consumo e produção das infâncias contemporâneas, congresso internacional de educação, 2011

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VII Congresso Internacional de Educação São Leopoldo, 22 a 24 de agosto de 2011 PPGEDU/UNISINOS Consumo e produção das infâncias contemporâneas: tensionamentos e problematizações sobre a formação docente Joice Araújo Esperança Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental (PPGEA) Universidade Federal do Rio Grande (FURG) [email protected] Consumo e produção das infâncias Os Estudos Culturais em suas articulações com o gênero de teorização pós- estruturalista 1 , têm consolidado possibilidades de análise que tematizam a infância como uma construção histórica, social e culturalmente variável. Dessa perspectiva, os significados atribuídos à infância não são fixos nem universais, são forjados por processos sociais e discursivos (BUCKINGHAM, 2007) e seu caráter heterogêneo resulta de processos de disputa e negociação no contexto de relações de poder 2 . Nas palavras de Buckingham, “a criança” não é uma categoria natural ou universal, determinada simplesmente pela biologia. Nem é algo que tenha um sentido fixo, em cujo nome se possa tranquilamente fazer reivindicações. Ao contrário, a infância é variável – histórica, cultural e socialmente variável. As crianças são vistas – e vêem a si mesmas – de formas muito diversas em diferentes períodos históricos, em diferentes culturas e em diferentes grupos sociais (2007, p.19). Dentre as formas de significar a infância na contemporaneidade estão aquelas que estabelecem vínculos entre as experiências infantis e o consumo, enquanto um organizador da vida social. Nas sociedades de consumo as crianças são interpeladas, posicionadas e produzidas como consumidoras desde a mais tenra idade e seu engajamento em práticas de consumo acontece a despeito das diferenças culturais e 1 O termo Estudos Culturais, de acordo com Nelson, Treichler e Grossberg (1995), está associado ao estudo da cultura, entendida tanto como uma forma global de vida, compreendendo idéias, atitudes, linguagens, práticas, instituições e estruturas de poder, quanto toda uma gama de práticas culturais: formas, textos, cânones, arquitetura, mercadorias produzidas em massa e assim por diante. Conforme Silva (2007, p.134), “Numa definição sintética, poder-se-ia dizer que os Estudos Culturais estão preocupados com questões que se situam na conexão entre cultura, significação, identidade e poder”. Em suas articulações com o gênero de teorização pós-estruturalista, os Estudos Culturais conferem centralidade à linguagem como constituidora de práticas e identidades sociais (POPKEWITZ, 2008). 2 Entendemos o poder como uma rede que se dissemina por todo o corpo social, em cujas “malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão” (FOUCAULT, 1999, p. 183).

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VII Congresso Internacional de Educação São Leopoldo, 22 a 24 de agosto de 2011 PPGEDU/UNISINOS

Consumo e produção das infâncias contemporâneas: tensionamentos e problematizações sobre a formação docente

Joice Araújo Esperança

Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental (PPGEA) Universidade Federal do Rio Grande (FURG)

[email protected]

Consumo e produção das infâncias

Os Estudos Culturais em suas articulações com o gênero de teorização pós-

estruturalista1, têm consolidado possibilidades de análise que tematizam a infância

como uma construção histórica, social e culturalmente variável. Dessa perspectiva, os

significados atribuídos à infância não são fixos nem universais, são forjados por

processos sociais e discursivos (BUCKINGHAM, 2007) e seu caráter heterogêneo

resulta de processos de disputa e negociação no contexto de relações de poder2. Nas

palavras de Buckingham,

“a criança” não é uma categoria natural ou universal, determinada simplesmente pela biologia. Nem é algo que tenha um sentido fixo, em cujo nome se possa tranquilamente fazer reivindicações. Ao contrário, a infância é variável – histórica, cultural e socialmente variável. As crianças são vistas – e vêem a si mesmas – de formas muito diversas em diferentes períodos históricos, em diferentes culturas e em diferentes grupos sociais (2007, p.19).

