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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS Otávio Vasconcelos Vieira Conselhos aos príncipes novos em O Príncipe de Maquiavel Campinas, SP 2019

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Otávio Vasconcelos Vieira

Conselhos aos príncipes novos em O Príncipe de Maquiavel

Campinas, SP 2019

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Otávio Vasconcelos Vieira

Conselhos aos príncipes novos em O Príncipe de Maquiavel

Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Filosofia

Orientadora: Professora Dra. Yara Adario Frateschi

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO OTÁVIO VASCONCELOS VIEIRA, E ORIENTADA PELO PROFA. DRA. YARA ADARIO FRATESCHI

Campinas, SP 2019

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 20/03/2019, considerou o candidato Otávio Vasconcelos Vieira aprovado. Profa. Dra. Yara Adario Frateschi (Orientadora)

Prof. Dr. Helton Machado Adverse

Prof. Dr. Rafael Rodrigues Garcia

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

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Dedicatória

A Oneida, Clóvis, Cristiano e Bárbara

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Agradecimentos Este trabalho não teria sido possível sem o suporte de pessoas que gostaria aqui de mencionar e imensamente agradecer. Professora Yara Frateschi, pelo excelente trabalho de orientação, preparo intelectual e profissional, dedicação e atenção, ensinamentos e correções, além do carinho e paciência. Os professores Rafael Garcia, Monique Hulshof, Márcio Damin e Helton Adverse, pelo tempo, atenção e cuidados dedicados e pelas observações e sugestões. Ao professor Hélio Alexandre da Silva por se disponibilizar a participar da banca de defesa e contribuir com uma leitura atenta. Ao Grupo de Filosofia Política, coordenado pela professora Yara Frateschi, que acompanharam e ajudaram intensamente no processo de pesquisa e composição do texto: Laissa Ferreira (esta surpresa incrível e inimaginável no meu caminho), Ana Cláudia Lopes Silveira: Anita (literalmente tendo lido desde meu primeiro texto na graduação, sou eternamente grato), Renata Romulo, Leonardo Renno, Paulo Bodziak, Nathália Rodrigues, Johnatas Ximenes, Igor Nunes, Nádia Junqueira e Klaus Ramalho. Também a três companheiros de estudos, que me apontaram questões importantes: Vinícius Gonzaga, Fabien Lins e Jéssica Rodrigues. Agradeço também a toda estrutura provida pelo IFCH, seus funcionários e professores. Em especial agradeço a Daniela Grigolletto e Sônia Miranda. Agradeço a Ari, Fatinha e Stela por aliviarem os golpes da Fortuna e não me deixarem morrer aos pés do inimigo. Também Cândida, pelos cuidados. Tio Nelsinho pelo interesse e pelas leituras. Ao CNPq (131826/2017-4), por dar o suporte financeiro necessário para a pesquisa. Por fim, e não menos importante, à minha família: Oneida, Clóvis, Bárbara, Silvana e meu grande amor, Cristiano.

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– Agora reconheço-a – disse K. – Eis a venda nos olhos e aqui está a balança. Mas não tem asas nos calcanhares e não está prestes a começar a correr? – Sim – retorquiu o pintor –, é por exigência que sou obrigado a pintá-la assim; deverá representar, ao mesmo tempo, a Justiça e a Vitória. – Má combinação – disse K. sorrindo –, a Justiça deve permanecer imóvel, de outro modo, a balança põe-se a oscilar, e deixa de ser possível pesar equitativamente. – Fiz como o meu cliente indicou – afirmou o pintor. Franz Kafka, O Processo Sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros. É feia. Mas é realmente uma flor. Carlos Drummond de Andrade, A Flor e a Náusea

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Resumo

A presente dissertação de mestrado pretende analisar O Príncipe de Maquiavel (1513, postumamente

publicado 1532). Questionamo-nos sobre o príncipe novo e no que consiste sua inovação política.

Maquiavel nos diz que seu opúsculo busca discutir o que é, de que espécies são e como se adquire,

mantem e perde o principado. Apresenta, portanto, um tratado político, especificamente, um sobre os

principados. Ele adiciona que este livro deve ser de interesse de um príncipe e, em especial, do

interesse de um príncipe novo. Investigamos em que medida um tratado político se faz do interesse

de um agente político e daquele do príncipe novo em especial. Pretendemos analisar O Príncipe

enquanto um livro de aconselhamento aos novos príncipes e explorar algumas consequências desta

abordagem. Mostramos que, na medida em que almeja o aconselhamento útil, enfatizando o preceito

retórico da verdade efetiva, para abordar o stato do príncipe, Maquiavel pondera sobre as dificuldades

e necessidades impostas ao governante do principado. Nesta investigação, Maquiavel enfatiza e

estrutura suas observações sobre a inovação política. Isto porque a inovação política é o fator que

mais profundamente altera as dificuldades e necessidades impostas aos governantes. Portanto, fator

sobre o qual mais é necessário o aconselhamento político. Nosso objetivo é entender esta abordagem

dada à inovação política por Maquiavel – enquanto dificuldade e necessidade sobre a qual se pode

aconselhar.

Palavras-chave: Maquiavel, O Príncipe, stato, necessidade, dificuldade, príncipe novo, inovação,

aconselhamento

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Abstract

This dissertation aims at analyzing Machiavelli’s The Prince (c.1513, published 1532). We enquire

about the new prince and his political innovation. Machiavelli writes that his book aims at discussing

what is, which species there are, how to acquire, to maintain and how one loses one’s principality.

Thus, he presents a political treatise, specifically, one about principalities. He adds that the book

should be of interest to a prince and, specially, of interest to a new prince. We investigate how a

political treatise may be of interest to a political agent and to a new prince, specifically. We intend to

analyze The Prince as an advice book to new princes and explore some consequences of this

approach. We show that, inasmuch as he purposes at useful advice, focusing on effective truth, in

order to reason about the stato, Machiavelli ponders about the difficulties and necessities which are

imposed to princes. Within this investigation, he underlines political innovation and organizes his

book according to this problem. He does so, because political innovation is the factor which most

profoundly influences the difficulties and necessities imposed to rulers; hence, is the factor over

which political advice is most necessary. Our aim is to understand the approach given by Machiavelli

to political innovation – as difficulties and necessities over which it is possible to give advice.

Keywords: Machiavelli, The Prince, stato, necessities, difficulties, new prince, innovation, advice

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Sumário

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 11

CAPÍTULO 1: CONSELHOS AOS PRÍNCIPES: STATO E VERITÀ EFFETTUALLE ..................... 18

1. 1. PRINCIPADO E STATO .................................................................................................................. 22 1.1.1. STATI SÃO REPÚBLICAS OU PRINCIPADOS ............................................................................... 22 1.1.2. O STATO ENTRE AÇÃO E ORDENAÇÃO POLÍTICAS .................................................................... 33 1.2. A CONDUTA DOS PRÍNCIPES E SEUS CONSELHEIROS ................................................................... 57 1.2.1. ARTE DO STATO E ARTE DO CONSELHO: RETÓRICA, ESPELHOS DOS PRÍNCIPES E VERITÀ EFFETTUALLE .................................................................................................................................... 57 1.2.2 A TECEDURA DE O PRÍNCIPE: O EXAME DOS CONTEXTOS PELA DELIMITAÇÃO DAS DIFICULDADES E NECESSIDADES .................................................................................................................................. 74

CAPÍTULO 2: INOVAÇÃO POLÍTICA ENQUANTO DIFICULDADE E NECESSIDADE ............. 85

2.1. A INOVAÇÃO NOS PRINCIPADOS HEREDITÁRIOS ........................................................................... 94 2.2. A INOVAÇÃO DA CONQUISTA ....................................................................................................... 99 2.2.1. CONQUISTA E COSTUME ........................................................................................................... 99 2.2.2. A PRUDÊNCIA DOS CONQUISTADORES ...................................................................................... 105 2.2.3. A FLEXIBILIZAÇÃO DA NOÇÃO DE PRUDÊNCIA ......................................................................... 111

CAPÍTULO 3: FUNDAÇÃO DO STATO, PASSAGEM DE HOMEM PRIVADO A PRÍNCIPE E A RELAÇÃO ENTRE VIRTÙ E FORTUNA ...................................................................................... 117

3.1. A PASSAGEM DE HOMEM PRIVADO A PRÍNCIPE OU A FUNDAÇÃO DO STATO .................................. 118 3.2. FUNDAÇÃO E FORTUNA .............................................................................................................. 123 3.3. A VIRTÙ DOS FUNDADORES ........................................................................................................ 140

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................... 155

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................. 158

ANEXO: DI FORTUNA = DA FORTUNA ..................................................................................... 161

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Introdução

Na carta a Francesco Vettori de 10 de Dezembro de 1513, Maquiavel anuncia a seu amigo

que escrevia “um opúsculo De principatibus, no qual me aprofundo o quanto posso nas cogitações

sobre este sujeito, discutindo o que é principado, de quais espécies são, como se adquirem, se mantêm

e por que se perdem [...] um príncipe, e especialmente um príncipe novo, deve aceitá-lo”1. A presente

dissertação de mestrado pretende analisar o opúsculo do qual fala Maquiavel a Vettori, O Príncipe

(1513, postumamente publicado 1532), guiada por um questionamento que pode ser identificado nas

palavras do autor na carta. Questionamo-nos sobre o príncipe novo e no que consiste sua inovação

política. Maquiavel nos diz que seu opúsculo busca discutir o que é, de que espécies são e como se

adquire, mantem e perde o principado. Que apresenta, portanto, um tratado político, especificamente,

um sobre os principados. Ele adiciona, entretanto, que este livro deve ser de interesse de um príncipe

e, em especial, do interesse de um príncipe novo. Isto nos leva a questionar em que medida um tratado

político se faz do interesse de um agente político e daquele do príncipe novo em especial. A presente

dissertação pretende analisar O Príncipe enquanto um livro de aconselhamento aos novos príncipes

e explorar algumas consequências desta abordagem. Mostramos que, na medida em que almeja o

aconselhamento útil, enfatizando o preceito retórico da verdade efetiva, para abordar o stato do

príncipe, Maquiavel busca ponderar as dificuldades e necessidades impostas aos príncipes. Nesta

investigação, Maquiavel enfatiza e estrutura suas observações em torno da inovação política,

direcionando-se especialmente aos príncipes novos e às ações políticas da conquista do principado e

da passagem de homem privado a príncipe. Isto porque a inovação política é o fator que mais

profundamente altera as dificuldades e necessidades impostas aos governantes; portanto, fator sobre

o qual mais é necessário o aconselhamento político. Nosso objetivo é entender esta abordagem dada

à inovação política por Maquiavel – enquanto dificuldade e necessidade sobre a qual se pode

aconselhar.

Para tanto, no primeiro capítulo da dissertação (1.), partindo centralmente do primeiro capítulo

e início do segundo capítulo de O Príncipe, bem como de uma visão panorâmica da obra

(especialmente a sequência de capítulos II-VII e o XV), perguntamo-nos pelas vias de investigação

de Maquiavel, bem como o conjunto de perguntas em relação ao governo dos principados levantadas

por ele. Buscaremos examinar como Maquiavel introduz a seu leitor o tema tratado. Apesar do

começo conciso e abrupto do livro, se examinarmos meticulosamente os elementos e as asserções

apresentadas neste começo, bem como a forma como se relacionam, poderemos trazer à luz algumas

características da proposta de O Príncipe que nos permitirão, posteriormente, examinar a questão da

1 MACHIAVELLI, Niccolo. De principatibus = Le prince. Coautoria de Jean-Louis Fournel, Jean-Claude Zancarini. Paris: Presses Universitaires de France, 2000, p.530. Minha tradução.

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inovação. São dois os elementos fundamentais que buscaremos destacar nesta introdução: por um

lado, a noção de principado enquanto stato e a noção de stato como campo do exercício da ação

política; por outro, o direcionamento de Maquiavel à ação e o conselho como via para tanto.

No que concerne às noções de principado e stato, bem como ao modo pelo qual estas noções

estão relacionadas em O Príncipe (1.1), buscaremos salientar que elas parecem ser o objeto central

de investigação do autor, mas que este objeto precisa ser explicitado com cuidado. O Príncipe é um

tratado político e a experiência política que examina é o principado. O principado, diz Maquiavel no

primeiro capítulo de O Príncipe, é um stato. Assim, pode-se concluir, O Príncipe é, enquanto tratado

político, uma obra sobre o stato. No entanto, a noção de stato e, consequentemente, de principado

enquanto um stato, assume características muito peculiares e que não podem ser identificadas nem

com uma noção clássica de forma de governo, nem com uma noção moderna de Estado. No que

concerne à tradição clássica das formas de governo (1.1.1), pretendemos examinar como uma divisão

bipartida como a de Maquiavel na abertura do primeiro capítulo de O Príncipe - todos os stati são

repúblicas ou principados - soaria abrupta ou como ataque ao senso comum do pensamento político

contemporâneo do autor e a seu próprio pensamento, se consideramos o conteúdo do primeiro livro

dos Discursos e alguns momentos importantes de O Príncipe. Depois (1.1.2), buscaremos mostrar

que Maquiavel se refere na abertura de O Príncipe a uma das noções mais controversas de sua obra.

A concepção de Estado moderno não pode auxiliar-nos com segurança para entender o que Maquiavel

quer dizer por stato especificamente em O Príncipe. Não pretendemos afirmar que Maquiavel recebe

passivamente a concepção política de status de seus antecessores. De qualquer modo, começamos

por mostrar que em Maquiavel este termo, assim como na Idade Média, está envolto em um jogo

complexo de sentidos. Deve-se observar que o humanismo cívico, de forma geral, e Maquiavel, em

específico, têm suas particularidades quanto a noção de stato. Dedicaremos nosso esforço em delinear

tais particularidades na obra de Maquiavel, mostrando que o conceito de stato tem um sentido

complexo que sempre envolve a agência política e perpassa as noções de ordenação política e

exercício efetivo do poder, sem se reduzir a elas.

No que concerne ao direcionamento de Maquiavel à ação e ao conselho como via para tanto

(1.2), notamos que as observações do autor se direcionam para os que querem ou podem agir. Em O

Príncipe, esta preocupação e direcionamento à ação é flagrante na escolha de Maquiavel pelo gênero

literário dos Espelhos dos Príncipes. O conselho é a via pela qual O Príncipe direciona-se à ação e

pela qual Maquiavel entra em contato com seu leitor. Nosso esforço, portanto, será o de explicitar em

que medida a investigação sobre o stato no tratado de Maquiavel se expressa e opera pelo

aconselhamento. Mostramos, primeiramente (1.2.1), que a escolha pelo gênero dos livros de

aconselhamento e pelo conselho como forma de expressão de sua investigação alinham Maquiavel à

tradição retórica, mais especificamente ao gênero deliberativo de retórica. Buscaremos mostrar que a

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especial preocupação com a escolha do estilo utilizado (os Espelhos dos Príncipes) e as vias pelas

quais Maquiavel entra em disputa com a tradição são fundamentalmente retóricas. Neste sentido,

podemos refletir sobre alguns aspectos quanto aos procedimentos teóricos comumente salientados e

discutidos na obra de Maquiavel, buscando concatená-los e explicitá-los considerando o texto

maquiaveliano como essencialmente retórico: refletimos sobre o realismo político geralmente

atribuído aos conselhos de Maquiavel em O Príncipe e sobre a noção de verdade efetiva por ele

evocada no livro como desdobramentos de uma disputa que se dá nos termos da retórica.

Investigamos, então, (1.2.2.) de que maneira o autor faz uso e dá especial ênfase ao preceito

retórico da verdade efetiva, o exame cuidadoso dos contextos particulares e sua adequação para o

aconselhamento útil. Notamos que o autor entende sua empresa metaforicamente nos termos da

tecelagem. A alegoria do tear diz respeito à relação entre o que foi apresentado no primeiro capítulo

de O Príncipe com a questão estipulada no segundo. Em face à extensa gama de possíveis condutas

na busca pela manutenção do principado, ao examiná-las, Maquiavel tem sempre em mente que uma

ação só pode ser avaliada se consideramos o contexto político no qual se desenrola, isto é, quando se

considera suas condições singulares. Maquiavel aborda estes contextos sob o prisma das dificuldades

e necessidades por eles impostas. Esta é uma frutífera estratégia para o aconselhamento útil, pois as

dificuldades e as necessidades abarcam e relacionam o contexto singular e a ação efetiva. Por um

lado, são dificuldades e necessidades que se impõem ao sujeito e explicitá-las implica um

entendimento apurado do contexto nas quais aparecem. Por outro lado, são entendidas enquanto

dificuldades e necessidades na medida em que o sujeito deseja ou necessita superá-las, enfrentá-las.

Não é uma mera condição estabelecida, mas uma que demanda a ação dos agentes. Assim, ao discutir

as dificuldades e necessidades impostas aos príncipes, Maquiavel empreende uma investigação da

efetividade das ações dos governantes que é sensível e sempre relativa aos contextos.

É neste ponto que entramos no segundo capítulo desta dissertação (2). Nossa leitura versa, em

um primeiro momento, sobre os capítulos II, III de O Príncipe, fazendo referências detidas a

passagens de outros capítulos. Buscamos analisar o desenvolvimento do texto de O Príncipe,

rastreando o que parece ser a dificuldade e necessidade central a ser ponderada pelo conselheiro

político: a inovação política. Tratando-se do governo dos principados, inovar significa destituir

antigos modos e ordenações de governo e introduzir novos. Buscaremos explicitar que Maquiavel

entende a inovação política geralmente em relação ao costume ou hábito estabelecido. Na medida em

que novos modos e ordenações entram em conflito com os costumes estabelecidos, sua introdução se

torna dificultosa. Portanto, a relação entre costume e inovação determina centralmente as

dificuldades e necessidades sobre as quais Maquiavel aconselha o príncipe. Nesse sentido, podemos

entender a obra como uma investigação sobre a inovação e suas consequências. A manutenção do

principado é mais difícil na medida em que é novo. Esta constatação é gradualmente feita, ao se seguir

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passo a passo os contextos particulares possíveis e as dificuldades específicas dos governantes e seus

principados. O que cresce e progride ao longo as páginas do livro é a necessidade de inovar e a

dificuldade de fazê-lo.

Maquiavel apresenta duas constantes antagônicas da vida política e busca extrair seu

aconselhamento da ponderação entre elas: por um lado, quanto é dificultoso e perigoso inovar, na

medida em que se o faz contra o costume e a experiência; por outro, que inovar é inegavelmente

essencial para a prática política, uma necessidade da arte do stato. As atividades ou ações inovadoras,

que envolvem a deposição e introdução de novos modos e novas ordens, são realidades políticas que

não podem ser negadas, mas ser devem abordadas com toda cautela. É a ponderação entre estas duas

afirmações, em que medida cada uma delas se apresenta como mais pungente em contextos

específicos, que permite que Maquiavel aconselhe sobre a inovação política. É este o questionamento

que perpassa os diferentes contextos distinguidos por Maquiavel ao longo do livro. Buscaremos

mostrar não somente a ponderação sobre certas circunstâncias políticas e em que medida a dificuldade

e necessidade da inovação nelas se impõem, mas também que, por esta ponderação, Maquiavel entra

em embate com concepções tradicionais sobre os procedimentos de governos efetivos, mostrando que

em certas circunstâncias é preciso reavalia-los e flexibiliza-los, bem como, em outras, é preciso alertar

sobre suas profundas limitações. Este é especialmente o caso da inovação, que, quando considerada

nas condições políticas, tornam o aconselhamento uma tarefa extremamente complexa.

Nossa análise começa (2.1) pelo exame que Maquiavel realiza dos principados hereditários.

Nos principados hereditários, a inovação é, à primeira vista, não necessária nem dificultosa. Com

isso, o autor nos apresenta um primeiro caso da ponderação quanto às dificuldades e necessidades da

inovação. Buscaremos mostrar que Maquiavel parte de um ponto de vista tradicional ao aceitar a

asserção segundo a qual os principados hereditários são mais estáveis e menos difíceis de serem

mantidos. No entanto, ele não se compromete indiscriminadamente com este ponto de vista, pois não

assume que o príncipe esteja autorizado, por sua legitimidade tradicional, a agir como quiser. O

príncipe hereditário está atado à reprodução dos modos e ordenações ancestrais que recebera, o que,

certamente, não exige dele uma capacidade extraordinária, na medida em que naturalmente pode fazê-

lo. De todo modo, a inovação nestes principados é mais que não necessária, ela é vetada pelo preceito

da necessidade de não inovar. Portanto, podemos dizer que a inovação não deixa de ser uma

dificuldade para o príncipe hereditário: ela ainda seria dificultosa, mas não é, em geral, necessária.

Além disso, se os príncipes hereditários estão assegurados pela ação ordinária em grande medida,

isso não significa que estejam assegurados contra qualquer iniciativa interna de conspiração, nem,

especialmente, contra iniciativas estrangeiras de invasão. Assim, as dificuldades e necessidades

relativas à inovação já se apresentam nos principados hereditários. Maquiavel nos prepara, partindo

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de uma ponderação sobre a segurança e a estabilidade do príncipe hereditário tradicionalmente aceita,

para uma nova perspectiva, a do príncipe novo.

A instabilidade e falta de segurança do príncipe novo não significam mais a impossibilidade

de se pensar o seu governo, antes, significam que sua segurança e estabilidade são mais difíceis de

serem alcançadas. Se, nos principados hereditários, a menor dificuldade em se manter o principado

está associada à menor necessidade da inovação, nos principados novos esta necessidade é o que torna

a manutenção difícil para os príncipes. O príncipe novo realizou uma inovação e ela é necessária para

seu estabelecimento na posição de governo. Enquanto para o príncipe hereditário, em geral,

harmonizava-se a dificuldade em inovar com a necessidade de não inovar, o que exigia dele uma

capacidade ordinária, para o príncipe novo, a dificuldade da inovação entra em conflito com a

necessidade de inovar. Neste sentido, a habilidade exigida do príncipe novo é muito mais complexa

e nada ordinária. Ele precisa inovar na medida do necessário para se estabelecer, mas considerar em

que medida a inovação pode se tornar dificultosa e perigosa a ponto de o fazer perder a posição

estabelecida. Maquiavel examina duas condições distintas de inovação, dois diferentes tipos de

príncipes novos: a conquista e o conquistador; em seguida, examina o principado inteiramente novo

e sua fundação. No primeiro caso, a inovação se dá pela anexação de novos stati por um príncipe

hereditário (chamado novo na medida em que conquista novos stati); no segundo, a inovação se dá

pela passagem de homem privado a príncipe pela aquisição do principado.

Examinamos, então, na sequência do segundo capítulo da dissertação (2.2), a conquista em O

Príncipe. Neste caso aparecem as primeiras grandes dificuldades. Primeiramente, (2.2.1) mostramos

que o príncipe realizou uma inovação em seu stato pela conquista e expansão. As condições da

conquista são tais que a inovação é necessária, pois não há conquista sem inovação, e dificultosa, pois

o contato com novos súditos e a entrada em uma nova relação de forças acarreta dificuldades em

virtude do conflito com a ordem dos costumes estabelecidos. Dois preceitos antagônicos apresentam-

se ao conquistador: por um lado, Maquiavel não abandona o preceito aprendido com o caso dos

príncipes hereditários (segundo o qual a não-inovação e a mera contemporização segundo os

acidentes se apresentam como vias seguras); por outro, este primeiro preceito é duramente limitado

pela necessidade de inovar como condição para o posicionamento do príncipe em novo território. A

habilidade do conquistador é a de encontrar uma via entre estes dois preceitos conflituosos. Esta

habilidade é a prudência. Então (2.2.2), a partir do exame comparado entre o exemplo das conquistas

dos antigos romanos e o exemplo das conquistas de Luís XII na Itália, Maquiavel pondera sobre a

prudência enquanto atributo dos conquistadores: a capacidade de antever e se precaver pelo exame

apurado das condições, bem como a de agir ou não agir nos momentos apropriados. Esta habilidade

permite ao príncipe ponderar sua ação efetivamente entre preceitos antagônicos e decidir

apropriadamente entre eles nos momentos certos, pois a prudência permite o cálculo apropriado da

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deliberação política. Por fim (2.2.3), notamos que, para se utilizar da noção de prudência na avaliação

da conquista, para falar da prudência do conquistador, Maquiavel precisa flexibilizá-la e adaptá-la,

porque a noção de prudência era tradicionalmente pensada em harmonia com a ordem estabelecida

de costumes. A prudência do conquistador precisa transpor o mero contemporizar de acordo com os

costumes, pois o que ela identifica é que certos acidentes são irredutíveis à necessidade de inovar e,

consequentemente, ofender. A prudência do conquistador consiste em um cálculo em relação tanto

ao modo pelo qual se pode aproveitar ao máximo as condições estabelecidas em favor do príncipe

quanto aos momentos em que estas condições devem ser combatidas.

Por fim (3.), examinamos, a partir dos capítulos VI, VII e XXV de O Príncipe e dos tercetos

Di Fortuna, o caso da fundação do stato ou a passagem de homem privado a príncipe, no qual as

dificuldades e necessidades impostas pela inovação são as mais elevadas. O príncipe deve à inovação

não somente sua conquista, mas sua posição mesma enquanto príncipe, de tal forma que as

dificuldades e necessidades da inovação assumem um caráter perigoso. Observamos, primeiramente

(3.1), que aquele que passa de homem privado a príncipe não pode contar com nenhuma estrutura

anterior de costumes, buscando ponderar entre em que medida o costume estabelecido pode ser

aproveitado ou combatido. O espaço para a ponderação prudente se torna extremamente limitado,

pois a resistência ao inovador é esmagadoramente maior que as possibilidades de mobilizar as

condições estabelecidas em seu favor. A capacidade de agir de forma cirúrgica e calculada é afetada

pela extrema resistência dos costumes, e a capacidade do príncipe passa a ser descrita pelo autor nos

termos da limitação humana. Mesmo que a prudência ainda faça parte fundamental da ação do

fundador, ela não é suficiente. Certos atributos distintos ou em atrito com o que se concebe por uma

atitude calculada são exigidos, tais como introduzir a imprevisibilidade, a audácia, a força de ânimo

e o carisma na ação política. A terminologia escolhida por Maquiavel é aquela da relação entre virtù

e fortuna. Não que ela já não estivesse presente no exame da conquista, mas na fundação ela ganha

eminência. A passagem de homem privado a príncipe e a sua permanência nesta posição exigem virtù

e fortuna, o que exprime mais as limitações da ação humana do que propriamente uma asseveração

de suas possibilidades.

Para mostrar isso (3.2), buscaremos explicar como Maquiavel entende a noção de fortuna e

por que esta alegoria é usada pelo autor para evidenciar o conflito extremo com os costumes

estabelecidos. Quando o príncipe está cercado somente por forças que lhe são inimigas e

imprevisíveis em função da inovação, ele está diante da fortuna, a alegoria para o imprevisível, para

o aleatório e para o extraordinário. Neste sentido (3.3), a noção de virtù, enquanto habilidade pela

qual se entra em contato com a fortuna, indica uma capacidade extremamente elevada. O primeiro

exemplo de fundadores examinado por Maquiavel - Moisés, Ciro, Rômulo, Teseu – indica que a virtù

é ela mesma algo fora do escopo do que poderíamos considerar humanamente possível. A estes

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homens estão associados a virtù necessária para não dependerem da fortuna, a não ser pela ocasião

provida por ela. No entanto, a estes homens estão também associadas capacidades sobre-humanas,

feitos excelentíssimos dificilmente alcançáveis por homens comuns. O exame, assim, passa a ser não

o de delimitar propriamente e com certeza o que é virtù, mas em que medida os homens comuns

podem atingi-la, mesmo que imperfeitamente. Passa a interessar a Maquiavel que a fortuna

dificilmente pode ser excluída da fundação. Neste sentido, quando se passa para o exame da virtù

dentro dos limites humanos e não envoltos por mitos sobre-humanos ou pela graça divina, revelam-

se aqueles aspectos da ação humana que ultrapassam, mas não abandonam, a ação calculada, a

razoabilidade e a legitimidade tradicional. Podemos ver isso notadamente expresso no exemplo de

César Borgia. A longa narrativa que Maquiavel faz das ações do duque exprimem justamente o que

uma linguagem conceitual falha em exprimir: as muitas particularidades, a exigência de disposições

antagônicas, a capacidade de agir com a cabeça e o fígado, de mudar de rapidamente de planos ou

improvisar.

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Capítulo 1: Conselhos aos príncipes: stato e verità effettualle

Os títulos sob os quais o livro de 1513 é apresentado – De Principatibus e Il Principe -

facilmente nos permitem inferir seu conteúdo. Certamente não é uma novidade aquilo que indicam:

um livro sobre os principados. Podemos verificar uma extensa literatura ao longo da história do

pensamento político composta por tratados e investigações acerca deste tema. Ele fora debatido e

apresentado por diferentes vias, considerado a partir de diferentes questionamentos e examinado de

diversos pontos de vista. E devemos supor que o pequeno tratado de Maquiavel também o discuta por

uma via, considerando objetivos e interesses específicos. Mas qual a via de investigação de

Maquiavel? Qual é exatamente a pergunta ou o conjunto de perguntas em relação ao governo dos

principados levantados por ele? Em suma, o que Maquiavel quer saber sobre os principados?

Este primeiro capítulo da dissertação versa sobre estas questões. Buscaremos delinear os

objetivos e as questões que nos parecem centrais para o livro de Maquiavel. Em suma, no que, mais

precisamente, consiste a empresa de O Príncipe. Deve-se ter em mente que resumir brevemente e

com acuidade uma obra é uma tarefa extremamente difícil, especialmente quando se trata de O

Príncipe, cujas plurais interpretações vêm acompanhadas de agudas disputas teóricas e ideológicas2.

Nosso objetivo, entretanto, não é uma sinopse completa e definitiva (talvez nem ao menos uma

sinopse), mas antes é preparar o terreno para o problema que pretendemos discutir começando por

uma reflexão sobre os objetivos gerais do livro, dos quais buscaremos sublinhar questões e noções

com as quais desenvolveremos nosso tema posterior - as dificuldades e necessidades envolvidas da

inovação.

Esta reflexão inicial tem um escopo bem delimitado. Partindo do primeiro e do início do

segundo capítulos de O Príncipe, apoiados sobre alguns textos paralelos e buscando verificar nossas

asserções panoramicamente no decorrer do livro, buscaremos examinar como Maquiavel introduz a

seu leitor ao tema tratado. Introduzir guarda aqui um sentido que deve ser esclarecido. Em verdade,

buscamos examinar, não exatamente como e em que momentos Maquiavel instrui e esclarece seu

leitor quanto aos que parecem ser os objetivos e o sentido de seu livro - fonte infindável de debates

acirrados da literatura de comentário -, mas antes como ele efetivamente conduz seu leitor para dentro

da obra. Simples e diretamente: voltamos nossos olhos para como o autor começa seu livro. Um

2 O recente comentário de Philip Bobbitt a O Príncipe, por exemplo, é introduzido da seguinte forma: “O Príncipe é frequentemente descrito como um grande livro que mudou o mundo, ainda assim, enquanto está sem dúvida seguro em sua inclusão no canon de tais livros, foi tão variada e contraditoriamente interpretado que qualquer mudança no mundo que possa ter trazido é provável que o tenha por algum tipo de horrível inadvertência que teria divertido, apesar de não surpreendido, Maquiavel. Certamente, permanece um número de questões controversas sobre, mesmo as mais básicas, posições de Maquiavel [...] há alguns escritores que concluíram que suas ideias eram simplesmente incoerentes, enquanto outros decidiram que foram escritas no código da sátira ou de algum gnosticismo ainda mais oblíquo” [BOBBITT, Philip. The Garments of Court and Palace: Machiavelli and the World that He Made (Kindle Locations 71-81). Atlantic Books. Kindle Edition.), Londres: 2013. Minha tradução.]

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começo, como veremos, conciso e abrupto, que tem, ao longo da história, chocado e desnorteado os

leitores no lugar de confortá-los. De qualquer forma, (supomos assim) um começo calculadamente

escolhido por Maquiavel. Se examinarmos meticulosamente os elementos e as asserções apresentadas

neste começo, bem como a forma como se relacionam, poderemos trazer à luz algumas características

da proposta de O Príncipe que nos permitirão posteriormente examinar a questão da inovação nos

termos que nos propomos aqui: inovação geradora de dificuldades e necessidades.

A peculiar disposição do livro pode tornar difícil a tarefa de entende-lo. Isto em virtude da

forma abrupta como O Príncipe é introduzido a seu leitor. Se voltamos para o primeiro capítulo,

estamos longe de encontrar uma explanação prévia de objetivos e da metodologia da obra como um

todo. O capítulo intitula-se Quantos são os gêneros de principados e de que modos se adquirem. Nele

vemos uma sequência de asserções, distinções e exemplos todos referentes aos principados.

Todos os stati, todos os domínios que tiveram e têm império sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou principados. Os principados ou são hereditários - aqueles nos quais a linhagem de seu senhor é príncipe há muito tempo -, ou são novos. Os novos ou são inteiramente novos, como foi Milão para Francesco Sforza, ou são como membros anexados ao stato hereditário do príncipe que os conquista, como é o reino de Nápoles para o rei da Espanha. Os domínios assim conquistados ou são acostumados a viver sob um príncipe ou a ser livres. E são conquistados ou com as armas de outros, ou com as próprias, por fortuna ou por virtù.3

O capítulo reforça, certamente, o que os títulos já indicavam - um livro sobre os principados. As

asserções dizem respeito aos principados. São stati; hereditários ou novos; sendo estes novos

membros anexados ou principados inteiramente novos; são acostumados, quando conquistados, a ser

livres ou a viver sob um príncipe; e são conquistados por armas próprias ou por armas de outros, por

fortuna ou por virtù.

De qualquer forma, estas asserções, meramente expostas uma após a outra, só se apresentam

subordinadas a um eixo claro, a um problema especifico a ser examinado, no segundo capítulo, no

qual Maquiavel direciona seu leitor à formulação explícita de uma questão: “não tratarei aqui das

repúblicas porque, em outro momento, discorri longamente sobre o assunto. Ocupar-me-ei somente

dos principados e, tecendo os fios da urdidura antes indicada, discutirei de que forma podem ser

governados e mantidos”4. Tendo no primeiro capítulo afirmado que todos os stati são repúblicas ou

principados, Maquiavel delimita no segundo qual será seu objeto de estudo, o principado. Este objeto

de estudo delimitado deve ser explorado a parir de uma questão específica: como podem ser

governados e mantidos os principados? Esta questão, atesta o autor, será examinada em se tecendo

3 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo I, p.5. Tradução sempre adaptada para stato ou stati enquanto substantivos para esta tradução. 4 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo II, p.7

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os fios da urdidura antes indicada - isto é, considerado as asserções do primeiro capítulo. Tendo em

vista o que são e como surgem, examina-se como podem ser governados os principados.

Entretanto, a aparente clareza e simplicidade da proposta traçada por Maquiavel, entre o

primeiro e início do segundo capítulo, logo se perde quando a observamos mais de perto. Claude

Lefort nota que “anunciar que se discutirá o governo dos príncipes e que se dará dele as regras, ou

que se perguntará o que ele é (che cosa è il principato) e, muito prosaicamente, como se o conquista,

conserva e perde, é, apesar da clareza das palavras, colocar questões cuja origem é obscura”5. Em

primeiro lugar, é preciso observar que as asserções apresentadas no primeiro capítulo estão distantes

de uma definição de principado. Poderíamos buscar sustentar que stato seja um atributo essencial de

principado, mas, longe de nos dar uma definição, este predicado é compartilhado também com as

repúblicas. Poderíamos recorrer à distinção entre domínios acostumados a viver sob um príncipe e

acostumados a viver em liberdade, definindo principado como domínio que vive sob um príncipe. No

entanto, estaríamos, então, realizando uma inferência não feita explicitamente pelo autor. O que ele

efetivamente nos diz é que principados conquistados, antes de o serem, são acostumados a viver sob

um príncipe ou em liberdade. Portanto, dificilmente poderíamos assumir que o movimento proposto

por Maquiavel seja o de examinar como se governa o principado guiado por uma definição clara e

explicitada do mesmo.

Em segundo lugar, se buscamos não uma definição ou descrição extensa, mas asserções gerais

e comumente aceitas em relação aos principados, a partir das quais se poderia investigar quanto ao

seu governo, novamente somos desiludidos, pois, ao invés disso, como buscaremos mostrar ao longo

das próximas seções, o que se apresentam são asserções que deslocam e parecem querer provocar seu

leitor. Não é, de forma alguma, senso comum a distinção entre formas de governo – que nesta

passagem específica Maquiavel parece denominar os stati – em repúblicas e principados.

Tradicionalmente, uma distinção entre repúblicas democráticas e oligárquicas seria destacada, bem

como uma distinção entre governos retos e corrompidos. Tão menos familiar aos olhos tradicionais é

que a principal distinção entre principados seja entre hereditários e novos, e que seja de especial

pertinência os meios e habilidades pelos quais se conquista o principado em um tratado sobre o tema.

Além disso, não é evidente como estas distinções devem ser levadas em conta para o exame de como

se deve governar o principado. Maquiavel ignora questões sobre a legitimidade e a justiça do

exercício do governo nos principados, temática naturalmente esperada pelos leitores instruídos pela

teoria e pelo debate político de sua época, especialmente se tratando do debate sobre o agir do

governante, sobre como governar. Maquiavel limita suas asserções iniciais de forma que não

reconhecemos nelas os princípios gerais tradicionalmente levados em conta nas investigações sobre

5 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre: Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 327. Minha tradução em todas as citações deste livro.

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o governo dos principados, o que causa mais estranheza do que familiaridade, mais resistência do que

acolhimento de seus argumentos.

Por fim, há de se notar que a simples e concisa proposta de examinar como se governa o

principado em se considerando o que e de quais gêneros são é na verdade difusa, pois junto dela

Maquiavel salienta outros pontos. O primeiro capítulo de O Príncipe não nos informa somente tipos

de principados, mas como são adquiridos; o segundo não nos introduz a questão somente sobre como

se podem governar os principados, mas sobre como mantê-los. Parece haver uma questão

concorrente, um ponto complementar salientado pelo autor – não somente o que são e como se

governam, mas também como se conquistam e como se mantêm é uma questão fundamental. E,

assim, confiando na aparente simplicidade e evidência das linhas inicias de O Príncipe, encontramos,

no lugar de afirmações que instruem quanto às premissas assumidas e os caminhos adotados pelo

autor, um desconforto causado em seus leitores. Claude Leford descreve assim o desconforto causado

pelo primeiro capítulo de O Príncipe: Se nós nos surpreendemos com a maneira abrupta deste começo, sem dúvida que os contemporâneos [de Maquiavel] já estavam antes surpresos, pois, instruídos pela tradição clássica e cristã, eles estavam acostumados a encontrar no começo de uma obra política considerações filosóficas, morais ou religiosas. Além disso, o autor não nos diz por que ele as descarta de sua proposta. Ao negligenciar falar da origem e da finalidade do Estado [État], dos méritos comparados dos diversos regimes, da função do príncipe na sociedade, da legitimidade e ilegitimidade de certas formas de poder, ele nos dá a pensar por seu silêncio que estas ideias deixaram de ser pertinentes ou, ao menos, convida seu leitor a se perguntar se elas permanecem e em qual sentido.6

A maneira abrupta de começar o livro causa surpresa, não só a nós, leitores modernos, mas

também aos contemporâneos de Maquiavel. Ela está associada à falta de um prefácio ou introdução

- onde encontraríamos considerações filosóficas, morais ou religiosas; considerações quanto à origem

e finalidade da comunidade política, aos méritos dos diferentes regimes, à função do príncipe na

sociedade, à legitimidade e ilegitimidade de certas formas de poder. Ao salientar estes elementos

como ausentes para introduzir O Príncipe, Lefort direciona seu argumento à tese de que esta ausência

mostraria a ruptura de Maquiavel em relação a “um discurso e um mundo ordenados”, regido por

princípios normativos muito expressos e determinados7. Estamos de acordo com esta leitura. De

qualquer modo, gostaríamos de apontar para uma consequência ligada a ela, mas ligeiramente

diferente. Ao ausentar-se de pressupostos de um discurso ou mundo pré-ordenados, Maquiavel rompe

não somente com padrões normativos, mas também descritivos. O desconforto do leitor se dá porque

é convidado a pensar livre de preconceitos quanto ao que é legítimo ou não, quanto à posição e aos

deveres do príncipe num mundo bem ordenado; mas, ao mesmo tempo, porque é lançado a

6 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 346. Traduzimos doravante État por Estado em Lefort. 7 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 347

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compreender conceitos e definições às cegas, desorientado, ou abandonado por tradições que lhe

sirvam de fio condutor. A sequência de definições e distinções apresentadas no primeiro capítulo é

apresentada “abruptamente” pela falta de parâmetros explicita e previamente formulados que, não

somente justificariam tais asserções em vistas de uma nova “ordem moral”, por assim dizer, mas

também as explicariam enquanto definições e conceitos.

