em relação a Corpo lunar, pois coube apenas a ca-da uma das selecionadas o espaço ínfimo de duaspáginas. Diante de tamanha exigüidade é impossívelque se tenha delas uma amostra de textos represen-tativa de toda a sua obra.

A partir dos textos disponíveis é possível, noentanto, falar do que existe no livro, embora a obser-

 vação não valha para o que está por trás dele. Quan-to ao conteúdo, por exemplo, das 26 poetisas, 20apresentam textos com temática amorosa, o que dáquase 80% do universo selecionado, algo a reforçaralguns estereótipos sobre a psicologia feminina.

Notei que os poemas escolhidos estão todosdentro da modernidade, com simbologia complexa,a exteriorizar-se por metáforas originais e até hermé-ticas. Do ponto de vista estrutural, a maioria dasautoras optou pelo poema em verso livre, seja o quechamo de polimétrico ou o que costumo denominarde poema-crônica, o primeiro mantendo ritmo e

cadência intencionais, majoritariamente em versoscurtos (no caso), abaixo do decassílabo, e o segundotrilhando o simbolismo prosaico-poundiano, como ofez Eugênia Menezes.

Infelizmente, o espaço não permite comentartodos os belos poemas que compõem o volume, bemcomo os poemas amorfos (não-poemas), que sãopoucos. O que eu sei é que há nomes definitivos, emCorpo lunar, não apenas na história da poesia per-nambucana, mas brasileira, como Lucila Nogueira,Celina Holanda, Déborah Brennand, Tereza Tenó-

rio, Maria do Carmo Barreto de Melo, Maria deLourdes Hortas e Dione Barrreto, além de outrasque se vão firmando com sua work in progress, comodizem os ianques.

Ser v içoCor po l unar – Edileusa da Rocha (organizadora)Editora – Prefeitura da Cidade do Recife / HospitalSanta Joana72 p. – Recife – 2002Distribuição gratuita.

Continente Multicultural 81

Capa do

livro Corpo Lunar,antologia dapoesia femininapernambucana

 Alberto da Cunha Melo é jornalista, sociólogo e poeta

Page 84: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 84/100

Page 85: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 85/100

Continente Multicultural 83

Arnaldo Tobias nasceu em Bonito (PE). Integranteda chamada Geração 65, de poetas e escritores per-nambucanos, vem publicando poemas e contos em

 jornais e revistas recifenses e brasileiros desde 1962.Publicou, pela Edições Piratas, do Recife, os livrosde poesia:  Pomar (1979),  Passaporte (1981) e  Nu

 relato (1983). Com o pseudônimo de Ana Marga-

rite, publicou o livro-álbum Tenda proibida (poesiaseróticas). Tem textos incluídos na  Agenda poética – antologia dos novíssimos (1968), no  Álbum do Recife(editado em homenagem aos 450 anos da cidade doRecife). Na coletânea Gilberto Freyre entre nós, na

 Antologia didática para o 2º grau de poetas pernambuca- nos (edição da Secretaria de Educação do Estado dePernambuco) e na antologia Contos de Pernambuco. Etextos publicados em jornais e revistas da Venezuela,Chile, Bolívia, México, Cuba, Nicarágua, EstadosUnidos (Universidade da Califórnia). É fundador-

editor do jornal alternativo Pro texto, em atividadepoética desde 1981. Tem, inéditos, os seguintes li-

 vros de poesia: Lasciva saliva, Salário dor/sal, Trinta poemas sociais e outros versos do mesmo tema (a sair); olivro de contos A nona hora e um livro de poemas e

contos para crianças. Arnaldo Tobias faleceu noRecife em 26 de maio de 2002.

  ldorado

Não eram maus

Os meus soldadinhosDe chumbomeu paisoldado da cavalariado estadoum dia me comprouum batalhão deles

 vieram de armasnos ombrosou cruzadas no peito

alguns rastreantesno avanço imaginárionão mandavamchumbo em ninguém

no meu Eldorado

às tardinhaseu dava o toquede silêncioe lá ficavam hirtosno quartelzinhode caixa de sapatospela manhãzinhade novo eu apitavao toque de alvoradae já de pelotões

(ao meu comando)eu formavao meu fiel batalhão

Poema atítulo

Esse povo passivo

até certo pontopovo indecisoaté nos encontrosessa gente moídaem moe/dorde carne duratambém espremidaem espreme/dorde frutas ácidasessa prole/plebe

pobre na pele e ossona vida insossae na cegueiraherdeira(mas a alma nobre)um dia ainda vence.

