consulta s/n solicitante: coordenação regional das … · centro de apoio operacional das...

74
Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos NÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS CONSULTA S/N SOLICITANTE: Coordenação Regional das Bacias Litorâneas do Ministério Público do Estado do Paraná. OBJETO: regularização fundiária de comunidade tradicional de pescadores artesanais localizada no Município de Pontal do Paraná Procedimento Administrativo nº MPPR-0046.15.043964-7 – CAOPJDH - consulta prévia, livre e informada às comunidades tradicionais afetadas pelo empreendimento Porto de Pontal do Paraná Trata-se de consulta efetuada pela Coordenadora Regional da Bacia Litorânea do Ministério Público do Estado do Paraná, acerca de medidas para a defesa dos direitos humanos da comunidade de pescadores artesanais do Maciel – município de Pontal do Paraná, a este Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais (Núcleo PCTs) do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos (CAOPJDH) do Ministério Público do Estado do Paraná. 1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES – RETROSPECTIVA FÁTICA E PROCEDIMENTAL No mês de Junho de 2015, a Coordenadora Regional da Bacia Litorânea do Ministério Público do Estado do Paraná efetuou contato telefônico com este Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça do Estado do Paraná – CAOPJDH solicitando inspeção na comunidade de Pescadores Artesanais do Maciel, em vista de conflitos por ela enfrentados. Nesta oportunidade também foi solicitada a elaboração de material técnico que indicasse os passos necessários para eventual questionamento em 1

Upload: lamthien

Post on 08-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

CONSULTA S/N

SOLICITANTE: Coordenação Regional das Bacias Litorâneas do Ministério Público doEstado do Paraná.

OBJETO: regularização fundiária de comunidade tradicional de pescadores artesanaislocalizada no Município de Pontal do Paraná

Procedimento Administrativo nº MPPR-0046.15.043964-7 – CAOPJDH - consultaprévia, livre e informada às comunidades tradicionais afetadas pelo empreendimento Portode Pontal do Paraná

Trata-se de consulta efetuada pela Coordenadora Regional da Bacia

Litorânea do Ministério Público do Estado do Paraná, acerca de medidas para a defesa dos

direitos humanos da comunidade de pescadores artesanais do Maciel – município de Pontal

do Paraná, a este Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos dos Povos e Comunidades

Tradicionais (Núcleo PCTs) do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de

Proteção aos Direitos Humanos (CAOPJDH) do Ministério Público do Estado do Paraná.

1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES – RETROSPECTIVA FÁTICA E

PROCEDIMENTAL

No mês de Junho de 2015, a Coordenadora Regional da Bacia Litorânea

do Ministério Público do Estado do Paraná efetuou contato telefônico com este Centro de

Apoio Operacional das Promotorias de Justiça do Estado do Paraná – CAOPJDH

solicitando inspeção na comunidade de Pescadores Artesanais do Maciel, em vista de

conflitos por ela enfrentados. Nesta oportunidade também foi solicitada a elaboração de

material técnico que indicasse os passos necessários para eventual questionamento em

1

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

juízo sobre ausência de consulta prévia, livre e informada à referida comunidade em

virtude da implantação do Porto de Pontal do Paraná.

Após a consulta, este Centro de Apoio instaurou o Procedimento

Administrativo n.º MPPR-0046.15.043964-7, a fim de prestar apoio à referida Promotora

de Justiça no tocante à verificação de tomada de medidas em relação à eventual ausência

de condução de consulta prévia, livre e informada junto aos pescadores artesanais do

Maciel.

A fim de instruir sua solicitação, a Promotora de Justiça encaminhou ata

de reunião realizada aos 8 de junho de 2015, no Ministério Público em Paranaguá, que

contou com participação de representantes das localidades de Barrancos, Ilha do Maciel e

Ponta Oeste, do Movimento dos Pescadores e Pescadoras do Paraná – MOPEAR, e das

ONGs Libres e OC2, na qual consta relato de manifestação dos pescadores artesanais do

Maciel afirmando que

(i) a comunidade não foi consultada acerca da instalação do empreendimento,do Porto de Pontal do Paraná, (ii) o empreendimento causará impacto naatividade pesqueira; (iii) haverá pressão para retirada da comunidade do local,inclusive com a população sendo tratada como invasora e vivenciando aretirada dos serviços públicos, como escola e posto de saúde; (iv) adependência de moradores da Ilha do Maciel da pesca tradicional e quedependem diretamente do bem estar do meio ambiente.

Em relação às demandas e apontamentos feitos pela comunidade na

ocasião, consta na memória relato sobre a necessidade de verificação da

regularidade do domínio dos imóveis de Pontal do Paraná, especialmente aárea da Ilha do Maciel, tendo em vista a suposta transferência irregular daUnião/Estado/Município para particulares, bem como a suposta perseguiçãoaos nativos para que entreguem a posse de seus imóveis e deixem a Ilha doMaciel

Na mesma reunião, conforme denota-se da memória enviada a este Centro

de Apoio pela Coordenadoria das Bacias Litorâneas, foi entregue cópia do Decreto n.º

2

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

249/1949, o qual autorizou o Estado do Paraná a ceder ao município de Paranaguá,

gratuitamente, terras ditas devolutas em Pontal do Sul. Segundo a memória,

A área deveria ser aproveitada para incentivar a pesca, a construção de umaestrada levando Paranaguá a Pontal do Sul, a formação de lotes para granjasdestinadas ao plantio de lavouras próprias do litoral e a formação de umpequeno balneário. A cessão foi feita sob a condição da Prefeitura deParanaguá respeitar a posse dos autuais moradores na área e regularizar odomínio dos proprietários, se houvesse, nos termos da Lei Imperial n.º601/1850 e do Regulamento nº 1318/1954 e Lei Estadual n.º 68/1892.

Aos 6 julho de 2015, foi enviado por este Centro de Apoio à Coordenadora

da Bacia Litorânea resposta à consulta efetuada, por meio do Ofício n.º501/2015-

CAOPJDH (ANEXO I), indicando sugestões de providências a serem tomadas no sentido

da verificação de realização de Consulta Prévia, Livre e Informada junto aos pescadores

artesanais que poderiam ser afetados pela construção do Porto de Pontal e, em caso de sua

não realização, de medidas que poderiam ser conduzidas no sentido da garantia da

adequada observância do art. 6º, da Convenção 169 da Organização Internacional do

Trabalho – OIT.

Em setembro de 2015, este Centro de Apoio foi informado por servidor da

Secretaria de Estado da Cultura (SEEC) que a visita à Comunidade do Maciel, então

agendada e que também seria acompanhada por este CAOPJDH, teria sido desmarcada por

receio de agravamento de conflitos na referida coletividade. Os conflitos mencionados

referiam-se à notícia de ameaças às lideranças da comunidade em virtude da atuação destes

para que a coletividade não fosse removida de seu território (fls. 52, do Procedimento

Administrativo n.º MPPR-0046.15.043964-7 – CAOPJDH).

Nesse sentido, a inspeção na comunidade foi suspensa e substituída por

reunião realizada entre o servidor da SEEC, o professor da UFPR e liderança da

comunidade na sede do Ministério Público em Paranaguá.

3

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Em virtude da comunicação das ameaças sofridas pelos pescadores da

comunidade do Maciel, este Centro de Apoio encaminhou à Coordenação da Bacia

Litorânea material sobre a possibilidade de inserção de lideranças integrantes de povos e

comunidades tradicionais no Programa Nacional de Defensores de Direitos Humanos,

como aconteceu com representante de comunidade faxinalense no Estado do Paraná

(ANEXO II).

Em dezembro de 2015, em razão de nova solicitação de apoio da

Coordenadoria da Bacia Litorânea para a construção de parecer que estava sendo

elaborado por organizações ambientalistas sobre o Novo Plano Diretor de Pontal do

Paraná, o CAOPJDH encaminhou material de subsídio para a construção do documento

mencionado, tais como: diagnóstico realizado em algumas comunidades tradicionais de

pescadores artesanais do litoral do Paraná localizadas na Ilha de Superagui –

Guaraqueçaba, documento elaborado no ano de 2009 por este Centro de Apoio

denominado “Análise dos impactos sociais, culturais e econômicos da instalação do

Empreendimento Terminal de Contêineres de Pontal do Paraná – TCPP”, e demais

materiais de outra comunidade de pescadores artesanais (Ponta Oeste - Ilha do Mel)

(ANEXO III).

No dia 1 de abril foi realizada a primeira visita técnica à comunidade de

pescadores artesanais do Maciel, precedida por reunião realizada no dia anterior, no

Ministério Público em Paranaguá, a qual contou com a participação de servidores deste

CAOPJDH, do Instituto Ambiental do Paraná – IAP, do Centro de Apoio Operacional das

Promotorias de Justiça do Meio Ambiente e de Habitação e Urbanismo – CAOPMA, da

Secretaria de Estado da Cultura – SEEC e da Promotora de Justiça Coordenadora da Bacia

Litorânea.

Como resultado dessa primeira visita, foram elaborados dois Relatórios,

quais sejam, Relatório de Visita Institucional à Comunidade de Pescadores Artesanais do

4

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Maciel, produzido por Assistente Social do CAOPJDH (ANEXO IV), e o Relatório

Histórico, de autoria da historiadora deste órgão (ANEXO V).

Após a realização das referidas reuniões e da visita técnica, foi solicitada a

análise dos Estudos de Impactos Ambientais – EIA´s de 5 empreendimentos previstos para

serem instalados na região, denominada pelo Novo Plano Diretor como Zona Especial

Portuária, a fim de que fosse identificada a menção a eventuais impactos à comunidade

tradicional do Maciel. Nesse sentido, o Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos dos

Povos e Comunidades Tradicionais do CAOPJDH incumbiu-se de analisar os EIA´s

referentes aos empreendimentos i) “Terminal Portuário de Pontal do Paraná”, ii) “SUBSEA

7 do Brasil Ltda: Base de soldagem Subsea 7” e iii) “reforma e ampliação do cais de

atracação do canteiro de obras da Techint Engenharia e Construção S/A, e da retro área

adjacente, localizado no município de Pontal do Paraná/PR – (TECHINT)”. As referidas

análises foram encaminhadas à Promotora de Justiça, previamente, por meio de correio

eletrônico, no mês de julho de 2016, as quais seguem, também nessa oportunidade, em

anexo (ANEXOS VI, VII e VIII)

As análises dos EIA´s das empreendimentos das empresas ODEBRECHT e

MELPORT ficaram sob a responsabilidade da Rede Ambiental das Bacias do

CAOPMAHU.

Aos 24 de junho de 2016, além de Relatório de Visita Institucional à

Comunidade de Pescadores Artesanais do Maciel elaborado pela Assistente Social do

CAOPJDH, após visita realizada em 1 de abril de 2016, o Núcleo de Promoção e Defesa

dos Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais do CAOPJDH também encaminhou,

por meio do Ofício n.º 716/2016, documento produzido por este Núcleo referente à análise

do “Diagnóstico do Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado – Pontal do Paraná – PR

– Brasil – 2004” e do “Diagnóstico e Proposta para a construção do Plano Diretor de

5

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Pontal” (ANEXO IX), no que se refere à caracterização e consideração da comunidade

tradicional do Maciel nos referidos documentos.

A análise mencionada foi encaminhada em resposta à solicitação efetuada

pela Coordenação da Bacia Litorânea em virtude de fase de instrução do Processo referente

à Ação Civil Pública de Obrigação de Fazer com pedido de tutela antecipada proposta pela

Promotoria de Justiça de Pontal do Paraná e pela Coordenação da Bacia Litorânea a

respeito do Novo Plano Diretor de Pontal do Paraná.

Atendendo à solicitação constante em Ofício nº 153/2016-CRBL, por meio

do qual a Coordenação Regional da Bacia Litorânea requereu a realização de nova

inspeção conjunta com a equipe desse CAOPJDH e do Centro de Apoio do Meio Ambiente

e Urbanismo, na comunidade do Maciel, com o objetivo de “realizar estudo

circunstanciado da comunidade, com metodologia própria, para verificação dos aspectos

ambientais, florestais, arqueológicos, antropológicos, históricos, sociais e jurídicos, da

população local”, foram realizadas duas outras visitas nos meses de junho e julho na

referida comunidade, cujo relatório técnico de visita elaborado pela assessora jurídica do

Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais segue

também em anexo (ANEXO X).

1.2. INSPEÇÃO CONJUNTA NA COMUNIDADE DO MACIEL

Metodologia aplicada para coleta de dados sobre a Comunidade

Para concretizar suas funções constitucionalmente previstas, em especial

a proteção do patrimônio público, social, do meio ambiente e demais direitos difusos, bem

como assegurar, nos termos do Decreto 6.040/2007, art. 1º, inciso IV, que os Povos e

Comunidade Tradicionais tenham acesso à informação e participação nos processos

decisórios, o Ministério Público pode e deve ser atuante junto à sociedade civil, em especial

6

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

quando se tratar de povos e comunidades tradicionais, utilizando-se, para isso, de

instrumentos e técnicas adequados para coleta de dados.

É nesse sentido que no presente caso o Ministério Público realizou visitas

técnicas à comunidade do Maciel com vistas a subsidiar a atuação da Coordenação da Bacia

Litorânea.

De início, cumpre ressaltar que o trabalho de campo, em especial em

casos como o que agora se apresenta, mostra-se importante porque as respostas oferecidas

apenas pelo ordenamento jurídico, prontas e definitivas, são insuficientes para a resolução

dos problemas dinâmicos e cotidianos que chegam ao conhecimento do Ministério Público,

e do sistema de justiça como um todo, a fim de se buscar uma solução adequada para as

demandas diferenciadas da sociedade.1

E é nesse sentido que a ida a campo por membros e servidores do

Ministério Público, e das demais instituições do sistema de justiça, contribui para a

compreensão das dinâmicas e signos das coletividades com as quais se atua. Esse método

possui ainda especial relevância quando se refere a povos e comunidades que se

autoidentificam como tradicionais, possibilitando uma percepção mais completa e

democrática dos fenômenos e dos institutos jurídicos a eles incidentes. 2

A metodologia utilizada nas visitas técnicas de campo, realizadas por este

Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais do

CAOPJDH, foi o da “pesquisa-ação” ou “participação-ação”. Esta metodologia pode

apresentar diversas variantes participativas, cooperativas e colaborativas, considerando-se

uma investigação de cunho qualitativo. O relacionamento desenvolvido em termos de

1 LIMA, Roberto Kant de; BAPTISTA, Bárbara Gomes Lupetti. Como a Antropologia pode contribuir para apesquisa jurídica? Um desafio metodológico. Anuário Antropológico, n. I, p. 04, 2014. Disponívelem:<http://aa.revues.org/618>. Acesso em 01 ago. 2016.

2 LIMA, Roberto Kant de; BAPTISTA, Bárbara Gomes Lupetti. Op., cit., p. 05.

7

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

participação ou cooperação ocorre por meio da problematização entre a esfera da

investigação e dos atores em situação a ser investigada.3

Neste método ainda existe a ênfase na ação, uma vez que as ações são

discutidas, analisadas e deliberadas com pleno consenso ou não. Tratam-se de ações

significativas para os atores em situação de pesquisa, além de serem portadoras de

aprendizagem e conhecimento mútuo, com a interação entre observadores e observados.4

No caso em questão procederam-se três visitas técnicas, as quais

ocorreram nos dias 01/04/2016, 16 e 17/06/2016 e 21/07/2016, contando com uma equipe

multidisciplinar (cujos participantes não participaram necessariamente das visitas em todos

os dias), composta pela Promotora de Justiça Priscila da Mata Cavalcante, Coordenadora

Regional da Bacia Litorânea, pela Assessora Jurídica e Historiadora do Núcleo PCTs, Ana

Carolina Brolo de Almeida e Claudia Cristina Hoffman, e por Assistente Social do

CAOPJDH, Keity Fabiane da Cruz.

Além da equipe do Núcleo PCTs, acompanharam as visitas servidores do

CAOPMAHU, quais sejam, a Assessora Jurídica Dandara Damas (nos dias 16 e 17/06/2016

e 21 e 22/07/2016), a Pedagoga Wanderleia Aparecida Coelho, (no dia 01/04/2016), os

Engenheiros florestal e ambiental, Paulo Afonso Conte e Alberto Barcellos, (nos dias

01/04/2016 e 21 e 22/07/2016), além de a estagiária de graduação em geografia, Gabriela

Goudard (nos dias 21 e 22/07/2016).

Participaram das visitas no dia 01/04/2016 dois servidores integrantes do

Instituto Ambiental do Paraná, Margit Hauer e Harvey Frederico Schlenker, bem como

outros dois servidores da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná nos dias 16 e

17/06/2016 e 21 e 22/07/2016, quais sejam, Almir Pontes Filho, arqueólogo, e Cristina

Klupel, historiadora.