Dentre as formas de significar a infância na contemporaneidade estão aquelas

que estabelecem vínculos entre as experiências infantis e o consumo, enquanto um

organizador da vida social. Nas sociedades de consumo as crianças são interpeladas,

posicionadas e produzidas como consumidoras desde a mais tenra idade e seu

engajamento em práticas de consumo acontece a despeito das diferenças culturais e

1 O termo Estudos Culturais, de acordo com Nelson, Treichler e Grossberg (1995), está associado ao estudo da cultura, entendida tanto como uma forma global de vida, compreendendo idéias, atitudes, linguagens, práticas, instituições e estruturas de poder, quanto toda uma gama de práticas culturais: formas, textos, cânones, arquitetura, mercadorias produzidas em massa e assim por diante. Conforme Silva (2007, p.134), “Numa definição sintética, poder-se-ia dizer que os Estudos Culturais estão preocupados com questões que se situam na conexão entre cultura, significação, identidade e poder”. Em suas articulações com o gênero de teorização pós-estruturalista, os Estudos Culturais conferem centralidade à linguagem como constituidora de práticas e identidades sociais (POPKEWITZ, 2008). 2 Entendemos o poder como uma rede que se dissemina por todo o corpo social, em cujas “malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão” (FOUCAULT, 1999, p. 183).

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sociais implicadas na fabricação de múltiplas infâncias, como os pertencimentos de

gênero e classe.

Para Bauman (2008), a sociedade atual, ou sociedade de consumidores,

interpela seus membros, dirige-se a eles, os saúda e apela a eles, basicamente, na

condição de consumidores. Trata-se de um tipo de sociedade que “promove, encoraja

ou reforça a escolha de um estilo de vida e uma estratégia existencial consumistas, e

rejeita todas as opções culturais alternativas” (p.71). Para o referido sociólogo, a

passagem da sociedade de produtores a de consumidores3 afetou os mais variados

domínios das relações sociais, remodelando-as à semelhança do mercado e fazendo

do consumo o traço ou marcador comum da vida contemporânea. A sociedade de

consumidores vê e trata o consumo como vocação (BAUMAN, 2008), produzindo a

todos, inclusive às crianças, como consumidores.

Provocada pelas instigantes possibilidades investigativas relacionadas à

produção das infâncias na contemporaneidade, neste artigo apresento reflexões que

se articulam a uma pesquisa4 vinculada ao Programa de Pós-Graduação em

Educação Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. No estudo que

venho desenvolvendo busco problematizar os efeitos da cultura de consumo na

constituição dos modos de ser criança, elegendo a escola como espaço social de

composição das culturas infantis.

Trajetória investigativa

A principal orientação metodológica da investigação centra-se na escuta das

próprias crianças sobre a temática consumo e na observação de suas interações in

loco, no contexto de uma escola da rede pública do município do Rio Grande. Até o

momento, participaram da pesquisa quatro turmas de crianças que cursam o 3º e o 4º

anos do Ensino Fundamental.

3 Para Bauman (1999) nossa sociedade é uma sociedade de consumo enquanto a sociedade de nossos predecessores, a sociedade moderna nas suas camadas fundadoras, na sua fase industrial, era uma sociedade de produtores. “Aquela velha sociedade moderna engajava seus membros primordialmente como produtores e soldados; a maneira como moldava seus membros, a ‘norma’ que colocava diante de seus olhos e os instava a observar, era ditada pelo dever de desempenhar esses dois papéis. [...] Mas no seu atual estágio, [...] a sociedade moderna tem pouca necessidade de mão-de-obra industrial em massa e de exércitos recrutados; em vez disso, precisa engajar seus membros pela condição de consumidores (p.87-88). 4 Trata-se da pesquisa de Doutorado intitulada “Ser criança na sociedade de consumidores: artefatos, pedagogias e o consumo de si” realizada sob a orientação da Profa. Dra. Paula Regina da Costa Ribeiro.

