considera*que*existem*algumasparticularidadesque ... · & É a decadência disciplinária no...

8
Cesar Baldi é formado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Trabalha há cerca de 25 anos no Judiciário e ministra aulas há dez anos, geralmente de introdução ao estudo do direito, mas também de direitos humanos e antropologia jurídica. Atualmente está vinculado a um programa de pós graduação de estudos de direitos humanos e dando aulas na graduação em uma universidade privada. Considera que existem algumas particularidades que diferenciem a sociologia jurídica em América latina y el Caribe? Eu tenho tido mais contato com pessoal do Caribe por causa do Nelson MaldonadoTorres e da CPA Caribbean Philosophical Association. Na realidade, com a gestão que se iniciou em novembro de 2013, com Jane Anna Gordon, eles devem fazer um movimento de comunicação com o Brasil e outros países da América Latina para construir pontes. Eles perceberam que não conhecem, por exemplo, praticamente nada do processo do Equador e da Bolívia e que têm pouco conhecimento das questões do Brasil. Eu acho que esse intercâmbio vai começar a se tornar mais visível, mas, de qualquer forma, a gente também poderia dar um passo no sentido inverso. Ou seja, nós do Brasil trabalhando com outros autores. Por exemplo, eu citei, na palestra, a questão do Haiti, que temos traduzido, para o português, ‘Os jacobinos negros’ [autor: C.L.R James], mas a gente não conhece nada do mesmo autor. Temos ‘O capitalismo e escravidão’, do Eric Williams, mas não temos mais nenhum outro trabalho dele, um autor que é de Trinidad e Tobago. Selwynn Cudjoe fez uma compilação de vários escritos e discursos de Williams, que foi primeiroministro daquele país. Então, existem trabalhos interessantíssimos do Lewis Gordon e Africana studies, mas que não são muito conhecidos. Mesmo que a gente trabalhe com Boaventura de Sousa Santos e a epistemologia do sul, ainda existe todo um pensamento caribenho que vem sendo ignorado. Por exemplo, Paaget Henry tem um libro sobre Caliban’s Reason. A Jane Gordon vai publicar um livro agora que se chama ‘Creolizing Rousseau’, analisando a questão da vontade geral a partir do olhar de Frantz Fanon; praticamente com isso a gente pode trabalhar algumas questões de soberania, de biopolítica e também renovar os estudos jurídicos e sóciojurídicos. O Rabaka, no livro sobre apartheid epistêmico, trabalha o pensamento do Du Bois, negro americano praticamente ignorado como uns fundadores da disciplina da sociologia, a partir da ideia do Lewis Gordon da decadência disciplinária, mostrando muito bem que a gente acaba fossilizando as ciências sociais, fazendo com elas apareçam como se fossem eternas, como se tivessem sempre os mesmos autores, os mesmos cânones e consequentemente como se elas não tivessem um passado, um presente e um futuro. Desta forma, elas acabam criando um processo de, como disse Rabaka, um apartheid epistêmico.

Upload: buicong

Post on 12-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Cesar   Baldi   é   formado   em   Direito   pela   Universidade   Federal   do   Rio  Grande   do   Sul.   Trabalha   há   cerca   de   25   anos   no   Judiciário   e  ministra   aulas   há   dez  anos,   geralmente   de   introdução   ao   estudo   do   direito,   mas   também   de   direitos  humanos  e  antropologia   jurídica.  Atualmente  está  vinculado  a  um  programa  de  pós-­‐graduação   de   estudos   de   direitos   humanos   e   dando   aulas   na   graduação   em   uma  universidade  privada.    Considera  que   existem  algumas  particularidades  que  diferenciem  a   sociologia  jurídica  em  América  latina  y  el  Caribe?       