3 THIOLLENT, Michel; OLIVEIRA, Lídia. Op., cit., p. 357.4 THIOLLENT, Michel; OLIVEIRA, Lídia. Op., cit., p. 358.

8

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Em relação às atividades executadas durante as visitas, ressalta-se que na

primeira delas foram realizadas entrevistas com quatro famílias, enquanto na segunda e

terceira os diálogos e entrevistas correram junto a duas famílias, objetivando a

compreensão da dinâmica de vida e de ocupação do território (terrestre e aquático) da

comunidade.

Algumas dessas conversas foram gravadas e transcritas, conforme

transcrições também seguem em anexo (ANEXO XI); ressalta-se apenas que, na maioria

das entrevistas, os entrevistados não assinaram o termo de autorização de uso e divulgação

de suas falas, devido ao receio de assinarem qualquer documento, haja vista já terem sido,

segundo informaram, levados a erro e induzidos a assinar documentos que acabaram

restringindo seus direitos.

Em relação aos relatórios de visita que ficaram sob a responsabilidade

deste Núcleo PCTs, além dos relatórios socioassistencial e histórico, a assessora jurídica

deste Núcleo elaborou relatório relativo à atividade pesqueira e território aquático da

comunidade, a partir de entrevistas realizadas durante as três inspeções realizadas e também

de ida a campo (identificação com GPS dos pontos de pesca utilizados pela comunidade)

com seus integrantes no dia 21/07/2016 (ANEXO XII).

Desta feita, a partir das observações e diálogos promovidos durante as

visitas técnicas realizadas, e por meio das análises e documentos produzidos pelo Núcleo de

Promoção e Defesa dos Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais do Centro de

Apoio Operacional das Promotorias de Justiça, passar-se-á, a seguir, a discorrer sobre

alguns dos conflitos observados e sobre as implicações jurídicas e sugestões de medidas a

serem tomadas com o escopo de se promover e cessar as violações aos direitos dos

integrantes da comunidade de pescadores artesanais do Maciel.

9

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

2. DA ATUAÇÃO CONJUNTA COM O MINISTÉRIO PÚBLICO

FEDERAL

Inicialmente, insta registrar, apesar deste Centro de Apoio já ter

conhecimento de que atuação neste sentido já é conduzida pela Coordenação da Bacia

Litorânea, ser essencial que a defesa dos direitos territoriais da comunidade de pescadores

artesanais do Maciel se dê em conjunto com o Ministério Público Federal.

Conforme será visto a seguir, além de tradicionalmente ocupar áreas que

hoje são de titularidade privada (por ora não se questiona a regularidade de tais títulos), a

ocupação tradicional da comunidade também se dá sobre áreas públicas da União (terreno

de Marinha, da Aeronáutica e mar territorial).

Assim, diante de evidente interesse da União, resta essencial dialogar com

o Ministério Público Federal sobre o caso em análise, pois que se trata de matéria cuja

atribuição também é da Justiça Federal (artigo 109 da Constituição Federal).

3. DA COMUNIDADE DE PESCADORES ARTESANAIS DO

MACIEL

A partir das visitas realizadas e relatórios até então elaborados, observou-

se que os pescadores artesanais que integram a Comunidade do Maciel possuem relações

bastante específicas com o território que ocupam, com forma própria de organização social

e de sobrevivência, principalmente no que se refere ao modo que se relacionam entre si,

com o mar e a porção terrestre tradicionalmente ocupada (que não se restringe apenas à

moradia, mas também para realização da agricultura e celebrações coletivas).

10

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Esse modo específico de criar, fazer e viver da Comunidade perpetua-se

desde longa data, vez que a área de Maciel é ocupada há cerca de dois séculos ou mais,

conforme informações presentes na literatura sobre o litoral do Paraná.5

O parecer elaborado por Keity Fabiane da Cruz, assistente social lotada

neste Centro de Apoio Operacional, evidencia a ocupação longínqua:

Durante a visita ao realizar contato com representantes de algumasfamílias, os entrevistados declararam ocupar o território há muitasgerações, alguns mencionaram que seus bisavós já viviam na ilha. Um dosentrevistados mencionou que sua avó viveu mais de 100 anos no local eque a maioria é nativa daquele território.

Em relação à localização da comunidade, o Maciel localiza-se na porção

norte de Pontal do Paraná, direcionada para a Baía de Paranaguá (UTM 761011 S; 7165194

W), de modo que o acesso ao local apenas se faz possível pela via marítima 6. É por esse

motivo que alguns moradores empregam a expressão “Ilha do Maciel” para se referirem à

Vila.

Nesse diapasão, transcreve-se trecho do parecer formulado pela

historiadora que atua neste CAOPJDH, Cláudia Cristina Hoffmann:

Localizada no litoral paranaense, a Comunidade Maciel, tambémconhecida como “Ilha do Maciel”, está no continente, e pertence aomunicípio Pontal do Paraná, porém, a única forma de acesso é pelooceano. Na ponta da Ilha do Maciel, está a baia de Paranaguá e a foz dorio Maciel.

De acordo com a pesquisa realizada no ano de 2009 por Natália Spuldaro

Tanno, a Comunidade do Maciel é composta por 94 moradores permanentes, distribuídos

5 LIMA, Luciana Sereneski de. Diz que é bom: As plantas na vida das Comunidades de Barrancos emaciel (Pontal do paraná – Paraná). p. 23.

6 Idem, p. 9.

11

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

em 51 (cinquenta e uma) casas, das quais 42 (quarenta e duas) são utilizadas para o fim

residencial e, conforme descrito naquele documento, assim distribuídas:

29 (69%) pertencem a moradores permanentes, oito (19%) pertencem anativos veranistas, ou seja, pessoas nascidas e criadas na Vila queatualmente residem em outro local, mas utilizam as casas em épocas deveraneio; e cinco (12%) pertencem a turistas não nativos.7

Claudia Cristina Hoffman, por sua vez, em seu relatório histórico, relata a

existência de cerca de 200 moradores na comunidade do Maciel.

No tocante ao território da comunidade, conforme exposto no relatório

produzido pela assessora jurídica do Núcleo PCTs, Ana Carolina Brolo de Almeida, aquela

o vivencia, para sua reprodução física e cultural, tanto as águas marinhas (para o

desenvolvimento de sua pesca artesanal e também para o acesso à sede do Município de

Pontal do Paraná e Paranaguá) que tangenciam a agora denominada “zona especial

portuária de Pontal do Paraná”, quanto as terras de marinha e áreas “particulares” (para a

prática de atividades agropastoris, comerciais, de lazer e celebrativas).

Nesse diapasão, conforme ressalta César Augusto BALDI (2014, p. 96)

“a pesca artesanal desenvolve-se articulando atividades em terra e água”, sendo que o mar

é também “um espaço de uso comum apropriado por saberes construídos ao longo dos

anos e das gerações” (Ibidem).

Assim, tratando-se de comunidade de pescadores artesanais, e em vista

dos conflitos e questões observadas nos relatórios produzidos pelo Núcleo de Promoção e

Defesa dos Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais do CAOPJDH, passar-se-á a

analisar juridicamente algumas das situações verificadas durante as visitas técnicas.

7 TANNO, Natália Spuldaro. Reprodução sócio-econômica da comunidade de pescadores de pequenaescala da vila do Maciel (Baía de Paranaguá – Paraná, Brasil), p. 28.

12

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

3.1. Do Território Tradicionalmente Ocupado pela Comunidade de

Pescadores Artesanais do Maciel

Conforme se denota do mapa abaixo colacionado, a Comunidade do

Maciel ocupa território que é composto por terra e mar, os quais, por sua vez, são

compostos por áreas de titulação privada (de propriedade da empresa Balneária Pontal do

Sul) e áreas da União (faixa de Marinha e área da Aeronáutica).

13

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Desta feita, é essencial a análise jurídica de cada uma dessas porções.

3.1.1 Águas Marinhas

Em relação ao território composto pelas águas, a Comunidade de

Pescadores Artesanais do Maciel utiliza grande parte da extensão da Baia de Paranaguá

para a realização de sua atividade pesqueira artesanal, sendo esta também meio de acesso à

sede do município de Pontal do Sul e de Paranaguá.

No tocante à caracterização da Baía de Paranaguá como águas marinhas,

importa destacar o teor do art. 1º da Lei nº 8.617/1993, segundo o qual o mar territorial

“compreende uma faixa de doze milhas marítima de largura, medidas a partir da linha de

baixa-mar do litoral continental e insular, tal como indicada nas cartas náuticas de grande

escala, reconhecidas oficialmente no Brasil” (art. 1º).

Anelise Grehs Stifelman ensina, de maneira complementar, que o mar

territorial abrange, também, as águas interiores salgadas das reentrâncias do litoral como as

baías8.

Portanto, a Baía de Paranaguá, utilizada pela Comunidade Pesqueira para

o desenvolvimento de sua atividade de pesca artesanal e para sua reprodução física e

cultural, integra a modalidade de águas marinhas.

3.1.2 Porção terrestre

8 STIFELMAN. Anelise Grehs. Os bens da união e o patrimônio nacional como critérios determinantes da competência jurisdicional nas causas ambientais. Disponível em: < https://www.mprs.mp.br/criminal/doutrina/id46.htm>. Acesso em 26/09/2016.

14

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Como se sabe, as comunidades pesqueiras, como é o caso da Comunidade

do Maciel, utilizam a porção terrestre de seus territórios não só para fins de moradia, mas

também para a confecção de seus apetrechos de pesca, realização de práticas culturais e

também para a prática de agricultura de subsistência.

Portanto, observa-se que a proteção da parte terrestre é essencial também

para a continuidade do modo de vida tradicional, cumprindo esclarecer, por oportuno, que

essa área é composta por terreno de marinha e por terras ditas “particulares”.

3.1.2.1 Terras de particulares:

No que tange à área de terras particulares, destaca-se que parte do terreno

em que sobrevive a Comunidade Pesqueira foi transferida pelo Município de Paranaguá a

terceiro, o que pode ter ocorrido à revelia da Lei Estadual nº 249/1949. Esta lei autorizou o

Poder Executivo a ceder ao Município referido, gratuitamente, terras devolutas em Pontal

do Sul (que, mais tarde, integraria Pontal do Paraná).

De acordo com a referida lei, a transferência de terras do Estado do

Paraná ao município seria feita desde que este cumprisse com alguns fins nela previstos,

dentre eles, o de incentivar a pesca e a formação de plantio conforme a praticada pelos

pescadores à época, e sob a condição de regularizar e respeitar a posse dos moradores.

Nesse diapasão, transcreve-se a seguir o trecho da referida normativa:

A Assembleia Legislativa do Estado do Paraná decretou e eu sanciono aseguinte lei:Art. 1º – Fica o Poder Executivo autorizado a ceder gratuitamente, aoMunicípio de Paranaguá, uma área de terras devolutas, a ser demarcada,situada no Pontal do Sul, município de Paranaguá, delimitada: ao nortepela Baía de Paranaguá; a leste pelo Oceano Atlântico; ao sul pelo Olhod'Agua e a oeste por uma linha seca rumo Norte-Sul verdadeira que partedo Rio Maciel até encontrar o Rio Olho d'Agua, com área de 3.000 (três

15

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

mil) hectares aproximadamente, correndo as desepesas de demarcação porconta da Prefeitura de Paranaguá.Art. 2.º – A área cedida deverá ser aproveitada para os seguintes fins:a) – Incentivar a pesca;b) -construção de uma estrada ligando Paranaguá ao Pontal do Sul;c) – formação de lotes para granjas destinadas ao plantio de lavouraspróprias do litoral;d) formação de pequeno balneário.Art, 3.º – A presente cessão é feita sob a condição da Prefeitura deParanaguá respeitar a posse dos atuais moradores naquela área eregularizar o domínio dos proprietários, se houver, nos termos da LeiImperial n.º 604, de 18 de setembro de 1850, e do Regulamento n.º 1.318,de 30 de janeiro de 1954, e Lei Estadual n.º 68, de 20 de dezembro de1892, e seu regulamento.

(…) (grifos nossos)

No entanto, a área referenciada, que após veio a incorporar o município

de Pontal do Paraná, foi doada pelo Município para a empresa Balneária Pontal do Sul com

Título de Domínio Pleno, resultando em consequente diminuição do espaço

tradicionalmente vivenciado pela Comunidade Tradicional.

Nesse aspecto, insta mencionar Ação Judicial Declaratória de Nulidade de

Ato Jurídico c/c com legitimação de posse n.º 5004948-82.2014.4.04.7008/PR9 movida

contra a Empresa Balneária Pontal do Sul, contra o Município de Paranaguá e o Estado do

Paraná por dois pescadores artesanais da comunidade, por meio da qual requerem seja

pronunciada a invalidade: i) do Título de Domínio Pleno de Terras nº 197, emitido pelo

Governo do Paraná; ii) do Contrato de Concessão entabulado entre a Prefeitura de

Paranaguá e a Empresa Balneária ré; iii) da Escritura Pública de Transferência celebrada

entre a Prefeitura de Paranaguá e a Empresa Balneária Pontal; e iv) das transcrições e

matrículas imobiliárias que tiveram como nascedouro os atos anteriores. Postulam ainda

seja reconhecida judicialmente sua posse, de acordo com a área mapeada e delimitada por

9 A Análise desta Ação Judicial foi efetuada por este Centro de Apoio e disponibilizada à Coordenação daBacia Litorânea por meio de correio eletrônico, mas também segue em anexo (ANEXO XIII)

16

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

profissional habilitado, determinando-se ao Registro Imobiliário de Pontal do Paraná que

proceda à abertura de matrícula.

3.1.2.2 Terreno de Marinha:

Além da porção terrestre dita como de propriedade de particulares, em

especial da Empresa Balneário Pontal do Sul, o território da Comunidade de Pescadores

Artesanais do Maciel também ocupa terreno costeiro à Baía de Paranaguá, conforme denota

o mapa a seguir anexado:

17

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Cumpre destacar, ainda, que em relação à descrição e caracterização dos

terrenos de marinha, o art. 2º do Decreto-Lei 9760/1946 dispõe que:

Art. 2º São terrenos de marinha, em uma profundidade de 33 (trinta etrês) metros, medidos horizontalmente, para a parte da terra, da posição dalinha do preamar-médio de 1831:a) os situados no continente, na costa marítima e nas margens dos rios elagoas, até onde se faça sentir a influência das marés;b) os que contornam as ilhas situadas em zona onde se faça sentir ainfluência das marés.Parágrafo único. Para os efeitos dêste artigo a influência das marés écaracterizada pela oscilação periódica de 5 (cinco) centímetros pelomenos, do nível das águas, que ocorra em qualquer época do ano.

Desse modo, a parte do território terrestre da Comunidade de Pescadores

Artesanais do Maciel é composta por terreno de marinha, o qual, consoante o art. 20, VII,

da CF, pertence à União.

4. DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Conforme pôde ser observado, o objeto do Procedimento Administrativo

nº MPPR-0046.15.043964-7 merece especial atenção por envolver diretamente comunidade

de pescadores e pescadoras artesanais, cujos direitos difusos e coletivos estão reconhecidos

nas diversas esferas do ordenamento jurídico brasileiro.

Os modos próprios de criar, fazer e viver dos diferentes grupos étnicos

formadores da identidade cultural brasileira constituem patrimônio cultural brasileiro, nos

moldes do que dispõe o artigo 216 da Constituição Federal, sendo obrigação do Estado

brasileiro a defesa e valorização deste patrimônio, assim como a valorização da diversidade

étnica e regional (artigo 215 da Constituição Federal).

18

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho,

promulgada pelo Decreto nº 5.051/2004, e aprovada pelo Congresso Nacional através do

Decreto Legislativo nº 143/2002, é o principal marco legal internacional no tocante aos

direitos dos povos e comunidades tradicionais. Este importante Tratado Internacional, que

elenca especiais direitos a diferentes grupos sociais, define em seu artigo 1º que é a

autoidentificação o critério pelo qual se deverá analisar a aplicabilidade deste instrumento

aos grupos tradicionais.

No âmbito internacional, ainda, outros comandos normativos vem

conferindo maior solidez e clareza aos direitos das comunidades tradicionais. Nesse

contexto, destaca-se a Declaração Universal Sobre a Diversidade Cultural que, em seu

art.1º, acentua a diversidade cultural como patrimônio comum da humanidade e, em seu art.

4º, preconiza a defesa dessa como um imperativo ético:

Art. 1º. A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço.Essa diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade deidentidades que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem ahumanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de criatividade, adiversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como adiversidade biológica para a natureza. Nesse sentido, constitui opatrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida e consolidadaem beneficio das gerações presentes e futuras.

Art. 4º. A defesa da diversidade cultural é um imperativo ético,inseparável do respeito à dignidade humana. Ela implica o compromissode respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, emparticular os direitos das pessoas que pertencem a minorias e os dos povosautóctones. Ninguém pode invocar a diversidade cultural para violar osdireitos humanos garantidos pelo direito internacional, nem para limitarseu alcance.

Para além disso, a Convenção da Diversidade Biológica, ratificada pelo

Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 2, de 1994, determina em seu art.