Page 86: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 86/100

Rua deserta, nenhumpassante. Recife

antigo, a luz solitáriade um poste mal

ilumina uma parederabiscada

84 Continente Multicultural

Cidade pernambucanade São Caetano

Lembrançafotografia

Fotos de Walter Carvalho

  M  I  L  P  A  L  A  V  R  A  S

Page 87: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 87/100

Continente Multicultural 85

 grafia, que esteve em cartaz brevemente, na TorreMalakoff, no Bairro do Recife. As fotos são um in-

 ventário emocional das suas viagens pelas terraspernambucanas. Segundo ele, são “o tempo passado

e o tempo passando.”É o próprio Waltinho quem fala sobre o seuponto de partida para essa declaração de amor empreto e branco a Pernambuco: “Com 16 anos, eu fiza primeira viagem ao Recife, vi a cidade passadapelo rio. Não tenho certeza, mas posso imaginar que

 via aquele rio como uma língua mansa de um cão,como disse o poeta João Cabral. Naquele dia fui fo-tografado acidentalmente de propósito por alguémque passava sobre a ponte Santa Isabel. As fotos sãofragmentos que vi e amei em Pernambuco. Não setrata de making of , não têm a pretensão de ser umareportagem, é quase que um documentário transi-maginário de viagens, de encontros que tive ao lon-go de alguns anos.” Tudo começou aí...(George Moura)

RestauranteCruzeiro no Sertãode Pernambuco

O grafite tomaconta da pequena

sinuca e deBrasília Teimosa

alter Carvalho é fotógrafode cinema. Nasceu em João

Pessoa, mas mora no Rio de Janeirohá mais de 30 anos. Waltinho, como

é conhecido, já fez para lá de 50filmes – entre eles estão Central do Brasil,  Lavoura arcaica e Carandiru–, fez novelas na TV, como Renascer,e minisséries, como  Agosto, e con-quistou 26 prêmios em festivais deBrasília à Macedônia. É um parai-bano “arretado de bom”, semprecom uma máquina a tiracolo e umaadmirável capacidade de trans-formar em notável tudo o que foto-grafa. Você olha a realidade e não vê.Waltinho enquadra e revela uma no-

 va realidade.Ele se confessa um apaixona-

do por Pernambuco, paixão que re-sultou na exposição  Lembrança foto-

 W 

Page 88: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 88/100

86 Continente Multicultural

“Olinda é para os olhos” (Carlos Pena Filho)

O movimento da lâminaafia a faca, corta o silêncio

e a jugular do boi,esquarteja as carnes para

a feirade Carpina.

Page 89: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 89/100

Mestre Salu e o nobre aprendiz Antonio

Naná no Rio em 70 comTorquato “Soy Loco por ti

 América” Neto.No estúdio da Odeon, Nanáatabaqueando com oSom Imaginário

Continente Multicultural 87

Page 90: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 90/100

88 Continente Multicultural

Tavares da Gaita, fazedor de música einstrumentos, personagem de umdocumentário inacabado que eu, BetoBrant e Cláudio Assis, com teima e“tudo”, iniciamos. Título do filme: “SeCria Assim...” como sentenciou MestreGaldino, do alto do Sertão e da sua

sabedoria

 Alceu Valença

Dom Hélder 

Page 91: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 91/100

Continente Multicultural 89

 ArianoSuassuna eLuiz FernandoCarvalho, apalavra e aimagem

O sangue, o sol,a pedra

Page 92: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 92/100

90 Continente Multicultural

O assassinato de Monsenhor Joviniano

e o crime de Francisco Brennandonsenhor Joviniano Barreto foi esfaqueado porum romeiro do Padre Cícero, na matriz de

Nossa Senhora das Dores, em Juazeiro do Norte, noCeará, no ano de 1950. Os soldados que prenderam oassassino perguntaram por que ele havia cometido ocrime. Com a serenidade de um fanático, respondeuque matara o monsenhor porque este remexera nosmistérios de Juazeiro. De fato, durante o sermão de

uma missa que celebrara, Joviniano Feitosa pusera emdúvida os milagres de transmutação da hóstia em san-gue, ocorridos na pequena vila em que o Padre Cíceroera vigário. É possível que eu tenha ouvido a palavra mistério, pela primeira vez, no relato dessa história trá-gica. Nunca mais consegui me desfazer do seu signi-ficado de interdição, limite intransponível, câmara pordesvelar. O assassinato, além de todos os seus horrores,estava carregado de erotismo e sexualidade: uma vir-gem, a beata Maria de Araújo, sangrou pela boca, ao

mastigar o corpo simbólico de Cristo; um homem deDeus foi sangrado porque duvidou que o Cristo tives-se revivido a sua paixão no corpo da humilde beata.

