conte, jaimir - sobre quine e stroud

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  • 7/24/2019 Conte, Jaimir - Sobre Quine e Stroud

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    A epistemologia naturalizada de Quine e o ceticismo*

    Jaimir Conte

    1 Introduo

    Em sua proposta a favor de uma epistemologia naturalizada e pode-se dizer propostaporque apenas em The Roots of Reference encontra-se uma amostra do que ela seria nos seusdetalhes, tendo seu autor se ocupado mais com reflexes de carter meta-epistemolgico do quecom a construo de uma epistemologia propriamente dita , Quine no manifesta qualquerpreocupao com o ceticismo. Diferentemente de muitos autores modernos e contemporneos,que foram provocados pelo desafio ctico, pode-se considerar Quine um filsofo que, de certa

    maneira, recusa-se a encarar ceticismo. No entanto, uma vez que recomenda uma novaepistemologia em substituio ao empreendimento epistemolgico tradicional, na alegao deque apenas em seu novo quadro ela poder continuar existindo enquanto disciplina, somoslevados a perguntar, ento, se sua proposta evita, resolve ou dissolve as dificuldades suscitadaspela epistemologia tradicional. E, como amplamente se reconhece, uma das dificuldadesenfrentadas pelas doutrinas filosficas tradicionais tais como o fundacionalismo cartesianoque procurava estabelecer proposies indubitveis que serviriam de base para derivar todas asoutras proposies , foi a de se defrontarem com o desafio ctico sem grande sucesso.

    Os proponentes da teoria do conhecimento tradicional procuravam uma justificao

    para nossas alegaes de conhecimento. Procuravam uma classe especial de crenas, isentas dequaisquer dvidas, que serviriam de base para o conhecimento e que, deste modo, seriamconsideradas suficientes para justificar o restante de nossas crenas. Neste sentido, a tarefa

    justificacionista consistia numa busca das razes ou condies necessrias para conferiraceitabilidade a um determinado conjunto de crenas.

    A radicalizao do problema da justificao foi apresentada na forma do desafio cticoem torno de uma prova do mundo exterior. Resumidamente, o problema ctico sobre o mundoexterior consiste na hiptese de que a experincia subjetiva pode ser, do ponto de vista lgico,exatamente da maneira como ela , sem que as coisas fsicas ou materiais realmente existam. Foi

    diante deste desafio que, como diz Quine, os epistemlogos sonharam com uma filosofiaprimeira, mais firme que a cincia e que servisse para justificar nosso conhecimento do mundoexterno. No entanto, o projeto tradicional deparou-se com imensas dificuldades para superar oceticismo. E isto em virtude do fato de no poder valer-se de qualquer parte do supostoconhecimento a fim de explicar como conhecemos o resto. Pois, com o desafio ctico, todoconhecimento do mundo exterior era posto em questo ao mesmo tempo, de modo que noera possvel encontrar alguma informao confivel sobre o mundo para responder a questo dese nosso presente curso da experincia ou no um guia confivel da maneira como as coisas

    *Trabalho escrito para a disciplina Teoria do Conhecimento II, ministrada pelo professor Luiz Henrique de Arajo Dutra, nocurso de Mestrado em Filosofia da UFSC, durante o segundo semestre de 2007.

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    so. Alm do que, a recorrncia a uma parte do conhecimento para explicar o restante seriaconsiderada um raciocnio circular, ilegtimo.

    Tendo em vista que a busca da certeza cartesiana da epistemologia tradicional revelou-se, segundo Quine, causa perdida (EN, 166), meu objetivo aqui analisar como a proposta

    de uma epistemologia naturalizada se apresenta diante do desafio ctico e de questes como ado nosso conhecimento do mundo exterior. Quine, ele mesmo, no parece ter se preocupadocom o ceticismo. Mas isso no quer dizer que sua proposta epistemolgica no possa serconfrontada com o ceticismo. Uma vez que apresenta uma via alternativa, propondo noapenas uma reorientao para a epistemologia, mas que ela seja substituda por uma nova formade investigao j que o velho projeto teria fracassado , natural indagar como ela se situadiante de alguns desafios cticos, especialmente o de nosso conhecimento do mundo exterior.

    Barry Stroud um dos autores que procura analisar a relao entre o projeto de Quine eo empreendimento epistemolgico tradicional e ver como a epistemologia naturalizada se

    situa diante do desafio ctico. Meu objetivo final apresentar a anlise de Stroud e expor osargumentos que o levam a defender que a epistemologia naturalizada de Quine no representauma resposta ao ceticismo.

    2 A epistemologia naturalizadaEm seu ensaio intitulado Epistemologia Naturalizada, Quine examina os vrios obstculoscom que se depararam os filsofos que buscaram proporcionar um fundamento para oconhecimento. ento, tendo em vista os fracassos que constata na epistemologia tradicional,que termina propondo uma epistemologia naturalizada como sada para a prpria

    sobrevivncia desta disciplina. Assim, antes de caracterizar a nova epistemologia proposta porQuine em oposio s teorias fundacionalistas tradicionais e depois ver como ela se situa diantedo desafio ctico, vejamos, segundo o prprio Quine, as razes do fracasso da epistemologiatradicional.

    A fim de mostrar a inviabilidade da epistemologia tradicional, Quine comeaassinalando o ideal subjacente ao reducionismo empirista no que diz respeito relao entredados sensveis e crenas sobre o mundo exterior. Segundo ele, o projeto empirista apresentoudois aspectos: um aspecto conceitual e um aspecto doutrinal (Cf. EN, 163). O aspectoconceitual consistia na tentativa de expressar ou reformular, sem perda, enunciados sobreobjetos fsicos em termos puramente observacionais, isto , em termos que se referissem scaractersticas fenomnicas da experincia sensvel. O aspecto doutrinal consistia na tentativa de

    justificar nosso conhecimento das coisas fsicas externas, ou do mundo fsico, a partir doconhecimento de verdades sobre a experincia sensvel. Estes dois aspectos representaram o queQuine denomina os dois dogmas do empirismo 1.