19

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

8º, alínea j), que sobre os Estados recai o dever de respeitar, preservar e manter o

conhecimento, inovações e práticas das comunidades com vidas tradicionais. Junto a essas

obrigações é prevista a necessidade de incentivar a ampla aplicação da legislação nacional

afeta à matéria, com a aprovação e a participação dos detentores do conhecimento,

inovações e práticas tradicionais, e de “encorajar a repartição equitativa dos benefícios

oriundos da utilização” deles.

Na esfera nacional, a Constituição Federal de 1988, inovando no

ordenamento jurídico brasileiro, traz em seu corpo normativo, em especial nos art. 215 e

2016, uma perspectiva baseada na multiculturalidade, garantindo a todos o pleno exercício

dos direitos culturais, e incentivando a difusão das diversas formas de manifestações de

cultura na conjuntura das relações sociais.

A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e

Comunidades Tradicionais - PNPCT, instituída pelo Decreto 6.040/2007, a seu turno,

conceitua os povos e comunidades tradicionais como sendo:

grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, quepossuem formas próprias de organização social, que ocupam e usamterritórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural,social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos,inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.

Ainda, o mesmo decreto apresenta como principal objetivo da PNPCT:

promover o desenvolvimento sustentável dos Povos e ComunidadesTradicionais, com ênfase no reconhecimento, fortalecimento e garantiados seus direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais,com respeito e valorização à sua identidade, suas formas de organização esuas instituições (Art 2º do Anexo).

A Lei nº 9.985/2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades de

Conservação da Natureza - SNUC, elenca, por sua vez, como um dos objetivos do Sistema

20

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

a proteção dos diretos das populações tradicionais, mediante a tutela dos recursos naturais

necessários à subsistência dessas.

Além disso, o art. 5º, X, do conjunto normativo supramencionado prevê

que o SNUC será regido por diretrizes que

garantam às populações tradicionais cuja subsistência dependa dautilização de recursos naturais existentes no interior das unidades deconservação meios de subsistência alternativos ou a justa indenizaçãopelos recursos perdidos.

A nível estadual, faz-se mister ressaltar que o Paraná possui o Conselho

Estadual dos Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais do Estado do Paraná –

CPICT/PR, criado por meio da Lei n.º 17.425/2012; este órgão colegiado, consultivo,

deliberativo e fiscalizador, deve possibilitar a participação popular em discussões,

propostas, elaborações e auxílio na implementação e fiscalização das políticas públicas para

o desenvolvimento sustentável dos povos indígenas e comunidades tradicionais que se

utilizem da autodefinição ou autoatribuição, segundo a Convenção nº 169, da Organização

Internacional do Trabalho de 2004, como povos e comunidades tradicionais.

Por fim, salienta-se que no mesmo diapasão da Constituição Federal, a

Constituição do Estado do Paraná dispõe em seu artigo 191 que “os bens materiais e

imateriais referentes às características da cultura, no Paraná, constituem patrimônio

comum que deverá ser preservado através do Estado com a cooperação da comunidade”,

cabendo ao “Poder Público manter, a nível estadual e municipal, órgão ou serviço de

gestão, preservação e pesquisa relativo ao patrimônio cultural paranaense, através da

comunidade ou em seu nome”.

21

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

4.1 Da proteção jurídica aos territórios tradicionalmente ocupados

pelos distintos grupos formadores da identidade cultural brasileira

Conforme salientado nos relatórios de visita elaborados pelas Assistente

Social e Assessora Jurídica deste Centro de Apoio, a análise do caso em tela requer seja

considerado a noção de pertencimento que os integrantes da comunidade do Maciel

possuem em relação à área que habitam, ou seja, em relação ao seu território

tradicionalmente ocupado.

Nesse sentido, conforme também citado por Keity Fabiane da Cruz em

seu relatório de visita, cumpre salientar o conceito territorialização e territoralidade trazido

pelo geógrafo Claude RAFFESTIN:

É no processo de apropriação, de territorialização, que as relações deidentidade e pertencimento ao lugar são desenvolvidas, quando os sujeitosvão além da necessidade da apropriação de um espaço, quandodesenvolvem ali valores ligados aos seus sentimentos e à sua identidadecultural simbólica, recriando seu espaço de vida, ao qual se identificam ese sentem pertencer10.

Compreendendo essa característica, a Convenção 169 da Organização

Internacional do Trabalho, promulgada pelo Decreto 5051/2004, estabelece, em seu artigo

13, que

1. Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governosdeverão respeitar a importância especial que para as culturas e valoresespirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras outerritórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizamde alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação.

10 RAFESTIN, Claude. Per uma geografia del potere. Milão: Unicopli, 1981.

22

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Além disso, o referido artigo da Convenção 169 da OIT, estabelece que o

termo “terra” utilizados nos artigos posteriores

deverá incluir o conceito de territórios, o que abrange a totalidade dohabitat das regiões que os povos interessados ocupam ou utilizam dealguma outra forma.

Por fim, o artigo 14 da Convenção dispõe que:

1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos depropriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Alémdisso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas parasalvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que nãoestejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais,tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais ede subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção àsituação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.

2. Os governos deverão adotar as medidas que sejam necessárias paradeterminar as terras que os povos interessados ocupam tradicionalmente egarantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse.

Também o ordenamento jurídico brasileiro prevê a necessidade de

proteção aos territórios tradicionais.

O inciso II, do artigo 3º do Decreto 6.040/2007 conceitua territórios

tradicionais da seguinte forma:

II - Territórios Tradicionais: os espaços necessários a reprodução cultural,social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam elesutilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que dizrespeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o quedispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato das DisposiçõesConstitucionais Transitórias e demais regulamentações

23

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Além disso, o referido Decreto estabelece como um dos objetivos

específicos da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e

Comunidades Tradicionais

garantir aos povos e comunidades tradicionais seus territórios, e o acessoaos recursos naturais que tradicionalmente utilizam para sua reproduçãofísica, cultural e econômica;

Assim, em vista das considerações feitas até agora e da existência de

marco legal nacional e internacional específico sobre a proteção dos territórios

tradicionalmente ocupados pelos grupos dotados de formas próprias de criar, fazer e viver e

formadores da identidade cultural brasileira (art. 215 e 216 de Constituição Federal), este

Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais entende

ser imperiosa a defesa e regularização do território tradicionalmente ocupado pela

Comunidade de Pescadores Artesanais, conforme será abaixo tratado.

5. DOS INSTRUMENTOS JURÍDICOS APLICÁVEIS AO CASO

PARA REGULARIZAÇÃO DO USO DE ÁGUAS MARINHAS E DA PORÇÃO

TERRITORIAL TERRESTRE TRADICIONALMENTE OCUPADA PELA

COMUNIDADE DO MACIEL

Diante das questões apresentadas, importa analisar os instrumentos

jurídicos pertinentes e capazes de proporcionar a regularização do território da Comunidade

de Pescadores Artesanais do Maciel, quanto às suas diversas dimensões: águas marinhas,

terras de marinha e terras de particulares.

5.1 Das Reservas Extrativistas

24

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Inicialmente, cumpre discorrer acerca de forma de regularização de

território tradicional de comunidades tradicionais por meio de um instrumento do Direito

Ambiental, qual seja, a unidade de conservação de uso sustentável denominada Reserva

Extrativista. Essa modalidade de unidade de conservação (UC) pode ser eficaz tanto para a

proteção da porção terrestre como aquática do território tradicional da comunidade do

Maciel.

Como exposto no tópico “4.1.1 Águas Marinhas”, a Comunidade de

Pescadores Artesanais do Maciel utiliza a Baía de Paranaguá para desenvolver a sua

atividade de pesca artesanal, área essa que constitui mar territorial.

As águas marinhas possuem proteção não apenas por serem bens da

União, mas também pelo fundamento de sua relevância ambiental, nos moldes do que

dispõe o art. 225 da Constituição Federal. E é por essa razão que existe jurisprudência

acerca da proibição de pesca predatória (que não é o caso da pesca artesanal tradicional)

nestes locais:

PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. DENÚNCIAPOR INFRAÇÃO DO ARTIGO 34, CAPUT, E PARÁGRAFO ÚNICO EINCISO II, DA LEI Nº 9.605/98. IMPUTAÇÃO DE PESCAPREDATÓRIA REALIZADA NO MAR TERRITORIALALCANÇANDO RECURSOS NATURAIS ALI EXISTENTES (CF,ART. 20, V E VI). AFIRMAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇAFEDERAL. INCONSISTÊNCIA.1. Denúncia de cuja narrativa depreende-se ter havido danos a bem daUNIÃO (mar territorial), assim como a bem que, em regra, atrai acompetência da Justiça Estadual (Zona Costeira), justificando aprevalência da competência da Justiça Federal para processo e julgamentoda causa, em consonância com a S. 127 do Colendo STJ.2. Ordem denegada.(Processo: 200301000032379, TRF – PRIMEIRA REGIÃO, QuartaTurma, Rel. Desembargador Federal Hilton Queiroz, data da publicação16/05/2003).

25

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Desse modo, e considerando que a Comunidade de Pescadores Artesanais

do Maciel utiliza águas marinhas para o desenvolvimento de sua atividade tradicional de

pesca artesanal, passa-se à exposição desse instituto jurídico que pode viabilizar a

regularização do território tradicional terrestre e aquático e a proteção da existência, dos

meios de vida e da cultura da comunidade em tela, mediante a exploração dos recursos

naturais para este fim.

Criada pela Lei nº 9985/2000 e regulamentada pelo Decreto n.º

4340/2002, e também prevista no Decreto n.º 98.897/1990, as Reservas Extrativistas,

conforme artigo 18 da referida Lei, são espaços protegidos de domínio do poder público

com o fim de proteger os meios de vida e a cultura de populações tradicionais, cujo meio de

subsistência se baseia no extrativismo, possuindo também o objetivo de manter o uso

sustentável dos recursos naturais da área. Nessa modalidade de Unidade de Conservação de

Uso Sustentável, a exploração comercial de recursos é limitada e abrange atividades

complementares a serem desenvolvidas na reserva pela Comunidade Tradicional – como a

agricultura e a criação de animais de pequeno porte – conforme o Plano de Manejo.

A vantagem desta unidade de conservação é que pode abranger todas as

áreas que compõem o território tradicional de pescadores artesanais, tendo em vista que a

RESEX pode ser terrestre e/ou marinha, como também permite que as áreas particulares

inseridas no seu limite sejam desapropriadas:

As áreas particulares incluídas em seus limites devem ser desapropriadas,de acordo com o que dispõe a lei. A visitação pública é permitida, desdeque compatível com os interesses locais e com o disposto no plano demanejo da unidade, assim como a pesquisa científica, que é permitida eincentivada, desde que autorizada pelo órgão ambiental responsável. Poroutro lado, é proibida na área a prática da caça amadorística ouprofissional.11

11 In: O que é uma Reserva Extrativista. Disponível em <http://www.oeco.org.br/dicionario-ambiental/29258-o-que-e-uma-reserva-extrativista/>.

26

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Nesse diapasão, dispõe o artigo 3º do Decreto n.º 98.897/1990:

Art. 3º Do ato de criação constarão os limites geográficos, a populaçãodestinatária e as medidas a serem tomadas pelo Poder Executivo para asua implantação, ficando a cargo do Instituto Brasileiro do MeioAmbiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), asdesapropriações que se fizerem necessárias.

A sua criação e fiscalização dessa UC será realizada a depender do ente

federativo que a tiver criado: se for instituída por lei federal, a responsabilidade pela

administração da Resex será do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade

– ICMBio, se, por sua vez, for criada por lei estadual ou municipal, será responsabilidade

do órgão ambiental correspondente.

A gestão das Resex's é feita por um Conselho Deliberativo, que aprovará

seu Plano de Manejo (art. 12, II, do Decreto n.º 4340/2002), o qual será presidido por

representante do órgão ambiental responsável por sua administração e composto por

representantes da população tradicional que será afetada pela RESEX, de demais

integrantes da sociedade civil12 e também por representantes de demais órgãos públicos.

Assim,

As Reservas Extrativistas Marinhas ao determinar áreas até entãoconsideradas de livre acesso transformando-as em espaços onde osrecursos são explorados de forma comunitária por pescadores artesanaisorganizados, reconhece o direito consuetudinário desses grupos sobreterritórios marinhos (onde se incluem territórios fronteiriços entreterra e mar como mangues e estuários), as formas de arranjos erepresentações simbólicas de tradição pesqueira secular e exclui os

12 Art. 17, §2º, do Decreto n.º 4340/2002): “A representação da sociedade civil deve contemplar, quandocouber, a comunidade científica e organizações não-governamentais ambientalistas com atuaçãocomprovada na região da unidade, população residente e do entorno, população tradicional, proprietários deimóveis no interior da unidade, trabalhadores e setor privado atuantes na região e representantes dosComitês de Bacia Hidrográfica”.

27

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

não comunitários do aproveitamento dos recursos do mar nas áreasdelimitadas.13 (grifos nossos)

De acordo com o Cadastro Nacional de Unidades de Conservação, até

julho de 2015 existiam 90 Resex no País, sendo um dos exemplos de Resex Marítima a de

Corumbau, na Bahia:

Em 1998, um grupo de pescadores artesanais de nove comunidades dosmunicípios de Prado e Porto Seguro uniram-se para criar uma Unidade deConservação que protegesse a região da pesca predatória do camarãopraticada pelas frotas industriais. Foi criada então a Reserva ExtrativistaMarinha da Ponta do Corumbau, área de domínio público com usoconcedido às populações extrativistas tradicionais, conforme o SistemaNacional de Unidades de Conservação (BRASIL, 2000). A criação daRESEX Corumbau tem por objetivo garantir a exploração auto-sustentável e a conservação dos recursos naturais renováveistradicionalmente utilizados pela população extrativista da área. Essascomunidades litorâneas mantém um sistema de saberes e gestãotradicional dos recursos costeiros que justifica o reconhecimento de seudireito a esse território. Sua permanência nessas áreas significa nãosomente o reconhecimento da importância e a proteção de seuconhecimento, mas a manutenção da diversidade cultural (DIEGUES,2004).14

As reservas extrativistas, conclui-se, são importantes instrumentos que

podem ser utilizados para a manutenção das comunidades tradicionais em seus territórios

tradicionais, bem como para o equilíbrio e proteção do meio ambiente e do modo de vida

tradicional, especialmente no tocante aos pescadores artesanais, visto que pode se

desdobrar para a proteção terrestre e marítima. Entretanto, é preciso que o interesse do

poder público responsável pela administração da unidade de conservação esteja alinhado à

garantia dos direitos da comunidade tradicional, a fim de que haja uma fiscalização

13 CHAMY, Paula. Reservas extrativistas marinhas como instrumento de reconhecimento do direitoconsuetudinário de pescadores artesanais brasileiros sobre territórios de uso comum. Disponível em:<http://www.ambiente.sp.gov.br/wp-content/uploads/cea/Texto_Chamy.pdf>.

14 CIOMMO, Regina Célia Di. Pescadoras e pescadores: a questão da equidade de gênero em umareserva extrativista marinha. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/asoc/v10n1/v10n1a10.pdf>.

28

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

constante e que o Conselho Deliberativo trate a consulta livre, prévia e informada não

apenas para receptação das vontades da Comunidade Tradicional, mas também para que

potenciais empreendimentos não interfiram na esfera de direitos e modo de vida dessa

comunidade.

5.2 Da porção terrestre do território tradicional do Maciel

Como explicado inicialmente, compõe também o território da

Comunidade de Pescadores Artesanias do Maciel porção de área terrestre composta por

terreno de marinha e por terras de particulares, as quais são habitadas e vivenciadas por

aquela comunidade para o desenvolvimento de sua atividade agropastoril destinada a sua

subsistência, para moradia, atividades de lazer e manutenção de relações comerciais e

mercantis. Assim, a proteção dessa porção é essencial para a manutenção do modo de vida

da comunidade de pescadores artesanais, o que demanda considerar o conceito de território

para que sejam adequadamente efetivados os direitos humanos dessa coletividade, nos

termos do que dispõe o artigo 13 da Convenção 169 da OIT, e do que foi exposto no tópico

5.1 deste documento.

Assim, em atenção à Convenção 169 da OIT, a importância dessa

ampliação do conceito de território para as comunidades pesqueiras artesanais resulta em

um olhar jurídico diferenciado para as diferentes formas de manutenção de sua cultura e

modos tradicionais de vida, bem como de regularização de seu território tradicionalmente

ocupado, ou seja, para as especificidades que o caso concreto exige.

5.2.1 Do Terreno da Marinha

29

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Os terrenos da marinha, consoante o art. 20, VII, da CF, pertencem à

União. Além disso, são bens que compõem a categoria dos bens dominiais, o que significa

dizer que não possuem uma destinação pública específica, podendo, por isso, ser utilizados

para diversos fins, desde que previstos em lei.

