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    oEnsaio sobre a Msica Brasileira:Estudo dos Matizes Ideolgicos doVocabulrio Social e Tcnico-Esttico

    (Mrio de Andrade, 1928)

    Arnaldo Daraya Contier

    "Deuses e homens - os galeados escudeiros - dormiram toda anoite. Somente Zeus no se deixou vencer pelo profundo sono ...(Homero, Jlada)" ... a feiam deles he seerem pardos maneira davermelhados debos rrostos e bos narizes bem feitos." (Carta de Pero Vaz deCaminha do descobrimento da terra nova que fez Pedro lvaresCabral ao EI Rey nosso Senhor. 1 de maio de 1500)

    "Subi pelo tronco,Desci pelo gaio;Viva a Lei Treze de Maio (bis)"(Samba, So Paulo.Mrio de Andrade, O Ensaio ... , 1928)

    1. Entre Homero e CabralDurante a dcada de 1920, o debate sobre o "nacional" e o"popular" na msica erudita brasileira aflorou nos diversos ensai-os, artigos, livros escritos por Mrio de Andrade, Luciano Gallet,Lorenzo Fernandez, Ronald de Carvalho, Heitor Villa-Lobos, Re-nato Almeida, Graa Aranha, Fabiano Lozano, Srgio Milliet, en-tre outros]. Consciente ou inconscientemente, esses intelectuais

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    respiraram a "agitao nacionalista" de matizes poltico-culturaisdiversos, num primeiro momento nos ensaios publicados pela Re-vista do Brasil (1916-24): " ... sua feio geral se manteve no planocultural, salientando a necessidade de se buscar a identidade naci-onal e o problema da unidade'", e num segundo, no fim do dec-nio, pelos artigos produzidos pelas faces do movimento moder-nista que comearam reivindicar mudanas sociais, polticas, cul-turais, institucionais, atribuindo menor nfase forma e, paralela-mente, privilegiando o contedo. Os fins dos anos 20 caracteriza-ram-se como uma fase" ... mais socialmente orientada, assim comode maior influncia recproca entre o nacionalismo intelectual e opoltico, que ocorreria na dcada de 1930"3.No Ensaio sobre a msica brasileira, Mrio de Andrade, em1928, utilizou um vocabulrio tcnico-esttico e ideologicamentemarcado por uma determinada interpretao da Histria do Brasil.Naquela obra, Mrio realizou um estudo amplo e genrico sobrepossveis relaes entre as msicas popular e erudita, almejando en-volver emotivamente o jovem artista (compositor ou intrprete) noseu projeto em prol da nacionalizao da msica erudita brasileira.

    Para Mrio, a Nao brasileira era considerada atrasada, sobos pontos de vista: econmico, social, poltico, cultural e filosfi-co. Apesar de criticar o atraso, a falta de tradio cultural e a "ig-norncia" esttica da burguesia da Belle poque , Mrio assumiuno Ensaio, em alguns de seus trechos, uma viso "otimista" emface do futuro, exaltando o "progresso" como algo natural e in-conscientemente internalizado no homem, capaz de voltar-se paraas suas "razes", contribuindo para a "libertao" do Brasil em facedo seu passado musical visto como "decadente", em especial du-rante o perodo de 1889 a 1918. Mrio esboou no Ensaio umapregao missionrio-doutrinria, visando despertar nos artistas umatomada de conscincia de seus "erros", tais como: exotismo; indi-vidualismo exacerbado; mimetismo; apologia do tradicionalismomusical europeu. O debate sobre o nacionalismo e identidade cul-tural no campo no-musical foi amplamente discutido por MonteiroLobato"; pelo grupo da Antropofagia'; pelo movimento Verde-

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    Amarelo ou "Anta'"; pelos ensastas Paulo Prado, Alberto Torres,entre outros". A identidade cultural cristalizou-se na msica semdivergncias tericas nos trabalhos de: Mrio de Andrade, LuizHeitor Corra de Azevedo, Andrade Muricy, Arnaldo Estrela, Re-nato Almeida, Antnio S Pereira, Eurico Nogueira Frana.

    Nos textos publicados ps-1928, os signos musicais foramexplicitados pelos modernistas nacionalistas, sob argumentos decoloraes ideolgicas muito semelhantes: " ... faz muitos anos que,escutando amorosamente o despontar da conscincia nacional, che-guei concluso de que si esta alguma vez j se manifestou comeficincia na arte, unicamente o fez pela msica ( ... ) o querer seruniversal desraadamente uma utopia ( ... ) Ns temos hoje inega-velmente uma msica nacional. Mas esta ainda se conserva no do-mnio do povo, annima. Dois homens porm tornaram-se not-veis na construo dela: Ernesto Nazareth e Marcelo Tupinamb.So, com efeito, os msicos brasileiros por excelncia ... '".

    Antnio Cndido analisou di ai eticamente o movimento mo-dernista: " ... no terreno social e poltico, o pas atrasado e novoprecisa ser nacionalista, no sentido de preservar e defender a suaautonomia e a sua iniciativa; mas, no terreno cultural, precisa rece-ber incessantemente as contribuies de pases ricos, que econo-micamente o dominam. Da uma dialtica extremamente comple-xa, que os modernistas brasileiros sentiram e procuraram resolverao seu modo. fundamental todo o seu movimento de valorizaodos temas nacionais, a conscincia da mestiagem, a reabilitaodos grupos de valores marginalizados (ndio, negro, proletrio).Mas, curiosamente, fizeram isso recorrendo aos instrumentos li-bertadores da vanguarda europia, isto , dos pases de cujo imp-rio cultural procuravam ao mesmo tempo se livrar'".No campo musical, o debate sobre o "nacional" e o "popu-lar", instaurado pelos modernistas, prendeu-se, de um lado, pela"eficincia na arte" manifestada in totum na msica ("som +raa"),e, de outro, pelo movimento de vanguarda ocorrido em diversosplos culturais europeus, de matizes exclusiva e marcadamentenacionalistas. Esse movimento modernista baseou-se, de um lado,

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    na descoberta das "falas culturais" do "povo inculto" (folclore"puro" ou nos traos de brasilidade internalizados em algumasobras escritas pelos compositores urbanos, tais como: MarceloTupinamb, Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, e, de outro,em algumas msicas escritas por Manuel de FalIa (Espanha, 1876-1946) - cores impressionistas, folclore andaluz; Hanns Pfitzner(Alemanha, 1869-1949) - trs peras inspiradas no wagnerianismo,esttica conservadora aps a ascenso de Hitler em 1933; RalphVaughan (Inglaterra, 1972-1958); Karol Szymanowski (Polnia,1882-1937, Stabat Mater, essencialmente de coloraes naciona-listas; Bla Bartk (Hungria, 1881-1945) - msicas inspiradas nascanes populares, ultrapassando o sistema Maior/menor, desco-brindo novos ritmos, melodias, timbres; Igor Strawinsky (1882-1971) - perodo russo at 1920, inspirou-se no folclore e na tradi-o russos; Darius Milhaud (Frana, 1892-1974) - escreveu 443obras impregnadas de politonalidade, foi influenciado pelo folclorebrasileiro, norte-americano (jazz), da regio da Provena e judai-co; Zoltan Kodly (Hungria, 1882-1967) - pesquisas dos cantospopulares -, entre outros.Na msica, a dicotomia "nacional"/universal fundamentou-seno nacionalismo como o ponto nodal dafase de construo de umimaginrio erudito brasileiro sintonizado com o atraso econmico,poltico, filosfico do Pas e com as vanguardas nacionalistas euro-pias (Bartk, Strawinsky, Milhaud),

    Esse imaginrio, inspirado na msica folclrica, simbolizoupara os intelectuais - liberais, integralistas, socialistas, fascistas (pe-rodo de 1928 a 1960) - um contradiscurso revolucionrio, visan-do combater, com virulncia, o gosto musical das elites burguesasdo Rio de Janeiro e So Paulo, ainda "prisioneiras" do gosto arts-tico herdado da Belle poque. E, alm disso, fortemente influenci-adas pelos ideais de "civilizao", de "progresso", tentando apro-ximar o Brasil de uma "Europa possvel".

    Essas elites burguesas ora aplaudiam as msicas escritas porFrdric Chopin, Ludwig van Beethoven; as operetas, por 1 -Offenbach; peras, por G. Verdi, G. Rossini, Meyerbeer; ora repu-

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    diavam, com veemncia, msicas brasileiras cujos ritmos lembra-vam o chamado "atraso": "Brasil-Colnia"; o negro, como smbo-lo de um "povo infantil"; danas "obscenas", como os maxixes,sambas, os "embalos" dionisacos do Carnaval popular, visto comosmbolo da licenciosidade ou do paganismo; epidemias de varolaou da febre tifide..

    O discurso sobre a msica nacionalista erudita brasileira aflorouno Brasil atravs de um vocabulrio "agressivo", "virulento","dogmtico", "autoritrio", visando combater a "presena", nosanos 20 e 30, de traos culturais herdados da Belle poque: " ...nada expressa melhor a helle poque carioca do que a nova Aveni-da Central - um imenso bulevar cortando as construes coloniaisda Cidade Velha (...). O empreendimento foi considerado miraculosotanto por sua rapidez quanto pela comoo pblica que causou.Em um ano e meio, foram destrudas cerca de 590 edificaes daCidade Velha (...). Frontin, por exemplo, assegurou que a avenidase transformasse em uma vitrine da Civilizao ..."lo.As influncias francesas tornaram-se mais visveis no TeatroMunicipal do Rio de Janeiro. A Avenida Central era considerada oprincipal smbolo ou metfora da reforma urbanstica, pois repre-sentava, para as elites neodarwinistas, os ideais de Civilizao e deProgresso do Brasil Republicano. As reformas empreendidas peloprefeito Pereira Passos, sob o governo de Rodrigues A1ves(1902-06), simbolizaram, concomitantemente, os temas centrais dos dis-cursos da elite poltica e cultural carioca: "recusa e evaso" 1 1 Ou

    seja, a elite enaltecia as novas obras e, paralelamente, criticava,com virulncia, tudo o que era "desfeito" ou "destru do" comoalgo prximo s suas concepes sobre o "atraso" (Brasil agrrio eescravocrata).Essas elites enalteceram a tomada de medidas prticas - destrui-es dos cortios da Cidade Velha, por exemplo - e compartilharamcom as "mudanas simblicas (...) vale a pena notar, por exemplo, asbatalhas de flores no Campo de Santana reformado, ativamente pro-movidas pelo presidente e pelo prefeito, ou lembrar as solenidadesrelativas ao 'milagre' da AvenidaCentral- os novos signos da Civiliza-

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    o da cidade foram eficientemente manipulados de modo a causar omaior impacto possvel sobre os contemporneos?".Devido s especificidades histricas, a elite carioca da Bellepoque pretendeu "apagar" da memria o passado colonial e "ex-terminar" todos os vestgios raciais (ex-escravos; a ociosidade dostocadores de violo ou os danarinos de maxixes), que eram vistoscomo a herana do "passado" ainda "presente" na cidade ps-re-formas empreendidas por Pereira Passos. Os idelogos da reformaurbanstica condenavam as ruas estreitas e imundas, " ... mas tam-

    bm as fachadas sem pintura, os estilos rurais de consumo e osaspectos 'brbaros' do Carnaval", A elite sentia-se "envergonha-da" com os entrudos, cordes, o Carnaval, vistos como smbolosda cultura afro-brasileira e que negavam a Avenida Central como ametfora da Civilizao: "Paris como a capital da modernidade".Olavo Bilac atacou raivosamente os abominveis cordes, "quelembravam as bacanais do Imprio Romano ...""Tais indivduos queriam pr fim ao Brasil antigo, ao Brasil'africano' que ameaava suas pretenses Civilizao, apesar dese tratar de uma frica bem familiar elite ( ... ). Uma parcela subs-tancial da populao da cidade, talvez mais da metade, compunha-se de descendentes de africanos, e suas tradies se mesclavam efloresciam nas reas mais pobres da Cidade Velha e nos morros.Na verdade, as favelas, conjuntos de barracos amontoados nosmorros, haviam sido erguidas perto da nova rea de docas ao nor-te, no final do sculo XIX, e foi para l que se dirigiram muitosdesabrigados das habitaes decadentes da Cidade Velha, demoli-das com as reformas de 1903 -6" 13. Os excludos sociais (chores,sambistas, por exemplo) do Rio de Janeiro, aps essa reforma ur-banstica, foram expulsos para os subrbios ou para os morros (fa-velas). As perseguies de policiais em face da "presena" doshomens pobres, descalos ou mal-vestidos na Avenida Central e naRua do Ouvidor durante as dcadas de 1910 e 20, visavam trans-formar esses espaos geogrficos da Cidade em "lugares" a seremfreqentados pelos homens brancos das elites burguesas dominan-tes. Entretanto, essas elites no conseguiram "destruir" o imagin-

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    rio musical praticado pelos chores - msicos populares -, quepassaram a freqentar todos os espaos e lugares da memria: ci-nemas, cabars, dancings, cafs da Cidade Nova. E, assim, os ma-xixes, tangos, choros "invadiram" esse "universo higinico" e civi-lizado!!!

