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Adonai Sant'Anna Matemática e Sociedade sábado, 1 de setembro de 2012 Consultoria Matemática para Casamentos: Compatibilizando Paixão e Razão De acordo com a crença popular uma boa decisão é aquela que tem um bom resultado. Tanto é verdade que já vi muita gente ingênua justificando a prática da homeopatia com a alegação de que funciona. No entanto, de acordo com a Teoria das Decisões, a melhor decisão é aquela que se sustenta em bases racionais. A Teoria das Decisões se refere a decisões de risco, aquelas que envolvem probabilidades. Devo aceitar a proposta A ou a proposta B? E, neste contexto, vale a regra do valor esperado. Esta estabelece que a melhor decisão é aquela que tem o maior valor esperado. O valor esperado de um ato é a soma dos produtos entre utilidades e respectivas probabilidades. Um exemplo simples, envolvendo loteria, é dado por Ian Hacking, em seu excelente livro An Introduction to Probability and Inductive Logic (Cambridge University Press, 2001). Digamos que sua tia ofereça como presente de aniversário um bilhete de loteria, com a condição de que você possa recusá-lo. A decisão a ser tomada é se o bilhete de loteria deve ser aceito ou não. Suponha que a loteria tenha cem bilhetes, com um prêmio de $90 para aquele que for sorteado completamente ao acaso. Caso você aceite o presente, há duas possíveis consequências: Consequência 1: O bilhete é sorteado. Isso corresponde a uma utilidade de $90, cuja probabilidade de ocorrência é de 0,01 (um por cento). Início

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Aplicações à matemática.

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Adonai Sant'Anna

Matemática e Sociedade

sábado, 1 de setembro de 2012Consultoria Matemática para Casamentos:Compatibilizando Paixão e Razão

De acordo com a crença popular uma boa decisão é aquela que tem um bomresultado. Tanto é verdade que já vi muita gente ingênua justificando a prática dahomeopatia com a alegação de que funciona. No entanto, de acordo com a Teoria dasDecisões, a melhor decisão é aquela que se sustenta em bases racionais.

A Teoria das Decisões se refere a decisões de risco, aquelas que envolvemprobabilidades. Devo aceitar a proposta A ou a proposta B? E, neste contexto, vale aregra do valor esperado. Esta estabelece que a melhor decisão é aquela que tem omaior valor esperado. O valor esperado de um ato é a soma dos produtos entreutilidades e respectivas probabilidades. Um exemplo simples, envolvendo loteria, édado por Ian Hacking, em seu excelente livro An Introduction to Probability andInductive Logic (Cambridge University Press, 2001).

Digamos que sua tia ofereça como presente de aniversário um bilhete de loteria, com acondição de que você possa recusá-lo. A decisão a ser tomada é se o bilhete de loteriadeve ser aceito ou não. Suponha que a loteria tenha cem bilhetes, com um prêmio de$90 para aquele que for sorteado completamente ao acaso. Caso você aceite opresente, há duas possíveis consequências:

Consequência 1: O bilhete é sorteado. Isso corresponde a uma utilidade de $90, cujaprobabilidade de ocorrência é de 0,01 (um por cento).

Início

Consequência 2: O bilhete não é sorteado. Isso corresponde a uma utilidade de $0,cuja probabilidade de ocorrência é 0,99 (noventa e nove por cento).

Portanto, o valor esperado do ato de aceitar o bilhete é

0,01 x $90 + 0,99 x 0 = $0,90 (noventa centavos).

Porém, o valor esperado do ato de não aceitar o bilhete é $0. Isso porque a utilidadeem qualquer possível consequência é sempre nula. Logo, como noventa centavos émaior do que $0, a melhor decisão é aceitar o bilhete.

Ou seja, sendo de graça, devemos aceitar até mesmo injeção na testa? Não. Masaceitar um bilhete gratuito que pode render um prêmio, essa sim é uma decisãoracional.

Este é um problema simples, cujos valores de utilidades e probabilidades deocorrência podem ser facilmente estimados. Mas e no caso de decisões cujasvariáveis são muitas e vagas, como uma proposta de casamento?