Nesse sentido, conforme exposto em Manual de Regularização Fundiária

em Terras da União,

Os bens dominicais ou dominiais são aqueles que pertencem ao poderpúblico, mas não possuem uma destinação pública específica. Portanto,podem ser usados para diversas finalidades, desde que previstas em lei.Historicamente, os bens públicos dominiais tiveram uma funçãopatrimonial ou financeira para o Estado, por meio da possibilidade deserem vendidos, alugados, cedidos de forma onerosa para uma atividadeeconômica como, por exemplo, um parque industrial. O poder públicopode definir o melhor uso destas propriedades públicas, como osproprietários em geral, desde que respeite os preceitos constitucionaisnorteadores da administração pública, em especial o da função social dapropriedade15.

Nesse mesmo documento publicado pela Secretaria do Patrimônio da

União – SPU, acerca de formas de regularização fundiária em Terras de União, afirma-se

que

Atualmente, os terrenos de marinha se prestam a outras políticas públicascomo a regularização fundiária, ordenamento das cidades, proteção domeio ambiente e das comunidades tradicionais , apoio aodesenvolvimento sustentável, conferindo aos bens da União suafunção socioambiental

Ou seja, destaca-se o entendimento da Secretaria do Patrimônio da União

segundo o qual os terrenos da marinha, a fim de efetivar a função socioambiental aos bens

da União, prestam-se, dentre outras funções, à proteção do meio ambiente e das

comunidades tradicionais.15 SPU. Manual de Regularização Fundiária em Terras da União. p. 20. Disponível em:

http://www.planejamento.gov.br/secretarias/upload/arquivo/spu/publicacoes/081021_pub_manual_regularizacao-1.pdf.

30

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

O Decreto-Lei n.º 9760/1946 prevê medidas voltadas à regularização

fundiária de interesse social em imóveis da União chamada regularização fundiária de

interesse social realizada em bens da União.

Segundo o artigo 18-A, §1º, “considera-se regularização fundiária de

interesse social aquela destinada a atender a famílias com renda familiar mensal não

superior a 5 (cinco) salários mínimos”.

O referido Decreto-Lei, nos artigos 18-A a 18-F, elenca o procedimento

de demarcação de seus bens para regularização fundiária de interesse social.

Recentemente, a Lei n.º 13.240/2015, que dispõe sobre a administração, a

alienação, a transferência de gestão de imóveis da União, trouxe a disposição direta sobre a

alienação de terrenos da marinha:

Art. 8º O Ministro de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão,permitida a delegação, editará portaria com a lista de áreas ou imóveissujeitos à alienação nos termos desta Lei.§ 1º Os terrenos de marinha e acrescidos alienados na forma destaLei:I - não incluirão:a) áreas de preservação permanente, na forma do inciso II do caput do art.3o da Lei no 12.651, de 25 de maio de 2012; oub) áreas em que seja vedado o parcelamento do solo, na forma do art. 3o edo inciso I do caput do art. 13 da Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de1979;

Dessa maneira, a regularização da área em prol da Comunidade mostra-se

necessária para a manutenção da reprodução física e cultural dessa coletividade, ou seja,

para a continuidade de sua existência enquanto coletividade tradicional. Assim, discorrer-

se-á, a seguir, acerca dos instrumentos existentes para a manutenção da Comunidade

Tradicional em seu território tradicional.

Concessão de Direito Real de Uso

31

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

A concessão de direito real de uso - CDRU é prevista no art. 7º do

Decreto-Lei 271/67 e é um instrumento da Administração Pública para transferência de um

bem público ao particular, de maneira onerosa ou gratuita, em que o particular possui

direito real resolúvel por tempo determinado ou indeterminado para utilizar o bem com fim

específico:

(…) para fins específicos de regularização fundiária de interesse social,urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, aproveitamentosustentável das várzeas, preservação das comunidades tradicionais e seusmeios de subsistência ou outras modalidades de interesse social (…).16

Ainda, conforme o art. 7º do Decreto-Lei 271/1967, a CDRU pode ser

feita por instrumento público ou particular, ou por termo administrativo, sendo inscrita em

livro especial. A partir de sua inscrição, pode ser fruída plenamente pelo particular, bem

como pode ser transmitida a CRDU por ato intervivo ou por sucessão legítima e

testamentária. Caso seja dada destinação diversa do que à firmada no instrumento, será

rescindida, sem indenização por benfeitorias de qualquer natureza.

Art. 7º É instituída a concessão de uso de terrenos públicos ouparticulares remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado,como direito real resolúvel, para fins específicos de regularizaçãofundiária de interesse social, urbanização, industrialização, edificação,cultivo da terra, aproveitamento sustentável das várzeas, preservação dascomunidades tradicionais e seus meios de subsistência ou outrasmodalidades de interesse social em áreas urbanas.§ 1º A concessão de uso poderá ser contratada, por instrumento público ouparticular, ou por simples termo administrativo, e será inscrita e canceladaem livro especial.§ 2º Desde a inscrição da concessão de uso, o concessionário fruiráplenamente do terreno para os fins estabelecidos no contrato e responderápor todos os encargos civis, administrativos e tributários que venham aincidir sôbre o imóvel e suas rendas.

16 MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 18. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 289.

32

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

§ 3º Resolve-se a concessão antes de seu têrmo, desde que oconcessionário dê ao imóvel destinação diversa da estabelecida nocontrato ou têrmo, ou descumpra cláusula resolutória do ajuste, perdendo,neste caso, as benfeitorias de qualquer natureza.§ 4º A concessão de uso, salvo disposição contratual em contrário,transfere-se por ato inter vivos, ou por sucessão legítima ou testamentária,como os demais direitos reais sôbre coisas alheias, registrando-se atransferência.

A Lei n.º 8.666/1993, que regulamenta as licitações e contratos da

Administração Pública, prevê a dispensa de licitação quando a concessão de direito real de

uso envolver interesse público e social.

Art. 17. A alienação de bens da Administração Pública, subordinada àexistência de interesse público devidamente justificado, será precedida deavaliação e obedecerá às seguintes normas:I - quando imóveis, dependerá de autorização legislativa para órgãos daadministração direta e entidades autárquicas e fundacionais, e, para todos,inclusive as entidades paraestatais, dependerá de avaliação prévia e delicitação na modalidade de concorrência, dispensada está nos seguintescasos:f) alienação gratuita ou onerosa, aforamento, concessão de direito real deuso, locação ou permissão de uso de bens imóveis residenciaisconstruídos, destinados ou efetivamente utilizados no âmbito deprogramas habitacionais ou de regularização fundiária de interessesocial desenvolvidos por órgãos ou entidades da administração pública;

Ainda, a Lei n.º 9636/1998, em seu artigo 18, prevê a utilização da CRDU

para as situações de terreno de marinha:

§ 1º A cessão de que trata este artigo poderá ser realizada, ainda, sob oregime de concessão de direito real de uso resolúvel, previsto no art. 7º doDecreto-Lei nº 271, de 28 de fevereiro de 1967, aplicando-se, inclusive,em terrenos de marinha e acrescidos, dispensando-se o procedimentolicitatório para associações e cooperativas que se enquadrem no inciso IIdo caput deste artigo.

33

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Carvalho Filho aponta as vantagens para a Administração Pública, da

utilização deste instrumento:

A concessão de direito real de uso salvaguarda o patrimônio daAdministração e evita a alienação de bens públicos, autorizada às vezessem qualquer vantagem para ela. Além do mais, o concessionário não ficalivre para dar ao uso a destinação que lhe convier, mas, ao contrário, seráobrigado a destiná-lo ao fim estabelecido em lei, o que mantémresguardado o interesse público que originou a concessão real de uso.17

Vale ressaltar, também, o disposto no § 5°, do artigo 79, da Lei

9.760/1946, que possibilita que a Secretaria do Patrimônio da União reveja o imóvel

entregue a órgãos ou entidades da administração pública federal para a titulação em áreas

ocupadas por comunidades tradicionais:

§ 5o Constatado o exercício de posse para fins de moradia em bensentregues a órgãos ou entidades da administração pública federal ehavendo interesse público na utilização destes bens para fins deimplantação de programa ou ações de regularização fundiária ou paratitulação em áreas ocupadas por comunidades tradicionais, aSecretaria do Patrimônio da União fica autorizada a reaver o imóvelpor meio de ato de cancelamento da entrega, destinando o imóvelpara a finalidade que motivou a medida, ressalvados os bens imóveisda União que estejam sob a administração do Ministério da Defesa edos Comandos da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, e observadoo disposto no inciso III do § 1o do art. 91 da Constituição Federal.(Incluído pela Lei nº 11.481, de 2007).

Abaixo, segue exemplo de utilização deste instrumento para a proteção de

pescadores artesanais, qual seja, a promulgação da Lei Estadual do Rio de Janeiro nº

3192/1999, nos termos do que segue:

17 LIMA, Márcia Rosa de. A concessão de direito real de uso como instrumento jurídico de defesa do patrimônio público e implementação da política local. Acesso em: <http://www.direito.mppr.mp.br/arquivos/File/marcia-rosa-de-lima.pdf>.

34

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

A ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRODECRETA:Art. 1º - Fica o Poder Executivo autorizado a reconhecer o direito realde uso sobre a propriedade aos pescadores artesanais que estejamocupando suas terras, bem como a emitir-lhes os títulos respectivos eassumir, junto aos órgãos federais competentes, a regularização daocupação, sem ônus para os pescadores.Parágrafo Único - Define-se como pescador artesanal, para efeito destaLei, aquele que tiver a pesca como atividade principal para suasubsistência, podendo possuir embarcação de no máximo 8 (oito) metrosde comprimento.Art. 2º - Quando a propriedade se localizar em unidade de conservação ouárea de preservação, o direito de uso e moradia previsto no artigo anteriorserá efetuado de acordo com planos de utilização previamenteestabelecidos e aprovados pelo órgão competente.Parágrafo Único - É garantido aos pescadores artesanais o acessoexclusivo aos recursos naturais, e à participação direta nos planos edecisões que afetem de alguma forma o seu modo de vida.Art. 3º - Os locais ocupados por pescadores artesanais, quandodevidamente reconhecidos nos termos desta Lei, serão incluídos comoáreas de preservação, para efeito de compensação financeira a municípios.Art. 4º - A exploração auto-sustentável e a conservação dos recursosnaturais será regulada por contrato de concessão real de uso, na forma doartigo 7º do Decreto-Lei 221, de 28 de fevereiro de 1967.§ 1º - O direito real de uso será concedido a título gratuito.§ 2º - O contrato de concessão incluirá o Plano de Utilização, a serelaborado em conjunto com os pescadores e com a aprovação do órgãocompetente, e conterá cláusula de rescisão quando o beneficiário provocardanos irreversíveis ao meio ambiente, pesca predatória, ou a transferênciada concessão inter vivos, permitida apenas entre parentes diretos.Art. 5º - Caberá ao órgão competente do Poder Executivo supervisionaras áreas dos pescadores, e acompanhar o cumprimento das condiçõesestipuladas no contrato de que trata o artigo anterior, através de comissãoparitária, com representantes dos pescadores, entidades não-governamentais locais e prefeituras.Art. 6º - O Poder Executivo baixará os atos que julgue necessários pararegulamentação da presente Lei, inclusive quanto à destinação de recursosdo Fundo Especial de Controle Ambiental - FECAM, aos projetos quevisem a implantação e regularização fundiária das áreas de pescadores eao incentivo à aquicultura, sem prejuízo de outros repasses e dotações.Parágrafo Único - As organizações não-governamentais sem finslucrativos, consideradas de utilidade pública, em conjunto com asorganizações de pescadores locais, receberão tratamento prioritário e

35

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

preferencial do Poder Executivo para o recebimento de recursos comvistas à implantação de projetos de aquicultura e pesquisa no setorpesqueiro, visando aumento da produtividade, promoção sócio-econômicadas comunidades de pescadores e preservação ambiental.Art. 7º - Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadasas disposições em contrário.Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, em 15 de março de1999.

A concessão de direito real de uso permite, então, que a comunidade de

pescadores artesanais tenha o pleno uso e gozo do local em que já exercem sua moradia e

sua cultura, respeitando os direitos previstos pela Convenção 169 da Organização

Internacional do Trabalho.

A CDRU permite, também, que a comunidade tradicional tenha o

exercício de direitos reais por tempo indeterminado e sem que haja precariedade desta

concessão, diferente do instrumento comumente firmado pela Administração Pública, que é

o Termo de Autorização de Uso.

Termo de Autorização de Uso

O termo de autorização de uso é um instrumento discricionário e precário,

em que a União permite apenas que o autorizado usufrua do bem, porém não receba

nenhum direito subjetivo por isso – e, portanto, o autorizado não possui garantia alguma

sobre o território.

É regulamentada pela Portaria nº 100 da SPU e pela Medida Provisória

2220/2001, exigindo como requisitos a comprovação da situação do beneficiário como

ocupante tradicional; parecer prévio do órgão licenciador ambiental quanto ao não

comprometimento pela extração especificada; e declaração de órgão ou entidade pública

constatando a detenção da posse mansa e pacífica, pelo ocupante, sobre a área.

36

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Um exemplo deste termo de autorização de uso é o Termo de Autorização

de Uso Sustentável – TAUS, constante na Portaria nº 89/2010 da SPU, que é voltado para o

aproveitamento de imóveis da União pelas comunidades tradicionais, mas que como o

próprio artigo 1º aponta, trata-se de um ato discricionário e precário – ou seja, poderá ser

encerrado a qualquer tempo pela Administração Pública e não gera nenhum tipo de

indenização ao autorizado.

a autorização de uso e a permissão de uso, são caracterizados pelaprecariedade do vínculo que estabelecem. Ambos, apesar de conferiremdireitos aos outorgados contra terceiros (a exclusividade no uso dos benspúblicos), não estabelecem direitos frente à Administração – por isso sãoprecários -, podendo a qualquer tempo ser revogados por razões deinteresse público, sem qualquer violação à esfera de direitos dosparticulares.18

Conforme material produzido pela Secretaria do Patrimônio da União e

sua Portaria nº 284/2005, a Autorização de Uso possui precedente de ser realizada de

previamente à Concessão de Direito Real de Uso, para garantia emergência de proteção

territorial da Comunidade Tradicional.

Assim, em vista da emergência de regularização do território tradicional

da Comunidade do Maciel, é possível utilizar-se da Autorização de Uso como uma espécie

de proteção prévia contra potenciais violações de direitos sofridos pela coletividade, até que

a concessão de direito real esteja concretizada.

5.2.2 Das áreas particulares

18 SUNDFELD, Carlos Ari, e CÂMARA, Jacinto de Arruda. Concessão de direito real de uso de utilidadepública – Possibilidade de o poder público conferir a particular a gestão exclusiva de seu bens para fins deutilidade pública. Hipótese em que a outorga independerá de licitação, por ser esta inexigível., Boletim delicitações e contratos. vol. 10, n. 12, p. 593 a 602, dez. 1997, p.594.

37

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Como mencionado anteriormente, a Lei Estadual nº 249/1949 autorizou o

Poder Executivo do Estado do Paraná a realizar a cessão ao Município de Paranaguá,

gratuitamente, de terras devolutas em Pontal do Sul (que, mais tarde, integraria Pontal do

Paraná).

Conforme se extrai da leitura da referida Lei, a transferência de terras do

Estado do Paraná seria realizada mediante o cumprimento pelo município da finalidade de

regularizar e respeitar a posse dos pescadores artesanais, bem como fosse incentivada a

pesca e a formação de plantio conforme a praticada pelos pescadores na época (destacando-

se o fato de que a área tradicionalmente ocupada na época era significativamente maior e,

por isso, o exercício da agricultura era ainda maior).

Entretanto, como se sabe, essa área, que passou a integrar o município de

Pontal do Paraná, foi doada à empresa Balneário Pontal do Sul, à revelia das condicionantes

daquela normativa, resultando em consequente diminuição da área ocupada pela

Comunidade Tradicional, bem como em sua expropriação fundiária – as quais continuam

enfrentando disputas fundiárias com a empresa pela área.

No que tange às ações fundiárias atinentes às áreas localizadas na

Comunidade do Maciel, tem-se conhecimento dos autos de Ação Declaratória de nulidade

de ato jurídico, cumulada com legitimação de posse e pedido de antecipação dos efeitos da

tutela nº 5004948-82.2014.4.04.7008/PR, ajuizada em 14/11/2014 por Isidoro do Rosário e

Gustavo Vitorino Salgueiro Filho, em face de Município de Paranaguá, Empresa Balneária

Pontal do Sul LTDA e Estado do Paraná.

Nos autos, em trâmite perante a 11ª Vara Federal da Subseção Judiciária

de Paranaguá, Seção Judiciária do Paraná, foi proferido despacho em 13/05/2015,

ratificando parcialmente a decisão proferida pelo Juízo Estadual e deferindo parcialmente o

pedido de antecipação de tutela para determinar o bloqueio dos imóveis oriundos da

transcrição de nº 6624 ainda titularizados pela Empresa Balneário Pontal do Sul. Além

38

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

disso, houve decisão interlocutória proferida em 18/05/2015 deferindo o pedido de

antecipação de tutela para o fim de assegurar a posse dos autores sobre áreas localizadas na

região do Maciel e determinando a inclusão da União Federal e da Empresa Subsea 7 do

Brasil no polo passivo da demanda.