Eu   tenho   tido   mais   contato   com   pessoal   do   Caribe   por   causa   do   Nelson  Maldonado-­‐Torres  e  da  CPA  -­‐    Caribbean  Philosophical  Association.  Na  realidade,  com  a   gestão   que   se   iniciou   em   novembro   de   2013,   com   Jane   Anna   Gordon,   eles   devem  fazer  um  movimento  de  comunicação  com  o  Brasil  e  outros  países  da  América  Latina  para   construir   pontes.   Eles   perceberam   que   não   conhecem,   por   exemplo,  praticamente   nada   do   processo   do   Equador   e   da   Bolívia   e   que   têm   pouco  conhecimento  das  questões  do  Brasil.  Eu  acho  que  esse  intercâmbio  vai  começar  a  se  tornar  mais  visível,  mas,  de  qualquer  forma,  a  gente  também  poderia  dar  um  passo  no  sentido  inverso.  Ou  seja,  nós  do  Brasil  trabalhando  com  outros  autores.       Por  exemplo,  eu  citei,  na  palestra,  a  questão  do  Haiti,  que  temos  traduzido,  para  o  português,  ‘Os  jacobinos  negros’  [autor:  C.L.R  James],  mas  a  gente  não  conhece  nada  do  mesmo  autor.  Temos  ‘O  capitalismo  e  escravidão’,  do  Eric  Williams,  mas  não  temos  mais   nenhum   outro   trabalho   dele,   um   autor   que   é   de   Trinidad   e   Tobago.   Selwynn  Cudjoe   fez   uma   compilação   de   vários   escritos   e   discursos   de   Williams,   que   foi  primeiro-­‐ministro  daquele  país.    Então,  existem  trabalhos  interessantíssimos  do  Lewis  Gordon  e  Africana  studies,  mas  que  não  são  muito  conhecidos.       Mesmo   que   a   gente   trabalhe   com   Boaventura   de   Sousa   Santos   e   a  epistemologia   do   sul,   ainda   existe   todo   um   pensamento   caribenho   que   vem   sendo  ignorado.   Por   exemplo,   Paaget  Henry   tem   um   libro   sobre   Caliban’s   Reason.     A   Jane  Gordon  vai  publicar  um  livro  agora  que  se  chama  ‘Creolizing  Rousseau’,  analisando  a  questão  da  vontade  geral  a  partir  do  olhar  de  Frantz  Fanon;  praticamente  com  isso  a  gente   pode   trabalhar   algumas   questões   de   soberania,   de   biopolítica   e   também    renovar  os  estudos  jurídicos  e  sócio-­‐jurídicos.       O  Rabaka,  no   livro  sobre  apartheid  epistêmico,   trabalha  o  pensamento  do  Du  Bois,  negro  americano  praticamente   ignorado  como  uns   fundadores  da  disciplina  da  sociologia,  a  partir  da  ideia  do  Lewis  Gordon  da  decadência  disciplinária,  mostrando  muito   bem   que   a   gente   acaba   fossilizando   as   ciências   sociais,   fazendo   com   elas  apareçam  como  se   fossem  eternas,  como  se  tivessem  sempre  os  mesmos  autores,  os  mesmos   cânones   e   consequentemente   como   se   elas   não   tivessem   um   passado,   um  presente  e  um  futuro.  Desta  forma,  elas  acabam  criando  um  processo  de,  como  disse  Rabaka,  um  apartheid  epistêmico.    

  É   a   decadência   disciplinária   no   vocabulário   de   Lewis   Gordon;   a   própria  disciplina  não  se  renova,  não  procura  novos   temas  e   também  não  procura  aprender  com   outros   conhecimentos,   nem   descanonizar   determinados   autores.   Eu   acho   que  temos   um   bom  material   para   trabalhar   algumas   coisas   do   Caribe,   pelo  menos   com  estes  autores.  Lewis  Gordon  acabou  de  fazer  uma  intersecção  com  pessoas  da  África  do   Sul,   trabalhando   como   professor   convidado   “Nelson   Mandela”,   trabalhando   a  questão  do   “ubuntu”,  ou  seja,  a  dignidade  da  pessoa  humana  na  concepção  africana.  Ele,  nesse  sentido,  está  fazendo  uma  conexão  com  a  questão  do  Caribe.  