    De acordo com o projeto empirista, os conceitos das cincias deveriam poder serdefinidos como combinaes lgicas de enunciados observacionais e de axiomas da teoria dosconjuntos, por meio de leis de inferncia lgica. Desde o tempo de Berkeley at culminar no

    1Dois dogmas do empirismo, p. 237-354.

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    projeto de Carnap, o ideal empirista consistiu na tentativa de traduo das nossas opiniessobre os corpos, e dos conceitos cientficos, em uma linguagem puramente observacional. Mas,este projeto proposto por autores como Carnap2, que visava uma reconstruo racional dascincias da natureza, apesar da envergadura do instrumental tcnico empregado, fracassou. Os

    empiristas abandonaram a esperana de traduzir as verdades da natureza em termos de sensedata e de observao, e ainda da lgica ou teoria dos conjuntos, assim como a esperana dededuzir estas verdades a partir de certezas sensoriais e de axiomas lgico-matemticos. SegundoQuine, a causa do fracasso do projeto dos empiristas em deduzir a cincia a partir deobservaes se deve impossibilidade que a experincia refute um enunciado particular em umateoria, a no ser que tal enunciado seja um enunciado de observao. baseado em tal tese queele apresenta uma crtica ao verificacionismo que pretendia reduzir as teorias sobre os objetosmateriais realidade observvel. Sua crtica consiste no argumento de que tanto na cincia,como na linguagem cotidiana, no seriam os enunciados isoladamente que possuiriam

    conseqncias empricas observveis, mas, antes, as teorias como um corpo articulado decrenas e hipteses. Nossos enunciados sobre o mundo exterior enfrentam o tribunal daexperincia sensvel no individualmente, mas apenas como corpo organizado 3. Quineconcebe um corpo de conhecimento em termos de uma teia que na periferia est em contatocom a experincia, mas em que cada ponto est conectado a outros pontos por uma rede derelaes. Para ele, o conhecimento um corpo sistemtico de proposies inter-relacionadas detal maneira que apenas aquelas que esto na periferia que nos mostramos dispostos aabandonar ou modificar diante de prova aparentemente refutadora. Segundo ele, seriaimpossvel definir, a priori, crenas ou enunciados imunes falsificao emprica. No seriapossvel, nem o isolamento de determinadas proposies tidas como analticas, nemproposies metafsicas, consideradas como enunciados para os quais no haveria um mtodode verificao. A conseqncia resultante desta impossibilidade que seria intil procurar, paracada enunciado de uma teoria cientfica, um enunciado em termos observacionais e lgico-matemticos. Muitos enunciados permaneceriam irredutveis aos dados sensveis daexperincia, ou seja, permaneceriam intraduzveis em enunciados observacionais. Alm disso,no havendo uma prova observacional a no ser para sistemas muito importantes deenunciados, na verdade para o conjunto de uma teoria, ento manifestar-se-ia uma certasubdeterminao. Ou seja, teoria e realidade no se ajustariam ponto por ponto, masconcordariam apenas globalmente. Teorias incompatveis apresentariam razes equivalentespara serem consideradas verdadeiras. Teorias fsicas poderiam ser mutuamente contraditrias e,no entanto, adequarem-se a todos os dados empricos. Enfim, o argumento de Quine queseria possvel construir teorias cientficas alternativas, no traduzveis entre si, as quais seriamigualmente slidas, a ponto de se poder adotar qualquer uma dentre estas diversas teoriasdiferentes baseadas nos mesmos dados4.

    2Em seu Der Logische Aufbau der Welt.3Dois dogmas do empirismo, p. 251. Trata-se aqui da tese do holismo, ou coerentismo epistmico, segundo o qual a toda

    justificao sistemtica ou tem a natureza de uma inferncia, em virtude das relaes de interligao entre as crenas.4 Trata-se da sua tese da indistinguibilidade evidencial ou da subdeterminaco da teoria pela evidncia. O argumento da

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    Levando em conta estas dificuldades, alguns epistemlogos, segundo Quine,abandonaram suas pretenses justificacionistas e fundacionalistas. Deixaram de sonhar comuma filosofia primeira. Suas pretenses passaram a ser mais modestas. E ento, radicalizando atendncia de seus precursores que j haviam apontado os limites da epistemologia tradicional,

    que Quine alega que ela s vivel se for naturalizada, ou seja, desde que se coloque no mesmoplano das demais cincias empricas, para as quais ela no se preocupa mais em ser seufundamento. A epistemologia naturalizada apresentada, assim, como oposta epistemologiafundacionalista, que consistia numa investigao preliminar e necessria do conhecimentovisando encontrar bases seguras a partir das quais o edifcio do conhecimento deveria serconstrudo. Ela j no se apresenta como uma lgica do conhecimento, tratando da relaoentre enunciados e objetos, mas, antes, como um estudo de carter factual, puramentedescritivo e nomolgico-causal do conhecimento.

    Neste sentido, opondo-se idia Kantiana de uma investigao filosfica especial, a

    priori, acerca do conhecimento, a epistemologia naturalizada de Quine seria consideradauma cincia emprica a posteriori. O conhecimento a priori seria o conhecimento obtidoindependentemente da experincia. Quine nega, porm, que exista um conhecimento a priori.Para conhecer alguma coisa a priori, ele pensa, ela teria que ser analtica, ou seja, verdadeira emvirtude do significado dos conceitos envolvidos, mas no existe qualquer analiticidade. Estarejeio do conhecimento a priori e da analiticidade parte do programa que inclui aconfirmao holista de Quine. De fato, Quine alega, em Dois dogmas do empirismo, queseu anti-reducionismo (i.e., sua confirmao holista) na verdade a mesma coisa que suarejeio da verdade analtica e do conhecimento a priori. O holismo a viso de que todas asteorias so unidades de confirmao, de modo que a justificao de uma crena depende doapoio de toda a estrutura de crenas qual ela pertece.