Dessa decisão foi interposto Agravo de Instrumento nº 5020820-

78.2015.4.04.0000 pela Empresa Balneária Pontal do Sul LTDA ao qual foi negado

provimento, em 21/10/2015, sendo mantido o teor da decisão liminar.

Além da referida ação, ainda é possível que outras demandas sejam

propostas perante o Poder Judiciário, as quais serão elencadas a seguir.

Da Ação Discriminatória

A ação discriminatória pode ser utilizada em casos de dúvida quanto à

regularidade de títulos particulares de propriedade de determinada área, como pode ser o

caso do Maciel, no que se refere às áreas doadas à Empresa Balneário Pontal do Sul, que

pode ter ocorrido em ofensa à Lei Estadual nº n.º 249/1949, que autorizou o Poder

Executivo do Estado do Paraná a realizar a cessão ao Município de Paranaguá,

gratuitamente, de terras devolutas em Pontal do Sul.

A referida ação é uma ação declaratória com o fim de delimitar e

regularizar a situação de terras públicas da União e Estados a fim de separá-las do domínio

particular. Vejamos jurisprudência a respeito:

PROCESSO CIVIL - AÇÃO DISCRIMINATÓRIA - NATUREZAJURÍDICA - PROVA. 1. A ação discriminatória é ação declaratóriadúplice, com o objetivo precípuo de afastar-se a incerteza jurídica dodomínio público ou particular de terras. Traça a sentença o limite do quecabe ao Estado e ao particular. 2. De natureza eminentemente declaratória,tem função dúplice, porque os réus podem pedir que a sentença, apóspronunciar a pretensão estatal, também se manifeste sobre a possível

39

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

dúvida dos seus domínios. 3. Prova documental que constata estar a áreaquestionada incluída no Registro Paroquial, afastando, assim, nos termosdo DL nº 203/67, a hipótese de tratar-se de terras devolutas. 4. Fratura dacadeia sucessória que, aliada ao não interesse dos réus quanto aopronunciamento dúplice, desautoriza o reconhecimento do domínioparticular. 5. Recurso e remessa oficial improvidos. (TRF-1 - AC: 19207DF 95.01.19207-5, Relator: JUÍZA ELIANA CALMON, Data deJulgamento: 29/04/1997, QUARTA TURMA, Data de Publicação:26/05/1997 DJ p.37562).

Nesse sentido, Nelson Saule Júnior afirma:

Discriminar, por sua vez, é separar as terras publicas das particulares,verificando a legitimidade dos títulos de domínio particular. Esseprocedimento é utilizado apenas nos casos em que títulos privados sesobrepõem ao domínio da União com títulos que remontem a uma origempublica. Esse procedimento é muito utilizado para identificar as terrasdevolutas. A ação discriminatória conta com dois tipos de procedimento –o administrativo e o judicial – e deve ser proposta pelas GerenciasRegionais do Patrimônio da União. Tanto em um procedimento quanto emoutro, há a fase do chamamento dos interessados, por edital, para que ostítulos de domínio sejam apresentados e analisados; e a fase dademarcação do bem, com auxilio de peritos (SAULE JUNIOR, 2006,p.A:38).19

Assim, a ação discriminatória pode ser administrativa ou judicial, e é

responsável pela demarcação e delimitação das terras privadas em relação às áreas públicas.

É de iniciativa exclusiva do Poder Público Federal ou Estadual20. Pela via administrativa, é

efetivada através das instituições responsáveis, enquanto a via judicial é promovida pelo

INCRA ou por outro órgão que seja designado a nível estadual.

19 Disponível em: http://agrario.mg.gov.br/opiniao-as-acoes-discriminatorias-e-a-aplicacao-na-regularizacao-fundiaria/

20 RIBEIRO, C. et. all. Ação Discriminatória de Terras Públicas: Procedimentos Legais, Administrativos eTécnicos. III Simpósio Brasileiro de Ciências Geodésicas e Tecnologias da Geoinformação. Recife-PE,2010. Disponível em:<https://www.ufpe.br/cgtg/SIMGEOIII/IIISIMGEO_CD/artigos/Cad_Geod_Agrim/Cadastro/A_128.pdf.

40

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Sendo determinado o território em discussão como terra pública ou

devoluta, recairá sobre ele os direitos dos bens públicos – como, por exemplo, a

impossibilidade de ação de usucapião.

Entretanto, a lei, em seu art. 29, permite que o ocupante da terra terá jus à

legitimação de sua posse de área contínua correspondente a até 100 hectares, obtendo uma

Licença de Ocupação, conforme os requisitos:

Art. 29 - O ocupante de terras públicas, que as tenha tornado produtivascom o seu trabalho e o de sua família, fará jus à legitimação da posse deárea contínua até 100 (cem) hectares, desde que preencha os seguintesrequisitos:I - não seja proprietário de imóvel rural;II - comprove a morada permanente e cultura efetiva, pelo prazo mínimode 1 (um) ano.§ 1º - A legitimação da posse de que trata o presente artigo consistirá nofornecimento de uma Licença de Ocupação, pelo prazo mínimo de mais 4(quatro) anos, findo o qual o ocupante terá a preferência para aquisição dolote, pelo valor histórico da terra nua, satisfeitos os requisitos de moradapermanente e cultura efetiva e comprovada a sua capacidade paradesenvolver a área ocupada.§ 2º - Aos portadores de Licenças de Ocupação, concedidas na forma dalegislação anterior, será assegurada a preferência para aquisição de áreaaté 100 (cem) hectares, nas condições do parágrafo anterior, e, o queexceder esse limite, pelo valor atual da terra nua.§ 3º - A Licença de Ocupação será intransferível inter vivos e inegociável,não podendo ser objeto de penhora e arresto.

Ainda, dispõe o artigo 31 da referida Lei:

Art. 31 - A União poderá, por necessidade ou utilidade pública, emqualquer tempo que necessitar do imóvel, cancelar a Licença de Ocupaçãoe imitir-se na posse do mesmo, promovendo, sumariamente, a suadesocupação no prazo de 180 (cento e oitenta) dias.§ 1º - As benfeitorias existentes serão indenizadas pela importância fixadaatravés de avaliação pelo Instituto Nacional de Colonização e ReformaAgrária - INCRA, considerados os valores declarados para fins decadastro.

41

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

§ 2º - Caso o interessado se recuse a receber o valor estipulado, o mesmoserá depositado em juízo.§ 3º - O portador da Licença de Ocupação, na hipótese prevista nopresente artigo, fará jus, se o desejar, à instalação em outra gleba daUnião, assegurada a indenização, de que trata o § 1º deste artigo, ecomputados os prazos de morada habitual e cultura efetiva da antigaocupação.

Em caso de existência de ação de usucapião em andamento naquela

mesma localidade, a ação discriminatória é interrompida por ser prejudicial ao usucapião,

aguardando decisão, visto que a titularidade pública pode ser alegada durante o processo ou

em sentença.

Após o território ser declarado como bem público em ação

discriminatória, o Estado poderá dispor do bem, a fim de que a comunidade tradicional

obtenha a titularidade posterior daquele território – e nesse sentido, portanto, a ação

discriminatória seria uma forma de regularização indireta, já que a comunidade tradicional

não pode ser parte da ação.

Após a ação discriminatória, o ente federativo poderá realizar a concessão

de direito real de uso, conforme visto no tópico 9.1.1, para garantia dos direitos reais da

Comunidade Tradicional também na parte terrestre, garantindo a continuidade de seu modo

de vida intrinsecamente ligado à mudança das cheias, que afeta o deslocamento da

Comunidade Tradicional em terra, como os demais modos de subsistência retirados dos

recursos naturais e a relação social, organizacional e religiosa, que demanda uma gestão

própria da Comunidade.

Em alguns casos, então, a ação discriminatória é utilizada para a

regularização de territórios de comunidades tradicionais, como ocorreu com uma

comunidade tradicional de Fundo de Pasto, no Estado do Bahia21

21 Ver também: Ação discriminatória dá parecer favorável a comunidades tradicionais de Curaçá. Acessoem: <http://www.irpaa.org/noticias/1002/acao-discriminatoria-da-parecer-favoravel-a-comunidades-tradicionais-de-curaca>.

42

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Esfomeado I e II e Vargem Comprida estão entre as comunidadestradicionais de Fundo de Pasto em que as famílias querem preservar o seujeito de viver no campo, produzindo coletivamente e a partir do que édisponível na Caatinga. A dificuldade que estas comunidades têmencontrado é de garantirem a regularização fundiária destas terrascoletivas que vem sendo ocupadas por muitas gerações destas famílias.

Valdivino Rodrigues, da Articulação das Comunidades tradicionais deFundo de Pasto, explica que as famílias, através da associação e daArticulação, já estão lutando a muito tempo para regularizar, mas hápouco mais de dois anos o processo foi retomado pelo CDA (Coordenaçãode Desenvolvimento Agrário). Em 2013, o Estado está realizando a açãodiscriminatória das áreas destas três comunidades, que consiste separar oque é público do que é privado, para, a partir desta identificação,regularizar as áreas de Fundo de Pasto22.

Também no Estado do Paraná existe experiência de utilização de ação

discriminatória para regularização de território de comunidades tradicionais, em especial de

comunidades quilombolas.

Essa iniciativa se dá pelo Programa Minha Terra Paraná, organizado pelo

Governo do Estado em parceria com ITCG, INCRA e Defensoria Pública, com o objetivo

de regularizar terras e fornecer a titularidade de áreas tradicionais de forma mais célere,

através de ações de usucapião coletivas e ações discriminatórias administrativas.

O programa iniciou em 2011 e algumas localidades e comunidades

tradicionais obtiveram a regularização de seus territórios, segundo informações disponíveis

no site do programa23.

Todavia, não foi possível encontrar maiores informações sobre o

Programa, tais como os critérios de seleção e como uma comunidade pode ser inserida no

programa.

22 DIÁRIO DA REGIÃO. Tês comunidades se unem para garantir regularização fundiária de áreas coletivas. Notícia disponível em: http://www.odiariodaregiao.com/tres-comunidades-rurais-se-unem-para-defender-a-regularizacao-fundiaria-de-areas-coletivas/

23 http://www.aen.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=83741

43

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Assim, sugere-se oficiar ao ITCG requerendo maiores informações sobre

essa iniciativa.

Da Desapropriação por Interesse Social

A desapropriação por interesse social pode ser outro instrumento de

proteção do patrimônio público e de salvaguarda dos interesses difusos e coletivos da

Comunidade Tradicional, conforme denota-se do artigo 5º, inciso XXIV, da Constituição

Federal:

XXIV – a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação pornecessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa eprévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nestaConstituição;

Assim, extinguido o vínculo entre o proprietário e o bem, este passa a ser

de propriedade pública, seja como bem da União, do Estado ou do Município (a depender

de quem promoveu a expropriação), permitindo assim, caso corretamente direcionada, que

a área cumpra sua função social. Podendo, para tanto, ser alienada para Comunidades

Tradicionais ou para fins de reforma agrária, ou, ainda, garantindo sua revitalização e

proteção de forma eficaz.

Seu fundamento se faz de maneira bem colocada no livro de Odete

Medauar:

A necessidade pública aparece quando a Administração se encontra diantede um problema inadiável e premente, isto é, que não pode ser removidonem procrastinado e para cuja solução é indispensável incorporar nodomínio do Estado o bem particular. A utilidade pública aparece quando autilização da propriedade é conveniente e vantajosa ao interesse coletivo,mas não constitui imperativo irremovível. Haverá motivo de interessesocial quando a expropriação se destine a solucionar os chamadosproblemas sociais, isto é, aqueles diretamente atinente às classes maispobres, aos trabalhadores, à massa do povo em geral pela melhoria nas

44

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

condições de vida, pela mais equitativa distribuição de riqueza, enfim,pela atenuação das desigualdades sociais.

Hely Lopes Meirelles resume a conceituação de desapropriação por

motivo de interesse social como um instrumento que “ocorre quando as circunstâncias

impõem a distribuição ou o condicionamento da propriedade para seu melhor

aproveitamento, utilização ou produtividade em benefício da coletividade, ou de categorias

sociais merecedoras de amparo específico do Poder Público”.

A desapropriação por utilidade pública é regulada pelo Decreto-Lei

3365/1941. Entretanto, esta modalidade de desapropriação impede que haja uma alienação

posterior para a Comunidade Tradicional, pela perda da característica da utilização pública

daquele bem. Além disso, a jurisprudência do STJ é plena no sentido de que não pode haver

participação do Ministério Público na ação por ausência de interesse geral, da coletividade,

que justifique seu ingresso – somente existindo o interesse da Fazenda Pública.

Já a desapropriação por interesse social, regulado pela Lei 4132/1962, é,

por regra, voltado para que o bem seja alienado a terceiros pelo Estado (chamado de

beneficiário), conforme seu art. 4º, que receberão, posteriormente, título de domínio (título

este que será melhor explicado a seguir). A participação do Ministério Público no seu

processamento é exigido em razão da destinação do bem e o rol constante na lei é apenas

exemplificativo, sendo adotado o Decreto-Lei 3365/1941 naquilo que for omissa.

Mais justificada ainda torna-se a desapropriação quando uma comunidadetradicional é ameaçada por proprietários e especuladores ou em áreasocupadas por população de baixa renda que sofreram intervenções dapopulação e do Poder Público para construir ruas, infra-estrutura(iluminação, água encanada, drenagem, saneamento), equipamentospúblicos ou sociais como escolas, praças, igrejas etc. Isso porque a terratem que cumprir sua função social, cultural e ambiental.

45

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

A União, Estados, Distrito Federal e Municípios possuem competência

para emitir declaração expropriatória e promover a desapropriação, conforme art. 2º do

Decreto-Lei 3365/1941, e a declaração de interesse social se expressa por decreto do

respectivo Chefe do Executivo.

Desta feita, caso exista interesse do município promover a defesa dos

direitos difusos e coletivos da comunidade, este pode conduzir a desapropriação.

Caso muito semelhante ocorreu em uma fazenda no estado da Paraíba, em

que uma fazenda foi desapropriada pela União, apesar de, em tese, cumprir função social,

porque havia grave conflito entre o proprietário e as famílias da Comunidade Tradicional de

Pescadores Artesanais no local. Para favorecer os pescadores diante do conflito, a

desapropriação foi feita. Em mandado de segurança no STF, o proprietário questionou a

desapropriação, porém o STF negou o pedido:

Negado pedido que questionava desapropriação de fazenda na Paraíbapara fins sociaisPor votação unânime, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF)negou, nesta quarta-feira (11), o Mandado de Segurança (MS) 26192, emque Paulo Roberto Jacques Coutinho Filho questionava ato do presidenteda República que desapropriou, por interesse social, a FazendinhaTambauzinho, com 124,5 hectares, situada no Município de Santa Rita, naParaíba.Os demais ministros acompanharam voto do relator, ministro JoaquimBarbosa, segundo o qual, na desapropriação por interesse social, não énecessária a prévia intimação nem a realização dos procedimentosadministrativos que são obrigatórios quando da desapropriação parafins de reforma agrária.O ministro relator lembrou que a desapropriação para fins de reformaagrária é uma sanção pelo fato de a propriedade não cumprir sua funçãosocial, não apresentando a devida produtividade. Neste caso, aindenização ocorre mediante cessão de Títulos da Dívida Agrária (TDAs),resgatáveis ao longo de anos.Já no caso da Fazendinha Tambauzinho, não se trata de sanção,mesmo porque a fazenda é produtiva (produz 14 mil toneladas decana-de-açúcar por ano). A União interveio para evitar um graveconflito social, efetuando o depósito da indenização em dinheiro. A área

46

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

foi destinada ao estabelecimento e à manutenção de colônias oucooperativas de povoamento e trabalho agrícola, nos termos do artigo 2º,inciso III, da Lei nº 4.132/62, que, por sua vez, tem como fundamento oartigo 5º, inciso XXIV, da Constituição Federal.Neste caso, a União entendeu que a fazenda atenderia melhor suafinalidade social, abrigando 32 famílias de ex-inquilinos doproprietário, para evitar um conflito com potencial de gravesconsequências.

A partir da desapropriação, é possível a expedição de título coletivo pró-

indiviso ou a concessão de direito real de uso para a Comunidade Tradicional, conforme

exposto a seguir – a depender do que for decidido pela Comunidade em consulta prévia,

livre e informada.

Expedição de título de domínio coletivo e pró-indiviso e da

Concessão de Direito Real de Uso

Como já ressaltado, a Convenção nº 169 da Organização Mundial do

Trabalho (promulgada pelo Decreto nº 5051/2004), em seu artigo 14, trata do

reconhecimento e das garantias a serem oferecidas pelo Poder Público sobre os direitos de

propriedade e posse sobre terras tradicionalmente ocupadas pelas Comunidades

Tradicionais.