E, no entanto, esta forma abrupta de introduzir a obra é a escolhida por Maquiavel. Ao

entender a abertura do livro como abrupta, não buscamos apontar nela inconsistências, que deveriam

ser ajustadas para se bem compreender a obra. Antes, buscamos seguir o texto maquiaveliano,

deixando que a forma abrupta escolhida pelo autor nos surpreenda como surpreendeu seus

contemporâneos. Voltando nossos olhos a esta introdução abrupta, busquemos descrever que

elementos são esses e em que medida são introduzidos, a fim de, então, buscar examiná-los e refletir

sobre eles. São dois os elementos fundamentais que buscaremos destacar nesta introdução: por um

lado, a noção de principado enquanto stato e a noção de stato como campo exercício e esfera política;

por outro, o direcionamento de Maquiavel à ação e o conselho como via para tanto. Em cada uma das

seguintes seções buscaremos explorar estes elementos, encaminhando-os para o questionamento

sobre a dificuldade da inovação política.

1. 1. Principado e stato

No que concerne às noções de principado e stato, salientamos nesta seção que elas parecem

ser o objeto central de investigação do autor, mas que este objeto precisa ser explicitado com cuidado.

O principado, diz Maquiavel é um stato, portanto O Príncipe é, enquanto tratado político, uma obra

sobre o stato. No entanto, a noção de stato e, consequentemente, de principado enquanto um stato,

assume características muito peculiares e que não podem ser identificadas nem com uma noção

clássica de forma de governo, nem com uma noção moderna de Estado. São as particularidades da

noção de stato que investigamos nesta seção.

1.1.1. Stati são repúblicas ou principados

A primeira asserção de O Príncipe diz respeito ao stato. Todos os stati são ou repúblicas ou

principados. Se destacamos a forma abrupta com que Maquiavel inicia seu livro, esta afirmação é

digna de nota. Antes de discorrermos sobre as dificuldades envolvidas na compreensão do termo

stato, deve-se observar que a distinção entre repúblicas e principados é muito enxuta se a comparamos

à teoria política clássica. Newton Bignotto observa que “é preciso notar que, antes de mais nada,

Maquiavel desfecha um ataque terrível à tradição, contentando-se com uma classificação

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extremamente simplificada das formas políticas”8. O leitor reconhece nos termos da divisão uma

referência às formas de governo, aos regimentos ou regimes políticos9. Repúblicas e principados, aos

olhos das bases teóricas sobre as quais os contemporâneos de Maquiavel (e ele próprio) se

assentavam, eram denominações de formas de governo ou regimentos políticos. No entanto os termos

da divisão são expostos na asserção de Maquiavel de maneira pouco familiar a estas bases teóricas.

Estas duas bases teóricas dizem respeito à teoria clássica das formas de governo e à tradição de

debates em torno do governo misto. Estas duas perspectivas teóricas, na verdade, são indissociáveis,

nascendo e se desenvolvendo juntas ao longo de toda a tradição de pensamento político anterior à

Maquiavel. Cabe-nos, nas próximas linhas, delinear brevemente esta tradição de pensamento e,

depois, examinar como uma divisão bipartida como a de Maquiavel na abertura do primeiro capítulo

de O Príncipe soaria abrupta ou como ataque ao “senso comum” do pensamento político

contemporâneo do autor, assim como ao pensamento do próprio autor, se consideramos o conteúdo

do primeiro livro dos Discursos e alguns momentos importantes de O Príncipe.

Em A Teoria das Formas de Governo, Bobbio afirma que a teoria das formas de governo de

Aristóteles tornou-se tradicional, pois “parece ter fixado em definitivo algumas categorias

fundamentais que nós, seus pósteros, continuamos a empregar no esforço de compreender a

realidade” 10 . Ao oferecer um conjunto coerente e fundamentado de categorias, respondendo e

complementando discussões e sistemas anteriores, Aristóteles estabelece os termos com os quais se

disputará ao longo da tradição o tema das formas de organização política. Bobbio atribui às

sistematizações de formas de governo ao longo da história duas funções elementares: uma descritiva

ou sistemática, outra prescritiva ou axiológica. A primeira destas refere-se à ordenação de “dados

colhidos” 11 , uma “classificação dos vários tipos de constituição política que se apresentam à

consideração do observador de fato [...], na experiência histórica”; trata-se de “descrever, isto é,

expressar um julgamento de fato” 12 . A segunda refere-se à determinação de “uma ordem de

preferência entre tipos dispostos sistematicamente, com o propósito de suscitar nos outros uma atitude

de aprovação ou desaprovação e, por conseguinte, de orientar sua escolha”13; postula-se o problema

de indicar, de acordo com critérios, “quais das formas [de governo] descritas são boas, quais delas

são más; quais as melhores e as piores; por fim, qual é a melhor de todas, e a pior”; trata-se de

8 BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo, SP: Loyola, 1991, p. 122 9 VIVANTI, Corrado. Nicolau Maquiavel – nos tempos da política (Kindle Locations 2920-2921). Kindle Edition, Martins Fontes: São Paulo, 2016. 10 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997. p. 55 11 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997. p. 34 12 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997. p. 33 13 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997. p. 34

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“exprimir [...] julgamentos de valor, orientando a escolha por parte dos outros. Em outras palavras,

prescrevendo”14.

Na Política, Aristóteles (§7 do Livro III) considera quantos e quais podem ser os governos

das cidades. Ele se utiliza de dois critérios para tanto. Primeiramente, o número de governantes: se

um, poucos ou muitos detêm autoridade sobre a cidade. Em segundo lugar, como se governa: se o(s)

que governa(m) o faz(em) em vista do interesse comum ou em vista do interesse privado15. A partir

destes dois critérios, Aristóteles é capaz de sistematizar uma teoria das formas de governo que cumpre

as duas funções elencadas por Bobbio. Ao tipificar, pela interação destes critérios, as formas de

governo em monarquia, tirania, aristocracia, oligarquia, politeia e democracia16, Aristóteles não

somente descreve e classifica “a variedade dos modos com que se vinham organizando as cidades

helênicas, a partir da Idade de Homero”17- isto é, procede descritivamente -, mas também propõe

meios para se identificar e distinguir formas corretas (orthas) de formas desviantes (parekbaseis)18 e

hierarquizar as piores e melhores dentre estas formas - isto é, procede prescritivamente. Aristóteles

não meramente identifica que deva haver um princípio prescritivo segundo o qual se possa distinguir

formas corretas e desviantes de governo, mas explicita que princípio é este. Quando se exerce o poder

visando o comum (pròs tò koinòn), temos as formas corretas de governo; quando se o exerce visando

o privado (pròs tò ídion) 19 , as formas desviantes. Sérgio Cardoso identifica a distinção das

“constituições propriamente políticas” ou comunidades que “visam o interesse de todos, o bem viver

comum” em relação aos “regimes não-políticos, despóticos” ou “comunidades despóticas”, “em que

se governa em função do interesse dos próprios governantes”20.

Aristóteles não criou propriamente a teoria das formas de governo; antes, fixou uma “tipologia

que se tornará clássica”21, mas que já fazia parte das reflexões de Platão e da cultura grega que a

precedia de um modo geral 22 . Depois de Aristóteles, a teoria das formas de governo foi

complementada e adaptada. De todo modo, se mantém intacta a carcaça sistemática de Aristóteles -

uma divisão em seis formas de governo, a partir dos critérios de como se governa e de quantos

governam. Bobbio nos mostra que, apesar de complementar as reflexões de Platão e Aristóteles

quanto à teoria dos ciclos de governo (anacyclose) e do governo misto, Políbio não faz mais do que

14 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997. p. 33 15 1279a23-1279b35. Para o uso da obra de Aristóteles utilizamos: Aristotle. ed. W. D. Ross, Aristotle's Politics. Oxford, Clarendon Press, 1957. Consultamos o texto original em grego em: <http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3atext%3a1999.01.0057>. Acesso em 1 de Fevereiro de 2019. 16 1279b5 17 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997. p. 33 18 1279a 24-25, 29 e 31 19 1279a 30 20 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, pp. 34-35 21 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997, p. 53 22 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997, pp. 39-54

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confirmar “a teoria tradicional” com a tese segundo a qual “existem fundamentalmente seis formas

de governo – três boas e três más”23. Tomás de Aquino adota uma posição diversa da geralmente

tomada pelos antigos ao defender a monarquia como melhor forma de governo, de qualquer modo,

seu horizonte de debate é a divisão aristotélica tradicional24. Até o capítulo dedicado à obra de

Maquiavel, Bobbio reitera a constância da sistematização aristotélica ao longo da história do

pensamento político, sendo meramente reexposta por Cícero25 e repetida por Marcílio de Pádua26

Aristóteles não assentou as bases para as discussões acerca dos regimes políticos somente ao

sistematizar coerentemente uma teoria das formas de governo, mas também por abrir, a partir dela, a

tradição de debate em torno do governo misto, que viria a ser tão duradoura e importante quanto

aquela. Aristóteles afirma na Política, Livro IV, §8 que “politeia ou governo constitucional pode ser

descrito geralmente como uma fusão de oligarquia e democracia” 27 e que “a mistura de dois

elementos, isto é, os ricos e os pobres, chama-se uma politeia ou governo constitucional”28. Aqui

vemos a concepção de uma forma de governo que ultrapassa os parâmetros estabelecidos pela teoria

das formas de governo, apresentando-se não como o regimento reto ou desviante, exercido por um,

pouco ou muitos, mas como uma mistura de diferentes formas. Sérgio Cardoso, no artigo Que

república? Notas sobre a tradição de Governo Misto, mostra o caminho argumentativo original de

Aristóteles para, partindo da teoria das formas de governo, elaborar uma noção de melhor governo

como governo misto, bem como o problema que o leva a esta elaboração: o de não meramente atestar

o irrestrito compromisso com o princípio do interesse comum, mas buscar encontrar nas condições

presentes e imperfeitas a efetivação deste interesse.

Como vimos, segundo Cardoso, o governo em vista do interesse público é o que distinguiria,

no pensamento de Aristóteles, as “‘comunidades políticas’ [...] em oposição, sobretudo, ao gênero

‘comunidades despóticas’”29. No entanto, “Aristóteles [...], mesmo partindo da tipologia proposta

pela tradição, procura justamente assinalar a insuficiência do princípio que a articula”30. Não somente

se se governa em vista do interesse comum, mas “‘Para quem?’, ‘Em vista de quem se governa?’ é

que é a boa questão” – pois “para se determinar o caráter de um dado regime é preciso perguntar por

23 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997. pp. 65-66 24 SIGMUND, Paul E.; “Law and Politics”. In The Cambridge Companion to Aquinas, ed. Norman Kretzmann e Elconore Stump. Cambridge University Press, 1993, p. 217 (minha tradução em todas as citações deste texto). CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 47 25 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997. p. 75 26 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997. p. 77 27 1293b32-1294a8 28 1294a9-1294a25 29 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 35 30 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 34

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sua destinação”. Cardoso mostra que com a aplicação deste critério, pode-se mais que reiterar o

caráter político das formas retas de governo - retas justamente por governarem para o bem comum.

“No caso dos regimes desviantes” o “‘rendimento especulativo’” deste critério “é considerável, pois

conduz à averiguação de sua destinação social e das ‘bases sociais’ destes governos”. Assim, mais

que meramente descartar as formas desviantes como despóticas, Aristóteles nos conduz “à

consideração de sua natureza – em algum sentido – política” 31. Para Cardoso, “devolver a estes

regimes alguma significação ‘política’” é o “que há de mais original no trabalho de investigação de

Aristóteles”. Ao expor “a oligarquia” como “o poder dos ricos para os ricos” e “a democracia” como

“o poder dos pobres em vista dos pobres”, isto é,

ao especificar suas determinações próprias a partir da indicação da base econômico-social que os sustenta, o filósofo poderá também considerar o modo específico pelo qual entendem estabelecer um espaço comum, ou ainda a maneira pela qual ricos e pobres entendem legitimar suas pretensões políticas. Pois, é certo que eles defendem seus interesses; mas não deixam de defendê-los em nome da justiça, não deixam de projetar um horizonte de universalidade no qual esses interesses são inscritos. 32

Com isto, oligarquia e democracia (enquanto o governo desviante do vulgo), formas de

governo à primeira vista desviantes, “não aparecem para o filósofo apenas como o espaço da

irracionalidade das paixões e da injustiça ou do simples despotismo, mas surgem determinadas por

alguma aspiração de universalidade, ordem e legitimidade que as aproxima [...] das realidades

políticas”. A possibilidade de pensar, mesmo que parcialmente, a natureza política da oligarquia e da

democracia trazida por Aristóteles abre caminho para “sua postulação inteiramente original de um

regime ‘misto’, pensado a partir destas duas constituições mais comuns” – “mais frequentes, por

representarem [...] os interesses das partes fundamentais das cidades”.33 O que está em questão não é

meramente estabelecer o interesse comum como princípio, mas buscar, na realidade comum e

imperfeita, a efetivação deste princípio. A politeia aristotélica (não no sentido geral “mais preciso e

mais técnico que lhe haviam conferido a prática e o pensamento políticos gregos” - “o sentido de

‘regime de governo’, de ‘constituição política’, pensada como a forma de organização das

magistraturas ou poderes que conformam e governam a vida da cidade.”34-, mas “considerada [...] em

sentido mais restrito, como um regime político específico”, como aquele “eminentemente capaz de

levar à realização dos fins da comunidade política” e, justamente por isso, “designado pelo nome

31 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 35 32 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 36 33 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 37 34 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 32

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genérico das constituições”) é o regimento que “entende realizar um equilíbrio, um ‘justo meio’, entre

os dois partidos opostos a que pode ser reduzida a cidade, de modo a garantir sua influência ativa nas

decisões do governo”; um regime “entendido como integrador d(os) antagonismos” da cidade35.

Segundo Cardoso, Aristóteles busca a “definição de um regime excelente, concebido não

abstratamente (como governo de e para um ‘todos’ indeterminado, designado apenas pela extensão

universal da cidadania a todos os homens livres [...]), mas concretamente, como capaz de figurar [...]

a essência dos regimes políticos retos”. Mais que um modelo de regimento misto, o que Aristóteles

lega à tradição de pensamento político é o problema teórico para o qual este regime é a resposta.

Trata-se de “encontrar na cidade realmente existente (e sempre imperfeita) a matéria [...] disposta ou

apropriada à forma política; isto é, encontrar o conjunto determinado de elementos cuja ordenação

permitisse realizar um bem efetivamente comum a toda a cidade”36. Mesmo que a estrutura conceitual

oferecida por Aristóteles seja aquela que inspiraria mais fortemente a tradição de pensamento político

quanto à realização do governo excelente na prática possível e efetivamente disposta, e que sua

resposta seja extremamente original, é preciso ressaltar que Platão já havia se colocado o problema

de uma “inclusão dos elementos diversos da comunidade através de um governo de leis” que fosse

possível na “realidade do mundo dos homens, o mundo da imperfeição e da instabilidade”. No

entanto, em Platão, este governo de leis responde à realização prática da “ciência do Bem” do “saber

da justiça”37; “um governo da virtude, entendida em seu sentido moral amplo”. Para Platão, “o Bem

transcendente é o fim verdadeiro da atividade da comunidade política”. Distintamente, em Aristóteles,

a virtude dos cidadãos e governantes é “entendida em sentido especificamente político”38 e o bem

almejado é o bem comum determinado “essencialmente como o governo de todos em vista do todo

político”. Estas distinções são, segundo Cardoso, fundamentais para entender o caráter aristocrático

da proposta platônica e o caráter mais democrático da proposta aristotélica.

A antiguidade tardia oferece, nas reflexões de Políbio, a configuração da noção de governo

misto “mais usual e instrumentalizada pelo pensamento político”39. Tendo como objeto delimitado

de investigação a politeia romana – a República Romana -, “o que em Platão e Aristóteles aparecia

na forma de questões mais abstratas, com o historiador ganha nome: trata-se diretamente de

compreender as relações mútuas entre os poderes dos cônsules, do Senado e do povo, como

35 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 37 36 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 38 37 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 42 38 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 43 39 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 45

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componentes fundamentais da cidade”. No pensamento de Políbio, o que se coloca como imperfeição

e instabilidade do mundo está traduzido na “teoria da anacyclose” – “relativa às mudanças e à

corrupção irremediável das constituições”, de tal forma que o regime misto “como o ‘melhor regime’”

se justifica “em função do equilíbrio que [...] estabelece entre os diferentes componentes da cidade,

neutralizando seus defeitos e retardando a degradação do composto politico”. Uma vez que a

república Romana é seu paradigma, a proposta de governo misto de Políbio é de caráter aristocrático,

pois “a convicção hegemônica sobre a superioridade moral do Senado patenteia ao seu misthos. E, de

fato, mesmo que concebida nos termos de um regime misto, a res publica romana é reconhecida

amplamente como aristocrática”40. Com a influência da Política de Aristóteles no século XIII, Tomás

de Aquino enfrenta a questão do melhor regime utilizando-se da estrutura clássica das formas de

governo, bem como da efetivação deste regime por um governo misto41. É bem verdade que Tomás

considera, junto da tradição cristã que o precedia, a monarquia o melhor regime, no entanto, ele

“mudou a ênfase no pensamento sobre a melhor forma de governo”, mantendo-a, mas também

ponderando criticamente quanto o pressuposto medieval cristão ocidental de “que a monarquia era

não só a melhor forma de governo, mas também a única em acordo com a intenção divina”42. Aquinas

reconhece na realidade imperfeita dos homens “a prepotência do monarca e a tendência à degeneração

apresentada pelo regime”43; que “um monarca pode ser facilmente corrompido e parece não haver

remédio para a tirania”44. É a fim de controlar estes fatores que o filósofo recomenda “uma monarquia

eletiva, temperada por contrapesos aristocráticos (conselhos) e populares (eleições dos magistrados,

ou príncipes)” 45

Cardoso busca mostrar que a questão do governo misto se apresenta como um debate

tradicional, retomado e reavaliado ao longo da história do pensamento político. Ele nos mostra que

também um “grande momento deste debate [...] ocorre em Florença, entre a queda dos Médici em

1494 e a segunda restauração de seu governo oligárquico em 1530”, quando “os humanistas se voltam

[...] para uma reflexão propriamente constitucional, polarizada por interpretações diversas do regime

republicano […] como governo misto” 46. O Príncipe, portanto, surge em um contexto no qual a teoria

40 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 46 41 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 47 42 SIGMUND, Paul E.; “Law and Politics”. In The Cambridge Companion to Aquinas, ed. Norman Kretzmann e Elconore Stump. Cambridge University Press, 1993, pp. 219-20 43 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 47 44 SIGMUND, Paul E.; “Law and Politics”. In The Cambridge Companion to Aquinas, ed. Norman Kretzmann e Elconore Stump. Cambridge University Press, 1993, pp. 219-20 45 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 47 46 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p.47

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das formas de governo e o debate em torno do governo misto eram extremamente influentes. Tendo

isto em vista, podemos avaliar a profundidade do ataque desferido à tradição com a asserção que abre

O Príncipe – todos os stati são repúblicas ou principados. Maquiavel eliminaria completamente um

dos critérios clássicos da classificação, o de como se governa, e reduziria o outro, o do número de

governantes. Assim, de seis formas de governo, Maquiavel reconheceria apenas duas - o governo de

um e o governo de vários (muitos ou poucos); o principado e a república. Além disso, resta a dúvida

de como entender a disjunção: repúblicas ou principados. Ela é inclusiva ou exclusiva? Ao afirmar

no segundo capítulo que não tratará das repúblicas e que se ocupará somente dos principados,

tenderíamos a aceitar a segunda opção. Em outras palavras, ao identificar como regimentos possíveis

a república ou o principado e ao restringir seu objeto de análise aos principados, Maquiavel estaria

excluindo a possibilidade ou desaconselhando a mistura destes dois regimentos? Maquiavel estaria

negando em alguma medida a tradição do governo misto?

Sem sombra de dúvidas, uma afirmação que suscita dúvidas e é grave diante da história do

pensamento político. E Maquiavel deixa clara sua contraposição aos escritores da tradição: ele não

meramente afirma o que são os stati, mas também o que foram. A coordenação do verbo no presente

e no passado indica que a classificação proposta por Maquiavel se aplicaria não somente aos governos

de seu tempo, mas também às comunidades políticas da antiguidade e da idade média,

tradicionalmente tipificadas nos termos aristotélicos. Entretanto, apesar da gravidade da afirmação,

ela é apresentada de forma abrupta. Maquiavel não justifica previamente por que reduz as formas de

governo a duas ou com que finalidade teórica o faz, nem se alonga em explicar esta afirmação.

Conseguimos reconhecer o ataque desferido pelo autor à tradição, mas não conseguimos identificar

explicitamente o que Maquiavel quer com isso. Poderíamos plausivelmente interpretar, se

consideramos separadamente a primeira sentença de O Príncipe, que a afirmação de Maquiavel

signifique uma nova proposta de divisão das formas de governo, na qual passa a operar somente uma

divisão simples entre o governo de um e o governo de muitos, e que esta nova proposta seja capaz de

sistematizar melhor a realidade política em geral47. Seria um movimento dramático: deixando de lado

a distinção entre formas retas e desviadas, perde-se de vista ou, ao menos, torna-se menos importante

a função normativa que tradicionalmente foi cumprida pelas teorias das formas de governo; não se

reconhecendo a distinção entre governo de poucos e governo de muitos, torna-se insensível a

variações contundentes entre constituições republicanas com ampla participação política e as de

participação e concessão de cargos restritas. Além disso, parecemos distanciados de uma concepção

de governo misto ou da possibilidade de uma monarquia com elementos das oligarquias ou das

democracias.

47 Bobbio vai neste sentido. Cf. BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997. pp. 83-85

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Estas interpretações, entretanto, logo ganham resistência se consideramos a obra de

Maquiavel mais amplamente. Isto porque elas estão em conflito, primeiramente, com a outra das

obras políticas mais contundentes de Maquiavel, os Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio.

Nos Discursos, Maquiavel retoma em seus próprios termos a teoria clássica das formas de governo e

se utiliza dela para elaborar seus argumentos. No segundo capítulo do primeiro livro, Maquiavel

pretende “discorrer sobre as ordenações da cidade de Roma e os acontecimentos que a levaram à

perfeição” - isto é, avaliar descritivamente (meramente discorrer) e avaliar prescritivamente

(considerando o que é mais perfeito). Para tanto, ele considera

o que dizem alguns que escreveram sobre as repúblicas, ou seja, que há nelas um dos três stati, chamados principado, optimates e popular; e que aqueles que ordenam uma cidade devem voltar-se para um deles, segundo o que lhes pareça mais apropriado. Outros - mais sábios, segundo a opinião de muitos - são de opinião que existem seis formas de governo, das quais três são péssimas e três são boas em si mesmas, mas tão fáceis de corromper-se, que também elas vêm a ser perniciosas. Os bons são os três acima citados; os ruins são outros três que desses três decorrem; e cada um destes se assemelha àquele que lhe está próximo, e facilmente passam de um a outro: porque o principado se torna tirânico; os optimates […], governo de poucos; o popular […], licencioso.48

O que vemos aqui sendo mobilizada é a teoria clássica das formas de governo. Podemos reconhecê-

la notadamente, apesar de algumas particularidades na terminologia de Maquiavel. Introduz-se a

noção de stato para designar as formas de governo. Os stati são primeiramente descritos pelo critério

do número de governantes: principado, optimates e popular. Então, são considerados a partir da

distinção entre formas de governo péssimas e boas em si mesmas. As formas péssimas de governo

são entendidas como corrompidas em relação às boas. Disso, seis formas de governo são assumidas

- principado, tirania, optimates; governo de poucos, governo popular e estado de licença. Neste

momento dos Discursos, constatamos que Maquiavel está plenamente ciente da sistematização

tradicional das formas de governo, e a utilizar como fundamento de argumentos.

Certamente, Maquiavel recupera a distinção tradicional das formas de governo em um tom de

crítica. Ele nos alerta que “se um ordenador de república ordena um desses três stati numa cidade, o

ordena por pouco tempo, pois nada poderá impedir que se resvale para seu contrário, pela semelhança

que têm neste caso a virtude e o vício.”49. O autor salienta a conservação da república como condição

necessária para ser considerada boa sua constituição. Com isso, ele coloca à prova a possibilidade de

se estabelecer uma efetiva hierarquização ou distinção entre constituições boas ou péssimas, melhores

ou piores: “todos esses modos são nocivos, tanto pela brevidade da vida que há nos três bons quanto

pela malignidade que há nos três ruins”. Na medida em que a corrupção se apresenta como inevitável,

48 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Trad. MF. São Paulo: Martins Fontes, 2007. I.2. p.14. Mantido o termo stato no original. Nossos itálicos. 49 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Trad. MF. São Paulo: Martins Fontes, 2007. I.2. p.14. Mantido o termo stato no original.

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todas as formas de governo se apresentam como nocivas. Precisa-se antes combater ou amenizar a

força desta corrupção, não escolher uma exclusiva melhor forma de se governar: é preciso um governo

misto. A solução maquiaveliana não se distancia substancialmente da resposta classicamente dada a

esta dificuldade. Sua crítica não se dirige aos pensadores da tradição, aos quais na verdade se alia,

mas antes aos ordenadores de repúblicas que insistem sempre em escolher uma única forma de

governo: “aqueles que prudentemente ordenam leis evitaram cada um desses modos por si mesmos

e escolheram algum que tivesse um pouco de todos, por o julgarem mais firme e estável […] quando

numa mesma cidade há principado, optimates e governo popular, um toma conta do outro”50. A

república mista, a composição de elementos de diferentes tipos de constituição e uma ajustada

distribuição de poderes entre os grupos que compõem a cidade, é a resposta que a tradição clássica já

havia dado. Maquiavel está, nos Discursos, reavivando esta crítica que os pensadores

tradicionalmente têm feito a constituições muito rígidas.

Maquiavel está incluso nesta tradição do pensamento político inspirado pelos clássicos.

Cardoso, por exemplo, localiza Maquiavel em um debate em que se oporão partidários da formulação

da república “aristocrática (os proponentes de um ‘governo stretto’, como Patrizzi e Guicciardini) e

de sua fórmula democrática (os partidários de um ‘governo largo’, como Maquiavel ou Glanotti),

num debate em que se podem identificar facilmente os elementos das matrizes platônica e

aristotélica.”51 Então, como conciliar a abertura do primeiro capítulo de O Príncipe com o que

encontramos nos Discursos? Como deveríamos interpretar a simplificada distinção dos regimentos

políticos em repúblicas e principados do primeiro capítulo de O Príncipe, tendo em conta a maneira

- muito consoante com a tradição - com que são examinados nos Discursos? O silêncio do autor em

O Príncipe, a falta de uma justificativa, explicação ou comentário quanto à sua simplificada distinção,

dificulta entender para onde Maquiavel nos direciona com ela. Se assumimos que uma nova proposta

de entender as formas de governo, uma mais acertada e mais condizente com a realidade, está sendo

proposta, teríamos um sério problema em harmonizá-la com o que está escrito nos Discursos. No

entanto, outras interpretações são possíveis. A falta de uma explanação prévia do autor não autoriza,

nem desautoriza, de partida, uma ou outra possibilidade de interpretação.

No entanto, poderíamos, ainda assim, propor uma separação radical entre os Discursos e O

Príncipe no que diz respeito à abordagem dos regimentos políticos. Poder-se-ia propor que, em O

Príncipe, opere uma tipologia mais simplificada, que não considere distinções entre tiranias e

principados legítimos, bem como entre repúblicas oligárquicas e democráticas; e que o governo misto

ou a possibilidade de misturas constitucionais estivesse fora do escopo de investigação do livro de

50 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Trad. MF. São Paulo: Martins Fontes, 2007. I, 2. p.17. Nossos itálicos. 51 CARDOSO, S. “Que república? Notas sobre a tradição do governo misto”. In: BIGNOTTO, N. (Org.). Pensar a República. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000, p. 47

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1513. Estas propostas, de qualquer modo, encontram resistências no interior do próprio livro. Em

primeiro lugar, devemos considerar a distinção entre principados legítimos e tiranias, pois não seria

errado afirmar que a este respeito O Príncipe ofereça uma perspectiva peculiar e diferente daquela

dos Discursos. Em O Príncipe, o termo tirano não é nunca utilizado, diferentemente dos Discursos,

no qual o termo é amplamente usado. Na obra de 1513, de fato, uma divisão rígida entre tiranos e

governantes legítimos é ofuscada. Maquiavel, entretanto, não é insensível quanto a ela. Podemos

reconhecer notadamente asserções feitas no livro que caracterizam (ao menos) o que se reconhece

comumente como tirania. No sexto capítulo encontra-se a caracterização de certos senhores “que mais

espoliavam seus súditos do que os corrigiam”52. No oitavo, discorre-se sobre príncipes que chegaram

ao principado “por via celerada e nefanda”53. A noção de que certos príncipes são reconhecidos ou

desprezados, amados ou odiados, tomados como criminosos ou legítimos não está ausente do

pensamento de Maquiavel em O Príncipe. Por mais profundo que possa ser o ofuscamento de uma

delimitação entre principado e tirania, não seria possível assumir que esta distinção seja inoperante

ou ignorada no livro. Quanto à indistinção entre repúblicas oligárquicas e democráticas, também não

a poderíamos afirmar como parte dos argumentos do autor em O Príncipe, pois no quinto capítulo

vemos explicitamente usada uma noção de stato di pochi como governo oligárquico54.

Por fim, também não poderíamos dizer que Maquiavel não aborde a possibilidade de misturas

constitucionais em O Príncipe. Chama atenção, especialmente, a forma como ele descreve a

monarquia francesa de seu tempo: Dentre os reinos bem governados e bem-ordenados de nossos tempos, conta-se a França, onde se encontram inúmeras constituições boas, das quais dependem a liberdade e a segurança do rei. A principal delas é o parlamento e sua autoridade, pois quem ordenou esse reino, conhecendo a ambição e a insolência dos poderosos e julgando necessário pôr-lhes um freio na boca para corrigi-los, além de, por outro lado, conhecer o ódio do universal contra os grandes, ódio este fundado no medo, e querer dar-lhe segurança, não quis que esta preocupação específica recaísse sobre o rei, a fim de poupá-lo de ser acusado pelos grandes de favorecer os populares e de ser acusado pelos populares de favorecer os grandes. Por isso, constituiu um terceiro juiz com a função de controlar os grandes e favorecer os pequenos sem ônus para o rei. Não poderia essa ordenação ser melhor nem mais prudente, pois era a maior razão da segurança do rei e do reino.55

A segurança do reino francês se dá em função de suas boas constituições. O que a constituição

Francesa garante é autoridade para uma ordenação, o parlamento, para além do próprio rei. O

parlamento gere as disputas e permite o desafogo das partes da cidade – os populares e os grandes –

sem ônus para o rei. Portanto, a fim de assegurar a posição do rei, a constituição francesa estabelece

em relação a ele contrapesos de autoridade oligárquicos e populares. A influência da tradição do

52 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo VI, p. 33 53 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo VIII, p. 39 54 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo V, p. 23 55 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XIX, p. 92

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governo misto é inegável. O tema das repúblicas e a noção de república mista não estão excluídos do

escopo de O Príncipe.

A distinção simplificada entre repúblicas e principados surpreende o leitor, mas deveríamos

supor com ela uma ruptura radical com a tradição? Uma resposta para este problema parece difícil de

ser definitivamente traçada. Arriscamos aqui uma resposta possível: outro paralelo traçado no

primeiro capítulo entre repúblicas e principados é que os domínios conquistados por um príncipe

podem ser acostumados a viver sob um príncipe ou a ser livres. Aprendemos mais tarde, no capítulo

quinto, que são livres as cidades que vivem sob suas próprias leis, onde os cidadãos ou parte deles,

exercem o governo regulado por elas. Talvez seja, não exatamente o regimento político, a forma de

governo, especifica ou exclusivamente, o que Maquiavel busca mobilizar com a afirmação de que

stati são repúblicas ou principados, mas antes o exercício e a agência do governo ou do poder. Em

certas comunidades políticas o príncipe exerce ou não exerce poder, sendo este poder exercido por

um príncipe e podendo ser conquistado pelo príncipe. Ou, alternativamente, o poder é exercido pela

distribuição ordenada por leis (oligárquicas ou democráticas) do poder entre o povo. Essas duas

formas de exercício do poder não são excludentes, pode haver estes dois stati presentes na

comunidade política. É plausível, assim, propor que quando Maquiavel afirma no segundo capítulo

que não tratará das repúblicas, restringindo-se aos principados, ele restringe-se ao exercício do poder

dos príncipes, os stati dos príncipes. No seguimento de nossa análise, devemos explorar melhor o

sentido de stato em O Príncipe, mostrando como seu sentido abrange tanto ordenação quanto ação

política, tanto príncipe quanto principado, assumindo um sentido aproximado de exercício do poder.

1.1.2. O stato entre ação e ordenação políticas Até o momento, examinamos a afirmação de Maquiavel segundo a qual todos os stati são

repúblicas ou principados. Assumimos, com essa afirmação, que o autor esteja se referindo às formas

de governo, aos regimentos políticos. Afinal, repúblicas e principados são tradicionalmente

entendidos como tais – regimentos ou formas políticas. No entanto, como vimos, a distinção muito

simplificada de Maquiavel das formas de governo em duas categorias causa surpresa e deve ser

considerada com precaução. A verdade é que Maquiavel se refere às formas de governo da república

e do principado com uma das noções mais controversas de sua obra: lo stato.56 Em primeiro lugar é

preciso ter em mente que associar diretamente o stato de Maquiavel ao Estado moderno seria um

56 Hexter inclui o termo stato na seguinte constatação: “Prof. Giuseppe Prezzolini […] observou que ‘[…] Maquiavel usa a mesma palavra para diferentes conceitos e expressa os mesmos conceitos com diferentes palavras’ […]. Os contos particularmente inconsistentes que os exploradores do vocabulário de Maquiavel trouxeram justificam as considerações desanimadoras de Prezzolini quanto às dificuldades e excentricidades do terreno. Pois, apesar de a maior parte dos relatos concordarem quanto a quais são os principais pontos - virtù, fortuna, necessità, libertà, stato - não há consenso quanto a como são estes pontos”. [HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p. 113]. Minha tradução para todas as citações deste texto.

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anacronismo. Hexter pondera sobre a pergunta se, “quando Maquiavel usa o termo stato, ele tem em

mente o Estado moderno?”. A pergunta seria, portanto, muito natural, em função, tanto do frequente

uso que Maquiavel faz do termo, quanto da importância do fenômeno mesmo do surgimento do

Estado moderno. Entretanto, a resposta é, obviamente, não, segundo Hexter. Ele justifica afirmando

que “uma concepção jurídica total e precisamente elaborada do Estado foi forjada por juristas e

autores nos anos posteriores à morte de Maquiavel. [...] [A] concepção [destes juristas e autores] foi

amolada e definida por controvérsias das quais Maquiavel nada sabia”57. Isto não quer dizer que o

uso de Maquiavel do termo stato não tenha influenciado enormemente a elaboração posterior da

noção moderna de Estado. De qualquer forma, a concepção de Estado moderno não pode auxiliar-

nos com segurança em entender o que Maquiavel quer dizer por stato especificamente em O Príncipe.

Na obra de Maquiavel, este conceito ainda guarda uma amplitude semântica maior que a

delimitação propriamente moderna de Estado. Segundo Hexter, o conceito em O Príncipe guarda

mais semelhanças com os predecessores medievais de Maquiavel do que com a tradição moderna.

Ele afirma: “por mais difícil que possa ser especificar exatamente o que Maquiavel tinha em mente

cada uma das [...] vezes que falou de lo stato”, referia-se a “algo que está na esfera ou do status regis

ou do status regni, nos sentidos que estas duas expressões adquiriram na Baixa Idade Média”.

Maquiavel herda estes dois sentidos políticos de status: “um que focava no governante e nos atos de

governar” (status regis), e “o outro na ordem, na estrutura política e no modo de vida do governado”

(status regni)58. O conceito transita entre dois sentidos: um sentido de agência política – de exercício

ou possibilidade do exercício do governo –, outro de estrutura de uma esfera, local ou âmbito políticos

– o conjunto de ordenações e leis que constituem e organizam o exercício do governo associado a um

povo e um território. Não pretendemos afirmar que Maquiavel recebe passivamente a concepção

política de status da Idade Média, e deve-se observar que o Humanismo Cívico de forma geral e

Maquiavel em específico têm suas particularidades quanto à noção de stato. De qualquer modo,

podemos começar afirmando que, em Maquiavel, este termo, assim como na Idade Média, está

envolto em um jogo complexo de sentidos.

A complexidade do sentido de stato já pode ser apreciada no primeiro capítulo de O Príncipe.