Temos  então  portais   muito   interessantes   que   podemos   ir   abrindo   e   verificando,   porque   as  pesquisas  não  são  independentes  de  forma  absoluta  –  cada  qual  pode  ir  pesquisando,  alargando  o  conhecimento  e  trabalhando  com  outras  coisas,  trabalhando  com  a  ideia  da   justiça   cognitiva,   com  a   ideia  de  que  a   gente   tem  outros   conhecimentos   e  outras  lógicas.      ¿Crees  que  tiene  sentido  hablar  de  Latinoamérca  y  el  caribe  y  pensarnos  desde  latinoamérica  y  el  caribe  o  necesitamos  hacer  esos  diálogos  con  otros  espacios?              A  questão  da  América  Latina  é  um  pouquinho  complicada  se  pensarmos,  por  exemplo,  que  Suriname  foi  colônia  holandesa  até  1975  e  que  uma  das  Guianas  ainda  é  francesa.  Consequentemente,  nós  temos  um  processo  de  colonização  dentro  da  própria  América  Latina.   Ou   melhor,   um   processo   inconcluso   de   descolonização,   mesmo   com   a  declaração  da  ONU  de  1960.    Apesar  da  imagem  geral  que  temos  de  que  a  América  é  ibérica,   e   que   as   colônias   eram   da   Espanha   e   Portugal,   temos   pelo  menos   uma   ex-­‐colônia  holandesa  e  uma  atual  colônia  francesa.  Eu  acho  que  aí  já  há  uma  tensão  com  essa  ideia  da  latinidade.       O  próprio  Caribe  é  também  um  fenômeno  complexo.  Se  paramos  para  pensar,  há  ainda  países  que  são  colônias:  Aruba  e  Curação  tem  um  estatuto  complicado;    Porto  Rico   é   um   Estado   associado,   mas   pode   vir   a   ser   o   quinquagésimo   primeiro   Estado  norte-­‐americano   –   qualquer   das   condições   é   complicada;     tem   as   ilhas   virgens  britânicas,  as  ilhas  virgens  americanas;  Cuba  foi  colônia  espanhola  até  1898  (mesmo  ano  da  independência  das  Filipinas,  na  Ásia);  e  outras  ilhas  foram  colônias  holandesas.       Nesse   sentido,   não   se   trata   de   procurar   uma   identidade,   mas   podemos  estabelecer  diálogos  sul-­‐sul  no  sentido  de  trabalhar  conhecimentos,  lógicas  e  práticas  que  possam  ser  distintas.  Por  exemplo,  pessoas  do  Caribe  e  de  Cuba  trabalhando  com  pessoas   de   origem   afro   do   Brasil   em   outras   lógicas;   ou   pessoas   Garífonas,   que   na  Nicarágua   e   Honduras   não   se   reconhecem   nem   como   indígenas   nem   como   negros  podem   trabalhar   outras   questões   que   a   gente   invisibilize   na   discussão   sobre   os  quilombolas.  Talvez  a  necessidade  de  os  movimentos  sociais  entrarem  em  contato  uns  com   outros,   fazendo   alianças   transacionais   e,   com   isso,   perceberem   o   que   cada   um  

reconhece  nas  suas  lutas.       Da   mesma   forma,   pra   dar   um   exemplo   bem   típico,   boa   parte   dos   países   da  colonização   ibérica   trabalham  muito  com  a  questão  do  pluralismo   jurídico   indígena,  mas   praticamente   não   existem   trabalhos   que   abordem   o   pluralismo   afro.   Qual   o  motivo  da  exclusão?  E  com  relação  a  ciganos,  por  que  a  omissão  também?  Poderiam  trabalhar  como  se  organizam  os  litígios,  como  se  estabelece  um  ordenamento  jurídico  –   ou   não   -­‐,   qual   é   a   relação   entre   a   comunidade   e   a   sociedade   envolvente   e,  consequentemente,  qual  é  o  status  de  interlegalidade  que  a  comunidade  afro  tem.     Há  muitas   questões   com   as   quais   poderíamos   entrar   em   contato   e   conhecer  dinâmicas  que  a  gente  não  tem  ideia  que  existem.  Isso  poderia  enriquecer  e  dinamizar  as  questão  de  antropologia  e  sociologia  jurídica.  Há  uma  série  de  pontos  que  eu  citei  que  não  foram  explorados  e  necessitam  tematização.    Enfocándonos   más   en   el   derecho   ¿qué   tipos   de   estúdios   te   parece   que   es  necessário  fortalecer  na  região?    

