continente #000 - joão câmara

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Edição especial: "O olho de Câmara".

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  • Pgina 62

    ESPECIALGeografia poticaO pintor Joo Cmara comenta sobre sua novasrie, Duas Cidades, e tem a sua obra analisadapor Ferreira Gullar e Frederico Morais

    OLHAR IBRICOVocao atlnticaOs nacionalismos exacerbados e os preconceitoshistricos que separam Portugal e Espanha dospases latino-americanos

    SABORES PERNAMBUCANOSSabor pernambucanoA culinria que mistura temperos portugueses,indgenas e africanos para criar um autnticosabor. Nesta edio, receita do Pastel de Nata

    EM TESEO fator culturalA tese de que a cultura pode levar um pas aofracasso econmico, e o que isto implica sobreos valores e atitudes latino-americanos

    COMPORTAMENTOO melhor e o pior dos mundosAltemar Pontes escreve uma crnicadescontrada em que identifica os prs eos contras do casamento

    CRNICAO ltimo gnioA entrevista que Gilberto Freyre concedeu aum reprter de vinte anos, a vaidade ferida domestre, e o que o reprter ouviu em resposta

    MIL PALAVRASA ao do tempoEnsaio fotogrfico revela a vida dos ndiosTrememb de Almofala, cujo vilarejo j estevecoberto por dunas, e recuperado 42 anos depois

    VIDA LITERRIAO bom portugusNo centenrio de morte de Ea de Queirs, oescritor celebrado pela intensa crtica ao seupas e por sua criao realista que no morre

    ENTREMEZA fidelidade do artistaUma discusso sobre o perigo de se querer criaruma arte genuinamente brasileira e de se tomara cultura universal por chaves regionalistas

    Srie Dez Casosde Amor

    Capa: detalhe dePainel 2;

    Contracapa: Uma Pinturade Cmara leo sobre

    madeira,160x220 cm.

    16

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    62

    76

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    102

    110LTIMAS PALAVRAS guisa da renascenapor Rivaldo Paiva 112

    CONVERSA FRANCAConversa francaFerreira Gullar fala do processo criativo, critica osconcretistas, narra um amor que teve na Rssia,elogia FHC e explica por que detesta telenovelas 90

    SCULO XXIA iluso de serA alienao consumista que oprimia o homemmoderno elevada ao extremo: o de se querer e no conseguir comprar a prpria identidade 48

    50

    Pgina 86

    CO

    NT

    E

    DO

    www.continentemulticultural.com.br

    DEPOIMENTOA encomenda do delegadoO pintor Jos Cludio e a histria do ex-canga-ceiro que lhe exigiu um quadro e quis pagar comum revlver, durante expedio cientfica dePaulo Vazolini Amaznia 14

    HISTRIACansao da civilizaoO ex-presidente Theodore Roosevelt, emcaadas pelo Amaznia, define os ndios comoladres por natureza e apelida o seu guia da selvacom o nome do macaco de Robinson Crusoe 04

    MARCO ZEROO direito da foraAlberto da Cunha Melo discute a histria da tortura no pas e diz que ela a nica forma deuma polcia civil desamparada mostrar servio

    86

  • 2 Continente Multicultural

    bilo e cautela. Talvez no haja duas palavras maisadequadas para definir o que moveu o editor destarevista ao ser convidado a formular o seu projeto. Asrazes da alegria so bvias. Porm, concordandocom tudo o que escreveu Flaubert a respeito derevistas e vendo a sorte de iniciativas semelhantes,prudncia e modstia prevaleceram. com este

    esprito que se inicia esta publicao, animada pela conscinciados seus possveis alcances e limites.

    Quem j se ocupou ou se ocupa de peridico sabe esta ver-dade singela: mais difcil que edit-lo mant-lo vivel. Nobasta ter uma boa idia ou saber dividi-la em colunas e povo-lasde boas imagens. O trabalho rduo sustentado em profissiona-lismo e a constncia amparada em bases materiais slidas so pr-requisitos para que a iniciativa tenha flego e perenidade.

    Mas no h garantias neste mundo. Tudo risco e aventu-ra. At agora, a tradio em Pernambuco tem sido de veculosefmeros e espordicos. Desse modo, para que a revistamerea verdadeiramente o nome de peridico ainda h muitopor fazer. A disposio para isto e a riqueza da produo cul-tural no Brasil amenizam a aridez da tarefa e estimulam a jardorosa vocao dos pernambucanos para desafios.

    H uma passagem de Ea de Queirs (um dos temas destaedio inaugural) que serviria como uma espcie de mote areflexo madura sobre algumas das coisas e loisas do Brasil:

    No dia em que o Brasil, por um esforo herico, se decidira ser brasileiro, a ser do novo mundo, haver no mundo umagrande nao. Os homens tm inteligncia; as mulheres tmbeleza e ambos a mais bela, a melhor das qualidades: a bon-dade. Ora, uma nao que tem a bondade, a inteligncia, a beleza(e caf, nessas propores sublimes), pode contar com um sober-bo futuro histrico, desde que se convena que mais vale ser umlavrador original do que um doutor mal traduzido do francs.

    Dentro dessa motivao, edita-se esta revista, um veculode idias em movimento. Despudorada, escancaradamentepernambucana. Sem ranos de regionalismos nem cosmopo-litismos fceis. Mas, sobretudo, querendo conhecer-se e ex-pandir-se no que lhe prprio, sem esquecer-se de privilegiaro novo e o indito.

    Nasce esta publicao altiva e modesta como esta terra quetem entregue ao pas, desde a origem, os frutos vivos da suabondade, inteligncia e beleza. Ms a ms, o leitor acompa-nhar nestas pginas uma seleo de reportagens, ensaios eartigos que refletiro o que se faz e se pensa no continente dePernambuco e em outras provncias do mundo.

    Mrio Hlio

    JUma revista de

    PernambucoPresidente

    Marcelo Maciel

    Diretor FinanceiroAltino Cadena

    Diretor IndustrialRui Loepert

    Conselho EditorialPresidente: Marcelo Maciel

    Conselheiros: Csar Leal, Ccero Dias, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand,Joaquim de Arruda Falco, Jos Paulo CavalcantiFilho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de

    Andrade, Marcus Accioly

    Gerente ExecutivoLairton Cruz

    EditorMrio Hlio

    Colaboradores desta edioAlberto Cunha Melo, Altemar Pontes, Angel-BB.

    Espina Barrio, Caesar Sobreira, Carlos Reis, FerreiraGullar, Frederico Morais, Geneton Moraes Neto, Jane

    Tutikian, Joo Cmara, Jos Cludio, Lawrence E.Harrison, Marcos Guedes, Maria Lectcia MonteiroCavalcanti, Rivaldo Paiva, Ronaldo Correia de Brito,

    Vldia Lima e Zuleide Duarte

    Gerente GrficoSamuel Mudo

    Gerente ComercialAlexandre Monteiro

    Equipe de ProduoElizabete Correia, Emmanoel Larr, Joselma Firmino,

    Jlio Gonalves, Geraldo SantAna, Mauro Lopes,Roberto Bandeira, Silvio Mafra e Zenival

    Assistente de ProduoAlexandre Bandeira

    Editorao EletrnicaAndr Fellows

    IlustraoLin

    ArteLuiz Arrais

    Continente Multicultural uma publicao mensal daCompanhia Editora de Pernambuco

    ISSN 1518-5095Redao, publicidade,

    administrao e correspondncia:Rua Coelho Leite, 530

    Santo Amaro - Recife/PECEP 50100-140

    Circulao e assinaturasRua Coelho Leite, 530

    Santo Amaro - Recife/PE - CEP 50100-140de 2 a 6 das 08h:00 s 17h:30pabx: (81) 3421.4233 ramal 151

    fone/fax: (81) 3222.4130

    e-mail: [email protected]

    e-mail: [email protected]

    e-mail: [email protected]

    e-mail: [email protected]

    Tiragem: 10.000

    ImpressoCEPE

    Todos os direitos reservados.Copyright 2000 Companhia Editora de Pernambuco

    ISSN 1518-5095

    Expediente

  • ensar o maior dos princpios desenvolvi-mentistas.

    Afortunado em participar de um governode resgate do crescimento scio-econmico ecultural do nosso estado de Pernambuco,honra-me sobremaneira poder, junto a auxi-liares e colaboradores, contribuir com a nos-

    sa parte integrante dessa misso, presenteando com a idia daproduo de uma revista multicultural que atenda aos anseiosde velhos e moos sempre vidos pela informao fina einstrutiva sobre a vida da cultura em geral do Pas.

    Assim, vimos, apaniguados por textos e diagramaesartsticas de notrios autores sejam poetas, pintores, ar-tesos, escritores e tcnicos editoriais enderear ao mundointelectual brasileiro mais uma opo de leitura culturalabrangente a todos os segmentos que mexam com o conheci-mento humano.

    Esta revista Continente Multicultural titula e revela a nossainteno crescente de diz-la alm mar, trazendo dividendose aprendizados de outros povos, seus costumes, suas his-trias.

    Conscientes da variedade de assuntos que sero veicula-dos, claramente esperamos, como o poeta Robert Frost, nodeixar vestgio de nenhuma lgrima do leitor, nem surpresasimprecisas quanto ao seu contedo.

    Por isso concitamos o aficionado a receb-la com o cari-nho, tal como foi gerada, regando opinies e crticas teis,pois, se no tiver mais que um desejo, que seja este por umaboa idia a acrescentar, para que a mesma tenha longa vida.Esta a nossa expectativa.

    Orgulhosos estamos todos ns como pernambucanos debem com a cultura e a preocupao com o bom senso que de-ver nortear o esprito irredento da nossa histria intelectual,pois, ter bom senso saber o que fazer a seguir; ter a virtude faz-lo.

    Desta forma, resgata-se a histria da revista cultural emPernambuco.

    PPrezados

    leitores

    Marcelo Maciel

  • Caesar

    Olhares esna Am

    Nas Selvas do Brasil revisitado.

    Olhares esna Am

    HIS

    T

    RIA

  • A Ana Augusta Duarte-Cabral

    Sobreira

    trangeiros aznia

    Uma crtica da razo imperialista.

    trangeiros aznia

  • 6 Continente Multicultural

    s qualidades pelas quais Freudidentificava o aventureiro curio-sidade, ousadia e tenacidade servem para descrever TheodoreRoosevelt e Cndido Rondon.Juntos, o ex-presidente dos Es-tados Unidos (1906-1909) e o

    intrpido conquistador do oeste brasileiro, reali-zaram o levantamento cartogrfico do ento deno-minado rio da Dvida, que foi rebatizado com onome de rio Roosevelt. A Expedio CientficaRoosevelt-Rondon (1913-1914), resultou de umprojeto apresentado (junho/1913) por Rooseveltao American Museum of Natural History, deNova Iorque, com o objetivo de estudar e, sobre-tudo, recolher mamferos e aves do serto brasi-leiro, segundo a denominao de Roosevelt parareferir-se ao pantanal matogrossense e Amaz-nia. Projeto aprovado, constituiu-se a comitivaque era composta pelo ex-presidente americano,um padre catlico, dois naturalistas do Museu eum ex-explorador do rtico.

    No Brasil, a comitiva foi ampliada tanto na suacomposio quanto nos seus objetivos. Por pro-posta do governo brasileiro o coronel Rondon in-tegraria a expedio e, ao mesmo tempo, amplia-va os objetivos incluindo o carter de exploraogeogrfica de uma extensa regio semidesconhe-

    cida do Mato Grosso, que seria realizada pela Ex-pedio Cientfica Roosevelt-Rondon.