    A idia de uma filosofia primeira, entendida como uma disciplina que procuraria osprincpios fundamentais, deixa, ento, de ter sentido. Pois o holismo de Quine, associado teseda naturalizao da epistemologia, incompatvel com a noo de um filosofia entendida comouma disciplina conceitual, capaz estabelecer as crenas fundamentais que transmitiriam

    justificao para as crenas no fundamentais. Quine no se preocupa em manter um statusdistinto, especial, para a epistemologia, nem mesmo em lhe atribuir maior dignidade enquantodisciplina. Apenas alega que ela se ocupa com investigaes que so mais gerais, isto , de maioramplitude, que as investigaes das demais cincias. Ao invs da epistemologia ser uma pr-condio necessria para se fazer cincia, ela assume uma nova face. Quine defende, assim, aposio deweyana de que a cincia e a filosofia so contnuas, isto , que no possuem mtodosou temas diferentes. Alm de argumentar que no h uma linha divisria ntida entre a cinciae a filosofia, Quine parece defender inclusive que a cincia pode substituir completamente afilosofia.

    sudeterminao consiste na alegao de que se temos duas teorias empiricamente adequadas, uma to bem confirmadaquanto a outra, ento as observaes ou evidncias experimentais disponveis que confirmam estas teorias no permitem aescolha de uma delas. A subdeterminao a idia de que nenhum conjunto de dados pode determinar inequivocamente averdade ou a superioridade de uma teoria sobre as das teorias concorrentes; sempre haver mais de uma teoria explicativapara um determinado conjunto de dados.

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    Como manifesto no ensaio Epistemologia naturalizada,a estratgia de Quine a fimde mostrar que a epistemologia s vivel se for naturalizada consiste em mostrar que o pontode partida puramente lgico dos programas fundacionalistas fracassou. Ele nos lembra quedesde Descartes as tentativas fundacionalistas que pretenderam estabelecer fundamentos

    seguros para a cincia, o que significaria eliminar o perigo do ceticismo e livrar o conhecimentode qualquer dvida ou incerteza, no foram bem sucedidas.

    Uma vez tendo recorrido histria da epistemologia para mostrar os sucessivos fracassosdas doutrinas fundacionalistas, Quine insiste que a epistemologia tradicional deve serabandonada e substituda por uma nova epistemologia, a qual ele chama de naturalizada porpossuir o mesmo status que as demais cincias naturais. Nesta nova epistemologia, porconsiderar que as nicas questes genunas dizem respeito a relao entre teoria e evidncia esobre a nossa aquisio de crenas, as quais seriam questes prprias da psicologia, Quineconfere a esta cincia um papel de destaque.

    Quine lembra que o motivo por trs da epistemologia sempre foi ver como a evidnciase relaciona com a teoria, e de como as nossas teorias da natureza transcendem qualquerevidncia disponvel (EN, 170). Afirma, tambm, que as antigas razes para nos interessarmospela epistemologia ainda subsistem, havendo apenas uma persistncia esclarecida no problemaepistemolgico original (RR,3). Mas, esta tarefa de investigar as relaes entre teoria eevidncia, que costumava ser o tema da epistemologia, Quine a atribui psicologia. Aepistemologia naturalizada uma transferncia das responsabilidades epistemolgicas para apsicologia (EN, 166). Essa transferncia de responsabilidades proposta por Quine tem sidovista por alguns autores, como Hilary Kornblith 5, como a tese da substituio, em sua versoforte, segundo a qual as questes epistemolgicas podem ser substitudas pelas questespsicolgicas, uma vez que as questes psicolgicas comportam todo o contedo que existe nasquestes epistemolgicas.6

    Ao propor que o tema da filosofia tradicional de competncia da psicologia, Quineno est querendo propor o fim da epistemologia. Ele diz, antes, que a epistemologia continuaa avanar ainda, embora num novo quadro e com um status clarificado. A epistemologia, naviso de Quine, um ramo da cincia natural: a epistemologia ou algo que a ela se assemelhe,encontra seu lugar simplesmente como um captulo da psicologia e, portanto, da cincianatural (EN, 170). Quine sublinha a diferena entre a epistemologia naturalizada e atradicional da seguinte maneira: segundo ele, a antiga epistemologia aspirava conter em si,num certo sentido, a cincia natural: ela a construiria, de algum modo, a partir dos sense-data.No seu novo quadro, inversamente, a epistemologia est contida na cincia natural, como umcaptulo da psicologia (EN, 170-1). Neste novo quadro a epistemologia naturalizada associada a uma doutrina construtivista, segundo a qual todos os enunciados sobre objetos

    5Cf.Kornblith, H., p.6.6O naturalismo substitutivo a verso extrema do naturalismo, segundo o qual as cincias naturais detm o monoplio da

    explicao de todas as coisas relacionadas com o conhecimento, entre as quais do vocabulrio, das afirmaes e negaes edas disciplinas cognitivas.

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    fsicos devem ser entendidos como hipteses ou enunciados tericos relativos ao que nsobtemos atravs dos sentidos.

    Nosso prprio empreendimento epistemolgico, portanto, assim como a psicologia da qual ele um

    captulo e a cincia natural inteira onde a psicologia figura como um dos livros tudo isso construonossa ou projeo a partir de estmulaes semelhantes s que atribuiramos ao nosso sujeitoepistemolgico. H assim um envolvimento recproco, ainda que em sentidos diferentes: o daepistemologia na cincia natural e o da cincia natural na epistemologia (EN,171).

    Assim sendo, Quine prope que a epistemologia naturalizada, enquanto um estudoemprico descritivo e a posteriori de nossos processos cognitivos, ocupe-se com o estudo darelao entre evidencia e teoria. Em outros termos, conduzida segundo um esprito cientfico,que a epistemologia trate da relao entre os estmulos sensoriais que afetam o sujeito humano,constituindo o que se pode chamar de dados de entrada ( inputs) deste sujeito, com o que sepode considerar como dados de sada (outputs), isto , a imagem do mundo corporificada numateoria que o sujeito oferece. no estudo desta relao que a psicologia desempenharia o seupapel, uma vez que se ocuparia com a explicao de como se d o processo da entrada, a partirda observao da estimulao dos receptores sensoriais. Por outro lado, a lingstica tambmteria um papel de destaque a desempenhar, ou seja, no estudo da sada produzida pelo sujeitohumano, mais precisamente, no estudo da produo de certos discursos que supostamenterelatam a experincia (EN, 174).