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Para ouvi-las, foram construídas estratégias como a produção de um vídeo e

de auto-retratos, a proposição de entrevistas-conversa5, de diálogos acerca de

histórias infantis, questionários e desenhos legendados. Na sequência, buscou-se

realizar a análise do material empírico com a identificação de temáticas emergentes

das relações estabelecidas entre as falas das crianças e os significados suscitados

pelo estudo do referencial teórico.

A opção por realizar a pesquisa com foco nas vozes e pontos de vista das

crianças, fez-se por alguns motivos que importa explicitar. Em primeiro lugar, essa

opção funda-se no desejo de problematizar, conceituar e propor perspectivas teóricas

para pensar as infâncias a partir das crianças, tensionando as condições de

silenciamento a que as culturas infantis encontram-se submetidas nos espaços

escolares e nas interações com as culturas adultas. Essa escolha pauta-se ainda na

convicção acerca do “importante papel que a produção científica pode e deve

desempenhar no complexo processo de transformação da ideia de infância de

determinada sociedade” (CRUZ, 2008, p.12).

Ademais, como sinaliza Alderson (2003), tal como aconteceu com as mulheres,

as perspectivas das crianças estiveram esquecidas da história ou totalmente ausentes

durante muito tempo e as pesquisas que contam com a sua participação abrem

possibilidades de problematização acerca da perspectiva adultocêntrica, isto é,

centrada no ponto de vista do adulto, que orienta em grande medida os quadros

interpretativos das pesquisas realizadas sobre as crianças.

Dentre as possibilidades de análise construídas na trajetória da pesquisa,

destaca-se a centralidade das pedagogias culturais na produção das infâncias. Tais

análises ensejam reflexões acerca dos significados atribuídos à infância na

contemporaneidade e sua correlação com o campo da formação docente.

A produção das infâncias contemporâneas nas tramas das pedagogias culturais

Nas atuais sociedades de consumo, a mídia ocupa um espaço privilegiado

como pletora de significados no engendramento de desejos de consumo e na

produção das identidades. De acordo com Kellner (2001), vivemos sob a insígnia de

uma cultura da mídia, cujas imagens, sons e espetáculos colaboram para urdir o

5 A entrevista-conversa, de acordo com Saramago (2001), é orientada por grandes blocos temáticos intercomunicáveis relacionados às questões a serem investigadas e que permitem a convergência entre si. Trata-se de um momento de interação por excelência entre pesquisadores/as e crianças.

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tecido da vida cotidiana, modelando comportamentos sociais e fornecendo o material

com que as pessoas forjam suas identidades. Constituída por uma variedade de

sistemas simbólicos – rádio, imprensa, filmes e seus modos de distribuição – a cultura

da mídia tem como cerne a televisão e as narrativas que veicula fornecem símbolos

que compõem uma cultura comum para a maioria dos indivíduos na atualidade.

Por meio de diversos apelos, a mídia convoca as crianças reiteradamente ao

investimento na compra e aquisição de mercadorias, promovendo a autopropulsão

dos desejos (BAUMAN, 2001), já que na sociedade de consumidores os desejos

devem sempre ser renovados, a fim de perpetuar a lógica consumista marcada pelo

descarte e substituição permanente de mercadorias.

Sob tais condições os objetos passam a outorgar sentido aos sujeitos,

operando como ornamentos simbólicos das identidades (BAUMAN, 2001). Conforme

apontam as observações realizadas no contexto da pesquisa, à aquisição de roupas,

acessórios e tecnologias, tais como celulares, computadores e câmeras fotográficas,

articulam-se sentidos que produzem corpos, condutas e identidades, possibilitando às

crianças a adoção de certo estilo que se compõe a partir de modos particulares de

vestir-se, dispor-se e alcançar notoriedade, tornando-se visíveis e desejáveis.

Conforme ressalta Bauman (2008), adquirir novas mercadorias, obter novas versões

de roupas, reconstruir estilos e substituir as versões defasadas é condição para os

sujeitos estarem e permanecerem em demanda no contexto da sociedade de

consumidores.