    Um dos resultados dessa expedio foi a pu-blicao, em 1914, do livro Through the BrazilianWilderness (Atravs da Selva Brasileira), escritopor Theodore Roosevelt. Neste relato de viagemo ex-presidente norte-americano revela o ponto devista do Outro, do estrangeiro, extasiado ante amultiplicidade do colorido da Amaznia.

    livro comea narrando como a idia nasceude uma visita que em 1908, j em final demandato, Theodore Roosevelt recebeu. O

    visitante era o padre John A. Zahm, velho amigodo presidente. O sacerdote estava voltando deuma viagem aos Andes e Amaznia e props aRoosevelt que, aps a concluso do seu mandato,subissem o rio Paraguai. Em 1913, o j ento ex-presidente recebeu convites dos governos da Ar-gentina e Brasil para realizar conferncias em am-bos pases. Roosevelt decidiu que, aps os com-promissos formais, iria atravessar o Vale doAmazonas.

    Com as facilidades que tinha, acertou a viagemcom o Museu Americano de Histria Natural,que apoiou o projeto e indicou para compor a co-mitiva os naturalistas George Cherrie e Leo Mil-ler, sendo que este ltimo fora contrabandista dearmas em algum pas da Amrica tropical. Aogrupo juntaram-se um explorador do rtico, An-tonio Fiala, o secretrio de Roosevelt, Frank Har-per, alm de Jacob Sigg, enfermeiro e cozinheiro,do padre Zahm, e de Kermit, filho de Roosevelt.De tal modo que nossa expedio era tipicamen-te americana, afirma o ex-presidente.

    To tipicamente americana que trouxeram umarsenal no qual haviam vrias espingardas de cali-bre 16 para os naturalistas. Os demais receberamarmas fornecidas pelos Roosevelt: um rifleSpringfield, duas carabinas Winchester, duas es-copetas Fox calibres 12 e 16, um revlver Colt eoutro Smith & Wesson. De vestimenta, basta ape-nas descrever a de Roosevelt: roupa cqui (talcomo usei na frica), camisas de flanela doExrcito dos EUA, camisas de seda, botas detacha com perneiras e borzeguins de cano alto(at o joelho) e tambm luvas compridas con-tra mosquitos e vespas. A comitiva liderada porRoosevelt se dirigiu ao Paraguai onde, aos 9 dedezembro de 1913, iniciou a subida do rioParaguai em um iate-canhoeira privativo do presi-dente daquele pas. O ex-presidente vaticina sobrenosso vizinho: O Paraguai um pas de grandes

    AO

    As luvas de Roosevelteram do tipo Bfalo

    Bill, cheias debabados, como nosfilmes de faroeste.

    No imaginriodelirante docolonizador,

    o Oeste um s: oOeste o Ocidente

    Nas pginasanteriores, ndio de

    uma tribo dorio Napo

    REPR

    OD

    U

    O

  • Continente Multicultural 7

    possibilidades (...) desde que os seus habitantesabandonem definitivamente a mania de revoluoporque, de resto, o povo excelente.

    Roosevelt reconhece que os sul-americanos so-brepujam os norte-americanos no apenas empompas e cerimnias, mas no que de real impor-tncia, isto , na cortesia; em matria de cortesia ede civilidade, ns mal podemos tomar-lhes alio.

    Aps navegar trs dias, chegaram fronteirado Brasil, em 12 de dezembro de 1913, onde en-

    contraram o coronel Rondon e sua comitiva,composta pelo capito Amilcar Magalhes, pelostenentes Joo Lira e Joaquim de Melo Filho,pelo gegrafo Eusbio de Oliveira e pelo mdicoCajazeiras.

    Prosseguiram subindo o rio Paraguai. Roose-velt observa o grande nmero de jacars, animalque era magnfico alvo para a espingarda. Eumesmo matei uma meia dzia e errei outrotanto, afirma o ecologicamente incorretoRoosevelt.

    Em seu relato,Roosevelt revela-seextasiado ante amultiplicidade docolorido daAmaznia

    No dia seguinte, Kermit foi caar acompanhado por Nips, um jovem brasileiro ao qual os americanos

    apelidaram com o nome do macaco de Robinson Crusoe

    REPR

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    U

    O

  • 8 Continente Multicultural

    Em 15 de dezembro chegaram a Corumb.Neste ponto, em apenas seis dias, os naturalistasCherrie e Miller j haviam colhido cerca de oito-centos exemplares de aves e mamferos.

    nstalados em Corumb, o autor queria realizaruma caada. Na manh de 17 de dezembro,Rondon levou Roosevelt para uma fazenda no

    rio Taquari, onde foi praticado aquilo que hojeseria qualificado de crime ecolgico. Rooseveltjacta-se: ns matamos inmeros desses nocivos[sic] anfbios e, ato contnuo, faz o elogio s ar-mas: Por falar em armas, devo dizer que as nos-sas eram boas, com exceo da espingarda deMiller. O material fornecido pelo Museu Ameri-cano era excelente, afirma.

    Com esse material, o ex-presidente ale-grou-se porque, ao cair da noite daque-le mesmo dia, mataram um ani-mal mais interessante doque os jacars, queeram alvos

    fceis, imveis e de nervosinsensveis, nas palavras de quem no

    sente a dor do tiro!O animal mais interessante era um gigan-

    tesco comedor de formigas, ou seja, um inofensi-vo tamandu-bandeira que, atacado pelos ces dacomitiva, engalfinhara-se em luta mortal de talmodo que Roosevelt teve que esperar alguns mi-nutos para poder atirar sem risco de ferir osces, relata.

    O af de caar tem sua justificativa cientfi-ca dado o interesse dos naturalistas porcolees de pssaros, animais, peixes e rpteis.Por isso, Kermit matou mais um tamandu-ban-

    deira s porque os naturalistas estavam dese-josos de outro exemplar. No dia seguinte,Kermit foi caar acompanhado por Nips, umjovem brasileiro ao qual os americanos apeli-daram com o nome do macaco de RobinsonCrusoe.

    Com tantas caadas para amenizar a expedi-o e passar o tempo, o grupo s chegou em Co-rumb s vsperas do Natal de 1913. Nesta cidade,a comitiva embarcou no vapor Nioac, totalmentelotado de homens, espingardas, peles parcialmentepreparadas, caixas com provises, munies, ferra-menta e material fotogrfico; sacos com barracas, ca-

    tres, camas, roupas, arreios e outros objetos neces-srios a uma viagem atravs da grande selva o ma-to grosso do Oeste brasileiro, escreveu Roosevelt.

    A bagagem d uma idia das diferenas entreRoosevelt e Rondon. Tweed Roosevelt, bisneto deTheodore, e que em 1992 percorreu a mesma rotada Expedio Roosevelt-Rondon, afirmou queRondon queria um mapa detalhado e preciso do

    Cobra darvore verde

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    REPR

    ODU

    O

  • rio; Cherrie (...) queria colher o maior nmeropossvel de espcimes; e Theodore Roosevelt que-ria uma aventura (...).

    Dentro do seu esprito estico, Rondon subia oalto Paraguai lendo Thomas Kempis, autor de Imi-tao de Cristo, no obstante o coronel ser fiel reli-gio positivista, na qual fora iniciado. EnquantoRondon lia, Roosevelt observava atentamente o es-pao geogrfico no qual adentrava por vez primeira:H minas, quedas dgua e abundncia de solosricos. Breve esta zona ser cortada por estrada deferro. Oferece, pois, todas as possibilidades de colo-nizao. uma zona de grande futuro, predizia opoltico americano.

    No ltimo dia do ano da graa de 1913, a ca-ada parecia estar muito animada: enquanto toca-iavam um tapir, a nossa anta, Kermit aproveitoupara matar mais um caititu e Roosevelt uma capi-vara, justamente numa fase de muda de cor queos naturalistas ambicionavam.

    Roosevelt parte do pressuposto de que os obje-tivos deste tipo de caa (de alto valor cientfico)so mais elevados em relao aquela praticada pelocaador-magarefe, que tenderia a desaparecer emcontraposio ao caador de grandes animais, queseja bom observador ou naturalista de campo.

    Enquanto observa e escreve suas anotaes decampo, o barco continua seu percurso e, na ma-nh de 5 de janeiro, chegam a Cceres. Dali emdiante, era terreno no qual Rondon era o grandedesbravador e conhecedor, porque, h cinco anos(desde 1907), vinha atravessando aquelas plagasselvticas. Rondon havia estabelecido o mapa, porconjectura, daquele que veio a ser conhecido porrio da Dvida. Era preciso, agora, estabelecercom exatido o percurso desse rio. Agora, sim, iacomear a aventura.

    m 9 de janeiro, saem para caar antas. Avis-tada por Roosevelt, uma levou dele um tiroe, ferida, correu para dentro da mata, mas,

    depois, voltou gua, onde a esperava a voraz tena-cidade dos caadores. Roosevelt espeta-lhe uma ba-la bem no meio da cabea, jacta-se. E foi lembra-

    do que dissera ao padre Zahm, quando este o vi-sitou na Casa Branca havia seis anos, que, se al-gum dia viessem Amrica do Sul, mataria um ja-guar e uma anta. Perguntamo-nos: Por qual moti-vo querer matar um jaguar e uma anta? Eis a res-posta: por serem as maiores e mais caractersticaspeas de caa daquele continente.

    Roosevelt emite um discurso claro e objetivo.No necessitamos da lgica psicanaltica para com-preender a pulso que o leva caa: o cansao da ci-vilizao. Roosevelt estava decepcionado com a der-rota poltica que sofrera em 1912, ao tentar retornar Casa Branca. Mas, o padre celebra a matana eexclama ante a recordao que ele mesmo provo-cara: Bravos! Agora voc j cumpriu o que prom-etera.

    Matou, comeu. a lei da caa. Roosevelt no sefaz de rogado e mostra suas qualidades de gourmet.Degusta e aprova o bife da anta (muito bom) ecarne de cervo (excelente). Ainda de barriga

    cheia, no pargrafo seguinte, ele j antecipa argu-mentos para prximas caadas, dizendo que nopretendia abater outra anta, mas sim o caititu decoleira branca, para completar a nossa coleo dosgrandes mamferos da floresta do Brasil, justifica.

    No dia 13 de janeiro, deram continuidade via-gem fluvial. Com a impresso de que estivessematravessando uma estufa gigante, chegam a umafazendola bastante pobre, onde atracaram. Ro-osevelt recorda que, na manh seguinte, cada umde ns se deliciou com uma esplndida xcara decaf brasileiro, o que testemunha a proverbial hos-pitalidade do povo e a qualidade excepcional docaf brasileiro. Retomado o caminho das guas, ohbito de apertar o gatilho se fez presente, de modoque nos foi possvel usar nossas espingardas pormais de uma vez, lembra Roosevelt.

    Chegaram Tapirapo em 16 de janeiro. Nes-ta data um ms de excurso os naturalistas jhaviam coligido cerca de mil aves e duzentos ecinqenta mamferos. Os prprios Cherrie eMiller tinham conscincia de que j haviam co-ligido um nmero de pssaros e animais que ja-mais atingiram, afirma o ex-presidente.

    Continente Multicultural 9

    Avistada por Roosevelt, uma anta levou dele um tiro e,ferida, correu para dentro da mata. Mas, depois, voltou gua, onde a esperava a voraz tenacidade dos caadores.

    Roosevelt espetou-lhe uma bala bem no meio da cabea

    E

  • e Tapirapo a comitiva segue em direoao Vale do Amazonas, em 21 de janeiro.Viajaram 18 quilmetros, no primeiro dia,

    atravessaram o Sepotuba e acamparam em suasmargens. Caminhando e caando... Roosevelt in-titula a si e aos seus companheiros a condio deverdadeiros peregrinos das selvas. E completa:O verdadeiro explorador das selvas (...) deve serhomem de ao e de observao. Necessita pos-suir nimo e fsico para fazer e suportar, assim co-mo olhos de ver e inteligncia para observar eanotar, didatiza.

    A comitiva chega, por terra, Chapada dosParecis. Roosevelt cr que de futuro, esta regioser centro de uma populao sadia e altamentecivilizada para a qual poderia contribuir qual-quer raa pura do norte porque o local prodiga-lizaria excelente viver. Roosevelt, como chefe deEstado que foi, observa, analisa e prope soluespara o desenvolvimento estratgico da regio. Aoconhecer os ndios parecis, derrete-se em elogios sua cordialidade, bom humor e ao tratamentoque prodigalizam aos visitantes: So excelentescriaturas, garante.