    A proposta de Quine de uma epistemologia naturalizada pode ser entendida, assim,como uma proposta segundo a qual os problemas relativos ao conhecimento no devem maisser tratados pela filosofia, mas por investigaes realizadas por cincias naturais como apsicologia, a lingstica e outras disciplinas cientficas. De modo que a tarefa do epistemlogono mbito de uma epistemologia naturalizada no se distinguiria das tarefas dos demaiscientistas, j que seu empreendimento seria o de apresentar uma teoria baseada em leis depredio e explicao, como qualquer outra teoria dentro das cincias empricas.

    Em The Roots of Reference Quine oferece uma amostra do que seria uma abordagemnaturalizada do conhecimento. Por considerar a teoria da linguagem importante para entendera relao entre observao e teoria cientfica, nesta obra ele se dedica ao estudo da aquisio

    da linguagem. Sustenta que uma compreenso gentica de como se d a aquisio da linguagempoderia nos ajudar a entender a relao entre nossos impactos sensoriais e nossa teoria acerca domundo. Sua investigao, assim, apresentada e descrita em termos naturalistas. Ele nos diz,por exemplo, que sabemos que uma criana, ao adquirir uma linguagem de seus antepassados,acaba falando de coisas fsicas objetivas a partir dos impactos em suas superfcies sensoriais. Aexplicao do conhecimento oferecida por Quine apresentada em termos de uma psicologiaemprica. Ele procura evitar a questo da conscincia, e o emprego de termos mentalistas,falando simplesmente de entrada fsica nos receptores sensoriais (RR,4). Ele nos diz que arecepo flagrantemente fsica, que so os estmulos de nossos receptores sensoriais que so

    melhores considerados como a entrada em nosso mecanismo cognitivo. Este tipo de

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    abordagem o que o leva a defender que o objetivo especfico da epistemologia naturalizada entender como o nosso conhecimento possvel. E isso, entendendo como uma entradabastante escassa em nossas superfcies sensoriais que recebem os dados brutos da experincia,resulta numa sada torrencial, a qual se d na forma de sentenas e teorias que aceitamos

    como se referindo a um mundo fsico exterior. Como j mencionamos, para Quine, aepistemologia deve explicar o conhecimento humano atravs de procedimentos comuns scincias empricas. Conforme ele sugere, no haveria motivos para a epistemologia proceder deum forma diferente. Pois, ela estuda:

    um fenmeno natural, a saber, um sujeito humano fsico. Concede-se que esse sujeito humano recebeuma certa entrada (input) experimentalmente controlada certos padres de irradiao em variadasfreqncias, por exemplo e no devido tempo o sujeito fornece como sada (output) uma descrio domundo externo tridimensional e sua histria (EN, 170).

    A epistemologia, deste modo, no trata mais de justificar o conhecimento, mas apenasde estud-lo como um fenmeno natural. A Epistemologia naturalizada, neste sentido, desafia atradio argumentando que a descrio dos processos conginitivos uma preocupaoepistemolgica mais central do que a busca de fundamentos e princpios de justificao. Estanova maneira de encarar o conhecimento permite compreender o distanciamento de Quine daspreocupaes cticas. Como diz Rorty, ningum iria assimilar a epistemologia psicologia ano ser que estivesse to pouco assustado pelo ceticismo a ponto de encarar embasar oconhecimento humano como uma espcie de brincadeira7. Assim, conforme alguns autores

    corretamente sublinharam, a nfase que Quine d ao trabalho descritivo em psicologia que odistancia das preocupaes cticas8. #Contudo, apesar de no se preocupar diretamente com as questes cticas, ou

    justamente por isso, a proposta de Quine pode ser lida como uma refutao do ceticismo. Seele rejeita completamente a epistemologia tradicional, a qual suscitou o problema ctico sobreo mundo exterior e ao mesmo tempo no logrou xito na tentativa de super-lo, propondouma nova epistemologia, esta eliminaria, ento, o problema que suscita o ceticismo. Tratar-se-ia, portanto, de uma refutao indireta do ceticismo. No entanto, resta saber se, de fato, aepistemologia naturalizada de Quine constituiria uma resposta adequada ao ceticismo. o que

    procuraremos ver expondo o confronto promovido por Stroud entre a epistemologianaturalizada de Quine, por um lado, e o ceticismo, por outro lado.

    3 O ceticismoAntes de confrontar a epistemologia de Quine com o ceticismo, Stroud defende que aformulao da dvida ctica acerca do mundo exterior inteligvel e legtima, no havendofundamento para a acusao de que ela viola ou distorce os significados dos prprios termosusados para express-la ou as condies necessrias para os termos significarem o que

    7Cf.A Filosofia e o espelho da Natureza, p. 231.8Cf. Kornblith, H., p. 14

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    significam.Uma acusao comum levantada contra o ctico que ele nem mesmo poderia

    formular sua dvida a no ser que soubesse que esta no faz sentido. Este tipo de acusaoprocura mostrar que o ctico no poderia usar os conceitos que usa para expressar sua dvida se

    no considerasse verdadeiras pelo menos algumas das proposies. Este tipo de argumentaoaponta a existncia de algum conhecimento inquestionado da realidade exterior como parte dosignificado, ou como uma condio necessria para a significatividade e inteligibilidade dadvida ctica.

    Stroud, no entanto, argumenta que o mximo que este tipo de acusao pode conseguir mostrar que, a fim de que a formulao inteligvel da dvida ctica seja possvel, o ctico deveassumir ou acreditar que tem conhecimento do significado de algumas proposies e crenassobre o mundo exterior. Mas, argumenta, ter que admitir isso no significa que ficaestabelecido que tais proposies ou crenas so, de fato, verdadeiras. A sugesto de Stroud de

    que o ctico pode valer-se de uma posio realista metafsica que mantm a significatividade ecoerncia de sua dvida.