A centralidade que a mídia ocupa como instância educativa em nosso tempo

pode ser percebida nas narrativas das crianças produzidas no contexto da pesquisa.

As crianças expressaram o desejo de ser ou de se parecer com modelos,

atores/atrizes, cantores/as e jogadores de futebol em evidência nos espaços da mídia.

O desejo de ser famoso/a e reconhecido/a por todos pode ser percebido de forma

recorrente nas narrativas das crianças: “Eu queria ser o Cristiano Ronaldo [jogador de

futebol] para ser famoso”; “Eu gostaria de ser a Isabela da Saga Crepúsculo, porque

acho ela bonita”; “Eu queria ser a Demi Lovato porque ela é bonita, eu queria ser alta

de cabelos pretos, ter 16 anos e ser cantora”; “Eu gostaria de ser modelo porque elas

são bonitas, magras, eu também gosto das roupas”; “Eu gostaria de ter olhos azuis,

um lindo sorriso e ser famoso. Eu quero ser jogador de futebol, mas eu gosto de ser

ator.”

No contexto destas análises acentuam-se as contribuições dos Estudos

Culturais que, ao explicitarem as implicações entre os processos de significação, seus

vínculos com relações de poder e a construção de identidades e subjetividades,

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ampliam nossa compreensão do pedagógico e de seu papel para além dos limites da

escola como o local tradicional de aprendizagem (GIROUX, 1995).

Como refere Kellner (2001), nas sociedades atuais os meios de informação e

entretenimento constituem uma fonte profunda de pedagogia cultural6 que ensina às

crianças como se comportar e o que pensar e sentir, em que acreditar, o que temer e

desejar e o que não. Nas palavras de Giroux,

Um exame da cultura infantil desestabiliza a noção de que as batalhas em relação ao conhecimento, aos valores, ao poder e em relação ao que significa ser um cidadão estão localizadas exclusivamente nas escolas ou nos locais privilegiados da alta cultura; além disso, esse exame fornece um referente teórico para “lembrar” que as identidades individuais e coletivas das crianças e dos/as jovens são amplamente moldadas, política e pedagogicamente, na cultura visual popular dos videogames, da televisão, do cinema e até mesmo em locais de lazer como shopping centers e parques de diversão (GIROUX, 1995, p.50).

O material empírico produzido no contexto da pesquisa permite ainda atentar

para a construção das identidades de gênero7 e seus vínculos com as práticas de

consumo. Como construções históricas e contingentes, as identidades de gênero

também são forjadas a partir do consumo, enquanto condição existencial que modela

os modos de ser sujeito na sociedade contemporânea.

Atentando para as narrativas das crianças produzidas no contexto desta

pesquisa, podemos perceber os atravessamentos da cultura da mídia e do consumo

na produção dos modos de ser menina. Pelas suas narrativas, observamos a

referência a práticas de consumo e suas implicações na construção de uma

determinada aparência, socialmente desejável. Desse modo, as meninas são

interpeladas a consumir determinadas mercadorias, a modelarem seus corpos e

condutas para estarem “na moda”, o que significa vestir-se de certa forma, possuir e

exibir objetos que produzem sentidos de pertencimento e diferenciação, fabricando

modos de ser menina segundo os preceitos da cultura de consumo. É o que sugerem

as seguintes narrativas: “Eu gostaria de ser bonita, magra. Não é só beleza que tem

6 Steinberg e Kincheloe destacam que a expressão “pedagogia cultural” enquadra a educação numa diversidade de áreas sociais, que não se limitam à escolar. “Áreas pedagógicas são aqueles lugares em que o poder é organizado e difundido, incluindo-se bibliotecas, TV, cinemas, jornais, revistas, brinquedos, propagandas, videogames, livros, esportes etc.” (2001, p. 14). 7 Entendo que a produção das identidades de gênero, isto é, dos modos como socialmente se vive a masculinidade e a feminilidade (LOURO, 2005), dá-se no contexto de múltiplas práticas e instâncias sociais, que produzem e reproduzem significados e diferenças para cada um dos sexos. Embora sejam construções históricas e culturais, essas diferenças passam a ser percebidas de forma essencializada e naturalizada, reforçando padrões estáveis e dicotômicos.