Assim, uma possibilidade de regularização do território da comunidade, a

partir do acima exposto, seria a condução de desapropriação por interesse social da União,

caso este possua interesse em fazê-lo, com a consequente expedição de título coletivo e

pró-indiviso à Associação da Comunidade.

5.3.3 Da Legitimação de Posse

47

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Outra possibilidade para o caso em vista é a propositura de uma ação para

pleitear a declaração de nulidade dos atos jurídicos do Município de Paranaguá (com base

na violação à Lei Estadual nº 249/1949), que concedeu título de propriedade da terra à

empresa Balneária Pontal do Sul, com pedido de legitimação de posse coletiva em favor da

Comunidade de Pescadores Artesanais do Maciel.

A sugestão que ora se apresenta se faz com base no apresentado no tópico

“6.3.2 Das áreas particulares” e no anexo XIII que analisa a Ação Declaratória de

Nulidade de Ato Jurídico c/c com legitimação de posse n.º 5004948-82.2014.4.04.7008/PR.

Nesse sentido, nos mesmos moldes de liminar concedida nos autos da

referida ação, sugere-se também seja requerido, liminarmente, o bloqueio dos imóveis

tradicionalmente ocupados pela comunidade, mediante o mesmo fundamento utilizado nos

referidos autos de ação declaratória, qual seja, diante da necessidade de resguardar a

inviolabilidade pessoal dos integrantes da comunidade, por estarem sendo vigiados,

abordados e constrangidos em suas posses por capangas, jagunços, vigias e olheiros24.

Percebe-se, dessa maneira, a possibilidade de que a referida ação seja

proposta pelo Ministério Público do Estado do Paraná e pelo Ministério Público Federal,

após realização de Consulta Prévia, Livre e Informada com a Comunidade para que a

mesma se pronuncie sobre esta e outras possibilidades de regularização de seu território.

6. DOS EMPREENDIMENTOS E SEUS IMPACTOS PARA AS

COMUNIDADES TRADICIONAIS, EM ESPECIAL DE PESCADORES

ARTESANAIS DA COMUNIDADE DO MACIEL

24 Conforme relatado nos relatórios produzidos pela assistente social e historiadora deste Centro de Apoio, a Comunidade do Maciel afirma ser constantemente ameaçada e vigiada por funcionários da empresa Balneário Pontal do Sul.

48

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Além dos conflitos mencionados acima, a comunidade também se

encontra em situação de vulnerabilidade e de ameaça de deslocamento de seu território em

virtude da existência de empreendimentos portuários previstos de serem instalados na

localidade.

Conforme mencionado, a análise dos Estudos de Impacto Ambiental -

EIA empreendimentos e dos impactos previstos estão em documento apartamento e que

seguem em anexo.

Assim, neste momento não se discorrerá sobre os impactos à comunidade

do Maciel, já que esta análise consta em documento específico.

Nesse momento, por sua vez, passar-se-á a argumentar a necessidade de

realização de Consulta Prévia, Livre e Informada junto aos pescadores da Comunidade do

Maciel, em virtude de possível instalação de empreendimentos portuários, haja vista,

conforme demonstrado em relatório produzido pela assessora jurídica deste Núcleo PCTs

ter demonstrado o completo desconhecimento daqueles no tocante a tais projetos.

6.1. DA INEXISTÊNCIA E NECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DE

CONSULTA PRÉVIA, LIVRE E INFORMADA À COMUNIDADE DO MACIEL EM

RELAÇÃO AOS EMPREENDIMENTOS

No que concerne aos EIAS analisados por este Núcleo de Promoção e

Defesa dos Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais, quais sejam, aqueles propostos

pelas empresas “Subsea”, “Porto Pontal do Paraná”, e “Techint”, verificou-se a ausênciade

indicação de realização de qualquer consulta prévia, livre e informada à comunidade do

Maciel a fim de apresentar o projeto do empreendimento, os impactos previstos e as

chamadas providências. Informação esta confirmada durante as visitas de campo realizadas

pelo Ministério Público do Estado do Paraná.

49

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Ocorre que o novo paradigma da defesa a diversidade cultural insere os

direitos dos povos e comunidades tradicionais no campo dos direitos humanos e

fundamentais, de forma a assegurar-lhes a dignidade humana. A garantia da diversidade

cultural, como expresso acima, foi cunhada no art. 4º da Declaração Universal, o qual

afirma “a defesa da diversidade cultural é um imperativo ético, inseparável do respeito à

dignidade humana”.

A Convenção 169/OIT vai neste mesmo sentido de defesa da diversidade

cultural, e é aplicada aos povos e comunidades tradicionais, tendo em vista o conceito de

“povos tribais”, expresso em seu art. 1º:

povos que possuem condições sociais, culturais e econômicas que osdistinguem de outros setores da coletividade nacional, e que estão regidos,total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradicionais ou porlegislação especial.

A Convenção da Diversidade Biológica, estabelecida durante a ECO-92,

prevê, em seu art. 8º, j, o respeito e preservação das práticas tradicionais das comunidades

locais:

j) Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar emanter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais epopulações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes àconservação e à utilização sustentável da diversidade biológica eincentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dosdetentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar arepartição equitativa dos benefícios oriundos da utilização desseconhecimento, inovações e práticas;

A legislação nacional segue as mesmas diretrizes dos diplomas

internacionais. Destaque-se os arts. 215, 216, 225 e 231 da Constituição Federal, que

abarcam uma visão multicultural das relações sociais. Note-se, ainda, que a Lei 9.985/200

determina, em seu art. 4º, XIII, que um dos objetivos do Sistema Nacional de Unidades de

Conservação (SNUC) é “proteger os recursos naturais necessários à subsistência de

50

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

populações tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e

promovendo-as social e economicamente”. O art. 5º da mesma lei ainda prevê a garantia

das comunidades tradicionais a utilização de recursos naturais existentes no interior das

unidades de conservação ou justa indenização pelos recursos perdidos.

No mesmo sentido da Convenção 169/OIT, o Decreto 6040/2006 também

estabelece diretrizes a serem seguidas para a promoção e defesa dos direitos territoriais e do

desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais.

A Convenção nº 169 da OIT, em seus arts. 6 e 15, determina o dever de

consultar aos povos tradicionais em caso de medidas administrativas que os afetem

diretamente. Note-se que tal dever decorre justamente da necessidade de garantir a

integridade das terras tradicionalmente ocupadas pelas comunidades. Mister destacar que a

realização de consulta se configura como uma obrigação inafastável ao Poder Público,

imposta por norma de caráter supralegal. No caso em questão a realização de consulta

prévia a comunidade se mostra imperativa, em virtude da mudança brusca da região.

Vejam-se os dispositivos:

Artigo 6º. 1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:a)consultar os povos interessados, mediante procedimentosapropriados e, particularmente, através de suas instituiçõesrepresentativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ouadministrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;b)estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possamparticipar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores dapopulação e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituiçõesefetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveispelas políticas e programas que lhes sejam concernentes;c)estabelecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições einiciativas dos povos e, nos casos apropriados, fornecer os recursosnecessários para esse fim.2.As consultas realizadas na aplicação desta Convenção deverão serefetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o

51

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

objetivo de se chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca dasmedidas propostas (grifo nosso).

Artigo 15 -1.Os direitos dos povos interessados aos recursos naturais existentes nassuas terras deverão ser especialmente protegidos. Esses direitos abrangemo direito desses povos a participarem da utilização, administração econservação dos recursos mencionados.2.Em caso de pertencer ao Estado a propriedade dos minérios ou dosrecursos do subsolo, ou de ter direitos sobre outros recursos, existentes naterras, os governos deverão estabelecer ou manter procedimentos comvistas a consultar os povos interessados, a fim de se determinar se osinteresses desses povos seriam prejudicados, e em que medida, antes de seempreender ou autorizar qualquer programa de prospecção ou exploraçãodos recursos existentes nas suas terras. Os povos interessados deverãoparticipar sempre que for possível dos benefícios que essas atividadesproduzam, e receber indenização equitativa por qualquer dano que possamsofrer como resultado dessas atividades (grifo nosso).

Saliente-se que estas consultas não podem ocorrer em audiências únicas,

ou com base em abordagens individuais, visando apenas a homologação de uma decisão

previamente tomada, mas devem ser procedimento formal, realizado de boa-fé, de modo

prévio, livre e informado, abarcando encontros com o objetivo de esclarecer quanto ao

empreendimento.

Para que tenha um caráter de boa-fé a consulta não pode ser precedida de

um ato de declaração de utilidade pública, que ocorreu pelo Decreto n.º 6 de Maio de 2016,

o qual declarou como de “utilidade pública obra essencial de infraestrutura portuária de

interesse nacional destinada ao serviço público de transporte marítimo”, tampouco pelo

Decreto Municipal n.º 5532/2016, como se verá abaixo, uma vez que gera insegurança e

desmobilização da comunidade, impedindo um diálogo em pé de igualdade como Poder

Público.

O caráter prévio, por sua vez, requer que a consulta seja realizada antes de

qualquer intervenção sobre a área afetada. Assim, não se pode admitir uma consulta

52

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

procedida durante as etapas do licenciamento ambiental, haja vista que neste momento já

existe uma decisão definitiva sobre a localização do empreendimento. A título de

exemplificação, é importante mencionar o Agravo de Instrumento nº 19093-

27.2013.4.01.0000, sobre a Usina Hidrelétrica São Luiz do Tapajós, localizada no Estado

do Pará, em decisão que corrobora os fundamentos aplicados no caso da Usina Hidrelétrica

de Belo Monte, no sentido de que não foi respeitado este aspecto temporal, de consulta

“prévia”.

A consulta ainda deve se dar de forma bem informada, isto é, de modo

acessível, com linguagem e duração adequadas, atendendo as especificidades de cada grupo

atingido, isto é, com procedimentos apropriados aos costumes e aos modos de vida das

comunidades da região, assim como garantindo a efetiva participação de todas as

comunidades afetadas. Estas foram as diretrizes fixadas no “Caso del Pueblo Saramaka Vs.

Surinam”, em sentença proferida em 28 de novembro de 2007 pela Comissão

Interamericana de Direitos Humanos. Importante citar que tal decisão ainda determinou a

responsabilidade do próprio Estado em realizar a consulta prévia, consoante determinação

da Convenção 169/OIT, no art. 15.2.

Destaque-se que a audiência pública, prevista pela Resolução 01/1986 do

CONAMA, é etapa necessária a todo licenciamento ambiental, objetivando expor

informações sobre o RIMA, e não se confunde com a consulta livre, prévia e informada,

que é direito fundamental dos povos e comunidades tradicionais e visa a garantir o respeito

as diferentes formas de viver. Vale destacar, ainda que a Audiência Pública ambiental não

possui caráter deliberativo, de forma que a manifestação dos povos e comunidades

tradicionais não é capaz de gerar efeitos jurídicos na deliberação do órgão ambiental, o que

a distingue da consulta prévia.

53

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

O direito à consulta prévia, livre e informada também é disposto no Pacto

Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, na Convenção Internacional de

Proteção ao Patrimônio Cultural Imaterial e Protocolo de San Salvador.

Veja-se o seguinte precedente, no qual o Relator determinou a realização

de consulta prévia, livre e informada às comunidades ribeirinhas, na implantação do Polo

Naval de Manaus:

PROCESSUAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DESAPROPRIAÇÃO.IMPLANTAÇÃO DO PÓLO NAVAL DE MANAUS/AM.COMUNIDADES RIBEIRINHAS. CONSULTA PRÉVIA.OBRIGATORIEDADE. CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CONVENÇÃOINTERNACIONAL. BRASIL. PAÍS SIGNATÁRIO. OBSERVÂNCIA.PRODUÇÃO DE PROVA PERICIAL COMPLEXA. NECESSIDADE. 1. Não foram infirmados no presente recurso os fundamentos da decisãoagravada, que deram azo à determinação de que tanto a União quanto oINCRA não realizassem nenhuma transferência de seus imóveis, aqualquer título, para o Estado do Amazonas, além da proibição de retirarou remover as comunidades ribeirinhas de suas terras durante o curso daação civil pública em trâmite no Juízo de origem. 2. Para a implantação do Pólo Naval no Estado do Amazonas, faz-senecessária a observância às normas supralegais - Convenção 169 daOIT, Convenção da Diversidade Biológica e Declaração UniversalSobre a Diversidade Cultural, da qual o País é signatário -;constitucionais - artigos 215 e seu § 1º, 216, 231 e 232 -; einfraconstitucionais referentes à proteção dos direitos inerentes àspopulações tradicionais. 3. A ausência de consulta prévia e livre e consentimento claro dascomunidades tradicionais envolvidas no processo expropriatóriotorna a implantação ilegal e ilegítima. 4. Nas informações prestadas pelo Juízo de origem constata-se que a açãocivil pública encontra-se conclusa para decisão em razão do Estado doAmazonas ter pugnado, na fase de especificação de provas, pela produçãode prova pericial complexa, para fins de realização de exame, vistoria porparte de engenheiros ambientais e antropólogos, com o fito de seremfixados quais seriam os impactos a serem sofridos pelas comunidadesribeirinhas supostamente afetadas pela implantação do Pólo Naval eainda, se haveria comunidade diretamente afetada pelo empreendimento. 5. Diante do quadro fático apresentado, afigura-se necessária a

54

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

manutenção da decisão agravada. 6. Agravo de instrumento da União não provido (AG 0031507-23.2014.4.01.0000 / AM, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL NEYBELLO, TERCEIRA TURMA, e-DJF1 p.3172 de 12/06/2015).

Na seguinte Ação Civil Pública, o Relator determinou a nulidade do

licenciamento ambiental da Usina Hidrelétrica de Jesuíta, no estado do Mato Grosso, a fim

de que se realizasse a autorização do Congresso Nacional e a consulta aos povos indígenas

da região, segundo as diretrizes da Constituição (art. 231, § 3) e a Convenção 169/OIT:

CONSTITUCIONAL E AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.INSTALAÇÃO DA USINA HIDRELÉTRICA DE PCH JESUÍTA/MT.SIGNIFICATIVA DEGRADAÇÃO DO MEIO AMBIENTE.LICENCIAMENTO AMBIENTAL REALIZADO PELO ESTADO DEMATO GROSSO. INVALIDADE. COMPETÊNCIA DO IBAMA PARAO LICENCIAMENTO DE HIDRELÉTRICA SITUADA EM RIOINTERESTADUAL E COM IMPACTO AMBIENTAL E SOCIALSOBRE TERRAS INDÍGENAS. OBRIGAÇÕES ESPECÍFICAS EMDEFESA DO MEIO AMBIENTE. MULTA COERCITIVA.[...]VII - Apelação provida, a fim de que se produzam as provas periciaisrequeridas pelo autor ministerial, julgado-se o feito, no mérito,oportunamente, com as provas postuladas nos autos. Declaro, ainda, anulidade do licenciamento ambiental da PCH Jesuíta, bem como aslicenças já expedidas pelo Estado de Mato Grosso e pela Secretaria deEstado do Meio Ambiente - SEMA/MT, determinando, por conseguinte,que a referida obra seja licenciada, ainda que tardiamente, pelo IBAMA,com a realização, inclusive, do inafastável Estudo de Impacto Ambiental edo Relatório de Impacto Ambiental (EPIA/RIMA), bem assim, para quesejam cumpridas as exigências de autorização específica do CongressoNacional e de realização de consulta aos povos indígenas atingidospelo referido empreendimento, conforme determina o art. 231, § 3º,da Constituição Federal e do art. 6º da Convenção nº. 169 daOrganização Internacional do Trabalho - OIT, sob pena de multacoercitiva de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por dia de atraso nocumprimento deste Acórdão mandamental, nos termos do art. 461, § 5º,do CPC, que deverá ser revertida ao fundo a que alude o art. 13 da Lei nº.7.347/85, sem prejuízo das sanções criminais, cabíveis na espécie (CPC,

55

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

art. 14, inciso V e respectivo parágrafo único). (AC 0009040-90.2009.4.01.3600 / MT, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZAPRUDENTE, QUINTA TURMA, e-DJF1 p.264 de 13/12/2013).

Isto posto, no caso em questão, a possibilidade de remoção da

comunidade do Maciel, ou a instalação do empreendimento sem um procedimento de

consulta adequado, além de violar os diplomas internacionais e a própria Constituição

Federal de 1988, acaba por revelar um quadro incerto quanto à possibilidade de

desaparecimento da identidade social e cultural das populações tradicionais do litoral

paranaense, bem como da relação harmoniosa mantida por estes povos com os mares e a

mata atlântica e com os ciclos da natureza.

7. DO DECRETO MUNICIPAL DE PONTAL DO PARANÁ N.º

5532/2016, QUE AUTORIZA A CONCESSÃO DE ALVARÁS PARA A

CONSTRUÇÃO DE EMPREENDIMENTOS LOCAL

Além de não ter havido a observância do direito à consulta prévia, livre e

informada dos pescadores artesanais da Comunidade do Maciel em relação aos

empreendimentos em fase de licenciamento ambiental previstos para serem instalados na

região, merece desta também o Decreto Municipal nº 5.532/2016, editado pelo Poder

Executivo de Pontal do Paraná.