    A "presena" desses artistas pobres nos diversos teatros derevista da Lapa ou da Praa Tiradentes favoreceu a divulgao decentenas e centenas de maxixes, sambas, tangos, valsas escocesas,polcas. E, paradoxalmente, alguns artistas das classes mdias e daselites passaram a "escutar" com interesse esses "novos sons", quecolocaram em xeque o universo musical da Belle poque. Paulati-namente, Heitor Villa-Lobos, Alberto Nepomuceno, Luciano Gallet,Darius Milhaud, Mrio de Andrade, Renato Almeida, Graa Ara-nha, Oswald de Andrade, Ronald de Carvalho, Arthur Rubinstein,Vera Janacopulos, entre outros, comearam a descobrir esse "Bra-sil Novo" fortemente ligado s prticas artsticas do "povo".

    A descoberta desse Brasil pelos intelectuais e apresentado pelamsica popular motivou a formao de uma verdadeira Cruzadaem prol da pesquisa desse imaginrio cultural. Em So Paulo, coma proclamao da Repblica, os Donos do Poder elaboravam umprojeto visando transformar os homens pobres em trabalhadores aservio do capital. Esses idelogos perceberam que esse projetono poderia ser direcionado para uma transformao do homempobre num trabalhador, sob o ponto de vista econmico, mas queesse projeto deveria voltar-se para modificar "espiritualmente" es-ses homens, almejando induzi-Ios a aceitar uma tica do trabalho:" ... a constituio do mercado de trabalho requeria a montagem deuma rede de instituies de vigilncia sistemtica e controle dostrabalhadores no s nos ambientes de trabalho, mas, tambm, nasua vida cotidiana, adentrando por sua casa, esquadrinhando suasrelaes familiares e seus momentos de lazer (. ..) A cidade tornou-se, assim, objeto privilegiado ou mesmo exclusivo da intervenomdica, pois, ao expressar-se na viso dos poderes constitudoscomo um ambiente de 'desordem', propiciava a propagao dedoenas, no s as fisicas, mas tambm sociais e morais"!'.

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    Mrio de Andrade vivenciou esse momento histrico marca-do pelo conservadorismo das elites, que visavam "exterminar" ou"silenciar" as prticas culturais dos "homens pobres". Por essa ra-zo, num texto escrito em 1921, admitiu que a "msica brasileiraexistia exclusivamer'lte na cano popular?". E acrescentava: amsica folclrica ou popular, "rica" em temas, ritmos, formas, tim-bres ainda no havia passado da " ... boca dos rapsodos andantespara a eternizao dum Homero que a genializasse"".

    Nos incios dos anos 20, Mrio criticou, "cida" e "duramen-te", a falta de "patriotismo" dos compositores e intrpretes queincluam 'peas de autores estrangeiros em seus repertrios, comopor exemplo, o Hino Nacional de Gottschalk". Apesar dessas cr-ticas s elites artstcas, Mrio demonstrou um certo otimismo emface dos "artistas jovens": " ... esperemos de ViJla-Lobos, GuiomarNovaes, Lcia Branco, Pagliucci, Francisco Mignone um possvelinteresse no sentido de abraar o programa modernista". Devido aessa conjuntura histrica, Mrio afirmou inconsciente e categori-camente no Correio Musical Brasileiro, emjulho de 1921: " ... porenquanto a msica brasileira no existe ..."18. Nessa ocasio, procu-rou denunciar a existncia e o desinteresse dos intelectuais brasi-leiros pelos estudos sobre a realidade histrico-cultural do "povoinculto". Ou seja, a sua "fala", de matizes "agressivos", opunha-seao imaginrio conservador das elites burguesas dos incios do s-culo. E, para solucionar esse impasse, defendeu a instaurao deum sistema educacional capaz de incutir nos alunos um interessepela pesquisa sobre ternas da cultura brasileira.

    No decnio de 1930, " ... ocorreu um fato que esclarece osmecanismos do nosso nacionalismo cultural: a fundao das esco-las superiores de estudos sociais, filosficos e literrios. E de uni-versidades que no fossem simples soma de escolas preexistentes,mas correspondessem a um projeto orgnico de instaurao dosaber por meio da reflexo e da investigao desinteressadas, isto, no vinculadas imediatamente s exigncias da formao profis-sional. Foi o que comeou a ser realidade em So Paulo, a partir de1933 e 1934. (...) Enquanto os mestres franceses nos obrigavam a

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    olhar o mundo circundante, recorrer s fontes locais, descobrirdocumentos, investigar a realidade prxima, os brasileiros, patrio-tas e oradores de 7 de setembro, acabavam por nos tirar do Brasile nos iniciarem num mundo inexistente. Os franceses, usando a sualngua, empregando os seus mtodos, nos punham dentro do pas.Mas eram combatidos pelos nacionalistas do tipo patrioteiro comoelementos 'aliengenas', que vinham conspurcar a viso correta (isto, fantstica) do pas...'?". Entretanto, no campo da pesquisa dofolclore musical, tornou-se difcil "separar" com nitidez os docu-mentos arrolados por Baslio de Magalhes, Renato Almeida, Hei-tor Villa-Lobos ou Mrio de Andrade, e as suas "interpretaes"pelos chamados intelectuais "patrioteiros". Em geral, os folcloristasbrasileiros aceitaram "com reservas" os trabalhos dos socilogos eantroplogos, tais como os ensaios escritos por Roger Bastide,Florestan Fernandes" ou Maria Isaura Pereira de Queiroz.Essa postura de Mrio sobre a inexistncia de uma msicaerudita brasileira, em 1921, no colocou em xeque a produo ar-

    tstica de alguns compositores do sculo XIX e dos incios do s-culo XX, tais como: Jos Maurcio Nunes Garcia, Francisco Ma-nuel da Silva, Antnio Carlos Gomes, Alberto Nepomuceno, Ale-xandre Levy. Apenas procurou "alertar" os jovens artistas sobre osnovos tempos aflorados ps-Primeira Guerra Mundial (1914-18) emarcados, fundamentalmente, pela nacionalizao das artes con-forme tcnicas defendidas pelos modernistas brasileiros e estran-geiros sintonizados com o mesmo "programa", tais como: BlaBartk, Kodly, Darius Milhaud, Igor Strawinsky, Csar Cui, Ma-nuel de Falia. Entretanto, o "nacional" na msica brasileira j vinhasendo internalizado, consciente ou inconscientemente, nas obraspopular e urbana de centenas e centenas de artistas, em sua maioriahomens pobres ou excludos sociais, a partir dos fns do sculoXIX. As escutas de algumas dessas msicas tornaram-se fontes de"inspirao" de obras divulgadas nos teatros de revista, nos sa-gues dos cinemas, nos cabars, nas gafeiras, como por exemplo,Chiquinha Gonzaga, Emesto Nazareth, Marcelo Tupinamb, Catuloda Paixo Cearense, Pixinguinha, Donga, Anacleto de Medeiros" .

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    Alguns maxixes, choros, tangos brasileiros escritos pelos compo-sitores populares ou "semi-eruditos" foram elogiados pelos inte-lectuais brasileiros, ou no, e envolvidos pelo "modernismo nacio-nalista", tais como: Darius Milhaud, Arthur Rubinstein, Mrio deAndrade, Vera Janacopulos, Renato Almeida", Oswald de Andrade,Graa Aranha.

    Em '1921, Mrio, alertando os artistas sobre a inexistncia damsica brasileira erudita, preconizava o aparecimento de umHomero capaz de "inspirar-se" nas "falas culturais" do povo oudos rapsodos. Em alguns de seus artigos publicados entre 1922 e1928, Villa-Lobos foi reconhecido como esse "homem novo"-Homero - que, em funo de sua "genialidade", havia conseguido"decifrar" e "internalizar" nos seus choros, por exemplo, algunstraos sonoros inspirados nos cantadores annimos.

    Mrio de Andrade formou-se em piano e canto pelo Conser-vatrio Dramtico e Musical de So Paulo em 1917. Exerceu, nes-ta Escola, a funo de professor de Histria da Msica, Folclore,entre outras disciplinas, durante muitos anos. Como poeta e crticomusical escreveu inmeros artigos publicados nos principais peri-dicos do Pas no perodo de 1919 a 194523. Em alguns desses tex-tos, Mrio, implcita ou explicitamente, indicou possveis "cami-nhos" a serem percorridos pelos artistas interessados na constru-o de um projeto em prol da nacionalizao da msica eruditabrasileira. Paulatinamente, os seus "conselhos" - ora raivosos, ir-nicos, paternalistas, otimistas; ora dogmticos, doutrinrios, auto-ritrios - polarizaram o debate sobre o modernismo musical duran-te muitas dcadas entre compositores, professores, intrpretes.