    Quando se despediram dos parecis, Rondonpresenteou-os com diversos mimos, especialmen-te para as ndias que ganharam tecidos e leosperfumados para cabelos, importados de Paris,garante Roosevelt. Neste ponto, o padre Zahm eo enfermeiro-cozinheiro Jacob Sigg encerraramsua participao na aventura e retornaram civi-lizao. Os demais membros da expedio aden-traram nas terras dos ferozes Nhambiquaras.

    m 4 de fevereiro, chegaram ao Juruena, elogo depois foram encontrados ndiosNhambiquaras, que ficaram alegres ao ver

    Rondon, a quem j conheciam. Os Nhambiqua-ras eram, ento, ndios semi-selvagens que viviamnus. Roosevelt tece comentrios sobre os ndios,compara-os com tribos africanas e com aborge-nes australianos, ressaltando diferenas. Elogiasuas propores, a beleza e os dentes dos Nham-biquaras, to ingnuos e ignorantes como ani-mais domsticos e de quem no se notava um

    olhar maldoso ou um gesto impudico. Os selva-gens como a eles se refere Roosevelt fizeramuma festa noturna e, de madrugada, desaparece-ram na fria escurido da imensa floresta levandoum dos cachorros de Rondon. Roosevelt acredita-va que os nhambiquaras vez por outra, no resis-tindo a certos impulsos, furtem alguma coisa.Portanto, um deles no pde resistir tentao.

    Deixaram o Juruena para trs e continuaram amarcha ao oeste, atravessando o Juna. Prximodali, pararam para almoar e receberam a visita detrs nhambiquaras. Estes haviam deixado as ar-

    mas longe do acampamento e avisavam com gri-tos que estavam chegando, pois na floresta a che-gada sem sinal prvio significa inimigo, explicaRoosevelt. Nesse encontro, os brancos mostraramque tambm no sabem resistir tentao: umndio usava um belo cocar com formato de capa-cete, que lhe cobria a cabea e caa at as costas,feito de pele de ona suuarana. Pois bem: algumdos espertinhos da comitiva trocou (para muitasatisfao do ndio, acrescenta Roosevelt) aquelebelo ornamento por colares de miangas colori-das, ou seja, por uma quinquilharia de nada.

    expedio continuou avanando e enfren-tando o perigo horrendo dos mosquitosterrveis. Em 5 de fevereiro, chegam a

    Campos Novos; dois dias de caminhada depois, aexpedio chega a Vilhena, ento sede de um pos-to telegrfico instalado por Rondon. Neste localRoosevelt afirma que no prosperar a agricultu-ra, mas, sim, um grande centro industrial. Orumo, depois de Vilhena, o norte.

    De novo, os Nhambiquaras. E, eterno retornodo reprimido, a acusao de Roosevelt de que es-ses ndios tm o hbito de furtar: Notamos queuma ndia apanhara um garfo, mas, como no pos-sua sequer um trapo para escond-lo, procurouenterr-lo na areia e sentar-se em cima, porm,conseguimos reav-lo, sem dificuldades, relata.

    Aqui cabe a observao antropolgica de queos ndios no mantm a mesma relao de proprie-dade que os ditos civilizados estabeleceram entresi. Os ndios pegam o que querem, pois no en-

    10 Continente Multicultural

    Roosevelt acreditava que os Nhambiquaras,vez por outra, no resistindo a certos impulsos,

    furtem alguma coisa

    A

    D

    E

  • tendem a recusa, dado que eles prprios estoprontos a entregar o que deles for pedido.

    De caada em caada, de nhambiquara emnhambiquara, chegaram em 24 de fevereiro a umriacho afluente do rio da Dvida, onde os espe-rava o capito Amlcar. Este, com Miller e maisdois brasileiros, seguiram para o Ji-Paran at oMadeira, e dali iriam para Manaus.

    Rondon, Roosevelt, Lira, Cajazeiras, Cherrie eKermit seguiram para o rio da Dvida, acompan-hados de dezesseis remadores para sete canoas,alm de alimentao para cinqenta dias. O grupotinha um duro objetivo pela frente, que era descero rio da Dvida e descobrir sua foz, que s poderiaser no Ji-Paran, no Madeira ou no Tapajs. Paraisso estavam preparados para matar e para morrer.Para matar, porque estvamos todos armados e asmunies, posso afirmar, no eram destinadas adesportos, diz Roosevelt, com aquela espcie dehumor pouco refinado do velho oeste americano.

    A expedio se lanou nas guas do rio da D-vida, com destino ao desconhecido, em 27 defevereiro de 1914. Completavam 78 dias desdeque, em 9 de dezembro de 1913, haviam partidode Assuno. A viagem chegara no seu ponto cru-cial e grande parte do relato da viagem descreveuma espcie turismo naturalista que a viagemat ento parecia ser.

    Os aventureiros gastaro quase o mesmo tantode tempo e sofrero em mltiplo as dores at en-to sentidas. Foi dado o passo no abismo, doqual Roosevelt jamais se recuperaria totalmente.

    Acampados s margens do rio (12 latitude sule 60 longitude oeste de Greenwich), iniciaram anavegao com sete canoas e dezesseis remadores,alm de Rondon, Roosevelt, Lira, Cajazeiras,Miller e Kermit. Os remadores eram vigorosos,geis como panteras e fortes como touros, elo-gia Roosevelt, embora informando que eles ti-nham o aspecto de piratas e um ou dois eram defato piratas e outro, coisa pior ainda.

    Mas, na manh de 15 de maro, um desses re-madores perderia a vida devido irresponsabili-dade de Kermit Roosevelt. Ele ia frente, em umacanoa, com o timoneiro Joo e o remador Simpl-cio, ambos negros e excepcionalmente bons emqualquer sentido, esclarece Roosevelt, o pai.Contra a orientao de Rondon, Kermit ordenouque os homens voltassem ao local primitivo e a ca-noa foi dirigida para ali, contra a correnteza. Re-sultou no naufrgio da canoa, e o infeliz Simplciofoi tragado imediatamente pela torrente e nuncamais apareceu! Escaparam da tragdia o timonei-ro Joo, e Kermit que, em vez de tentar salvar Sim-plcio, preferiu agarrar-se sua espingarda favorita,uma Winchester 405, com a qual havia realizadoquase todas as caadas na frica e na Amrica,detalha o pai de Kermit. Ainda assim, como porcastigo, terminou perdendo a arma, que acabousendo tragada pelo rio. Menos mal, pois salvou-secom vida, enquanto do Simplcio s ficou o nomeem uma placa, marcando o local da tragdia.

    No dia seguinte, 16 de maro, um cachorroda comitiva foi morto a flechadas por ndios des-

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    Roosevelt (naesquerda) e Rondon posam para afotografia juntoa um bando de antas abatidas

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    conhecidos que provavelmente nunca tinhamvisto homens civilizados. Umas duas semanasaps terem iniciado a descida do rio, entrandono mais interior da selva selvaggia, Roosevelt sed conta que encontrava-se em uma regio naqual os ndios sabiam manejar o arco com per-feio de modo que, por cautela, a comitiva seretirou o mais rpido possvel de to perigosolocal. Dias depois, Rondon e Kermit descobrem,na margem esquerda, um novo rio, e Rondonbatizou-o como rio Kermit. E na manh se-guinte, Rondon leu na ordem do dia que, pordeciso do governo brasileiro, o rio da Dvidapassaria a chamar-se rio Roosevelt.

    ompletando um ms de viagem e 160quilmetros percorridos, mais da metadedas provises j havia sido utilizada.

    Com todos os desafios que tinham pela frente,tiveram ainda a m sorte de descobrir que umdos seus remadores, chamado Jlio, era por na-tureza velhaco e malandro: alma de co danadoem corpo de touro.

    Consciente de que a genuna explorao dasselvas to perigosa quanto a guerra,Roosevelt se d conta de que o grupo vivia umasituao muito precria, na qual qualquer per-versidade latente na natureza humana poderiaexteriorizar-se, esclarece com algum conheci-mento da alma humana. Foi o que ocorreu comJlio, o remador de maus-bofes que, sob apresso do trabalho, dos sacrifcios e dos pe-rigos, sua natureza revoltou-se, revelando-se-lhe o instinto do egosmo, covardia e feroci-dade, explica o autor. O fato que Jlio vinharoubando comida e fazendo corpo mole na horade trabalhar. Por causa disso, o sargento Paixo(Paishon, para os norte-americanos) o re-preendeu. Jlio, tinhoso como era, segundo adescrio roosevelteana, emboscou e matouPaixo. Esse episdio foi explicado por TweedRoosevelt:

    Rondon e Roosevelt tiveram um srio de-sentendimento no episdio envolvendo Jlio(...). Ele no apenas fazia corpo mole para astarefas, como tambm era ladro, e rouboucomida das j parcas provises comunitrias. Aoser pego, sacou uma arma, assassinou Paishon, oinfeliz remador que o delatara, e se embrenhouna selva. Foi nesse momento que surgiu o con-flito. Roosevelt, argumentando que manter umprisioneiro sob custdia colocaria em risco todaa expedio, defendeu que Jlio fosse ou aban-

    Mapa dopercurso daExpedio CientficaRoosevelt-Rondon

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    donado sua prpria sorte ou capturado esumariamente executado. (...) Rondon reagiudizendo que execuo no era uma opo vlida,j que no Brasil no havia pena de morte, masera seu dever tentar capturar Jlio. A palavra deRondon prevaleceu e a expedio foi interrom-pida por algum tempo pela infrutfera tentativade captura. Roosevelt aceitou a deciso, maspessoalmente a considerava um erro.

    Por dois dias, Jlio ficou sumido. No tercei-ro, apareceu nas margens do rio, gritando quequeria se entregar. Da canoa, Rondon fez queno ouviu. Roosevelt, que vinha na canoa detrs, fez o mesmo. Na prxima parada, os doiscoronis (Rondon e Roosevelt tinham a mesmapatente militar) discutiram o assunto e cada umfez jogo de cintura para evitar responsabilidadepelo destino de Jlio. Rondon, por fim, enviouum destacamento de homens em busca dohomicida, mas este no foi encontrado desde

    ento, e dele nunca mais se ouvir falar.

    parca alimentao e esforos fsicos foramarrefecendo o nimo da comitiva e

    ceifando a sade dos homens. Todos sofriam dealgum mal. Estavam exauridos de foras erecursos. Para animar o corpo, pescaram umpiraba com mais de um metro de comprimento.O fascnio do estrangeiro ante a fauna ama-znica revelado pelo espanto que causou aosnorte-americanos encontrarem um macaco noestmago do piraba que tinham pescado.

    Nesse clima pesaroso, levantaram acampa-mento na manh do dia 15 de abril de 1914 tris-tes, mas, esperanosos, porque, na vspera, havi-am descoberto seringueiras com incises. Aexpedio prosseguiu rio abaixo, sem obstculos,de tal modo que percorreram 25 quilmetros,em pouco mais de duas horas. Ento encon-traram as iniciais J. A., afixadas em um postena barranca do lado esquerdo do rio. Uma horadepois encontraram uma casa, cujos moradoresestavam ausentes, mas tinham deixado dois cesde guarda. Foi uma alegria geral: enfim, a civi-lizao, devem ter pensado os integrantes daexpedio, semi-mortos de tudo, de fome, decansao, de doenas, de fraquezas e, sobretudo,de saudades dos seus lares. Decidiram partirimediatamente, e uma hora depois, navegandorio abaixo, encontraram outra casa igual ante-

    rior, s que nesta encontraram um preto quelogo demonstrou a delicadeza inata do homemdo interior do Brasil, elogia Roosevelt, mos-trando perspiccia ao captar esta singularidadedas populaes rurais do Brasil.