As religiões não cristãs convivem muito bemcom a sexualização das suas divindades e dos seus ritos.Na Índia, os templos são adornados com falos,  linga,símbolo da energia masculina, e vaginas, yoni, emblemaprimário da energia feminina. Juntos, eles simbolizama união criadora e mantenedora da ordem do universo.É o hieros-gamos, dos gregos. O cristianismo aboliu oscultos explicitamente sexualizados e orgiásticos. Pro-

moveu a ascese, a castidade e a negação do corpo.

Baniu o hedonismo em favor de uma assepsia do pra-zer. Eros foi duramente mascarado, a nudez encoberta,os genitais disfarçados, diminuídos nas proporções ouaté mesmo abolidos, num evidente contraste com asreligiões hinduístas, em que os falos são representadosem tamanhos avantajados, significando o poder gera-dor. Mas essa hipocrisia do sexo encarcerado explodiuem perversões e escândalos, crimes e histerias.

O Renascimento tentou reaver o direito à ex-pressão da sexualidade do Ocidente, reprimida na Ida-de Média. As pinturas não reproduziam apenas ossantos aureolados, mas também os corpos nus, plenosde erotismo. Lamentavelmente essas transformaçõesdemoraram a chegar a Portugal e Espanha. Por muitotempo esses dois países ibéricos permaneceram sob atutela da Igreja Católica Romana, transportando parao mundo novo que descobriram as culpas e mazelas docristianismo, impondo-as às gentes de cá, gente liberta,

no que se refere às sombrias culpas do sexo. Culpasmanifestas em casos como o da beata Maria deAraújo, ocorrido em pleno século XX, mostrando queo medievo ainda está vivo no Nordeste brasileiro. E seisto é bom para que alguns aspectos da cultura possamser preservados, é também muito ruim como agenterepressor da criação.

Criar uma torre-mirante que lembra um falo éo mesmo que remexer em mistérios indevassáveis.Francisco Brennand que o diga. A construção do seuparque de esculturas do Marco Zero por pouco não

 vira tragédia. Algumas pessoas devem se lembrar da

Ronaldo Correia de Brito

M

 As religiões nãocristãs convivemmuito bem com asexualização das

suas divindades edos seus ritos.O cristianismopromoveu a ascese,a castidade e anegação do corpo

  E  N  T  R  E  M  E  Z

   F   O   T   O  :   L    É   O   C   A   L   D   A   S   /

   T   I   T   U   L   A   R

Page 93: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 93/100

Continente Multicultural 91

história. A imprensa nos abarrota de informaçõesquando uma notícia vira escândalo, mas esquece de in-formar os desdobramentos ou desfechos do imbrólio.Brennand recebeu a encomenda das esculturas, entreelas, uma torre-farol. Reclamou-se do alto custo daobra, do sacrifício de alguns pés de castanholas, dadestruição da bucólica pracinha do porto. Mas o gran-de trauma da nossa sociedade recifense foi a desco-berta de que a torre-farol lembrava um gigantesco pê-nis. Surgiram protestos, manifestações contra e a favor,discursos sobre a liberdade de criação. Com certeza, ospolíticos que fizeram a encomenda nunca visitaram o

ateliê do artista, na Várzea, onde o sexo masculino e ofeminino aparecem recriados em dezenas de cerâmi-cas e imaginamos estar num templo indiano ou naGrécia primitiva. Liberto de qualquer amarra, Bren-nand em seu local de trabalho dá curso às fantasias.