Ao descrever o que entende por este termo e, consequentemente, o que há de comum entre repúblicas

e principados, Maquiavel nos dá uma caracterização intrigante. Ele relaciona a noção de stato às de

domínio e ter império sobre os homens. O autor está identificando o termo stato a domínio, e

atribuindo-lhe o predicado ter império sobre os homens. Mas como devemos entender esta

proposição? O que querem dizer estes termos? É uma terminologia vaga diante de uma tradição que,

57HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), pp. 115-116 58 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), pp. 118-119

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desde os antigos romanos, nunca deixou de usar, recuperar, modificar e reinterpretar estes termos à

exaustão - status, dominus, imperium. Maquiavel não nos localiza, não nos orienta em que sentido

está usando seus termos59. A descrição do stato no primeiro capítulo é imprecisa na falta de uma

introdução, prefácio ou explicação prévia do autor que nos encaminhe em que sentido deve-se

entender seus termos. Entender o stato em Maquiavel é tarefa crucial, mas extremamente difícil, pois,

como afirma Corrado Vivanti, “o termo ‘Estado’ nunca é objeto de uma definição; ao mesmo tempo,

aparece alternando sempre os vários significados, mesmo que com diferentes matizes, e, em nenhuma

de suas obras, encontra-se ocorrência mais circunscrita ou unívoca.”60. Felix Gilbert já havia alertado

que não só em Maquiavel, mas em seus contemporâneos e na literatura política do século XV, “o

sentido de stato é flexível”. Significava “o poder e o aparato de poder de um governante ou de um

grupo de governantes”. Algumas vezes usa-se “stato para designar uma área geográfica”. E o termo

poderia também servir para indicar a forma de governo61. Hexter, delimitado ao exame de O Príncipe,

apresenta um quadro mais detalhado e complexo:

Algumas vezes, parece significar o povo: lo stato é governado. Algumas vezes, parece significar a terra: na França, pode-se sempre contar com um barão para abrir caminho a lo stato para o inimigo. Algumas vezes, parece significar a terra e o povo: os venezianos queriam ganhar metade de lo stato da Lombardia. Algumas vezes, parece significar recursos em geral: é importante saber se o príncipe tem stato suficiente para defender-se. Algumas vezes é a classe dominante: os Espartanos criaram uno stato di pochi em Tebas. Algumas

59 “Tutti gli stati, tutti e’ dominii che hanno avuto e hanno imperio sopra gli uomini, sono static e sono [...]” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Diogo Pires Aurélio, 2008, 2017. p.90]. A dificuldade em se compreender estes termos vemos atestada na impressionante variedade de traduções para eles. Limitamo-nos a alguns exemplos. Em português, Diogo Pires Aurélio traduz: “Todos os estados, todos os domínios, que tiveram e têm império sobre os homens, foram e são […]”[MAQUIAVEL , Nicolau. O Príncipe. Tradução de Diogo Pires Aurélio, 2008, 2017, p.91]. Maria Júlia Goldwasser traduz: “Todos os estados, todos os domínios que tiveram e têm império sobre os homens foram e são […]” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.5]. Mário e Celestino da Silva: “todos os estados, todos os domínios que exerceram e exercem poder sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou principados” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe: com notas de Napoleão Bonaparte e Cristina da Suécia. Brasília: Senado Federal, 1998 (Trad. Mário Celestino da Silva) (Coleção “Clássicos da Política”, v. “Conselhos aos Governantes”), p. 131]. Em inglês, a tradução de Russel Price é: All the states, all the dominions that have held sway over men, have been [...]” [Machiavelli, Niccolo. Machiavelli: The Prince (Cambridge Texts in the History of Political Thought) (Kindle Locations 623-624). Cambridge University Press. Kindle Edition. 2012 (1988)]. Robert M. Adams traduz: “All the states and governments that ever had or now have power over men were and are […]” [MACHIAVELLI, Niccolo. The Prince: A Norton Critical Edition, ed. and trans. Robert M. Adams. New York: Norton, 1977. p. 4]. HEXTER, J. H. : “All stati all dominations that have had and have political command over men have been and are […]” [HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957)]. Em francês, Jean-Louis Fournel e Jean-Claude Zancarini traduzem: “Tous les états, toutes les seigneuries qui ont eu et ont un commandement sur les hommes, ont été et sont […]” [MACHIAVELLI, Niccolo. De principatibus = Le prince. Coautoria de Jean-Louis Fournel, Jean-Claude Zancarini. Paris: Presses Universitaires de France, 2000, p. 45]; eles comentam sua tradução, retomando outros caminhos escolhidos em francês: “seigneurie (dominiii): […] ‘seigneurie’ chez Gohory; ‘souveraineté’ chez Guiraudet; ‘domination’ chez Périès; ‘puissance’ chez Lévy; ‘pouvoir’ chez Bec […] Commendement (imperio): […] ‘commendement’ […] chez Gohory et Barincou; ‘autorité’ chez Guiraudet, Lévy et Bec; ‘empire’ chez Périès.” [MACHIAVELLI, Niccolo. De principatibus = Le prince. Coautoria de Jean-Louis Fournel, Jean-Claude Zancarini. Paris: Presses Universitaires de France, 2000, pp. 223-4]. 60 Vivanti, Corrado. Nicolau Maquiavel – nos tempos da política (Kindle Locations 2876-2878). Kindle Edition. Martins Fontes: São Paulo, 2016 61 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence. Princeton University Press, 1965, p. 177. Minha tradução para todas as citações deste texto.

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36 vezes, parece significar o governo sem o povo: o povo precisa de lo stato e lo stato precisa do povo. Algumas vezes, parece significar o povo, a terra e o governo juntos: a Itália é dividida em più stati. Uma vez que lo stato ‘tem comando’ [imperio]; ordinariamente é comandado. E assim por diante.62

A flexibilidade do sentido de stato torna-se uma dificuldade uma vez que esta noção é crucial

nos argumentos desenvolvidos em O Príncipe. Como expressa Hexter, stato é “uma das palavras mais

importantes nos escritos de Maquiavel – uma das palavras que ele escreve em lugares muito cruciais

para indicar o que ele tem em mente”63. Se, quando Maquiavel usa o termo stato, “ele o faz para

indicar alguma coisa que tem em mente”, se stato é um dos termos que “proporciona a ossatura de

sua escrita”64, então a indeterminação quanto a um sentido coerente desta noção põe em risco uma

compreensão coerente da obra do autor como um todo. Assim, por mais que possamos aceitar sentidos

variantes e usos diversos da noção de stato, não podemos prescindir de uma certa coerência ou

unidade que permita ao menos identificar um conjunto de elementos que se relacionam e direcionam

a um mesmo horizonte, por mais geral e distante que ele seja.

Portanto, continuemos no stato como o termo é introduzido no primeiro capítulo de O

Príncipe. Stati são principados ou repúblicas; são domínios; e têm império sobre os homens. Partindo

disso, podemos arriscar outras associações. Depois de introduzir a noção de stato, Maquiavel parte

para o que parecem ser as tarefas do capítulo primeiro anunciadas no título - explicitar os gêneros de

principados e de que modos se adquirem. Sendo o principado um stato, poderíamos esperar encontrar,

na descrição de stato, elementos importantes para a compreensão do principado. O que chama

atenção, novamente, é a concisão abrupta do autor. O leitor poderia esperar deste capítulo uma divisão

detalhada, que considerasse exaustivamente os aspectos do tema dos principados. O que os leitores

encontram no capítulo, entretanto, são distinções limitadas a uma única oposição (hereditariedade e

inovação) e a uma perspectiva específica (aquela do príncipe). Ao circunscrever todos os gêneros de

principados na oposição hereditário-novo, um aspecto muito restrito do tema não estaria sendo

considerado? Deparamo-nos com esta dúvida se levamos em conta outras abordagens tradicionais e

célebres de se tratar o principado ao longo da história desconsideradas por Maquiavel no primeiro

capítulo, como a divisão entre tiranos e monarcas já mencionada da tradicional divisão das formas de

governo; ou a divisão medieval de Fortescue entre regnum regale e regnum politicum et regale65. E

não precisaríamos sair do interior de O Príncipe para constatar a falta de abrangência dos gêneros

apresentados em sua abertura. No decorrer do livro, outros gêneros, outras caracterizações de

principado são apresentadas e consideradas. No capítulo IV, passamos a conhecer a distinção entre

62 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.124 63 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p. 115 64 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.114 65 Cf. POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003. p. 20. Minha tradução para todas as citações deste texto.

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principados nos quais a autoridade do príncipe é absoluta e nos quais a autoridade é dividida com

outros senhores; nos capítulos IX e XI, respectivamente, passamos a conhecer outros dois gêneros

possíveis de principados: o civil e o eclesiástico. Estas caracterizações fogem ao escopo da oposição

principados hereditário-novo. Por que não seriam estes também outros gêneros de principados?

No primeiro capítulo de O Príncipe, principados são hereditários ou novos. Maquiavel

descreve o primeiro gênero como aqueles principados nos quais o governante é do mesmo sangue do

governante anterior: os principados hereditários. De que os principados sejam stati, temos a noção de

stato hereditário. Nestes stati, “a linhagem de seu senhor é príncipe há muito tempo”. Que um

principado hereditário tenha seu (loro) senhor - que é, e cujo sangue também é, príncipe – é de se

levar em consideração, pois aqui se desdobra a concepção de ter império sobre os homens: império

exercido sobre e por homens, por senhores e príncipes. Em contraposição aos principados hereditários

temos os principados novos, que são divididos em dois subgêneros: são como membros anexados a

um principado hereditário ou em tudo novos. No primeiro caso, Maquiavel nos fala de “membros

anexados ao stato hereditário do príncipe que os conquista” 66. Temos então, novamente a figura do

príncipe, do senhor, que, pode não só herdar, como conquistar e anexar membros a seu stato. Quando

o faz, o príncipe governa, como saberemos no capítulo III67 , um principado misto, isto é, um

principado hereditário que é expandido pela anexação e conquista. Estes territórios são novos, pois

há a introdução de um novo governante. O governo introduzido, entretanto, não deixa de ser

hereditário em certo sentido, e é novo na medida em que é transposto ou expandido. O centro

gravitacional da distinção permanece no governante. Nápoles é um novo membro anexado ao

domínio de Fernando II de Aragão, rei da Espanha. O domínio de Fernando II, entretanto, é

hereditário; é novo para Nápoles, mas não para o povo espanhol68.

No segundo subgênero, os principados ditos em tudo novos, o príncipe não somente conquista

o principado, mas o funda. Lefort nota que, no primeiro capítulo, Maquiavel “se arranja para não

mencionar o caso da fundação do Estado, [...] de tal sorte que o Estado parece preexistir à ação do

sujeito político”69. De fato, pouco é explicitado no primeiro capítulo sobre o que se entende por

principados inteiramente novos. No entanto, o exemplo de Francesco Sforza não deixa dúvida. Ele é

retomado no sétimo capítulo como exemplo para um dos “modos [...] de tornar-se príncipe”70 . E

“aqueles que [...] se tornam príncipes” são os que devem “fundar seu stato e sua segurança”71. O

principado não é meramente expandido pela anexação de novos membros, mas fundado. Francesco

66 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo I, p. 5 67 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo III, p. 9 68 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo I, p. 5 69 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 348 70 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo VII, p. 30 71 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo VI, p. 27. Nosso itálico.

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dá início à dinastia Sforza como governantes italianos pela conquista do ducado de Milão,

suplantando a família Visconti como governantes. Seu status de governante é novo, assim como seu

principado – Sforza “passou de homem privado a duque de Milão”72. Novamente, portanto, desponta

a figura do príncipe, do senhor, junto das noções de stato e principado. E notamos que ela também é

salientada no padrão da forma como são expostos os exemplos de principados novos. Maquiavel nos

diz que Milão foi como um principado em tudo novo para Francesco Sforza; e que o reino de Nápoles

é como um membro acrescentado ao seu domínio para o rei da Espanha. Um principado é de

determinado gênero para determinado governante, diz-nos a forma como Maquiavel apresenta seus

exemplos73. Esta maneira de formular seus exemplos delimita uma perspectiva, um ponto de vista

particular - a perspectiva de Sforza e do rei da Espanha - a perspectiva do príncipe, do senhor.

Os gêneros de principados elencados por Maquiavel no primeiro capítulo parecem estar

circunscritos à posição e à figura do príncipe. Principados podem ser herdados ou conquistados pelos

príncipes. É a partir deste critério, o da agência do príncipe (se herda ou conquista), que se caracteriza

os principados no primeiro capítulo. Lefort entende esta relação entre o gênero de principado e a

perspectiva do príncipe no primeiro capítulo da seguinte forma:

Maquiavel classifica todos os Estados, antigos e modernos, em duas categorias, depois distingue diversos tipos de principados; ele só o faz adotando a perspectiva do príncipe [...]. Por um lado, o objeto, o principado, é apreendido em uma definição que o constitui como resultado de operações do sujeito [...]. Por outro lado, o sujeito, o príncipe, só é ele mesmo determinado relativamente ao lugar que ele ocupa em relação ao objeto.74

A tipificação apresentada por Maquiavel imbrica indissociavelmente príncipe e principado, como que

toma a classificação de um pela do outro. Conhecemos se o principado é novo, conhecendo se o

príncipe é novo; ou se o principado é hereditário, sendo o príncipe hereditário; ou se um domínio só

é novo enquanto membro anexado, sendo o príncipe hereditário em um principado, mas novo por

expandir seu território em outro. Em conflito com o que o título do primeiro capítulo de O Príncipe

nos diz, seu objeto não parece ser o principado, mas o príncipe.

A preeminência da perspectiva do príncipe continua na distinção seguinte: “os domínios assim

conquistados ou são acostumados a viver sob um príncipe, ou a ser livres”75. Ora, se todos os stati,

que têm império sobre os homens, são ou repúblicas ou principados, então cada um deles deve

acostumar seus homens a uma forma de governo ou outra. Portanto, todos os stati são acostumados a

viver sob um príncipe ou a ser livres. Entretanto, o que Maquiavel afirma é levemente mais complexo.

A distinção se dirige aos principados novos e Maquiavel salienta o processo de conquista envolvido.

72 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo VII, p. 30 73 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo I, p. 5 74 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 348 75 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo I, p.5

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O autor se refere aos domínios assim conquistados. O costume à liberdade ou à vida sob um príncipe

parecem ser importantes, não de forma geral ou como uma propriedade de todos os stati, mas da

perspectiva do príncipe, aquele que conquista o principado. Por fim, a perspectiva daquele que

adquire o principado se torna patente nas últimas considerações do autor no capítulo. São as

habilidades e capacidades, bem como a potência bélica daquele que adquire um novo principado que

são consideradas - por sua virtù ou por sua fortuna, por seu poder bélico ou pelo poder bélico alheio,

os principados são adquiridos. São considerações que concernem diretamente aos príncipes ou aos

que querem se tornar príncipes, são suas ações, sua habilidades e potencialidades que são sublinhadas.

Entretanto, se observamos atentamente, de que modo se adquirem os principados é a pergunta central

de todo o primeiro capítulo e não somente de suas últimas considerações. O eixo no qual se alinham

todas as asserções é a aquisição do principado.

Claude Lefort faz a seguinte reflexão: “Maquiavel [...] formula em seu capítulo de introdução

duas questões: ‘quantas espécies há de principados e por quais meios eles são adquiridos’. Na

verdade, ele retém somente uma delas, a segunda, como se ele determinasse o sentido da primeira”.

Distinguir principados entre novos ou hereditários nada mais é do que um aspecto da questão de como

se adquire um principado: por conquista ou por hereditariedade. Distinguir membros anexados de

principados em tudo novos seria detalhar as consequências da conquista: ela funda ou expande o

poder do príncipe. Desta forma, Lefort conclui sobre o conteúdo que parece efetivamente compor o

primeiro capítulo: “somente, parece, a tomada do poder retém [...] a atenção” de Maquiavel “e lhe

fornece o critério de sua classificação”76. Se no primeiro capítulo é a tomada principado o que rege

sua classificação, a questão colocada no segundo versa centralmente sobre seu governo e manutenção.

Novamente, a perspectiva do príncipe e de sua agência é fundamental. O principado, em particular,

aparece sempre sob a ação, a regência de um príncipe; o stato, em geral, sempre associado à ação de

pessoas ou grupos de pessoas.

É a constatação da preeminência do príncipe na referência aos principados – e, assim, da ação

política, de forma geral, em relação aos stati - que queremos primeiramente sublinhar na compreensão

destas noções. Verificamos que o stato e o principado estão sempre associados à atividade de um

agente político. O principado é herdado, conquistado, fundado, mantido e governado. É algo que se

adquire, que se mantém e que se perde. Estas operações devem ser praticadas ou evitadas pelos

príncipes. Esta forma de abordar o principado é nitidamente expressa na carta de Maquiavel a

Francesco Vettori de 10 de dezembro de 1513, uma das principais fontes às quais recorrem os

estudiosos para entender a proposta e as circunstâncias da redação de O Príncipe. Maquiavel anuncia

a Vettori a composição de “um opúsculo, De principatibus,” no qual se aprofunda quanto pode “nas

76 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 332

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cogitações a respeito deste objeto, discutindo que coisa é o principado, de que espécies são, como são

adquiridos, como são mantidos e por que são perdidos.”77. Maquiavel não se refere a governo ou

governar aqui, mas expressa um conjunto de atividades em harmonia com O Príncipe: adquirir,

manter e (evitar) perder o principado.

Se lemos o termo munidos por seu sentido moderno, stato parece ter o sentido de corpo

político, da cidade e suas leis, para além do governante ou qualquer agente. Poderíamos entender que

a manutenção do stato refere-se à subsistência do corpo político, não de seu governante ou de seu

regimento. Ao adquirir ou perder o stato, os governantes estariam operando nas condições acidentais

do stato, este não perdendo sua substância constitutiva. Hannah Arendt, que entende que Maquiavel

teria em mente já uma concepção moderna de Estado – o Estado-nação -, assume estas concepções.

É importante lembrar que Arendt não se propõe uma comentadora da obra de Maquiavel, nem se

compromete com uma interpretação estrita e rigorosa. A autora se utiliza de uma interpretação

coerente, mas limitada e orientada a seus próprios interesses teóricos. De qualquer modo, Arendt não

propõe uma interpretação inusitada ou extravagante da noção de stato e a clareza com a qual expõe

este entendimento do termo e suas consequências é muito instrutiva para nossos objetivos aqui:

A palavra stato vem da expressão latina status rei publicae, cujo equivalente é “forma de governo”, no sentido que encontramos ainda em Bodin. O elemento característico é que stato deixa de significar “forma” ou um dos “estados” possíveis da esfera política, e passa a significar aquela unidade política subjacente de um povo, que pode sobreviver à sucessão dos governos e também das formas de governo. O que Maquiavel tinha em mente, é claro, era o Estado-nação, isto é, o fato, que é uma coisa natural somente para nós, de que Itália, Russia, China e França, dentro de seus limites históricos, não deixam de existir junto com qualquer forma de governo.78

Um exame mais cuidadoso e detido de O Príncipe, entretanto, logo nos causa dúvida quanto

à interpretação de Arendt, junto de muitos outros autores e comentadores, sobre o que Maquiavel tem

em mente quando fala do stato. Hexter adverte que “uma coisa que lo stato nunca significa em O

Príncipe é o Estado concebido como um corpo político transcendente aos indivíduos que o

compõem”79 . É preciso ter em mente o que significa manter o principado mais precisamente.

Recuperando seu sentido etimológico, manter significa “ter em mão”, “segurar”80. Este sentido da

77 MACHIAVELLI, Niccolo. De principatibus = Le prince. Coautoria de Jean-Louis Fournel, Jean-Claude Zancarini. Paris: Presses Universitaires de France, 2000, p.530, nossos itálicos e tradução. 78 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Tradução de Denise Guimarães Bottmann; Apresentação de Jonathan Schell. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2011, p. 356 [Capítulo 1, nota 24]. Tradução alterada. 79 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.133 80 O Vocabolario etimologico della lingua italiana de Ottorino Pianigiani nos dá a seguinte entrada para mantenere: “mantenère prov. e sp. mantener; fr. maintenir; port. manter: dal lat. MANU-TENERE tenere in mano. Propr. Tener fermo e fisso; e nel senso figurato Conservare nel medesimo stato (come il ted. hand-haben che vale avere in mano, e fig. proteggere). …” [consultado 6 de fevereiro de 2019: https://www.etimo.it/?term=mantenere&find=Cerca]. É interessante notar que Pianigiani atribui os sentidos figurados de conservare e proteggere ao termo, mas destaca o sentido literal de tenere ou avere in mano. HEXTER, J. H. observa que, em O Príncipe, “mantenere retém seu significado etimológico:

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palavra enfatiza o sujeito da ação, diferentemente do sentido de “sustentar”, “preservar” ou

“conservar” que poderíamos também atribuir a ela. Expliquemos: quando dizemos que o principado

é sustentado, ou é preservado, ou é conservado, entendemos o sentido da oração sem grandes

problemas; não nos perguntamos, em geral, sobre o agente da passiva, nestes casos81. Isto, porque o

sentido destes verbos dá ênfase ao objeto e não ao agente. Se pensamos no sentido de sustentar,

preservar ou conservar, o que nos interessa, em geral, é o que é sustentado, preservado ou conservado.

Todavia, quando afirmamos que algo é tido em mãos, queremos logo saber - nas mãos de quem? A

ênfase está no sujeito, no agente. Se usamos ter em mãos na voz passiva, o sentido da oração pareceria

incompleto, se não somos informados, anteriormente ou na própria oração, do agente do verbo.

É especialmente significativo também o exemplo de Francesco Sforza como fundador em

Milão. Lefort o aborda enquanto uma dificuldade a ser esclarecida: se Maquiavel “fala de um

principado inteiramente novo e confronta a hipótese da fundação do Estado ou de uma mudança

radical de regime no Estado, por que dá como modelo Francesco Sforza que não fez mais que

substituir a tirania dos Visconti pela sua?”82. Deve-se lembrar, entretanto, que o que está em questão

nos capítulos VI e VII é a passagem de homem privado a príncipe, é nestes termos entendida a

fundação. Ela pode, é evidente, significar a fundação mesma da unidade do corpo político ou uma

mudança radical na forma de governo; mas a passagem à condição de príncipe é a condição necessária

da fundação do principado.

É muito instrutivo como Hexter conduz seu estudo em Il Principe and lo stato. O comentador

investiga o que Maquiavel entende por stato em O Príncipe, buscando responder ao problema da falta

de um uso consistente deste termo. Hexter reconhece a extrema variabilidade de sentidos assumida

por esta noção, mas não conclui disso que seu uso seja inconsistente. A consistência da noção de stato

não está no sentido atribuído a ela - o que Hexter reconhece ser realmente complexo e variável -, mas

no uso que dela é feito no desencadeamento argumentativo do autor. A consistência está em uma

atividade sempre direcionada ao stato, a uma relação constante que ele estabelece com os agentes

políticos. Ao longo das páginas de O Príncipe, são as atividades da manutenção, conquista, fundação,

perda e governo do stato que são reiteradamente avaliadas e ensinadas por Maquiavel. Junto delas,

aprendemos que é do interesse dos príncipes também conhecer outras operações correlatas: ocupar,

acrescentar, atacar, entrar, juntar, tirar, deter, possuir, ser expulso dos – principados e statos. Todas

ter em mão (to hold in hand)”. Hexter também afirma ser acurada a tradução de mantenere lo stato para o inglês: keep lo stato in hand; keep a grip on lo stato. [HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.120] 81 Tanto é assim que, em português, quando buscamos converter estas orações na voz passiva analítica para a voz passiva sintética, incorremos em uma ambiguidade. Sustenta-se, preserva-se, conserva-se o principado: é difícil identificar se estas orações estão na voz passiva ou na voz reflexiva. O mesmo não ocorre com ter em mãos. Ao afirmar que tem-se o principado em mãos, parece absurda a possibilidade de se interpretar a oração como, o principado tem a si mesmo em mãos, e supomos um agente específico omitido da oração. 82 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard,1972. p.333

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estas atividades, quando são apresentadas em O Príncipe, comportam-se de maneira comum: têm o

príncipe como agente e o principado ou o stato como objetos. Esta relação entre príncipe e principado

é constante na obra. É salientemente frequente no livro o príncipe ser enfatizado como agente sobre

o principado e o principado ser abordado como objeto, raramente como sujeito, da ação de agentes

políticos (em geral os príncipes). Há uma consistência quanto ao uso destes verbos em relação aos

príncipes e aos principados: “a consistência não repousa em uma denotação claramente especificada

e continuamente aderente de lo stato, mas em uma atitude ordinariamente consistente em relação a

ele; e esta atitude é exploradora [exploitative]” 83

Hexter chama esta atitude ou relação de exploradora e especifica o sentido que quer dar a ela:

“a ação da qual lo stato é o objeto quase sempre é exploradora; ela manipula e maneja lo stato para o

benefício daquele que está no controle ou que quer estar no controle”84 Principados são stati, e é

tarefa do príncipe manter o principado; é tarefa do príncipe manter lo stato. Manter é ter em mãos -

o que foi adquirido; evitando-se que se perca. Se stato é domínio que tem império sobre homens,

então manter o principado, manter lo stato do príncipe, implica manter-se numa posição de domínio,

poder exercer império sobre homens. É sobre este ponto que Maquiavel é insistente: só se governa

enquanto se mantém no governo. Conservar o principado assume o sentido mais específico de

conservar-se no principado, preservar-se na posição de príncipe. É neste sentido que Hexter entende

que Maquiavel “não distingue absolutamente o príncipe mantendo lo stato e o príncipe mantendo-se

em lo stato ou simplesmente mantendo-se”85. Maquiavel está trazendo para seu debate um conjunto

de considerações sobre a capacidade do príncipe de manter-se no posto de governante. Deve-se notar que, no segundo capítulo de O Príncipe, Maquiavel coordene na formulação de

sua questão governar e manter – como podem ser governados e mantidos. A atividade de manter o

principado é enfatizada por Maquiavel. A ênfase sobre a atividade de manter o principado é atestada

constantemente ao longo das páginas de O Príncipe. A cada capítulo, sob diferentes aspectos e

considerando diferentes contextos e casos, a questão permanece e é lembrada constantemente pelo

autor: como manter o principado? É preciso estar atento a como esta constatação é apresentada pelo

autor em contraposição a seus antecessores na arte de aconselhar os governantes. Certamente, supõe-

se que governar um principado implica mantê-lo. Aquele que governa exerce, dentre outras funções,

a preservação da autoridade do governo sobre os governados, evitando desordens, conspirações e

ataques inimigos. Isto não passou desapercebido aos olhos das tradições clássica e cristã. Entretanto,

estas tradições também sustentavam que a mera conservação do poder não esgotaria a atividade de

governar e reconheciam na figura do tirano aquele que governava visando exclusivamente a

83 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), pp. 124-125 84 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.122 85 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.120.

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preservação do poder. Tradicionalmente, a mera subsistência do poder não era considerada requisito

suficiente para o verdadeiro exercício da política, para o bom governo. O exame que Claude Leford

faz do quinto livro da Política de Aristóteles sublinha explicitamente este aspecto:

É verdade que a Política de Aristoteles, em seu quinto livro, examinava os meios dos quais dispõe um Poder, qualquer que seja sua natureza, para dispersar as revoluções que o ameaçam, mas o estudo se fundava sobre uma definição do Estado que não nos permitia duvidar das intenções do autor. Ela ensinava, em primeiro lugar, que a organização do Estado estava subordinada ao princípio da justiça; que o bom regime assegurava uma harmonia entre os diversos elementos da comunidade; em consequência, que um regime era defeituoso e vulnerável quando ele privilegiava abusivamente um de seus elementos, e ordenado e resistente quando colocava freios à desmesura. De tal sorte que a análise da tirania, por mais audaciosa que fosse na tentativa de fixar regras de sua conservação, inscrevia-se, sem equívocos, na busca pelo Bem. Se o interesse do príncipe poderia lhe servir de suporte, é porque a essência do Estado se fazia reconhecer até nas formas viciosas [de governo] e porque o bem do tirano e o bem comum não podiam se desmembrar totalmente sem provocar a ruína do poder.86

Aristóteles, e a tradição clássica de maneira geral, certamente dedicou esforços em avaliar os

meios pelos quais melhor se preserva o poder, mas o fez direcionado por uma série de pressupostos.

Examina-se a preservação do poder pressupondo que a atividade de governar deveria estar

subordinada a um princípio de justiça e à busca do bem; que um bom regime é o que garante a

harmonia e previne a desmesura na vida política; e que há uma distinção entre formas viciosas e

formas corretas de governo, portanto, uma distinção entre os verdadeiros governantes e os tiranos. Os

tiranos são aqueles que governam colocando o seu bem privado acima do bem da comunidade e do

regulamento dos princípios de justiça e harmonia. Assim, o tirano tende a desmembrar os seus

interesses e os da cidade. Este desmembramento, entretanto, se se efetivasse completamente,

significaria a ruína completa do poder: a destruição da cidade significa a destruição da fonte de

domínio do tirano. Neste sentido, o exercício do poder do tirano é visto como vicioso, na medida em

que tende à corrupção do corpo político; e o exame dos meios para a preservação do poder, embora

também se apliquem aos tiranos, só se justifica se direcionado propriamente ao bom governo, que

visa a perfeição do corpo político, realizando nele o verdadeiro bem, a justiça e a harmonia.

A tradição cristã não apresenta uma atitude muito diferente da dos pensadores clássicos neste

aspecto. Lefort compara a proposta de se examinar como se mantêm e governam os principados de

Maquiavel a de Egidio Colonna em De Regimine principum (1473), que “esforçava-se em conciliar

os príncipes cristãos com as exigências práticas do governo dos homens”. Estas exigências práticas,

entretanto, só poderiam ser apreciadas depois de considerada a função do príncipe em um mundo bem

ordenado por Deus: “antes de chegar, finalmente, ao exame da política do príncipe, em tempos de

guerra e em tempos de paz, ele devia se perguntar a quais fins a comunidade da família, da cidade e

86 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, p. 347

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do Estado havia sido criada por Deus”87. O que observamos é, também na tradição cristã, uma série

de pressupostos e princípios de bem governar aos quais deve estar submetido o príncipe para que suas

exigências práticas e seu exercício da guerra não o façam ser reconhecido como um tirano - é somente

sob a vocação de Deus e na ordem de Seu reino que os príncipes garantem seu direito de comandar e

preservar seu comando.

A maneira como Maquiavel introduz a questão da preservação do poder é sensivelmente

diferente da tradição clássica e cristã. Lefort o contrapõe a Aristoteles e Colonna mostrando que a

questão de Maquiavel “não surge do interior de um discurso e de um mundo ordenados, nos quais

aquele que a coloca” a questão teria “somente de reconhecer o lugar que [lhe] é assinalado”88. Como

já notamos, Maquiavel inicia seu livro sem direcionar seu leitor a uma tradição de pensamento

específica. Isto certamente dificulta a compreensão quanto a seu método e quanto à forma como usa

seus termos. No entanto, isto também nos indica algo importante: Maquiavel parece também não estar

preso a uma ideologia ou visão de mundo estabelecida. O autor introduz a obra com distinções e

proposições centradas em como os principados são adquiridos. Em seguida, formula a sua questão:

como são governados e mantidos os principados? A discussão quanto aos meios pelos quais se adquire

e conserva o principado, em O Príncipe, prescinde de princípios, uma natureza ou ordem divina, ela

é colocada por Maquiavel como ponto inicial e central. Nos termos de Lefort, “tudo se passa como

se doravante uma só questão comandasse a reflexão política […] : ‘disputar por quais maneiras [os

principados] podem ser governados e conservados’”89; em contraposição às questões de Aristóteles

no quinto livro da Política e de Colonna em De Regimine principum , “a questão maquiaveliana […]

se reduz a seus próprios termos”90.

Ao sublinhar o exercício da manutenção do poder como tarefa do governante, Maquiavel

reconsidera a advertência de seus antecessores quanto à tirania. Se é verdade que a manutenção não

esgota o exercício do poder, é igualmente verdade que constitui condição primária para qualquer

comando ou autoridade. Manter o principado é tarefa comum aos tiranos e aos governantes legítimos

(seja lá por que parâmetros venhamos a distinguir estes personagens). Que seja uma atividade

primária, não se segue que seja simples. É isto o que repetidamente nos adverte Maquiavel ao longo

das páginas de O Príncipe com seus exemplos: o autor narra diversas histórias de homens excelentes

que se arruinaram ou tiveram um triste fim. Se estes homens excelentes não puderam conservar o

principado, isto atesta que esta atividade não é simples. Não significa, entretanto, que aqueles que

foram o inverso de excelentes, homens maus e viciosos, tenham tido sucesso nesta tarefa, pois para

87 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, pp.346-347 88 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, p.347 89 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, p.346 90 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, p. 347

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eles a tarefa da manutenção é igualmente árdua. Um aviso não pode fugir à boca do conselheiro:

como é fácil arruinar-se e difícil conservar-se.

Podemos verificar como a ênfase na manutenção do principado contribui para a nebulosa

posição assumida pela figura do tirano na obra de Maquiavel, se examinamos o exemplo de Agátocles

Siciliano no capítulo VIII. Maquiavel não utiliza o termo tirano para se referir ao personagem; no

entanto, a descrição não deixa dúvidas do local que ocupa diante da tradição. Como indica o título do

capítulo, Agátocles é um “dos que chegaram ao principado por atos criminosos [per scelera]”. Ele

decidiu “tornar-se príncipe e manter, pela violência e sem obrigações para com os outros, aquilo que

por acordo lhe havia sido concedido”91. E, para tanto, não se poupou de “assassinar seus concidadãos,

trair os amigos, não ter fé, piedade nem religião”92. Por que o interesse de Maquiavel sobre uma tal

figura? O que permite ao autor apresentar o exemplo de um tirano como suficiente “para quem

precisar imitá-[lo]”93, portanto, como fonte de ensinamentos valiosos aos príncipes? Maquiavel assim

escreve sobre Agátocles:

Poderia alguém perguntar-se de que forma Agátocles e outros semelhante, após infinitas traições e crueldades, puderam viver por tanto tempo seguros em sua pátria e defender-se dos inimigos externos, sem que jamais seus súditos conspirassem contra eles, enquanto muitos outros, empregando a crueldade, não conseguiram manter seus stati nem nos tempos de paz, nem nos incertos tempos de guerra. Creio que isso resulte da crueldade mal ou bem empregadas.94

Não é pela crueldade de Agátocles que seu exemplo é narrado, mas por sua crueldade bem

usada. A crueldade é bem usada na medida em que permitiu ao governante defender-se dos inimigos

externos e das conspirações internas, permitiu manter o stato. Este feito, manter o stado, é o que

permite Agátocles se tornar um exemplo no escopo de O Príncipe, não a crueldade em si. O caminho

da crueldade é tão árduo quanto o da bondade; afinal, Agátocles “chegou ao principado e depois o

manteve com tantas decisões corajosas e perigosas”95. A tarefa de manter o principado nivela tiranos

e os bons governantes aos olhos do conselheiro, pois esta tarefa é ao mesmo tempo primordial e

dificultosa. Se Agátocles a realizou sob condições adversas e com extrema habilidade, seu exemplo

deve ser mencionado, mesmo que se o reconheça como um tirano.

A especial ênfase de Maquiavel quanto à necessidade imposta ao príncipe de manter o stato,

de manter-se na posição de comando - quanto à inevitabilidade de que, como coloca Lefort, “do

simples fato que o Estado existe, o príncipe é posto em uma das situações particulares que nós

91 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo VIII, p. 39 92 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo VIII, p. 40 93 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo VIII, p. 39 94 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo VIII, p. 43 95 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo VIII, p.40

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podemos observar e na necessidade de efetuar as operações que lhe prescreve seus status”96 – poderia

corroborar a interpretação de Hexter, segundo a qual “a única verdade que importa a Maquiavel em

O Príncipe [...] é se o príncipe vence, mantém o que tem, guarda lo stato, ou perde, perde o que tem,

perde lo stato”97 , de forma que “não há justificativa para a relação do príncipe com lo stato. Não

pode haver nenhuma, porque lo stato não é [...] um corpo político; é um instrumento de exploração,

o mecanismo que o príncipe usa para conseguir o que quer”98. De fato, não parece haver uma

justificativa moral para o príncipe assumir e manter a posição que ocupa (além da própria capacidade

de assim os fazer). Especialmente, no sentido do expor por qual “direito”. O príncipe tem seu stato,

para tanto, adquiriu-o de alguma forma e necessita mantê-lo. Este fato é explanado, explicado,

detalhado e ponderado pelo autor; mas raras vezes questionado “por que direito?” . Assim, o estudo

de Hexter cumpre papel fundamental em nos alertar que, se atribuímos ao termo stato

descuidadamente o sentido de corpo político, de Estado moderno ou Estado-nação, perdemos de vista

que manter, instaurar ou gerir o stato denotam com mais força e nunca estão separados do sentido de

manter, instaurar ou gerir o exercício do poder e da autoridade.

De qualquer modo, se reduzimos stato ao mero comando, império indiscriminado exercido

por alguém, corremos o risco de perder de vista que este poder se faz sobre territórios e homens que

neles habitam, organizados por este império de determinada forma, que se instaura mediante

ordenações e leis. Para entendermos bem o conceito de stato temos de estar atentos à amplitude de

seu sentido. Ele é composto de dois polos. Não só a ação do príncipe, mas também o objeto desta

ação deve e pode ser caracterizado. Podemos concordar com o que nota Hexter: Hoje podemos frequentemente falar de um Estado [state] adquirindo território, mantendo [holding] prisioneiros, mantendo [maintaining] uma posição legal, tomando propriedade, perdendo uma posse. Agora, a coisa curiosa é que nem mesmo uma vez em O Príncipe Maquiavel fala de lo stato fazendo qualquer uma dessas coisas. Lo stato não adquire, ou segura, ou mantém, ou toma, ou perde nada e ninguém.99

No entanto, deveríamos aceitar uma caracterização tão anêmica e contingente como a proposta pelo

comentador? Deveríamos ver, por um lado, o stato “simplesmente à mercê decentemente passivo e

nu, despido do menor vestígio de modesto revestimento descritivo ou denotativo, sendo adquirido,

ou assegurado, ou mantido, ou tido, ou tomado, ou perdido por alguém” 100 ? Por outro lado,

deveríamos pensar a ação do príncipe sobre o stato como restrita à manutenção do bem-estar e sucesso

imediatos e contingentes do agente, não havendo nada que transcenda e se mantenha para além deste

agente? É preciso ponderar com cautela sobre estes pontos.

96 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, p. 348 97 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.125 98 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.134 99 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p. 119 100 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), pp. 124-125

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Em primeiro lugar, é preciso salientar que o império envolvido na descrição do stato se faz

sobre homens; homens acostumados a formas de vida e de ser. Se nos atemos a estas afirmações,

podemos colocar em dúvida o caráter muito passivo e dominável do stato proposto por Hexter. Isto

porque é muito duvidoso que os homens na obra de Maquiavel sejam passivos e facilmente

domesticados. É bem verdade que em certas condições “convém que” o príncipe “seja mais amado”

e “naturalmente benquisto”101 pelos homens que comanda; e que o príncipe, tendo certa habilidade,

pode, “com astúcia, enredar a mente dos homens”, pois “o vulgo está sempre voltado para o que

parece [...], e não há no mundo senão o vulgo” 102. De qualquer modo, a imagem preponderante é a

de homens que mudam ativamente de senhores, guiados por crenças que “os faz tomar armas”103; de

homens que se fazem amigos ou inimigos; que concedem apoio ou oferecem resistência. Maquiavel

destaca a especial dificuldade que se apresenta ao príncipe quando têm inimigos que o atacam de

forma partidária entre seus súditos. Além disso, o autor é enfático em dizer que “a natureza dos povos

é variável; e, se é fácil persuadi-los de uma coisa, é difícil mantê-los nessa persuasão”104 . Certamente

a relação entre príncipes e súditos é a do primeiro exercendo império sobre o segundo, de os súditos

serem dominados pelos senhores. Não é uma relação simétrica. Entretanto, isso não implica uma

relação de ação unilateral, na qual os súditos (o stato) são meramente objeto da ação manipulativa de

um agente dominante. Os súditos também agem, além de sofrerem a ação. Certamente não são aqueles

que governam, adquirem e mantêm o poder, mas são os que resistem e rebelam-se, apoiam e anuem,

atacam ou defendem seus senhores. É curioso que Hexter caracterize o stato de forma tão passiva,

uma vez que ele mesmo comenta que “se o povo não obedece, o príncipe não tem real comando, e

em verdade efetiva ele não mantém lo stato”105. Ter o stato depende em grande medida dos homens

que sofrem o comando, se resistem ou não, e se podem ou não resistir.