    Os argumentos de Mrio, ora de traos iluministas, ora imbu-dos de ideais romnticos, mantiveram-se presos emtorno do temasobre a "nacionalizao" da msica brasileira no perodo de 1921 a1945. Com a verbalizao do seu projeto sobre o "nacional" e o"popular" na msica erudita, Mrio procurou "identificar" nas obrasde autores brasileiros (popularescos ou eruditos)" traos que seharmonizassem com as suas "escutas" rigorosamente direcionadasna busca de uma determinada concepo de brasilidade. Por essa

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    razo, nos seus artigos sobre a msica brasileira, ora elogiava ouexaltava obras escritas pelos compositores considerados como os"mais puros representantes da modernidade - ", .. no sei de quemmelhor componha canes atualmente no Brasil [1940]. Pela fraexpressiva, pela completa assimilao erudita dos elementos ca-ractersticos populares, pela originalidade da polifonia acompanhan-te e a beleza das melodias, as canes de Camargo Guarnieri, so asua melhor contribuio para a msica brasileira. Agora teremosque seguir a entrada em plena maturidade de um artista que desdemuito deixou de ser apenas uma promessa, e se tornou uma dasfras mais vivas e profundas da msica nacional contempornea'P-, ora criticava, com virulncia, autores consagrados que haviamabandonado o projeto modernista em busca de um "aplauso fcil":em fevereiro de 1939, criticou uma pea escrita por Heitor Villa-Lobos para sincronizar filmes sobre o Brasil a serem apresentadosdurante a Feira Mundial de Nova lorque: "", dentre os composito-res vivos, o maior de todos, Villa-Lobos, est fracamente repre-sentado. Mas aqui a culpa cabe exclusivamente ao compositor, quedeu para gravar uma espcie de exotismo musical que comps re-centemente, uma Melodia Moura. Trata-se de uma pea de escas-so valor, espcie de rapsdia de todos os lugares comuns doarabismo musical do sculo passado'?". No caso de artistas consi-derados altamente significativos e muito elogiados pelos crticosnacionais ou internacionais, o autor deMacunaima, para "atenu-ar" as suas crticas sobre aMelodia Moura, terminou o seu artigoutilizando uma orao adversativa: " ... mas sempre certo que oautor dos choros, reservou para si prprio a gravao das suasadmirveis Bachianas, de que j dei notcia por este jornal. Comoesto gravadas no sei, que no as ouvi'?".

    2. Entre Mulher Rendeira e os Choros n.o 10 de Villa-Lobos

    As "escutas" do cancioneiro popular - coros, sambas, emboladas,frevos - e de algumas msicas escritas por Chiquinha Gonzaga,

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    Ernesto Nazareth, Marcelo Tupinamb, Heitor Villa-Lobos "influ-enciaram", consciente ou inconscientemente, a redao d'O Ensaiosobre a msica brasileira por Mrio de Andrade, em 1928.O Ensaio ouManifesto caracterizou-se, em linhas gerais, peloseu contedo programtico polmico e doutrinrio-dogmtico.Devido sua natureza - de matizes marcadamente ensasticos -apresenta uma fundamentao terica (tcnica e esttica) muitogenrica e pouco rigorosa: ",., existe, na exposio do autor doEnsaio, uma visvel confuso conceitual entre sncopa e contra-tempo, entre ritmo e rtmica C . . ) A sncopa dita de formaoinconsciente. Est claro que no - a menos que aqui se devaadmitir como sinnimo de inconscincia a sedimentao pelo usoC . . ) em nenhum momento h avanos na direo de uma anlisemusical ..."28.

    O Ensaio - ou a "Bblia" dos compositores nacionalistas bra-sileiros - foi lido, debatido, citado excl~sivamente atravs de frag-mentos, ora de coloraes ideolgicas, ora de matizes tcnico-es-Itticos, por Camargo Guarnieri, Andrade Muricy, Luiz Heitor Cor-reio de Azevedo, Francisco Mignone, Waldemar Mesquita, Osval-do Lacerda, Vinicius de Moraes, Tom Jobim, entre outros compo-sitores populares e eruditos, folc1oristas, historiadores, crticos,intrpretes, professores, socilogos, antroplogos, filsofos, pol-ticos (integralistas, socialistas, fascistas, liberais, stalinistas).Por que o Ensaio ocupou o centro dessa "roda viva" durantealgumas dcadas? Em funo das idias de brasilidade e de identi-

    dade cultural de um lado, e, de outro, em funo do uso de umalinguagem emotiva envolvendo o artista brasileiro, profundo co-nhecedor, ou no, de tcnicas de composio numa fase primitivaou de construo: "... todo artista brasileiro que no momento atualfizer arte brasileira um ser eficiente com valor humano. O quefizer arte internacional ou estrangeira, si no for gnio, um intil,um nulo. E uma reverendssima besta'?". E essa frase tornou-se olema ou a bandeira de todo artista erudito ou popular preocupadocom a internalizao das chamadas "raizes" na msica brasileira"autntica" .

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    As tentativas de Mrio, no sentido de conciliar esse projetoem prol da nacionalizao da msica brasileira e os traos tcnico-meldicos, rtmicos, polifnicos, formais "inspirados" nos cantosfolclricos, esbarraram na inexistncia de tratados tericos maisrigorosos, semelhantes s propostas de um Bla Bartk sobre apesquisa do imaginrio popular" e nas dificuldades de os composi-tores "captarem" e resolverem todos os impasses tericos funda-mentados nas obras escritas por J . P. Rameau, M, Moussorgsky,Claude Debussy, Arnold Schoenberg.

    Essas teori-as foram transmitidas pelos professores de compo-sio e regncia no Brasil para os seus alunos". Estes tentaramconciliar essas teorias formuladas pelos autores europeus com as"especificidades tcnicas" dos cantos populares brasileiros.Num artigo de Mrio, divulgado em 1930, essa questo foiretomada como "um pedregulho na botina" do compositor moder-nista: " ...0prof SPereira que msico srio (...) levantou (...) umproblema de grande importncia para ns: o da fixao duma termi-

    nologia musical brasileira. Um indivduo pode falar errado todos ostermos musicais que emprega e fazer msica boa. Mas a fixaoduma terminologia tcnica nacional tem importncia enorme, princi-palmente em pases que nem o nosso, onde a importao de indiv-duos profissionais feita, em larga escala. Porqu palavras fixas enossas se tomaro mais um obstculo estrangeirizao que essesprofissionais importados, consciente ou inconscientemente trazemconsigo (...). Acho mesmo que no seria impossvel, realizarmos umcongresso, composto de msicos e conhecedores profundos da nos-sa fala, para a organizao de um vocabulrio musical?".Mrio, envolvido com o ideal coletivista na msica, no con-segue enfrentar esta questo com rigor terico: "... a tcnica umacervo individual (...) A tcnica adquirida a somatria que possi-bilita o edificar de uma composio musical. A tcnica pressupeuma certa disciplina. Arnold Schoenberg observa: 'no se traba-lhando firmemente e da melhor maneira possvel, no dar o Se-nhor a sua bno' ( ...). Tcnica o material aprendido, estilo amaneira de se expressar, aps tcnica assimilada. Ambos inexistem

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    se no houver a idia, esta intermediao necessria sem a qual nohaveria estilo, Segundo Schoenberg, 'as idias invadem a mente demaneira to imprevisvel e, por vezes, to indesejada, como umsom musical nos chega aos ouvidos ou um odor ao nariz"?'.

    Historicamente, o Ensaio criticava, de um lado, o "descaso"do governo republicano em face de um possvel apoio financeiroalmejando patrocinar e divulgar a msica brasileira modernista eru-dita nos principais teatros do Pas; e, de outro, os intrpretes tradi-cionalistas contratados pelos empresrios que almejavam a obten-o de lucros financeiros, patrocinando espetculos opersticos ousinfnicos visando atender ao gosto da chamada elite "ignara" daBelle poque ...No Ensaio, Mrio procurou, na primeira parte, indicar nor-mas e critrios metodolgicos sobre a importncia do "aproveita-mento" da msica popular pelos artistas eruditos, e, na segunda,documentar cento e quarenta canes folclricas, aproximadamente,divididas em dois grandes grupos: 1.0) msica socializada - canto

    infantil; cantos de trabalho; danas; danas dramticas; cantos reli-giosos; cantigas militares; cantigas de bebida; coros; 2.0) Msicaindividual: estribilhos (solistas ou corais); toadas; martelos, desa-fios, chulas, lundus e modinhas; preges.Com a "efervescncia" nacional-populista intensificada svsperas do Golpe de 1930, o Ensaio foi considerado um discur-so altamente revolucionrio em funo da nfase dada por Mrioem torno da criao de uma arte musical de matizes nacionalis-tas. Paradoxalmente, o discurso musical visto pelos formalistascomo assemntico, enigmtico, polissmico, anti-ideolgico, tor-nou-se o ponto nodal das obras, artigos, projetos escritos por:Lorenzo Fernandez, Oswald de Andrade, Graa Aranha, LucianoGallet, Camargo Guarnieri, Cassiano Ricardo, Custdio Mesqui-ta, Bidu Sayo, Antnio de S Pereira, Heitor Villa-Lobos,Monteiro Lobato, Paulo Figueiredo, Ansio Teixeira, GetlioVargas, entre outros.

    Por que? A msica tornou-se o smbolo da "alma brasileira",da Ptria e da Nao.

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    Antnio de S Pereira, co-autor de um projeto de reformacurricular da Escola Nacional de Msica em 1930-31, juntamentecom Luciano Gallet e Mrio de Andrade, e nos anos 30 um dosardorosos defensores de um programa em prol da nacionalizaoda dramaturgia teatral no Brasil, assim se manifestou, em 1943,sobre o Ensaio: "__ de idia como o plen, lanado aos quatroventos, Mrio de Andrade fecundou o pensamento de toda umagerao. Na poesia, na literatura, na pintura, na escultura, nos es-tudos folclricos e sociolgicos, e na msica, eu creio no existirartista brasileiro, dos ltimos 20 anos que, caminhando pela suaestrada, no tenha topado com as pegadas desse gigante que, antesd I ''I' "34e e, Ja por a 1 passara... .Para o diplomata e historiador da msica brasileira VascoMariz, o Ensaio representou uma "obra de independncia que em-polgou e arrastou a mocidade musical da poca desejada pelo au-tor __"35.

    No perodo de 1928 a 1970, aproximadamente, alguns "her-deiros" e simpatizantes das "teses" de Mrio sobre a msica brasi-leira, consideram-no como o Segundo Descobridor do Brasil. Parao crtico Andrade Muricy, por exemplo, o Ensaio havia esboadouma "teoria da msica brasileira" e, devido sua "originalidade",propunha, nos incios dos anos 30, a sua "traduo para todas aslnguas'?",No Ensaio, Mrio defendeu a funo social do artista (numafase chamada de construo) - representada por um Pas atrasado- como o porta-voz do "povo" ou de uma "coletividade nacional".E, assim, procurou negar o conceito de atraso outrora veiculadopelas elites republicanas da Belle poque Tropical e intimamenteassociado cultura popular.Na Revista Brasil, em 1939, o autor de Macunaima refor-ava essa temtica: " ... no nego, nem nunca neguei o direito deescrever msica que se perdesse em liberdosas facilidades inter-nacionais, e procurava Ihes demonstrar que a mim me pareciaerrado. __37. Na verdade, Mrio procurou redefinir o atraso daselites do pas que desconheciam o "progresso" internalizado na

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    msica popular, ainda totalmente desconhecida pelos artistas eintelectuais.Os chores - excludos sociais do Rio de Janeiro e So Paulo- foram marginalizados durante as reformas urbansticas das duas

    primeiras dcadas do sculo XX e isolados poltica e culturalmentepelas elites republicanas. Agora, esses excludos sociais, nas "fa-Ias" de Mrio de Andrade, metamorfosearam-se numa nova cate-goria social - o povo.Para Mrio, o "povo" transformou-se num agente, que disse-minou nas mais diversas regies do Brasil uma msica "riqussima"

    nas perspectivas rtmicas, timbrsticas, formais, tais como: o sambarural, o cateret, o bumba-meu-boi, reisados, emboladas,moambiques, coros. E competia ao compositor erudito inspirar-se nessas fontes para criar uma Escola Nacionalista de Composi-o como o smbolo de uma coletividade e de uma Nao cultural-mente independente ...