    Sobre o percurso vencido, Roosevelt diz:Antes, ficramos admirados de descer um riomais ou menos igual ao alto Reno ou Elba e decuja existncia nenhum gegrafo tinha a menoridia, entretanto dali em diante tratava-se deum rio, cujas margens eram habitadas (...) haviaoito a dez anos; e, contudo, nem ao menos umtrao se encontrava nas cartas geogrficas ofici-ais que denotasse sua existncia!, proclama.Isso significa que ali onde o estado e a cinciaainda no haviam estabelecido seus marcos nor-mativos e denominativos, o homem comum, oannimo seringueiro, j havia adentrado,descoberto, desbravado e tomado posse daAmaznia.

    Assim terminou a aventura. Roosevelt partiuem 7 de maio, de Belm para Nova Iorque. Le-vou consigo, em seu organismo, o mal da ma-lria que terminaria por cobrar a posteriori opesado tributo de vida que o rio (des)conhecidoimpunha aos que nele ousassem navegar.

    importante frisar que, no obstante seuinfatigvel af caador, Theodore Roosevelt considerado um protetor das florestas e umgrande naturalista. Segundo Tweed Roosevelt, oex-presidente durante seu mandato presiden-cial (1901/ 1909) criou150 parques florestais,51 reservas de proteo s aves e 5 parquesnacionais.

    O relato de Roosevelt enquadra-se na lgicado imaginrio neocolonizador de um ex-chefede Estado que colocou em prtica a teoria dobig-stick, o grande porrete, ainda que tenhasido agraciado com o Prmio Nobel da Paz em1906. Ele olhava e descrevia o mundo desdeuma Weltanschauung baseada na raa pura doNorte, forjada ali onde existe a fixao de corcomo na maioria das regies inglesas.

    Entretanto, a grande e talvez maior contribuio do livro Nas Selvas do Brasil foidescrever as inmeras dificuldades enfrentadaspor aqueles que, desde as profundezas da flores-ta amaznica, labutam no inclemente processocivilizatrio que o povoamento da Amaznia,objetivo estratgico do Brasil.

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  • passando do meio do caminho da nos-sa vida, que Dante achava que era o ano35, baseado no Salmo 90: os dias danossa vida sobem a setenta anos, tam-bm mi ritrovai per una selva oscura,ou seja, a das margens do Rio Madeira,s vezes prisioneiro dos delegados queno acreditavam na carta do presidente

    Geisel apresentada pelo chefe da excurso, o cien-tista Paulo Vanzolini, e muito menos que aquelebarco atrelado a um rebocador servisse somentepara pegar lagartixas. O jeito era ficar ali dias edias at que viesse confirmao de Manaus. Eraum barco de pau, sem energia eltrica,nada de refrigerador, comamos o que

    amos encontrando, peixe principalmente, muitobem preparado pelo cozinheiro Valter, com fari-nha de paneiro. Neste barco principal amos cin-co. O referido Vanzolini, fumando cachimbo, can-tando samba-de-breque e lendo Os Lusadasquando no brincando com uma cobrinha vene-nosssima em cima do tampo da mesa nica, nahora de jantar era de jantar e nas outras virava la-boratrio, dando petelecadinhas na cara dela como dedo indicador e dizendo: Eu s queria saberque cobrinha essa!. Depois escreveu de SoPaulo: Lembra daquela cobrinha? venenoss-sima. O cientista americano Ronald Heyer da

    diviso de rpteis e anfbios do Museude Histria Natural de Washington e

    AbenoadaAmaznia

    Jos Cludio

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    Jos Cludio, ndios Mundurucu, Rio Canum, Aldeia Coat, leo sobre tela, 40 x 49cm, 1975. O Rio Canum afluente do Rio Madeira

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  • sua esposa Mirian, exmia pegadora de rs. A es-pecialista em drosfilas, umas mosquinhas quepairam em cima das frutas, a entomologista, pare-ce que o nome esse, Francisca Carolina do Val.E eu de contrapeso. Dormamos em rede. Isto ,eu comecei na rede e depois resolvi forrar a redeno cho, que nunca dormi bem em rede. De noite,o taifeiro Alonso, que quando no estava no lemevivia mais no rebocador, armava a rede no nossobarco. No rebocador tinha mais o maquinista eFilomeno, pau para toda obra. Comamos todosna mesma mesa, menos Valter cujo ofcio de cozi-nheiro englobava o de garon. Vanzolini mantinhaa tradio das antigas expedies cientficas de le-var um desenhista, e cheguei mesmo a pintar al-guns quadros de r e outros bichos alm de vistasda mata e das cidades ribeirinhas, atualmente noPalcio dos Bandeirantes, de So Paulo, adquiri-dos pelo governador Paulo Egdio. Nessa poca,eu tinha 43 anos.

    No catlogo da I Bienal do Mercosul, PortoAlegre, 1997, Frederico Morais se enganou dan-do essa minha viagem do Madeira, feita em 1975,data dos quadros pintados durante a mesma via-gem, como posteriores expedio realizada naverdade trs anos depois por Pierre Restany, em1978, Amaznia acompanhado de Franz Krajc-berg e Sepp Baendereck que resultou na publi-cao do Manifesto do Rio Negro, tambmchamado de Manifesto do Naturalismo Inte-gral. O que no deixa de ser valioso para mim,deixemos isso bem claro, o fato de esse trabalhomeu ter sido trazido tona, e no somente esse,por um dos nossos mais extraordinrios crticos eem ocasies de grande relevo como tudo o queconta com a sua presena.

    Para mim, criou-se, criara-se por ela mesma,ou criei de mim para mim a obrigao de entrarno Rio Amazonas ao menos uma vez na vida,como os muulmanos tm de ir a Meca, faltando-me esse ponto na minha brasilidade. Sem ilusesde maravilhar-me. E no tive dvidas quandoVanzolini me convidou por telefone para essa via-gem de uns dois meses, de barco, saindo de Ma-naus, pegando a boca do Madeira, at depois dePorto Velho, onde tem as cachoeiras de Santo An-tnio. J havia iniciado aqui em Olinda a pintardo natural, frutas, bichos, coqueiros, ruas, paisa-gem de mar, justamente sentindo que j estava domeio pro fim sem ter pintado minha terra, as coi-sas de que realmente gostava, gente, minha terrae meu povo, digamos assim. Mas sem nenhumapatriotada. Uma necessidade natural. Sem pensar

    em ser grande pintor nem nada, at desistindo deser pintor pode-se dizer.

    Mas a, num lugarejo de Rondnia, So Car-los, aconteceu um fato extraordinrio. O delegadodesse lugar, que se declarava ex-cangaceiro e con-fessava nunca ter se livrado do vcio de matar pelomenos um por ano, meio assararazado, amanheciao dia dentro do barco, todo de branco, palet, co-mo se em visita a palcio. E ali ficava geralmenteme olhando pintar, to assiduamente que at meesquecia dele. O barco, preso, como de costume.At que viesse licena de Manaus. Um dia, crioucoragem e disse que gostaria ter um quadro. Maspercebi no ser daqueles quadros que eu estavapintando. Perguntei que quadro era que ele que-ria. Um ndio flechando uma arara, respondeuprontamente. Ele vivia no meio dos ndios, masndios de radinho de pilha, vestido de calo.Imaginei que gostaria de ndio vestido de penas,de cocar, como a gente pintava na escola. E assimfiz, a flecha atravessando a arara, que ali a gentevia aos pares, voando alto, o pingo de sangue con-tra o azul do cu. Ele me obrigou a despregar dosuporte mal tinha dado a ltima pincelada. Ex-pliquei-lhe que era melhor deixar secar, e infeliz-mente no podia lhe ceder o suporte, onde iria es-ticar outras telas. Ele disse que j tinha onde botaro quadro: pregado atrs da janela da sua casa,uma janela azul de tbua inteiria que dava paraver do barco. Saiu correndo como uma criana.Queria me dar um revlver novo, niquelado, acoisa mais preciosa que ele possua, me disse, eque nunca tinha dado um tiro, na caixa em queviera da fbrica. Ante minha recusa, mandou nodia seguinte, a filha me entregar pessoalmenteuma bandeja de pamonhas feitas com leite de cas-tanha, realmente uma coisa especial, sua filha alismuito bonita, de uns quinze anos, agalegada,meio torezinha. E liberou o barco!

    A eu vi que muita gente gostaria de ter umquadro, pagando regiamente, desde que o pintorpintasse o quadro que o cliente tivesse na cabea eno o que tivesse na cabea do pintor.

    Ao voltar aqui para o Recife, disse a NaraRoesler, Madeline e a outros marchands comquem comecei a trabalhar que perguntassem aosclientes pormenorizadamente o que gostariamque eu pintasse. Eu teria muito a dizer sobre oassunto, mas resumindo, a minha pintura me-lhorou muito e nunca mais faltou encomenda.

    Jos Cludio pintor e escritor

    Continente Multicultural 15

  • No completo domnio da sua matria,ele atingiu aquela altura em que o artista faz o quequer. Delibera e cumpre. E urde novos desafios.

    O olho de Jsobre a

    ES

    PE

    CIA

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  • oo Cmara possivelmente onico pintor brasileiro deste s-culo a haver criado um cosmos.Isto quer dizer muito mais doque representar, em diversas su-perfcies, figuras. Consegue al-go maior: a criao de uma mi-

    tologia pessoal. A formulao de uma narrativa,onde h o ordenamento de um mundo vivo. Masque unicamente pintura e desenho.

    Tudo o que posto sob esse olhar que pensaest em situao reflexiva e muitas vezes crtica, a

    comear da prpria pintura. Da as recorrncias ironia, pardia e, de modo mais intenso, a umaespcie de anatomia das coisas e das imagens.Num ver levado aos extremos. Age, nesse exerc-cio quase clnico com as formas e cores, um do-mnio rigoroso da tchne, que formula o novo. Da ver o que antes ningum vira porque era s ima-ginao, ou passava ao largo, no canto do olho.Ou vira outra coisa.

    Com duas grandes sries Cenas da Vida Bra-sileira e Dez Casos de Amor o pintor conseguiuentranhar-se no tempo do poder e do amor e

    JFotos de Fritz Simmons

    oo Cmaras cidades

  • 18 Continente Multicultural

    narr-los. Mas, ao terminar a ltima, iniciou ou-tra, em que a sensualidade e poltica esto fundi-das num plano ainda mais complexo. A srie, pre-vista para estar concluda apenas em setembro doprximo ano, ter 25 grandes obras.

    Quem j pde visitar o ateli do artista e ver oseu work in progress teve o privilgio de acompa-nhar o visvel vigor e rigor com que cada pea vaisendo composta. Mais do que simples virtuosis-mo, o que se tem em Cmara a conscincia detudo o que diz respeito ao seu ofcio. Eu sou da-queles camaradas que acham que o pintor quepinta figuras tem a obrigao intrnseca de saberpintar tudo, ele diz.

    No completo domnio da sua matria, ele atin-giu aquela altura em que o artista faz o que quer.Delibera e cumpre. E urde novos desafios. umofcio muito restrito porque so poucos os que es-to qualificados para ele, explica, referindo-se pintura, hoje relegada a um canto discreto, por-

    que no s um gesto de arte. A vanguarda ex-trema implica no fato de que qualquer pessoa comum conceito, uma idia, pode viabiliz-la visual-mente, no precisa ser um pintor para fazer isso,ou ele pode prescindir das regras, dos instrumen-tos e dos suportes de ofcio e fazer alguma outracoisa.

    No reino do conhecimento, muitos so os ar-tistas chamados e poucos so os pintores escolhi-dos, de fato. Da a largueza do termo arte concei-tual, que Cmara considera recuperando a purezaoriginal da palavra conceito, que significa concep-o, inveno. Nesse sentido de engenho se faz to-da a sua obra. E na dificuldade auto-imposta.

    Nas pginas seguintes, so mostrados, em pri-meira mo, os trabalhos inditos da nova srie,Duas Cidades, e alguns exemplos de outras obrasde Joo Cmara. Tudo enriquecido com os co-mentrios do prprio artista e o ensaio indito deFerreira Gullar.