O referido Decreto, que visa ao estabelecimento de condições para a

emissão de alvarás de “construção e de funcionamento para empreendimentos industriais,

comerciais, imobiliários e de prestação de serviços no interior da Zona Especial Portuária

do Município de Pontal do Paraná”, também deve ser objeto de consulta prévia, livre e

informada junto à comunidade de pescadores artesanais do Maciel. Essa obrigação se dá,

56

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

principalmente, pelo fato dele prever a possibilidade de remoção da comunidade, conforme

prevê o §1o, do artigo 3.º.

Nesse aspecto, urge salientar o artigo 16, da Convenção 169 da OIT, o

qual prevê a vedação de remoção das comunidades de suas ocupações tradicionais:

1.Com reserva do disposto nos parágrafos a seguir do presente Artigo, ospovos interessados não deverão ser transladados das terras que ocupam.2.Quando, excepcionalmente, o translado e o reassentamento desses povossejam considerados necessários, só poderão ser efetuados com oconsentimento dos mesmos, concedido livremente e com plenoconhecimento de causa. Quando não for possível obter o seuconsentimento, o translado e o reassentamento só poderão ser realizadosapós a conclusão de procedimentos adequados estabelecidos pelalegislação nacional, inclusive enquetes públicas, quando for apropriado,nas quais os povos interessados tenham a possibilidade de estarefetivamente representados.3.Sempre que for possível, esses povos deverão ter o direito de voltar asuas terras tradicionais assim que deixarem de existir as causas quemotivaram seu translado e reassentamento.4.Quando o retorno não for possível, conforme for determinado poracordo ou, na ausência de tais acordos, mediante procedimento adequado,esses povos deverão receber, em todos os casos em que for possível, terrascuja qualidade e cujo estatuto jurídico sejam pelo menos iguais aquelesdas terras que ocupavam anteriormente, e que lhes permitam cobrir suasnecessidades e garantir seu desenvolvimento futuro. Quando os povosinteressados prefiram receber indenização em dinheiro ou em bens, essaindenização deverá ser concedida com as garantias apropriadas.5.Deverão ser indenizadas plenamente as pessoas transladadas ereassentadas por qualquer perda ou dano que tenham sofrido comoconsequência do seu deslocamento.

Veja-se que o diploma internacional determina a impossibilidade de

remoção das comunidades de suas terras, salvo circunstância excepcional em que o

translado e reassentamento seja necessário, considerando, ainda, esta última hipótese,

apenas mediante consentimento das comunidades, após conhecimento livre e pleno da

causa envolvida.

Assim, passar-se-á a demonstrar a ilegalidade do Decreto n.º 5532/2016.

57

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

De acordo com o Decreto, a concessão de alvará de construção está

condicionada às exigências nele lançadas (art.1º), dentre as quais, constam a necessidade de

apresentação de Estudo de Impacto de Vizinhança – EIV que denote os efeitos

socioeconômicos oriundos da instalação e funcionamento do empreendimento,

especificamente no interior da Zona Especial Portuária (art. 2º).

Ainda, para a hipótese de existência de impactos econômicos a serem

contingenciados, o Decreto cria a possibilidade de apresentação, pelos agentes particulares

responsáveis pelo empreendimento, de projeto que indique maneira de realocação das

famílias diretamente afetadas.

Cabe ressaltar, ademais, que o Decreto em tela, ao mencionar a

possibilidade de realocação das famílias diretamente afetadas pelos empreendimentos

previstos para serem instalados na zona especial portuária, explicita apenas a existência da

comunidade de pescadores artesanais do Maciel, o que denota ter sido editado apenas para

tratar dessa situação em especial.

Deve-se observar, contudo, que o Decreto Municipal nº 5532/2016 padece

de vícios que o caracterizam como ilegal, e está em evidente desacordo com a Convenção

169 da OIT, promulgada pelo Decreto Federal n º 505/2004, razões pelas quais não tem o

condão de produzir efeitos no ordenamento jurídico brasileiro.

7.1 A desconformidade do Decreto Municipal nº 5532/2016 com aConvenção nº 169/OIT

No sistema jurídico nacional, a remoção de comunidades tradicionais, em

regra, é vedada, em decorrência do disposto no art. 16 da Convenção 169 da OIT, podendo

este ato ser realizado, excepcionalmente, apenas quando o translado e reassentamento

forem necessários.

58

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

A exceção prevista na parte final do art. 16 da Convenção deve ser

analisada em cotejo com o art. 6º desta, o qual impõe que toda vez que os entes federativos

se propuserem a instituir medidas capazes de afetar diretamente as comunidades

tradicionais, deverão, previamente, consultá-las mediante procedimentos apropriados e,

particularmente, por meio de suas instituições representativas. Ainda, determina o referido

dispositivo que as consultas realizadas para avaliação de medidas normativas “deverão ser

efetuadas com boa fé e de maneira apropriada às circunstâncias, com o objetivo de se

chegar a um acordo e conseguir o consentimento acerca das medidas propostas”.

Assim, em surgindo a necessidade de aplicação de medidas capazes de

afetar as comunidades tradicionais, não é possível a implementação de tais ações, sem que

as famílias atingidas participem desse processo de decisão.

No caso concreto, o Chefe do Poder Executivo do Município de Pontal do

Paraná editou o Decreto nº 5.532/2016, o qual evidentemente tem o condão de afetar a

Comunidade de Pescadores artesanais do Maciel. Contudo, não há conhecimento acerca de

elemento que comprove a realização de consulta prévia, livre e informada com

Comunidade, a qual é essencial à validade do ato normativo.

Desta feita, o Decreto Municipal Decreto nº 5532/2016 claramente viola

os direitos protegidos pela Convenção nº 169 da OIT, evidenciando inaceitável – e

infundado – regresso no sistema jurídico brasileiro quanto aos direitos das comunidades

tradicionais.

7.2 Da ilegalidade do Decreto Municipal nº 5532/2016 pela existênciade vícios insanáveis

O Decreto Municipal nº 5532/2016 parece de vícios insanáveis, sendo ele

inválido e incapaz de produzir efeitos jurídicos.

59

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

De modo geral, o Decreto, por tratar-se de ato advindo da Administração

Pública, pode ter seus efeitos anulados, quando eivado de vício que lhe configure como ato

ilegal. Nesse sentido, explica Maria Zanella Di Pietro que a “anulação, que alguns

preferem chamar de invalidação é o desfazimento do ato administrativo por razões de

ilegalidade”.

Sobre essa questão, dispõe a Súmula 473 do Supremo Tribunal Federal

que “A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os

tornam ilegais, porque deles não se originam direitos [...]”. Desse modo, apenas poderão

ter suas invalidades sanadas, os atos administrativos que não incorram em lesão ao interesse

público e não causem prejuízos a terceiros, como preconiza o art. 55 da Lei 9784/1999.

O art. 2º da Lei nº 4717/1965, que regula a Ação Popular, define como

espécies de vícios que maculam o ato administrativo de invalidade: a) vício de

Incompetência; b) vício de forma; c) vício de ilegalidade do objeto; d) vício de motivo; e e)

vício por desvio de finalidade. Complementando o conteúdo do dispositivo, o parágrafo

único conceitua os vícios da seguinte forma:

a) a incompetência fica caracterizada quando o ato não se incluir nasatribuições legais do agente que o praticou;b) o vício de forma consiste na omissão ou na observância incompleta ouirregular de formalidades indispensáveis à existência ou seriedade do ato;c) a ilegalidade do objeto ocorre quando o resultado do ato importa emviolação de lei, regulamento ou outro ato normativo;d) a inexistência dos motivos se verifica quando a matéria de fato ou dedireito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente oujuridicamente inadequada ao resultado obtido;e) o desvio de finalidade se verifica quando o agente pratica o ato visandoa fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra decompetência.

60

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Da análise do Decreto Municipal nº 5.532/2016, verifica-se que este

padece de vícios de forma, de ilegalidade do objeto, de motivos inadequados e de desvio de

finalidade, conforme demonstrado abaixo.

a) Vício de forma

Existe vício de forma porque o Decreto em apreço não observou o

procedimento formal exigido para sua edição. Tal ato deveria seguir as formalidades

indicadas na Convenção nº 169 da OIT, a qual possui caráter supralegal e, portanto,

prevalece sobre o conteúdo da legislação municipal. Nesse sentido, decidiu o Supremo

Tribunal Federal que:

“O status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitoshumanos subscritos pelo Brasil torna inaplicável a legislaçãoinfraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior aoato de adesão”. (RE 349703, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO,Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgadoem 03/12/2008, publ. No DJe em05-06-2009).

Não poderia, portanto, o Decreto Municipal, violar ou mesmo restringir

direitos consolidados na Convenção, sem antes obter o consentimento livre e informado da

Comunidade que por ele é atingida. Considerando que a não realização de consulta prévia,

com a obtenção de concordância da Comunidade não se trata de mera omissão com efeitos

irrelevantes, não pode o vício ser convalidado, sob pena de desrespeitar a força normativa

da Convenção e de abrir precedentes para infringência de importantes direitos humanos das

comunidades tradicionais.

b) Vício de Ilegalidade

61

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Há vício de ilegalidade porque, como mencionado, o art. 16 da

Convenção 169 da OIT veda a realocação de integrantes de comunidades tradicionais, em

regra, justamente para que a proteção que dela emana seja concretizada, inicialmente, pela

garantia do direito de que tais comunidades permaneçam no local em que se estabeleceram,

e em que foram reconhecidas pelos seus modos singulares de sobrevivência.

Considerando que o Decreto prevê que a Comunidade do Maciel

“atualmente ocupa território localizado sobre a faixa de Marinha e dentro do bioma da

mata atlântica” o Município não pode, por meio deste ato, determinar a forma de uso da

área e delegar a particulares a tarefa de planejamento de sua desocupação. Pertencendo tais

terras à União (art. 20, VII, CF) seriam esses atos de competência do ente federal, caso

houvesse motivo a fundamentar suas concretizações, o que não é o caso. Nesse sentido,

decidiu o TRF da 4ª Região:

PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃODECLARATÓRIA DE NULIDADE DE ATO ADMINISTRATIVO.ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DA EMPRESA.ABRANGÊNCIA DA DECISÃO LIMINAR. INTERVENÇÃO DOMINISTÉRIO PÚBLICO. QUESTÕES IRRELEVANTES. EMBARGOE DEMOLIÇÃO DE OBRA EM TERRENO DE MARINHA.AUSÊNCIA DE AUTORIZAÇÃO DA UNIÃO. INSUFICIÊNCIA DALICENÇA MUNICIPAL. TEORIA DA APARÊNCIA.INAPLICABILIDADE. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE. [...] Oterreno de marinha, bem de titularidade da União, somente pode serocupado e alterado com expressa autorização da Secretaria doPatrimônio da União. A prerrogativa de dispor sobre o uso da área cabesomente ao ente federal, sendo desprovidos de efeitos o ato municipalque sobre ela pretenda dispor. A atuação da municipalidade diz somentecom a aplicação das normas urbanísticas, edilícias e tributárias, a recairsobre obra autorizada pela autoridade federal competente, ausentespoderes para autorizar a edificação naquele solo específico. 8. A teoria daaparência não pode ser invocada para justificar a edificação com base emalvará expedido pelo Município, pois isso importaria em privar aAdministração federal da efetiva titularidade sobre seus bens, sem quesequer possa manifestar-se. Demais disso, a teoria da aparência,

62

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

originária do direito civil, é de aplicação discutível no direitoadministrativo, pois neste prevalece, como princípio maior, o dalegalidade estrita, a impor como condição de validade dos atosadministrativos a observância de alguns requisitos, como a prática porautoridade competente, a observância da forma prescrita em lei e alicitude do objeto. No caso, tratando-se de terreno de marinha, se sepretendesse aplicar a teoria da aparência seria necessário, no mínimo, umcomportamento, embora irregular, partindo do órgão federal competentepara regular o uso de terras da União, o que não se tem. 9. O embargo deobra irregular em terreno do domínio da União encontra-se no art. 11 daLei nº 9.636/98. A possibilidade de remoção de obra realizada sobre bemde domínio da União, sem autorização do órgão competente, temprevisão no art. 6º do Decreto-lei nº 2.398/87. Com efeito, o atoadministrativo concessivo da ocupação é discricionário e precário,podendo, a União, promover a desocupação sumária, sem que lhe sejaoponível um direito à permanência. Na mesma linha, a utilização doimóvel pelo ocupante não pode afastar-se do interesse público nemcontrariá-lo, e menos ainda opor-se ao posicionamento da proprietária doimóvel. 10. A razoabilidade empregada como parâmetro interpretativonão pode se prestar a albergar ato oposto à lei, diretamente ofensivo dalegalidade, e com isso transmutar em regular aquilo que desborda doregramento e distancia-se do atendimento das finalidades públicas. Alémdisso, o conteúdo dos autos sequer permite afirmar que a manutenção daobra irregular realizada pelo autor atenda melhor aos interesses sociais doque sua remoção, questão que se pode validamente suscitar a partir dasmanifestações dos meios de comunicação locais de Guaratuba, contráriosà obra por representar descaracterização de área de valor histórico ecultural.(APELREEX 200270000368361, MARGA INGE BARTH TESSLER,TRF4 - QUARTA TURMA, D.E. 01/03/2010.)

MANDADO DE SEGURANÇA. TERRENO DE MARINHA. BENS DAUNIÃO.AUTORIZAÇÃO DE USO PELO MUNICÍPIO.ILEGALIDADE RECONHECIDA. MULTA AFASTADA. As terras demarinha são bens da União, consoante determinação expressa no art. 20,VII, da atual Constituição Federal, decorrendo daí a ilegalidade daautorização de uso concedida pelo Município aos Impetrantes.Considerando que não se pode exigir dos impetrantes conhecimentojurídico capaz de colocar em dúvida a legalidade ou não da autorizaçãoconcedida pelo município, mormente pela presunção de legalidade de quegozam os atos administrativos, revela-se adequada a sentença que afastoua multa.

63

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

(TRF-4 - AMS: 1955 PR 2002.70.00.001955-0, Relator: EDGARDANTÔNIO LIPPMANN JÚNIOR, Data de Julgamento: 27/08/2003,QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJ 01/10/2003 PÁGINA: 534)

Assim, a edição do Decreto violou conteúdo normativo, o que torna o seu

objeto ilícito.

c) Vício de motivo

Há vício de motivo porque o Decreto apresenta como fundamentos para a

sua criação o disposto no art. 86, inc. I, alíneas “a” e “o” da Lei Orgânica, nas Leis

Municipais nº 080, de 22 de dezembro de 1997 – Código Tributário do Município e nº

1479, de 18 de dezembro de 2014.

Ocorre que o único fundamento apto a ensejar o reassentamento das

famílias integrantes de Comunidades Tradicionais é a exceção apresentada no art. 16 da

Convenção 169 da OIT, consubstanciada na comprovação de necessidade da ação, o que

não restou evidenciado.

Como pode ser verificado, em momento algum é mencionado no Decreto

a imprescindibilidade do ato, invocando o comando legal retromencionado, inexistindo

informação também de realização de consulta prévia, livre e informada da Comunidade do

Maciel, de modo que, os motivos utilizados por ele, não são suficientes para a sua edição.

d) Vício de Finalidade

Existe, ainda, vício de finalidade pois o Decreto, que aparentemente se

presta à criação de condições para a emissão de alvarás de construção e de funcionamento

para empreendimentos industriais, de maneira paralela, é utilizado como meio para remover

a Comunidade Maciel da chamada Zona Especial Portuária.

64

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello “tomar uma lei como

suporte para a prática de ato desconforme com sua finalidade não é aplicar a lei; é

desvirtuá-la; e burlar a lei sob pretexto de cumpri-la.”

Assim, embora se afirme no Decreto que deve haver preocupação com os

efeitos causados às famílias afetadas pelos empreendimentos autorizados e instalados na

Zona Especial Portuária, pretende-se, verdadeiramente, chancelar a violação dos direitos

destas, mediante retirada de seus membros do local onde vivem, para estimular a instalação

de indústrias.

Desta feita, o presente caso, o Decreto Municipal nº 5.532/2016 é nulo,

vez que maculado por vícios insanáveis, e não passíveis de convalidação. Como bem

explica Maria Sylvia Zanella Di Pietro “o vício seja sanável ou convalidável, caracteriza-

se hipótese de nulidade relativa; caso contrário, a nulidade é absoluta”.

Observa-se, portanto, que havendo violação de direitos de terceiros, em

especial tratando-se de comunidade tradicional cujos modos de criar, fazer e viver

constituem patrimônio cultural imaterial brasileiro, o Decreto não pode ser convalidado, e

tampouco pode produzir efeitos na órbita jurídica.