Em que mistérios ele remexeu? Na afirmaçãode que somos dotados de genitais, de sexualidade, ede que não é possível esconder as nossas pulsões cria-doras ou destruidoras. Tentaram vetar a criação deBrennand, porque ela afirmava a nossa naturezaessencial, a mais primitiva, o Eros que pulsa em opo-

sição a Tanatos, a morte. A esposa de um político ma-goou-se nos seus pudores cristãos. Um político dese- jou matar um jornalista. Brennand, como o Monse-nhor Joviniano, vasculhara as forças eróticas dacriação e da transubstanciação, que fazem trigo virarcorpo e sangue, pedra triturada virar cerâmica. Bren-nand remexeu no mistério da criação, expondo na ca-ra de todo o Recife que temos sexo, fazemos sexo pormero gozo e que também procriamos. E isto, à luzcristã, é um crime hediondo.

Esqueceram essa história tão fantástica da nos-sa cidade dos arrecifes. Não deram mais uma notícia.Não fizeram mais um único comentário. Felizmente,ninguém morreu. Disfarçada por enfeites  décor , atorre-farol se ergue, e por dentro dela, o rijo falo. Oconjunto de esculturas é sem dúvida a mais bela obrade Brennand. Eu penso assim. E também pensamassim os dois barqueiros que se ofereceram para fazera minha travessia do Marco Zero para o outro lado.

– Vamos, doutor! É muito bonito.É mesmo!

Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico

Page 94: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 94/100

92Continente Multicultural

Primeira menina solista a tocar com a Orquestra Sinfônica do Recife,

aos 11 anos, a pianista Josefina Aguiar é famosa por sua garra naluta pela preservação da música clássica

A Dama da Resistência

   M   Ú   S   I   C   A

Page 95: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 95/100

inha ela apenas cinco anos de idade, mas suaprofessora de piano já notara que havia algo de

diferente nas suas mãozinhas: era como se fossem elás-ticas. O tempo se encarregou de mostrar que a mestratinha razão. Josefina Aguiar foi a primeira menina so-lista a tocar com a Orquestra Sinfônica do Recife(OSR), aos 11 anos, e é considerada um dos rarostalentos musicais que despontaram na década de 40

em Pernambuco. Devido a sua garra em preservar amúsica clássica, os amigos a chamam de “A Dama daResistência” e de “Leoa do Norte”.

“É uma herança genética. Minha mãe (Maria

Aguiar) era violinista e meu tio Elias era doutor emmúsica e regente. Papai (Antônio Aguiar) gostava demúsica erudita e tínhamos até um quarteto de câmaraem casa”, recorda a pianista. O talento nato foi des-coberto por acaso. Ao chegar de Alagoas, a professorade piano Stella de Almeida pediu à amiga MariaAguiar que lhe conseguisse algumas alunas. Naquelaépoca, como dizia Mário de Andrade, reinava a “pia-nolatria”, e logo a professora reuniu muitas pupilas. Porelegância, a mãe de Josefina matriculou-a também.

Convencida da preciosidade que encontrara,Stella comunicou aos pais da menina todo o seu poten-cial. “Mas eles não levavam a sério aquela história demãos elásticas. Então, para provar que estava certa,minha professora me preparou para tocar dez músicasde cor no meu aniversário de seis anos”, lembra. De-pois dessa apresentação, não houve mais dúvidas.

“Conheci Josefina por volta de 1950. Éramos,então, jovens talentos musicais, mas breve tive o vislumbre de que Josefina iria além. Mais do que umtalento pleno de audácia e coragem, ela era o próprio

prodígio musical, dominando as partitu-ras mais complexas”, observa o pianistaEdson Bandeira de Mello.

A primeira audição aconteceu aosoito anos, na presença de amiguinhos, co-mo o futuro político Marcos Freire. Mas oRecife a ouviu tocar pela primeira vez norádio. O pai a levara ao programa de Nel-son Ferreira, na Rádio Clube de Pernam-buco, e, sem saber que estava no ar, ela to-cou o adágio da Sonata ao luar , de Beetho-

 ven. O episódio rendeu-lhe fama imediatae um ilustre fã, Valdemar de Oliveira.

No ano seguinte, veio o primeiro recital. Suafama já ultrapassara as fronteiras de Pernambuco echamara a atenção do pianista potiguar Valdemar deAlmeida, que levou Josefina para se apresentar emNatal. “Foi nessa época que comecei a tocar com (o violinista) Cussy (de Almeida), filho de Valdemar, emeu amigo até hoje”, lembra. Os dois, aliás, fizeramum duo na década de 60 que foi considerado pela crí-tica especializada como o mais completo do Brasil.