A velha anedota que diz "não sei se caso ou se compro uma bicicleta" pode servir bemcomo ilustração de que é muito mais fácil avaliar a utilidade de uma bicicleta do que ade uma vida a dois. E é também mais fácil estimar (subjetivamente) a probabilidade dese alcançar felicidade com uma bicicleta do que a probabilidade de se conquistarfelicidade casando-se com alguém.

Mas digamos que você, leitor(a), receba uma proposta de casamento. Há duaspossíveis consequências: aceitar ou recusar. Como decidir?

Para facilitar a tomada de decisão, recomendo que você empregue uma escala defelicidade (assumindo que a utilidade do casamento seja a felicidade), a qual dependede seu perfil pessoal. Por exemplo, se você for uma pessoa extremamente passional,pode usar uma escala de -100 a 100, na qual 100 corresponde à felicidade absoluta e -100 equivale à mais indescritível miserabilidade, enquanto 0 é simplesmenteindiferença. Ou seja, o quão feliz você será se casar com a pessoa que lhe propôscasamento?

Em seguida, avaliando o perfil pessoal de seu par, faça uma estimativa daprobabilidade de ser feliz ao lado daquela pessoa ao longo dos anos.

Exemplifico melhor. Digamos que você esteja absolutamente apaixonado(a) peloindivíduo X. Neste caso, a utilidade do ato de aceitar a proposta de casamento é 100(felicidade absoluta). Mas digamos que X tenha várias idiossincrasias com as quaisvocê tenha extrema dificuldade de lidar: X é ruidoso(a) quando dorme, gosta de sair de

casa sem dar satisfação, bebe demais, não tolera certas crenças pessoais suas etc.Neste caso, a probabilidade de ser plenamente feliz no casamento é muito pequena,digamos, 0,1 (dez por cento). Portanto, para o ato de aceitar a proposta de casamentopoderíamos ter as seguintes consequências:

Consequência 1: Você vive absolutamente feliz ao lado do(a) cônjuge. A utilidade é100, com probabilidade de 0,1.

Consequência 2: Você vive sob absoluta miséria pessoal. A utilidade é -100, comprobabilidade de 0,3 (admitimos que X é esquisito(a), mas não tão esquisito(a) assim).

Consequência 3: Você vive com absoluta indiferença em relação à vida a dois. Autilidade é 0, com probabilidade de 0,6.

Observe que os valores atribuídos neste exemplo são uma avaliação subjetiva. É aparte interessada que deve avaliar quantas são as possíveis consequências e seusrespectivos valores de utilidade e probabilidade. Mas lembre-se de que a soma dasprobabilidades deve ser 1 (cem por cento), assumindo que as consequências sejamexcludentes.

Neste exemplo o valor esperado é

100 x 0,1 - 100 x 0,3 + 0 x 0,6 = -20,

o que corresponde a uma certa infelicidade, apesar de não muito grande.

Já para o ato de recusar a proposta de casamento, poderíamos considerar que otempo cura todos os males emocionais. Afinal, as probabilidades estimadas acimatambém se referem ao futuro distante. Neste caso a parte interessada poderia assumirque sua paixão sumirá algum dia, após um certo tempo afastado de X. Portanto, ovalor esperado para o ato de recusar a proposta de casamento seria 0. Vale lembrarque estamos avaliando apenas a felicidade associada ao casamento com X, ignorandooutras possíveis fontes de felicidade. Portanto, mesmo que você se julgue incapaz deperder a paixão por X, o fato é que estamos avaliando sua felicidade futura ao lado deX. Sem casamento, não haverá X em sua vida futura.

Como 0 é maior do que -20, fica claro, usando a regra do valor esperado, que a melhordecisão é recusar a proposta de casamento.

Este texto pode parecer uma mera brincadeira, mas garanto que não é o caso. Useicomo exemplo ilustrativo o caso de um perfil pessoal de extremos emocionais, aliado aum indivíduo X definido por características pessoais bastante desagradáveis (pelomenos aos olhos de muitos).