Em segundo lugar é preciso notar que o império exercido sobre os homens no stato não é

qualquer comando ou força, mas poder político. Hexter reconhece esta especificidade. Ele nos diz

que, “quando o príncipe tem lo stato, ele tem o que lo stato é: comando sobre os homens”, comando

que precisa ser suficiente e efetivo106. Entretanto, ele também nos diz que, “apenas com poucas

exceções, onde Maquiavel falava do stato em O Príncipe, era em sentido estreitamente político. O

tema de seu discurso permanece na órbita geral do governante e do governado em um principado ou

uma república”107. Assim, “o que lo stato tem, aquilo sem o qual ele deixa de ser stato, é comando

político [meu itálico], imperio, sobre os homens”108. Entretanto, acreditamos que o comentador não

101 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo II, pp. 7-8 102 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XVIII, p. 88 103 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo III, p. 9 104 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo VI, p. 27 105 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p. 125 106 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p. 126 107 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p. 119 108 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p. 125

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desenvolva todas as consequências desta especificidade política. Ele atribui um valor muito restrito

às leis e ordenações como componentes do stato, bem como às consequências públicas da ação do

príncipe, que transcendem seu interesse privado e imediato. Seu exame é muito restrito, deixando de

lado um contraponto que parece pertinente. Encontramos nas palavras de Lefort este contraponto:

“este imperio, se ele é o nome dado ao poder que exerce tal homem ou tal grupo de homens sobre os

outros, [...] ele é igualmente o que se estabelece acima dos homens, tomados em sua generalidade,

aquilo em virtude do qual suas relações se ordenam no escopo de um Estado”109. Mantemos em

dúvida o uso do termo État, que poderia ser tomado indistintamente de seu uso moderno. De qualquer

forma, o comentador francês é pertinente em mostrar o caráter mais amplo, geral e organizador de

relações contido na noção de império do que a mera vantagem imediata do príncipe. É algo que se dá

acima dos homens particulares.

Maquiavel escreve no capítulo XII que “os principais fundamentos de todos os stati [...] são

as boas leis e as boas armas”. Ele complementa dizendo que “não se podem ter boas leis onde não há

boas armas”, mas também que “onde há boas armas costumam ser boas as leis”110. As leis são um

dos principais fundamentos dos stati e, portanto, não devem ser desconsideradas para entender o

sentido a estes atribuído. Hexter busca mostrar que “buone legge são leis para a vantagem do

príncipe” e não propriamente “para o bem-estar do corpo político”. Portanto, “as boas leis e boas

armas que são os fundamentos para lo stato são boas no sentido que irão evitar que o príncipe caia

em ruína, isto é, perca lo stato”111. É bem verdade que estas leis se façam em vantagem do príncipe e

evitem sua ruína. No entanto, não se trata de qualquer vantagem e qualquer ruína. Elas são

qualificadas: são políticas. As boas leis garantem um reconhecimento público e ordenado do exercício

de comando e da posição do príncipe. Neste sentido, mesmo que se façam em sua vantagem, têm

consequências e interesses que excedem uma mera vantagem imediata do príncipe. Esta vantagem é

mediada por uma relação de poder que transcende o indivíduo do príncipe. Neste sentido, Corrado

Vivanti nota a importância de um estudo como o de Quaglioni, cuja “análise da língua de Maquiavel

coloca em evidência a cultura jurídica e explica sua ‘insistência no problema dos ‘ordenamentos’,

isto é, dos direitos positivos e das formas de regimento”112

Esta transcendência do mero privado para o público podemos observar primeiramente na

questão da sucessão do governo. Que este ponto seja de interesse no livro de Maquiavel indica que o

109 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 348 110 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XII, p. 59 111 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.129 112 Vivanti, Corrado. Nicolau Maquiavel – nos tempos da política (Kindle Locations 3116-3117). Kindle Edition. Martins Fontes: São Paulo, 2016, citando QUAGLIONI, Diego, “Machiavelli e la lingua della giurisprudenza”, in Langues et écritures de la République et de la guerra. Études sur Machiavel, organização de Alessandro Fontana, Jean-Louis Fournel, Xavier Tabet, Jean-Claude Zancarini Name, Gênova, 2004, p. 180-81.

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que está em questão transcende a contingência temporal do príncipe. As vias pelas quais se dá a

sucessão de governo garantem não só o stato de um príncipe, mas uma propriedade deste stato

estabilizada para além da morte de um governante. A garantia da sucessão é tratada por Maquiavel

nos termos de leis e ordenações. Ao falar dos que chegaram ao posto de imperadores romanos pela

hereditariedade no capítulo XIX, Maquiavel usa o termo iure hereditario113. A sucessão do poder

precisa ser instaurada pela força da lei, que dura depois do governante, e não pela mera efetividade

do controle do príncipe, que cessa junto dele. Ainda no capítulo XIX, Maquiavel nos fala sobre o

sistema de sucessão dos sultões egípcios de seu tempo

É preciso notar que o stato do sultão [...] não se pode denominar principado hereditário nem principado novo, pois não são os filhos do príncipe antigo que o herdam e se tornam seu senhor, mas alguém eleito para este posto pelos que têm autoridade para isso. Sendo esta uma ordenação antiga, não se pode chama-la de principado novo [...]: embora o príncipe seja novo, as ordenações do stato são antigas e ordenadas para recebê-lo como se fosse seu senhor hereditário.114

Hexter entende que, nesta passagem, as “ordini do stato [...] eram [...] meramente as regras de

sucessão que asseguravam a sucessão imperturbada de um sultão após o outro no comando político

sobre os egípcios”115. É correto seu julgamento, mas esta observação não nos parece suficiente para

restringir o conceito de stato e de ordenação ao interesse e poder imediato do príncipe. O que ordena

o stato, o que funda e garante pela lei o poder do príncipe, transcende-o de alguma forma. As leis são

fundamento do stato e, com isso, são fundamento de algo que vai além do próprio príncipe. Não

devemos pensar em um corpo político substancializado, ou um bem comum ou viver civil

propriamente; mas podemos pensar em uma relação entre agentes, mediada por leis e transcendentes

em alguma medida aos envolvidos nela. As leis, enquanto fundamentos do stato, fazem-se

fundamentos de algo para além do próprio príncipe. Podemos avaliar isto na seguinte passagem: “da

parte do príncipe, há a majestade do principado, as leis, a proteção dos amigos e do stato que o

defendem, de forma que, com todas essas coisas somadas à benevolência popular, é impossível que

alguém seja tão temerário a ponto de conjurar contra ele”116. É bem verdade que as leis garantam a

segurança do príncipe, defendam-no. Isso não quer dizer, no entanto, que estejam limitadas a isto.

Elas vêm acompanhadas da majestade e da proteção dos amigos. O reconhecimento público e a

garantia de uma boa relação com os governados, juntos das leis, são componentes fundamentais do

stato. Vemos isso também expresso no capítulo XXIV de O Príncipe, no qual Maquiavel afirma que

um príncipe novo que consegue manter-se seguro e firme em seu stato terá “glória dobrada: o de ter

113 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XIX, p. 98 e p.100 114 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XIX, pp. 99-100 115 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.128 116 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XIX, p. 91

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dado início a um novo principado e a de tê-lo ornado e fortalecido com boas leis, boas armas e bons

exemplos; como também terão vergonha em dobro os que, tendo nascido príncipes, o perdem devido

à pouca prudência”117. A instauração do stato, quando efetiva, orna-o de boas leis e da segurança das

armas. Este ornamento dado pelo príncipe ultrapassa sua particularidade, ele tem consequências no

reconhecimento público e na estabilidade do regimento.

Tendo em vista estas considerações sobre o caráter político de stato, da importância que se

deve dar aos governados e às leis, podemos reavaliar a aproximação deste termo ao de Estado

moderno. Não para retornar à ideia de que Maquiavel seja o precursor de uma noção acabada e

moderna de Estado, mas para entender os motivos pelos quais essa associação pode parecer plausível

e como aproveitar-se deles criticamente, extraindo uma noção mais precisa e específica de stato. O

artigo de Hexter visa rebater, como principal oponente, o estudo de Fredi Chiappelli em Studi sul

linguaggio del Machiavelli no que concerne ao conceito de stato em O Príncipe. Chiappelli busca

mostrar que o conceito de stato está sendo usado de formas diferentes em O Príncipe e em seus outros

textos políticos118. Ele começa por introduzir o trabalho de Francesco Ercole, mostrando que o estudo

deste advertiria contra “a opinião tradicional, que atribui a Maquiavel o mérito principal de ter fixado

a denominação moderna de Estado [Stato]”. Para Ercole, o termo stato apresentaria “significados

variados”, “contradizendo [...] uma rigorosidade terminológica” 119. Ainda assim, “em Maquiavel,

segundo Ercole, começa-se [...] a individuar um par de conceitos que, fundidos, reúnem-se no

conceito moderno de Estado: o conceito subjetivo (o stato como poder público) e aquele objetivo (o

stato = povo + território)” 120– e aqui podemos vislumbrar o que mais especificamente Chiappelli

toma como conceito moderno de Estado. Para Chiappelli, ainda que Ercole reconheça de forma

embrionária nestes conceitos o Estado moderno na obra de Maquiavel, eles se apresentariam ainda

de forma esparsa, em diferentes tempos e promiscuamente, faltando assim esta “fusão” de sentidos

característica do conceito moderno.

Chiappelli chama atenção, no entanto, para que o estudo de Ercole apoia-se majoritariamente

sobre os Discursos e sobre a História de Florença. Ele, então propõe um exame do conceito

isoladamente em O Príncipe. Chiappelli afirma que, “na primeira frase de O Príncipe, o termo stato

tem univocamente o significado político-nacional territorial (subjetivo + objetivo, fundidos, portanto)

em estreita técnica”121. Significado de Estado moderno, portanto. Partindo para as outras ocorrências

117 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XXIV, p. 119 118 Hexter entende que “a tese geral de Chiappelli é que, em contraste com outras obras de Maquiavel, O Príncipe é um tratado técnico ou científico” [HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p. 135] 119 CHIAPPELLI, Fredi. Studi sul linguaggio del Machiavelli, Le Monnier, Florença, 1952, p.60 120 CHIAPPELLI, Fredi. Studi sul linguaggio del Machiavelli, Le Monnier, Florença, 1952, p.61 121 CHIAPPELLI, Fredi. Studi sul linguaggio del Machiavelli, Le Monnier, Florença, 1952, p.61

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do termo no livro, Chiappelli identifica que em três quartos do total delas “o termo stato tem o

significado de ‘Estado’ em toda sua maturidade: as implicações fundamentais (política, nacional,

territorial) coexistem nas passagens individuais, seja considerado, sinteticamente, ‘como objeto’, seja

como ‘sujeito’”122. É esta a conclusão que Hexter não pode aceitar. Para ele, “a análise de Chiappelli

cai na [...] armadilha de comprometer-se adiantadamente com alguma definição definitiva exata de lo

stato e então procurar por ele em O Príncipe. Isto é uma armadilha, porque leva inevitavelmente a

um pré-preparo dos resultados”. Este erro metodológico é fácil de ser mostrado ao se testar a asserção

segundo a qual “os contextos nos quais lo stato aparece são geralmente tão indeterminados para fazer

possível qualquer das três ou quatro denotações de lo stato”. Assim: território; os governados; poder

reinante; status, posição ou ranque; entidade nacional-politica territorial – “é raro que dois desses

sentidos não se encaixarão”, e “surpreendente quão frequentemente três, quatro ou, ocasionalmente,

mesmo os cinco dos sentidos se encaixarão”123.

No entanto, deveríamos ver neles uma diversidade tão profunda a ponto de nos impossibilitar

de estabelecer um sentido comum? Pois a estratégia de Hexter, parece-nos em certa medida, é

abandonar uma busca de coerência entre estes sentidos em seus casos particulares, buscando a

coerência entre eles, antes, na ação que se faz sobre eles. Estamos plenamente advertidos sobre o

trabalho de Sísifo que sempre se apresentou para os leitores de Maquiavel na tentativa de encontrar

um sentido mais sistemático e definido para stato, e aderimos a muitos dos avanços permitidos pelo

exame de Hexter. De qualquer modo, ainda acreditamos ser possível, se não definir seu sentido exato

ou encontrar uma unidade fixa e fundamental, refletir sobre alguma ordem de coerência e um

horizonte de sentido. O que vai em encontro com o esforço de Hexter, pois sua estratégia vai no

sentido de contornar a variedade inconsistente de sentidos de stato, encontrando uma “atitude

extraordinariamente consistente”124 em relação a ele: a atitude exploradora. No entanto, a reflexão

em relação ao conceito de stato pode ainda ultrapassar, com devida precaução e senso crítico, a

constatação desta atitude exploradora, mesmo saindo dos limites do “extraordinariamente

consistente” meticulosamente preparado por Hexter em seu artigo. Se assim não o fizermos, corremos

o risco de desconsiderar aspectos importantes, mesmo que nebulosamente dispostos, da noção de

stato e da obra de Maquiavel como um todo.

Hexter nos diz que a consistência da obra de Maquiavel não é “a consistência de um filósofo

político ou de um professor de jurisprudência”125. Consonantemente, Lefort nos diz que a démarche

de Maquiavel

122 CHIAPPELLI, Fredi. Studi sul linguaggio del Machiavelli, Le Monnier, Florença, 1952, p.68 123 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.137 124 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p. 125. Nosso itálico. 125 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p. 124

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52 não é – ao menos quando se toma estas denominações em seu sentido convencional – nem aquela do filósofo, nem a do moralista, nem a do psicólogo, nem aquela do historiador. Seguramente, Maquiavel nos faz pensar sobre a história, sobre o homem, sobre a sociedade e sobre o Estado, sobre os móbiles do príncipe, sobre o bem e o mal; mas, à primeira vista, o campo de sua investigação, a realidade que visa, não se deixa claramente circunscrever.126

Entretanto, há uma fonte detectável da qual Maquiavel anuncia retirar suas reflexões. Ele diz em sua

saudação ao jovem Lourenço de Medici, a quem endereça O Príncipe, que o conhecimento que tem

a oferecer foi aprendido “por meio de uma longa experiência das coisas modernas e de uma contínua

leitura das antigas”, tendo custado “tantos anos e tantos desconfortos e perigos para conhecer e

compreender”127. Maquiavel refere-se a seus anos de serviço na chancelaria da República de Florença

e dedicação à vida política. Sua atividade política molda também o direcionamento de sua leitura das

coisas antigas, pois ela o associa ao movimento do que viemos chamar Humanismo Cívico.

Recuperando a noção de Humanismo Cívico cunhada por Baron, Adverse explica que Em linhas gerais, o termo corresponde a um redirecionamento do humanismo renascentista ocorrido no início do século XV. [...] no campo do pensamento político assistimos, por volta de 1400, uma original reformulação de alguns pressupostos filosóficos que permitem separar com precisão uma nova ideologia política daquela que caracterizava os séculos anteriores. Vale ressaltar que esta reformulação é levada a cabo em um ambiente institucional muito bem circunscrito: o humanismo cívico é um movimento de ideias estreitamente associado à prática política. Seus principais representantes não atuam diretamente nas universidades italianas, mas exercem cargos públicos nas principais cidades da península, assim como junto à cúria papal.128

Se se procura por uma fonte teórica para a consistência ou démarche de Maquiavel, deve-se

procura-la no Humanismo Cívico. Maquiavel fala enquanto ex-secretário florentino ao recomendar

seu livro a Lourenço, referindo-se a sua experiência pública, que, por sua vez, orienta sua leitura dos

clássicos enquanto humanista. No fim do século XV, “a chancelaria como um todo era um centro

para os estudos humanistas. Uma formação humanista tornou-se essencial para o serviço na

chancelaria, e era com essas qualificações que Maquiavel entrou na chancelaria em 1498”129 ressalta

Robert Black. Maquiavel está inserido no Humanismo Cívico e, consequentemente, na busca por

responder ao “desafio de pensar uma fundamentação teórica para o exercício do poder” enquanto

cumpre “sua função diplomática, notarial, administrativa”130. Os centros de poder, e especialmente a

chancelaria florentina, tinham função não somente administrativa e política, mas exerciam um papel

126 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, p. 327 127 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Dedicatória, p. 3 128 ADVERSE, Helton. “A Matriz Italiana”. In: Newton Bignotto. (Org.). Matrizes do Republicanismo. 1ed.Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p. 54 129 BLACK, Robert. “Machiavelli, servant of the Florentine Republic”. In : G. Block, Q. Skinner, M. Viroli (Ed.). Machiavelli and Republicanism. Cambridge, Cambridge University Press, 1990. p.73. Minha tradução das citações deste texto. 130 ADVERSE, Helton. “A Matriz Italiana”. In: Newton Bignotto. (Org.). Matrizes do Republicanismo. 1ed.Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p. 55

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intelectual e cultural fundamental enquanto centros de formação e pensamento humanista. “Desde os

tempos de Salutati e Bruni, a chancelaria florentina era um centro de estudos humanistas”131. Nas

palavras de Newton Bignotto, homens como Bruni, Palmieri, Poggio Braciolini, todos tendo ocupado

cargos públicos importantes no governo florentino ou na cúria papal impuseram uma transformação

radical a de, aproveitando o retorno aos textos da antiguidade, [...] voltar a pensar nas atividades próprias à vida na cidade como fazendo parte do que de melhor podia-se fazer ao longo de nossa existência. Tratava-se, assim, de recuperar a dignidade da política, utilizando-se de um conjunto de textos antigos cujas referencias eram totalmente diferentes das que haviam presidido a reflexão nos séculos anteriores.132

A leitura que o humanismo cívico faz dos clássicos é pautada por um interesse teórico

específico. Tratava-se de recuperar a dignidade da política. Adverse salienta que um dos elementos

de destaque para a caracterização do pensamento político humanista é “uma nova valorização da vida

política, isto é, da vita activa”133 e Bignotto afirma que “a principal característica dos humanistas teria

sido a de reconhecer no espaço da vida pública o local privilegiado da manifestação dos valores mais

elevados da condição humana”134. Deve-se reter aqui que a pauta da revalorização da atividade

política se coloca em um debate, que, “no renascimento, ganha destaque” – um “debate acerca da

melhor forma de vida”135, como coloca Adverse. Trata-se, portanto, da “afirmação de um modo de

vida no qual a atuação no espaço público é altamente valorizada”136. E a valorização da vida política,

“da vita activa”, no humanismo afirma-a “como superior à vida teorética ou vita contemplativa”137.

A valorização da política que pauta o pensamento humanista junto do debate que o acompanha

em seu contexto histórico elaboram a consciência de um modo ou forma de vida, de uma atividade e

uma atuação específicas em um espaço delimitado. Uma forma de vida que não existe no isolamento

nem é a única, e que, justamente por isso, pode ser privilegiada, valorizada e hierarquizada em relação

a outras. O extremo valor dado a esta forma de vida em Florença no século XV verifica-se não

somente nos pensamentos de intelectuais ou de uma elite política, mas estendia-se a toda sociedade.

Gilbert nos diz que

131 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence. Princeton University Press, 1965, p.162 132 BIGNOTTO, Newton. “Humanismo Cívico Hoje”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. Belo Horizonte: Editora Da UFMG, 2000, p.51 133 ADVERSE, Helton. “A Matriz Italiana”. In: Newton Bignotto. (Org.). Matrizes do Republicanismo. 1ed.Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p. 56 134 BIGNOTTO, Newton. “Humanismo Cívico Hoje”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. Belo Horizonte: Editora Da UFMG, 2000, p.52 135 ADVERSE, Helton. “A Matriz Italiana”. In: Newton Bignotto. (Org.). Matrizes do Republicanismo. 1ed.Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p. 57. Nossos Itálicos 136 ADVERSE, Helton. “A Matriz Italiana”. In: Newton Bignotto. (Org.). Matrizes do Republicanismo. 1ed.Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p. 72. Nossos itálicos 137 ADVERSE, Helton. “A Matriz Italiana”. In: Newton Bignotto. (Org.). Matrizes do Republicanismo. 1ed.Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p. 56

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54 conforme a cidade crescia, sua administração era ampliada e a atitude em relação à posse de cargos mudava. Os postos mais altos permaneciam não assalariados, mas a influência sobre questões políticas e econômicas que poderia ser exercida pelos detentores destes postos dava a eles evidentes vantagens. Para os detentores dos postos menos prestigiados, salários foram introduzidos e graduados de acordo com a importância do posto. Considerável ganho material podia ser adquirido pelo serviço público e, então, a prévia relutância em tomar o fardo da posse de postos públicos foi substituída pela avidez por estes postos e insistência em se ter sua parte neles.138

É neste contexto, em junho de 1498, que Maquiavel assume seu primeiro cargo na chancelaria

florentina. A chancelaria, diz-nos Robert Black, “consistia majoritariamente de um corpo de oficiais

quase permanentes que administravam os negócios internos e externos da república, levando a cabo

políticas que haviam sido determinadas pelos magistrados e conselhos da cidade”139. Maquiavel e,

junto dele, a sociedade florentina concebiam a dedicação ao serviço público - a administração, decisão

e execução de deliberações políticas - como um modo vida, uma atividade com valor em si mesma,

com regras e habilidades próprias.

Podemos encontrar no estatuto que Maquiavel dava à política como modo de vida, como

atividade autônoma – não no sentido de rigidamente separada e independente de outras, mas de

distinguível e de possuidora de caráter, valor e regras próprias – o caráter eminentemente político do

sentido de stato. Maquiavel refere-se a sua atividade política – portanto, sua experiência a ser

recomendada a Lourenço – como uma arte, um ofício, a arte dello stato. Na carta à Francesco Vettori

de 10 de dezembro de 1513, Maquiavel diz sobre a reação que pretende causar nos Médici ao oferecer-

lhes O Príncipe: “ver-se-ia que nos quinze anos em que estive em estudo da arte do stato, não dormi,

nem joguei; e cada um deveria ter como valioso servir-se de alguém que [...] fosse pleno de

experiência”. É preciso notar que esta carta faz parte da correspondência entre Maquiavel e Vettori

logo depois do retorno dos Médici e durante o exílio de Maquiavel dele resultante. Maquiavel fora

forçado a deixar a vida política e lutava incessantemente para retornar a ela, mesmo que sob o poder

dos Médici e não o da república. Nesta mesma carta o ex-secretário escreve sobre o “desejo que teria

de que estes senhores Médici comecem a se utilizar de mim, mesmo que comecem por me fazer rolar

uma pedra”140. Lefort salienta que o interesse único de ser reconhecido pelos Médici e voltar a exercer

alguma atividade administrativa não poderia definir completamente os limites teóricos de O Príncipe;

escreve que mesmo que Maquiavel “tivesse a esperança de ter algum crédito diante dos novos mestres

de Florença, as considerações de ordem prática não permitem representar sua intenção de escritor”141;

138 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence. Princeton University Press, 1965, p.15 139 BLACK, Robert. Machiavelli, servant of the Florentine Republic. In : G. Block, Q. Skinner, M. Viroli (Ed.). Machiavelli and Republicanism. Cambridge, Cambridge University Press, 1990. p.71 140 MACHIAVELLI, Niccolo. De principatibus = Le prince. Coautoria de Jean-Louis Fournel, Jean-Claude Zancarini. Paris: Presses Universitaires de France, 2000. p.532. Nosso itálico e tradução. 141 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.315

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assim, mesmo que “O Príncipe fosse composto em um espaço de três ou quatro meses [...] de tal

observação não poderíamos concluir uma elaboração primária”142. Ainda assim, é inegável que a

experiência do exílio e o investimento enérgico para voltar à vida política ocorrem em relação

profunda com o processo de produção de O Príncipe. Em outra carta a Vettori do mesmo ano, de 9 de abril, Maquiavel escreve que “a Fortuna fez

com que, não sabendo discorrer [ragionare] nem da arte da seda e da arte da lã, nem dos lucros e

perdas, me conviesse discorrer sobre o stato [e’ mi conviene ragionare dello stato], e necessito calar-

me ou discorrer [ragionare] sobre isso”143. A arte do stato é implícita na passagem. Pode-se saber

discorrer sobre diferentes negócios ou atividades – diferentes artes ou ofícios. A produção da seda e

da lã, de trocas e transações financeiras (uma referência clara às duas grandes e prestigiadas Arti

Maggiori florentinas) são arti assim como o é o stato, a arte dello stato. Deve-se ter em mente que

arte guarda um sentido não precisamente da obra resultante, mas sim de uma atividade, um exercício,

um ofício. Vivanti comenta que Sob a pena de Maquiavel, no entanto, a expressão “arte do Estado” – que ficou famosa depois que Burckhardt, falando de senhores e de príncipes italianos do Renascimento, definiu seu Estado como “obra de arte” – não indica a criação original de uma única personalidade, mas a atividade por ele desenvolvida na chancelaria florentina, equiparada ao aprendizado de um ofício como qualquer outro exercido nas corporações da época.144

E o escopo das atividades desta arte ou ofício do stato é a política. Charbel Teixeira comenta

o seguinte sobre o que escreve Maquiavel a Vettori: “diante dos reveses de sua Fortuna, procurará

desafiá-la com sua capacidade de ragionamento, precisamente aquela aptidão de discorrer sobre os

assuntos da política”145. Ragionare dello stato é ragionare sobre a política, este é o escopo desta arte.

Na saudação a Lourenço, Maquiavel afirma estar resumido em seu livro, partindo de sua experiência

e leitura, a cognição das ações dos grandes homens, as quais tem longamente cogitado e

examinado146. Do que indica as passagens citadas da correspondência com Vettori acima citadas,

podemos inferir que as ações dos grandes homens – objeto de cognição, a serem cogitados e

examinados, enfim, objeto do ragionare – dizem respeito à arte do stato. Neste sentido, começamos

a entender a distinção feita por Maquiavel no terceiro capítulo: “dizendo-me o cardeal de Ruão que

142 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.317 143 Carta de Maquiavel de 9 de abril de 1513 a Vettori. Trecho traduzido e disponível em: TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p.134 144 VIVANTI, Corrado. Nicolau Maquiavel – nos tempos da política (Kindle Location 2894). Kindle Edition. Martins Fontes: São Paulo, 2016 145 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p.135 146 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Saudação, p.3

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os italianos non si intendevano della guerra, respondi-lhe que os franceses non si intendevano dello

stato”147.

Hexter entende que Maquiavel, ao apontar para que os franceses não entendiam de stato, “não

quer dizer nada mais esotérico do que os Franceses não sabem como ter em mãos um stato

recentemente adquirido uma vez tendo-o capturado” 148 . Entretanto, a leitura de Hexter parece

limitada diante da distinção entre stato e guerra. Com ela, se delimitam campos de atuação distintos,

mesmo que intimamente relacionados. O stato certamente envolve a guerra e a violência, mas ele se

distingue e transcende da mera capacidade de ganhar batalhas ou defender territórios. Trata-se de uma

atividade política, não meramente técnica. Neste sentido, o que afirma Vivanti sobre a disputa narrada

por Maquiavel com o cardeal é de especial interesse: “não apenas se capta a noção abstrata da

instituição, mas também a própria ação política a ser desenvolvida para salvaguardá-la”.

Tenderíamos na presente dissertação a colocar em dúvida a afirmação de uma noção abstrata, que

permitiria “delinear uma concepção mais amadurecida” 149. De todo modo, consideramos essencial o

caráter de ação política envolvida no entendimento do stato.

Mas, afinal, o que é o stato em O Príncipe? O que podemos dizer sobre ele? Pudemos ver que

a noção transita entre estes dois polos: por um lado, é o exercício efetivo do poder, por outro, as

ordenações e homens governados por elas, que garantem e reconhecem o poder exercido pelo

príncipe. Notamos também o caráter essencialmente político ou público das atividades associadas ao

stato. Com isso, podemos propor um sentido, que não se pretende definitivo, mas busca abranger uma

amplitude suficiente: o de uma disposição ordenada do exercício do poder político em uma

comunidade de homens. Buscamos manter com esta formulação as amplitude e ambiguidade que o

termo assume na obra. Uma disposição pode referir-se ao posicionamento de um agente político,

portanto, especificamente ao seu exercício de poder, mas também pode referir-se à estrutura geral de

diversos posicionamentos de agentes e seus limites e possibilidades de poder numa comunidade

política. A amplitude e complexidade dadas por Maquiavel ao conceito de stato são reflexo do

pensamento do autor como um todo. Elas só podem ser alcançadas em um pensamento político que

associe fundamentalmente ordenação e ação política. E o que vemos no texto maquiaveliano é esta

constante associação. O Príncipe é um tratado sobre os principados, mas seu questionamento não se

limita a examinar o que são e de que espécies são os principados, mas com especial ênfase em sobre

como são adquiridos, mantidos e por que são perdidos. O interesse de Maquiavel é o de ocupar-se

do principado, mas discutindo como governá-lo e mantê-lo. Por isso, noções como a capacidade do

147 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo III, p.18 148 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.127 149 VIVANTI, Corrado. Nicolau Maquiavel – nos tempos da política (Kindle Locations 2937-2938). Kindle Edition. Nossos itálicos.

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príncipe, a prudência de sua ação, sua virtù, suas deliberações, o efeito de seu comportamento em sua

imagem, sua moralidade, a imitação de grandes exemplos, entre outras – todas relativas mais

diretamente à ação política – são centrais neste estudo sobre o principado enquanto ordenação

política. Desta forma, examinar a abordagem dada por Maquiavel à ação política, à conduta dos

príncipes, torna-se essencial para a compreensão dos objetivos e vias argumentativas escolhidas pelo

autor em O Príncipe.

1.2. A conduta dos príncipes e seus conselheiros

Agora investigamos o direcionamento de Maquiavel à ação e o conselho como via para tanto.

Notamos que as observações do autor se direcionam para os que querem ou podem agir. Em O

Príncipe, esta preocupação e direcionamento à ação é flagrante na escolha de Maquiavel pelo gênero

literário dos Espelhos dos Príncipes, livros de aconselhamento aos governantes. O conselho é a via

pela qual O Príncipe direciona-se à ação e pela qual Maquiavel entra em contato com seu leitor.

Nosso esforço, portanto, será o de explicitar em que medida a investigação sobre o stato no tratado

de Maquiavel se expressa e opera pelo aconselhamento e os resultados que o autor consegue com

isso. Veremos que o aconselhamento alinha Maquiavel à tradição retórica de pensamento, mais

especificamente ao gênero deliberativo da retórica. Além disso, o preceito retórico da verdade efetiva

e do aconselhamento útil é o que leva Maquiavel a uma especial preocupação com o exame apurado

das condições e situações políticas particulares e seu exame a partir das dificuldades e necessidades

impostas aos agentes políticos.

1.2.1. Arte do stato e arte do conselho: retórica, Espelhos dos Príncipes e verità effettualle

É preciso notar que a questão de Maquiavel se volta para como - por quais procedimentos,

condutas ou ações - o príncipe governa e mantém seu principado. O que destacamos é a especial

preocupação de Maquiavel com a ação dos agentes políticos Esta especial atenção à ação política é

uma marca constante do pensamento de Maquiavel. Suas observações se direcionam para os que

querem agir. O intento do autor, destacado no capítulo XV de O Príncipe, é “escrever uma coisa útil

para quem a escuta”. E, ao preferir a verdade efetiva das coisas à imaginação que se faz delas, ou o

que se faz ao que se deveria fazer, Maquiavel não está interessado em outra coisa senão em na

efetividade das ações dos que o escutam, que devem “aprender” a “arruinar-se” ou “preservar-se” de

acordo com os aconselhamentos150.

150 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XV, p. 75

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Esta utilidade permeia o esforço geral da obra de Maquiavel, e a vemos explicitada no

prelúdio ao primeiro livro dos Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, quando o autor

esclarece que tipo de exame propõe em relação ao governo das repúblicas. Sendo sua proposta tecer

comentários sobre a História de Roma de Tito Lívio, Maquiavel reflete sobre como os homens de seu

tempo se interessavam pela antiguidade. Num primeiro momento, o autor compara o campo da arte

e o da história política, nos dizendo que um fragmento de estátua antiga é comprado por alto preço e

muito honra seus donos. Estes objetos são imitados por aqueles que se deleitam com eles, que buscam

representá-los com grande zelo em suas próprias obras. Por outro lado, afirma que as ações de

personagens políticos de destaque narradas pelas histórias da antiguidade seriam, em comparação ao

fragmento de estátua, igualmente admiradas por seus contemporâneos, mas não seriam com

semelhante esforço imitadas. O autor também mostra que, na aplicação das leis civis para a resolução

de litígios entre cidadãos, os jurisconsultos são ensinados a julgar pela ordenação de sentenças e

julgamentos proferidos por antigos jurisconsultos. Na medicina, na prescrição de remédios para o

tratamento de doenças, os médicos têm como fundamento experiências feitas pelos antigos médicos.

No exercício político de seu tempo, entretanto, o autor não vê homens que recorram, quer como

fundamento ou ensinamento, às ações dos antigos. Maquiavel reprova o posicionamento de seus

contemporâneos. As ações dos antigos devem ser, não meramente admiradas e recontadas, mas

também imitadas; elas devem ser devidamente interpretadas para servirem de ensinamento e

fundamento para a ação presente. Usar o conhecimento da história como objeto de imitação e não

mera admiração, como fundamento e ensinamento para a prática política, são noções importantes e

complexas no seio da obra maquiaveliana. Estas noções dizem respeito à ação, à prática. Para

expressar isso, Maquiavel nos fala em utilidade: ele está interessado na “utilidade pela qual se deve

procurar o conhecimento das histórias”151. A utilidade dos Discursos, assim como em O Príncipe,

consiste em conseguir, por alguma via, acessar e influenciar a prática política.

Em O Príncipe, esta preocupação com a ação é flagrante na escolha de Maquiavel pelo gênero

literário dos Espelhos dos Príncipes, livros de aconselhamento aos governantes. O conselho é a via

pela qual O Príncipe direciona-se à ação e pela qual Maquiavel entra em contato com seu leitor.

Newton Bignotto explica que “desde o final da Idade Média era comum dirigir-se aos governantes

oferecendo-lhes conselhos, que supostamente serviriam para que alcançassem o sucesso em suas

empreitadas”152. Assim como os conselheiros políticos da Idade Média e do Humanismo, Maquiavel

também pretende aconselhar o governante em sua empreitada; o autor também quer avaliar as

maneiras de agir e as qualidades dos governantes, buscando formular máximas para a execução de

151 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Trad. MF. São Paulo: Martins Fontes, 2007. I, prelúdio. p.7 152 BIGNOTTO, Newton. Maquiavel. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, Kindle Edition, Location 804-139

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um bom governo. A escolha pelo gênero dos Espelhos dos Príncipes, os livros de aconselhamento, e

pelo conselho propriamente como forma de expressão de sua investigação alinham Maquiavel à

tradição retórica de pensamento. Se se quer entender o aconselhamento como forma de expressão do

autor em O Príncipe e o que há de singular nessa maneira de aconselhar, deve-se investigar sua

relação com a tradição retórica de pensamento e a particularidade do Espelho dos Príncipes deste

autor, o que buscaremos fazer brevemente nesta seção. Skinner escreve que um

gênero de escrita política a nascer diretamente da Ars Dictaminis consistiu em livros de conselho dirigidos a podestà e a outros magistrados urbanos [...]. O surgimento desses tratados assinala uma dramática ampliação da Ars Dictaminis. Seus autores [...] abandonam toda e qualquer alegação de que tenham como interesse essencial instruir seus alunos nas artes retóricas, e preferem se apresentar, diretamente, como os conselheiros políticos naturais para os governantes e cidades. [...] dirigem seus tratados diretamente aos próprios magistrados. Essa nova abordagem logo foi imitada em larga escala, e mais tarde veio a exercer uma forte influência sobre o desenvolvimento do pensamento político renascentista. O padrão de tópicos coberto nesses primeiros livros de conselhos ainda pode ser discernido, em alguma medida, até nas mais sofisticadas entre as contribuições posteriores ao mesmo gênero, como é o caso do Príncipe, de Maquiavel.153

Skinner afirma, portanto, a “existência de um importante elemento de continuidade entre os

primeiros livros de conselhos dirigidos aos governantes e o posterior desenvolvimento de um estilo

político retórico entre os humanistas da Renascença”. Maquiavel estaria incluso em um

desenvolvimento longo com elementos identificáveis de continuidade da Ars Dictaminis, que nasce

na Baixa Idade Média. Entretanto, o historiador nos alerta que “seria [...] enganoso supor que tal

continuidade assuma a forma de uma linha de derivação direta”. Esta suposição “negligencia a

influência de uma forma de teoria retórica nova, e conscientemente humanista”154, que ampliou e

alterou radicalmente o exercício da Ars Dictaminis e seus padrões medievais. Skinner explica que

“as mudanças que afetaram o estudo da retórica na Itália,” com a eminência do humanismo

“baseavam-se na ideia de que o assunto deveria ser ensinado não apenas inculcando-se regras (artes),

mas também estudando e imitando autores clássicos adequados (auctores)” 155.

A influência dos auctores na arte retórica e o uso propriamente humanista desta arte já

estavam plenamente desenvolvidos nos anos de carreira política e literária de Maquiavel. Assim,

Maurizio Viroli escreve que “Maquiavel compôs todas suas obras políticas e, acima de todas, O

Príncipe na maneira do retórico, seguindo as regras ilustradas pelos mestres romanos da retórica,

153 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo : Companhia das Letras, 1999 (1978), pp. 54-55 154 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo : Companhia das Letras, 1999 (1978), p. 56. Tradução alterada. 155 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo : Companhia das Letras, 1999 (1978), p. 57.

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particularmente Cicero, Quintiliano, e o autor anônimo de Retórica a Herênio”156. O comentador

explica que, sob a rubrica do gênero deliberativo (genus deliberativum), estas obras ofereciam as instruções em como compor uma oração [oration] sobre negócios do estado [state affairs] (cose di stato), como Maquiavel diria mais tarde [...]. As regras do gênero deliberativo eram de fato especialmente construídas para o orador engajado em aconselhar e consultar sobre os negócios do estado.157

No entanto, o que é o gênero deliberativo na tradição retórica, praticado pelos autores antigos e

recuperado pelo humanismo? Virginia Cox remonta às bases aristotélicas estabelecidas na Retórica

mostrando que, “mais especificamente, a retórica era comumente definida como concernente às

questões cívicas, predominantemente judiciais e políticas” e que “uma divisão [...] foi feita em três

gêneros de retórica – forense, deliberativa e demonstrativa: a primeira era a retórica das cortes de lei,

a segunda, de assembleias políticas, a terceira, da oratória cerimonial, tais como discursos fúnebres e

celebrações de vitória”158. Cox observa também que a

retórica clássica alocou cada gênero em um caráter ético distintivo, definidos pelos fines ou “fins” aos quais os três gêneros eram vistos como direcionados. O objeto de um orador forense era demonstrar que sua causa era justa [...]; portanto o fim da retórica forense era a justiça. O fim da retórica demonstrativa era [...] definido como o honesto ou descente (honestum), enquanto aquele da retórica deliberativa era proveito ou utilitas: o que era materialmente benéfico para o estado [state].159

O gênero deliberativo concerne, portanto, às questões políticas; é o pensar ou raciocinar sobre a arte

ou cosa do stato como expressaria Maquiavel. Guardando-se toda a especificidade e complexidade

da noção de stato mostrada na seção anterior, a arte do stato diz respeito, ainda assim, ao exercício

político, o domínio do gênero deliberativo de retórica. Enquanto gênero da retórica, o gênero deliberativo guarda certas características importantes.