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que ter, mas tem que ser bonita”; “Pra ser uma guria elegante tem que andar bem

arrumada, ser chique, bonita, cuidar do teu cabelo, das tuas unhas”; “A moda é o que

as gurias usam, elas têm que usar, por isso é que a moda existe em qualquer lugar. A

moda faz as gurias comprar várias roupas e calçados do mesmo estilo, por isso então

que elas usam a mesma sandália. As gurias gostam de usar as roupas e calçados que

a moda faz, tipo essa sandália da Barbie que vem com a bolsinha”; “O que leva as

gurias a comprarem as mesmas coisas [sandálias] é por dois motivos, o primeiro é

que as amigas delas têm e segundo é que tem uma bolsinha”; “Eu uso óculos assim

porque todo mundo usa, todo mundo usa porque é moda”; “Eu gosto de ser charmosa,

ser charmosa é usar roupa bonita, saber se arrumar, usar perfume, cuidar do corpo,

da pele, das unhas, se arrumar, se pintar”; queria ser bonita, que é se vestir bem, se

cuidar”.

As observações das interações das crianças, realizadas durante a pesquisa,

assinalam a importância atribuída à posse de materiais escolares “de marca”,

sobretudo entre as meninas, e aos objetos de consumo, tais como óculos, tênis e

celulares, e seu papel na composição de agrupamentos: “Meu material escolar é da

Faber-Castel e a minha mochila e o meu estojo é da Barbie e as três mosqueteiras”;

“Eu escolho os cadernos pelos personagens e também tem que ser de marca, se a

minha mãe me desse um caderno que não tem marca eu não ia usar”; “Eu uso óculos

assim porque todo mundo usa. Todo mundo usa porque é moda”.

Como sinaliza Bauman (2008), na sociedade de consumidores, os vínculos

humanos tendem a ser conduzidos e mediados pelos mercados de bens de consumo

e a posse de mercadorias constitui-se como uma marca identitária indispensável para

as crianças, a ponto de estabelecer condições para serem aceitas no grupo escolar,

terem companhia para brincar, direcionarem a atenção dos/as colegas, decidirem e

imporem regras nas brincadeiras e interações entre pares durante os intervalos das

aulas e no recreio. Essa constatação está associada à característica que Bauman

(2008) identifica como a mais proeminente da sociedade de consumidores: a

transformação das pessoas em mercadorias e a reconstrução das relações entre os

sujeitos a partir do padrão e à semelhança das relações entre consumidores e objetos

de consumo.

Observou-se ainda a constituição de redes de comercialização no espaço da

sala de aula, a partir do empréstimo de materiais escolares e objetos lúdicos diversos

mediante trocas financeiras e a venda de mercadorias, dentre as quais se destacam

adesivos, adereços para o cabelo, pulseiras, chaveiros e fotografias de celebridades

adolescentes, como o cantor Justin Bieber. Tais práticas de comercialização

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mobilizam uma rede de significações compartilhadas, implicadas em práticas de

consumo material e simbólico que produzem a infância consumidora.

As análises tecidas neste texto, sobre a cultura do consumo e a constituição de

modos de ser criança, explicitam a centralidade das Pedagogias Culturais que operam

nos espaços da mídia na produção das infâncias contemporâneas. Tais pedagogias

produzem significados que ensinam às crianças modos de ser e viver que assumem

sentido no contexto da cultura consumista, em que os sujeitos são eles próprios

produtos de “comodificação” (BAUMAN, 2008).

Repensando a formação docente

Conforme destaca Buckingham (2007), as certezas sobre o significado da

infância têm sido constantemente corroídas e abaladas. As crianças constituem o

epicentro da cultura de consumo (SCHOR, 2009) e as mídias eletrônicas

desempenham um papel cada vez mais central na definição das experiências infantis.