 Eu  poderia  pensar,  assim  de  sopetão,  em  algumas  questões,  por  exemplo,  em  termos  de  jurisprudência:  os  tribunais  do  Brasil  conhecem  muito  da  jurisprudência  europeia  e  norte  americana,  mas  não  conhecem  nada  da  Colômbia,  por  exemplo.  A  Colômbia  já  decidiu  questões  envolvendo  deslocamentos  internos,  ações  afirmativas,  já  trabalhou  questões   de   saúde,   enfim,   são   problemas   que   nos   afetam,   que   aparecem  constantemente  nos  tribunais  do  Brasil  e  que  não  conhecemos.  Construiu  o  conceito  de   “estado  de   coisas   inconstitucional”,   que  poderia   ressignificar   a  discussão   sobre  a  intervenção   federal,   que   acaba   não   sendo   aplicada.   Aprender   com   a   jurisprudência  dos  vizinhos  para  repensar  questões  similares.       Ao   mesmo   tempo,   poderíamos   trabalhar   com   questões   indígenas   ou   afro,   a  partir  de  decisões  do  Equador  e  da  Bolívia.  Nós  temos  pouquíssimos  casos  envolvendo  a   jurisdição   indígena   no   Supremo   Tribunal   Federal.   Por   outro   lado,     na   corte  colombiana  há  um  referencial   bem  grande,   em  especial  no   tema  da   consulta  prévia,  libre  e  informada,  mas  também  da  autodeterminação,  de  limites  estatais,  de  questões  de   conflitos   entre   “direitos   humanos”   e   jurisdição   indígena,   temas   de  interculturalidade.       Não  conhecemos  também  muito  a  jurisprudência  da  Corte  Interamericana,  que  tem  dois  julgados  sobre  comunidades  negras,  Moiwana  e  Saramaka,  e  que  têm  servido  para   a   luta   quilombola   aqui.   No   Brasil   não   se   trabalha   esse   tipo   de   jurisprudência  internacional.   Eles   têm   vários   casos   envolvendo   indígenas   e   isso   pode   servir   para  outras   questões   de   luta,   de   fortalecimento   de   alianças   transnacionais.   Poderíamos  

pensar   como   é   que   essa   jurisprudência   internacional   interfere   numa   visão   mais  alargada  dos  direitos  humanos,  ou  como  é  que  esse  tipo  de  conhecimento  é  produzido  nessas   cortes   ou   mesmo   como   é   diferente   do   conhecimento   produzido   nas   cortes  brasileiras.   Como  podemos   aprender   com  o   conhecimento  das   outras   cortes?   Flavia  Piovesan,   recentemente,   mostrou   que   a   Corte   Europeia   de   Direitos   Humanos   tem  usado,   para   os   países   do   Leste   Europeu,   a   jurisprudência   da   Corte   Interamericana  sobre  justiça  de  transição,  uma  tema  que  o  STF  resiste  em  tratar.       Tudo  isso  somente  no  âmbito  das  cortes,  mas  existem  outras  questões,  como  o  pluralismo  afro   -­‐   que  não   conhecemos   também  em  quase  nenhum  país   da  América,  exceto  no  Suriname,  país  que  tem  uma  questão  bem  específica  nesse  sentido.       Temos   dificuldade   para   trabalhar   a   questão   da   cultura   mutável,   pois  trabalhamos  com  uma  lógica  na  qual  a  cultura  fica  fossilizada,  congelada,  e  com  isso,  temos  que  imaginar  que  os  indígenas  e  determinadas  comunidades  -­‐  no  caso  do  Brasil,  os   ribeirinhos,   caiçaras   ou   da   população   de   ciganos,   que   é   bem   grande   e   que   fica  invisibilizada,  as  demandas  deles  vão  ser  eternas,  que  não  vão  ser  alteradas,  que  eles  não  reagem,  não  trazem  novas  demandas  e  não  se  apropriam  seletivamente  de  alguns  conhecimentos   que   são   veiculados   pela   sociedade   envolvente.   Ou   mesmo   que   as  decisões  de  cortes  acabam  afetando  a  luta  jurídica  das  populações  tradicionais.       Por   exemplo,     Maria   Teresa   Sierra,   do   México,   lá   do   CIESAS,   mostra   que   as  mulheres   indígenas,   muitas   vezes,   fazem   opção:   podem   trabalhar   determinadas  questões  dentro  da   justiça   indígena,  mas,   por   exemplo,   elas   vão   ver  que  pra   vencer  determinadas  resistências  culturais  podem  ter  que  pressionar  o  tribunal  pra  ver  como  é  que  a  comunidade  vai  reagir,  mesmo  que  elas  não  queiram  que  a  justiça  “oficial”  dê  a  resposta.  Elas  querem  que  a  comunidade  reaja  de  forma  diferente  e  talvez  tenha  que  tomar  tomar  determinada  decisão.  