“Valdemar de Oliveira escreveu em crônica que Josefina era uma menina genial, e que ela e Cussy,quando tocavam juntos, realizavam o milagre de tocar

Continente Multicultural 93

 Ao lado,autografandoo seu único disco,O piano de Josefina Aguiar.Na página anterior,a pianistaaos 15 anos

T

 F  O  T  O  S : A  R  Q  U  I  V  O  P  E

  S  S  O  A  L  D  A  A  R  T  I  S  T  A

Page 96: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 96/100

94 Continente Multicultural

ao mesmo tempo dois instrumentos descobrindo nelesuma só alma”, lembra a pianista Elyanna Caldas, con-temporânea de ambos.

Por orientação de Valdemar de Oliveira, seu

grande mentor, Josefina foi estudar com Manoel Au-gusto dos Santos, por intermédio de quem conheceu omaestro fundador da Orquestra Sinfônica do Recife,Vicente Fittipaldi. Este a convidou para se apresentarcom a OSR no Teatro Santa Isabel, interpretando oConcerto em ré menor, de Mozart.

 Josefina tocou como solista com a OSR em ju-nho, e sua amiga Elyanna, em setembro de 1948. Co-mo era dia de prova na escola, Josefina foi fazer o testeescrito logo cedo e, depois, rumou para o ensaio. “Osprofessores esperaram que eu voltasse para poder fazera avaliação oral”, diz, ressaltando que a infância passoucom a vida atribulada e a responsabilidade despertadatão cedo. “Apesar da pouca idade, eu não ficava ansio-sa, mas emocionada. Aliás, fico até hoje. Arte não exis-te sem emoção.”

As apresentações pelo Brasil se tornaram corri-queiras, inclusive na cultuada Escola Nacional deMúsica, no Rio de Janeiro. Até os 16 anos, no entanto, Josefina não recebia cachês. Por orientação do pai, to-dos eram doados a instituições filantrópicas. E a car-

reira internacional, que parecia uma conseqüência na-tural, foi vetada pela mãe. “Perdi cinco bolsas de estu-do no exterior e só saí do Brasil quando já tinha duasfilhas”, recorda Josefina, com um certo pesar.

A oportunidade de viajar para o exterior surgiuna década de 60, quando foi fazer especialização naSuíça e na Áustria. Josefina viajou com o marido epassou um ano e oito meses estudando. “Foi umaescolha muito difícil, pois deixei minhas duas filhasaqui no Brasil, a mais nova com cinco meses. Mas eraa minha última chance”, justifica. A pianista afirma

que nessa época tinha mais maturidade e, portanto,aproveitou bem a experiência, mais do que se tivesseido quando jovem.

Logo depois, formou um duo com Cussy deAlmeida, rodou o Brasil e fez apresentações tambémna Europa. O ápice da dupla foi passar às elimina-tórias do Concurso Internacional de Violino e Piano deMunique (Alemanha). “Foi um convívio gratificante. Josefina é uma pessoa maravilhosa. Culta, inteligente eextremamente leal, mas não tinha como não serdescendendo de uma família extraordinária como adela”, conta Cussy.

 Josefina lembra que, na apresentação que oslevou à fase decisiva do concurso, sugeriu que tocas-sem Brahms logo de cara, o que Cussy achou umapéssima idéia. Acabou sendo convencido, e a duplaconquistou a platéia alemã. “O júri mandou nos cha-mar, o que não era usual, e nessa hora até pensei quetinha dado tudo errado”, confessa. O júri, na verdade,queria comunicar aos dois pernambucanos que estava

perplexo em ouvir um Brahms tão perfeito, vindo doNorte do Brasil.Foi-lhe oferecida uma bolsa para que continuas-

se os estudos na Europa, mas, para não contrariar omarido, Josefina recusou-a. “Meu casamento estavapor um fio e só eu não percebia”, conta. A separação,porém, foi inevitável, o que fez com que ela se afastasseda música, pois parecia que tudo tinha sido culpa dopiano. Foram dois anos e oito meses de reclusão, daqual só abriu mão uma vez.

A irmã, conhecida como “Fernandinha Zero”,

compositora de MPB, casada com o músico PauloGama, precisou de sua ajuda quando tiveram a opor-tunidade de mostrar uma música para Baden Powell,

Um dia, o aluno chegou em casaemocionado. A famosa Josefina

 Aguiar, sua professora de piano,

 tinha ficado de joelhos para lheensinar como usar melhor os pedaisdo instrumento

 Acima,ernandinha Zero

(de óculos), aprima Tereza

ristina, Josefina ea irmã Eunice.