    A Passagem Malakoff,(dptico) leo sobre

    madeira e tela,250x160 cm, da srie

    Duas Cidades

  • Continente Multicultural 19

    Em 86/87, fiz um lbum e um painel votivosao meu pai, quando ele morreu, chamados O Olhodo Meu Pai Sobre a Cidade. A partir da, comecei afazer o recolhimento de imagens e dei o ttulo Du-as Cidades. Isso disparou um projeto que estavaencapsulado no tempo e que comeou, curiosa-mente, numa viagem que fiz nos Estados Unidos,de Washington para Los Angeles. Vi que estavafazendo uma viagem de uma cidade institucionalque emite poder, uma espcie de controle do mun-do, at o outro lado, na Califrnia, onde est a in-dstria cinematogrfica, que outra emissora depoder mas da fantasia, do jogo, do divertimento e que, no entanto, se vincula da mesma maneira ortodoxia emanada pelo poder de Washington.No preciso ir muito longe para verificar essa si-

    metria, o smile desse percurso. Vivo em Olinda,cidade de fundo histrico, sentimental, lrico, e ex-peo a minha vida prtica no Recife, que um por-to, uma cidade mercantil e administrativa. Meu paidizia que no gostava de Olinda desde o tempo daGuerra dos Mascates, por conta da oposio fran-ca entre os comportamentos de Olinda e do Recife.As polaridades nas cidades, da dupla vida, da or-dem racional e da vida emotiva, esto tambm emvoc. Os percursos so psicolgicos, topogrficos,histricos, geogrficos, h sempre essa polaridade,e isto realmente est na base da construo do pro-jeto Duas Cidades, que toma como suporte o Recifee Olinda, mas poderia ter tomado como suportequaisquer outras cidades para esse jogo de polari-dades.

    Olinda leosobre tela,240x180 cm,da srie DuasCidades.

    O Olho do Meu PaiSobre a Cidade(trptico) acrlicosobre tela,480x160 cm

    Legenda Legenda Legenda Legenda Legenda

    Poder em vo

  • A Ponte Nova leo sobre tela, 240x180 cm,da srie Duas Cidades

  • A idia de tomar o Recife e Olinda como temapara essa contraposio, essa passagem de estadosentre locais e posies psicolgicas, sentimentais eestticas inclusive, d-se por comodidade: so ascoisas que esto prximas. O fato de morar e tra-balhar em Olinda tambm resulta de uma atitudepragmtica. No vim pelo sentimento de me gla-mourizar, me encastelar numa cidade que tem fun-do histrico, o que at chateia. Passa turista demaisaqui. Vim porque as casas so grandes e baratas eh lugar para botar esses quadros todos.

    O Recife uma cidade plana, Olinda encastela-se em pequenos morros. A prpria disposio des-sas duas cidades mostra um smile com relao a si-metrias mentais na percepo das cidades, o queme interessou. A dificuldade de executar isso que,embora se possa fazer um projeto orgnico, opera-cionalmente ele teve de ser diludo na prpriatransformao, porque eu pinto outras coisas, queemergem da minha produo corrente, o que sig-nifica que, embora as cidades permaneam mais oumenos as mesmas, o morador vai mudando. Halteraes de percurso que no permitem um pro-grama rgido na execuo das coisas. A srie tempainis grandes e alguns incluem objetos incrusta-

    dos, em relevo, que se sobrepem, comentam, e-mergem da pea, irrompem. So extraes do rio,dos pavimentos da cidade, os seus sedimentos. No uma produo paisagstica clssica. As figuras, ospersonagens, porm, esto todos fora da pintura.Esto previstos alguns habitantes pintados empranchas slidas de face dupla, dispostos e expos-tos anacronicamente: de um lado pode estar, porexemplo, Maurcio de Nassau e, do outro lado, oaleijadinho que pedia esmolas ali, na ponte da BoaVista.

    As pinturas de Olinda, mal comecei. Parti doRecife, primeiro porque uma cidade plana, vemdo plano para o alto. De Olinda, agora, h apenasuma paisagem do Alto da S, e que uma espciede perverso de paisagem de carto postal. Jogacom o defeito que o carto postal tem, que a coisapitoresca. Apesar de que, rigorosamente, eu quisbasear essa srie no na escolha de pontos pticosculminantes das cidades, mas naquilo que chamode recantos que so madrastos, que so perversos,pequenos detalhes mal observados, olhados pelocanto de olho muito mais do que pela grande

    22 Continente Multicultural

    Pilastras leosobre tela,

    220x160 cm,da srie Duas

    Cidades

    Perverso da paisagem

    Simetrias mentais

  • angular do estado de estar cativado, de se deixarcativar pela paisagem. O mais difcil na paisagemno exatamente o esplendor, mas o detalhehumilde. Ento, para voc construir as cidades, vocaposta mais nos detalhes que no so imediatamenterevelados do que nos grandes panoramas sedutores.

    Trabalho num campo que delimito extrema-mente, a delimitao consciente de um territrio.Trabalho com a figurao e, s vezes, com a inser-o da figurao realista, e isto no significa que euseja um pintor realista, mas que eu uso um instru-mento realista para dizer algumas e vrias coisas. Ofato de usar a pintura realista implica em que voctem de ser extremamente crtico na percepo dotema e da confeco, porque h sempre o risco deresvalar na mesmice. H tambm um limite crticoa que voc tem de estar muito atento. claro que

    quando voc incorpora, no prprio objeto, os seusinstrumentos crticos, eles tambm so a chave paraa confeco e a leitura, mas exatamente por causada alta incidncia realista. A franquia realista alienaa questo pessoal. Quanto maior a intensidade ve-rista ou naturalista, mais expropriado fica o ser in-dividual, coisa curiosa, porque, por outro lado, aalta incidncia realista confessional, ao acessar epermitir uma alta dosagem de transcrio. Gostodestes dois fios de navalha.

    Todo mundo pensa, quando olha esse painel dorio Capibaribe, seus reflexos, que ele remete a Mo-net, porque ele pintou as suas Nimpheas debaixo doarco da ponte e criou um paradigma para a pintu-ra de reflexo, das mutaes de reflexo atmosfrico.E, no entanto, o quadro que mais me interessacomo artista, para a execuo de uma obra nesse

    Continente Multicultural 23

    Silos acrlicosobre tela,200x200 cm, dasrie DuasCidades

    Olho crtico

    Solidez e fugacidade

  • O Rio (polptico com objetos) leo sobre tela,13x2,17 m, Obra em andamento

  • clima, a vista de Delft, de Vermeer. Esta pinturatrata da mesma questo: a solidez da cidade e a fu-gacidade do seu reflexo, o que implica na questodo tempo e, conseqentemente, na questo da me-mria. No por outro motivo que essa pintura deVermeer era adorada por Proust, um memorialista.

    Nas Duas Cidades, voc tem o que exatamenteconstruo e o que so as coisas de fluxo, os fluxosareos e o fluxo do rio, que so indicadores detempo. Designo o Zeppelin como uma espcie deesprito do ar. Ele passa sobre a cidade, e, efetiva-mente, passou. O Recife um porto, tambm, umporto de mar, e porto areo. Foi porto do Zeppelin.

    O Zeppelin se assemelha a uma nave martimanavegando nos ares. Dentro do Zeppelin vaga umaidia de percurso aleatrio, e, embora ele seja diri-gvel, no h quem prove que uma coisa oca comoaquela tenha o seu destino traado mecanicamente;diferentemente de um avio, mais aparentado comuma seta, um pssaro disparado. Este carter deapario, de fantasmagoria flagrada, d ao Zepellino seu papel de esprito areo.

    Duas Cidades, como srie, completa uma trilo-gia, forma a terceira perna desse trip que comeacom as Cenas da Vida Brasileira. As Cenas tratam,dentro de uma caixa de cenrio, da incidncia dosfatos polticos que vo de 1930 a 54, que o pero-do de Vargas.

    uma tomada do interior poltico do Brasil, davirtualidade poltica, como ela se refletiu na minhaobra, no trabalho e na vida da minha gerao, napercepo da minha infncia poltica, enfim, a srielida com essas coisas. Em seguida, houve a sriechamada Dez Casos de Amor e Uma Pintura deCmara. Esta foi um roteiro fixado na relao decasais, sua simulao num ambiente fechado. tambm um trabalho de pintura que tem conesslidos e gravuras papis cortados que comen-tam, que ampliam, que so cartas de amor, situa-es amorosas flagradas no discurso slido e entro-nizado dos painis. A srie trata a questo interiore carnal, enquanto o conjunto das Cenas da Vida

    Brasileira revisa o tempo dos cones que cons-tituram uma histria, as coisas polticas. A histriados Dez Casos a histria da carnalidade, seus ava-tares...

    As duas sries so, entretanto, obras de interior.Duas Cidades, por seu lado, historia a oscilao si-mtrica do estado de alma, exibe passagens que to-mam suporte fsico para emitir o itinerrio dos per-cursos da alma. Ela trata da questo da paisagem,do ambiente, da exterioridade. Acho que essa trilo-gia se fechar assim, na questo da memria, dacarnalidade e na questo do mundo onde essas coi-sas se inserem.

    Trabalhei a srie das Cenas da Vida Brasileiraentre 74 e 76. A srie dos Casos de Amor tomou seteanos de 77 a 83. Duas Cidades comeou em86/87, sendo pensada originalmente em 84 e defla-grada em 87. Os quadros esto todos retidos aqui,vendi um apenas, na condio de ser integrado exposio quando a obra for exibida em conjunto.No tenho pressa, mas tenho angstia de terminaro trabalho. Imagino que os painis de pintura dasrie devam ser em torno de 25 peas, mais unscinco ou seis objetos, e algumas pinturas em duplaface, de meio de sala, que representem as figurashabitantes da srie. H, por exemplo, um auto-retrato que uma espcie de totem e que deve sercolocado ao lado dos painis, e no s para ter areferncia do chamado testemunho fsico, da pre-sena humana. Assim como este auto-retrato, ospersonagens habitantes devem trazer uma incidn-cia humorada, so intrusos do mundo e das cidadesparticulares que o artista constri.

    Eu e meu marchand, em So Paulo, temos co-meado a pensar sobre a destinao da srie. Natu-ralmente, eu teria todo o interesse de ter a srie todanum mesmo local, mas para 25 obras nesse forma-to e tamanho, voc teria de ter um museu s paraisso. Os museus brasileiros no tm mais lugar praquadro, nem pra nada, e mesmo o que j est guar-dado no exposto direito. O que a gente est ima-ginando para o futuro, quando a srie ficar todapronta, dividir. Separar um ncleo, que s possaser vendido em conjunto elegeramos 12 obrasrepresentativas e mais alguns objetos que resumis-sem a inteno da srie, e liberaramos a vendapontual das outras.

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    Dilogo serial

    Estrutura das peas

    Esprito do ar

  • Nesse painel do rio que eu estou fazendo, h uma freqncia muito alta de azul, que uma cor dif-cil. Bom, primeiro porque o rio no azul o rio barrento, um esturio principalmente de aluvio.H a uma certa ironia. Marcel Duchamp, que era muito crtico de tudo o que fosse prximo do sensocomum e da vulgaridade, tem uma anotao nos seus escritos que : evitar a imbecilidade do azul. Oazul mesmo uma cor muito idiota, atmosfrica, feliz demais. Mas isso depende muito de onde ele est.H um cemitrio numa colina, ali perto de Paulista, que todo azulzinho leve, celeste, para os defun-tos irem para o cu. , portanto, um azul que pode ser mrbido tambm. No caso do rio h um exer-ccio de ironia natural, pois o rio no intrinsecamente azul. No painel h latas objetos feitos quecontm as tintas que foram usadas na pintura do rio. Elas derramam azul e ocre nas guas. Fazem orio tingido. A propsito, h uma cidade na Paraba chamada Rio Tinto...