Às  vezes,  isso  é  uma  opção  de  “litígio  estratégico”,  pois   se   ela   vai   contra   a   comunidade   na   justiça   ordinária,   ela   pode   ser   sujeita   a  questões   de   gênero   ou   de   racismo   pelo   fato   de   não   ser   compreendida   por   outra  cultura,   ou   não   poder   se   expressar   em   sua   própria   língua,   ou   na   sua   própria  especificidade.   Então   há,   às   vezes,   alianças   estratégicas   das   próprias   indígenas   de  decidir   pela   justiça   indígena   ou   pela   justiça   nacional   ou   transnacional   -­‐   pela   Corte  Interamericana-­‐,  e,  ao  mesmo  tempo,  verificar  como  isso  se  resolve  isso  em  termos  de  comunidade.       Acho   que   tem   uma   série   de   coisas   que   a   gente   poderia   abrir   em   relação   ao  Direito   sobre   esse   ponto,   estou   tratando   aqui   somente   em   termos   de   tribunais.  Poderíamos  também  trabalhar  com  questões  práticas:  por  exemplo,  tivemos  agora  no  final  de  semana  entre  1º  e  4  de  novembro  de  2013,  a  oficina    da  Universidade  Popular  dos  Movimentos  Sociais,  onde  entraram  em  contato  e  trocas  um  grupo  de  quarenta  e  cinco  pessoas,  para  saber  quais  eram  as  demandas,  quais  as  diferenças  e  o  que  cada  movimento   aprendia   com   outro.   A   universidade   também   tem   que   começar   a   fazer  isso,  no  sentido  de  parar  de  trabalhar  com  eventos  críticos  para  os  quais  ninguém  das  comunidades  é  convidado.       Como  disse  minha  querida  Catherine  Walsh,  deixar  de  falar  ‘sobre’  e  começar  a  falar  de,  desde  e  com  as  comunidades  e,  consequentemente,  não  trabalhar  mais  com  a    distinção   sujeito-­‐objeto   e   começar   a   trabalhar   com   a   noção   de   intersubjetividade.  

Verificar  como  esses  conhecimentos  são  retrabalhados.     Na  questão  dos  direitos  humanos,  a  gente  continua  trabalhando  muito  com  os  sujeitos   de   direito,  mas   talvez   tivéssemos   que   ir   além:   trabalhar   com  o   conceito   de  “sujeito   de   conhecimento”.  O   discurso  do   “sujeito   de  direito”   continua   sendo,   ainda,  um  “discurso  imperial”,  que  coloca  uma  hierarquia.    A  concepção  do  sujeito  de  direito,  dentro  de  um  patamar  estatal,  às  vezes  estabelece  uma  relação  de  verticalidade,  que  não   reconhece   a   demanda,   o   conhecimento   ou   mesmo   a   juridicidade   daqueles  movimentos.   Consequentemente,   imagina   que   não   está   aprendendo   e   sim,   que   está  ensinando.     O  processo  pedagógico  entre  os  movimentos,  a  universidades  e  as  instituições  é  um   processo   de   horizontalidade,   de   trocas   de   conhecimento   ou   de  interconhecimentos.       Então,  as  universidades  jurídicas  poderiam  fazer  esse  movimento  de  “extensão  ao  contrário”  (  como  diz  Boaventura  de  Sousa  Santos,  no  livro  sobre  a  universidade  do  século  XXI)  –  trazer  para  as  mesas  de  debates  também  os  movimento  sociais,    ao  invés  de   ficar   imaginando   que   estão   indo   fazer   “facilitação”   e   ensinando   como   os  movimentos  devem  litigar.       As   universidades   tem   que   começar   a   aprender   com   determinadas   coisas   e,  dentro  de  outras  lógicas,  e  também  que  as  comunidades  vão  falar  ou  não  e  com  qual  linguagem.   Sempre   imaginamos   que   vamos   trabalhar   com   outras   culturas   sendo  completamente  diferentes,   por   exemplo   o   Islã   ou   a   cultura   indígena,   e   vimos,   nessa  experiência   da   UPMS   no   fim   de   semana,   que   estávamos   todos   falando   português   e  dentro   do   mesmo   país,   mas   que   era   preciso   um   exercício   de   tradução   do  conhecimento  entre  os  próprios  movimentos.   Isso   talvez   tenhamos  que  desenvolver  melhor,  a  questão  das  traduções  dos  movimentos,  das  práticas  e  dos  conhecimentos.  E  trazer   isso   para   a   própria   “universidade”   se   reinventar,   agora   talvez   como  “pluriversidade”.      Nos  podarias  contar  um  pouco  sobre  la  questión  de  la  imaginação  jurídica.    