    Para exemplificar essa problemtica altamente complexa nombito da escrita musical, em 1944, o Conselho de OrientaoArtstica de So Paulo patrocinou um concurso visando premiar amelhor sinfonia escrita por um autor brasileiro. Os organizadoresdesse concurso basearam-se nas "lamentaes" de Mrio de que,num perodo de vinte anos, somente haviam sido escritas no Brasilquatro ou cinco peas sinfnicas "esteticamente vlidas". As nor-mas desse concurso foram redigidas por Frio Franceschini, Cal-deira Filho e Oneyda A1varenga e "inspiradas" nos critrios de Mriosobre o "nacional" e o "popular" na msica erudita brasileira: 1:)as sinfonias apresentadas pelos concorrentes no deveriam limitar-se a " ... fazer citaes folclricas"; 2:) o compositor deveria in-ventar " ... inteno temtica C . . ) sem a utilizao de temas colhi-dos diretamente nas fontes do folclore musical brasileiro"; 3.") " .. .o compositor, aos termos das condies do concurso, teria real-mente que se definir, como msico e como brasileiro?".

    Camargo Guarnieri - considerado por Mrio como o seu prin-cipal discpulo - venceu esse concurso ... Neste caso, historicamen-te, Camargo havia "internalizado", inconscientemente, "escutas"

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    diversas do populrio folclrico brasileiro, conseguindo, assim,escrever uma obra "esteticamente livre" e, paradoxalmente, apro-ximou-se das "teorias" verbalizadas pelo seu mestre - no-compo-sitor - Mrio de Andrade. E, paralelamente, as "escutas" de M-rio em suas pesquisas folclricas explicitaram-se nas suas concep-es sobre o "som nacional", que foram "captadas" por Guarnieriem sua sinfonia premiada em 1944,Mas essa "coincidncia" histrica - Mrio/Camargo - repre-sentou uma exceo e no uma regra na tradio do modernismomusical de 1928 a 1980",O Ensaio ou aNova Carta do descobrimento do Brasil visou,em sua essncia, envolver emotivamente o leitor-artista, almejan-do despertar-lhe o gosto pela pesquisa do folclore - msica dopovo - e induzi-Io, posteriormente, a escrever, interpretar e divul-gar msicas modernistas, cumprindo, assim, a sua funo social nomomento da "construo" de um projeto em prol da criao deuma Escola Nacionalista de Composio capaz de consolidar umplo cultural no Brasil, independentemente dos principais centroseuropeus" ,3. Entre Apoio e Dionsio: o Ensaio e a ideologizao dovocabulrio tcnico-esttico

    3.1. "Atraso"?No Ensaio, Mrio endossou, implicitamente, uma concepoteleolgica da Histria da Msica, presente nos trabalhos dos his-toriadores positivistas.A Histria da Msica no Brasil, conforme Mrio, dividia-seem trs perodos: 1,0 ) de 1500 a 1822; 2,) de 1822 a 1914; 3,)ps-1914,Para Mrio, a msica erudita no Brasil, durante o primeiroperodo, caracterizava-se pelo fenmeno de transplantao de obrasde autores europeus, refletindo o "esprito subserviente da Col-r

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    nia ":" . De acordo com essa interpretao da Histria do BrasilColonial, a msica - predominantemente religiosa - prendia-se amanifestaes artsticas "viciadas?". Os cantos portugueses profa-nos eram divulgados atravs dos saraus promovidos pelas elitesurbanas nos seus domiclios (sobrados) ou nas casas-grandes dosengenhos de acar, no denotando nenhuma "funo histrica":",e de peras ou peas sinfnicas apresentadas nos teatros de Salva-dor, Rio de Janeiro, So Paulo: " ... sem realidade nacional nenhu-ma?". Para Mrio, a msica introduzida no Brasil pelos portugue-ses reproduzia, em sua essncia, uma cano teatral " .. melodista,bonitota, sem tradio":".

    De acordo com Mrio, durante o primeiro perodo, somentecom a vinda de D. Joo tornou-se possvel intensificar as ativida-des artsticas na cidade do Rio de Janeiro, apoiadas nos msicosoriundos da Fazenda de Santa Cruz e nas apresentaes de obrasescritas pelo padre Jos Maurcio Nunes Garcia, Marcos Portugal,entre outros, inaugurando-se uma "fase de esplendor para a msi-ca" entre 1808 e 182244.O segundo perodo inciou-se com a independncia poltica - 7de setembro de 1822 - e foi caracterizado, em linhas gerais, porMrio de Andrade pelo "empobrecimento musical" em funo dos"abalos" polticos ocorridos durante o Primeiro Reinado (1822-1831) e o Perodo Regencial (1831-40). Mrio analisou a vida deartistas de um lado, a partir das obras sobre a Histria Oficial ePoltica do Brasil divulgada em sua poca (Oliveira Vianna, Olivei-ra Lima); e, de outro, acusou a elite dominante pela introduo da"", detestvel moda de tocar piano, que j em 1856 fazia a Manuelde Arajo Porto Alegre chamar o Rio de Janeiro de 'a cidade dospianos"'". O Segundo Reinado (I840-89) caracterizou-se, con-forme Mrio, " ... talvez como o perodo de maior brilho exteriorda vida musical brasileira", em funo da vinda de companhias deperas do Exterior ou de pianistas estrangeiros que haviam seradicalizado no Brasil, tais como Artur Napoleo e Lus Chiafarelli.Com o advento da Repblica em 1889, o Brasil "mergulhou" numanova fase de decadncia musical: " ... veio a Repblica. O Brasil

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    principiou pela terceira vez a vida, Mas, desta feita, a msica no.Se acentuou gradativamente a decadncia do brilho anterior ( ...)Cantores continuaram temporadas, mas o pblico se desinteressa-va deles cada vez mais?".

    Para Mrio, o perodo de 1889 a 1914 (da proclamao daRepblica aos incios da Primeira Guerra Mundial), a "decadnciamusical" havia ocorrido no Brasil devido s seguintes causas: 1.a ) aforte oposio entre a arte moderna e o gosto do "povo"; 2:) BuenosAires transformou-se no principal plo cultural da Amrica do Sul,atraindo, hegemonicamente, a vinda de artistas estrangeiros. Poresse motivo, So Paulo e Rio de Janeiro tornaram-se conhecidaspelos empresrios como "terras de passagem"; 3:) os repertriosopersticos e de msicas para concerto dessas Companhias que seexibiam em curtssimas temporadas em So Paulo e Rio de Janeiroapresentavam "velharias j tradicionalizadas no gosto do pblico':".Envolvido com o projeto modernista, Mrio criticou cida e viru-lentamente as elites paulistas da Belle poque, que freqentavamo Teatro Municipal por "modismo" e eram profundamente "incul-tas", "bocejando", freqentemente, ", .. diante da arte?".O terceiro perodo da Histria da Msica no Brasil iniciou-seno Ps-Guerra (1918). Esse "momento mgico" foi caracterizadopor Mrio pelo surgimento de um "tempo novo", capaz de desper-tar no homem sua conscincia sobre o ideal de nacionalizao detodas as artes.A lenta e embrionria consolidao da msica brasileira eru-

    dita, de acordo com Mrio, ocorreu com a fundao da Sociedadede Concertos Sinfnicos em 1921 e com a criao do Departamen-to Municipal de Cultura em 1935, Essas instituies contriburampara a divulgao de obras de compositores do perodo ps-1918,momento de ecloso de uma "verdadeira revoluo" e "ruptura"da msica no Brasil em face do seu "passado retrgrado". Nesteperodo, alguns intrpretes ainda vacilaram no sentido de assumirou no a chamada funo social do artista. De acordo com Mrio,a adeso dos intrpretes deu-se de " .. , uma maneira um poucoinsatisfatria (...) a funo nacional deles bem pequena (..,) e

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    levados pelos interesses de camaradagem e outros interesses, bo-tam nos programas peas de nomes estrangeiros (do pas em queesto, pra agradar...), de valor mnimo, ao passo que no executamos compositores brasileiros muitas vezes superiores a esses estran-geiros''?".

    A funo social do artista, conforme Mrio, prendia-se, fun-damentalmente, na incluso de obras de autores brasileiros moder-nistas nos programas de seus concertos a serem apresentados nosteatros das cidades brasileiras.A arte praticada no Brasil at 1914, para ele, era essencialmen-te europia, mesmo entre os "nacionalistas" interessados na "repre-sentao musical da coisa brasileira '? ", tais como: Antnio CarlosGomes, Alexandre Levy, Alberto Nepomuceno, Francisco Manuelda Silva, Ou, ainda, pelos compositores fortemente influenciadospelo "exotismo", como Leopoldo Miguez, Henrique Oswald, Fran-cisco Braga, Joo Gomes de Arajo, Barroso Neto, GlaucoVelasquez. Devido a essa fatalidade histrica, inexistiu no Brasiluma "msica popular autntica", capaz de servir de fonte de "inspi-rao" para os artistas eruditos, de 1500 a 1914-18, Os cantos po-pulares - consoante essa "interpretao da Histria do Brasil" - eramde "raizes" predominantemente africanas ou portuguesas ou indge-nas. Mrio achava "ridculo" considerar esses cantos, ainda no-na-cionalizados, como se fossem "'brasileiros"51,Apesar dessa viso "pessimista" do passado histrico, Mrioprocurou apontar algumas "originalidades" rtmicas ou meldicas

    em trechos de obras escritas por Carlos Gomes, tais como: OGuarani eLo Schiavo, que se "aproximavam" de alguns matizes jinternalizados na meldica "popular brasileira". Entretanto" esse"ruim esquisito" presente nessas peas de Carlos Gomes, numafase de construo - msica de combate social - a ser aflorada ps-1918 no Brasil - no poderia servir de exemplo para os jovenscompositores da atualidade, somente "a vida e a inteno dele po-dem nos servir de exemplo't".E, a partir da construo do discurso modernista, Mrio defi-niu osfatos histricos, selecionando datao presa sua concep-

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    o de verdade histrica no campo da msica: a) 1922; b) 1928.Essa cronologia prendeu-se a "momentos" considerados "decisi-vos" na descoberta das "falas populares" pelos artistas eruditos emalgumas de suas obras, tais como: Heitor Villa-Lobos, LorenzoFernandez, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri.

    De acordo com Mrio, a msica popular aflorou, em toda asua plenitude, nos anos 10 e 20, atravs de uma complexa"deglutio" de elementos "estranhos" e "dspares", tais como: a)a influncia amerndia (formas: cateret, cururu, modos"gregorianos", acalanto); b) influncia portuguesa: fixao dotonalismo harmnico; formas - moda, fado; de instrumentos - vio-lo, viola; c) influncia africana (danas dramticas; variedade rt-mica; formas - como exemplo, lundu); d) influncia espanhola (dan-as); e) influncia das Amricas (jazz, habanera, tango). E, assim,lentamente, o "povo brasileiro inculto" deglutiu, antropo-jagicamente, todas essas "influncias", reiventando novas cons-tncias rtmicas, meldicas, morfolgicas representativas da"musicalidade brasileira">'.De acordo com essa "interpretao da histria cultural doBrasil", o Ensaio escrito por Mrio de Andrade em 1928 simboli-zou um grito de alerta e uma exortao cvico-patritica e doutri-nria, almejando sensibilizar e convocar o artista para se engajarnuma cruzada em prol do "descobrimento" da realidade, ainda des-conhecida pela elite cultural.Muitos crticos, artistas modernistas, intelectuais estrangei-ros partidrios dessa tendncia esttico-social escreveram artigosnos peridicos ou proferiram conferncias sobre a "riqueza damusicalidade dos brasileiros". Mrio de Andrade admitia chamar aateno sobre: "essa musicalidade real, porm, at agora deumelhores frutos no seio do povo inculto que na msica. Muito malest fazendo a falta de uma cultura tradicional, a preguia em estu-dar, a petulncia com os eruditos brasileiros, que filhos d'algo, fi-lhos ou descendentes de senhores de engenho, de espanhis, dealemes, de judeus russos se consideravam logo gnios insolveis,por qualquer habilidade de canrio que a terra do Brasil lhe deu.