    Eu vim morar em Olinda, que uma cidade enladeirada e algo parecida com JooPessoa, como se do alto da ladeira de So Francisco se avistasse um pedao do vale do Sa-nhau. Uma coisa diferente de Joo Pessoa para o Recife que o porto de Joo Pessoa o longnquoCabedelo, enquanto, no Recife, o porto se confunde com a cidade. Em vez de rio, fluido, Joo Pessoatem uma lagoa. Isto cria uma diferena de esprito: no Recife, o rio vem e atravessa a cidade. NaParaba, a gua se represa num centro. Espera-se a transformao daquela gua. Em luz, por exemplo.Na minha infncia, havia uma fonte luminosa. No Recife, como dizia o outro, o rio flui para formaro oceano Atlntico...

    Continente Multicultural 27

    Leis Escritasngua leosobre tela,240x180 cm,da srie DuasCidades

    Paraba e Pernambuco

    Imbecilidade do azul

  • Quando uma idia artstica acomete, precisoum estopim emocional para que ela passe aos fatos.No caso das Duas Cidades, a idia se corporificou du-rante a viagem de Washington para Los Angeles.Eu tinha terminado Dez Casos de Amor, e a idia dapaisagem que ordena e pontua o fluxo entre a razoe a fantasia, entre a vida prtica e a vida sentimental,entre a memria e a praticidade, ela precisava ter o

    gesto, o estopim emotivo para disparar. E isso s aconteceu quando fiz o painel votivo em homenagem aomeu pai. Ele foi leitor de Joyce muito antes que este comeasse a virar cult. Eu at tenho o Ulisses, com asanotaes suas. Dei-lhe o Finnegans Wake. E ele comeou a ler. Mas isso uma pedreira que s se l comdicionrio e materiais de referncia. Meu pai envelhecera e adoecera, os ltimos cinco anos de vida deleforam muito difceis. Ele perdeu a pacincia, e eu fiquei na obrigao de ler o Wake, quase como na histriado Homem que Sabia Javans.

    O rio Liffey, em Dublin, est no percurso ntimo e substantivo do Wake. Quando voc vai fazer umquadro votivo sobre um homem leitor do irlands e que nasceu e viveu no Recife, cujo rio o nutriente fatalda cidade, voc ter obviamente de contrair o trocadilho; um Capibaribe e um Liffey, esses dois fluxos seatravessando, se comunicando. O mundo contido nestas cidades-rios.

    Olhando a srie Duas Cidades, vem-se perfis que se podem identificar. Uma igreja ali, uma torre aco-l. Mas, na verdade, no um retrato pitoresco nem verista das cidades, h elementos de realismo, refle-xos. H um pouco de mangue, que ali colocado, mas numa espcie de intruso, de alegoria. H botos,que antigamente passeavam rio acima, mas nada disso caracteriza tipicamente a cidade. penoso amar umacidade pelo que dela apenas se v. Como as Cenas da Vida Brasileira, que tambm no so um documen-trio poltico, no caso das Duas Cidades, parte-se da cidade onde se vive, e dela se procura extrair umaexistncia diferente. Tolstoi dizia:pinta a tua cidade e pintars omundo, e eu gosto muito de acres-centar a isto: e tambm pintars aplaca do barbeiro, de graa.

    Vejo muitos escrevendo e pintandoo Recife com muita sinceridade, masquase sempre fazendo uma rplica doque seja a cidade. A rplica sempremenor. Este o problema do realis-mo: a rplica sempre menor do queo modelo, mesmo quando a rplica gigante. Na ampliao, h uma rar-efao da substncia e do contedo.

    Para evitar este ardil, os ngulosde observao da srie so, preferen-cialmente, os da confabulao de ima-gens, da ruptura da geografia tpica,da leitura anacrnica e no linear damemria.

    28 Continente Multicultural

    Contra o pitoresco

    Cidade Verde acrlico e leo

    sobre tela,200x200 cm,da srie Duas

    Cidades

    Capibaliffey litografia do

    lbum o Olhodo Meu Pai

    Sobre a Cidade

    Capibaliffey

  • Esta uma srie altamente verbalizada, no sentido de que uma imagem pode ser um signo, uma excla-mao, a concreo de uma palavra. No vejo problema em que se use a expresso arco, por exemplo, paradesignar uma espcie de gesto vegetal. Esse estgio ou passagem que se chama hoje, com muita insistn-cia, de metalinguagem, para mim um fato natural na pintura, existe o tempo todo. O suporte terico quepermite o trnsito, a passagem sutil entre sinais fechados, mentais, reificados, para mim um fato natural.Voc pode usar para isso, por exemplo, a formalidade, o tamanho de um quadro, como este que est feitoem 13 metros de comprimento para demonstrar o fluxo do rio. A expresso rio se completa na formalidadeda obra. Poderia ter feito a imagem em perspectiva, o que economizaria um grande espao e que, no entan-to, no serviria idia de fluxo. Trabalhando sobre o rio Capibaribe, naturalmente, voc tem de pensar noCo Sem Plumas, de Joo Cabral. Est claro que fiz um rio mais emplumado, at com certa ironia. Fiz ocaminho inverso, inclusive como os botos que sobem o rio. Eu me aproximo muito do gosto de Cabral pelaconstruo, pelo corte seco nas coisas, embora eu no trabalhe o grau conceitual e de abstrao e reduometafsica, que s vezes Cabral trabalhava, porque o suporte dele aderia a uma ordenao quase matemti-ca, filosfica.

    Aprecio muito cortar a forma, dar o contorno preciso, reto. As ordens verticais e horizontais. Olinda mais vertical do que o Recife. Por isso, eu comecei pelo plano para depois chegar no alto. O pessoal fala debrincadeira que Olinda muito boa para olhar o Recife do alto. No painel que tem o Zeppelin, h uma vistapanormica do Recife, que chega at aqui, casa vizinha do meu ateli em Olinda.

    Na poca em que comecei essa srie, pediram-me para eu fazer um desenho em homenagem a MauroMota, e o que eu fiz foi o seguinte: peguei um soneto dele e o refiz assim: a primeira linha era um campo,a segunda linha parecia um riozinho. Depois, fui construindo os quartetos e tercetos como linhas de paisa-gem, e terminava justamente nas pontes do Recife. Voc transforma visualmente as palavras em pequenasimagens, l o esquema do soneto, 4-4-3-3, como linhas de paisagem. Julgo boa a idia de escrever a pai-sagem para homenagear Mauro, que era poeta egegrafo. Essas coisas so exemplos do que ocorreno cotidiano da feitura de uma srie demorada.

    No fazer pictrico, h sempre a questo da sen-sualidade. Falo em sensualidade no sentido lato dapalavra. E, neste sentido, a memria poltica umaparte sensual tambm. No estamos falando somen-te da gentica da reproduo, mas da permanncia.H sensualidade em acariciar a permanncia. A me-mria sensual nesse aspecto. Alis, a memria umconsolo sensual da senectude.

    Imagina-se que me interessariam todos os pin-tores de alta carga simblica, de alta intromisso eremisso literria. Eu no estou interessado nisso emespcie. Interessa-me muito mais a alta compactaoda forma, no sentido de que ela seja concreta, visv-el, ntida, e que ela corresponda de modo unvoco aoseu conceito. Quanto maior a intensidade do con-ceito em que a forma se expressa, mais ela capaz degerar significado. Falo aqui em conceito nas suas for-mas radicais e cognatas: concepo, idia, engenho,imaginao.

    Continente Multicultural 29

    Dez Casos de Amore uma Pintura deCmara detalhe

    Forma sensual

    Poesia e pintura

  • Imagem do estdio do artista,com obras de diversos perodos

  • 32 Continente Multicultural

    ois traos caracterizam basica-mente, no meu entender, aobra de Joo Cmara Filho:uma linguagem figurativa tec-nicamente sofisticada e umaelaborao intelectual intensa,presente do incio ao fim do

    processo criador. Esses dois fatores determinam,por sua vez, a particularidade de sua pintura e asituam de modo inconfundvel no mbito da artebrasileira. Se verdade que ele, como parte dagerao que surgiu nos anos 60, possui traos ca-ractersticos dessa gerao, no menos certo que,

    DJoo Cmara mestre em desvelar a estranheza das formas, especialmente das formas humanas

    Ferreira Gullar

    Cmarae a reinveno do real

    Ilustrao para o texto O Cavalo da Casa Hohenzollern, do livro Originais, Modelos, Rplicas, de Joo Cmara

    REPR

    OD

    U

    O

  • em sua obra, esses traos ga-nharam funo e significa-o peculiares: o retorno linguagem figurativa, por e-xemplo, tem em Joo Cma-ra desdobramentos e conse-qncias que no vejo emnenhum outro artista con-temporneo.

    Para bem compreender-mos essa questo, tomemoscomo exemplos as duas famosas sries por ele pin-tadas: Cenas da Vida Brasileira e Dez Casos de Amore Uma Pintura de Cmara. A primeira, como sesabe, tematiza os anos do governo Vargas (1930 a1954) e, conseqentemente, lida com persona-gens reais da vida poltica brasileira; a segundasrie, por sua natureza intimista, no se interessapela representao ou caracterizao de perso-nagens e, sim, pela explorao pictrica da si-tuao ertica sugerida. O que h de especficonessas duas obras que as tornam tipicamente ca-mareanas? De sada, o fato mesmo de serem sriese no obras isoladas, e em seguida, os recursosfigurativos usados pelo pintor, diferentemente,nas Cenas e nos Casos de Amor. Nas Cenas, choca-nos a insero, junto a personagens histricos, deobjetos como vasos sanitrios, pias, ferros-de-pas-sar-roupas, bids, mquinas de escrever etc. Talinsero, em cenas de natureza poltica, tem umpropsito possivelmente sarcstico e desmis-tificador, visto que procedimento semelhante nose verifica nos quadros da srie ertica, onde opropsito do pintor no desmistificar mas, pelocontrrio, mitificar, gerar uma atmosfera de en-volvimento e cumplicidade por parte do especta-dor. No entanto, essa explicao, a nosso ver, noesgota o significado daqueles objetos, nas situa-es em que Joo Cmara os colocou.

    Detenho-me a consider-los na sua fascinantee metlica realidade de coisa representada: osdetalhes do moedor de caf, da prensa, damquina de costura... Fazem-me pensar emLautramont: Nada mais surpreendente queuma mquina de costura ou um guarda-chuvasobre uma mesa de necrotrio. O objeto, quando

    fora de seu lugar habitual,revela-nos a sua estranheza,a sua forma subitamentesem funo revela-nos aexpressividade da formaem si. Revelar-nos o fas-cnio do objeto e a suaestranheza parte, semdvida, das intenes deJoo Cmara, mesmo por-que, se bem se observa, ele

    mestre em desvelar a estranheza das formas, es-pecialmente das formas humanas. O realismo ob-jetivista de sua linguagem pictrica mera apa-rncia: aprendeu com os surrealistas a se valer de-le para tornar mais verdica a iluso, a violentaoda objetividade.

    A concluso inevitvel que Joo Cmara um exemplo peculiar de pintor para quem a rea-lidade se articula, se pronuncia e se manifesta co-mo sries ilimitadas de imagens, o que est evi-dente em seu mais recente lbum Originais, Mo-delos, Rplicas onde faz uso do computador paraainda mais amplamente violentar as formas e ex-plorar as virtualidades das imagens.

    Podem-se definir os pintores de variadas ma-neiras e cada uma delas corresponder certamentes caractersticas especficas de cada um deles.Em termos gerais, os dividimos hoje em figurati-vos e abstratos. Desnecessrio dizer que a lingua-gem abstrata da pintura no corresponde s ne-cessidades imaginativas de Joo Cmara, paraquem pintar expressar-se atravs de figuras, isto, da imagem das coisas, dos objetos, dos animais,das pessoas, mas tambm de entes fictcios comoanjos ou demnios. Pode-se dizer, alis, que paraJoo Cmara, o pintor, essa distino secund-ria, uma vez que a realidade da pintura consti-tuda de imagens e, assim, tanto faz que sejamimagem de seres reais ou inventados. E aqui che-gamos a um ponto nodal para o entendimento daarte de Cmara, pintor da pintura, metapintor,que dialoga com o mundo no atravs das coisasreais mas das imagens que as representam e noapenas como aparncia mas como essncia. En-tendido, porm, que Joo Cmara age como umaespcie de taumaturgo no universo das imagens,mas tambm como um prestidigitador (e prestidi-gitalizador...) que nos surpreende com as descon-certantes aparies que provoca. O que torna ine-vitvel indagar se ele efetivamente nos mostra aessncia do real ou arbitrariamente a inventa.