 (BethV)  Na  realidade,  a  questão  da  imaginação  jurídica,  que  enfoquei,  em  parte  na  minha  fala,  é  um  tema  que  não  desenvolvi  completamente.  Mas  há  um  livro  clássico  chamado  ‘A  imaginação   sociológica’,   do  Wright  Mills,   e,   com   isso,   fui   trabalhando  na  questão  do  reinventar  determinadas  questões.     O   pessoal   da   Geografia   renovou   bastante   o   conhecimento   geográfico   a   partir  dos   mapas,   trabalhando   não   só   os   mapas   normais,   mas   também   os   mapas   com  representações,   simbolismos   e   escalas;   mostrando   que   as   escalas   vão   mudando   os  

fenômenos,   que   as   representações   vão   alterando   determinadas   situações   e   que   os  simbolismos  vão  alterando  os  objetos,  sujeitos  e  nosso  conhecimento.  O  famoso  mapa  de  Al  Idrisi,  com  o  sul  virado  para  o  norte,  é  apenas  um  dos  famosos  exemplos.       Com   isso,   a   Geografia   se   renovou   bastante   e   começou   a   trabalhar   com  outro  enfoque   na   espacialidade,   com   a   questão   da   negritude,   de   como   as   identidades   são  construídas   localmente,   como   determinados   movimentos   LGBT   estão   concentrados  em  determinados   lugares,  porque  escolheram  determinados   lugares  e   como  é  que  a  territorialidade   foi   retrabalhada.   Em   suma,   a   própria   Geografia,   trabalhando   com   a  questão   de   mapas   e   da   territorialidade,   reinventou   seu   próprio   objeto   e  conhecimento.       No  entanto,  o  Direito  tem  tido  uma  dificuldade  grande  de  repensar  os  próprios  instrumentos.   Ele   continua   trabalhando   com   a   lei   como   se   fosse   só   um   papel.  Poderíamos   trabalhar   a   lei   de   outras   formas,   como   um   texto   aberto,   como  interpretação,  como  conflito,  como  mapa,  como  desleitura,  etc.       A  questão  dos  direitos  humanos  é   algo  que  a   gente   tem  como   tranquilo,  mas    não   se   percebem   visões   antagônica   sobre   os   mesmos   direitos   humanos,   com  linguagens   diferentes   e   que   isso   necessita   que   se   façam   determinadas   traduções.     Essa   questão   da   imaginação   jurídica   tem   a   ver   com   essa   possibilidade   de  ampliar  esse  conhecimento  a  partir  da  renovação  de  alguns  métodos,  perspectivas  que  não   vem   sendo   usadas.   Eu   cito   o   exemplo   da   questão   do   sentido   da   visão.   A   gente  poderia  dar  novos  sentidos  para  os  sentidos  -­‐  e  com  isso  ter  novos  sentidos  para  os  diretos   humanos,   utilizando   justamente   a   polissemia   da   palavra   “sentido”.   Em  significado   do   tacto,   visão,   paladar,   olfato   e   audição   (   os   cinco   “sentidos”   )   e   no  significado  do  sentido  do  “sentimento”.       Tem-­‐se  trabalhado,  ainda,  numa  lógica  do  direito  muito  positivista,  como  algo  que  é  racional,  mas  não  ligado  à  questão  do  sentimento.  Quando  trato  desse  tema  em  aulas,   dou   o   exemplo   do   Corão,   texto   trabalhado   por  meio   da   lógica   de   recitação   (  Corão,  como  nos  alerta  Talal  Asad,  significa  “recitação”).  Isto  é,  um  texto  que  é  antigo  vai  sendo  recitado  todos  os  dias  e,  assim,  vai  adquirindo  novos  significados  com  novas  interpretações   que   não   passam,   necessariamente,   pela   leitura,   mas   sim   pela  musicalidade   e   oralidade.   Com   isso,   podem   haver   entendimentos   totalmente  diferentes   de   um   texto   escrito   no   século   sete   e   que   está   sendo   reelaborado   pela  reiteração.   