Cox explica que a retórica clássica reconhecia cinco habilidades ou competências, sendo três delas

usadas tanto na prática escrita quanto falada. Com exceção da memória e a actio ou pronuntittio,

usadas exclusivamente para os discursos falados, “a ‘descoberta’ de argumentos (inventio), sua

organização e estrutura (dispositio), e sua projeção em linguagem apropriada (elocutio)” eram

competências atribuídas à toda prática retórica. Neste sentido, a comentadora ressalta a presença “na

retórica do elemento conceitual da inventio junto dos elementos mais formais e estilísticos da

dispositio e da elocutio”. A retórica, assim, não estaria limitada a ornar os argumentos racionais dos

156 VIROLI, Maurizio. Machiavelli. Oxford : Oxford University Press, 1998. p. 73. Minha tradução para as citações deste texto. 157 VIROLI, Maurizio. Machiavelli. Oxford : Oxford University Press, 1998. p. 76 158 COX, Virginia. Rhetoric and Ethics in Machiavelli. In: John M. Najemy (ed.), The Cambridge Companion to Machiavelli. Cambridge University Press (2010), p. 175. Minha tradução para as citações deste texto. 159 COX, Virginia. “Rhetoric and Ethics in Machiavelli”. In: John M. Najemy (ed.), The Cambridge Companion to Machiavelli. Cambridge University Press (2010), p. 178

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campos teóricos variados, mas “reivindicava a prerrogativa de originar o argumento”. Neste sentido,

há uma reivindicação de autonomia na produção, por vias retóricas, de argumentos válidos

mobilizando proposições verdadeiras com projeção a descoberta ou enunciação de novas proposições

verdadeiras. O aspecto de descoberta da inventio retórica “ganhava geralmente a hostilidade dos

filósofos” 160, que reivindicavam para si a descoberta da verdade por vias racionais em vista da

contemplação.

No lugar, entretanto, das afirmações eternas e universais da contemplação filosófica, a retórica

clássica era tipicamente “sintonizada com circunstâncias particulares de aplicação; a habilidade de

um orador era percebida como situada na celeridade [swiftness] e sensibilidade de sua resposta às

condições ambientes, tanto o status e caráter de sua audiência, e sua mais intangível disposição de

temperamento”. Cox explica, fazendo referência à obra de Aristóteles, que a “retórica é

essencialmente a arte de raciocinar sobre [...] assuntos negociáveis, em outras palavras, opostos

àqueles nos quais a certeza científica é possível”161. Em especial, as regras do gênero deliberativo,

nos explica Viroli, ditavam, ao se dar “conselho sobre questões de estado, ser preciso conseguir não

somente persuadir uma audiência ou leitores – isto é, ganhar seu apoio – mas também persuadir ou

impelir os endereçados de seu discurso ou texto a de fato colocarem o conselho em prática.”162.

Assim, seguindo as instruções retiradas da leitura das autoridades retóricas da Antiguidade,

Maquiavel também “não escreveu para explicar uma verdade científica ou moral, mas para persuadir

e impelir a agir”163. Aconselhar é a tarefa de Maquiavel em O Príncipe: uma tarefa essencialmente

retórica. Viroli nos diz que, ao compor O Príncipe, Maquiavel “compôs [uma] obra para estabelecer

sua competência em questões de estado, e ele pretendia assim fazer demonstrando sua capacidade de

oferecer bom aconselhamento em negócios políticos. A forma encontrada para fazê-lo foi compor

uma boa oração de acordo com as regras do gênero deliberativo”. Treinado no exercício retórico e

muito atento a ele, para Maquiavel, “o reconhecimento de sua competência na arte do estado era uma

questão de conteúdo tanto quanto era de forma e estilo”164

O conhecimento provido pela retórica prudencial, alerta Charbel, “assenta-se em critérios de

uma racionalidade não-cartesiana” 165 . E Eugene Garver comenta que, apesar de “Maquiavel e

Descartes ocuparem posições análogas nas histórias da prática e da teoria, porque representam um

160 COX, Virginia. “Rhetoric and Ethics in Machiavelli”. In: John M. Najemy (ed.), The Cambridge Companion to Machiavelli. Cambridge University Press (2010), p. 175 161 COX, Virginia. “Rhetoric and Ethics in Machiavelli”. In: John M. Najemy (ed.), The Cambridge Companion to Machiavelli. Cambridge University Press (2010), p. 175 162 VIROLI, Maurizio. Machiavelli. Oxford : Oxford University Press, 1998. p. 76 163 VIROLI, Maurizio. Machiavelli. Oxford : Oxford University Press, 1998. p. 73 164 VIROLI, Maurizio. Machiavelli. Oxford : Oxford University Press, 1998. p. 77 165 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p.12

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direcionamento à autonomia”, Maquiavel “tem recursos localizados precisamente nos métodos

retóricos que Descartes rejeita para se fazer algo autônomo”. O que distingue Descartes e Maquiavel

são suas “diferentes concepções da relação entre autonomia e história”, pois para Maquiavel a história

é “o material a partir do qual o príncipe pode aprender a ser autônomo”166. No pensamento de

Maquiavel, tendo a retórica como sua base argumentativa, “a palavra das autoridades [...] possui o

poder de Lei”, mesmo que o florentino tenha posteriormente sido reverenciado como pensador

inovador, segundo Charbel. A habilidade retórica do gênero deliberativo consistiria, neste sentido,

no dispositivo responsável por flexibilizar de algum modo essas Leis, interpretando-as segundo os princípios da contingência, da necessidade e da “qualidade dos tempos”; ela permite a delimitação de regras provisórias de validação, estabelecidas segundo o critério da probabilidade e articuladas analogicamente, mostrando-se capaz, assim, de lançar alguma luz sobre a realidade sempre cambiante. 167

No lugar do argumento enquanto demonstração científica, encontramos no gênero

deliberativo da retórica a prática da “competência oratória de argumentar os dois lados de um

problema (in utramque partem), um exercício que tinha um lugar fundamental no treinamento

retórico clássico e humanista”, o que “implica um grau de relativismo epistemológico e uma atitude

instrumental, ao invés de filosófica, em relação à verdade”. A verdade do orador é, como ainda

explicitaremos com mais detalhes nesta seção, efetiva, e isso implica que “o que busca o orador não

é o que é verdade por um parâmetro putativamente universal, mas o que é persuasivamente funcional

para seu caso” 168. Neste sentido, Cox entende a retórica do gênero deliberativo uma retórica da

persuasão: “palavras eram tomadas não como o fim do orador, mas como seu meio; o material cru

com o qual ele trabalhava eram os ‘corações e mentes’ de sua audiência”169.

Quanto ao aconselhamento como via de comunicação com o leitor em O Príncipe, assim como

quanto ao caráter retórico de seu discurso, é valioso considerar o que Maquiavel escreve em sua

saudação ao jovem Lorenzo de Médici, a quem acaba por dedicar seu opúsculo. Na saudação,

Maquiavel oferece a Lorenzo um presente: o conhecimento das ações dos grandes homens. É um

conhecimento que Maquiavel aprendeu tanto pela longa experiência das coisas modernas quanto pela

leitura das antigas, mas que o autor acredita poder agora transmitir com seu livro. Por esse

ensinamento, a Lorenzo é prometido “que alcance [...] grandeza”. É neste sentido que Maquiavel

166 GARVER, Eugene. Machiavelli and the History of Prudence. Mandison : The University of Wisconsin Press, 1987. p. 4. Minha tradução para as citações deste texto. 167 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p.12 168 COX, Virginia. “Rhetoric and Ethics in Machiavelli”. In: John M. Najemy (ed.), The Cambridge Companion to Machiavelli. Cambridge University Press (2010), pp.182-183 169 COX, Virginia. “Rhetoric and Ethics in Machiavelli”. In: John M. Najemy (ed.), The Cambridge Companion to Machiavelli. Cambridge University Press (2010), pp.176

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acredita poder ser escusado, caso “seja presunçoso que um homem de baixa e ínfima condição ouse

examinar e regular o governo dos príncipes”170. Maquiavel apresenta seu conhecimento político na

forma de conselhos, pois ele pretende que seu exame em relação à política seja capaz de se efetivar

no governo dos principados, na conduta política do príncipe. O encadeamento do livro, suas

distinções, afirmações e formulações só fazem completo sentido da perspectiva do príncipe. É

frequente Maquiavel referir-se diretamente a seu leitor na segunda pessoa do singular, o que destaca

o caráter oratório da obra. Nestes momentos, não é ao leitor em geral que Maquiavel se refere, mas

ao leitor que pode se utilizar das considerações colocadas em suas ações: ao príncipe.

Se um leitor entra em contato com o livro, ele logo precisa assumir a perspectiva do príncipe.

A possibilidade de assumir outra perspectiva é algo a ser ressaltado. Não pretendemos afirmar que O

Príncipe não seja potencialmente uma obra de alcance universal ou que se prenda a um problema

extremamente circunscrito e se torne de alguma forma compreensível somente a um grupo de pessoas

- os detentores do poder. É possível assumir a perspectiva do príncipe e entender suas condições pela

via retórica de leitura, que considera diferentes perspectivas. Que alguém do povo possa compreender

e conhecer a perspectiva do príncipe é o que Maquiavel afirma sobre si mesmo quando recomenda

suas considerações a Lorenzo na dedicatória:

assim como os que desenham as paisagens se colocam embaixo, na planície, para considerar a natureza dos montes e dos lugares elevados, e, para considerar a forma dos lugares baixos, colocam-se no alto, em cima dos montes, para conhecer bem a natureza dos povos, é preciso ser príncipe e, para conhecer bem a natureza dos príncipes, convém ser do povo.171

É a possibilidade de assumir a perspectiva do outro que abre caminho para o conhecimento

da política, da natureza dos povos e dos príncipes, como escreve Maquiavel172. Este conhecimento

não estaria vedado a ninguém que se proponha a pensar cuidadosamente sobre as condições e

necessidades que cercam um determinado agente, buscando reconstituir sua perspectiva no jogo

político. Diogo Pires Aurélio nos lembra de uma interpretação sobre O Príncipe recorrente no

Iluminismo: “será antes uma sátira, que os homens avisados sempre perceberam como tal, mas que,

de tão engenhosa e camuflada, passou e ainda passa por elogio aos soberanos, como pretenderam, por

170MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 4. Nosso itálico. 171 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Dedicatória, p. 4 172 “A maior parte das pessoas vê de um único ponto de vista e não tem perspectiva sobre si mesmas, nenhuma consciência de perspectiva. Maquiavel cultivava os ‘olhos de Argus’ contra a ingenuidade: ele não via meramente por seus próprios olhos, mas pelos ‘verdadeiramente muitos olhos de príncipes cristãos que eu extraí de toda parte’. Isto é, ele trouxe de sua vasta experiência entre os grandes uma insaciável curiosidade e paixão pela observação como forma de aproximar-se do poder deles. Ainda assim, era uma questão não meramente de observação externa, mas de identificação, a capacidade de se colocar no lugar de outro e ver o mundo deste local. Ele precisa se tornar o outro e ainda permanecer si mesmo.” [PITIKIN, Hannah, Fortune is a Woman: Gender and Politics in the Thought of Niccolò Machiavelli, 2nd ed. (Chicago: University of Chicago Press, 1999), p.35]. Minha tradução para as citações deste texto.

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exemplo, Espinosa, Rousseau e a Encyclopédie?”173 A plausibilidade desta interpretação está em que,

pelos conselhos dados aos príncipes, deixa-se compreender a qualquer um os elementos e forças

construtivas das relações políticas. Maquiavel é capaz de ensinar ao povo a perspectiva do príncipe e

vice-versa.

O constante convite a supor e assumir outras perspectivas é operante ao longo de todo o livro.

Aprendemos que Maquiavel não aconselha um príncipe em especial, mas os príncipes em sua grande

variedade e conflitos. Seus conselhos se dirigem ao príncipe hereditário, que precisa resistir às

investidas de um príncipe novo, mas também se dirigem ao príncipe novo, que precisa aniquilar o

príncipe hereditário. Dirigem-se aos que chegaram ao principado por suas próprias capacidades, mas

também aos que receberam seu principado pelas habilidades de outros. Aos que são príncipes pelo

favor de seus concidadãos, mas também aos que o são contra eles. A ponderação cuidadosa e distinta

das muitas perspectivas é de caráter eminentemente retórico em O Príncipe. Somente pela via retórica

do in utramque partem, as diferentes e antagônicas perspectivas de ação podem ser consideradas e

tratadas sem que impliquem em contradições.

Como vimos, Maquiavel adere ao estilo literário dos tradicionais Espelhos dos Príncipes ao

assumir a tarefa de aconselhar os governantes; entretanto, como nos adverte Bignotto, “apesar do

‘invólucro’ tradicional,” O Príncipe “não tem nada dos antigos manuais”174. Maquiavel expõe seus

exames a partir de recursos retóricos dos tradicionais Espelhos dos Príncipes, demonstrando a

utilidade do que escreve pela tarefa de aconselhar, mas rompe sensivelmente com a tradição destes

livros quanto à abordagem dada ao exercício do poder. Apesar de escrito com especial zelo no que

diz respeito ao estilo e à forma de argumentação, permitindo um contato com seus leitores pela via

do gênero dos Espelhos dos Príncipes, o autor mobiliza seus instrumentos retóricos no sentido de

ponderar e criticar a concepção de boa conduta política tradicional. Felix Gilbert, em The Humanist

Concept of the Prince and The Prince of Machiavelli, realiza um estudo do gênero dos Espelhos dos

Príncipes do humanismo, buscando traçar suas principais características, bem como seus pontos de

desvio e conformação em relação à proposta de seus antecessores medievais e em relação à proposta

de Maquiavel em O Príncipe175. O historiador constata que, “assim como os autores medievais, os

humanistas tentavam descobrir uma norma e descrever um príncipe ideal”176. Ele atribui aos autores

dos Espelhos dos Príncipes uma concepção idealista do príncipe. Nesta concepção idealista, um

173 AURÉLIO, Diogo Pires. “Introdução” em MAQUIAVEL , Nicolau. O Príncipe. Tradução de Diogo Pires Aurélio, 2008, 2017, p.10 174BIGNOTTO, Newton. Maquiavel. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, Kindle Edition, Location 804-140 175 GILBERT, Felix."The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p.457. Minha tradução para as citações deste texto. 176 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p.461

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conjunto de valores e práticas sempre válidos, “um catálogo de virtudes”, prescrevia a conduta do

bom governante e as práticas do bem governar177.

O estudo de Felix Gilbert é de interesse por nos permitir ver a grande variação sofrida pelo

gênero dos Espelhos dos Príncipes, desde seu surgimento na idade média até seus exemplares mais

comuns no humanismo. Há mudanças significativas de método para a determinação do catálogo de

valores aconselhado: enquanto, na idade média, a conduta ideal era deduzida de proposições gerais

em moldes escolásticos, os humanistas introduziram a autoridade dos textos clássicos como fonte

para a descrição deste ideal. Há também mudanças significativas no conteúdo dos catálogos de

valores: enquanto os livros de aconselhamento medievais insistiam em um quadro estritamente cristão

e orientado à salvação da alma, os humanistas - inspirados pelas novas leituras dos textos clássicos -

introduziram preceitos orientados à vida ativa em suas descrições do príncipe ideal.178 No entanto, a

prescrição de um ideal ao qual se deve adequar o príncipe resiste. O caso do livro de Majo é

paradigmático. Gilbert o descreve da seguinte forma:

seu principal propósito era provar que um governante contemporâneo, Ferrante de Nápoles, deveria ser reconhecido como a incorporação do príncipe ideal. Majo planejou o livro com este objetivo em vista. Ele começa cada capítulo com uma breve descrição de uma virtude especial; ele então demonstra, com a ajuda de citações de autores antigos, quão necessária esta virtude é para o príncipe governante, e termina o capítulo citando algum feito ou incidente da vida de Ferrante como ilustração desta virtude tendo sido realizada na prática.179

Um ideal de príncipe, um catálogo de valores, precede à figura e aos feitos do verdadeiro

Ferrante de Nápoles. Para adequá-lo a esta imagem, Majo se utiliza de uma “larga dose de adulação

humanista”, além de fazer “alguns julgamentos notavelmente falsos” e atribuir “alguns motivos

notavelmente irreais a Ferrante”180. Há uma diferença notável entre o retrato idealizado e o real

personagem de Ferrante. E o que efetivamente é aconselhado por Majo não é a imitação das ações de

Ferrante, mas conduzir-se a partir de um determinado catálogo de valores ideais, dos quais Ferrante

seria a incorporação. É uma abordagem muito diferente da de Maquiavel em O Príncipe, que nunca

aconselha a imitação sem alguma reserva a ser considerada e revela com certa crueza motivações

pouco cristãs ou nobres dos governantes mais célebres. Outro exemplo interessante são os textos de

Patrizi e Pontano, que são assim descritos por Skinner:

177 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p.462 178 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, Seção II 179 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p. 467 180 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p. 467

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66 Patrizi afirma com bastante ênfase, na ementa de um de seus capítulos, que um rei ‘nunca deve iludir, nunca mentir, nunca permitir que outros mintam’. Pontano concorda, em seu Do príncipe, que ‘nada é mais infame’ do que um governante ‘não cumprir a palavra dada’, e insiste em que, ‘se for o caso, requer-se absolutamente que ele respeite a fé́ prometida até mesmo a seus inimigos’.181

Cumprir a palavra dada é uma conduta recomendada em qualquer circunstância, mesmo em

relação ao inimigo. A recomendação de uma conduta ideal, de certas virtudes aconselhadas a cima

de tudo ou em todas as circunstâncias, é o traço distintivo dos tradicionais Espelhos dos Príncipes.

Uma atitude muito diferente da recomenda por Maquiavel que, no capítulo XVIII, aconselha que “um

senhor prudente não pode, nem deve, observar a fé quando essa observância virar-se contra ele ou

quando deixarem de existir as razões que o haviam levado a prometê-la”182. O que notamos aqui não

é propriamente uma inversão do catálogo de virtudes tradicional dos Espelhos dos Príncipes; uma

recusa de um quadro de valores éticos e a proposta de um novo. É, antes, uma relativização e

contextualização destes valores. Certamente, a crítica de Maquiavel se volta também a um ideário

tradicional, no qual “as qualidades do [...] príncipe ideal eram determinadas por uma concepção

política que é fundamentalmente pacífica e irrealista” e no qual “o rei justo e brando, cercado por

sábios conselheiros e mantendo-se nos limites da lei, continuava a ser o ideal”183. Entretanto, antes

mesmo da crítica ao conteúdo dos valores que compõem os tradicionais Espelhos dos Príncipes,

Maquiavel recusa a serventia de aconselhar a partir de um ideal. De nada servem “as coisas

imaginadas acerca de um príncipe”184, um ideal de conduta, pois não há o que se aconselhar sem

reservas, em todas as circunstâncias ou acima de qualquer coisa.

Maquiavel aconselha levando em consideração a imprevisibilidade da ação. Imprevisibilidade

que se nota, por exemplo, pelo fato de que dois agentes que escolhem procedimentos distintos podem

obter sucesso em seus objetivos, e agentes que escolhem procedimentos similares obtêm, cada um,

resultados distintos, sendo que um fracassa e o outro obtém êxito. É interessante notar que nos

momentos em que o autor formula nestes termos a imprevisibilidade da ação, o que ele coloca

especificamente em debate é, por assim dizer, o temperamento do príncipe. No capítulo XIX,

Maquiavel se coloca a tarefa de entender a razão por que, procedendo uma parte dos imperadores

romanos “de um modo e outra parte de modo inverso, alguns deles tiveram um fim feliz, e outros, um

fim infeliz”185. Para tanto, o autor considera, por um lado, os imperadores “de vida moderada, amantes

de justiça e inimigos da crueldade, humanos e bondosos”. Destes, todos, exceto um, “tiveram [...] um

181 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo, SP: Companhia das Letras, c1996, p. 149 182MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XVIII, p. 86 183 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p.461 184 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XV, p. 75 185 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XIX, p. 100

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triste fim”186. Entretanto, a atitude contrária, daqueles imperadores que “foram muitíssimo cruéis e

rapaces”, não resultou em melhores frutos: destes, “todos, com exceção de Severo, tiveram triste

fim” 187 . Já no capítulo XXV, Maquiavel opõe o comportamento cauteloso ao audacioso, o

comportamento violento ao engenhoso, o comportamento paciente ao seu contrário, e sua conclusão

é muito semelhante: não são estes padrões de conduta, estes temperamentos em si, que determinam o

sucesso dos príncipes, mas a relação destes com a “qualidade dos tempos”, que é variável188. A

variabilidade das circunstâncias está intimamente ligada à imprevisibilidade da ação. É em razão da

variabilidade das circunstâncias que prever se torna uma tarefa extremamente difícil.

Maquiavel, portanto, assume a mesma tarefa dos autores dos Espelhos dos Príncipes, isto é,

aconselhar os príncipes no exercício do governo. No entanto, a tarefa de aconselhar se torna uma

tarefa muito mais complexa em sua obra. A fim de bem aconselhar o governante, o autor coloca-se

seriamente os problemas da imprevisibilidade da ação e da variabilidade das circunstâncias. Diante

destes problemas, recusando modelos ideais e conselhos sempre válidos, o conselheiro precisa levar

em consideração uma série de variáveis e perspectivas, exigindo que se façam claros os fatores que

fazem variar os tempos e os que nos permitem minimamente prever os acontecimentos e os feitos dos

homens. Neste sentido, podemos vislumbrar com mais clareza no que consiste o “realismo” de

Maquiavel de maneira mais positiva do que o atributo negativo dado por Gilbert de “não idealista”,

não pautado por um ideal. Sendo mais propositivo, Gilbert associaria o realismo à “apreciação do

fator-poder e de propostas egoístas que dominavam a vida política”189, mas o que se ressalta é, de

todo modo, o caráter “não ideal” do realismo. Verificamos isso no modo como Gilbert identifica um

movimento realista no quattrocento para além de Maquiavel:

um movimento de realismo existiu no quattrocento [...] escritores, tendo motivações práticas em vista, sabiam e usavam o vocabulário do [...] realismo. Um exemplo disso na literatura dos príncipes é Diomede Carafa (1406-87), De regis et boni principis officio. [...] Certamente, Carafa, como seus contemporâneos, gostava de citar máximas de antigos autores e apotegmas de controvérsias tradicionais; mas ele está preocupado somente com as lições práticas a serem tomadas destas generalizações, e as conclusões às quais ele chega são geralmente surpreendentemente similares às de Maquiavel. [...] Mas a obra de Carafa deriva seu excepcional caráter simplesmente do fato que ela não pertence ao esquema da literatura humanista dos príncipes: era um memorando político, escrito pelo principal ministro napolitano para o uso de uma princesa napolitana que acabara de casar com o Duque de Ferrara, não era almejada sua publicação. Uma vez que um autor tinha ambições literárias, ele sentia a necessidade de estabelecer um padrão ideal e escrever de um mundo político imaginário190

186MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XIX, p. 94 187 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XIX, p. 95 188 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XXV, p. 123 189 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p. 468 190 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, pp. 468-469

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A tese de Gilbert aqui é a de que o realismo político de Maquiavel fora já avançado por

escritores do quattrocento. O que diferenciaria estes autores de Maquiavel é que eles não buscavam

dispor seus argumentos na forma de tratados a serem publicados. Maquiavel trouxe à luz do público

literário em geral a visão realista da política. Se tomamos, agora, o realismo político proposto por

Gilbert – o não ideal – do ponto de vista da retórica como via de expressão em O Príncipe, podemos

chegar a algumas conclusões interessantes. Virginia Cox escreve que “no lugar da absoluta inovação

de O Príncipe [...], dentro da perspectiva retórica ela aparece mais como uma inovação relativa,

envolvendo contexto e tom tanto quanto substância” 191 . A intenção ou não de publicação de

observações políticas realistas levantada por Gilbert, assim, podem ser explicadas de uma perspectiva

retórica, como podemos observar na reflexão de Virginia Cox:

Dentro de regimes principescos, o processo de deliberação política era caracteristicamente “privado”, enquanto a face pública do discurso político era demonstrativa. Os livros de aconselhamento humanistas para os príncipes refletiam esta dinâmica, sendo tipicamente moldados de acordo com os canons da retórica demonstrativa. No lugar de genuinamente aconselhar (a tarefa da retórica deliberativa), estes livros de conselho se colocavam a tarefa de reafirmar valores sociais pela prática do louvor e da vergonha, seguindo prescrições clássicas para o gênero demonstrativo.

Cox traduz, da perspectiva retórica, a tese avançada por Gilbert. Para ela, “o gesto de amplo

significado” de Maquiavel foi o de “posicionar a retórica de O Príncipe como deliberativa no lugar

de demonstrativa” 192. Desta perspectiva, Cox pode alegar que o realismo de Maquiavel não é uma

inovação totalmente radical, pois tradicionalmente, “a retórica deliberativa era decididamente sobre

poder e não sobre a moralidade”. Ela nos explica que a “retórica era intrinsicamente relativista em

atribuir diferentes ‘fins’ para seus gêneros contextualmente diferenciados”. Como vimos, o fim do

gênero demonstrativo era o honestum, enquanto aquele do deliberativo era a utilitas. A inovação de

Maquiavel foi de, no contexto humanista, trazer a utilitas para um estilo literário geralmente voltado

para o honestum, os Espelhos dos Príncipes, movendo este estilo do gênero demonstrativo de retórica

para o deliberativo. Assim, o radicalismo em O Príncipe, de um ponto de vista retórico, repousa sobre seu desdenho das regras de decorum, ao elevar a linguagem da deliberação para fora de sua esfera ‘própria’, circunscrita dentro dos conselhos do estado, e posicionando-a em evidência em uma obra intencionada para circulação geral e vestida nos ornamentos formais de um tratado de governo193.

Felipe Charbel Teixeira nos explica que, em Maquiavel,

191 COX, Virginia. “Rhetoric and Ethics in Machiavelli.” In: John M. Najemy (ed.), The Cambridge Companion to Machiavelli. Cambridge University Press (2010), p.179 192 COX, Virginia. “Rhetoric and Ethics in Machiavelli”. In: John M. Najemy (ed.), The Cambridge Companion to Machiavelli. Cambridge University Press (2010), p. 178 193 COX, Virginia. “Rhetoric and Ethics in Machiavelli”. In: John M. Najemy (ed.), The Cambridge Companion to Machiavelli. Cambridge University Press (2010), p. 179

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69 a reflexão sobre o presente ganha centralidade: este se torna em grande medida incompreensível, [...] porque a experiência e as histórias antigas deixam de constituir repositórios evidentes em si mesmos de ações e condutas para o presente, e o futuro já não é compreendido como algo plenamente mensurável. Não que o recurso à experiência e às histórias seja abandonado; nota-se, porém, uma maior exigência no que diz respeito à mobilização de tais expedientes, evidenciada pelo destaque conferido ao que chamavam de exame da ‘qualidade dos tempos’. Torna-se imperativo saber se valer da experiência e das histórias de forma correta, em estreita relação com as condições particulares em jogo: somente os prudentes, donos de olhar agudo e penetrante, podem distinguir, no emaranhado de situações superpostas, muitas das quais praticamente indistinguíveis entre si, as escolhas e caminhos apropriados.194

Maquiavel abandona os quadros fixos e universais de virtudes, porque seu “questionamento

fundamental diz respeito à aplicabilidade universal de tais virtudes, e a desconsiderações de práticas

que, em circunstâncias determinadas, e tendo em vista fins últimos úteis e honrosos, poderiam ser

consideradas virtuosas, não em absoluto, mas segundo condições específicas”195. Reconhecer a

verdade quanto a bondade de uma virtude - reconhecer que ser caridoso, ou dizer a verdade, ou

cumprir a promessa dada é bom – não é o interesse de Maquiavel. Seu interesse é saber se estas coisas

se podem recomendar, se podem aconselhar. Para tanto,

é preciso, antes de tudo, perceber o que é a virtude numa circunstância tal, dar moldes a ela para, então, pensar na decisão prudente a se tomar, visando à produção de bons efeitos, em acordo com um bem definido em função das situações particulares em jogo. Um exemplo desta prática está no tratamento conferido à liberalidade em O Príncipe [...]. Se a liberalidade é inquestionavelmente uma virtude em sentido amplo, sua aplicação é passível de deliberação: dependendo da circunstância, ela pode ou não ser uma virtude para a situação específica.196

O ataque de Maquiavel à tradição se dá por vias retóricas. Charbel escreve que se nota “o

emprego por Maquiavel, em O Príncipe, da paradiástole, técnica retórica de redescrição de virtudes

e vícios”. Este recurso retórico “atua precisamente na lacuna entre definições gerais e enunciados

específicos”. Por ela Maquiavel pode flexibilizar e adequar o aconselhamento de virtudes e vícios.

Não que as virtudes “devam ser descaracterizadas como virtudes em geral; apenas precisam se

adequar às situações particulares, cuja análise atenta, muitas vezes, demonstra o caráter inapropriado

do emprego destas em determinadas circunstâncias”197. Maquiavel alerta, no décimo quinto capítulo,

que se “tudo bem considerado, quem seguir alguma coisa que pareça virtù encontrará a própria ruína,

enquanto quem seguir outra que pareça vício poderá alcançar segurança e bem estar”198. O que está

194 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p. 70 195 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, pp. 82-83 196 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, pp. 83-84 197 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p. 75 198 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XV, p. 76

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por trás do “realismo” de Maquiavel é uma especial preocupação com a qualidade dos tempos, que é

variável, e a melhor maneira de aconselhar diante disso.

No capítulo XV de O Príncipe encontramos umas das passagens mais comentadas e citadas

do livro. A passagem nos apresenta a noção de verità effettualle:

Resta agora ver como deve comportar-se um príncipe em relação a seus súditos e amigos. Como sei que muitos já escreveram sobre o assunto, temo que escrevendo eu também seja considerado presunçoso, sobretudo porque, ao discutir esta matéria, me afastarei do que foi pelos outros prescrito. Porém, sendo meu intento escrever uma coisa útil para quem a escuta, parece-me mais conveniente seguir a verità effettualle della cosa do que a imaginação sobre ela. Muitos imaginaram repúblicas e principados que jamais foram vistos e que nem se soube se existiram de verdade, porque há tamanha distância entre como se vive e como se deveria viver que aquele que abandona o que se faz por aquilo que se deveria fazer aprende antes a arruinar-se que a preservar-se; pois um homem que queira fazer em todas as partes profissão de bondade deve arruinar-se entre tantos que não são bons. Eis por que é necessário a um príncipe, se quiser manter-se, aprender a poder não ser bom e a valer-se disso ou não segundo a necessidade.199

É preciso ter em mente que a passagem marca uma nova etapa do livro. O tema a ser tratado

nos capítulos XV a XIX é como o príncipe deve ser bom ou mau, quais devem ser considerados suas

qualidades e vícios, e em que medida é louvado ou vituperado. No entanto, a verità effettualle à qual

Maquiavel associa a investigação do comportamento do príncipe não parece estar restrita a esta

temática e a estes capítulos. Felix Gilbert identifica nesta passagem “os princípios metodológicos

subjacentes ao argumento de O Príncipe”. De fato, a passagem indica uma amplitude maior do que a

abordagem dada somente naquele momento do texto. Ele expressa um ponto de afastamento entre o

autor e seus predecessores em virtude de parâmetros mais gerais: o utile e a verità effettualle. Gilbert

entende que aqui Maquiavel traça “uma firme e definitiva linha de demarcação entre ele mesmo e

seus predecessores”200.

Como já vimos, Gilbert busca atribuir a Maquiavel uma oposição ao “idealismo” de seus

predecessores, “que procuravam adaptar e subordinar a teoria política a padrões metafísicos ou

teológicos”. O realismo de Maquiavel, portanto, consistia em ter como suporte “observações e

experiências derivadas da prática política” e uma “fundação puramente empírica”201 . Implicava em

um certo “racionalismo político” e “uma apaixonada preocupação em descobrir as leis encobertas das

mudanças da história”. Assim, “pela aplicação destas leis, uma vez descobertas, o príncipe de

Maquiavel poderia ter dentro seu poder a maestria da política”202. Mas como devemos entender este

199 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XV, p.75. Tradução alterada. 200 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p.450 201 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p.450 202 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p.470

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realismo como um método de Maquiavel, tal como promete Gilbert? No que consiste, mais

precisamente, e como este método se aplica? O que significa e como conciliar a fundação puramente

empírica e o racionalismo político? E por que vias, mais precisamente, descobre-se as leis encobertas

da história e se as direciona para a maestria política? Gilbert é sapiente em mostrar tendências

importantes do pensamento de Maquiavel, tais como a ênfase no cálculo dos meios, a preocupação

com a variabilidade, a importância da experiência ligada à razão. No entanto, estas tendências e

qualidades atribuídas ao pensamento de Maquiavel não parecem ainda constituir um método coerente.

Parece ainda pouco nítido o que precisamente é a verità effettualle.

Novamente, as reflexões avançadas por Gilbert podem ganhar mais fôlego e coerência se

vinculadas à associação de Maquiavel com a tradição retórica. Ao ignorar a perspectiva retórica em

seu artigo, Gilbert deixa de ver aspectos importantes no que diz respeito à “influência de uma

antiga”203 teoria sobre a nova teoria de Maquiavel, bem como elos cruciais da “cadeia que levou ao

realismo de Maquiavel”204. Os esforços de Virginia Cox, Maurizio Virolli e Felipe Charbel em

mostrar a profunda influência que a arte retórica tem sobre a obra de Maquiavel permitem colocar em

evidência como o uso da verità effettualle confronta Maquiavel com seus antecessores, bem como

em que medida se faz de algum modo, como queria Gilbert, um “método” geral para todo o livro.

Como já vimos, Cox entende que a inovação de Maquiavel foi a de aconselhar os príncipes no estilo

dos Espelhos dos Príncipes a partir do gênero deliberativo e não o gênero demonstrativo de retórica.

Ao adotar este gênero, Maquiavel está comprometido com certas delimitações e objetivos que

moldam decisivamente seus procedimentos de exposição e descoberta de ideias. Tomando o

aconselhamento político como principal função do gênero deliberativo, Viroli explica que,

como um conselheiro em assuntos do estado, Maquiavel está comprometido com um tipo particular de verdade, que ele chama ‘la verità effettuale della cosa’ [...]. O adjetivo ‘effettualle’ que Maquiavel adiciona ao substantivo ‘verità’ [...] significa efetivo, produtivo. Seguir a verdade efetiva da questão significa seguir a verdade que permite atingir o resultado desejado – isto é, [...] o que é útil [utile] para o príncipe. Ele está comprometido, em outras palavras, com a verdade do orador, não a verdade do cientista. [...] Maquiavel pretende descobrir, não verdades plenas e descoloridas sobre a ação política, mas verdades adaptadas ou acomodadas obtidas por se minimizar qualquer coisa que possa fazer o argumento menos persuasivo e maximizando todas as considerações que fazem o conselho plausível.205

Viroli identifica a verità effettualle de Maquiavel com a verdade do orador. Mais

especificamente, trata-se da habilidade do orador do gênero deliberativo, empenhado em efetivamente

aconselhar em vista do útil, em vista de se atingir o resultado desejado por vias seguras. A

203 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p.452 204 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p.457 205 VIROLI, Maurizio. Machiavelli. Oxford : Oxford University Press, 1998. pp.81-82

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plausibilidade e a persuasão nos argumentos e conselhos são as ferramentas do ex-secretário. Charbel

comenta que a “verità effettualle della cosa, como diz Maquiavel [...] difere do ‘agir conforme a

verdade das coisas’ de Tomás de Aquino, uma verdade inflexível, evidente e natural”206. Não é a

verdade do filósofo ou cientista, que se pretende demonstrada, evidente. A verdade efetiva diz

respeito ao que é plausível ou razoável, visando um entendimento adaptado e acomodado que permita

aconselhar quanto à melhor medida possível a ser tomada. As verdades científicas ou filosóficas, de

caráter contemplativo e universal, não estão facilmente dispostas para o uso da deliberação. Neste

sentido, a verdade almejada por Maquiavel não busca adquirir “status de verdade científica ou

filosófica”. Buscando sempre a utilidade do conselho, as verdades efeituais “permanecerão parciais,

prováveis, adornadas, acomodadas e coloridas”207.

Isto não quer dizer, entretanto, que a verdade efetiva não se submeta a um parâmetro próprio

ou que não reivindique “saber a verdade da questão”. A verdade efetiva, de qualquer modo, não põe

como parâmetro central a asserção de verdade “para acima das dúvidas” e busca sempre operar

arguindo as questões “em dois lados” 208. Seu parâmetro próprio é a capacidade da “harmonização de

um discurso com o ‘momento’”. Esta capacidade está presente nos autores clássicos e é herdada por

Maquiavel. Cox cita Quintiliano (35-95): “em prática [em oratória], quase tudo depende em causas,

tempos, oportunidade e necessidade. Portanto, uma capacidade particularmente importante em um

orador é uma astuta adaptabilidade [consilium], uma vez que ele é chamado a encontrar as mais

variadas emergências”209.

Uma vez que verdade efetiva é uma preocupação retórica já tradicional no gênero deliberativo,

podemos ver o nomeado “realismo” de Maquiavel, como queria Gilbert, não como uma quebra radical

com a tradição, mas antes uma disputa com ela, em seus próprios termos, os termos retóricos. Charbel

afirma assim uma mudança de ênfase ou “foco analítico cujo sentido fundamental seria não o de

operar uma crítica destrutiva do humanismo, e sim a tentativa de aperfeiçoar seus mecanismos

cognitivos”210. Victoria Kahn, por sua vez, afirma que Maquiavel “faz a política mais profundamente

retórica do que havia sido até então”211. Isto porque Maquiavel foca e aprofunda a tradicional e

fundamental preocupação retórica com a harmonização do discurso com o momento, com a astuta

206 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p.84 207 VIROLI, Maurizio. Machiavelli. Oxford : Oxford University Press, 1998. P.82 208 VIROLI, Maurizio. Machiavelli. Oxford : Oxford University Press, 1998. p.82 209 COX, Virginia. Rhetoric and Ethics in Machiavelli. In: John M. Najemy (ed.), The Cambridge Companion to Machiavelli. Cambridge University Press (2010), p.175 210 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, pp.15-16 211 KAHN, Victoria. Machiavellian Rethoric, p.8 conforme citado por TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p.15

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adaptabilidade, com o “o critério da adaptação às condições dos tempos”212. Charbel explica que “a

idéia de verità effettualle [...] realça tanto a importância do cálculo cuidadoso da dinâmica da

realidade como da produção, pelo orador e pelo homem de letras, de efeitos persuasivos”213. Ambas

preocupações dizem respeito ao parâmetro retórico deliberativo mais geral de harmonização com o

contexto e astuta adaptabilidade em busca do bom efeito. Por um lado, há a preocupação em adequar

a deliberação aconselhada com os tempos – uma “ênfase [...] nos resultados produzidos por certas

ações” 214 . Por outro, a preocupação em locucionar apropriadamente de acordo com o agente

aconselhado o conselho apropriado. Devemos lembrar que Maquiavel, ao introduzir em seu

pensamento uma ênfase ou foco analítico na verdade efetiva, faz parte de um movimento maior do

pensamento italiano do final do século XV e início do XVI. Charbel escreve que

Já na última década do século XV diversos tratados políticos põem em xeque algumas concepções sobre a vida civil dos “humanistas cívicos”. A discussão sobre a interferência da Fortuna nos assuntos humanos adquire evidência, uma vez que o poder do acaso e os caprichos da deusa passam a ser associados, por escritores da passagem do XV para o XVI como Pontano, Rucellai, Maquiavel e Guicciardini, às mudanças dos ventos na Península Itálica. [...] Compõem-se, assim, um horizonte de expectativas pleno de incertezas, ligados por fios ainda fortes a um espaço de experiência bastante amplo que, todavia, se mostrava cada vez mais difícil de mobilizar, por ser incapaz de fornecer, por si só e de forma evidente, as respostas necessárias às indagações sobre os rumos imprevistos das “coisas do mundo”.215

É neste contexto que surge O Príncipe. A retórica, enquanto arte de deliberar sobre o variável

e o mutável, não é abandonada por Maquiavel diante do contexto de extrema variabilidade em que se

encontra. É o uso da retórica que é disputado por ele em relação aos seus antecessores humanistas.