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    Nos consola ver que o povo inculto criando aqui uma msicanativa que est entre as mais belas e mais ricas'P'( ...) "os 'sujeitosimportantes' devem dar a importncia deles pros homens popula-res, mais importantes que os tais. Se deve registrar tudo o quecanta o povo, o bom e o ruim, mesmo porque desse ruim ningumsabe tudo que pode tirar um bom. E finalmente se deve homenage-ar os Nazars e os Tupinambs, os Eduardo Santos e as FranciscaGonzagas que criam pro povo e por ele?". E, paralelamente, criti-cava a hostilidade dos imigrantes estrangeiros em face da msicabrasileira: "as prprias sociedades musicais do Rio e de So Paulo,tem como grosso dos seus scios, estrangeiros, na sua maioria oriun-dos de pases germnicos, E israelitas. uma coisa deprimente -1939 - de se observar a presso bastarda que sofrem essas socieda-des para no executar msica brasileira (...). Esses scios estran-geiros, indiferentes ao pas e dotados s de cultura tradicional, nocompreendem, se irritam, no aplaudem as peas brasileiras doprogresso. Ento se o concerto s de msica brasileira, o teatrofica s moscas ..."56.

    Mrio de Andrade almejava reinventar a Histria para denun-ciar, de um lado, o mimetismo dos artistas brasileiros em face dasculturas "tradicionais" da Europa, e, de outro, chamar a atenodos compositores eruditos sobre a riqueza e a exuberncia da m-sica popular criada pelo "povo inculto" e aculturada in tatum du-rante a dcada de 1910.Em 1928, Mrio denunciou o atraso musical do Brasil, devi-do s seguintes "causas": I.") o melodismo de um Carlos Gomes;2. a ) O parnasianismo, que "veio perturbar violentamente a evolu-o da lngua nacional e de nossa psicologia lrica, que os romnti-cos estavam criando?"; 3") o ensino tradicional (virtuosismo; pe-as romnticas) do piano; 4.") apego dos intrpretes e empresrioss obras de compositores europeus e consagradas pela crtica epelo pblico; 5.a ) O individualismo do artista no preocupado coma sua funo social num Pas "atrasado" e totalmente "desinteres-sado pelas coisas brasileiras"; 6.) a internalizao consciente detraos exticos das culturas populares nas obras de alguns compo-

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    sitores brasileiros, que visavam "agradar" crticos e pblicos es-trangeiros (ritmos sincopados; "batuques bravos"); entre outras.Implicitamente, 1928 simbolizou, para os "herdeiros" do pro-jeto marioandradino, o marco zero de uma Nova Histria da Msi-ca Brasileira. O "progresso" atrelava-se a essafase de construomarcada pela funo social e no esttica do artista: "uma artenacional j est feita na inconscincia do povo. O artista tem sque dar pros elementos j existentes uma transposio erudita quefaa da msica popular, msica artstica, isto : imediatamente de-sinteressada?". A noo de "progresso" ou de utopia, conformeMrio, concretizar-se-ia atravs de uma tomada de conscincia docompositor erudito, dos intrpretes, dos empresrios, dos crticos,dos professores, dos intelectuais, pela msica popular e brasileiraexistente nas "falas" do "povo inculto".A partir dessa dicotomia "atraso/progresso", implcita noEnsaio, Mrio atacou, virulentamente, o primitivismo esttico pro-posto por Oswald de Andrade no poema "Pau-Brasil": "". um

    engano imaginar que o primitivismo brasileiro de hoje esttico.Ele social (. ..) o lirismo de Osvald de Andrade uma brincadeiradesabusada. A deformao empregada pelo paulista no ritualizanada, s destri pelo ridculo. Nas idias que expe no tem idea-lismo nenhum. No tem magia. No se confunde com a prtica. arte desinteressada. Pois toda arte socialmente primitiva que nem anossa, a arte social, tribal, religiosa, comemorativa. arte decircunstncia. interessada. Toda arte exclusivamente artstica edesinteressada no tem cabimento numa fase primitiva, fase deconstruo. intrinsecamente individualista. E os efeitos do indi-vidualismo artstico no geral so destrutivos (".) O critrio atualda Msica Brasileira deve ser no filosfico mas social. Deve serum critrio de combate. A fora nova que voluntariamente se des-perdia por um motivo que s pode ser indecoroso (comodidadeprpria, covardia ou pretenso) uma fora antinacional e falsifi-cadora'?".

    Para Mrio, essa fase de construo, somente iria ocorrer fu-turamente, com os "jovens artistas" envolvidos pelo "clima" dos

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    "novos tempos". Nos anos 20 surgiram as primeiras tentativas des-sa "aliana" caracterizada pela "aproximao" dos artistas erudi-tos em face da msica criada pelo "pOVO".Entretanto, essas obras,"inspiradas" no imaginrio popular; foram escritas mediante a uti-lizao de "tcnicas" muito "diferentes". Essas msicas eram, emgeral, elogiadas por Mrio, pois simbolizavam uma possvel apro-ximao "interessada" entre o artista culto e as "coisas brasilei-ras": " ... Tupinamb, se no expressa a civilizao um pouco exte-rior das cidades modernas do Brasil, Rio de Janeiro, So Paulo,congraa nas suas msicas a indecisa alma nacional, a que dominaprofunda melancolia. Nessa pgina chamada Minha Terra, ele dis-se admiravelmente na primeira parte o que vai de preguia, de can-sao e de tristeza nostlgica pelo nosso vasto interior, onde ainda apobreza reina, a incultura e o deserto (...) No se ouve mais oMatuto. Ningum mais se lembra de Ao som da viola. Mas poss-vel que um dia os compositores maiorais, conscientes da sua naci-onalidade e destino, queiram surpreender a melodia mais bela eoriginal do seu povo. As msicas de Marcelo Tupinamb seronesse dia observadas com admirao e mais constncia'?".E, paralelamente, denunciava o artista "comprometido" comas razes nacionalistas no-brasileiras": "... mas tenho que reco-nhecer que a situao atual de Francisco Mignone - 1928 - bemdolorosa e que estamos em risco de perder, perdendo-o, um valorbrasileiro til. (...) Mas que valor nacional tem o Inocente? Abso-lutamente nenhum. E muito doloroso no momento decisivo denormalizao tnica em que estamos, ver um artista nacional seperder em tentativas inteis ..."6\ .

    A fase de construo de um projeto em prol da nacionaliza-o da msica erudita brasileira fundamentava-se, em sntese, nocompromisso social do compositor em face do "resgate" dos valo-res culturais de um Pas agrrio e rural: "a atualidade brasileira seaplica aferradamente a nacionalizar a nossa manifestao. Coisaque pode ser feita e est sendo sem nenhuma xenofobia nem impe-rialismo. O critrio histrtco" atual da Msica Brasileira o damanifestao musical que sendo feita por brasileiro ou indivduo

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    nacionalizado, reflete as caractersticas musicais da raa. Onde queestas esto? Na msica popular'?".Nesta fase de construo, ao se referir ao artista brasileiroenvolvido com a msica estrangeira ou internacional corno "umintil, um nulo. Uma reverendssima besta", se no for um "g-nio"?', Mrio no estava preocupado com o surgimento de poss-veis "gnios", mas com autores capazes de internalizar a proble-mtica modernista: "em primeira audio, os Cantos Populares -1931 - Brasileiros, do compositor paulista Artur Pereira. So onze

    pecinhas pra cro e orquestra, sobre ternas populares. O trabalhode Artur Pereira inteligentissimo?".

    3 ,2." Exotismo, individualismo, exclusivismo" /" nacionalismoinconsciente, coletivismo"No Ensaio, e nos seus inmeros artigos, Mrio atacou, agres-

    siva e ironicamente, o exotismo apropriado consciente e proposi-talmente pelo compositor em face de alguns recursos sonoros "f-ceis", oriundos da msica popular, visando somente "agradar" e"envolver" crticos e pblicos estrangeiros interessados nos aspec-tos "superficiais" e "programticos" do discurso sonoro: "um dosconselhos europeus que tenho escutado bem que a gente si quiserfazer msica nacional tem que campear elementos entre os abor-genes pois s mesmo estes que so legitimamente brasileiros. Isso urna puerilidade que inclui ignorncia dos problemas sociolgi-cos, tnicos, psicolgicos e estticos. Urna arte nacional no se fazcom a escolha discricionria e diletante de elementos: uma artenacional j est feita na inconscincia do povo. O artista tem sque dar pros elementos j existentes urna transposio erudita quefaa da msica popular, msica artstica, isto : imediatamente de-sinteressada'?".

    Mrio defendia a "msica popular" como "matria-prima" ou"fonte" de inspirao a ser antropofagicamente deglutida pelo com-positor erudito. Nas suas obras, a utilizao dejragmentos rtmi-

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    cos OU meldicos de msicas africanas ou indgenas pelo composi-tor colocavam em xeque o projeto modernista calcado no incons-ciente coletivo de uma Nao. O emprego exclusivista de algunssignos da msica negra, como por exemplo o ritmo sincopado,poderia induzir o compositor a escrever uma obra "agradvel" esintonizada com os emblemas de uma Nao africana no-brasilei-ra ... E, assim, o compositor estaria negando, atravs do exotismo,a criao de um "rosto musical" sui generis de uma Nao chama-da Brasi1...

    No perodo de 1922 a 1945, Mrio criticou, com virulncia,a internalizao de traos considerados exticos e individualistasnas obras dos compositores eruditos, incluindo os seus autoresprediletos, tais como: Heitor Villa-Lobos, Camargo Guarnieri,Lorenzo Fernandez, Francisco Mignone. No Ensaio, criticou autilizao excessiva de temas indgenas em algumas obras de Villa-Lobos, que concorreram "pro sucesso atual do artista" 67. Parano magoar ou criar "inimigos" entre os artistas capazes de con-cretizar o "programa modernista", Mrio sempre procurava ate-nuar suas crticas mais "cidas" atravs da incluso, nos seus ar-tigos, de frases onde procurava enfatizar a "genialidade" do com-positor: "ningum no imagine que estou diminuindo o valor deVilla-Lobos, no. Pelo contrrio: quero aument-Ia. Mesmo an-tes da pseudo-msica indgena de agora" Villa-Lobos era umgrande compositor. A grandeza dele, a no ser pra uns poucossobretudo Artur Rubinstein e Vera Janacopulos, passava desper-cebida. mas bastou que fizesse uma obra extravagante bem docontinuado, pra conseguir o aplauso":".

    Para Mrio de Andrade, os "sucessos" alcanados pelos OitoBatutas e Villa-Lobos em Paris, em 1922 e 1923, respectivamente,prenderam-se a uma prtica artstica "mais individual que nacio-nal"?". Em algumas de suas crticas, Mrio elogiava os oito artistasque haviam conseguido afastar-se dos "fantasmas" do exotismo edo individualismo: "felizmente que j passou aquele tempo amaldi-oado em que os nossos compositores quando faziam msica bra-sileira, faziam isso como se fosse mera concesso pro extico.

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    Nestes novos - Lorenzo Fernandez, por exemplo, de agora, quealis no poderiam ser o que so si no fosse o trabalho dosantecessores, a gente j nota uma naturalidade e fatalidade nacio-nais do melhor calibre ..."71.