    Stroud afirma, ainda, que do ponto de vista de uma posio filosfica externa,destacada, como aquela implcita no sistema cartesiano, difcil livrar-se do ceticismo. Talposio destacada partiria da premissa de que as condies de verdade das nossas crenassobre objetos materiais transcendem o modo como empregamos e verificamos proposiessobre os mesmos com base nas nossas experincias subjetivas e, que para possuirmosconhecimento sobre coisas fsicas externas teramos que abandonar a nossa perspectiva empricae subjetiva das coisas, adotando um ponto de vista exterior objetivo. Na base da radicalizaomoderna da questo da justificao na teoria do conhecimento estaria a idia de que, para quepossamos nos auto-atribuir conhecimento emprico sobre coisas materiais, deveramos sercapazes de avaliar a nossa posio epistmica no mundo a partir de um ponto de vista exterior nossa experincia subjetiva e ao modo convencional pelo qual usamos proposies sobre objetosmateriais.

    Stroud lembra que a aceitao de que os fundamentos de nossas crenas sobre o mundolimitam-se ao que obtemos atravs dos sentidos e a plausibilidade da hiptese de que ossentidos no sejam guias confiveis de como as coisas so, tem por conseqncia a permannciada possibilidade de que o mundo exterior seja completamente diferente de como o percebemose acreditamos que ele . Ou seja, a conseqncia o ceticismo sobre o mundo exterior. Stroudargumenta, no entanto, que as dvidas cticas no se baseiam simplesmente na possibilidade deiluses perceptivas como Quine parece pensar. De fato, para Quine toda a argumentaoctica est baseada na ocorrncia de iluses dos sentidos que indicam a existncia de um hiatoentre nossa teoria fsica e a realidade empiricamente observvel, ou, em outros termos, entre osdados sensveis e os corpos (RR,1). No entanto, argumenta Stroud, baseada apenas nahiptese de iluses perceptivas a dvida ctica seria limitada, ela no implicaria que nadasabemos sobre o mundo que nos cerca. Segundo ele, a generalizao da dvida ctica decorre de

    uma posio mais radical. Ela decorre da possibilidade lgica de que tudo o que obtemosatravs dos sentidos seja compatvel com inmeras hipteses diferentes sobre o que seria o

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    caso para alm de nossos dados sensoriais, no havendo maneira de dizer quais das muitasdiferentes possibilidades realmente existe. Se esta a posio em que nos encontramos, ento,afirma Stroud, no seria nenhum exagero concluir que nada sabemos sobre o mundo que noscerca9.

    Tendo em vista a concluso de que ao se assumir um ponto de vista externo oceticismo prevalece, Stroud procura ver se ele poderia ser evitado a partir da negao desteponto de vista. Ele considera que a epistemologia naturalizada de Quine se baseia na negaode tal posio externa. desta perspectiva, ento, que a considera como podendo tambm serlida como uma estratgia contrria ao ceticismo. por este motivo que em seu livro TheSignificance of Philosophical Scepticism, reserva um captulo no qual discute a proposta de Quinede uma epistemologia naturalizada10. Stroud procura avaliar se o abandono do ponto de vistadestacado, proposto pela epistemologia naturalizada de Quine, constitui uma alternativacapaz de evitar o ceticismo. Em suma, o que Stroud procura saber se a abordagem cientfica

    de Quine representa uma resposta satisfatria para a questo acerca da relao entre os objetosfsicos exteriores e nosso conhecimento deles.

    Como j sublinhamos, para Quine a cincia e todo nosso conhecimento so fenmenosnaturais e, por isso, fenmenos a serem estudados da mesma forma e com os mesmosprocedimentos comuns s cincias naturais. A epistemologia nada mais seria do que o estudodo que o conhecimento e de como ele produzido. Ela no seria uma investigao a priori,como tradicionalmente foi considerada, mas deveria operar a partir dos recursos conceituais ecientficos j disponveis no interior da prpria cincia, de modo que o epistemlogo noestaria numa posio privilegiada, destacada, a partir da qual pudesse conduzir suasinvestigaes. Para ilustrar sua posio, Quine se vale da parbola do barco, ou do marinheiroque tinha que reparar seu barco enquanto navegava (EN,171) apresentada por Neurath ,interpretando-a como a sugesto de que o empreendimento filosfico e o cientfico esto nomesmo barco. Sua posio de que no existe clara distino entre o que prprio doempreendimento filosfico e do que prprio do empreendimento cientfico. Segundo Quine,compreendemos a cincia como uma instituio ou processo no mundo, e no pretendemosque essa compreenso seja melhor do que a cincia que seu objeto (EN, 171). Para ele, aepistemologia uma tentativa de aumentar nossa compreenso do mundo a partir de dentro,isto , sem pressupor um ponto de vista exterior, destacado, a partir do qual nossoconhecimento do mundo pudesse ser confrontado com o estado de coisas do mundo. Pelamesma razo que no h qualquer forma de saber a priori, Quine argumenta que oepistemlogo no tem como adotar um ponto de vista csmico exterior, a partir do qual todonosso conhecimento do mundo podesse ser visto globalmente. Sua concepo de filosofia comocontnua com a cincia apresentada, ento, como tendo o mrito de evitar as dificuldadesinerentes concepo da filosofia como uma atividade externa.

    Dois autores que parecem conceber a atividade filosfica como uma investigaobaseada numa posio externa so Kant e Carnap. Ambos, cada um sua maneira,

    9Cf. p. 232.10Cf. Stroud, B.The Significance of Philosophical Scepticism, p. 209-254.

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    desenvolveram doutrinas nas quais procuram de alguma forma evitar o ceticismo sobre omundo exterior. Ora, uma vez que Quine rejeita as abordagens kantiana e carnapiana dosproblemas filosficos, bem como a separao das questes que seriam do mbito da filosofia dasque seriam do mbito da cincia, insistindo no carter cientfico da questo sobre os objetos

    fsicos externos e nosso conhecimento deles, a questo que Stroud faz, e para a qual procurauma resposta, se Quine evita assim o ceticismo que Kant e Carnap argumentaram serinevitvel. O que Stroud procura saber se a epistemologia naturalizada ou cientfica pode serconsiderada uma resposta satisfatria para tal problema11.

    A primeira tentativa de Stroud fazer uma aproximao entre a concepoepistemolgica de Quine com a concepo tradicional, mostrando que a questo de ambas sosemelhantes. Ele procura indicar que a questo que Quine faz e para a qual procura umaresposta no diferente da questo tradicional.