Maquiavel, diante de uma realidade cada vez mais difícil de ser prevista e mobilizada, busca reformar

e aprofundar o uso da retórica a partir do preceito de verdade efetiva. O aprofundamento deste

preceito implica em dois procedimentos interligados a serem seriamente executados pelo autor. Por

um lado, o exame cuidadoso dos contextos específicos, da qualidade dos tempos e das possibilidades

oferecidas por este contexto para a utilidade do agente. Por outro, a expressão apropriada que permita

ao aconselhado, em sua perspectiva particular, agir apropriadamente. Acreditamos encontrar isto em

O Príncipe na medida em que, como buscaremos explicitar com mais detalhes na seção que se segue,

Maquiavel examina os contextos nos quais os diferentes príncipes se encontram em suas

particularidades e distinções, buscando expressar apropriadamente o aconselhamento resultante deste

exame no vocabulário das dificuldades e necessidades. Maquiavel busca mostrar ao príncipe o que o

212 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p.16 213 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p.17 214 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p.90 215 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, pp. 69-70

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necessita, as dificuldades a ele impostas; assim, acomoda a verdade do conselheiro às condições

particulares dos aconselhados.

1.2.2 A tecedura de O Príncipe: o exame dos contextos pela delimitação das dificuldades e necessidades

Ao formular a questão a respeito da manutenção dos principados no segundo capítulo,

Maquiavel já indica um caminho para respondê-la: o autor pretende desenvolvê-la “tecendo os fios

da urdidura antes indicada” 216 . O autor entende sua empresa metaforicamente nos termos da

tecelagem. Assim como no funcionamento de um tear - onde os fios da urdidura estão previamente

localizados paralelamente, formando, pela alternância de fios pares e ímpares, calas por onde pode

passar o fio da trama, fabricando o tecido -, Maquiavel pretende desenvolver sua discussão acerca

dos modos de ação para a preservação do principado (a trama do tear) a partir de determinadas

considerações prévias acerca dos principados apresentadas no primeiro capítulo do livro (a urdidura

do tear). A alegoria do tear diz respeito à relação entre o que foi apresentado no primeiro capítulo

com a questão estipulada no segundo.

Como já vimos, grande parte da extrema dificuldade em se aconselhar os governantes nasce

da combinação da imprevisibilidade da ação com a variabilidade dos contextos. É da grande variedade

de contextos possíveis que nasce também a grande variedade de maneiras possíveis de se conduzir,

bem como a variação da efetividade ou falibilidade das condutas tomadas pelos agentes políticos.

Neste sentido, faz-se notar a ênfase dada por Maquiavel ao preceito retórico da verdade efetiva,

buscando explorar e aprofundar as capacidades do gênero deliberativo de harmonização entre

discurso e momento em vista do útil e de astuta adaptabilidade com as condições dos tempos. Em

face à extensa gama de possíveis condutas na busca pela manutenção do principado, ao examiná-las,

Maquiavel tem sempre em mente que uma ação só pode ser avaliada se consideramos o contexto

político onde se desenrola, isto é, a ação política só pode ser examinada quando se considera

(pressupondo ou observando) seus contextos singulares. Quando considera, no primeiro capítulo, as

condições de aquisição do principado, Maquiavel está delimitando o contexto no qual se encontram

os príncipes no momento em que têm de mantê-lo. Aquele que adquiriu algo, agora busca os meios

para manter o que foi adquirido.

As distinções apresentadas no primeiro capítulo estão majoritariamente centradas em como e

sob quais circunstâncias o príncipe atinge o principado. Sua preocupação central é distinguir

diferentes contextos em que se adquirem os principados. Os principados são hereditários ou novos,

pois os príncipes atingem o principado pela hereditariedade ou pela aquisição de um território; os

216MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo II, p. 7

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stati adquiridos são acostumados ou não ao governo de um príncipe; os principados são adquiridos

pelas armas de quem o adquire ou pelas de outrem, e pela habilidade ou pela fortuna do príncipe.

Tendo apresentado as condições e os meios de aquisição do principado, Maquiavel oferece uma

contextualização para a questão apresentada no segundo capítulo do livro, quanto a como se pode

manter e governar os principados. Ele pretende examinar a conduta dos agentes políticos na busca

pela manutenção dos principados e, para tanto, deve considerar os diferentes contextos onde estes

agentes estão inseridos no momento em que assumem sua posição de poder. Como veremos no

próximo capítulo da dissertação, a centralidade dada por Maquiavel às aquisição e manutenção do

principado e às possíveis relações que se podem estabelecer entre estas duas ações políticas abre

espaço para e estruturam o livro em torno da investigação da inovação política; isto é, a introdução

de novos modos de governo e ordenações políticas, bem coma a fundação de um novo stato. O que

interessa neste momento salientar é que a aquisição do principado oferece ao exame de Maquiavel

uma gama de contextos singulares a partir dos quais o parâmetro da verdade efetiva se pode aplicar.

Assim, como explica Bignotto, Maquiavel procede sua análise traçando “um retrato variado

das situações que podem ser encontradas pelos príncipes e a melhor forma de enfrentá-las”217.

Conhecer as condições que colocaram o príncipe na posição de comando é fator decisivo para como

aconselhar sua conduta na manutenção do principado. O exame apurado e detalhado do contexto em

que se encontra o príncipe no momento em que chega ao principado é a via encontrada por Maquiavel

para enfrentar o problema da imprevisibilidade da ação. Se este exame tem a virtude revelar os

contextos de forma concreta e singular, torna a eficiência e os resultados esperados da ação do

governante persuasivas, portanto adaptadas ao conselho útil. Poderíamos, assim, ter uma visão efetiva

da perspectiva e das condições do príncipe. Por esta razão, o que está sendo exposto no primeiro

capítulo é essencial para a questão posta por Maquiavel no segundo. Trata-se da urdidura sobre a qual

se sustenta a trama do livro. Podemos dizer que Maquiavel responde ao parâmetro deliberativo

retórico da verdade efetiva, bem como o aprofunda, pelo exame apurado dos contextos. A partir dele,

o autor delimita o conjunto de considerações relevantes a serem levadas em conta para a conduta do

príncipe, avalia exemplos a serem imitados ou evitados e formula as possibilidades de ação.

Isto se nota na forma como Maquiavel organiza a sequência de capítulos II ao VII. Neles,

temos a impressão de ver traçado um plano bem definido das etapas da investigação do autor. Cada

capítulo questiona os meios para se manter o governo do principado considerando as distinções

realizadas no primeiro capítulo, discernindo e discorrendo sobre as condições e circunstâncias

específicas nas quais pode se encontra o príncipe quando assume sua posição. Assim, no capítulo II,

217 BIGNOTTO, Newton. Maquiavel. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, Kindle Edition, Location 804-150

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o autor considera os estados hereditários218 . No capítulo III, é considerada a situação dos principados

mistos, a junção de um principado conquistado ao principado hereditário de quem os conquistou219.

Os capítulos IV e V também se dedicam à territórios conquistados, mas consideram outra distinção

exposta no primeiro capítulo: entre domínios acostumados a serem governados por príncipes e

acostumados a viver sob as próprias leis. Ao discorrer sobre "por que razão o reino de Dario, ocupado

por Alexandre, não se rebelou contra os sucessores deste após a sua morte"220, no quarto capítulo,

Maquiavel está examinando as ações de um conquistador (Alexandre), considerando que o território

conquistado fora antes governado por outro príncipe (Dario). Já no capítulo V, o autor avalia como

se pode "manter aqueles estados conquistados [...] e habituados a viver com suas próprias leis e em

liberdade"221. Os capítulos VI ao IX, por sua vez, dedicam-se a discutir como se mantêm “principados

completamente novos onde há um novo príncipe"222. Para examiná-los, o autor leva em conta os

modos por ele enunciados no primeiro capítulo para se adquirir o principado: por armas próprias ou

de outros, por fortuna ou por virtù. Assim, no capítulo VI, considera-se a condição de príncipes que

atingiram sua posição "com armas próprias e com virtù"223. No capítulo VII, daqueles que a atingiram

"com as armas e a fortuna de outrem”224. Como já pudemos ver, as distinções apresentadas no

primeiro capítulo não dizem respeito somente aos diferentes principados, mas expressam as

perspectivas de diferentes príncipes. Os príncipes hereditários, os fundadores, os conquistadores.

Com isso, vemos que a preocupação de examinar distintamente cada contexto em sua particularidade

se cruza com a exigência retórica em se argumentar os vários lados das questões tratadas. O que

vemos desenrolar-se ao longo do príncipe é a questão da manutenção e governo do principado

considerado de diferentes perspectivas, perspectivas a serem distinguidas, comparadas e

assemelhadas.

Entretanto, o que precisamente sustenta a tecedura de Maquiavel? Como interagem o exame

singular dos contextos e o aconselhamento apropriado da ação em O Príncipe? Podemos encontrar a

resposta para tanto no vocabulário com o qual aborda sua questão. No segundo capítulo, depois de

formular sua questão – como governar e manter os principados - Maquiavel parte para o primeiro tipo

de principado a ser avaliado, o principado hereditário. Ele assim afirma: “digo, pois, que, nos estados

hereditários [...], há bem menos dificuldades para mantê-los do que nos novos”225. A constatação é

reafirmada no capítulo subsequente, dedicada aos principados mistos, iniciada pela adversativa, “mas

218 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo II, p. 7 219 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, pp. 9-10 220 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo IV, p. 19 221 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo V, p. 23 222 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 25 223 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p.25 224 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p.29 225 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo II, p.7

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é no principado novo que aparecem as dificuldades”226. Ao analisar as condições políticas destes dois

gêneros de principados, visando ponderar sobre a preservação do poder do príncipe, Maquiavel

constata a existência de dificuldades que se impõem ao agente político. Os contextos políticos

apresentam obstáculos que devem ser superados pela conduta do príncipe para a preservação de seu

stato. Assim, ao comparar principados hereditários e novos, Maquiavel interessa-se particularmente

pelo fato de que as dificuldades impostas ao agente são maiores no segundo caso. É a partir do

escrutínio e da formulação de dificuldades que Maquiavel efetiva sua consideração dos contextos a

fim de que ela possa influir na ação do príncipe. Ao identificar as dificuldades encontradas pelos

príncipes na busca pela manutenção de seu poder, põe-se em foco em que circunstâncias elas se

impõem227. O exame de Maquiavel busca, assim, mostrar como nascem e quais as razões para tais

dificuldades228; tecer comparações entre diferentes contextos, mostrando que alguns deles apresentam

maiores, menores ou distintas dificuldades e, portanto, exigem melhores, mais ordinárias ou distintas

habilidades do príncipe em superá-las229; além de evidenciar condições que amenizam as dificuldades

ou criam facilidades ao governante230.

226 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo III, p.9. Nossos itálicos 227 “[…] é nos principados novos que aparecem as dificuldades." [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 9]. "[...] uma dificuldade natural que existe em todos os principados novos" [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.9]. "é na conquista de stati numa província de língua, costumes e ordenações diferentes que se encontram as dificuldades" [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.11]. "Considerando as dificuldades que existem para manter um stato recém-conquistado" [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo IV, p.19]. "[os que se tornam príncipes pela fortuna] não encontram dificuldade no caminho porque passam voando por ele: mas todas as dificuldades surgem quando chegam ao destino [...]" [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p. 29]. Nossos itálicos. Não pretendemos oferecer uma exposição exaustiva e completa com os exemplos, tampouco excluir outras possibilidades de interpretação. Queremos meramente expor exemplos suficientes para sustentar a plausibilidade de nossas afirmações. Referimo-nos às afirmações referentes a esta e às próximas notas 224 a 232. 228 “[...] suas variações nascem principalmente de uma dificuldade natural [...]"[MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.9]. "[...] não obstante seus sucessores o terem mantido sem maiores dificuldades do que as surgidas entre eles mesmos de sua própria ambição" [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. CapítuloIV, p.19]. Nossos itálicos. 229 “[...] nos stati hereditários [...] há bem menos dificuldades para mantê-los do que nos novos [...]; de modo que, se um príncipe é de capacidade ordinária, ele se manterá em seu stato" [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo II, p.7]. "[...] na conquista de stati numa província de língua, costumes e ordenações diferentes que se encontram as dificuldades, sendo necessário muita fortuna e muita habilidade para mantê-los." [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.11]. "Nos principados completamente novos onde há um novo príncipe existe maior ou menor dificuldade para mantê-lo conforme seja maior ou menor a virtu de quem o conquistou" [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p.25]. "Homens assim enfrentam grandes dificuldades, defrontando-se em seu caminho com perigos que precisam ser vencidos com avirtù" [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p.28]. “Assim, quem considerar esses dois estados encontrará dificuldade em conquistar o stato do grão-turco, porém, vencendo-o, terá grande facilidade em mantê-lo. Ao contrário, sob todos os aspectos, encontrará maior facilidade em ocupar o reino da França, porém grande dificuldade em mantê-lo" [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo IV, p. 20]. Nossos Itálicos. 230 “É bem verdade que, ao serem conquistados pela segunda vez, os países rebelados perdem-se com mais dificuldade.” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 10]. “Se forem [stati da mesma província e língua do conquistador], será fácil mantê-los” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 10]. “[...] tendo costumes semelhantes, conquanto haja alguma diversidade de língua, podem facilmente ajustar-se.” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 11]. “[...]

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78

À noção de dificuldade vemos geralmente atrelada outra noção central, a de necessidade.

Certas dificuldades são maiores ou dependem da necessidade de se fazer algo231. E Maquiavel expõe

ao longo do livro as muitas necessidades impostas aos príncipes seja para que não se arruínem, seja

para que consigam os objetivos almejados232. Robert M. Adams comenta que “necessità [...] tem [...] uma interessante combinação de aspectos positivos, bem como negativos”. Com isso, ele pretende

ressaltar o caráter condicional da ação, que é duplo – é o que se obsta à ação, mas ao mesmo tempo

o que permite sua realização efetiva. Adams explica que

Algumas coisas devemos [must] fazer, outras são verboten [...]. Compulsão externa elevando-se diante de nós e desviando ou interrompendo nosso progresso é a imagem; e quando não podemos superar o obstáculo ou desviar dele, não há muito o que se fazer além de dar de ombros e desistir. Mesmo quando a necessidade nos diz que devemos [must] fazer isto, uma negativa periférica forte está acoplada a seu comando; grande parte de seu sentido é “e não aquilo ou a outra coisa ou qualquer outra coisa além disto’[...] Ainda assim, [...] mesmo que geralmente tão peremptórias quanto um sinal vermelho ou arames farpados, “necessidades” na política são mais frequentemente condicionais. Se você pretende atingir determinado

parece que uma ou outra dessas duas coisas ameniza, em parte, muitas das dificuldades [...]. Também cria facilidades o fato de o príncipe ser obrigado a ir pessoalmente habitar o novo stato" [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 26]. Nossos itálicos. 231 “há bem menos dificuldades para mantê-los do que nos novos [...] pois o príncipe natural tem [...] menos necessidade de ofender.” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo II, p. 7]. “[...] suas variações nascem principalmente de uma dificuldade natural [...] isso decorre de outra necessidade natural e ordinária” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 9]. “Considere-se agora com quão pouca dificuldade poderia o rei ter mantido sua reputação na Itália se tivesse [...] assegurado e protegido todos os seus amigos que [...] necessitavam sempre estar a seu lado.” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 16] – neste caso, há de se observar que a necessidade imposta às cidades italianas diminui as dificuldades impostas aos franceses, mesmo que em relação à diferentes agentes, verifica-se uma dificuldade posta em dependência de uma necessidade. “[...] encontrará dificuldade em conquistar o stato do grão-turco, porém vencendo-o, terá grande facilidade em mantê-lo [...] se considerares de que natureza era o governo de Dário, vereis que era semelhante ao reino do grão-turco e, por isso, foi necessário a Alexandre primeiro derrotá-lo completamente [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo IV, p. 21]. “As dificuldades que têm para conquistar o principado nascem em parte das novas ordenações e dos novos modos que são forçados a introduzir para fundar seu stato e sua segurança” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 27] – neste caso, deve-se notar que o termo necessidade não é usado; de qualquer modo, é seguro entender que ao ser forçados a introduzir novas ordenações, os príncipes estão diante de uma necessidade. “Alexandre VI tinha muitas dificuldades presentes e futuras para fazer a grandeza de seu filho, [...] era-lhe necessário, portanto, perturbar aquela ordem e desordenar a Itália” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, pp. 30-31]. Nossos itálicos. 232 “necessidade natural e ordinária, que faz com que sempre seja necessário ofender aqueles de quem se torna novo príncipe” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.9]. “[...] é necessário ou fazer isso, ou manter bastante cavalaria e infantaria” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 12]. “Luís [...] querendo começar a pôr um pé na Itália e não tendo amigos nessa província, [...] foi forçado [necessitato] a aceitar as amizades que podia” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 15]. “[...] necessitavam sempre estar a seu lado” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 16]. “Se não tivesse tornado grande a Igreja nem posto a Espanha na Itália, seria bem razoável e necessário rebaixar os venezianos” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 17]. “[...] foi necessário a Alexandre primeiro derrotá-lo completamente” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo IV, p. 21]. “Era necessário portanto que Moisés encontrasse no Egito o povo de Israel escravizado e oprimido pelos egípcios para que eles se dispusessem a segui-lo” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, pp.25-26]. “Era-lhe necessário, portanto, perturbar aquela ordem e desordenar a Itália” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p. 31]. “ [...] o duque julgou desnecessária tão excessiva autoridade” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p. 33]. “Quem, portanto, num principado novo, julgar necessário [...]” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p.36]. Nossos itálicos.

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79 objetivo, você tem que lidar com esta, aquela ou outra condição preliminar ou indispensável.233

Ora, visto que o exame dos contextos proposto por Maquiavel visa avaliar como agem os

governantes e os aconselhar apropriadamente, investigar estes contextos sob o prisma das

dificuldades e necessidades por eles impostas é uma efetiva estratégia, pois estas noções abarcam

tanto o contexto quanto a ação, além de relacioná-los. Por um lado, podemos entender dificuldades e

necessidades como coisas que se impõem ao sujeito, como obstáculos que se lhe objetam. Neste

sentido, explicitar as dificuldades encontradas pelo agente e expor as necessidades nelas envolvidas

implica entender o contexto que impõe tais dificuldades e necessidades. Por outro lado, uma

dificuldade ou uma necessidade são entendidas como tais na medida em que o sujeito deseja ou

necessita superá-las, enfrentá-las. Não é uma mera condição estabelecida, mas uma que demanda a

ação e a intervenção dos agentes. Ao discutir as dificuldades e necessidades impostas aos príncipes,

Maquiavel empreende uma investigação da efetividade das ações dos governantes que é sensível e

sempre relativa aos contextos. De tal modo que possa julgar e distinguir, como o faz no quarto

capítulo, o que é próprio e como se relacionam a “muita ou pouca virtù do vencedor” – isto é, suas

capacidades e condutas – e a “diversidade do sujeito” 234– as diferenças de condições e situações nas

quais estas capacidades e condutas foram exercidas. Assim, as reflexões de Maquiavel se apresentam

em geral em tom condicional, como nos mostrou Adams a respeito da noção de necessidade. A

reflexão de Claude Lefort quanto à démarche de O Príncipe vai no mesmo sentido ao apontar os

caráteres hipotético e de um problema no uso da noção de dificuldade:

De início, diversas hipóteses se encontram enunciadas: trata-se de indicar em quais condições está estabelecido um príncipe quando ele se torna mestre do Estado. Estas hipóteses aparecem em seguida submetidas a um exame sistemático do qual surgem algumas outras particularidades. A cada vez, são analisadas as dificuldades que guardam a tomada do poder e sua conservação. O uso repetido da palavra difficultà sugere [...] que a ação política deve ser tratada como o são os termos de um problema.235

O caráter hipotético salientado por Lefort para descrever as distinções apresentadas no

primeiro capítulo explicita a sua relação com o segundo, bem como o procedimento investigativo que

permeia todo livro: a delimitação de dificuldades. Maquiavel busca aconselhar considerando

hipóteses possíveis. Se encontramos tais condições, então deve-se agir de tal forma: esta é a relação

hipotética entre o primeiro e o segundo capítulos de O Príncipe - tendo-se adquirido o principado sob

certas condições, age-se de certa forma a fim de mantê-lo. Lefort entende as dificuldades

233 ADAMS, Robert M. “Necessità/Fortuna”. In: MACHIAVELLI, N. The Prince. Norton Critical Edition, Nova York, 1992, pp. 269-270. Minha tradução para as citações deste texto. 234 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo IV, p. 22 235 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.328

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reiteradamente formuladas por Maquiavel nos termos de problemas, que organizam os dados em uma

pergunta coerente: dado este contexto, como se preserva o principado? Assim, como Lefort mostra,

em um primeiro momento, temos a impressão de que a “exposição” de Maquiavel “se apresenta como

uma demonstração”236, como o “uso de um método, graças ao qual o que parece de início difícil se

verifica depois fácil de ser resolvido”237. A exposição de Maquiavel parece “deduzir de um princípio

as consequências das quais a história oferece uma ilustração, ou induzir dos fatos uma regra de porte

universal”. E “o fracasso do príncipe é imputado a erros de raciocínio, o sucesso a um conhecimento

exato dos fatos, junto de uma reflexão rigorosa sobre os princípios”, uma vez que ele parece, em um

primeiro momento, estar sempre “em face de alternativas onde se inscrevem a inelutabilidade da

escolha e a exigência da decisão racional”. Lefort lembra ainda que “os sinais do pensamento lógico

são [...] multiplicados no curso das primeiras análises, não sem ostentação. Maquiavel habitua seu

leitor a confundir em um mesmo pensamento o que é ordinário, natural, necessário e racional, e a

respeitar a ordem das coisas”238. Enfim, em um primeiro momento, “O Príncipe se faz passar pelo

mais ordenado e o mais demonstrativo dos discursos. Redução da diversidade empírica a dados de

hipóteses; passagem do caso particular à regra geral e vice-versa; alargamento progressivo da

investigação de situações típicas e de conjunturas às constantes do comportamento político”239.

No entanto, seguindo o desenvolvimento do livro, esta primeira impressão logo se desfaz240.

Devemos estar atentos para o sentido que as noções de dificuldade e necessidade têm em O Príncipe.

Elas certamente são um recurso pelo qual as relações políticas se tornam compreensíveis, pelo qual

se revela a perspectiva e a condição do agente, e pelo qual se facilitaria prescrever meios de ação mais

ou menos adequados. Entretanto, não podemos de forma alguma imputar a Maquiavel algum tipo de

especial preocupação quanto à “concisão lógica”, por assim dizer, em sua abordagem. Ele certamente

está distante do detalhamento lógico e filosófico dos escolásticos medievais, mas também está da

precisão da ordo geometricum, da ordem das razões ou do conhecimento pelas causas típicos dos

modernos. Nem escolástico, nem geômetra, na soleira da modernidade, Maquiavel busca no

conselheiro humanista, na retórica e seu gênero deliberativo, o personagem com o qual desvendar a

política. Devemos levar isso em conta para entendermos como, mais precisamente, Maquiavel utiliza

as noções de dificuldade e necessidade. Apesar da primeira impressão, a ideia de que O Príncipe se

apresenta como uma demonstração exata não se sustenta. Lefort adverte que, sem dúvidas, os onze primeiros capítulos contêm a discussão de hipóteses particulares cujos termos tinham sido colocados no começo. Mas, visível de longe, o fio que deve, acreditamos,

236 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.329 237 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.328 238 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 329 239 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, pp. 330-331 240 Cf. LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, pp. 330-340

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81 os religar se distende, logo que se o quer depreender e seguir, ele se turva ou se rompe. Entretanto, aparecem novos temas, novos exemplos, novas referências, e a relação entre o discurso de fato e o plano manifesto se revela sempre mais frouxo, ao ponto de se estar no direito de se perguntar se este é destinado a nos assegurar do caminho ou a nos enganar, e, antes mesmo, se há um caminho ou se a varietà da matéria não submerge aquele que a pretendia organizar.241

Observamos que Lefort estende o suposto plano traçado no primeiro capítulo até o décimo

primeiro. Isto porque aos meios de conquista por virtù e por fortuna já expostos no primeiro capítulo,

Maquiavel adiciona ainda mais dois, que ele afirma não se ajustarem a estes casos242. No capítulo

VIII, examina-se como são mantidos principados adquiridos por atos criminosos. No capítulo IX,

aqueles adquiridos pelo favor e acordo da comunidade civil. Estes são casos em que, segundo

Maquiavel, não se pode dizer que a conquista se deu por virtù ou fortuna; de qualquer forma, são

apresentados em referência a elas. A estes dois modos de se chegar ao principado “não se pode atribuir

totalmente à fortuna nem à virtù”243; por isto devem ser considerados à parte delas , isto é, a referência

ao primeiro capítulo permanece e uma extensão de seu conteúdo está sendo feita. E a referência ao

primeiro capítulo se repete no décimo, pois, considerar “se um príncipe dispõe de estado suficiente

para poder governar-se por si mesmo ou se tem sempre necessidade de ser defendido por outros”244,

ecoa e desenvolve a distinção apresentada no primeiro capítulo entre conquistar por armas próprias

ou por armas de outrem. Por fim, o capítulo XI, investigando o caso dos principados eclesiásticos,

afirma que estes “são obtidos por virtù ou por fortuna e são mantidos sem uma nem a outra”245. O

que permite incluir estes capítulos no “plano” do primeiro não é uma sequência exata de contextos

previamente tipificados, mas o procedimento de se considerar as circunstâncias de aquisição a fim de

responder aos meios de manutenção do principado246.

Vemos a consideração destas circunstâncias estender, extrapolar e modificar a enxuta

categorização do primeiro capítulo em toda a sequência de II a XI. Nela há a adição de novas

considerações, novos tipos de principados, novos aspectos das divisões propostas no primeiro

capítulo. Deste modo, adverte Lefort, “deve-se renunciar à ideia de que o capítulo de introdução

contém um plano, admitir antes que fornece dele um substituto, preparar-se [...] para buscar o sentido

[...] na linha do que está indicado e para além dela, na região ainda indeterminada que ela somente

delineia”247 . O que Maquiavel delineia é um procedimento, uma atitude investigativa, a de se

241 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, pp. 333-4 242 "[...] ainda existem dois outros modos de passar de homem privado a príncipe, que não se podem atribuir totalmente à fortuna nem à virtù [...]. Estes dois modos são: ascender ao principado por via criminosa e nefanda ou [...] com o favor de seus concidadãos" [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VIII, p. 39]. 243 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p. 39 244 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo X, p. 51 245MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XI, p. 55 246 “[…] a introdução não fornece propriamente um plano, […] é preciso antes procurar nela uma indicação de método” [LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 249] 247 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.340

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perguntar como o principado deve ser mantido de acordo com as circunstâncias particulares do

príncipe. Não se pode falar em um método em sentido forte, científico, como uma demonstração

exata; mas antes em um procedimento, uma maneira de encarar as circunstâncias e orientar a ação o

mais efetivamente possível. Assim, as distinções apresentadas no primeiro capítulo não são nenhum

tipo de axiomas primeiros, suposições iniciais, e a elas podem ser livremente adicionadas novas

distinções e asserções sobre as coisas do stato quando for necessário.

É distante de qualquer rigorismo que devemos entender o sentido dado às dificuldades

reiteradamente colocadas por Maquiavel ao longo do livro. Isto porque muitas das dificuldades

apresentadas pelo autor não se submetem com facilidade a métodos que as tornam mais concebíveis

à precaução e à ação calculada. Muitas vezes Maquiavel parece não ter uma resposta pronta, um

método claro, para a superação da dificuldade ou para determinar o que é necessário fazer; e o que

ele pretende fazer certas vezes é, antes, explicitar e alertar para os infinitos obstáculos e fazer com

que o príncipe esteja consciente e preparado para eles. Muitas vezes, o que Maquiavel vem

recomendar em face das dificuldades não é nenhuma máxima exata de como se deve agir, mas antes

um estado de ânimo: força, coragem, ímpeto. Além disso, como nos mostra Lefort,

os conceitos em função dos quais se articula o argumento evidenciam-se eles mesmos como ambíguos: “principado novo” se opõe a “principado hereditário”, mas se cinde em seguida para designar Estado novo e propriedade de um príncipe novo. “Povo livre” se opõe primeiro a “povo acostumado a viver sob um príncipe”, depois conota ao mesmo tempo “povo ligado às suas leis”, - o qual pode estar submetido a um príncipe -, e “república”; “virtù”, sobretudo, se projeta em múltiplas direções, formando com “Fortuna” um par discriminador que tem mais de um sentido.248

Desta forma, Lefort entende que “quando nos aproximamos da obra, a paisagem muda, as

fronteiras, inicialmente tão claras, que circunscreviam os fragmentos do discurso, se esfumam”249; “o

terreno sólido sobre o qual nos imaginamos estabelecidos é tornado movediço”250; e o “leitor perde o

sentimento de ser levado pela necessidade de um raciocínio que, como aquele do geômetra, vai

diretamente da hipótese às consequências” 251 . Verifica-se que “os primeiros conceitos

maquiavelianos não asseguram à obra sua coerência”. No lugar daquela primeira impressão de uma

demonstração científica e rigorosa, encontramo-nos diante da “digressão, [d]a insinuação, [d]a elisão,

[d]o jogo da dupla verdade”, que “confundem o argumento e sugerem que uma palavra mais profunda

o dobra”252; e se mostra “preciso considerar diversos pensamentos ao mesmo tempo, [...], se interrogar

constantemente sobre o sentido do itinerário, acolher pouco a pouco a complicação de uma

248 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.340 249 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.340 250 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.338 251 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.344 252 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.338

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matéria”253 . Maquiavel examina e identifica as dificuldades impostas aos príncipes buscando a

excelência do conselheiro, não a precisão do cientista ou do filósofo. Sendo seu objetivo que os

príncipes que o leem possam agir, e seu discurso voltado à ação política, ele não deve se limitar a

asserções exatas e distintas, ou a soluções racionais, mas deve ser capaz de identificar onde as

dificuldades e problemas se apresentam em sentido mais prático de obstáculos à ação do homem, que

exigem não somente uma conduta calculada e prescrita, mas disposições ânimo, capacidades,

habilidades, criatividade (e, muitas vezes, pura sorte).

Quanto às necessidades explicitadas pelo autor ao longo do livro, também não podemos ver

nelas o sentido de necessidade lógica, científica ou filosófica. As necessidades apresentadas por

Maquiavel não são verdades universais e afirmações substanciais sobre o mundo. Trata-se de um

sentido político de necessidade, não científico. A necessidade impõe-se sobre a ação diante de seu

contexto singular; é uma necessidade para este ou aquele agente, nesta ou naquela circunstância.

Explicitando o sentido que necessità assume em Maquiavel, Adams exemplifica: “Para governar a

Romagna, tem-se de lidar astuta e impressionantemente com Vitelozzo, Oliverotto e Remirro de

Orco”. A conduta astuta e impressionante diante de obstáculos é o que se ressalta, não a exatidão e

universalidade das condições de possibilidade para a conquista da Romagna. Evidentemente, ser

astuto envolve assertividade e raciocínio; mas estes se dissolvem dentre tantas “simbólicas ou (poder-

se-ia dizer) pedagógicas” maneiras “pelas quais a virtù lidava com a aparente necessità” 254. Adams

escreve:

necessidades de diferentes tipos são como que as coisas difíceis [tough stuff] nas quais os políticos esculpem suas reputações. Para julgar suas conquistas, temos que saber de onde elas vêm, com o que começam, onde chegam, para onde estão indo, com o que têm de trabalhar, contra o que têm de trabalhar – em resumo, todas as circunstâncias que podem ajudá-los ou impedi-los. Ameaças e inibições, superstições e mitologias podem ser não menos significantes neste cálculo do que contas em bancos e artilharia. Não há, consequentemente, uma doutrina maquiaveliana, somente uma certa clareza mental preliminar que poderia ajudar a calcular as forças reais em jogo em uma situação de fato. 255

As necessidades são o que nos permitem julgar e aconselhar a ação em sua singularidade e

contexto. Não se trata das necessidades da ação no sentido das ocorrências universais que acometem

todo e qualquer agir político; mas justamente a explicitação das condições específicas que nos

permitem discorrer sobre esta ou aquela ação política. Neste sentido, a explicitação das necessidades

visa o aconselhamento e a exemplaridade. Por ela, determinamos os exemplos apropriados, e

descriminamos condutas adequadas e habilidades exigidas. E, assim, podemos ver a arte retórica

como a mais apropriada para os fins propostos por Maquiavel. A liberdade de exposição não

253 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972 p.344 254 ADAMS, Robert M. “Necessità/Fortuna”. In: MACHIAVELLI, N. The Prince. Norton Critical Edition, Nova York, 1992, p.270 255 ADAMS, Robert M. “Necessità/Fortuna”. In: MACHIAVELLI, N. The Prince. Norton Critical Edition, Nova York, 1992, p.270

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demonstrativa do conselheiro pode ser identificada com a capacidade do orador do gênero

deliberativo de retórica de flexibilizar os preceitos estabelecidos fazendo-os efetivos diante da

contingência singular dos agentes na realidade mutável. Pela ponderação, pela consideração do

argumento de diversos ângulos, pela ênfase na verdade efetiva, Maquiavel mobiliza as dificuldades e

necessidades com as quais lê a realidade em função do aconselhamento útil.

Eugene Garver explica que Maquiavel “faz uso da retórica para gerar e controlar

ambiguidade”256. Como veremos no próximo capítulo, Maquiavel coloca o problema da inovação

política – a conquista e fundação dos principados – como central em O Príncipe. O que nos interessa

ressaltar agora é que a centralidade dada a esta questão não parte de uma refundação da doutrina

política clássica e humanista como um todo, de uma nova linguagem, mas da mobilização retórica

desta a fim de se comportar e abordar apropriadamente um novo problema. Garver explica que “o

assunto de O Príncipe é “como preservar (governare e mantenere) principados (capítulo 2), e a

relação entre aquisição e preservação [...] é o tópico central do qual Maquiavel deriva sua solução

para o problema geral da estabilidade em um mundo de particulares”257. Ao adentrar este mundo de

particulares, investigando suas dificuldades e necessidades específicas, o argumento de Maquiavel

avança ao ponto “de dissolver a relação estrita entre facilidade e dificuldade de adquirir e manter”,

ao ponto onde “adquirir e manter parecem ser duas ações distintas, totalmente independentes uma da

outra”. Essa dissolução do problema em seus particulares e suas ambiguidades, a capacidade de

flexibilização retórica de Maquiavel é o que abre espaço para que o autor introduza uma questão

nova: classificar estados e exibir exemplos de sucesso e falha afrouxaram a conexão entre aquisição e manutenção do estado, de forma que um príncipe que é novo e seguro é, ao menos, uma possibilidade formal [...] permanecerá uma mera possibilidade a não ser que Maquiavel possa encontrar uma conexão prática entre aquisição e preservação.258

A conexão prática entre aquisição e preservação se dá pelo aconselhamento, pela delimitação de

dificuldades e necessidades particulares envolvidas na ação inovadora. Se O Príncipe coloca a

inovação política como problema central a ser abordado, como explicitaremos abaixo, ele o faz,

primeiramente, da perspectiva do conselheiro: em que medida pode o príncipe inovar? Em que

medida a inovação se apresenta ou não como uma dificuldade ou uma necessidade para ele?

256 GARVER, Eugene. Machiavelli and the History of Prudence. Madison: The Universisty of Wisconsin Press, 1987. p.23 257 GARVER, Eugene. Machiavelli and the History of Prudence. Madison: The Universisty of Wisconsin Press, 1987. p.29 258 GARVER, Eugene. Machiavelli and the History of Prudence. Madison: The Universisty of Wisconsin Press, 1987. p.30

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Capítulo 2: Inovação política enquanto dificuldade e necessidade

Se é pelo escrutínio cuidadoso das dificuldades e pela delimitação das necessidades impostas

aos príncipes que se realiza o aconselhamento útil de Maquiavel, perguntar-se pelos fatores dos quais

dependem a variação destas dificuldades e necessidades nos revelaria as temáticas de maior

contundência para o autor. É neste ponto que entramos em nosso segundo capítulo: buscamos

reconstituir o desenvolvimento do texto de O Príncipe, rastreando o que nos parece ser a dificuldade

e a constrição central a ser ponderada pelo conselheiro político: a inovação. Inovação é certamente

uma noção ampla e, para além de se mostrar que ela se apresenta como dificuldade e necessidade em

O Príncipe, seu sentido deve ser esclarecido. Tratando-se do governo dos principados, inovar tem

sentido político, significa destituir antigos modos e ordenações de governo e introduzir novos. No

capítulo VI de O Príncipe, Maquiavel escreve:

as dificuldades que [os príncipes] têm [...] nascem [...] das novas ordenações e dos novos modos que são forçados a introduzir para fundar seu stato e sua segurança. Deve-se considerar que não há coisa mais difícil de fazer, mais duvidosa de conseguir ou mais perigosa de manejar do que assumir a tarefa de introduzir novas ordenações259.

Nesta passagem, podemos encontrar os sentidos com os quais buscamos descrever a inovação em O

Príncipe. Enquanto inovação política, envolve o stato - neste caso, sua fundação - bem como a

introdução de modos e ordenações. Enquanto dificuldade, é descrita em mais de um sentido, não só

como difícil de fazer, mas também como duvidosa e perigosa. Além disso, apresenta-se como algo

que força o agente: é condição para a segurança do príncipe, é uma necessidade. Vemos, portanto,

que as noções que introduzimos no capítulo anterior, tanto o stato enquanto disposição ordenada e

efetiva do exercício político, quanto o aconselhamento político com ênfase na verdade efetiva, pela

explanação e exposição apropriada das necessidades e dificuldades impostas à ação, encontram-se

aqui mobilizadas para abordar o tema da inovação política.

Esta inovação é descrita nos termos e ambiguidades próprios do stato. Funda-se o stato do

príncipe e, junto dele, sua segurança. De forma que não é qualquer stato – qualquer império sobre

homens – que está em questão, mas o stato que mantém a segurança, a posição de comando, do

príncipe a quem se direciona o conselho. Portanto, aqui nota-se a indissociabilidade frequente em O

Príncipe entre stato e agente político. Neste sentido, vemos também a introdução de novas ordenações

ser apresentada em conjunto à introdução de novos modos. Os modos, em O Príncipe, com exceção

dos momentos em que compõem a locução conjuntiva in modo che exaustivamente usada pelo autor,

referem-se às ações políticas. Maquiavel oferece a Lourenço, com seu tratado sobre os principados,

259 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p.27. Nossos itálicos

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uma “cognizione delle azioni delli uomini”260. Para ponderar sobre as ordini de Moisés e Ciro, no

sexto capítulo261, ou sobre as de César Borgia, no sétimo262, o pensador florentino as apresenta em

conjunto das ações destes homens. Os modos, por sua vez, referem-se à especificidade da ação, suas

possibilidades e seus limites próprios. É como se transcorre a ação em sua particularidade. O autor

investiga por que modos os príncipes adquirem, governam, possuem e mantêm seus principados; mas

também pelos quais satisfazem ou ofendem outros homens, e pelos quais estão ordenados e armados;

examina também em que medida podem ou não fazer as coisas a seu modo. Portanto, o problema da

fundação do stato e da introdução de novas ordenações está acompanhado do problema da segurança

e dos procedimentos do agente político, de seus modos. Com isso, podemos ver que a questão da

inovação política diz respeito a algo mais que a transição de uma forma de governo ou regimento a

outra, ou de uma constituição política a outra. Estas questões estão englobadas em um problema mais

amplo, que envolve também o exercício político, os modos do exercício do poder. Neste sentido, a

inovação pode ser examinada nos termos próprios do conselheiro político, pois é pela ponderação dos

modos, que podem ser aconselhados, que se apreende as ordenações, o espaço ou estrutura políticos.