Ao lado, Josefina Aguiar com o

pianista potiguar  Valdemar de Almeida, seuincentivador 

Page 97: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 97/100

Continente Multicultural 95

que iriam encontrar na casa de Cussy por ocasião deum show no Recife. Josefina aceitou tocar para acom-panhar a intérprete Zélia Barbosa, mas com uma con-

dição: ninguém poderia dizer nada, nem que era pro-fessora de piano, muito menos que já tinha toda umacarreira. “Assim foi feito. Baden Powell ouviu e, já desaída, voltou para dizer que meus amigos deviam meincentivar a seguir carreira, pois eu tinha talento”,lembra, sorrindo.

“Josefina foi um dos maiores potenciais dasArtes de nossa geração. Toda a família era assim, dota-da de um esplendor artístico que raras vezes se encon-tra tão prodigamente repartido entre seus membros.

‘Fernandinha Zero’ veio a me comprovar isto, anosmais tarde”, conta Edson Bandeira de Mello. Fernan-dinha, que morreu vítima de câncer, foi aluna de Edsone só tirava zero nas provas de teoria musical. “Com otempo, entendi que ela não se preocupava com teoria,queria mesmo era colocar para fora tudo o que sentia”.

 Josefina Aguiar afirma que sua vida se divideem antes de Alex e depois de Alex. O colunista social Joséde Souza Alencar, mais conhecido como Alex, foi ogrande responsável pela sua volta à vida artística. “Eledisse que eu não tinha o direito de me apagar daquele

 jeito, pois quando se escrevesse a história da música emPernambuco, o que eu iria dizer? Como podia iniciarum trabalho e deixar pela metade? Isso não se faz!”

Mesmo sem ter sido aluna de Josefina Aguiar,a presidente do Conservatório Pernambucano de Mú-sica, Juciara Albuquerque, é sua admiradora. “Pudecomprovar sua dedicação como professora graças aomeu irmão (Ivanildo de Albuquerque, hoje professorde música do Conservatório Brasileiro de Música, noRio de Janeiro). Um dia ele chegou em casa muitoemocionado. Me contou que, na aula de piano, elatinha ficado de joelhos para ensinar melhor como elepoderia ‘pedalizar’ uma música”, conta. Esse gesto éum exemplo do esmero de com que Josefina se dedica

à arte de ensinar. “Uma partitura, um piano, uma salade aula e eu esqueço do mundo”, revela.

 Josefina Aguiar lembra com saudades a época

que revelou tantos talentos musicais em Pernambuco:“As pessoas se reuniam para cantar, tocar e recitar.Hoje em dia, as reuniões só servem para comer e be-ber”. O espírito daqueles tempos está presente no dis-co O piano de Josefina aguiar, o único de sua carreira,lançado em 1998. A idéia desse disco foi concretizadapor um grupo de amigos com o apoio da Cruzada deAção Social.

“Meus amigos tinham gravações minhas ao vivo feitas no Teatro Santa Isabel durante os Ciclos de

Música Pernambucana, que aconteceram entre 1980e 1985. Eles mesmos fizeram a seleção musical e mepresentearam. Todo artista gostaria de ver um registrode seu trabalho, a perpetuação de sua arte através dosanos”, comenta.

O disco traz compositores pernambucanos, co-mo Euclides Fonseca, Mizael Domingues, AlfredoGama, Zuzinha, Nelson Ferreira, Capiba, Valdemarde Oliveira, e um ilustre desconhecido: José Capiba-ribe. “Na verdade, esse era o pseudônimo de Valdemarquando fazia marchas carnavalescas”, esclarece.

O CD tem 14 músicas e contempla diversosgêneros musicais, como valsa, polca,  pas-de-quatre,marcha carnavalesca e um dobrado para piano. “Odisco reúne obras de uma época na qual o piano rei-nava absoluto. Praticamente em todas as casas haviaum”, recorda Edson Bandeira de Mello. “Aconselho atodos ouvir esse primoroso trabalho da pianista, noqual, entre outros presentes, ela nos dá uma magnífica versão da pouco divulgada  Rumba, de Valdemar deOliveira, com um tempero tão especial como só umasensibilidade refinada como a sua consegue fazê-lo”,afirma a também pianista Elyanna Caldas. (TR)

 À esquerda, Josefinaao lado do jornalista Alex, que a fezretomar a carreira.