    Irnica ou tragicamente, esses "fantasmas do passado" conti-nuaram "atormentando" Mrio de Andrade at o seu falecimento,ocorrido em 1945: "no pude concordar com Francisco Mignoneem ter preferido as danas abertura do Guarani. As danas, ouvi-das assim, sem o disfarce do bailado e o divertido de muitos penachossaltitando em busca de coreografias, provaram bastante a sua facili-dade musical (. ..) O Imbapara de Lorenzo Fernandez nos transportada msica de influncia negra para a msica baseada em possveistemas amerndios. Confesso que duvido muito desses temas, sob oponto de vista tnico, mas o importante que so bons temas musi-cais (. ..) por mais bem feitos que sejam poemas como o Imbapara,sempre certo que pouco ou nada nos falam alma nacional'?'. Esobre a melodia de Heitor Villa-Lobos: "trata-se de uma pea deescasso valor, espcie de rapsdia de todos os lugares comuns doarabismo do sculo passado"73De acordo com essa concepo de histria, somente JohannSebastian Bach; Wolfgang Amadeus Mozart; Ludwig vanBeethoven, por exemplo, poderiam ser chamados de "gnios". Porque? Devido a uma fatalidade histrica, esses compositores es-creveram obras "nacionais" que se transformaram em "universais",devido a um feliz "encontro": funo social do artista +

    "elevadissimo teor esttico" de suas obras. No Brasil dos anos 20e 30, em funo do atraso do Pas - de acordo com Mrio - seriaprefervel que o jovemcompositor, no incio de sua carreira, abra-asse o imaginrio nacionalista, e assim, opondo-se ao exotismo eao individualismo, paulatinamente, poderia caminhar em direo "universalizao" de sua obra num futuro prximo ...Nesta fase de construo, seria prefervel que o compositorse voltasse para a pesquisa da msica popular: "Cesar Cui seriaignorado si no fosse o papel dele na formao da escola russa.Turuna de importncia universal mirim"?". Por essa razo, Mrio

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    procurou enfatizar obras de compositores brasileiros - Heitor Villa-Lobos, Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandez, Clorinda Rosato,Elza Cameu - de matizes socializantes, aproximando-os de CesarCui e afastando-os de um Turuna ...Entretanto, Mrio sempre procurou criticar, com veemncia,o ufanismo e a xenofobia, opondo-se, assim, s propostas poltico-culturais do Grupo "Verde-Amarelo": "a marchinha central dosadmirveis Choros n." 5 de Villa-Lobos (Alma Brasileira) foicriticada por no ser brasileira. Quero s saber porqu. O artista seutilizou de um ritmo e dum tema comuns, desenvolvidos dum ele-mento anterior da pea, tema de carter imediatamente tnico ne-nhum (. ..) tanto podendo ser brasileiro (. ..) no s porque sendoinventado por brasileiro dentro de pea de carter nacional e nolevando a msica pra nenhuma outra raa, necessariamentebrasileiro">!":

    3.3. "Nacional" / "universal" ?Para Mrio de Andrade, a msica "universal" representava"um esperanto hipottico, que no existe (. ..). No h msica in-ternacional e muito menos msica universal: o que existe so gni-os que se universalizam por demasiado fundamentais, Palestrina,Bach, Beethoven .. .'>77.Utopicamente, a "universalizao" da msica brasileira eru-

    dita somente poderia ocorrer num futuro longnquo, atravs dosurgimento de obras "esteticamente livres" ... Trgica ou ironica-mente, esse critrio em prol da nacionalizao da msica brsileiraharmonizou-se nos anos 40 e 50, com alguns traos do jdanovismoou do realismo socialista". Alguns dos matizes do jdanovismo jhaviam-se esboado no Ensaio em 1928: "mas (. ..) um artista bra-sileiro escrevendo agora" em texto alemo sobre assunto chins,msica da tal chamada de universal faz msica brasileira e msi-co brasileiro. No no. Por mais sublime que seja, no s a obrano brasileira como antinacional. E socialmente o autor dela

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    .deixa de nos interessar. Digo mais: por valiosa que a obra seja,devemos repudi-ki", que nem faz a Rssia com Strawinsky eKandinsky='?". Neste trecho, Mrio revelou um matiz apolneo-autoritrio do seu pensamento, aproximando-se dos ensaios escri-tos por Cassiano Ricardo e Plnio Salgado durante os anos 30:"estamos procurando conformar a produo humana do pas coma realidade nacional?".Somente atravs de um projeto de modernizao do Pas,poder-se-ia, de acordo com Mrio, criar o ideal de "coletividade"

    ou de "comunidade" (Nao +povo versus antagonismos ou con-flitos sociais), privilegiando o "povo" como o "motor" da Histriado Brasil. E, a partir dessa conjuntura, seria possvel criar umaEscola Nacionalista de Composio, sintonizada com a "alma dopovo": "dia em que ns formos inteiramente brasileiros e s brasi-leiros a humanidade estar rica de mais uma raa, rica de uma novacombinao de qualidades humanas (. ..) Nossos ideais no podemser os da Frana por que as nossas necessidades so inteiramenteoutras, nosso povo outro, nossa terra outra etc. Ns s sere-mos civilizados com relao s civilizaes o dia em que criarmos.o ideal de orientao basileira. Ento passaremos da fase domimetismo, pra fase de criao. E ento seremos universais, porque nacionais (. ..) como os norte-americanos do sculo 20 "84.

    Com a expanso da indstria do entretenimento nas cidadesdo Rio de Janeiro e So Paulo nos anos 30 - teatros de revista,emissoras de rdio, indstria do disco, cinema sonoro, dancings,cassinos -, muitos compositores e intrpretes divulgaram centenase centenas de msicas inspiradas no imaginrio folclrico, que setornaram modismo. Essas msicas, de fortes coloraes"regionalistas", aproximaram-se indireta e inconscientemente dequestes ideolgicas levantadas por Mrio no Ensaio.Nos anos 20 , em So Paulo, por exemplo: "Cornlio Piresinstaura uma pratica que lhe traria enorme popularidade, partindopara viagens a rinces remotos do serto, que eram em seguidarelatadas em bem-humoradas conferncias e saraus regionalistas,sempre com os teatros lotados e lutas pelos bilhetes. Artistas e

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    arquitetos paulistas partem para viagens de 'estudos' pelos interio-res, com visitas obrigatrias s cidades histricas de Minas e capi-tais do Nordeste ..."85; ". .. o entretenimento se assinalavajustamen-te por sua integrao com o processo capitalista, pois visava con-quistar um mercado que no se limitava apenas ao Distrito Fede-ral. O rdio e o cinema acenavam com a possibilidade de participa-o de boa parte da nao e se constituam em uma indstria demassa, brasileira ou importada, vendendo em seu mercado os bensa consumir, os filmes e as canes, ou s vezes, os dois simultane-amente?".

    Em geral, Mrio de Andrade criticou, com veemncia, de umlado, os maxixes, sambas, tangos, ragtimes divulgados pelos artis-tas populares atravs do rdio ou do teatro de revista; e, de outro,os compositores eruditos sem conhecimentos tcnicos e estticosmais rigorosos, que parafrasearam temas das canes folclricas.Para combater esse modismo inspirado diretamente na can-o folclrica durante os anos 30, Mrio, em 1933, defendeu uma

    quarta fase ou etapa a ser percorrida pelo artista erudito na suabusca utpica do "som nacional". Essa fase, chamada de cultural,caracterizava-se pela "independncia total" do artista em face aos"fatos folclricos". A obra do artista deveria ser "esteticamentelivre ..."Nos anos 30, Mrio percebeu que muitos compositores mo-dernistas, incluindo alguns dos seus alunos do Conservatrio Dra-mtico e Musical de So Paulo, escreveram msicas baseadas dire-tamente nas temticas folclricas, consideradas como as fontes dabrasilidade pelas mais diversas tendncias poltico-partidrias des-se momento histrico. Esses compositores escreveram centenas depeas que se transformaram em verdadeiros pastichos das canesfolclricas. E, de repente, Mrio de Andrade tornou-se "prisionei-ro" de sua utopia neste momento de construo do imaginriomodernista. De um lado, surgiram compositores "menores" e, deoutro, compositores consagrados - Heitor Villa-Lobos, CamargoGuarnieri, Francisco Mignone, Lorenzo Fernandez - que conse-guiram internalizar, em algumas de suas obras, traos "coletivistas"

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    e esteticamente livres, Entretanto, Mrio transformou-se num re-fm do seu projeto: os compositores modernistas decodificaram assuas "escutas" do folclore annimo em prol de uma busca de obrasde matizes "coletivistas" e acabaram produzindo sonoridades mui-to semelhantes",

    A partir das "escutas" dessas msicas eruditas, Mrioconstatatou uma ausncia de estilo nesses artistas que, paradoxal-mente, passaram a representar as falas de um "povo culto"", Poresse motivo, influenciado pela esttica formalista, exigiu dessescompositores uma preocupao mais rigorosa com a escrita musi-cal, aconselhando-os no sentido de libert-Ios das influncias dire-tas do folclore. Entretanto, essas exignciasde Mrio esbarraramna inexistncia de tratados tericos no campo do modernismo cul-tural. Cada compositor procurou conciliar seus estudos tcnicoscom as especificidades rtmicas, timbrsticas das canes folclri-cas de acordo com uma viso de mundo considerada muito "indivi-dualista" dessa problemtica,

    Mrio de Andrade - nos fins dos anos 30 e incios da dcadade 1940 - valorizou os compositores capazes de criar msicas "ori-ginais", "inconfundveis", opondo-se s disparidades regionais eao pluralismo das escolas nacionalistas devido expanso de pro-jetos culturais implementados pelos Estados Totalitrios e Autori-trios, tais como: Alemanha (nazismo e a valorizao do folcloreariano); Itlia (apologia e divulgao das obras dos mitos romnti-cos da pera do sculo XIX, em especial); Rssia (stalinismo e aconcretizao do realismo socialista, sistematizado por Jdanov apartir de 1932); Brasil (valorizao do ensino do canto orfenicocomo um dos pilares da formao cvica do cidado, sob ogetulismo: 1930-45); entre outros,Com a ecloso da Segunda Guerra Mundial em 1939, Mrioconscientizou-se sobre os "perigos" da utilizao da palavra "naci-onalismo", amplamente internalizada, sob matizes diversos, nosdiscursos integralistas; liberais conservadores; socialistas; nazistas;fascistas; modernistas. Por esta razo, preferiu utilizar o adjetivo -nacional - para continuar explicando e fundamentando a sua con-

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    cepo sobre a msica brasileira erudita. Com o acirramentoaflorado entre os nacionalismos polticos ps-1939, Mrio temeuum possvel desencadeamento de uma guerra "cultural" entre asNaes envolvidas no conflito. Os Estados vencedores poderiamimpor o seu modelo nacionalista na msica, dominando cultural-mente as Naes perdedoras.