E do ponto de vista do conselheiro, considerando sempre a efetividade restrita à perspectiva

do aconselhado, a inovação é uma dificuldade. Maquiavel continua: o introdutor tem por inimigos todos aqueles que se beneficiavam das antigas ordenações e por tíbios defensores todos aqueles a quem as novas ordenações beneficiariam. Essa tibieza nasce em parte do medo aos adversários, que têm as leis a seu lado, em parte da incredulidade dos homens, que não creem verdadeiramente nas coisas novas senão depois de comprovadas por firme experiência.263

Como escreve Pocock, “ele realizou uma inovação, derrubando ou substituindo alguma forma de

governo que o precedia. Ao fazê-lo, ele deve ter ofendido muitos, que não estão reconciliados com

seu governo, enquanto aqueles que bem recebem sua chegada agora esperam mais do que ele pode

prover”264. Esperam mais do que podem receber e “mais tarde percebem o engano pela própria

experiência”265; ou defendem tibiamente o novo príncipe e não creem verdadeiramente nele pela falta

de firme experiência. Seja como for, a inovação é uma dificuldade na medida em que está em conflito

com a experiência. Como coloca Pocock, “a insegurança da inovação política [...] nasce do fato de

que ofende alguns e incomoda todos, criando uma situação à qual não tiveram tempo de

acostumarem-se"266. A firmeza da experiência, o que ela pode afirmar como certo, é o costume, o

260 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Diogo Pires Aurélio, 2008, 2017, Dedicatória, p. 84 261 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 26 262 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p. 30 263 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 27 264 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.160 265 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 9 266 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p. 163

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habitual. Entender o problema colocado por Maquiavel, portanto, implica entender a relevância da

experiência em seu contexto cultural, a saber, como um dos principais “meios pelos quais o indivíduo

limitado no tempo poderia entender e controlar o fenômeno limitado no tempo e sua relação com

outros fenômenos limitados no tempo”, como expressa de Pocock. Segundo o historiador das ideias,

“pela reiterada experiência de fenômenos recorrentes ou consequentes, era possível construir padrões

de comportamento repetidos e rememorados, estendendo-se no tempo para formar tradições de

costumes, algumas vezes institucionalizadas como corpos de leis consuetudinárias”. Recebendo

“suporte epistemológico da observação de Aristóteles de que a experiência acumulada de muitos era

algumas vezes mais confiável do que a sabedoria do filósofo” 267, o costume - a experiência firme ou

acumulada – era a via confiável para o estabelecimento de normas sociais à legitimidade de

instituições e leis.

Não só fontes epistemológicas de justificação, costume e experiência eram concepções

relevantes no efetivo modo de vida das pessoas: “o homem social podia adquirir uma segunda

natureza pelos costume, tradição e herança, o resultado da assimilação [...] do que ele e seus

antecessores experienciaram, aprenderam e tornaram-se pela experiência”268, de tal modo que “se

você priva as pessoas do que elas estão acostumadas, todos seus hábitos mentais operam contra você”.

A inovação é pré-condicionada a ser recebida como ofensa, pois “é sempre contra uso e costume,

contra segunda natureza adquirida” e, na medida em que, no contexto do século XV, “a única forma

relevante de conhecimento é experiência baseada em memória”, “as pessoas são mais conscientes

sobre o que perderam do que sobre o que podem ter ganhado” com a inovação269. Pocock explicita a

resistência do costume estabelecido diante da inovação apontada por Maquiavel nos termos da

legitimidade tradicional: “estamos ainda no mundo conceitual da política medieval, na medida em

que é ainda impossível conceber legitimidade sem tradição e antigo uso, mas nos movendo rápido

para fora dela, na medida em que Maquiavel está preparado para examinar a natureza do poder onde

falta legitimidade”270. A dificuldade consiste exatamente em examinar as possibilidades da ação

política onde falta legitimidade tradicional. A verdade efetiva é que a estrutura da experiência social

não comportava a inovação, não a legitimava; portanto, a inovação era uma dificuldade e as leis e a

razoabilidade estavam contra o inovador. De todo modo, a inovação não deixava de aparecer em

muitos casos como uma necessidade, como a condição imposta ao príncipe. Portanto, se do ponto de

267 POCOCK, J.G.A. "Custom and Grace, Form and Matter: An Approach to Machiavelli's Concept of Innovation," in Martin Fleisher (ed.), Machiavelli and the Nature of Political Thought, New Fork: Atheneum, 1972, p.157. Minha tradução para todas as citações deste texto. 268 POCOCK, J.G.A. "Custom and Grace, Form and Matter: An Approach to Machiavelli's Concept of Innovation," in Martin Fleisher (ed.), Machiavelli and the Nature of Political Thought, New Fork: Atheneum, 1972, p. 157 269 POCOCK, J.G.A. "Custom and Grace, Form and Matter: An Approach to Machiavelli's Concept of Innovation," in Martin Fleisher (ed.), Machiavelli and the Nature of Political Thought, New Fork: Atheneum, 1972, p. 167 270 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p. 159

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vista universal da legitimidade tradicional a inovação é irrazoável; do ponto de vista particular do

inovador, ela é uma necessidade e a tradição é parte do obstáculo imposto.

As asserções que expomos do capítulo VI referem-se ao caso do principado inteiramente

novo, da fundação do stato. De todo modo, o que queremos mostrar é que elas têm um caráter

abrangente e estruturante em O Príncipe - inovar é sempre uma dificuldade e, em alguma medida,

uma necessidade. A constatação da inovação e suas consequências como dificuldades e necessidades

alimenta todo o decorrer do livro, sendo apresentada em quase todos seus capítulos de diferentes

formas, ângulos e medidas. Que a inovação se apresenta como dificuldade e que saber agir diante

dela é uma habilidade necessária a ser ensinada aos príncipes são noções fundamentais e constantes

em O Príncipe. Em sua carta a Vettori de 10 de dezembro de 1513, Maquiavel escreve a seu amigo

sobre O Príncipe, que “sobretudo um príncipe novo”271 deve apreciar suas reflexões. Assim, Pocock

afirma ser o livro de 1513 um “estudo sobre o ‘novo príncipe’ [...] ou sobre a classe de inovadores

políticos a que ele pertence”272. O Príncipe é uma obra, “uma vez que [...] dedicada ao tema dos

novos príncipes, de innovatorius: uma tipologia de inovadores políticos, empregando as categorias

disponíveis e apropriadas para este estudo”273 e, neste sentido, que aborda a “inovação como um

princípio abstrato”274.

Devemos, entretanto, ser cuidadosos quanto ao sentido do “maior nível de abstração”

atribuído a Maquiavel por Pocock. O historiador o faz comparando O Príncipe a outros “tratados

menores [...] especificamente endereçados à questão concreta do que estava e estivera acontecendo

na política florentina”275. “Maquiavel”, ele nos diz, “não conduz sua análise no contexto específico

de Florença, nem em vista do problema específico da cidadania; sua preocupação é somente com [...]

o inovador”. Enquanto “Guicciardini, Vettori e Alamanni atribuíam aos Medici restaurados algumas

das características do principe nuovo”, especificando, “em variados graus de detalhe, as mudanças

históricas exatas que constituíram esta inovação”, “não é nunca possível dizer exatamente o quanto

O Príncipe intendia iluminar os problemas enfrentados pelos Médici restaurados em seu governo de

Florença”276 . É neste sentido que se entende uma abordagem abstrata da inovação política em

Maquiavel, não no sentido de uma busca por verdades universais e atributos abstratos da inovação

271 MACHIAVELLI, Niccolo. De principatibus = Le prince. Coautoria de Jean-Louis Fournel, Jean-Claude Zancarini. Paris: Presses Universitaires de France, 2000, p.530 272 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.160 273 POCOCK, J.G.A. "Custom and Grace, Form and Matter: An Approach to Machiavelli's Concept of Innovation," in Martin Fleisher (ed.), Machiavelli and the Nature of Political Thought, New Fork: Atheneum, 1972, p.167 274 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.160 275 POCOCK, J.G.A. "Custom and Grace, Form and Matter: An Approach to Machiavelli's Concept of Innovation," in Martin Fleisher (ed.), Machiavelli and the Nature of Political Thought, New Fork: Atheneum, 1972, p.167 276 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.160

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política. Se Pocock atribui a Maquiavel uma intenção de abordagem abstrata, ela tem o sentido de

uma abstração conquistada e não imposta, de uma generalidade ampla e não universal. Pocock vê no

livro de Maquiavel o exame de “uma variedade de situações”277 particulares, não uma subsunção a

princípios universais. Introduzir novas ordenações não é algo dificultoso e que se impõe como

necessidade em um único sentido, por uma única razão, sempre da mesma forma e na mesma

intensidade. A dificuldade da inovação é meticulosamente tecida ao longo de O Príncipe em uma

extensa urdidura, organizando muitas cores e formas, no desenho vívido e turbulento que lhe é

próprio.

É este desenho da tecedura que devemos reconstituir se queremos apreender a amplitude do

livro de Maquiavel. Pocock entende o livro enquanto “um estudo analítico da inovação e suas

consequências” 278 . Há uma preocupação em ampliar o exame da questão em suas várias

particularidades. Neste sentido, “O Príncipe torna-se tipologia de inovadores”, adotando “uma

abordagem classificatória [...] no início” que “percorre os capítulos chave do livro”279. Como já

vimos, o primeiro capítulo de oferece a urdidura da obra, urdidura sobre a qual se pretende tecer como

se governam e mantêm os principados. Havíamos notado, entretanto, a concisão deste primeiro

capítulo, que circunscrevia sua classificação aos modos de aquisição do principado. Agora podemos

ver que esta concisão se dá pela delimitação de um problema, de uma dificuldade específica: a

dificuldade da inovação. Maquiavel diz a Vettori na carta de 10 de dezembro de 1513 que seu livro

deve interessar a um príncipe, sobretudo um príncipe novo. Assim, parece plausível entender que O

Príncipe se direciona a entender como se governam e mantêm os principados e, em especial, em que

medida a dificuldade da inovação e a necessidade de inovar se impõem para tanto.

A inovação é abordada nos termos de dificuldades e necessidades já na passagem do capítulo

II ao III. Nestes capítulos, Maquiavel afirma e busca justificar a seguinte asserção: que há maiores

dificuldades em se preservar um principado novo do que em se preservar um principado

hereditário.280 A manutenção do principado é mais difícil na medida em que é novo. Esta constatação

é gradualmente feita, ao se seguir passo a passo os contextos particulares possíveis e as dificuldades

específicas dos governantes e seus principados. No primeiro capítulo Maquiavel havia distinguido os

277 POCOCK, J.G.A. "Custom and Grace, Form and Matter: An Approach to Machiavelli's Concept of Innovation," in Martin Fleisher (ed.), Machiavelli and the Nature of Political Thought, New Fork: Atheneum, 1972, p.167 278 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.156 279 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.158 280 No segundo capítulo, o autor afirma: “nos estados [stati] hereditários e acostumados à linhagem de seus príncipes, há bem menos dificuldades para mantê-los do que nos novos” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo II, p.7]; e o capítulo subsequente é iniciado por uma afirmação equivalente: “mas é no principado novo que aparecem as dificuldades” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 9]

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principados novos em inteiramente novos ou em membros anexados, e no terceiro capítulo

aprendemos que o autor, em um primeiro momento, opõe o principado hereditário àquele que “não é

totalmente novo, mas é anexado como membro”281. Isto é, os principados são ditos novos na medida

em que são membros anexados, conquistados; e, portanto, a inovação é entendida nos termos da

conquista, da expansão.

Primeiramente, duas perspectivas de agência política estão sendo consideradas e contrastadas:

a do príncipe hereditário ou natural e a do príncipe conquistador, que expande seu principado. Estes

personagens não são substancialmente distintos, mas se diferenciam pela ação que exercem para a

aquisição de seu poder. Príncipe hereditário é aquele que é príncipe por ter recebido hereditariamente

sua posição; o príncipe conquistador, por sua vez, é novo e realizou uma inovação ao anexar novos

membros ao seu domínio, introduzindo neles suas ordenações. De qualquer forma, um príncipe

hereditário pode perfeitamente ser um conquistador, na medida em que expande seu território pela

conquista e anexação de novos membros.

Quando passamos ao capítulo VI, verificamos que Maquiavel conta com uma nova

modalidade de inovação. Ele nos diz estar agora a “falar dos principados inteiramente novos, de

príncipes e de stati”282. Com isso, o autor recupera uma distinção apresentada no primeiro capítulo,

entre principados novos enquanto membros anexados e principados inteiramente novos. No primeiro

capítulo, o exemplo é o de Francesco Sforza, que fundou sua linhagem com a ascensão ao principado

de Milão. O que há de distintivo nos principados inteiramente novos é que o príncipe realiza neles “a

passagem de homem privado a príncipe” 283 . A conquista, a expansão do stato, não envolve

necessariamente esta passagem. Estamos passando da conquista a um procedimento mais completo

de inovação: a fundação. Os fundadores têm uma necessidade ainda maior de inovar, pois precisam

não só transferir suas ordenações a novos súditos, mas também criar tais ordenações e estabelecer-se

como príncipe. Esta nova perspectiva da inovação acarreta consequências importantes – a dificuldade

da inovação nestes casos exige capacidades distintas e mais complexas. Podemos afirmar ao menos,

de partida, que as dificuldades enfrentadas pelos príncipes inteiramente novos são mais perigosas,

pois perder seu domínio significa mais que não conseguir expandir seu stato, significa perdê-lo

completamente. Assim, o que podemos ver é que a inovação é o problema estruturante de O Príncipe.

Podemos identificar, portanto, condições, contextos específicos, nos quais a inovação

apresenta-se como necessidade e dificuldade. O primeiro capítulo nos apresenta uma série de

distinções. Estas distinções organizam-se em uma progressão. Começamos com o principado

hereditário e o príncipe natural. Dele, vamos ao principado que não é completamente novo, que é um

281 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 9 282 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 25 283 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, pp. 25-26

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misto entre hereditariedade e novidade – a anexação de novos membros ao antigo stato. Finalmente,

chegamos ao principado inteiramente novo, no qual é novo seu príncipe e seu stato. No entanto, como

pode “progredir” a inovação? Em que sentido “cresce” a inovação em O Príncipe? À primeira vista,

parece vago em que medida há mais ou menos, maior ou menor, inovação em diferentes casos. O

esclarecimento quanto a isso está no exame da inovação enquanto necessidade e dificuldade. O que

cresce e progride ao longo as páginas do livro é a necessidade de inovar e a dificuldade de fazê-lo.

Maquiavel apresenta duas constatações antagônicas da vida política e busca extrair seu

aconselhamento da ponderação entre elas. Por um lado, mostra, em consonância com a tradição,

quanto é dificultoso e perigoso inovar, na medida em que se o faz contra o costume e a experiência.

Por outro, busca mostrar como inovar é inegavelmente essencial para a prática política, uma

necessidade da arte do stato. As atividades ou ações inovadoras, que envolvem a deposição e

introdução de novos modos e novas ordens, são realidades políticas que não podem ser negadas, mas

devem, ainda assim, ser abordadas com toda cautela.

Para aconselhar sobre a inovação política, Maquiavel pondera em que medida cada uma destas

duas afirmações se apresenta como mais pungente: quando é mais difícil inovar do que é realmente

necessário, ou quando há necessidade da inovação, apesar de sua extrema dificuldade. É este o

questionamento que perpassa os diferentes contextos distinguidos por Maquiavel no primeiro

capítulo. No principado hereditário, são menores as dificuldades por ser menor a necessidade de

inovar. Entretanto, quando há a conquista de um novo stato, sua manutenção é difícil, pois a inovação

se apresenta como uma necessidade para além de uma dificuldade, uma dificuldade necessária. De

qualquer modo, o príncipe hereditário que conquista um novo stato ainda pode encontrar meios para

que a dificuldade da inovação seja contornada e evitada em certos pontos, avaliando em que medida

e como a inovação deve ser realizada em menor conflito possível com o costume estabelecido, quando

é realmente necessária. Além disso, a posição do príncipe enquanto governante é relativamente segura

em relação à manutenção de sua conquista, pois se a perde, não perde também seu stato hereditário.

Na fundação, na passagem de homem privado a príncipe, por sua vez, inovar é condição necessária

do príncipe e ele só pode encontrar a segurança de sua posição mantendo seu stato fundado. Aqui,

não há apoio algum que se possa ter nas condições e costumes estabelecidos, não se pode contornar

a inovação e suas dificuldades devem ser enfrentadas imediatamente.

Na medida em que se pretende um conselheiro dos príncipes, especialista na arte do gênero

deliberativo, as observações de Maquiavel, suas ponderações quanto às dificuldades e necessidades

de inovar, devem resultar em reflexões quanto à conduta política dos príncipes. Não somente se e em

que medida a inovação é necessária e difícil, mas como agir diante da inovação dificultosa e

necessária é mais propriamente a questão de Maquiavel. Buscando a verdade efetiva sobre a inovação,

Maquiavel poderá introduzir o que há de propriamente original em seu pensamento, que, segundo

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Gilbert, “não consiste – ou não consiste primariamente – nas ideias que proferiu; sua contribuição foi

a de costurá-las de modo que uma nova visão da política emergisse”284. Esta costura de concepções

tradicionais em uma nova visão da política é precisamente o procedimento retórico de Maquiavel,

que, pela consideração das especificidades das circunstâncias e dos agentes políticos, flexibiliza e

modifica concepções tradicionais da agência política. Neste sentido, buscaremos mostrar nas

próximas seções não somente a ponderação sobre certas circunstâncias políticas e em que medida a

dificuldade e necessidade da inovação nelas se impõem, mas também que, por esta ponderação,

Maquiavel entra em embate com concepções tradicionais sobre os procedimentos de governo

efetivos, mostrando que em certas circunstâncias é preciso reavalia-los e flexibiliza-los, bem como,

em outras, é preciso alertar sobre suas profundas limitações.

Nossa análise começa (2.1) pelo exame que Maquiavel realiza dos principados hereditários,

explicitamente no segundo capítulo e, implicitamente, nas primeiras páginas do terceiro capítulo de

O Príncipe. Buscaremos mostrar que Maquiavel parte de um ponto de vista tradicional ao aceitar a

asserção segundo a qual os principados hereditários são mais estáveis e menos difíceis de serem

mantidos. Com isso, o autor nos apresenta um primeiro caso da ponderação quanto às dificuldades e

necessidades da inovação. Nos principados hereditários, a inovação é, à primeira vista, não necessária

e nem dificultosa. No entanto, a maneira como Maquiavel expõe o caso dos principados hereditários

é justificada por uma perspectiva diferente da tradicional. Enquanto tradicionalmente o costume era

uma justificativa para a legitimidade do príncipe hereditário, o que explicaria sua estabilidade,

Maquiavel propõe um caminho diferente. Para o autor, como veremos, a questão não é justificar a

legitimidade do príncipe partindo do costume, mas expor que efetivamente o costume faz com que o

príncipe seja reconhecido como legítimo por seus súditos, o que reduz consideravelmente a

resistência contra ele. No entanto, isso não quer dizer que o príncipe esteja autorizado, por sua

legitimidade tradicional, a agir como quiser. Ele está atado à reprodução dos modos e ordenações

ancestrais que recebera, o que, certamente, não exige uma capacidade extraordinária do príncipe, na

medida em que naturalmente – no sentido de que faz parte de sua segunda natureza – pode fazê-lo.

De todo modo, Maquiavel salienta os perigos em se desviar deste comportamento natural, o que

acarreta o ódio e seria recebido como ofensas por seus súditos. Portanto, a inovação nestes

principados é mais que não necessária, ela é atada pelo preceito da necessidade de não inovar, de

forma que a abertura para a inovação nestes principados se limita ao saber contemporizar segundo os

acontecimentos. Além disso, quando partimos para o terceiro capítulo do livro, vemos um alerta

importante implicitamente direcionado aos príncipes hereditários quanto às limitações de seu poder.

284 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence. Princeton University Press, 1965, pp. 159

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Se estão assegurados pela ação ordinária no que diz respeito ao apoio de seus súditos, o que garantiria

inclusive um retorno facilitado ao posto de governante no caso de sua deposição, isso não significa

que estejam assegurados contra qualquer iniciativa interna de conspiração, nem, especialmente,

contra iniciativas estrangeiras de invasão. Desta forma, podemos ver que, para Maquiavel, as

dificuldades e necessidades relativas à inovação já se apresentam nos principados hereditários, uma

vez que as dificuldades em inovar são reconhecidas, apesar de poderem ser em grande medida

evitadas, e a necessidade se apresenta, no caso, a necessidade de não inovar. Maquiavel nos prepara,

partindo de uma ponderação flexibilizada da segurança e estabilidade do príncipe hereditário, para

uma nova perspectiva, a do príncipe novo. A instabilidade e falta de segurança deste não significam

mais a impossibilidade de pensar o seu governo, antes, significam que sua segurança e estabilidade

são mais difíceis de serem alcançadas, uma vez que introduz a necessidade da inovação no lugar da

natural reprodução de antigos modos e ordenações. Se, nos principados hereditários, a menor dificuldade em manter o principado está associada

à menor necessidade da inovação (ou, mais precisamente, à necessidade de não inovar), nos

principados novos esta necessidade é o que torna a manutenção difícil para os príncipes. Como nos

indica o termo, o príncipe é novo, realizou uma inovação, ela é necessária propriamente para seu

estabelecimento na posição de governo. A introdução desta nova perspectiva precisa lidar com dois

preceitos antagônicos. Enquanto para o príncipe hereditário, em geral, harmonizava-se a dificuldade

em inovar com a necessidade de não inovar, o que lhe exigia uma capacidade ordinária; para o

príncipe novo, continua válida a dificuldade da inovação, mas esta entra em conflito com a

necessidade fundamental de inovar. Neste sentido, a habilidade exigida do príncipe novo é muito

mais complexa e nada ordinária. Ele precisa inovar na medida do necessário para se estabelecer, mas

considerar em que medida essa inovação pode se tornar dificultosa e perigosa ao ponto de o fazer

perder a posição estabelecida. O príncipe novo, entretanto, permanece por poucas linhas como uma

noção abstrata, enquanto oposto ao príncipe hereditário por necessitar inovar. Maquiavel o examina

considerando duas condições distintas de inovação, dois diferentes príncipes novos. Primeiramente

examina a conquista e o conquistador, quando a inovação se dá pela anexação de novos stati por um

príncipe hereditário (chamado novo na medida em que conquista novos stati). Depois, passa a

examinar o principado inteiramente novo e sua fundação, quando a inovação se dá pela passagem de

homem privado a príncipe na aquisição do principado.

Com isso, nossa análise parte, em um segundo momento (2.2), para o exame da conquista em

O Príncipe. Neste caso, aparecem as dificuldades, mas o principado não é inteiramente novo. O

príncipe realizou uma inovação parcial na totalidade de seu stato pela conquista e expansão, mas

recebeu hereditariamente sua posição de governante. As condições da conquista são tais que a

inovação é necessária, pois não há conquista sem inovação, e dificultosa, pois o contato com novos

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súditos e a entrada em uma nova relação de forças acarreta consigo aquelas dificuldades das quais

estaria o príncipe salvo se não estivesse em conflito com a ordem dos costumes. Assim, os dois

preceitos antagônicos em relação à inovação, os das necessidades de inovar e o de não inovar,

apresentam-se igualmente pungentes e em conflito. Por um lado, Maquiavel não abandona o primeiro

preceito, aprendido com o caso dos príncipes hereditários, segundo o qual a não inovação e a mera

contemporização segundo os acidentes se apresenta como uma via segura. Por outro, este primeiro

preceito é duramente limitado pela necessidade de inovar como condição para o posicionamento do

príncipe em novo território. As ações efetivas do príncipe conquistador, bem como os conselhos úteis

a serem dados a ele, são resultado de uma habilidade em encontrar uma via entre estes dois preceitos

conflituosos. Por isso, uma habilidade não ordinária é exigida. Esta habilidade, como buscaremos

mostrar, é a prudência. A partir do exame comparado entre as conquistas dos antigos romanos e as

conquistas de Luís XII na Itália, Maquiavel aponta que a falha deste e o sucesso daqueles se deu pela

falta ou uso da prudência, a capacidade de antever e se precaver pelo exame apurado das condições,

bem como a de agir ou não agir nos momentos apropriados. Esta habilidade permite ao príncipe

ponderar sua ação efetivamente entre dois preceitos antagônicos e decidir apropriadamente entre eles

nos momentos certos, pois a prudência permite o cálculo apropriado da deliberação política. No

entanto, como veremos, para se utilizar da noção de prudência na avaliação da conquista, para falar

da prudência do conquistador, Maquiavel precisa flexibilizá-la e adaptá-la. Isto porque a noção de

prudência era tradicionalmente pensada em harmonia com a ordem estabelecida de costume. A

prudência do conquistador precisa transpor a mera contemporização de acordo com os costumes, pois

o que ela discerne com sua ponderação das condições é que certos acidentes são irredutíveis à

resistência dos costumes e à necessidade de ofender. A prudência do conquistador consiste, por um

lado, em um cálculo em relação a como se pode aproveitar ao máximo as condições estabelecidas em

favor do príncipe e, por outro, em que medida e precisamente que momentos estas condições devem

ser combatidas. No capítulo subsequente, examinamos o caso da fundação do stato ou a passagem de

homem privado a príncipe, no qual as dificuldades e necessidades impostas pela inovação são as mais

elevadas e passam a ser abordadas por Maquiavel de forma distinta da como foi abordada nos casos

do príncipe hereditário e de sua conquista.

2.1. A inovação nos principados hereditários

Maquiavel começa sua análise considerando o contexto do principado hereditário, no qual,

à primeira vista, a inovação não seria nem uma grande dificuldade, nem uma necessidade.

Maquiavel explica no segundo capítulo de O Príncipe285 que as dificuldades para a permanência

285 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo II, pp.7-8

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do príncipe em sua posição de governo são menores nos principados hereditários. Neles, a

continuidade de uma linhagem de governantes garante ao príncipe sua posição. Os procedimentos

seguidos pelos antepassados garantiram sua permanência em suas posições de governo, sendo eles

capazes de transferi-las hereditariamente. Na medida em que a linhagem de príncipes é antiga em

seu domínio, e seus súditos e amigos tornam-se habituados a sua linhagem, ao príncipe hereditário

cabe somente agir de acordo com os procedimentos de seus antecessores para preservar sua

posição. Esta tarefa não deve impor-lhe grandes dificuldades, na medida em que ele não precisa

desviar de um caminho com o qual já está familiarizado, aquele de seus antepassados. Assim, do

príncipe é exigida uma capacidade ordinária no sentido de uma capacidade mediana, não

excepcional.

Maquiavel considera com especial atenção a questão do hábito ou do costume dos

principados. O autor nos adverte para o fato de que os agregados de homens organizados em uma

vida em comunidade, sob uma estrutura política, compartilham um conjunto de normas e práticas,

que são tradicionalmente aceitas, repetidas e nutridas, isto é, para o fato de que as comunidades

politicamente organizadas têm seus hábitos ou costumes. Estes hábitos ou costumes são como

forças consolidadas que, ao mesmo tempo em que estabilizam o poder do príncipe natural, criam

resistências à introdução de novas ordens e à conquista estrangeira. A introdução de novas

ordenações se apresenta como dificuldade na medida em que está em conflito com estas forças

consolidadas e sofre resistência. Entretanto, a noção de ordinário não se esgota no sentido de

mediano e fácil. Ela também nos remete a uma concepção de manutenção da ordem, de agir

ordinariamente. Maquiavel sustenta que a antiguidade das ordenações de uma linhagem de

governantes gera um hábito em seus governados. Estes se habituam aos procedimentos de governo

desta linhagem, fazendo deles uma ordem estabelecida, um modo de vida específico. Não se trata,

entretanto, de um sentimento de respeito irrestrito ao nome e à linhagem do príncipe; a preservação

deste modo de vida é o que garante segurança e estabilidade ao principado. Tudo aquilo que é

estranho aos procedimentos habituais de governo consolidados, tudo o que é extraordinário, é

sentido como ofensa e vício; tudo o que impulsiona ou deixa viver o modo de vida habitual é

respondido com amor e benevolência.

O príncipe natural tem menos necessidade e razões para ofender na medida em que os

costumes corroboram seu poder. Na medida em que não ofende, o príncipe é amado e benquisto

por seus súditos, o que corrobora a sua permanência na posição de governante. No entanto, o que

garante o poder do príncipe natural não é algum tipo de direito hereditário irrestrito de governar.

Ele está submetido à necessidade de manter a ordem, de tal forma que quando age de forma

extraordinária ou quando está em face de situações extraordinárias, o príncipe hereditário corre o

risco de perder seu domínio. Neste ponto, podemos observar que a inovação já é tematizada como

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dificuldade nos principados hereditários, já para os príncipes naturais. Eles não estão totalmente

livres das dificuldades e necessidades relativas à inovação. Lefort, em Le Travail de l’Oœuvre nos

diz que, ao começar pelo estudo dos principados hereditários, o leitor de O Príncipe “é primeiro

confrontado com um exemplo que os pensadores políticos, durante a Idade Média, privilegiaram:

aos seus olhos, o príncipe hereditário é de fato aquele cuja autoridade é considerada legítima e que

chega ao principado por meios pacíficos.”286 A fim de mostrar que à primeira vista, a análise de

Maquiavel “permanece fiel à convenção”, Lefort ressalta o uso do termo príncipe natural no

primeiro capítulo de O Príncipe. “Ora, sem dúvida este termo respondia em origem a uma

concepção precisa da Monarquia”287, comenta Lefort. Ele se refere a uma concepção medieval de

monarquia, na qual a ideia de governante natural está fundamentada em concepções tomistas de

costume como segunda natureza e de uma hierarquia dos seres que tendem a permanecer em seus

lugares naturais. Concepções estas de raiz aristotélica e que ecoaram e serviram de autoridade para

autores chave na alta idade média e no humanismo, como Colona e Savonarola.288

Há, portanto, uma ideia de natureza e uma suposição de um mundo ordenado como

referência no termo natural. No entanto, mostra Lefort, a referência ao universo conceitual

medieval não faz mais que abrir caminho para uma mudança radical de perspectiva289. Natural

perde todo seu sentido tradicional; Maquiavel estaria preparado para explicar a distinção entre

príncipes hereditários e novos por novas vias e não aquelas da legitimidade tradicional dos

medievais em toda sua complexidade. “A verdade” explica Lefort “é que [o] poder [do príncipe

natural] se beneficia de um costume à opressão: a permanência do dominador enfraquece a

resistência dos dominados, de tal sorte que sua submissão se obtém sem grandes custos”290

Costume não envolve mais uma segunda natureza imutável, uma ordem natural, legitimidade ou

busca pelo bem. O que vale é o costume à opressão, composto por dois polos: a permanência do

dominador contra a resistência dos dominados. Costume não passa do resultado da oposição entre

príncipes e seus súditos na passagem do tempo. Para Lefort, é ao considerar esta oposição que

concluímos a estabilidade do príncipe hereditário e a instabilidade do príncipe novo, “e não uma

concordância fundada sobre a disposição íntima do corpo social” 291: O leitor gostava de ver na estabilidade o efeito de uma boa forma, cuja instauração responde a um projeto da providência ou uma finalidade natural, e dava ao príncipe o crédito de saber se fazer instrumento para tanto, diferentemente do tirano – sempre ocupado com a violência; mas revela-se que a estabilidade deve ser sempre pensada em função de uma instabilidade e de uma violência primeiras, e que o “príncipe antigo” tem

286 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 349 287 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 349 288 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, pp. 349-50 289 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 350 290 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 350 291 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 350

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97 somente o privilégio de explorar os sucessos conquistados outrora na luta por um “príncipe novo”. Entre o regime de um e aquele de outro, não há uma diferença substancial, mais uma diferença de gradação, que tem sua posição respectiva em vista dos adversários que têm para dominar. À conquista do poder corresponde um movimento rápido e violento que deve triunfar diversas forças de resistência; mas, tendo conseguido, vem o momento no qual ele se transforma em um movimento lento, que tende a conservar-se. É esta passagem de um regime ao outro que se pode julgar natural.292

Aqui se faz notar especialmente o caráter retórico do argumento de Maquiavel. O que o

autor faz não é recusar afirmação clássica da legitimidade tradicional, mas, antes, abordá-la de

uma nova perspectiva, uma que abarque outros lados da questão. O que Maquiavel busca

flexibilizar é a asserção fixada da tradição segundo a qual o príncipe hereditário tem facilidade em

governar na medida em que faz parte da natureza de seus súditos, na medida em que é natural.

“Certamente, permanece válida a distinção entre príncipe antigo e príncipe novo, entre ordem do

costume e ordem da inovação, mas ela não pode ser compreendida em referência à ideia clássica

de natureza”. Maquiavel propõe uma nova forma de distinguir o príncipe hereditário do príncipe

novo, de tal modo que se possa discorrer sobre as possibilidades de ação dos dois agentes. Ao

induzir, “antes, a imaginar o campo da política como um campo de forças onde o poder deve

encontrar as condições de um equilíbrio”, Maquiavel abre espaço para se pensar o príncipe novo

em distinção do príncipe antigo – enquanto neste a manutenção é mais fácil e a inovação não

necessária na medida em que o campo de forças está estabilizado, naquele a manutenção é difícil

e a inovação necessária porque o campo de forças está desequilibrado em desvantagem ao

governante293. Assim, Lefort salienta que evocando a figura de um príncipe hereditário, Maquiavel não escolhe o exemplo que se impõe ao pensamento de todos, aquele do rei da França, mestre de um Estado poderoso e solidamente estabelecido, mas fala dos duques de Ferrara, personagens de segundo plano, dos quais ele sabia, dos quais era notório que retomaram seu stato, assim como haviam perdido, em razão somente das vicissitudes da política internacional294.

É preciso estar atento, portanto, para os limites da noção de legitimidade tradicional do

pensamento político medieval como artifício de Maquiavel para explicar a estabilidade dos

príncipes hereditários. Esta noção é limitada porque a legitimidade tradicional medieval pode

denotar mais que mero costume e baixa resistência a um governo. Maquiavel não toma para si a

totalidade desta noção, restringindo-se a afirmar a maior facilidade de manutenção de governo

quando é mais antigo. Pocock reconhece que deve-se [...] enfatizar que uma monarquia transalpina completamente desenvolvida dos tempos de Maquiavel tinha mais para se legitimar que somente o uso: podia alegar representar uma ordem universal, moral, sagrada e racional; além de o povo estar há muito tempo acostumado ao seu poder, ela podia derivar a legitimidade de um corpo de antigas

292 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 350-351 293 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 352 294 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 351

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98 leis de costume que administrava em sua jurisdictio; e podia alegar exercer um conjunto de capacidades em seu gubernaculum. Maquiavel não pinta um quadro com ricos detalhes destes sistemas de poder tão legitimizados, apesar de sabermos, a partir de suas observações quanto aos franceses, que ele estava familiarizado com muitas de suas características. A única instância de poder hereditário neste capítulo [II] de O Príncipe é italiano, os d’Este de Ferrara, e ele indica que estas famílias são meramente usurpadores bem-sucedidos que se mantiveram por gerações suficientes para que a inovação original fosse esquecida. Há um grande passo que separa os d’Este - vamos dizer – dos ungidos Capetianos; ainda assim, mesmo os d’Este são colocados antiteticamente em relação ao ‘novo príncipe’”295

Reivindicar legitimidade tradicional no mundo medieval significa mais que reivindicar harmonia

com o modo de vida ordinário. Os Valois ou os Habsburgo certamente não derivavam sua

legitimidade somente do longo tempo de sua posição de poder, mas de uma complexa e

consolidada estrutura de justificação de ordem religiosa, moral e jurídica; de antigos acordos e

estruturas de governança e justiça. O exemplo de príncipe hereditário escolhido por Maquiavel no

segundo capítulo de O Príncipe, os duques de Ferrara, os D’Este, no entanto, não representam

nada disso. Sua semelhança com os Valois ou os Habsburgo é somente o seu (não tão, é preciso

dizer) antigo domínio. Ao fazer esta escolha, ao equiparar Capetianos e os D’Este, Maquiavel

reduz a riqueza de detalhes dos sistemas de poder considerados legitimados na Idade Média – o

que resta é a antiguidade do domínio como parâmetro.

A escolha do exemplo dos duques de Ferrara, notoriamente vulneráveis à vicissitude da

política internacional, como coloca Lefort, e meros usurpadores bem-sucedidos por suficientes

gerações, como coloca Pocock, indica uma nova perspectiva em relação a como entender os

principados hereditários e seus príncipes. Se não inovam, nem são aconselhados a inovar, ao

mesmo tempo não podem fazer muito para que inovações e condições extraordinárias ocorram

fora de sua zona de controle. É bem verdade que, como atesta Maquiavel, a hereditariedade do

príncipe o permite de reconquistar seu domínio a qualquer revés do ocupante e, como nos mostra

seu exemplo, o ducado de Ferrara resistiu aos ataques dos venezianos em 1484 e aos do papa Júlio

em 1510 por ser antigo em seu domínio. No entanto, a hereditariedade não pode fazer nada para

suprimir a iniciativa de ocupar dos conquistadores e a antiguidade da linhagem do ducado de

Ferrara os fez resistir aos ataques de forças estrangeiras, mas nada pôde fazer para suprimir estas

iniciativas ofensivas.

No terceiro capítulo, quando é propriamente introduzida a perspectiva dos inovadores, as

limitações da segurança do príncipe hereditário podem ainda ser observadas. Aprendemos que é

“muito natural e ordinário o desejo de conquistar” e que, “quando os homens que podem o fazem,

295 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.159

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sempre são louvados, e não reprovados”, havendo somente erro e reprovação “quando não podem

e querem realizá-lo”296. Assim, por mais estável que seja a posição de um príncipe que continua

uma linhagem de governantes, ele nada pode fazer, a não ser resistir, contra as iniciativas de

conquista estrangeira. O exemplo das ocupações de Luís XII da França em Milão implicitamente

alerta os príncipes hereditários para os limites de sua segurança. Ludovico Sforza pôde retomar

sua cidade, mas teve pouca influência sobre a iniciativa ofensiva francesa, com fôlego suficiente

para duas empresas. Também aprendemos sobre a “dificuldade natural” de “os homens mudarem

de bom grado de senhor, acreditando, com isso, que irão melhorar”297. Esta afirmação poderia

parecer contraditória com o que foi afirmado no capítulo anterior. Afinal, por ter “menos razões e

menos necessidade de ofender”, não “convém que” o príncipe natural “seja mais amado”? Não “é

razoável que seja naturalmente benquisto pelos seus”298?