 À direita, a pianista aos8 anos, na suaprimeira audição, noCírculo Católico dePernambuco

Tatiana Resende é jornalista   F   O   T   O   S  :    Á   L   B   U   M   D   E   F   A   M    Í   L   I   A

Page 98: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 98/100

96 Continente Multicultural

 A insustentável ordem do dia

ó explicando numa linguagem capitular.Rendo-me à democracia regimental; aos que sa-

bem escrever; à razão e ao coração (em modestos ar-razoados); à beleza oculta da mulher (a física já põe amesa); à vontade de Deus (só nos dá o que merece-mos); aos meus arquivos históricos; ao amor e cultua-ção da instituição familiar; à verdade; à preservação danatureza, sua fauna e flora; aos meus discos e livros; à

igualdade social; ao respeito à Pátria em que nasce-mos; à Constituição do meu País; à amizade duradou-ra; à obrigação de ser honesto; à Memória e ensina-mentos da história passada; à compreensão do mal in- voluntário; à imparcialidade quanto à consistência dascoisas; às boas idéias que emanam dos sonhos; à espi-ritualidade e à vida extraterrena; aos pastores da noite;às boas maneiras e ao cumprimento da ordem natural.

Infelizmente, a contumélia institucional expan-de-se pelo meu jovem Brasil de 500 anos, cada diamais frágil de autoridade – óbvia e esperançosamentetemporária. Talvez este atual opróbrio dos nossos go- vernantes deva-se aos fluxos de um éon celeste propo-sital, para que mudemos de uma vez nossas vidas.

Não mais comporta a tolerância e o excesso decautela – vira covardia.

A ordem do dia há muito está sendo quebrada.A segurança do País torna-se cada vez mais insus-tentável à leveza de Kundera – pesada insegurança daliberdade.

A escalada desses pigmeus das drogas assombra

a sociedade, molesta o patri-mônio alheio, dá asas à anar-quia generalizada, amordaçaa liberdade de expressão, ma-ta pessoas inocentes, formaespetaculares guerrilhas domal, bloqueando o direito deir e de vir do cidadão. E nin-guém vê uma atitude de se- veridade por parte das auto-

ridades. Pasmem: até o nosso professor Cardoso vai àtelevisão reclamar contra a onda de violência que sealastra num poder paralelo, pedindo providências! Eagora, a quem?

A Imprensa foi sacudida com o brutal assas-sinato do jornalista Tim Lopes pelos donos dos mor-ros do Rio de Janeiro embriagados de cocaínas – que já foram presos várias vezes pela polícia e logo liber-

tados pelo Judiciário.E todos os dias a mesma cantiga da perua que

afugenta a sabedoria de cada exigência da cidadania,da sociedade organizada – corrompendo os valoreshumanos, programando revoluções sem sentido.

Começa a campanha eleitoral e nós, que esco-lheremos nossos governantes e representantes legislati- vos, devemos, de imediato, fiscalizar seus discursos –novos velhos lengalengas de palanques paroquiais –para que não esgotemos esses meios justos de cobran-ça. Ou recorreremos à misericórdia divina.

Inusitado é o bem comum do povo, pobre po- vo brasileiro, primeiro limite para se conceituar a li-berdade. Liberdade nascida do racionalismo do sé-culo XVIII, baseada no livre pensamento e na auto-nomia da vontade.

Esse tal de “roubai, roubai, matai, matai” pareceser a ordem do dia – maior prova de supressão doprincípio de finalidade da ordem social por um bandode meliantes que desmoraliza o bem comum, hoje de- vastado pelo Estado anárquico, atingindo a soberania

nunca absoluta que o norteia. Jáse ouvem enfurecidos clamoresde todas as classes sociais civili-zadas por uma revolução nosistema político do Brasil.

Cuidado, senhores con-gressistas, atuais e futuros!Nos longes de 19 a.C., Virgílio já advertia que o furor fornecearmas.

Rivaldo Paiva

S  ú  l  t  i  m

  a  s  p  a  l  a  v  r  a  s

Page 99: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 99/100

Page 100: Continente #019 - Nelson Rodrigues

8/20/2019 Continente #019 - Nelson Rodrigues

http://slidepdf.com/reader/full/continente-019-nelson-rodrigues 100/100