    Como vimos, segundo Quine uma epistemologia naturalizada pode ser definida como

    uma investigao preocupada com a questo emprica de como, a partir de to poucos dadosacessveis a ns na experincia formamos uma complexa estrutura de crenas comuns ecientificas sobre o mundo. A questo, como ele a coloca no incio de The Roots of Reference :Como chegamos a nossa teoria acerca do mundo, dada apenas a evidncia dos sentidos(RR,1). Em outros termos, para ele o problema prprio da epistemologia fornecer umaexplicao de como o animal humano pode chegar a uma descrio do mundo tridimensionale sua histria (EN, 170), a partir da informao sensorial que poderia atingi-lo em suassuperfcies sensoriais (RR,2). Em outros termos, a questo seria entender a relao entreobservao e teoria cientfica.

    A nfase de Quine no carter emprico e cientfico do problema de nosso conhecimentodo mundo exterior nos induz a ver seu projeto como se no fosse o mesmo que inquietou ofilosfo tradicional. No entanto, um aspecto semelhante entre a concepo de Quine e aepistemologia tradicional seria, segundo Stroud, a distino entre tudo o que podemos obteratravs dos sentidos, por um lado, e o que verdadeiro ou no do mundo exterior, por outrolado. O estudo naturalista do conhecimento segundo Quine procederia a partir de umadistino entre o que obtemos atravs dos sentidos e tudo o que acreditamos sobre o mundofsico na base dos seus dados12. E esta distino, lembra Stroud, a mesma do problematradicional do mundo exterior. Assim, embora Quine rejeite o justificacionismo, e a prprianoo de verdade no sentido tradicional, sua proposta parece ainda estar inserida no quadro deuma investigao preocupada em responder uma questo semelhante quela que ocupou osfilsofos tradicionais. E, segundo Stroud, esta distino entre o que dado nas superfciessensoriais e o que verdadeiro ou no do mundo exterior, tem por conseqncia o ceticismo,sendo fatal tambm para o projeto de naturalizao da epistemologia proposto por Quine 13.

    Ao apontar esta semelhana, o que Stroud quer sugerir que o mesmo hiato entrenossos dados e nosso conhecimento do mundo exterior que suscita o problema tradicional,

    11Cf.

    p. 215.12Cf. p. 23413Cf.p. 248.

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    abrindo espao para o ceticismo, parece estar presente na concepo de Quine. A diferenaestaria apenas no detalhe de que para Quine o fato de que nossa teoria do mundo transcende osdados sensveis ele mesmo um resultado da cincia, parte daquela prpria teoria do mundo.Ou seja, o problema que uma epistemologia naturalizada deve responder, segundo Quine, seria

    lanado pela prpria cincia cujas origens ela tem em vista explicar. Dado o carter cientficodo estudo da relao entre nossos impactos sensoriais e a teoria sobre o mundo resultante destaentrada sensorial proposto pela epistemologia naturalizada, no apenas se consideraria que oproblema surge no interior da cincia, como sua soluo tambm deveria ser buscada nointerior da cincia.

    Stroud lembra que Quine no atribui posio ctica qualquer petio de principio.Quine no acusa o ctico de completa contradio ou auto-contradico, como fazem algunsfilsofos atravs do argumento baseado no significado da dvida ctica. A radicalizao doproblema da justificao das nossas crenas a partir das nossas experincias sensveis vista

    como uma questo inteiramente dotada de sentido. Para Quine, o problema de salvar um hiatoentre os dados sensveis e os corpos no um pseudo-problema. Ele diz que o problema real,ainda que mal contemplado (RR,1). Na sua viso, portanto, o ceticismo sobre o mundoexterior no seria incoerente. Quine o considera apenas uma concluso equivocada, e o criticacomo uma forma de extremismo.

    Quine considera que, pelo fato das dvidas cticas serem dvidas cientficas, oepistemlogo , evidentemente, livre para usar a cincia emprica para respond-las. Eleargumenta que foi atravs do surgimento da cincia que fomos primeiramente levados aquestionar os limites e possibilidades do conhecimento. Diz que o conceito de iluso elemesmo baseia-se na cincia, pois o carter ilusrio consistia simplesmente no desvio acerca darealidade cientfica externa (RR,3). Como a cincia tornou clara a falsidade de nossasprimeiras crenas e ou suscetibilidade iluso, a questo naturalmente surgiu como se ascrenas que obtemos, mesmo sob as melhores condies, so provavelmente verdadeiras.Diferentemente da questo ctica tradicional que pretendia colocar toda a suposta informaoem risco e, portanto, tornar qualquer parte do conhecimento indisponvel para objetivos deexplicao, a questo de Quine sobre nosso conhecimento deve e s pode ser respondidafazendo uso de toda informao cientfica que possumos ou podemos vir a descobrir nodecorrer de nossas investigaes.

    A questo lgica crucial que o epistemlogo se enfrenta com um desafio da cincia natural que surge nointerior da prpria cincia natural. O desafio ctico procede como segue: a prpria cincia ensina que noh viso intuitiva, que a nica informao que nossas superfcies sensoriais podem alcanar a partir dosobjetos exteriores tem que estar limitada a projees ticas bidimensionais, vrios impactos de ondas de arnos tmpanos, algumas reaes gasosas nas fossas nasais e outras coisas anlogas. Como, ento, continua odesafio, algum pode esperar descobrir o que o mundo exterior, partindo de to escassos indcios? Emsuma, se nossa cincia fosse verdadeira, como poderamos sab-lo? Est claro que ao se deparar com estedesafio o epistemlogo pode usar livremente toda teoria cientfica (RR,2).

    Em resumo, para Quine, a questo surgiu no interior da prpria cincia, e ns podemos

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    dispor dos recursos da cincia para respond-la. Argumenta que no h como se constatar asiluses perceptivas nas quais as dvidas cticas se baseiam seno assumindo uma posio nointerior da prpria cincia. Ao indagar, portanto, pela fundamentao das nossas crenas sobreos corpos, constatando as possveis iluses dos sentidos, o epistemlogo assumiria a mesma

    posio de um psiclogo emprico, que observa como as pessoas projetam suas teorias sobre oscorpos, com base em escassos inputs sensoriais. S com base em alguma forma de conhecimentocientfico da relao causal entre inputs e outputs em pessoas seria possvel formular o prprioproblema do mundo exterior. Deste modo, a radicalizao moderna do problema da

    justificao, ou seja, o desafio ctico acerca de uma prova do mundo exterior, seria uma questoque teria lugar no mbito da prpria cincia.