    Nessa conjuntura histrica - 1939-45 -, Mrio percebeu aspossveis "ameaas" de uma invaso wagneriana no Brasil, caso aAlemanha vencesse a guerra, "implodindo" a sua utopia sobre omodernismo musical... E, sentindo-se "prisioneiro" de uma dita-dura - Estado Novo (1937-45) -, escreveu o Banquete (1944-5),onde apontou metaforicamente todas as angstias e dilemas deJanjo - compositor nacionalista - em face das contradies scio-poltico-culturais de um Pas chamado Mentira - que, atravs deurna instituio ou rgo de censura - GELO -, controlava todas asatividades artstico-culturais nos campos da msica, cinema, tea-tro, imprensa, rdio, disco. O contedo doutrinrio-programticodo Ensaio, escrito em 1928, foi retomado por Mrio no Banquete,sob ngulos esttico-ideolgicos redefinidos em funo dosurgimento de uma nova conjuntura histrica - a ditadura Vargas -nunca prevista ou imaginada por um artista que sempre havia abo-minado a poltica partidria.Em 1930, Mrio, s vsperas do Golpe, afirmou: "". a deca-dncia moral dos paulistas, j estigmatizados com tanta lealdadepor Paulo Prado numa das pginas mais incisivas da 'Paulstica',

    tinha chegado nestes ltimos tempos a um estado de tamanho des-leixo que atingira as raias do semvergonhismo. Foi por tudo issoque ainda mais me espantou a formidvel recepo estritamentepopular que os paulistas fizeram aos candidatos do Partido Liberal(".) um povo de certamente mais de cem mil pessoas, vibrandonum cortejo gritador, todo ele tomado duma raiva dionisaca, reli-giosa pela preciso de ver em algum (".) No houve tempo parainventar hinos. Mas tinha um que nossa propriedade, o Nacional,e esse foi cantado, gritado, desafinado, imposto, estragado, digni-ficado pela multido, com esse direito que ela tem de ser maravi-

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    Ihosamente feia (..,) Pois na falta de hinos de circunstncia e decantigas apropriadas, o povo paulista se agarrou s dinamogeniasrtmicas, que so mais fceis de lembrar e mais incisivas psicologi-camente, Foram numerosas as que surgiram na noite de sbadopassado. Consegui colher as seis que vo aqui. So todas interes-santssimas pelas palavras e principalmente pelos ritmos criados( ...) No estou no momento fazendo consideraes partidrias. Notem dvida que odeio esta Repblica e especialmente o caudilhis-mo governamental que nos anda envilecendo, porm fra dos par-tidos e dos dios, o que me interessa mesmo filialmente, a perfei-o e integridade do pOVO"87.No Banquete (1944-45), Sarah Light - milionria, "plutocra-ta", israelita, nascida em Nova Iorque, "sem razes" - defendia aarte como privilgio da classe social dominante, demonstrando uma"pseudo oposio" em face da ditadura getulista; Flix de Lima -de origem italiana, "naturalmente fascista?", "burro e ignorante",defensor das instituies vigentes; Siomara Ponga - cantora virtuosede renome, de origem espanhola, "acadmica", opunha-se a Janjo,"o sincero criador't".No Banquete, Mrio continuou no resolvendo os impassestcnico-estticos entre o artista erudito e a pesquisa da msicapopular. Implicitamente, conscientizou-se sobre o "desaparecimen-to" do folclore devido crescente modernizao da sociedade ca-pitalista, mas continuou defendendo a funo social do artista, agorainspirando-se no marxismo atravs da busca de uma vida melhor eda felicidade, sem contudo abraar o ideal da "arte proletria" ou"arte engajada", consoante critrios conteudsticos e pouco for-mais impostos pelo realismo socialista ...

    3.4. "Msica popular (folclrica)"; "Arte Culta" / "Msicapopularesca"

    A pesquisa do folclore tornou-se, durante os anos 30, 40 e50, o ponto nodal dos ensaios escritos sobre a "identidade nacio-

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    nal" pelos integralistas, liberais conservadores e autoritrios, soci-alistas, estadonovistas, modernistas. Essa busca da identidade eunidade culturais inspiradas no folclore, pode ser resumida nestaafirmao de Napoleo Albuquerque: " ... as investigaes perse-verantes, capazes de estabelecer com segurana, os fundamentosem que se dever erigir a verdadeira expresso musical da nossaraa ..."90.

    Muitos intelectuais enalteceram a msica popular ou folclri-ca como a principal fonte de inspirao do compositor erudito,numa etapa capaz de identificar a msica como smbolo da "almade uma Nao". De acordo com esse ideal, a "arte universal" pas-sou a simbolizar uma "arte nacional em seu mais alto clmax'?'.Os critrios estabelecidos pelos crticos, historiadores da m-sica ou pelos idelogos do Estado Novo (1937-45) apresentaram,em inhas gerais, algumas concordncias sobre os conceitos de"msica nacional"/ "msica universal". Para Andrade Muricy, em1931, a internalizao do "nacional" na msica ocorreu somente

    nas obras escritas por Heitor Villa-Lobos, Lorenzo Fernandez eLuciano Gallet, secundados pelo " ... grande crtico e folcloristaMrio de Andrade, autor do magistral Ensaio sobre a msica bra-sileira ..."92 .Historicamente, o forte impacto do nacional-popular nas obrasensasticas (verbalizadas) e musicais (no-verbalizadas) dos inte-lectuais dos anos 30 e 40 favoreceu "explicaes" altamente mati-zadas sobre as "escutas" das chamadas msicas folclricas, popu-

    lares, popularescas e eruditas", contribuindo, de um lado, para oenaltecimento, e, de outro, para o "silenciamento" ou "extermnio"dos compositores verdadeiramente brasileiros ou meros imitado-res das msicas produzidas nos plos culturais aliengenas ... Nacitada fala de Andrade Muricy, por exemplo, somente os composi-tores eruditos cariocas foram "elogiados" - Villa-Lobos, LorenzoFernandez, Luciano Gallet - deixando-se de lado os chamados"popularescos" - Ernesto Nazareth, Sinh, Noel Rosa ou os erudi-tos "paulistas", tais como Camargo Guarnieri e Francisco Mignone,entre outros.

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    Os trechos de coloraes cvico-patriticas do Ensaio sobreo Canto Coral tornaram-se unanimemente aceitos por todas as ten-dncias poltico-culturais. A temtica sobre o civismo vinha sendocolocada por alguns intelectuais a partir dos incios dos anos 20:"uma agitao nova e jovial faz fremir o pas por todos os lados. Aptria canta e todos os seus progressos se simbolizam nesse traba-lho musical glorioso que exprime as nossas foras vivas (...) E oBrasil prova com a sua musicalidade atual, imperiosa e rica, comoo seu corpo anseia por ocupar a parte que lhe est destinada noconvvio amoroso da terra civilizada'?'.

    Esse clima "otimista", de matizes cvico-patriticos, aflorouna msica durante os anos 20, como uma espcie de contradiscursoem face da poltica cultural liberal implementada pelo Partido Re-publicano. E o folclore transformou-se na principal fonte temticadessas canes da brasilidade. No Ensaio, Mrio procurou indicar,em linhas muito gerais, os traos originais e singulares do cancio-neiro folclrico brasileiro, almejando "distanci-I os" da sintaxe tra-dicional da msica europia. Por exemplo, Mrio apontava a pas-sagem do Modo Maior para o Modo menor como uma caracters-tica SI/i generis e fundamental da modinha, chamando a atenopara a importncia desse problema a ser estudado com rigor peloscompositores modernistas. Ou seja, esse artifcio, internalizadoannima e coletivamente pelo "povo" na modinha, representava "ojeito caracterstico ou a maneira modulatria racial?".

    Mrio de Andrade, nos seus artigos, no desprezou in totuma msica popular urbana, que havia se expandido vertiginosamentenos anos 30 e 40. Em suas crticas, ora elogiava algumas msicasescritas por Marcelo Tupinamb, Francisca Gonzaga ou Noel Rosa,ora criticava, com virulncia, msicas escritas pelos compositoressob encomenda dos empresrios das emissoras de rdios, do discoou dos teatros, em especial, as obras "contaminadas" pelo "vrus"do tanga ou dos filmes musicais norte-americanos (fox-troty du-rante os anos 30. O tanga (Argentina); a chanson (Frana); o fox-trot (Estados Unidos), por exemplo, colocavam em xeque as "fa-Ias" verdadeiras do "homem rural" ou dos subrbios das grandes

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    cidades: "". a forma musical da Suite positivamente uma daspreferidas pela nossa gente. Est nos fandangos de Canania, semanifesta no Congado, no Maracatu, no Boi-Bumb, no Pastoril( ...) Nas emboladas, nos coros, nos desafios, nos preges, nosaboios, nos lundus e at nos fandangos, a gente colhe formas dometro musical livre e processos silbicos e fantasistas de recitativo,que so normais por a tudo no pas. Isso os artistas carecem ob-servar mais?".

    Para Mrio, o "fato folclrico", num primeiro momento his-trico, teria sido inventado por um artista culto, letrado, e, numsegundo, "reinventado" pelo "povo inculto". Por essa razo, mui-tos compositores, imbudos desses ideais de brasilidade, teme-ram a "cidade" ou o "mundo urbano" como o local da "degrada-o" da msica, devido s fortes influncias de sons estrangeirosdivulgados atravs das emissoras de rdio ou pelas indstrias dodisco ou pelos filmes sonoros ou pela forte presena de imigran-tes vindos da Itlia, da Espanha, do Japo, da Turquia, da Alema-nha, em especial, na cidade de So Paulo. Essas canes estran-geiras, conforme esse pensamento, poderiam "contaminar", apartir de 1928, a msica brasileira "autntica", levando-a a umtotal "desaparecimento" ...Lcio Rangel, um dos principais historiadores da msica po-pular brasileira, no conseguiu captar, com rigor, essa ambigida-de dos ensastas, que ora valorizavam, ora desprezavam a msicapopular urbana. Na sua obra Sambistas & Chores, elogiou o inte-

    resse de Mrio de Andrade pela pesquisa do samba rural paulista,mas no chegou a compreender o desinteresse do autor deMacunaima pelo estudo sistemtico do samba carnavalesco do Riode Janeiro: "como nossos folcloristas, no sei porque, Mrio tam-bm preferiu o estudo de certas manifestaes musicais observa-das em pequenos ncleos da populao, do grande samba, cantadoe danado por milhes de brasileiros, embora influenciado pelasmodas internacionais, como tinha que ser. Preferiu os caboclinhos,de Joo Pessoa ou do Rio Grande do Norte, o boi bumb do Ama-zonas e as congadas da Vila de Lindia '?". Na realidade, Mrio

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    inte ressou-se pelos tem as do carnaval urbano com o fontes de inspira-o para o artis ta e rudito : "o c arna val freq en ta rarssimamente a nos-sa arte erudita, Um quadro de Parreiras, um grupo de peas p ian s ticasd e V illa -Lobos e mais nada im portante que eu m e lembre?".No Ensaio, Mrio elogiou, com reserv as, a gravao daembolada pernambucana - Pinio - pelos Turunas da M auric ia,divulgada em 192799, que se tornou grande sucesso do Carnaval doR io de Janeiro de 1928. De acordo com os seus princpios, entre astrs verses de Pinio, in cluindo a pea gravada pelo grupopernambucano, M rio apontou a verso annima dessa emboladacomo a mais representativa e mais prxima da verdade histrica,por ter sido cantada, com maior rigor rtm ico, "por pessoas dopOVO"IOO.

    A m sica popular vista com o a fonte histrica m ais confivelp elo p es qu isa do r, tornou-se o ponto nodal de inm eros exem plosin dicados por M rio no Ensaio e nos seus artigos, como por exem -plo, os m axixes danados pelo "povo do R io de Janeiro", conside-rados como " ... p eas so be rb as, onde a m elodia ia se transfiguran-do num ritmo novo"; e, num segundo momento, criticou duramen-te " .. , os m axixes impressos de Sinh", considerados como umconjunto de " .. , banalidades meldicas'?".