Consequentemente,   um  modo   de   produção   pela   oralidade   trata   de   uma  conexão   muito   diferente   entre   oralidade   e   escritura,   além   da   questão   da   visão   -­‐  porque  o  texto  escrito  é  um  texto  visto,  ele  é  recitado  porque  ele  é  visto,-­‐  que  produz  diversos  sentidos  simultaneamente  e  novas  organicidades.       Um  outro  exemplo  que  eu  dou  é  o  do  Alain  Corbin,  por  causa  dos  perfumes.  Os  perfumes   femininos   trabalharam  muito  com  a  questão  da  “animalidade”  (  odores  de  animais)  até  o  século  XVIII,  como  almíscar  ou  âmbar;  a  partir  do  século  XIX,  começou-­‐se   a   trabalhar   com   perfumes   florais   -­‐   como   água   de   rosa,   mais   primaveril.   O   que  parece  ser  somente  uma  mudança  de  cheiros  é  uma  mudança  também  de  concepção  em   relação   à   forma   sexual:   qual   é   o   apelo   sexual   que   as   mulheres   têm;   como   é   a  questão  da  feminilidade  e  masculinidade  /  virilidade.  Isso  tem  relação  com  a  questão  dos  direitos  humanos,  isso  estabelece  os  papéis  sociais  de  gênero  e  consequentemente  

a  formação  do  mundo  privado.  Onde  é  que  chega  o  espaço  olfativo?  Dentro  de  casa,  do  espaço   íntimo.   Assim   cria-­‐se   uma   noção   de   intimidade   diferente.   Podemos   pensar  também   que   o   espaço   da   intimidade   no   espaço   colonial   também   foi   o   espaço   onde  estavam   as   questões   de   raça,   sexo   e   as   questões   coloniais.   E   daí   a   dificuldade   de  tematizar  estes   temas   “privados”.  Há  aí  um  processo  de  produção  de   sentidos   junto  com  um  processo  da  colonialidade.  Então  quando  trabalho  a  questão  de  “descolonizar  os   sentidos”   está  nessa  noção  de  que  esse   sentido   foi   colocado  no  espaço  privado  e  eventualmente   no   espaço   público   de   tal   forma   que   a   eles   foram   definidos   alguns  papéis.       Dessa   forma,   quando   falo  da  questão  da   imaginação   jurídica,   é  no   sentido  de  procurar   dar   novas   aberturas   pra   essas   questões   e  mostrar   como   um   trabalho   que  acesse  outras  lógicas  e  outros  sentidos  pode  gerar  novos  significados  pra  expressões  que   aparentemente   são   canônicas,   clássicas   ou   que   a   gente   não   verifica   de   outra  perspectiva.  A  gente  tem,  literalmente,  “visão”  sobre  coisas  que  não  necessariamente  envolvem  visão;  talvez  incluam  olfato,  paladar;  e  isso  não  passa  necessariamente  por  interpretação  direta.    En   la  charla  hablabas  de  abrir  algunos  portales,  de  retomar  autores  que  están  olvidados,   algunos   de   los   que   ya   has   mencionado.   ¿Agregarías   alguna   otra  ‘puerta’  que  es  importante  volver  a  abrir?         Sim,  eu  inclusive  citei  na  palestra  o  Fausto  Reinaga,  que  trabalhou,  no  início  do  século  XX,  a  questão  da  “revolução  índia”,  fez  um  projeto  do  partido  índio  e  escreveu  um   livro   chamado   ‘Podridumbre   de   pensamento   europeu’.   Ele   passou   por   uma  alteração  do  pensamento:  foi  marxista,  indianista;  trabalhou  as  lógicas  do  marxismo  e  indianismo,   foi  para  Europa,  voltou  para  a  Bolívia  e  com  isso  ele   foi  reconfigurando.    Esteban  Ticona  Alejo  acabou  de  defender  uma  tese  sobre  o  pensamento  deste  autor,  na  Universidad  Andina  Simón  Bolívar,  em  Quito.       A  gente  trabalha  a  questão  do  marxismo  a  partir  de  alguns  clássicos  como  Marx  e   Engels   e,   no   máximo,   Mariátegui.   Mas   talvez   tenhamos   que   trabalhar   Zavaleta  Mercado,   Fausto  Reinaga,  Bolívar  Echeverría   (do  Equador)...   