8. DA POSSIBILIDADE DE AJUIZAMENTO DE AÇÃO CIVIL

PÚBLICA PARA DECLARAÇÃO DE NULIDADE DE DECRETO MUNICIPAL E

DE TRANSFERÊNCIA DE BEM PÚBLICO

No caso em apreço, duas situações são capazes de ensejar o ajuizamento

de ação civil pública, sendo elas a ilegalidade do Decreto Municipal nº 5532/2016, que

autoriza a concessão de alvarás para a construção de empreendimentos local, abordado no

tópico 5, e a doação ilícita realizada pelo Município de Paranaguá à empresa Balneário

65

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Pontal do Sul, quanto à área que integralmente, na época da doação, era ocupada pela

Comunidade de Pescadores Artesanais do Maciel.

8.1 Ilegalidade do Decreto Municipal nº 5532/2016

Em outro momento neste parecer (tópico 5) realizou-se a análise do

Decreto Municipal nº 5532/2016, apontando-se que este padece de vícios de forma, de

ilegalidade do objeto, de motivos inadequados e de desvio de finalidade.

De acordo com o art. 1º, IV e VIII, da Lei nº. 7.347/1985, é possível o

ajuizamento de Ação Civil Pública, sem prejuízo da ação popular, para veicular pretensões

relacionadas a responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: “IV – a

qualquer outro interesse difuso ou coletivo” e “VIII – ao patrimônio público e social.”

O ato normativo secundário editado pelo Município de Pontal do Paraná,

nulo em razão da existência de vícios que lhe maculam a legalidade, afeta diretamente a

Comunidade de Pescadores Artesanais do Maciel, ao possibilitar a remoção de seus

integrantes do território por eles ocupado, violando direitos coletivos e patrimônio cultural.

Dessa maneira, a ilegalidade do Decreto é capaz de dar azo à propositura

de Ação Civil Pública pelo Ministério Público Estadual. Nesse sentido, colaciona-se abaixo

decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Paraná:

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – preliminares – 1.DECADÊNCIA AFASTADA – 2. CERCEAMENTO DE DEFESA –INOCORRÊNCIA – 3. RELATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICOREGULAR – 4. AÇÃO CIVIL PÚBLICA - DECRETAÇÃO DENULIDADE DE DECRETOS MUNICIPAIS - VIA ADEQUADA - 5.COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM - 6. CARÊNCIA DE AÇÃO -INOCORRÊNCIA - 7. INTERESSE DIFUSO E COLETIVOIMPRESCRITÍVEL - mérito - 8. SUPOSTO REENQUADRAMENTO -AUSÊNCIA DE CONCURSO PÚBLICO - VIOLAÇÃO AOSPRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS - 9. APLICAÇÃO DE MULTA

66

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

APENAS AO SUJEITO ATIVO DA OBRIGAÇÃO - RECURSOPARCIALMENTE PROVIDO1. Os documentos juntados tanto pelo Ministério Público, quanto peloMunicípio, mostram-se suficientes para esclarecer e apontar a verdade dosfatos, sendo desnecessária a prova testemunhal.2. O inquérito civil tem por escopo proporcionar elementos indiciários deprova a sustentar a promoção de demanda pelo Ministério Público. Talprocedimento investigatório possui natureza inquisitorial, nele não sãojulgadas controvérsias nem são aplicadas sanções, apenas são colhidasinformações, motivo pelo qual não se pauta pelos princípios da ampladefesa e do contraditório.3. É possível a declaração incidental de inconstitucionalidade, na açãocivil pública, de quaisquer leis ou atos normativos do Poder Público,desde que a controvérsia constitucional não figure como pedido, mas simcomo causa de pedir, fundamento ou simples questão prejudicial,indispensável à resolução do litígio principal, em torno da tutela dointeresse público.4. O STF confirmou liminar concedida na ADIn 3395-6, a fim desuspender, com efeitos ex tunc, qualquer interpretação do referidodispositivo constitucional que atribua à Justiça do Trabalho a apreciaçãode demandas referentes à relação de ordem estatutária ou de caráterjurídico-administrativo entre servidores e a Administração Pública.5. Verificada a violação a interesse social relevante, possível de tutela pormeio de ação civil pública, devendo ser afastada a alegação deimpossibilidade jurídica do pedido.6. A prescrição é instrumento necessário para a garantia da segurançajurídica, estabilizando-se as relações, no entanto, não incide sobre atosviciados pela nulidade, posto que estes não preenchem os requisitosessenciais de existência e validade a possibilitar a sua convalidação com otranscorrer do tempo.7. O provimento derivado vertical ocorreu via decreto municipal,mediante seleção interna a pretexto de enquadramento jurídico estatutário,inexistindo qualquer motivação razoável na transposição do regimeceletista para o estatutário em cargo de natureza diversa.8. A multa deve ser aplicada somente àquele que compete o cumprimentoda decisão, e no caso dos autos, é o Prefeito, e não o servidor.”(grifou-se – TJPR, Ap. Civ. 444967-6, Acórdão nº 31175, Castro, 4ªCâmara Cível, Relatora Regina Afonso Portes, DJPR 20/6/2008).

67

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Caberia, assim, a solicitação de deferimento dos seguintes pedidos,

liminarmente:

a) a suspensão imediata dos efeitos do Decreto 5.532/2016, pela violaçãoda Constituição Federal, ou em razão da existência de vícios de forma,motivo e finalidade, por incompatibilidade do ato com o art. 16 daConvenção 169 da OIT;b) A suspensão imediata de todas as medidas atinentes ao projeto deimplantação dos empreendimentos previstos no Decreto enquanto não forrealizada a consulta prévia, livre e informada das comunidadestradicionais da região;c) A imposição de obrigação de não fazer consistente na abstenção derealizar, a qualquer título, a transferência de imoveis de sua titularidadeem favor do município de Pontal do Sul enquanto não houver a realizaçãode consulta prévia, formal, livre e informada, nos moldes em quedetermina a Convenção 169, da OIT, aos Povos tradicionais da região;d) a imposição da obrigação de não fazer consistente em deixar de adotarmedidas em favor da implantação dos empreendimentos previstos noDecreto enquanto não houver a Consulta Prévia, Livre e Informada aospovos tradicionais afetados;

Ainda, possível seria pleitear, ao final, o julgamento de procedência da

ação com o acolhimento do pedido para, em caráter definitivo;

e) Declarar a Nulidade do Decreto 5532/2016 desde a sua edição, emrazão da existência de vícios insanáveis;f) Condenar o Município de Pontal do Sul à obrigação de não fazerconsistente no impedimento de tomar qualquer decisão administrativaacerca dos locais dos empreendimentos enquanto não houver a realizaçãoda consulta prévia, livre e informada, nos moldes do determina a C. 169da OIT;

Portanto, a ação civil pública se mostra possível instrumento jurídico

coletivo para veicular pretensão referente a Decreto Municipal nulo.

8.2 Transferência irregular de bem público

68

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

No que concerne à transferência de parte do território tradicionalmente

ocupado pela Comunidade Pesqueira, efetuada pelo Município de Paranaguá para a

empresa Balneário Pontal do Sul com Título de Domínio Pleno, igualmente será possível o

ajuizamento de ação civil pública.

É que o ato praticado pelo Município constitui violação dos princípios

administrativos da moralidade e da impessoalidade, e do princípio geral da isonomia, ante a

não realização de prévia licitação para a concessão/transferência de bem público a

particular. A respeito dessa questão, a decisão liminar proferida pela Justiça Federal do

Estado do Paraná (Autos n° 5004948-82.2014.4.04.7008/PR) é hialina em esclarecer a

aparência de nulidade da transferência, cujos fundamentos, embora tenham sido aplicados

em ação ordinária declaratória de nulidade, podem ser estendidos à Ação Civil Pública, vez

que o ato administrativo afeta direito coletivo e direito ao patrimônio cultural. Assim,

colaciona-se trecho do teor da decisão:

No que pertine à transmissão da área feita pelo Município de Paranaguá àempresa Balneária, repisando tratar-se de análise em cogniçãoperfunctória, há aparente violação a princípios e deveres norteadores dasrelações travadas na seara da administração pública.Sem descuidar que formalmente a transmissão teria sido precedida deautorização legal (lei municipal 56/1950), a sucessão de atos previamenteengendrados no intuito de propiciar a cessão à Empresa Balneáriadenotam claro descuido com os princípios da impessoalidade e daisonomia.Consoante consta dos documentos juntados aos autos, a área cedida aomunicípio de Paranaguá que foi objeto de concessão à Empresa Balneária(conforme autorização da lei municipal 56/1950), fora incorporada ao seupatrimônio antes mesmo da concretização da cessão pelo Estado doParaná através do título de domínio (evento 1, out2, p. 3).Outrossim, a autorização legislativa de cessão da área consignavaexpressamente a possibilidade de concessão a indivíduos previamentedeterminados, quais sejam, Antonio Benedito Pereira da Fonseca, João deGóes Manso Sayão Filho e Luiz Ferraz de Mesquita, ou a empresa por

69

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

eles formada (evento1, out3, p. 39), tendo posteriormente sido autorizadaa transferência à empresa Balneária, titularizada, dentre outros sócios,pelo próprio Prefeito do município de Paranaguá.Vislumbra-se, por conseguinte, possível violação à Lei Orgânica dosMunicípios paranaenses, Lei Estadual nº 64/1948 (de 21/Fev./1948), noque dispõe:Art. 51. Compete ao prefeito:V – respeitar e fazer respeitar as leis da União, do Estado e doMunicípio;XI – zelar pela conservação dos bens, edifícios, matos, bosques, jardins eoutras propriedades do Município; ...XIII – vender bens municipais, contratar serviços, obras e fornecimentos,após autorização da Câmara e mediante concorrência ou hastapública;...A respeito da exigibilidade de prévia licitação, há notícia de que em 04 dejulho de 1949 foi publicada no Diário Oficial nº 107 a Lei 212, de 23 dejunho de 1949, que dispunha justamente sobre as normas a seremadotadas nas concorrências para a execução de serviços, obras efornecimentos do Estado. Previa-se obrigatoriedade da adoção deconcorrência pública nos casos em que a despesa fosse superior a Cr$50.000,00. Trata-se do exato valor atribuído às terras cedidas, tão somentepara efeitos fiscais, conforme previsão expressa da Transcrição nº 6.624(evento 1, out1, página 110).Sem olvidar que uma possível estimativa do real valor de transferênciafaria imprescindível dilação probatória, constata-se que nos atosconstitutivos da sociedade Empresa Balneária, datados da mesma época,foram fixados vencimentos mensais para cada um dos cargos de DiretorTécnico e Diretor Presidente em Cr$ 10.000,00 (evento 1, out2, p. 8), umquinto do valor total atribuído à transferência. O capital social, por suavez, fora fixado em Cr$ 10.000.000 (dez milhões de cruzeiros, conformeevento 1, out2, p. 3), o que denota possível inexpressividade do valoratribuído à área para fins fiscais.Em que pese a Constituição Federal de 1946 não previsse expressamenteos princípios da moralidade e impessoalidade como norteadores daatuação estatal, tal qual na Carta Constitucional vigente, havia previsãoexpressa, naquele diploma, da necessária observância, pelo Presidente daRepública, da probidade administrativa (artigo 89, V) e da repressão àeliminação da concorrência (artigo 148). Também a Lei Estadual 64/48previa como crime de responsabilidade do Prefeito os atos atentatórios àprobidade administrativa (artigo 52, II).A própria existência de lei estadual exigindo a realização de concorrênciapública para operações acima de determinados valores autoriza ainferência de princípios implícitos de moralidade e impessoalidade, que,

70

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

aparentemente, podem ter sido ignorados na transferência operada. Aquestão adquire especial relevo tendo em vista que os atos forampraticados em período em que sabidamente foram perpetradas inúmerasirregularidades em termos de regularização fundiária no estado do Paraná.

A corroborar à possibilidade de propositura de Ação Civil Pública para

resolução da transferência irregular de bem público efetuada pelo Município de Paranaguá

a particular, anexa-se a este parecer a “Ação civil pública para declaração de nulidade de

doação de bem público” ajuizada pelo Ministério Público do Estado de Goiás, em 2006, em

face de Município Campinorte/GO e Rodeios Bandeirantes LTDA-ME. Na exordial,

esclareceu o autor que a Administração Pública doou bem público imóvel a uma entidade

privada, sem realização de previa licitação, “visando facilitar sua instalação no Município

Campinorte/GO”.

Desse modo, a Ação Civil Pública se mostra instrumento pertinente para

veiculação de pretensão de nulidade de ato jurídico-administrativo, podendo ser pleiteado,

em sede liminar, consoante previsto no art. 12 da lei 7.347/85, para a suspensão dos efeitos da

doação.

Ainda, poderá ser requerido quanto ao mérito, a declaração de ilegalidade

da Lei Municipal nº 1950/1950 de Pontal do Paraná, com a consequente nulidade do ato de

doação do imóvel público.

Destarte, a Ação Civil Pública se mostra um importante instrumento para

extirpar ilegalidade do Decreto Municipal nº 5532/2016, que autoriza a concessão de

alvarás para a construção de empreendimentos local, e desconstituir a doação ilícita

realizada pelo Município de Paranaguá à empresa Balneário Pontal do Sul, quanto à área

que integralmente na época da doação, era ocupada pela Comunidade de Pescadores

Artesanais do Maciel.

71

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

9. SUGESTÃO DE MEDIDAS PERTINENTES PARA A SOLUÇÃO

DO CASO

Diante de todo o exposto, e tendo sido verificado tratar-se de comunidade

de pescadores artesanais reconhecida pelo ordenamento jurídico brasileiro em todas as suas

esferas consistindo, portanto, em grupo étnico formador da identidade brasileira e

patrimônio cultural nacional e imaterial do Estado do Paraná, em primeiro momento,

sugere-se ao d. Promotor de Justiça, após contato com o Ministério Público Federal:

I) De início, o ajuizamento de Ação Civil Pública para declaração de

ilegalidade do Decreto Municipal n° 5532/2016, sugerindo-se como liminares e pedido

principal:

a) a suspensão, em sede liminar, dos efeitos do Decreto 5.532/2016, pela

violação da Constituição Federal, ou em razão da existência de vícios de

forma, motivo e finalidade, por incompatibilidade do ato com o art. 16 da

Convenção 169 da OIT;

b) a Suspensão, em sede liminar, de todas as medidas atinentes ao projeto

de implantação dos empreendimentos previstos no Decreto enquanto não

for realizada a consulta prévia, livre e informadas das comunidades

tradicionais da região;

c) a imposição, em sede liminar, de obrigação de não fazer consistente na

abstenção de realizar, a qualquer título, a transferência de imoveis de sua

titularidade em favor do município de Pontal do Sul enquanto não houver

a realização de consulta prévia, formal, livre e informada, nos moldes em

que determina a Convenção 169, da OIT, aos Povos tradicionais da região;

72

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

d) a imposição, em sede liminar, da obrigação de não fazer consistente em

deixar de adotar medidas em favor da implantação dos empreendimentos

previstos no Decreto enquanto não houver a Consulta Prévia, Livre e

Informada aos povos tradicionais afetados;

e) a declaração, ao final, da Nulidade do Decreto 5532/2016 desde a sua

edição, em razão da existência de vícios insanáveis;

f) a Condenação do Município de Pontal do Paraná à obrigação de não

fazer consistente no impedimento de tomar qualquer decisão

administrativa acerca dos locais dos empreendimentos enquanto não

houver a realização da consulta prévia, livre e informada, nos moldes do

determina a C. 169 da OIT;

II) A instauração de Procedimento Administrativo para realização de

Consulta Prévia, Livre e Informada junto à comunidade de pescadores artesanais do Maciel

a fim de, com ela, definir a melhor forma de regularização de seu território tradicional, com

base nas sugestões elencadas neste documento;

III) A realização de oficinas junto à comunidade com o objetivo de expor-

lhes os direitos que a ela se aplicam, bem como sobre formas de acessar o sistema de

justiça;

IV) A expedição de ofício à Secretaria do Patrimônio da União,

questionando acerca do cadastramento dos integrantes da comunidade do Maciel, nos

moldes do que ela havia se comprometido no ano de 2005, conforme denota-se de Ofício

n.º 2027/2005/GAB/GRPU/PR;

73

Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos HumanosNÚCLEO DE PROMOÇÃO E DEFESA DOS DIREITOS DOS POVOS E COMUNIDADES

TRADICIONAIS

Diante dos questionamentos formulados e dos dados fornecidos a esta

coordenadoria do Centro de Apoio Operacional das Promotorias são esses, os

esclarecimentos e sugestões que se entendem adequados.

Outrossim, não obstante tais questões tenham sido formuladas pela

Coordenação Regional da Bacia Litorânea, considerando que as sugestões elencadas

envolvem outras áreas de atuação além da ambiental e urbanística, remetam-se cópias de

todos os documentos produzidos sobre a matéria ao Promotor de Justiça Substituto de

Pontal do Paraná, Dr. Leone Nivaldo Gonçalves.

Curitiba, 13 de Dezembro de 2016.

Ana Paula Pina Gaio

Promotora de Justiça

Ana Carolina Brolo de Almeida

Assessora Jurídica

74