    Stroud, no entanto, tem dvidas sobre a confiana de podermos esperar responder aquesto filosfica tradicional sobre o mundo exterior simplesmente seguindo o exemplo mesmodos melhores procedimentos cientficos, conforme sugerido por Quine. Ele lembra que os

    cientistas, como os homens do senso comum, no levam em conta as hipteses que suscitam oproblema tradicional; hipteses como a de um gnio maligno levantada por Descartes naPrimeira Meditao,so negligenciadas. Segundo Stroud, Quine tambm, em sua explicao daorigem de nossa teoria sobre o mundo, no considera tais possibilidades levantadas pelashipteses cticas e muito menos como elimin-las. Ele no teria uma explicao que eliminassea hiptese de que nossos dados dos sentidos puderiam ser o produto de um sonho, de um gniomaligno, de um cientista louco ou de outra fonte incompatvel com a hiptese da existnciados objetos fsicos. Esta ausncia de um critrio seguro capaz de evitar tais hipteses que faz aepistemologia naturalizada sucumbir diante do desafio ctico. Assim, tal como no problematradicional, a justificada eliminao de possibilidades incompatveis com o conhecimento domundo parece no lograr xito nos moldes de uma epistemologia naturalizada. Pois, ditoresumidamente, o problema a respeito do mundo exterior persiste, uma vez que consiste napossibilidade lgica de que a experincia seja da maneira como , ou o mundo da maneiracomo nos aparece, mesmo que as coisas fsicas ou materiais no existissem efetivamente.

    Se o nico ponto que Quine est defendendo que dvidas cticas so dvidascientficas, Stroud argumenta que no se segue que o epistemlogo possa, evidentemente,fazer livre uso de toda teoria cientfica. O fato de Quine afirmar que o ctico poderia estarargumentando por reductio ad absurdum a razo que leva Stroud a negar tal expedienteproposto por Quine. Para Stroud, a alegao de Quine de que as dvidas cticas so dvidascientificas no coloca o epistemlogo que as levanta na confortvel posio de sentir-se livrepara usar o conhecimento cientfico do mundo em seu esforo para respond-las e explicarcomo o conhecimento possvel.14

    O argumento baseado na reduo ao absurdo consistiria em dizer que a cincia verdadeira e nos fornece algum conhecimento acerca do mundo ou que no nos fornecequalquer conhecimento. Se ela no verdadeira, nada do que acreditamos sobre o mundo fsicoconstitui conhecimento. Mas se ela nos d conhecimento, podemos constatar, a partir do que

    14Cf. p. 229

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    ela nos diz sobre os escassos impactos em nossas superfcies sensoriais durante a percepo, quenunca podemos dizer se o mundo exterior realmente da maneira como o percebemos. Mas, seisto assim, nada do que acreditamos sobre o mundo fsico consiste em conhecimento. Emtodas as possibilidades nada conhecemos sobre o mundo fsico. 15

    Stroud considera, ento, que a concesso de Quine de que o ctico pode serinterpretado como algum que argumenta por reductio ad absurdum,leva a entender a prpriaquesto de Quine como idntica do filosofo tradicional 16.

    A fim de mostrar que a concepo de Quine abre espao para o ceticismo, Stroudindica quais so as condies que devem ser satisfeitas a fim de que possamos explicar comsucesso o conhecimento de algum, o que significaria dizer, como o conhecimento possvel.Em primeiro lugar, a fim de podermos explicar o conhecimento de algum preciso queconheamos tanto as suas opinies, como as suas experincias 17. Podemos dizer de umdeterminado sujeito que ele conhece algo apenas na medida em que ele opina ou julga que uma

    ou mais proposies so verdadeiras. Em segundo lugar, preciso fazer uma avaliao dasexperincias do sujeito em questo, a fim de sabermos quais devem ser consideradas comorazes adequadas para a crena na verdade de tais opinies. Para atribuirmos conhecimento aosujeito, a proposio expressa por ele deve ser considerada verdadeira. No poderemos dizer queum determinado sujeito conhece algo se os seus juzos a respeito resultarem falsos. No basta,no entanto, que um sujeito possua uma opinio verdadeira para que possamos atribuir-lheconhecimento. Pois possvel que o referido sujeito possua opinies verdadeiras, mas em basespuramente casuais.

    Stroud lembra que a verdade referente quilo que a pessoa acredita deve desempenharum papel essencial para podermos explicar com sucesso seu conhecimento. No entanto, elatambm no suficiente. Embora possamos explicar como e por que uma determinada pessoachega a acreditar no que acredita, ainda falta explicar se ela sabe algo ou possui uma crenaverdadeira. possvel que algum possua uma crena verdadeira mas ainda no possuaconhecimento. Pois o fato dela possuir uma crena verdadeira poderia ser atribudo a umacoincidncia, um feliz acidente, enfim, a circunstncias aleatrias ou casuais. No poderamos,ento, dizer de uma pessoa que tivesse uma crena, embora verdadeira, que ela possuiconhecimento. De modo que nenhuma explicao de sua crena poderia ser considerada umaexplicao de seu conhecimento.

    No mbito de uma investigao naturalizada do conhecimento proposta por Quine,Stroud argumenta que somente possvel explicar de maneira correta o conhecimento dealgum se soubermos que o mundo que o cerca da maneira como ele diz que , e que o fatodele ser daquela maneira o que o leva a dizer ou acreditar que ele daquela maneira. Somenteento estaramos fazendo algo a mais do que meramente explicando a origem de uma crenaque sucede ser verdadeira18.

    15Cf.p. 228.16Cf. p. 22917Cf.p. 235-618Cf. p. 238.

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    Em terceiro lugar, ento, para explicar o conhecimento de algum, preciso saber, combase nas prprias experincias e enquanto observadores do sujeito em questo, se tais crenasso ou no so verdadeiras e, para isso, preciso compar-las com a realidade com base nasnossas prprias experincias. S dizemos que ele sabe ou conhece algo com base em sua crena,

    na medida em que ele capaz de fundament-la, fornecendo boas evidncias ou razesadequadas para sua crena na verdade da proposio em questo.