    Continente Multicultural 33

    Para Joo Cmara,a realidade da pintura

    constituda de imagens e,assim, tanto faz que sejam

    imagem de seres reais ou inventados

    Ferreira Gullar crtico de arte, poeta e ensastaREPR

    OD

    U

    O

  • 34 Continente Multicultural

    O pintor que amconfabulaes na

    Dallas (trptico) leosobre tela, 480x220 cm,1995

    Cmara tem uma concepo ginsticado corpo feminino, um domnio de suas

    potencialidades plsticas que o leva,muitas vezes, perversidade visual.

  • a as mulheres ou carne da pintura

    o era um homem bonito.Tampouco era rico ou intelec-tualmente interessante. Demeia-idade, discreto, trajandoroupas simples, sem nenhumsinal particular, nada, nele, otornava merecedor de ateno.

    Era um homem absurdamente comum na suaaparncia. Contudo, uma particu-laridade o distinguia dos demais

    mortais. Ele amava as mulheres. Todas. Feias, bo-nitas, jovens, maduras, frvolas, srias. Tinha umjeito especial de atrair as mulheres e de ser atra-do por elas. Um dia, encantou-se com as pernasde uma mulher que caminhava rpido pela cala-da e cujo rosto sequer conseguira ver. Obcecadopor esta viso perseguiu-a pelas ruas de Paris atser atropelado por um automvel. Seria apenasmais um acidente banal na vida da cidade grande.No dia seguinte, entretanto, estavam l, no cemi-trio, a mulher do tenente, a mulher que vivia nacasa ao lado da sua, a balconista da loja de perfu-mes, a funcionria pblica, a bilheteira do cinema,enfim, todas as mulheres que ele amara. Esta his-tria narrada por Truffaut num filme pouco re-ferido pela crtica, O Homem que Amava as Mu-lheres. Agora, escrevendo esta apresentao, apsver os novos quadros de Joo Cmara, datados de1992 a 1995, o belo filme de Truffaut veio-me memria. Porque, exatamente, no sei. Afinal, en-tre Truffaut e Cmara nada existe de comum ano ser que ambos fizeram da mulher um temarecorrente de suas obras. Contudo, a viso queCmara tem do universo feminino bem diferen-te da delicadeza quase puritana de Truffaut. Parao nosso pintor, a mulher antes de tudo um cor-po, com seus atributos e sua indumentria, umcorpo a caminho do social. Cmara tem uma con-cepo ginstica do corpo feminino, um domniode suas potencialidades plsticas que o leva, mui-tas vezes, perversidade visual. Ele torce e retor-ce barrocamente este corpo (como se pode ver emMoloch ou Espelho Finlands), vestindo e desves-tindo suas mulheres numa espcie de girlie showque se desenvolve na intimidade de seu ateli-

    alcova. Do corpo esbelto da esgri-mista malevitchniana (touch!) meni-

    Continente Multicultural 35

    Frederico Morais

    N

  • na-moa de tnis vermelho que se coloca todadesejada no espao planar de Mondrian (que era,alis, um celibatrio convicto e via na mulher umfator de desequilbrio), ngresse Olmpia no bor-del de Manet; dos malabarismos corpreos deDiana caadora (padroeira das virgens e das ar-tes) s peruas riverianas, com sua elegncia fr-vola, temos um painel diversificado da viso doartista sobre o universo da mulher. Nele encontra-mos sensualidade e frieza, enigmas, mistrios, mi-tologias, citaes, aluses, ironias, metforas, ale-gorias, enfim, temos, diante de ns, uma verda-deira usina de significados que se entrelaam, per-mitindo, assim, diferentes abordagens.

    Do mesmo modo como nem sempre a com-preenso de um quadro, o insight revelador, se dquando o contemplamos, mas quando estabelece-mos um elo entre a obra e nossa experincia diriaou com alguma coisa perdida em nossa memria,tambm para o artista, o que aciona sua imagina-o , muitas vezes, um acidente banal, uma fraserecolhida num romance ou filme, um detalhe obs-curo em uma pintura menor repudiada pela crti-ca. Dou um exemplo. Um dia, caminhando poruma rua de Dallas, Estados Unidos, Cmara tevesua ateno despertada para uma placa onde lia-seThe suicide and crisis center, indicando o que,no Brasil, seria chamado, eufemisticamente, decasa de repouso ou clnica psiquitrica. Comoaquele homem que amava as mulheres, Cmaraficou literalmente tomado pelo que acabava dever. Naquele exato momento comeou a imaginarum novo quadro. Por sorte no foi atropelado e,de volta a Olinda, onde reside, pde conclu-lo.Nele, cria uma narrativa vigorosa, extremamenteenvolvente, que comea em tom quase buclico ese fecha em clima onrico realismo fantstico emcenrio hopperiano. H mais verdade neste intri-gante trptico de Dallas do que em muitos ensaiosfotogrficos sobre os horrores de um hospcio, emque pese todo o seu fascnio visual.

    Contemplar narrar. O contemplador recria,continuamente, a obra do autor, dialoga com seuspersonagens, e se ele no est atado a teorias prviasnem a compromissos grupais ou polticos, mas, aocontrrio, deixa a imaginao livre, pode criar, en-quanto contempla a obra, suas prprias histrias efantasias. Esta , alis, uma das qualidades princi-pais da pintura de Cmara. Obras como os dpticosConcerto Privado e O Banho da Sra. Pollock esti-mulam fortemente a imaginao do espectador.

    Qual o enigma de Patrcia? A explicao es-taria no relgio, cujos ponteiros parecem imobili-

    zados para sempre? E o que faz a, neste ambienteto estranho, o cabide sem roupas, que remete aoutro objeto inslito, o medidor que o artistacarrega na srie Dez Casos de Amor e Uma Pinturade Cmara? Patrcia est viva? uma suicida? Acena se passa no interior de um consultrio ounum hospital? dia ou noite? Estamos diante deuma representao realista ou trata-se de um pe-sadelo? Quem esta Marianita Sra. Cruz, quemais parece personagem de novela mexicana, ouesta outra mulher, toda coquette, tia Isaltina? Elasexistem de fato ou so apenas invenes do pintorneste universo confabulado que sua pintura? Eesta outra jovem que vemos, sensualssima, noquadro O Espelho da Memria, que parece estarsendo execrada por uma espcie de tribunal fami-liar, como se tratasse de um assunto proibido queveio tona, subitamente? Seria une nymphe amiedenfance, frase-ttulo de uma tela de Duchamp,que, aprisionando a expresso une infamie den-fance, evoca a palavra famille? Penetrar no univer-so de Duchamp, como, muitas vezes, no de C-mara, ser sempre um ato de voyeurisme, e, nopor acaso, Etant Donns, do primeiro, visto apartir de um buraco na porta, maneira de umpeep-show. Mas no se assustem os leitores destecatlogo, pois Cmara garante que sua pintura pessoal, mas no confessional ou biogrfica.

    pessoal no sentido de que se trata de umuniverso inventado, ficcional e, por isto mesmo,verdadeiro. Mas, por inventado e pessoal que se-ja, este universo obviamente contaminado pelascircunstncias que envolvem o cotidiano do autore do pas. Da este trnsito contnuo entre o pbli-co e o privado, entre fico e realidade, entre omuito prximo e o muito distante, entre o dej vue o jamais vu. impossvel permanecer indiferen-te face a esta pintura perturbadora, povoada porreminiscncias inventadas, cenas apcrifas,falsos retratos, documentos alterados.

    Os futuristas italianos, em sua crtica racionaldo passado e da herana clssica, repudiaram o nuna pintura, no por motivos morais, argumenta-

    36 Continente Multicultural

    H mais verdade nointrigante trptico de Dallasdo que em muitos ensaios

    fotogrficos sobre oshorrores de um hospcio,em que pese todo o seu

    fascnio visual

  • vam, mas pela monotonia esttica, to nauseante efastidiosa, como o adultrio no romance natura-lista. Nu e erotismo nem sempre caminham jun-tos, principalmente hoje em que o corpo desnudofoi banalizado no cinema, na tev, na publicidadee no carnaval. A roupa, como a maquiagem, podeser vista como uma segunda pele e, como tal, elaexalta a sensualidade do corpo mais que o prpriodesnudamento, como se pode ver em Magritte(Filosofia do Boudoir). Para vencer a frieza que es-t na origem do nu, enquanto gnero, Cmaralana mo de vrios artifcios: a fetichizao defragmentos do corpo e de algumas peas do ves-turio, a variedade de penteados e dos adornos(brincos, anis, etc.), ao mesmo tempo que inten-sifica as relaes entre o corpo feminino, os obje-tos e o ambiente. No devemos esquecer que C-mara essencialmente um pintor de interiores. Anatureza s penetra nestes interiores atravs do ar-tifcio do papel de parede ou de recortes. E nos es-paos confinados da casa, como j observei em re-lao s Cenas da Vida Brasileira, os objetos soatores, ajudando a compor a fisionomia geral daobra e do modelo, criando tenses internas. Ouento, como ocorre nas composies maiores,promovendo, como observou o prprio Cmara,

    em texto recente, o desequilbrio da composioantropomrfica, com isso permitindo uma per-cepo mais democrtica do quadro, com reco-meo repetido no olhar do espectador.

    A propsito dos Casos de Amor, Cmara faloude uma pintura carnal. Ora, carnalidade concu-piscncia. E encarnao significa, em teologia, omistrio pelo qual Deus se faz homem. Encarnar,portanto, diz respeito tanto a uma prtica pictri-ca especfica (dar cor de carne s imagens e est-tuas), quanto noo de personificar, tomar vultoou forma, converter-se em carne. Pintor de carnesmasculinas (nas Cenas) e de carnes femininas (nosCasos), Cmara corpo e carne de sua pintura. Oque ele faz so confabulaes na carne da pintu-ra, uma apreciao gozosa dela.

    Neste sentido, mais ainda que s mulheres,Cmara ama a pintura. Erotizao do tema, sim,mas tambm erotizao da cor (o amarelo sensu-alssimo da roupa de Mrcia), das matrias e tex-turas, erotizao da prpria prtica da pintura apulso libidinal que ele coloca na realizao dosseus trabalhos. Pollock pe na sua pintura toda aenergia do corpo, a tinta era como que ejaculadasobre a tela, deitada no cho. Cmara, ao parodi-ar a obra do pintor norte-americano, estende oconceito de pintura all over a todo o ambiente,transformando o dripping (gotejamento da tinta)numa espcie de pattern. No dramatiza assim apintura herica de Pollock, desarrumado e eroti-zando o espao padro da burguesia bem instalada.

    Cmara costuma dizer que um representantedo velho ofcio de pintar. Mantm h trs dcadasum dilogo ininterrupto com a pintura, da o do-mnio que ele tem do meti das tcnicas e dosmateriais, dos gneros e do desenho como basepara uma boa pintura. Seus quadros revelam, emmincias, as conquistas dirias diante da tela, eque ele traz a pblico na forma de uma conversano ateli. Mas ele, no apenas o detentor de umofcio milenar, tampouco , como diz um velho di-tado, bte comme um peintre, mas um pintorerudito, dotado de uma notvel cultura visual e deum slido conhecimento da histria da arte, anti-ga e moderna, e no apenas das ltimas tendn-cias e modismos. Domina a pintura como a teoriada arte, no teme o debate, a polmica, o confron-to de idias e de obras. Cada quadro de Cmaraser sempre um objeto consistente enquanto pr-tica e teoria, e uma fonte inesgotvel de prazer vi-sual e intelectual.