Dentro  do  pensamento  afro,  citei  na  conferência  o  Zapata  Olivella,  que  é  um  colombiano  que  poucas  pessoas  conhecem.   Ele   tem   um   livro   chamado   ‘A   revolução   dos   genes’,   além   de   ter   escrito  novelas  como  ‘Changó,  el  gran  putas’.  Ele  foi  trabalhando  questões  coloniais,  questões  do   conhecimento   afro,   a   partir   disso.   Ele   fez   uma   autobiografia   que   se   chama  ‘Levantate   mulato’   onde   mostra   como   foi   tendo   a   percepção   da   raça   e   da   própria  sociedade.   Nesse   ponto,   poderíamos   considerar,   e   hoje   estamos   trabalhando   nesse  sentido,  que  ele  começou  a  fazer  um  trabalho  “decolonial”  antes  de  essa  palavra  estar  sendo  usada.  Catherine  Walsh  vem  insistindo  nesse  ponto,  e,  recentemente,  Santiago  Arboleda   Quiñonez   defendeu   uma   tese,   também   na     Universidad   Andina   Simón  Bolívar,   em   que   analisa   vários   pensadores/as   afrocolombianos   que   são   ignorad@s  pela  universidade.       Em   suma,   temos  muito  material   na   própria  América   Latina.   Eu   dei   exemplos  

também  do  Brasil.  Há  a  lei  que  obriga  o  ensino  da  história  da  África  e  da  história  afro  brasileira,  mas,   por   outro   lado,   não   temos   incorporado   nos   estudos   da   sociologia   o  pensamento  de  Abdias  do  Nascimento,  que  trabalhou  com  a  questão  do  quilombismo.  Não   temos   incorporado   Lélia   Gonzalez,     que   trabalhava   a   questão   da  interseccionalidade   de   raça   e     gênero,   do   conhecimento   das  mulheres,   da   diáspora  africana  a  partir  de  uma  noção  que  chamava  de  “amefricanidade”.  Há  ainda  o  Guerrero  Ramos,   que   somente   é   utilizado   nos   cursos   de   Administração,   ignorando   que   é   um  pensador   negro   que   abordou   toda   a   questão   do   privilégio   da   branquitude.   Acho,  então,  que,  dentro  do  próprio  pensamento   social  brasileiro,  há  vários  autores  negro  que  podem  ser  retrabalhados  e  que  damos  pouca  atenção.  Pensadores   indígenas,  no  Brasil,  ainda  não  são  reconhecidos  pela  academia.  E  isso  já  deveria  ter  sido  alterado.     Na  América  Latina,  também  temos  Quintín  Lame,  que  escreve  “como  um  índio  sobrevivia   na   selva   colombiana”,   que   é   um   texto   pouco   conhecido   mesmo   na  Colômbia.   Temos   muitas   possibilidades   de   trabalhar   com   outras   lógicas   de   abrir  novos  portais.  Dei  como  exemplo  na  palestra  também  autores  como  Ottobah  Cugoano,  Olaudah   Equiano,   Soujourner   Truth   (   que   criticava   o   feminismo   branco,   a   partir   da  ótica   negra),   além   de   ‘Memórias   de   um   cimarrón”,   do   Miguel   Barnet   (   que   tem  tradução   ao   português).   Constantemente   pensamos   de   forma   pejorativa   essas  memorias   e   escritos,   vemos   como   se   fossem   menores.   Mas   eles   agregam  conhecimento  de  outras  racionalidades,  outras   lógicas,  outras  cosmogonias,  que  não  vêm  sendo  desenvolvidas.       Temos  que  começar  a  aprender  com  essas  questões  e  textos  que  são  ignorados,  silenciados,   invisibilizados.   Têm   muito   material   pra   ir   descolonizando   o  conhecimento.  Em  nosso  próprio  trabalho,  em  temos  de  prática  quanto  em  termos  de  teoria.  Eu  acho  que  temos  muito  material,  mas  às  vezes  acabamos  não  conhecendo  ou  esquecendo.      Muchas  gracias  por  tu  aporte  Cesar.    Entrevista   realizada  el   día  9  de  Noviembre  de  2013  para   la  Red  de   Sociología  Jurídica  en  América  Latina  y  el  Caribe.