    Para Stroud, devemos ser capazes de estabelecer alguma conexo entre a verdade dascrenas do sujeitos com o que eles acreditam. Saber apenas o que eles acreditam, ou mesmo queo que eles acreditam verdadeiro, no suficiente. Isso porque algumas vezes poderamos noser capazes de dizer se as crenas nas quais estamos interessados so verdadeiras ou no.Poderamos ser capazes de observar algum e determinar quais so suas crenas, mas poralguma razo poderamos ser incapazes de obter qualquer informao sobre os estados de coisasem que ele acredita.

    O que Stroud quer sugerir que em determinadas situaes no poderamos estabelecerse um determinado sujeito conhece alguma coisa ou no sobre o mundo que ele estdescrevendo. Poderamos ter conhecimento de quais so suas crenas, e talvez dos impactos emsuas superfcies que o levam a manter tais crenas, mas se no tivssemos acesso parte domundo sobre a qual suas crenas dizem respeito, simplesmente no saberamos dizer se elasconstituem conhecimento ou no. No poderamos comparar o que ele diz, com o mundosobre o qual ele fala, como numa posio observacional normal no obstruda. Assim, nopoderamos explicar a relao ou falta de relao entre suas crenas e o estado de coisas sobre asquais elas dizem respeito19. Esta seria uma dificuldade que permaneceria mesmo para uma visointerna acerca do conhecimento, como a proposta por Quine.

    Segundo Stroud, nada haveria de errado em se empreender um estudo como o propostopela epistemologia naturalizada de Quine. Nada existe de problemtico neste tipo deinvestigao20. Ele reconhece que o tipo de investigao sugerido por Quine perfeitamentelegtimo em si mesmo. No entanto, argumenta que ele deixa o desafio ctico completamenteintocvel. Em outros termos, que se a epistemologia de Quine for vista como uma estratgiacontrria ao ceticismo, ela no atinge o alvo. Para Stroud, no poderamos esperar de umainvestigao interna, embora vivel, uma resposta para a questo tradicional. Pois, qualquerquesto emprica que a cincia possa responder no seria a questo do filsofo tradicional.

    Assim, se a epistemologia naturalizada for encarada como uma tentativa de responder questo filosfica que lanou tantas dificuldades ao epistemlogo tradicional, Stroud sustentaque esta no pode vangloriar-se de estar em melhor posio do que a afirmao do sensocomum de Moore. Para ele, ela seria apenas uma verso cientfica ou anloga aqueladefendida por Moore 21.

    19Cf.p. 239-4020Cf. p. 235.21A Defesa ou Prova do mundo exterior de Moore consistiu na alegao de que ele, como muitas outras pessoas, tinham

    certeza acerca de vrias proposies em relao s quais alguns filsofos mantinham dvidas. Resumidamente, a defesa deMoore foi uma afirmao do senso comum. Ele acreditou ser suficiente, para provar que as coisas externas existem, levantaruma mo e mostrar que pelo menos um objeto externo existe.

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    Se reconhecermos que a questo filosfica no e no pode ser respondida diretamente maneira simplesde Moore (como penso que devemos), deveramos tambm achar que ela no pode ser respondida porasseres aparentemente mais cientficas com o mesmo efeito. A verso cientfica no mais verdadeira ouem alto grau mais confirmada ou mais claramente baseada na experincia do que, digamos, aquela deMoore: ela apenas mais complicada22.

    Segundo Stroud, podemos acabar nos convencendo de que a questo proposta pelaepistemologia de Quine a nica questo importante que nos afronta. Mas, argumenta, sealgum pretende nos persuadir que a questo ctica no faz sentido, deve primeiro procurarmostrar que existe algo radicalmente imperfeito ou mal concebido sobre o desafio ctico emrelao quilo que Carnap chamou de questo exterior, que levantaria uma questo genuna.Para Carnap, importante lembrar, a questo relativa a existncia do mundo exterior seriafilosfica e significativa porque nenhuma evidncia poderia ajudar a resolv-la.

    Embora Quine rejeite uma posio externa destacada para o acesso do conhecimento,segundo Stroud ela no garantiria, em si mesma, que o ceticismo epistemolgico seriacompletamente eliminado. Para ele, um desafio ctico a partir de dentro seria ainda possvel,e o conhecimento assim rejeitado no poderia ser invocado para enfrentar o desafio 22.

    Segundo Stroud, no seria possvel considerar todas as nossas crenas sobre o mundofsico, como o faz Quine, como uma construo ou projeo de estmulos e ao mesmo tempoexplicar o nosso conhecimento do mundo exterior. Ele argumenta que no podemos explicarcomo nosso conhecimento possvel se considerarmos todas as nossas crenas sobre o mundoexterior como postulados ou projees que ultrapassam nossos escassos dados sensoriais talcomo prope o construtivismo de Quine. Pois, somente seria possvel entender o conhecimentohumano como uma projeo a partir de escassos dados sensoriais na medida em que no seconsiderasse todo conhecimento humano daquela maneira. O argumento de Stroud que nopoderamos verificar nossas crenas sobre o mundo fsico, contrastando-as com os fatos domundo, se ao mesmo tempo considerssemos todas as nossas crenas sobre o mundo fsicocomo nada mais que uma construo ou projeo de estmulos da maneira como Quineentende.

    A anlise de Stroud o leva a concluir que o naturalismo no tem nenhuma vantagem

    em relao ao fundacionalismo tradicional, no sendo mais bem sucedido que ofundacionalismo ao enfrentar o ceticismo.

    Referncias

    QUINE, W. V. O .(1973)The Roots of Reference, La Salle, III. Open Court._______ (1975) Epistemologia naturalizada. In. Col. Os Pensadores. So Paulo: Abril

    Cultural, pp. 163-175._______ (1975) Dois Dogmas do Empirismo. In. Col. Os Pensadores. So Paulo: Abril

    Cultural, pp. 237-254.

    22Stroud, p. 230.

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