    Continente Multicultural 37

    Frederico Morais crtico de arte

    REPRODUO

  • evo dizer que estas anotaesno pretendem uma tese nemum estatuto sobre a condioda pintura de temas histricos.O assunto aqui tratado comoum natural testemunho pessoaldo pintor, que tem trabalhado

    com a iconografia histrica de seu pas, mesmo quesomente como um dos aspectos de interesse maisamplo na investigao e criao plstica.

    Nesta limitao pessoal e testemunhal de abor-dagem, contudo, se coloca uma das questes cen-trais da pintura histrica contempornea, qual se-ja, o aspecto operacional de demarcao dos cam-pos crticos e narrativos que do forma pinturade temas histricos e a projeo da individualida-de artstica neste cenrio de mobilidades.

    Com efeito, pode-se, de um lado, pensar emuma pintura de gnero histrico, embasada no las-tro documental, narrativo e memorialista, cujocarter extensivamente didtico corresponderia aum programa institucional ou tenderia a ser ab-sorvido por ele. As formas desta absoro ou in-corporao podem mostrar-se sob dois aspectos:seja como a adoo de um sistema acadmico queregula sua projeo sobre o teor iconogrfico enarrativo das pinturas, seja como um regime detextos interpretativos e crticos que condicionamou estreitam o alcance scio-artstico e histricodas obras.

    Exgenas ou endgenas que sejam, as pressesinstitucionais e suas contra-reaes terminam porocultar, sob rtulos e discusses j folclricas so-bre arte de Estado, pintura ofi-cial, etc., a problemtica mais central

    gerada pela inadequao entre os sistemas de refe-rncia e compreenso histrica, de um lado, e osprocessos de significao histrica a que o artistavisa enquanto programa criativo.

    margem deste quadro de discusso, tornadomaneirista e montono, pode-se pensar em umapintura de interveno histrica que no seja o re-sultado de reaes anti-acadmicas ou anti-oficiais,nem sofra, com a carga oposta, todas as seqelas doseu contramolde. Tratam-se, mais certamente, deintervenes histricas num terceiro mundo oucampo crtico diverso, onde o percurso previsveldo pndulo muda, inopinadamente, de plano.

    Mas, antes que possamos considerar essa mu-dana de plano efetivamente ou, ao menos, porseus indcios ou desejos, podemos observar algu-mas caractersticas do sistema de arte enquantoprtica da pintura como operao artstica.

    Arrisco-me a dizer que, nas ltimas duas dca-das (60, 70), pelo menos em meu pas, a prpriapintura foi tomada como uma alvo e um tema emsi para a desmontagem, pelo mtodo contracultu-ral, do que se imaginava como um sistema-smbo-lo do poder. A pintura foi encarada unicamentecomo um produto de luxo tpico da cultura bur-guesa que emoldurava os modos de significaocultural pelo valor argentrio da pea.

    A operao, digamos com um humor acre, dedesmoralizao da pintura-objeto de coleo, ba-seada, honesta mas superficialmente, na crtica erepulsa ao sistema de capital, ao mesmo tempo,gerou uma profusa e rendosa fabricao de gad-gets, mltiplos, etc. Evidentemente, a eliminao

    da pea nica no apagou a figura docolecionador-especulador pelo con-

    38 Continente Multicultural

    Representao histricae expresso crtica

    D

    Esta comunicao foi apresentada em outubro de 1981 ao Frum de ArteContempornea, na cidade do Mxico. Trata, basicamente, de situar a

    questo da pintura de gnero artstico na quadra moderna e , tambm, umresumo testemunhal da experincia do artista sobre o tema e sua prtica,

    sobretudo na criao da srie Cenas da Vida Brasileira.O texto, publicado no Mxico e em Cuba, indito no Brasil.

    Joo Cmara

  • trrio, criou mesmo, com a indstria de peas se-riadas, uma multiplicao demaggica do colecio-nador privado e a conseqente circulao especu-ladora das obras. A questo social no estava a,no tpico terminal da posse do objeto de arte, masno sistema em que a posse cultural era emitidacomo mercadoria.

    Um sentimento de culpa passou a colorir o im-passe tico dos produtores culturais. A fuga dapintura como smbolo do poder do sistema domi-nante coincidiu, no acidentalmente, com a nfasedada a uma radicalizao programtica dos movi-mentos de vanguarda em relao a dois pontos:refutao dos processos tradicionais (entre eles apintura), com o afastamento das tcnicas manuaise estilsticas e adoo de processos interdisciplina-res como prticas compreensivas e criativas.

    A insistncia sobre valores e processos concei-tuais, por dentro e por fora da cena artstica, foi,sem dvida, a resposta da instaurao de uma no-va articulao lingstica provvel sobre a tabularasa criada com a desmontagem dos processos di-tos tradicionais. Toda uma superestrutura de vo-cabulrio e micro-sensibilidades adviria desta tti-ca de partida.

    A instaurao desta nova ordem, po-rm, no se exercia mais, como na pas-sagem do sculo, num campo anrquico,herico e hostil ou no sbio reduto docastelo de pureza duchampiano. Todo oatual regime de trocas culturais organiza-se em velocidade eletrnica e de cima parabaixo. O carter ou estatuto destas lingua-gens, j fortemente cristalizadas nos siste-mas de relaes compreensivas prpriosda prtica interdisciplinar, tendeu a ser di-ludo nas instituies, passando, em al-guns pases, a ser a ponte poltica para ver-dadeiros agentes culturais, ou noutros pa-ses, servindo como know-how de impor-tao.

    Neste estgio, os pintores ou, dizendomelhor, os indivduos-pintores passaram aser os verdadeiros marginais do sistema dearte, restando-lhe a fatia de atuao ditadapelo devorador e conspurcado mercadoconservador.

    Comigo mesmo passou-se um episdioque encaro hoje em dia como uma anedo-ta. Em 1976, realizei, no Museu de ArteModerna do Rio de Janeiro, a exposiodas Cenas da Vida Brasileira 1930/54,composta de dez grandes painis, cem li-

    tografias e um audiovisual interpretativo porFrederico Morais. A exposio teve seu acessonormal desviado por tortuosos corredores secun-drios, pois a sala principal (cuja metade era ocu-pada pela minha exposio) era repartida comuma feira de bebidas alcolicas qual eu, talvezinfelizmente, no tinha acesso por minha mostra.Noutra pequena sala, ainda mais escondida, expu-nha, outro artista, um conjunto de pequenos obje-tos e esculturas em diversos materiais. Convers-vamos sobre as ajudas de custo dadas pelo Museus exposies. No meu caso, disse-lhe eu, odinheiro no deu sequer para pagar o frete, e asobras viajaram sem seguro, o que foi muito ruim,pois pegaram chuva no aeroporto e tive que recu-perar as pinturas s vsperas da inaugurao.

    Bom, disse-me ele, eu recebi algum dinhei-ro que deu para transporte e para a edio destecatlogo. E estendeu-me uma bela caixinha comtextos e reprodues de suas obras.

    Eu j estava surpreso com a sua mgica de fa-zer o catlogo com to pouco dinheiro quando eleme deu a cifra que tinha recebido como ajuda decustos, justificando-se com a explicao: Mas, aminha exposio na rea Experimental!

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    Segredos Diplomticos acrlico sobre tela, da srie Cenas da Vida Brasileira

  • Esta atitude de protecionismo parcial dos mu-seus de pases subdesenvolvidos corresponde, es-sencialmente, ao carter positivista de governosditos progressistas, mimticos de tecnologias deexportao, que premiam com ansiosa prioridadepesquisas de tecnologias de ponta em detrimentode inverses nas perturbadoras reas de infra-estrutura carente.

    Pouco tempo depois, por falta de instalaes eequipamento adequados, este mesmo museusofreu um incndio que queimou todo seu acervoe uma exposio na qual se inclua a inestimvelcoleo de Torres Garcia.

    Inconscientemente, talvez, a rea experimentalflutuava sobre a indigncia da instituio. O sis-tema de divulgao, apoio e propaganda que aimagem experimental conferia ao museu mascara-va, contudo, ou mesmo omitia suas deficinciasintrnsecas.

    Claro que aqui no estou condenando o expe-rimentalismo em si, mas a estreiteza ttica da pol-tica cultural que considera experimentais to so-mente as manifestaes ditas de meios no-convencionais. Esta estreiteza, canalizada nos tri-lhos da polaridade novo/velho, supe a avidez daobsolescncia tpica da burguesia cosmopolita.

    A hostilidade contra o exerccio da pintura e assuspeitas de comprometimento e convencionalis-mo lanadas face dos artistas que a praticavamlembram-me a confisso amarga de Jim Dine so-bre seus auto-retratos-roupes. Dizia ele que aspresses do crculo de crticos e amigos inibiram eembargaram o incio desta bela srie de pinturaspuras durante sua fase de participao com obje-tos, happenings e performances.

    Enfim, sob mais amplo e mais frreo crculode presses, forjado sobre sofismas ideolgicosem que se procurava conubiar o discreto charmeda vida acadmica universitria, a inteligncia deelite e a insurreio armada, a pintura e os pinto-res foram se marginalizando, o que, dialeticamen-te, gerou sua maior fora e oportunidade.

    Tocado pessoalmente pelo tema e pelas pres-ses, escrevi, em 1973, um texto no catlogo deexposio de pintura:

    Ao artista cabe a vergonha de relatar a intimi-dade de seu processo de criao. E, tambm (epor que no?), coincidentemente, cabe-lhe a estra-tgia de no falar sobre ele.

    Os que no so ingnuos, ou os que tm apenasa inocncia necessria (esse ardil) para a sobrevi-vncia cotidiana, sabem muito bem que a intelign-cia se tornou uma entidade to presente e sistem-

    tica quanto a ignorncia deliberada, a brutalidade ea restrio. Tudo do mesmo lado da cerca.

    Obras de arte, estticas, culminaes de so-mas culturais, refinamentos, intimismo, sutileza eretrica inteligente so agora to semelhantes aoseu contramolde crtico, s suas oposies bviase mesmo s tcnicas de reprimi-las, que se torna-ram uma brincadeira para adultos de meia idademais ou menos permissivos...

    Esses maneirismos coexistem tanto com suasprprias convenincias polticas e econmicasquanto com a luta grotesca e anacrnica entreprogressistas e conservadores, uns e outros pu-xando a corda para seu lado e logrando, vez poroutra, enforcar a arte bem no meio, ao mesmotempo em que se tornam cada vez mais previsveisem seus ritos.

    Alguns (que no fugiro ao maneirismo oti-mista da inteligncia) pensaro humanisticamenteque tudo leva a um desafio de superao, confi-antes nos valores cumulativos da cultura ou emque s um poluente mais forte acaba a poluioanterior.

    Pintar um quadro (ou melhor: fazer um qua-dro, o que implica na confeco de um objeto pin-tado com a minha tcnica que o meu tema) omeu trabalho. Precisamente por isso serei um re-presentante da j antiga profisso de pintor e de-sabaro sobre mim essas generalidades e esses ce-nrios gastos. curioso e de certo modo fascinan-te fazer pintura, quando o mais fcil e, portanto,mais correto seria fazer qualquer outra coisa.

    Sei que corro o risco ou a rotina de ser logoclassificado como artesanatizante. Pacincia, noserei eu, posso garantir, sendo solicitado, o agentedesta sofisticao. Fazer o tal quadro para mimuma coisa natural independente de conceituaes

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    1937 (detalhe) Cenas da Vida Brasileira, 1930/1954

  • prvias sobre sua necessidade ou sobre a existn-cia de parede para ele. Imodestamente, algunsquadros grandes, por exemplo, so feitos porquetm que ser feitos.

    No sei se erro, mas creio que a pintura agorase impe diversamente da anterior porque talvezse tenha tornado desnecessria. Da, possvel a suaimportncia e a estratgia silenciosa de sua liber-dade, sua marginalidade e seu paradoxo em faceaos descalabros mundanos de seu mercado.

    O car