Se historicamente os significados atribuídos à infância estiveram associados à

falta e ao não-saber8, a cena atual é marcada por um processo de reconfiguração das

relações de poder intergeracionais, que desestabilizam nossas certezas em relação às

crianças, seus modos de ser e aprender, explicitando a atual fragilidade dos saberes e

poderes investidos no controle e governamento9 dos sujeitos infantis.

A renegociação do sentido do tempo experimentada pelos membros da

sociedade de consumidores, um tempo marcado por rupturas e descontinuidades e

constituído de instantes sucessivos, um tempo em que os sujeitos são instados a

praticar o desapego por saberes duradouros, faz com que a experiência adulta

conseguida com a passagem do tempo biológico pareça cada vez menos importante

para abordar os desafios do presente, pois, num mundo com um presente fugaz e

mutável, que parece estar lançado constantemente para o futuro, são os adultos e

os/as professores/as que começam a aprender com os mais jovens (SACRISTÁN,

2005).

No rastro dessas mudanças, os/as profissionais da educação encontram-se

diante da emergência de infâncias desconcertantes, expostas à proliferação de

informações, interpelações ao consumo e espaços de aprendizagem plurifacetados.

8Conforme destaca Narodowski (1999), ser aluno na instituição escolar moderna significa basicamente ocupar um lugar heterônomo de não-saber em contraposição a figura docente, um adulto autônomo que sabe. 9 Na perspectiva foucaultiana, governar não se restringe à gestão do Estado, mas relaciona-se ao exercício de poder que estrutura o eventual campo de ação dos outros (FOUCAULT, 1995).

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As experiências culturais das crianças desafiam os/as docentes a considerarem

formas de alfabetismo e aprendizagem que vão além do impresso e põem em relevo a

importância cultural da imagem, como um novo princípio organizacional para as

relações sociais e as subjetividades (GREEN e BIGUM, 1995). E enquanto “a

educação institucionalizada e o currículo continuam a refletir, anacronicamente, os

critérios e os parâmetros de um mundo social que não mais existe” (SILVA, 1995), as

lan houses informatizadas, os programas de TV e os sites de relacionamento propõem

as crianças e aos jovens alternativas bem mais sintonizadas com as rápidas

mudanças por elas vivenciadas.

Como sugerem as análises apresentadas neste texto, sobre os efeitos da

cultura de consumo na produção dos modos de ser criança, essas drásticas

mudanças repercutem em múltiplos aspectos e em diferentes dimensões do cotidiano

escolar, ensejando reflexões sobre o trabalho e a formação docente. Dilemas,

conflitos e tensionamentos são experimentados pelos/as professores/as; novas

relações e rotinas são engendradas na escola em resposta as formas de resistência

das crianças, que se traduzem em desinteresse, questionamentos e contestação das

propostas de ensino e da cultura escolar. Os grupos de pares criam espaços de

resistência movidos pelo intento de burlar as regras e determinações dos/as

professores/as em relação às práticas culturais que compartilham fora da escola,

como o uso de celulares. São efeitos que alteram, modificam, perturbam a suposta

ordem da instituição escolar, desestabilizam a disciplina e os modos de regulação, os

arranjos espaciais, a linearidade temporal, as certezas sobre o significado e os

objetivos da escolarização nas vidas das crianças.

Essas análises sugerem que a crença em perspectivas essencialistas e

monolíticas acerca de como as crianças são ou devem ser parece constituir um dos

mais agudos entraves ao trabalho e à formação docente na contemporaneidade.

Como destaca Costa (2003), as representações de infância que têm regulado nossas

ações como profissionais da educação são aquelas descritas pelos manuais didáticos

e psicopedagógicos e não dão conta da complexidade dos processos de subjetivação

e constituição de identidades no mundo atual. Ignorar os efeitos do processo de

comercialização da infância e a repercussão das mídias eletrônicas na construção dos

modos de ser e viver das crianças apenas reforça o sentimento de impotência diante

das intrincadas e ambivalentes condições culturais de nosso tempo.

Referências

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