    N estes exem plos, M rio selecionou canes ou danas do"povo", sempre desconfiando ou criticando, com ironia, as suasverses popularescas e urbanas.No caso do intenso dilogo entre o maxixe e o jazz, Mriointerpretou essa aproxim a o polifnica em funo de uma "fatali -dade histrica" oriunda de um povo que m igrou da frica, orapara os Estados Unidos, ora para o B rasil, durante o sculo XIX .O tango argentino, m uito divulgado no B rasil, foi acidam ente criti-cado por M rio: "tem uma influncia evidente do tango em certoscompositores que pretendem estar criando a Cano B rasileira!Esto nada. Se aproveitam da facilidade m eldica pra andarem pora tangaicam ente gem endo sexualidades panemas"!".A antinornia mundo rural (jazz + maxixe) e mundo urbano(tango) denota, im plicitam ente, a concepo de M rio sobre uma

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    verdade histrica criada pelo "povo inculto" e uma mentira hist-rica, implcita nas obras dos compositores populares urbanos, emgeral.3.5. Polifonia + coletividade? / Harmonia + individualismo

    burgus?Na fase de construo de uma Escola baseada no ideal de

    nacionalizao da msica erudita brasileira, Mrio de Andrade in-dicou, em linhas gerais, alguns critrios tcnicos inspirados nasconstncias rtmicas, timbrsticas, meldicas das msicas popula-res folclricas, tais como: 1. ) nas pesquisas sobre o ritmo sincopado,procurou desmistificar uma noo generalizada entre os artistassobre esse ritmo, visto como smbolo das "verdadeiras razes damsica brasileira". Para Mrio, nos inmeros documentospesquisados, algumas melodias de origem africana baseavam-se naescala hexacordal (sem a nota sensvel), como, por exemplo, a ver-so paraibana da cano Mulher Rendeira, na qual a stima notada escala diatnica sistematicamente evitada, caracterizando-sepelos saltos meldicos considerados "audaciosos" (de 7 . ou de8."); 2.0) as melodias folclricas eram entoadas, em sua maioria,atravs de frases descendentes, opondo-se sintaxe tradicional dosistema tonal europeu; 3.0 ) a escritura da maioria das canes fol-clricas apoiava-se na linguagem polifnica: " ... o problema daHarmonia no existe propriamente na msica nacional. Simples-mente porque os processos de harmonizao sempre ultrapassamas nacionalidades ( ... ) porm esse carter muito nacionalizado raos processos harmnicos populares, pobres por demais, Tem queser um desenvolvimento erudito deles ( ...) A no ser que a gentecrie um sistema novo de harmonizar, abandonando por completoos processos j existentes na Europa ( ... ) a harmonizao europia vaga e desraada. Muito menos que raciais, certos processos deharmonizao so individuais" ,"103,

    No mbito da linguagem musical, Mrio de Andrade no po-dia refutar a harmonia "europia" como algo "nocivo" para a m-

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    sica modernista, devido impossibilidade tcnica e histrica de seelaborar uma nova linguagem compatvel com o seu projeto, ounegar as fortes influncias do tonalismo e do modalismo no folclo-re brasileiro, Em funo dessa "nova fatalidade histrica", Mrioprocurou levantar algumas hipteses genricas e superficiais sobreessa problemtica metodolgico-terica altamente complexa: "oproblema bem sutil e merece muito pensamento, muito raciocniodos nossos artistas"!". Neste caso, os compositores eruditos deve-riam observar, sutil e rigorosamente, os processos meldicos, rt-micos, timbrsticos internalizados nas canes folclricas e, para-lelamente, criar novos critrios harmnicos ou polifnicos, alme-jando nacionalizar, com eficincia, a msica modernista brasileira.Para exemplificar a possibilidade de concretizar esses novos crit-rios, Mrio citou peas escritas por Luciano Gallet e CamargoGuarnieri (Andante da Sonatinoi.Essa ambigidade metodolgica foi indicada por Mrio naparte sobre uma possvel nacionalizao das formas europias,como a sonata, sinfonia, fuga, sute, pelos compositores moder-nistas. Para solucionar esse "novo impasse", props a invenode formas inspiradas nos coros, desafios, embaladas, lundus, sam-bas, maxixes, chimarritas, catiros, cururus, mazurcas, valsas,po\cas, "alm das dinamogenias militares, dobrados, marchas ( ...)tudo isso est a pra ser estudado e pra inspirar novas formasmusicais na-cionais"!".

    Mrio de Andrade privilegiou o canto coral e a pera comoformas capazes de internalizar, com "eficincia", o projeto nacio-nalista: potica +sons.O coral foi considerado por ele e pela maioria dos intelectuaisnacionalistas dos anos 30 como a nica forma capaz de representaro "retrato" ou o "perfil do rosto musical do Brasil Novo": "tam-bm quanto a formas corais possumos nos reisados e demais dan-as dramticas, e nos coros muita base de inspirao formal. Noscoros as formas corais variam esplendidamente. Ora eu insisto novalor que o coral pode ter entre ns. Musicalmente isso bvio.Sobretudo com a riqueza moderna em que a voz pode ser concebi-

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    da instrumentalmente, como puro valor sonoro (. ..) Ainda aqui oexemplo de Villa-Lobos primordial. Se aproveitando docacofonismo aparente das falas amerndias e africanas e se inspi-rando nas emboladas ele trata instrumentalmente a voz com umaoriginalidade e eficincia que no encontra exemplo na msica uni-versal (Sertaneja, Rasga Coraoi. Mas os nossos compositoresdeviam de insistir no coral por causa do valor social que ele podeter. Pas de povo desleixado'" onde o conceito de Ptria quaseuma quimera a no ser pros que se aproveitam dela, pas onde ummovimento mais franco de progresso j desumaniza os seus ho-mens na vaidade dos separatismos, pas de que a nacionalidade, aunanimidade psicolgica, uniformes e comoventes fazem pradesvirtu-Ias e entreg-Ias, o compositor que saiba ver um bocadoalm dos desejos de celebridade, tem uma funo social neste pas.O ~oro humaniza os indivduos. No acredito que a msica adoceos caracteres no (...) Carece que a espanholada do baiano se con-fraternize com a mesma baianada do governo (...) possvel a gen-te sonhar que o canto em comum pelo menos conforte uma verda-de que ns estamos no enxergando pelo prazer amargoso de nosestragarmos pro mundo ...",o7.Nesse debate sobre a funo social do canto coral, Mrio oracriticava o "povo desleixado", aptico civicamente, ora convocavaos compositores para escreverem peas corais, inspirando-se nostemas do "povo inculto". E, atravs do coral, elaborar uma met-fora de um povo unido, coeso, "embalado" pelos mesmos ideaispatriticos e cvicos ...3.6. "Msica pura" / Msica de programa"?

    No Ensaio e nos diversos artigos publicados por Mrio deAndrade em jornais e revistas durante a dcada de 30 e incios dosanos 40, a msica de programa ou descritiva sempre foi muitocriticada. Por esse motivo, Mrio no admitia a simples transcri-o de temas folclricos nas msicas escritas pelos modernistas.

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    Inspirando-se nas teorias formalistas, sempre defendeu a cha-mada Arte Pura108. Esta no deveria possuir outro significado doque os seus prprios signos sonoros (significantes, exclusivamen-te), E, para justificar o seu projeto modernista, Mrio de Andraderesgatou a msica clssica do Antigo Regime (sculo XVIII) comoum "modelo" a ser adaptado pelos compositores conforme os no-vos tempos nacionalistas: " ... o perodo clssico o perodo maisfecundo em compositores menores, espanta a riqueza excepcionalde qualidades musicais desses autores. O sculo XVIII um tem-po em que todo mundo escrevia bem ..."109.

    Codao Ensaio sobre a msica brasileira, escrito por Mrio deAndrade em 1928, sintetizou os principais anseios de composito-res, intelectuais, intrpretes preocupados com a nacionalizao da

    msica erudita no Brasil.Este Manifesto ou Segunda Carta sobre o novo descobri-mento do Pas representou, de um lado, uma espcie decontradiscurso agressivo e virulento em face da "presena" domi-nante de um gosto artstico herdado da Belle poque Tropical,internalizado pelas elites burguesas neodarwinistas e republicanasdurante os anos 20, nas cidades do Rio de Janeiro e So Paulo, emespecial; e, de outro, um grito de alerta capaz de envolver, emotiva,ideolgica e esteticamente, o artista-criador em prol da pesquisada msica popular - "povo inculto" - como fonte de "inspirao" desuas obras, numa fase de construo ou primitivista atrelada a umdeterminado conceito de atraso, A partir desse marco zero, o ar-tista deveria envolver-se com esse imaginrio, de matizes folclri-cos e rurais, visando criar, futuramente, o "rosto ou retrato musi-cal" de uma Nao chamada Brasil..

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    NOTASL Renato ALMEIDA, "A volta msica pura", in Revista do Brasil, Rio deJaneiro, XCIX:224-6, mar. 1924.IDEM, "A traio da msica popular", in lVECO, Rio de Janeiro, V-VI:6-8, jun./jul. 1930.Mrio de ANDRADE, "Msica brasileira", in Correio Musical Brasileiro,So Paulo, 4:5-6,15/7/1921.Ronald CARVALHO, "A msica de Villa-Lobos", in O Estado de S. Paulo,17/2/1922.Luciano GALLET, "Reagir", in WECO, Rio de Janeiro, II:3-5, mar. 1930.Fabiano LOZANO," O canto nas escolas primrias de So Paulo", BoletimLatino Americano de Msica, Lima, II:411-6, 1936.2. Ludwig LUERHASS JR., Getlio Vargas e o triunfo do nacionalismobrasileiro. Estudo do advento da gerao nacionalista de 1930, BeloHorizonte: Itatiaia; So Paulo: EDUSP, 1986, p. 63.3, Id., ibidem, p. 66.4. " ... assim, o heri romntico de Alencar, Peri, foi desbancado pelo JecaTatu de Monteiro Lobato, figura satrica, mas neo-realsta, de uma vtimada sociedade, que passou a ser a imagem do brasileiro rural - representandoa verdadeira decadncia moral e material das massas. (... ) o nacionalismode Lobato visava, criando aquele esteretipo, a convencer um crculo maislargo de brasileiros que a sua ptria era um Pas enfermo, precisadssimode tratamento". Cf. L. LUERHASS, op. cit., p. 54.5. Alguns dos intelectuais do grupo "Antropofagia" abandonaram o cultoesotrico do homem natural e passaram a discutir os problemas sociaiscom maior realismo literrio e artstico. Outros, levados pelas suaspreocupaes eom a vida dos homens pobres e excludos sociais, engajaram-se nos partidos de esquerda.6. O Grupo Verde-Amarelo preocupou-se com os problemas ligados educaonacionalista dos brasileiros, conforme uma leitura da "Histria do Brasil".Devido apologia do pragmatismo e da ao, muitos desses intelectuaiscngajaram-se nos movimentos polticos conservadores de matizesintegralistas ou fascistas.7. Paulo PRADO, Retrato do Brasil. Ensaio sobre a tristeza brasileira, 4acd., Rio de Janeiro, 1933.Alberto TORRES, O problema nacional; introduo a um programa deorganizao nacional, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1914.8. Mrio de ANDRADE, "Marcelo Tupinamb", in Msica, doce msica,So Paulo, Martins Fontes, 1963, p. lI5.9. Antnio CNDIDO, "Uma palavra instvel", in Folha de S. Paulo, Livros,Caderno 5, 27/8/1995, p. 13.

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