Adonai às 00:58

O modelo apresentado acima é uma mera adaptação intencionalmente simplificada deuma ferramenta muito utilizada no mundo. E o emprego de uma escala para felicidade,apesar de subjetivo, também é usual até mesmo em pesquisas de mercado realizadaspor empresas especializadas.

Assim como existem mecanismos legais para proteger os direitos de esposas eesposos, podemos também admitir a existência de mecanismos racionais paraproteger a felicidade dos indivíduos, ainda que o conceito de felicidade não possa serracionalmente qualificado. O que se oferece neste breve texto é um modelomatemático muito simples que pode ser adaptado à prática dos relacionamentoshumanos. E ainda que uma pessoa use o modelo mas decida exatamente o oposto doque a racionalidade sugere, pelo menos ela conhecerá um pouco melhor a respeito desi mesma.

O fato é que pessoas que gostam de desafiar riscos são tão irracionais quanto aquelasque os evitam. Riscos são inerentes em praticamente todos os aspectos da vida real.Da mesma forma como temos máquinas que facilitam nossas vidas, também dispomosda razão como ferramenta para lidar com a imprevisibilidade do mundo, mesmo que ameta seja a tão sonhada e polêmica felicidade.

Em resumo, paixão não implica em irracionalidade.

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6 comentários:

Anônimo 1 de setembro de 2012 02:49Professor, gostaria de lhe pedir um texto sobre Gedankenexperiment.Responder

Adonai 1 de setembro de 2012 18:35Gedankenexperiment é um termo muito amplo. Há algum em especial que lhe interesse? Eumesmo já fiz um trabalho em parceria com um colega dos EUA justamente sobre umGedankenexperiment que apenas aguarda a tecnologia necessária para ser implementadona prática.

Douglas Mancini 1 de setembro de 2012 21:03

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Prof. Adonai, há tempos que por razões diversas ando um pouco aborrecido com muitas coisas que meacontecem, mas ao ler este texto dei absurdas gargalhadas com o exemplo! Você me conhece, não ride deboche de maneira alguma, simplesmente achei um dos exemplos mais espirituosos que poderiamsurgir para pôr em prática probabilidades. E acima de tudo achei o texto muito gostoso de ler e mealegrou bastante! Obrigado!Responder

Adonai 2 de setembro de 2012 16:38Caríssimo Douglas

É claro que entendo suas risadas. Eu também me diverti muito com este texto. Mas o queainda me surpreende é que esta foi uma das postagens menos visualizadas até hoje. Não seise é o conceito de administração matemática para relações amorosas que causadesinteresse nas pessoas ou se os leitores esperam apenas reclamações sobre auniversidade e o sistema de educação (os textos mais lidos). De qualquer forma minhaintenção é postar mais textos futuros sobre aplicações de matemática.

Douglas Mancini 1 de setembro de 2012 21:07Ah me esqueci de comentar a figura lá em cima, gostei demais. Aliás a figura mostra que a decisãopode ser tomada levando em conta algumas deformações do conceito "Casamento" na proposta!Responder

Adonai 2 de setembro de 2012 16:43Pois é... Eu não chamaria de deformações do conceito de casamento. Prefiro encarar comovariações da visão tradicional. Normalmente quando se fala em casamentos, espera-se algocomo um homem e uma mulher. Mas há algum tempo se percebe que essa visão carececada vez mais de sentido. Além disso a imagem é intencionalmente ambígua, ficando difícildeterminar quem é a amante.

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Adonai

Professor Associado do Departamento de Matemática da UFPR. Autor de dois livros sobre lógicapublicados no Brasil, e de dezenas de artigos publicados em periódicos especializados dematemática, física e filosofia, no Brasil e no exterior. Atualmente está trabalhando em dois projetos

cinematográficos, sendo que um deles visa uma crítica inédita às universidades federais brasileiras. Para maisdetalhes ver a página "Sobre o autor do blog".Visualizar meu perfil completo

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