No entanto, que tenha menos razões e necessidade não implica que nunca ofenda; que seja

mais amado e benquisto não significa que seja hegemonicamente aceito. A obediência ordinária

não elimina os desejos extraordinários de mudança. Assim, por mais que “mais tarde percebam o

engano, pela própria experiência, vendo que pioram”299, a crença na melhora incita os habitantes

a dar apoio aos conquistadores para penetrar em uma província. Esta dificuldade natural, portanto,

não se impõe somente ao conquistador, que posteriormente se vê obrigado a frustrar seus aliados,

mas também é sentida pelos príncipes hereditários, que, se têm “menos dificuldades para

manter”300 seus principados, todavia, ainda podem enfrentar alguma dificuldade.

2.2. A inovação da conquista

2.2.1. Conquista e costume

Maquiavel, no início do terceiro capítulo de O Príncipe, escreve que “é no principado

novo que aparecem as dificuldades”301.Grande parte das dificuldades impostas aos príncipes na

manutenção de seus principados se dão em virtude da relação que ele estabelece com o costume

ou a ordem vigente em seu domínio. Pela necessidade que o príncipe tem de alterar estes costumes,

que tem de inovar. Assim, para pensar os meios para a superação destas dificuldades, Maquiavel

terá de considerar como se dá a relação entre o príncipe e seus súditos, bem como de que forma o

príncipe deve inovar mantendo-se seguro. O primeiro tipo de inovação a ser analisada é a dos

296 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, pp.16-17 297 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 9 298 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo II, pp. 7-8 299 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 9 300 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo II, p. 7 301 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 9. Nosso itálico.

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conquistadores. Em sentido mais específico, daqueles príncipes que já têm um poder estável ou

são hereditários em um principado e expandem seus territórios, conquistando novos domínios. O

conquistador inova no sentido de que introduz o seu governo, suas ordenações e leis (já antigos

em seu stato hereditário) em um novo território (sua conquista, onde os súditos eram acostumados

a outro governo).

Maquiavel descreve uma situação de delicadas condições em que se encontra o príncipe

conquistador. Para conquistar deve contar com o apoio de parte dos habitantes do território que

pretende conquistar. Entretanto, apesar de a esperança em uma melhora inicialmente traga apoio

ao príncipe conquistador, este não pode satisfazê-la. Isto porque a conquista acarreta sempre

injúrias contra os conquistados. O príncipe conquistador necessita sempre ofender seus novos

súditos. Estas ofensas são relativas à guerra, uma vez que a conquista de um novo território

pressupõe investidas militares, o que perturba a paz e segurança dos súditos. Entretanto, elas são

também relativas à destituição da ordem e de um modo de vida compartilhado e reconhecido como

bom. Ao conquistar um domínio, o conquistador tem de introduzir suas ordenações no lugar das

antigas. Uma vez que estas antigas ordenações estabeleciam a norma, as formas costumeiras de

vida política, a introdução de novas ordenações sofre resistências para ser aplicada, é recebida

como injúrias e ofensas. Assim, aqueles que apoiaram inicialmente o conquistador se veem

frustrados em suas expectativas, pois seus parâmetros de boa vida eram baseados nas ordenações

tradicionais e a interrupção da normalidade inerentes à conquista não satisfaz estes parâmetros,

mas distancia-se deles. Como resultado, o príncipe se vê cercado por inimigos em novo território.

Por um lado, tem como inimigos aqueles que se beneficiavam das antigas ordenações. Por outro,

não pode tomar como amigos aqueles que inicialmente o ajudaram, pois estes indispõem-se com

o novo governante ao se verem frustrados em suas expectativas.

O exemplo da Luís XII no território italiano é central no terceiro capítulo. Ele é

primeiramente evocado para corroborar a extrema dificuldade encontrada pelos conquistadores em

oposição aos príncipes hereditários atestada por Maquiavel. Na medida em que se viu “enganado

em sua opinião em relação aos benefícios futuros que havia imaginado” e não podendo “suportar

os aborrecimentos provocados pelo novo príncipe”, o mesmo povo de Milão que abriu as portas a

Luís XII, auxiliou na retomada do poder por Ludovico302. A situação do príncipe hereditário e do

príncipe conquistador podem ser ditas inversas, Ludovico Sforza e Luís XII atestam esta oposição.

Enquanto ao primeiro são menores as razões para ofender, o segundo necessita ofender. Em função

disso, enquanto o primeiro é amado por seus súditos e amigos, o segundo está cercado por

inimigos. O que baliza esta distinção é a maneira como está disposto o príncipe em relação aos

302 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 10

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costumes e hábitos de seus governados. Na medida em que os principados são acostumados aos

seus governantes, estes encontram menores dificuldades para manter sua posição de governo, e as

dificuldades aumentam na medida em que se distanciam ou conflitam costume e governante. A

dificuldade da inovação é, portanto, neste primeiro momento, atribuída à resistência dos costumes

estabelecidos.

Tendo esta concepção como parâmetro, Maquiavel pode explorar as dificuldades impostas

pela conquista em variados aspectos e gradações. No terceiro capítulo, aprendemos que as

dificuldades do conquistador não se esgotam no momento da conquista, nas ofensas e frustrações

primeiramente causadas pelos conquistadores. Depois de conquistado, o território deve ser

devidamente anexado, deve integrar-se “ao principado antigo, formando um único corpo”303. Caso

contrário, nada deterá a efemeridade de “rapidamente” conquistar e “rapidamente” perder. É isso

que nos mostra o exemplo de Luis XII. A mera ocupação vitoriosa não bastava. Era ainda preciso

suprimir as rebeliões, punir os culpados por elas, denunciar suspeitos e reforçar os pontos fracos

da dominação do conquistador304. Era preciso estabelecer-se, assegurar-se da posição de governo.

Foi preciso uma segunda ocupação para que Luís XII tivesse ocasião para tanto (e mesmo com ela,

ainda foi derrotado).

As “causas universais da primeira perda” de Luís XII, discorre Maquiavel, foram

comentadas no início do terceiro capítulo e remontam às ofensas e frustrações aderentes a toda

conquista 305 . Uma vez superada esta primeira dificuldade, entretanto, há uma série de

particularidades e novas dificuldades a serem observadas e superadas. Uma vez conquistados

novos territórios, as dificuldades para assegurar-se de sua manutenção variam de acordo com

diferentes condições e contextos. Esta variação e as razões para tanto não escapam ao exame de

Maquiavel. Ele começa por estabelecer a seguinte distinção: domínios anexados se localizam na

mesma província e vivem com a mesma língua, com costumes e ordenações semelhantes aos do

príncipe conquistador, ou não. Segundo o autor, pode-se identificar onde se encontram maiores ou

menores dificuldades para a manutenção das conquistas partindo da consideração desta distinção.

No primeiro caso, será fácil a manutenção dos territórios conquistados se comparada ao segundo

caso306.

Reflitamos sobre o caráter destes elementos destacados pelo autor: território, língua,

costumes e ordenações. Todos eles indicam práticas consolidadas por grupos de pessoas pela

repetição e transmissão entre gerações ao longo do tempo. O estabelecimento de um grupo humano

em determinada região e sua permanência no local por gerações permitem delimitar para este grupo

303 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 11 304 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 10 305 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 10 306 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 10

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um território, uma extensão de terra que estes homens entendem como sua, onde suas leis são

aplicáveis e seu modo de vida presente (sua província). A língua e as produções intelectuais

formam-se e consolidam-se ao longo do tempo de maneiras distintas em diferentes agrupamentos

humanos em diferentes condições e momentos. Igualmente, em diferentes congregações humanas

estabelecem-se ao longo do tempo diferentes formas de vida, com as quais os homens se

acostumam e a partir das quais eles determinam as leis e as relações políticas que lhes são mais

apropriadas. O que se preserva, portanto, como fonte de dificuldades é a relação estabelecida entre

o príncipe e o costume vigente em seu território.

Destarte, o conquistador facilmente mantém sua posição de governo quando seus costumes

são conformes aos do conquistado. Apesar de não poder, como podia o príncipe hereditário,

esquivar-se da ofensa (uma vez que é necessário ofender para a conquista), o conquistador de

territórios cujos costumes são similares aos seus não deve encontrar tão grande resistência de seus

novos súditos. Isto porque a ordem introduzida pelo conquistador, suas práticas ordinárias, não

representa uma grande modificação da ordem anteriormente vigente no território. Por facilmente

poder evitar conflitos culturais e a necessidade da alteração da ordem, o príncipe conquistador

nestas condições não encontra dificuldades em manter-se. Já ao conquistar um membro em outra

província, cujos costume, língua e leis são diversos, o conquistador se encontra em posição de

estrangeiro, ele é uma figura estranha, negativa, em seu novo domínio. Suas formas costumeiras

de proceder e as ordenações que lhes são habituais não são organicamente adaptáveis à conquista.

É-lhe mais dificultosa a permanência, pois lhe será imposta com mais força a resistência dos modos

habituais de vida do principado conquistado.

Como observamos, as condições da conquista são tais que o conquistador está cercado por

inimigos e seus aliados não podem ser satisfeitos em seus anseios, pois a inovação inerente à

conquista é sempre ofensiva. Nestas condições, são muitas as adversidades que podem privar o

príncipe de sua posição de governo. E elas são maiores na medida em que é maior a necessidade

de inovar. Isto porque a inovação coloca o príncipe em uma posição que chamamos aqui de posição

de exterioridade. A posição de inimigo do conquistador em virtude de suas ofensas lhe confere

posição de exterioridade. Por insatisfazer seus aliados e ser odiado por aqueles que ofendeu ao

conquistar o principado, o conquistador se vê cercado por inimigos. Por outro lado, a posição de

estrangeiro e rejeitado onde se encontra, na medida em que seu governo sofre resistência dos

modos de vida costumeiros no território em que passa a governar. Tal condição acarreta grandes

dificuldades para a promoção do poder do conquistador. Assim, para inovar com segurança, o

conquistador deve fazê-lo de modo a dar uma resposta à sua condição de exterioridade.

Portanto, para o príncipe em novo território, agir em favor de seu stato parece ser em grande

medida agir a respeito de sua posição de exterioridade em relação ao seu novo domínio. Quando

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analisamos o exame das dificuldades enfrentadas e dos meios escolhidos pelos conquistadores para

suplantá-las, podemos observar, em um primeiro momento, o que poderíamos chamar aqui de uma

política conciliatória. Avaliando os procedimentos dos conquistadores e considerando o conflito

estabelecido entre ele e seu domínio, Maquiavel propõem meios que amenizem e modifiquem a

condição de exterioridade do príncipe, buscando reconciliá-lo com os hábitos de seu novo

território. A capacidade do príncipe conquistador é a de contornar os conflitos estabelecidos entre

ele e os costumes de seu principado, saindo da posição de exterioridade em que a inovação o

colocou. Maquiavel afirma que “por mais que alguém seja fortíssimo graças a seus exércitos,

sempre precisará do apoio dos habitantes para penetrar numa província”307. Com isso, ele adverte

para um caráter importante de uma conquista segura: ela deve mais que conquistar pela força,

deve entrar na província pelo apoio dos habitantes. Uma atividade mais complexa e sútil que a

mera guerra está sendo aconselhada por Maquiavel: a de estabelecer relações e um posicionamento

seguro no território conquistado. E quanto maior é a inovação do conquistador, mais ele precisará

desta capacidade.

Em algumas circunstâncias, o príncipe pode evitar sua posição de exterioridade, evitando

inovar. Isto é possível na conquista de principados cujos costumes sejam similares ao do

conquistador308. Nestes casos, Maquiavel recomenda que o mínimo necessário de mudança seja

instaurada, a saber, somente aquelas que estabelecem o príncipe novo como governante e impedem

o antigo príncipe de voltar ao poder (extinguir a linhagem dos antigos governantes). Na medida

em que as formas de vida do território conquistado são semelhantes à do conquistador, o príncipe

pode manter as antigas condições, evitando inovar. Com isso, sem necessidade de conflitos, o

príncipe pode transferir para si a autoridade do antigo governante e se manter em segurança entre

seus novos súditos. Ao príncipe é recomendado, em certo sentido, uma minimização da ação de

inovar. É recomendado que se inove, que se modifique as condições dadas, o mínimo possível.

No entanto, em outras circunstâncias, o conquistador não pode evitar as turbulências

causadas pelas inovações. Nestes casos, ele não pode simplesmente amenizar a novidade

introduzida, sua ação não pode ser meramente conciliatória. É o caso dos príncipes que conquistam

territórios cujos hábitos e costumes são diferentes do seu.309 Nestes casos, o príncipe, sendo

oriundo de outra cultura, de outro modo de vida, já se apresenta aos governados antes de tudo

como um estrangeiro. Estrangeiro e inimigo, na medida em que não só ofende com a guerra

necessária às conquistas, mas também com a ameaça aos modos de vidas habituais e amados no

território que conquista. Neste caso, uma minimização da ação, reduzindo e evitando a inovação,

307 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 9 308 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 10-11 309 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 11

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deixando as condições como estão, não será suficiente. O príncipe terá de agir, de modificar as

condições dadas, a fim tanto de implantar as inovações necessárias para a conquista quanto para

se reconciliar com seus governados e sair de uma posição de exterioridade.

Dessa forma, Maquiavel aconselha ao conquistador algumas medidas310, que cumprem a

função de integrar o príncipe ao seu território conquistado, garantindo com isso a segurança e a

autoridade ameaçadas pelas inovações. Estas medidas são as seguintes: ir habitar sua conquista;

instalar colônias nos territórios conquistados; fazer-se árbitro de todas as coisas no domínio

conquistado. Se nos detemos na análise destas ações, vemos que elas expressam uma capacidade

de modificar a ordem estabelecida em favor do conquistador, em favor de sua segurança e

autoridade, e de eliminar ou equilibrar a resistência voltada contra ele. Em um primeiro momento,

o autor recomenda que o conquistador vá residir no local de sua conquista. A razão para tanto é

que quando se está presente, o príncipe pode ver nascer as desordens oriundas dos conflitos e pode

remediá-las rapidamente. Além disso, com isto, os súditos podem recorrer de perto ao príncipe,

tendo por isso a chance de vivenciar a autoridade do novo governante com mais força. É importante

que o príncipe se faça presente, que governe e seja obedecido, seja por amor, seja por temor. Com

isso, o príncipe pode combater ou impor-se contra a resistência dos conquistados, saindo da

posição de exterioridade, preenchendo o vácuo de poder deixado pela conquista e provendo seus

súditos de uma experiência de governo com a qual podem se acostumar.

Caso o príncipe não possa residir o local de sua ocupação, Maquiavel recomenda mandar

colônias para lá. A intenção aqui é muito semelhante. As colônias atuam como vínculos do stato

conquistador. Novamente, o objetivo é fazer presente a posição do príncipe no território

conquistado. Sendo fiéis ao príncipe conquistador, as colônias têm um importante papel de

introdução das novas ordenações no novo território. Elas auxiliam na superação da condição de

exterioridade do príncipe. Ao introduzir ao domínio conquistado homens que se relacionam por

práticas habituais ao do conquistador, está se introduzido na experiência dos súditos

comportamentos que auxiliam na obediência ao comando do conquistador. O conquistador precisa

ser obedecido para exercer sua autoridade. A obediência pode ser garantida por meios violentos,

pela manutenção da força militar. Entretanto, por meio de força militar a obediência é obtida a

custo de danos a todo stato, gerando ressentimento geral contra o príncipe. As colônias são uma

via menos ofensiva para a imposição de obediência, permitindo uma maior aceitação do príncipe

no território. As colônias, portanto, reparam a autoridade do príncipe e reduzem o número de

inimigos cultivados por ele, trabalhando em favor de sua segurança.

310 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, pp. 11-13

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O conquistador deve, por fim, também agir no sentido de "ficar como árbitro de todas as

coisas [na] província" conquistada311 - isto é, de ser nela a única autoridade efetiva. Para tanto, o

príncipe deve ser capaz de defender os menos poderosos, que se tornarão obrigados a ele. Deve

enfraquecer os poderosos, para debilitá-los em sua autoridade. Deve evitar que estrangeiros

poderosos entrem no território da conquista. Para tanto, o príncipe necessitará de forças militares

- a fim de defender a si mesmo e a amigos e atacar inimigos. Entretanto, essa força militar tem de

estar associada a um bom posicionamento político, uma escolha ajustada de quem se deve

defender, quem se deve enfraquecer e quem se deve atacar. Assim, o príncipe deve saber

reconhecer e se utilizar das relações políticas já estabelecidas para posicionar-se politicamente.

Maquiavel aponta para procedimentos que permitam ao conquistador posicionar-se de tal forma

em seu estado de príncipe que as inovações necessárias para que alcance este estado não sejam

também as que o levam para uma condição de isolamento. O príncipe deve inovar para chegar ao

seu stato, mas também deve se precaver dos inimigos e poder efetivar a sua autoridade. A

eficiência dos procedimentos apresentados por Maquiavel para tais fins no terceiro capítulo é

verificada e justificada pelo autor a partir de dois exemplos centrais, que devemos analisar a seguir.

Um são as investidas do rei francês Luís XII ao território italiano durante as Guerras da

Renascença, outro é o exemplo das conquistas dos antigos romanos na província da Grécia.

2.2.2. A prudência dos conquistadores Examinando as investidas francesas na Itália, Maquiavel nos apresenta uma reflexão por

ele exposta ao cardeal de Ruão sobre os franceses que sumariza as razões pelas quais estes

perderam suas conquistas. Ele nos conta: “dizendo-me o cardeal de Ruão que os italianos não

entendiam de guerra, respondi-lhe que os franceses não entendiam de statp, porque, se

entendessem, não teriam permitido que a Igreja alcançasse tanta grandeza” 312 .Enquanto

conquistadores do território italiano, o erro dos franceses e a causa de sua ruína foi engrandecer a

igreja. Este erro não denota uma inabilidade militar, como se esperaria de um mau conquistador

(aquele que não tem os meios para a conquista), na medida em que a conquista pressuporia

investidas militares. Em verdade, os franceses entendiam de guerra; são frequentemente notados

por isso. Como nos descreve Skinner,

Quando CarIos VIII invadiu a península, naquele ano de 1494, o rei da França submeteu Florença e Roma, avançou a ponta de espada até Nápoles e autorizou seu enorme exército

311 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 13 312 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 18

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106 a devastar os campos. Seu sucessor, Luís XII, efetuou mais três invasões, atacando Milão seguidas vezes e fazendo a guerra tornar-se endêmica por toda a Itália.313

Foi contando com o excelente e furioso apoio militar francês que se engrandeceu a igreja no

período das invasões. O erro dos franceses é de natureza política; é por falta de si intendere dello

stato, de posicionamento político, que fracassaram.

A difícil condição exterior e inimiga em que se encontra o príncipe conquistador em novo

território demanda dele não só força militar, mas também a capacidade de conquistar o apoio dos

habitantes, ou parte deles. Maquiavel descreve que o rei Luís foi trazido à Itália pelos venezianos,

que queriam obter parte da Lombardia com o apoio dos franceses. As condições aceitas pela França

para adentrarem o território se mostraram frutíferas, pois, o rei logo se tornou reputado por sua

força militar e todos buscaram tornar-se amigos seus. Dessa forma, os venezianos fizeram o rei da

França senhor de dois terços da Itália, uma vez que todos queriam a ele se aliar.314 Depois de

estabelecido em território italiano, entretanto, o rei não soube assegurar-se de sua posição de

comando, pois suas ações alteraram esta posição para uma situação de isolamento e impotência:

Considere-se agora com quão pouca dificuldade poderia o rei ter mantido sua reputação na Itália se tivesse [...] assegurado e protegido todos os seus amigos que, por serem numerosos, fracos e temerosos, uns da Igreja e outros dos venezianos, necessitavam sempre estar a seu lado. Por meio deles poderia facilmente resguardar-se de quem permanecia grande. Mal chegando a Milão, porém, o rei fez o contrário, ajudando o papa Alexandre a ocupar a Romanha. Não se deu conta de que, com essa deliberação, enfraquecia a si próprio, privando-se dos amigos e daqueles que se haviam lançado a seus braços, e tornava grande a Igreja, acrescentando à força espiritual, que tanta autoridade lhe dá, tão grande força temporal. Cometido o primeiro erro, foi constrangido a prosseguir, tanto que, para pôr fim à ambição de Alexandre e para que este não se tornasse senhor da Toscana, o rei foi obrigado a vir à Itália. Não lhe bastou ter tornado grande a Igreja e ter-se privado de seus próprios amigos. Por querer o reino de Nápoles, dividiu-o com o rei da Espanha e, de árbitro da Itália que era, arrumou um companheiro, para que os ambiciosos daquela província, descontentes com ele, tivessem a quem recorrer; e, em vez de deixar um rei que lhe fosse tributário, tirou-o dali para pôr em seu lugar outro capaz de expulsá-lo.315

O apoio dado à igreja atestava uma incapacidade política dos franceses, seu pouco

entendimento das coisas do stato. Aqui vemos este apoio como elemento central na narrativa da

queda do poder francês na Itália. Este foi o erro primordial dos franceses e dele derivam as

complexas e perigosas necessidades enfrentadas pelos franceses e as causas de sua derrota. Em

razão das ofensas necessárias à conquista, um príncipe em novo território tende a insatisfazer

aqueles que inicialmente o apoiavam, pois não pode garantir as benesses que estes apoiadores

supunham receber; ademais, são inimigos aqueles que se beneficiavam do antigo estado de coisas.

313 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1999, p. 134 314 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, pp.15-16 315 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.16

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O poderio militar dos franceses e suas consecutivas vitórias amenizaram a condição de isolamento

do rei francês. A capacidade militar é sem sombra de dúvida um elemento político de primeira

ordem neste contexto, pois ela podia, não só frear os inimigos, mas também satisfazer os nativos

avessos ao statu quo, ao rebaixar os venezianos e a igreja. No lugar, entretanto, de satisfazer os

anseios de seus amigos, que poderiam conceder-lhe autoridade e segurança, na medida em que

eram numerosos, fracos e temerosos, necessitando sempre ao lado do conquistador, ofendeu-os ao

aumentar a grandeza de um de seus mais temerosos inimigos. O rei Luís tinha a possibilidade de

contornar o impasse em que se encontra em geral os príncipes novos, pois podia satisfazer uma

parte dos conquistados. Assim o fazendo, poderia contar com eles para sua proteção e ao mesmo

tempo exercer sobre eles autoridade, pois estavam divididos e fracos.

Em vez disso, em consequência de sua própria deliberação, tornou o impasse mais

perigoso. A deliberação do governante é central, ela revela a capacidade política do príncipe. A

deliberação é a escolha dos procedimentos, dos meios pelos quais se manterá o principado. As

deliberações de Luís XII foram tais, que aqueles que poderia contar como amigos tornaram-se

inimigos e a igreja não poderia ser contada como amiga, pois seu projeto (e sua real possibilidade)

de força temporal está em conflito com as intenções expansionistas dos franceses. Tanto é assim

que o rei posteriormente teve de encontrar maneiras de pôr fim à ambição de Alexandre, que queria

expandir sua autoridade também à Toscana. Contribuir com a grandeza da igreja enfraquece os

franceses, pois os dois disputam o mesmo objeto de autoridade, os dois desejam exercer comando

sobre o mesmo território.

É bem verdade que os franceses, contando com sua força militar, ainda podiam deter a

igreja na Itália, pois, por mais que estivesse em situação de desamparo, encontrava uma Itália

dividida. Os oprimidos pela igreja não tinham força suficiente para, por si mesmos e ao mesmo

tempo, expulsarem os franceses e deter o papa; precisavam, para tornarem-se inimigos potentes,

submeterem-se a um senhor estrangeiro mais forte. Mas, novamente, o que se mostrou foi que o

poderio militar só pode resultar em autodestruição se usado sem sabedoria política. Foi exatamente

este estrangeiro mais forte que Luís XII trouxe à teia de relações deste período das Guerras da

Renascença, ao estabelecer uma aliança com o trono espanhol para a conquista de Nápoles. Assim

como com a igreja, uma aliança com os espanhóis estaria fadada ao fracasso, pois seus interesses

são conflitantes com os dos franceses e sua força comparável a destes. Os espanhóis são, em

verdade, potencialmente mais poderosos, pois, se os inimigos da França na Itália não podiam se

aliar à igreja, aos espanhóis, eles podiam; e aí estará formada uma conjuntura de forças

insuportáveis para a permanência do império francês.

Como nos mostra Newton Bignotto, Maquiavel está interessado em revelar que "o mundo

da violência, que caracteriza a guerra, é na verdade um mundo marcado por complexas relações

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políticas" 316 . A conquista demanda a guerra; esta não só mantém aqueles que já nasceram

príncipes, como também permite que os homens ascendam a esse grau317. Entretanto, se o poderio

militar não for utilizado pela deliberação de uma boa prática política, de boas decisões do stato, a

guerra se torna apenas um processo destrutivo e inútil ou mesmo autodestrutivo. Não se tratava,

portanto, de evitar a guerra, pois um conflito com o papa ou com a Espanha seria inevitável318,

mas de decidir quando e como a guerra corrobora para conquistar o apoio necessário para

estabelecer sua segurança e autoridade.

Examinando a correspondência entre Maquiavel e a Signoria de Florença durante a missão

diplomática junto da corte de Luís XII em Lion, ocasião na qual Maquiavel provavelmente teria

tido o embate mencionado com o cardeal de Ruão, Bignotto traduz a ideia de deliberações do

governante nos termos do juízo político: “os franceses perdiam de vista a importância do juízo

político para a boa condução da guerra. Encantados com a superioridade de seus exércitos, [os

franceses] transformavam em fraqueza e em erro o que poderia ser o fator de seu sucesso em sua

política de conquista” 319. A capacidade política se revela, como coloca Bignotto em Maquiavel

Republicano, quando o agente sai da posição de exterioridade e inimigo que visa seus adversários

como puros objetos, e se vê posicionado em um contexto, em uma nova ordem estabelecida.320 É

essencial que o príncipe conquistador possa entender sua posição no contexto estabelecido para

que possa transformá-lo em seu favor. O conquistador deve passar de invasor para criador e, não

entendendo esta posição, que suas ações alteram o contexto estabelecido, ele cria para si mesmo

uma armadilha. O rei francês, por suas deliberações, por seu procedimento político, por sua escolha

de amigos e inimigos, daqueles com quem devia fazer a guerra e daqueles com quem não devia

fazê-la, não saiu de sua posição de exterioridade, não se estabeleceu em sua posição de árbitro da

Itália, não se precaveu das consequências desastrosas de suas escolhas. Em vez disso, deixou que

outros assumissem a posição de governo, ajudando-os a aumentarem sua grandeza no território

italiano.

Ao ponderar sobre a manutenção de novas conquistas pelo exemplo do fracasso dos

franceses, Maquiavel apresenta uma profunda reflexão sobre o espaço da guerra e da força na

política. A capacidade política do conquistador não se esgota na guerra e na força, apesar de não

prescindir delas. É preciso que as deliberações do conquistador sejam ajustadas, que suas alianças

316 BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo, SP: Loyola, 1991, p. 126 317 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XIV, p. 71 318 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 17 319 BIGNOTTO, NEWTON. “O aprendizado da força”. In: Helton Adverse. (Org.). Reflexões sobre Maquiavel. 500 anos de O Príncipe. 1ed.São Paulo: Editora Loyola, 2015, p. 100 320 BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo, SP: Loyola, 1991. p.126

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sejam proveitosas e que sua capacidade militar seja direcionada a favor do conquistador. A

seguinte citação de Newton Bignotto sumariza com precisão a reflexão de Maquiavel:

Maquiavel combate os jovens de seu tempo, que viam na força o único elemento motriz da política, mostrando que nem mesmo uma conquista levada a cabo pela força das armas se esgota no momento da invasão. Ao contrário, os problemas militares são o sinal inequívoco dos problemas políticos, que o conquistador terá de enfrentar se quiser garantir a durabilidade das novas instituições.321

Em contraposição aos franceses, Maquiavel mostra que, politicamente, os romanos eram

excelentes conquistadores322. Em oposição à França, os romanos instalavam colônias em suas

conquistas; apoiavam os menos poderosos sem lhes aumentar o poder; rebaixaram os poderosos

que podiam competir a autoridade sobre o domínio; e não deixavam que forasteiros fortes

alcançassem reputação323. Ao analisarmos como Maquiavel vê os procedimentos dos romanos em

relação às conquistas, podemos inferir algumas características do que o autor entende como uma

boa política de conquista, realizada com deliberações - isto é, decisões de procedimentos políticos

- acertadas.

O exemplo aludido por Maquiavel é o das conquistas romanas no território dos gregos. Ao

conquistarem este domínio, os romanos se aliaram aos etólios contra a dominação dos macedônios

no território. Tendo rebaixado os macedônios junto aos romanos, os etólios buscaram aumentar

sua autoridade e a extensão de seu território, indo contra os interesses dos romanos e aliando-se

com uma força estrangeira, a de Antíoco. Entretanto, os romanos souberam se precaver da ambição

dos etólios, aos quais nunca foi concedida força suficiente, e das forças de Antíoco. Conquistaram

o apoio dos aqueus e dos rebaixados macedônios. Assim, as forças de Antíoco foram expulsas do

território, os macedênios rebaixados, os etólios e aqueus mantidos com algum poder, mas sem a

capacidade de confrontar os romanos. Ao entender e reconhecer as condições políticas

estabelecidas (o que Newton Bignotto chama de "disposições políticas internas”324) os romanos

souberam identificar naquela ordem estabelecida a fonte da resistência ao seu poder. Com isso,

puderam tomar decisões que os estabeleceram bem nas relações já vigentes no território. Ao

321 BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo, SP: Loyola, 1991. p.127 322 Devemos notar que o exemplo das conquistas da antiga República Romana é peculiar. Bignotto afirma que “o terceiro capítulo, ao refazer o percurso de Luís XII, põe o problema das inovações no centro do pensamento maquiaveliano. Nesse sentido, ele expande os limites do texto, que parecia destinado apenas a se ocupar de questões referentes aos principados. O próprio Maquiavel recorre a exemplos da república romana para ilustrar seu pensamento sobre a conquista, sugerindo que nesse terreno nenhuma fronteira separa as repúblicas dos principados. [...] Se o objeto privilegiado d’O Príncipe é o príncipe conquistador, isso não quer dizer que ele não esteja submetido às mesmas exigências que as repúblicas, e que o conhecimento que venhamos a ter de suas ações possa ser transformado em conhecimento sobre a política em geral. Estudando a política através do caso particular dos conquistadores solitários, Maquiavel abre as portas para um estudo mais universal das condições de criação e destruição de toas as formas políticas. [...] Considerando a questão dessa maneira, transformamos o ator político em um ente abstrato, pois ele pode encarnar-se tanto em uma república quanto em um principado” [BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo, SP: Loyola, 1991. p.125] 323 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.13-14 324 BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo, SP: Loyola, 1991. p. 126

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analisar estes meios escolhidos pelos romanos, as deliberações políticas que tomaram, Maquiavel

nos diz que os romanos fizeram aquilo que todos príncipes sábios devem fazer: precaver-se não somente contra as desordens presentes, como também contra as futuras, e evitá-las com toda a indústria porque, prevendo-as quando estão distantes, podem facilmente remediá-las, mas, esperando que se avizinhem, será tarde demais para o medicamento, pois a doença já se terá tornado incurável. Acontece, nesse caso, o mesmo que dizem os médicos dos tísicos: no princípio o mal é fácil de curar e difícil de diagnosticar, mas, com o passar do tempo, não tendo sido nem diagnosticado nem medicado, torna-se fácil diagnosticá-lo e difícil curá-lo. Assim, acontece nas coisas de estado, já que, quando se conhecem com antecedência (o que só ocorre quando se é prudente), os males que nele surgem se curam facilmente; mas, quando, por não terem sido identificados, deixa-se que cresçam a ponto de todos passarem a conhecê-los, já não há remédio.325

Maquiavel utiliza a noção de prudência para caracterizar os bons procedimentos dos

romanos. A prudência do conquistador denota a capacidade de prever problemas futuros além de

reconhecer os presentes, de precaver-se deles e evitá-los. Esta capacidade só é possível quando se

sabe identificar as possíveis fontes de resistência que o desenvolvimento das condições políticas

estabelecidas pode causar e como agir apropriadamente quanto a elas. Se as condições

estabelecidas apresentam alguma fonte de resistência ao príncipe, estas condições não podem se

desenvolver, mas devem ser rapidamente identificadas pelo príncipe para que sejam rapidamente

adaptadas pelo conquistador. Maquiavel afirma que os romanos não eram afeitos à recomendação

de se "gozar os benefícios do tempo, mas, ao contrário, o benefício de sua virtù e prudência”. Isto,

porque o "tempo", isso é, o livre desenvolvimento das condições estabelecidas, "pode trazer

consigo o bem como o mal, e o mal como bem"326. O príncipe deve ser capaz de identificar que

males ou benefícios pode trazer o tempo contra ou a favor de sua posição e agir sobre isso,

preservando o que lhe fortalece e remediando o que lhe enfraquece. O príncipe necessita do apoio

de seus governados, portanto deve buscar algo de produtivo nas relações políticas já dadas.

Necessita, por outro lado, romper a resistência destas relações em relação a ele, saindo de sua

posição de exterioridade, e, portanto, deve saber adaptar as condições dadas a seu favor.

Para descrever o comportamento prudente dos romanos, Maquiavel se utiliza de uma

comparação. O autor equipara a tarefa cumprida pelo conquistador àquela cumprida pelos médicos

e associa as condições da conquista à condição de um corpo enfermo, um organismo vivo doente.

A relação entre conquistador e domínio conquistado é entendida nos termos da relação entre o

médico e o tísico. Sobre a tuberculose, os médicos recomendam um diagnóstico rápido. Isto,

porque a doença é facilmente curável quando identificada no começo de seu desenvolvimento e

dificilmente contornável quando já desenvolvida. Entretanto, o diagnóstico precoce da doença é

325 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 14 326 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 15

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difícil de ser feito, ele não é evidente aos olhos do leigo ou do mau médico. O conhecimento

preciso do funcionamento do organismo vivo e a capacidade de identificar sinais de anomalia são

fundamentais ao bom médico, que, com seu diagnóstico rápido, pode intervir com procedimentos

pouco invasivos ao corpo do paciente e com maior eficácia na cura da doença. O conquistador

deve proceder em relação a sua nova conquista como o bom médico em relação ao corpo enfermo.

Tendo a sagacidade e a sapiência de reconhecer e entender as condições dadas, as relações políticas

estabelecidas, podendo prever disto futuros problemas, o conquistador pode intervir pontualmente

e sem grandes danos na ordem de coisas, encontrando nesta ordem uma posição segura. Outra

imagem é utilizada além da do médico: a do sábio. A conquista, como nos indica a passagem

citada, é uma tarefa para os príncipes sábios. Maquiavel qualifica o bom conquistador como sábio.

O conquistador deve conhecer bem as condições dadas, ponderar sobre elas e sobre suas

consequências cuidadosamente. Os franceses falharam, Maquiavel conta ao cardeal de Ruão,

porque não entendiam dello stato. É preciso entender as condições dadas para poder agir nelas e a

partir delas. Esta parece ser a capacidade prudente exigida do conquistador.

2.2.3. A flexibilização da noção de prudência No entanto, precisamos examinar com cuidado essas comparações de Maquiavel, bem

como o sentido que o autor dá à noção de prudência, pois aqui há uma tensão e uma disputa. E

uma disputa de grande peso. Afinal, a prudência é uma noção central para a tradição do pensamento

político que precede Maquiavel. Por um lado, o universo do sábio, do médico, da prudência nos

indicaria uma capacidade do conquistador que pressupõe um objeto que seja inteligível,

compreensível. Afinal, os bons procedimentos do conquistador dependem de uma boa

compreensão das condições políticas de sua conquista, que devem, portanto, ser passíveis de ser

compreendidas pelo governante. O conquistador deve ser capaz de apreender as condições dadas

a fim de diagnosticá-las e medicá-las. É nesse sentido que Maquiavel afirma que o fato de os

franceses terem perdido seus domínios na Itália em função de seus erros "não é milagre algum,

mas coisa ordinária e razoável"327. O autor quer ressaltar com tal afirmação que as condições

políticas ordinárias, a ordem estabelecida em um território, podem ser compreendidas pois não

fogem à capacidade de compreensão e ação calculada do conquistador. Isto é, não fogem das

precauções de um comportamento prudente. Assim sendo, o conquistador deve inovar observando

e alterando a resistência dos hábitos e costumes estabelecidos, manejando sua posição de comando

e estabilidade. As condições dadas podem ser aproveitadas e direcionadas em favor do príncipe.

Neste sentido, ao sugerir que o governante deve ser portador de uma sabedoria política, que garanta

327 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.18. Nossos itálicos.

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sua harmonia com a ordem de coisas de seu governo, e, ao evocar a imagem do governante

prudente, Maquiavel parece alinhar suas reflexões com a tradição.

Entretanto, as cores com que Maquiavel pinta a prudência têm tonalidades muito

contrastantes com uma noção tradicional de prudência. Se é a imagem do médico que é evocada

por Maquiavel, não se trata do tratamento constante e da manutenção continuada da saúde do

corpo, mas do caso urgente do tísico. Se é a imagem do sábio, trata-se de uma sabedoria e prudência

bem distintas das tradicionalmente idealizadas na Idade Média ou das pregadas pelos “pseudo-

sábios de Florença”328, esperando sempre gozar dos benefícios do tempo. Outro contraste sensível

é o personagem político a quem a prudência é atribuída: o conquistador. Tradicionalmente,

prudente é aquele que governa guiado para o bem e legitimado pela tradição. A prudência do

príncipe hereditário era em geral a idealizada pelos teóricos. Maquiavel propõe um exercício de

pensamento e busca pensar sobre uma realidade da qual os teóricos haviam pouco pensado: é

possível pensar a prudência do conquistador? A prudência daqueles que não têm como fundamento

outro para suas iniciativas que o “desejo de conquistar”329? Para entendermos estes contrastes, é

interessante considerar e concatenar as reflexões de alguns comentadores, buscando delinear a

amplitude e as tonalidades dadas por Maquiavel à noção de prudência.

Primeiramente, é de interesse o estudo de Pocock em relação ao uso da noção de prudência

como atributo dos bons governantes na Idade Média. O historiador das ideias toma como objeto

de análise a obra De Laudibus Legum Anglie (Em Louvor das Leis da Inglaterra) de “Sir John

Fortescue (c.1390-1479), um jurista e tipo de amador de filosofia que nos ajuda a entender as ideias

de uma era ao simplifica-las”330. Explicando em que sentido Fortescue entende as sabedoria e

prudência das quais deveriam estar repletos os decretos de um rei, Pocock diz: A “prova” – não, é claro, uma demonstração – de um costume é sua antiguidade, e “prudência” pode ser definida como a habilidade de formular decretos que resistirão ao teste do tempo e adquirirão a autoridade e antiguidade já gozada pelos costumes. Mas a prudência é também a virtude exibida pelo indivíduo ao tomar suas decisões, pois, em última análise, ela não é nada menos que a habilidade de fazer uso de sua experiência e a de outros de forma que bons resultados sejam alcançados.331

Em um primeiro momento, a noção de prudência delineada aqui por Pocock a partir de Fortescue

poderia parecer também passível de ser dirigida aos conquistadores do terceiro capítulo de O

Príncipe. Ora, não é um dos problemas centrais da conquista, justamente a posição de

exteriorioridade do príncipe conquistador em virtude de seus súditos não estarem ainda

328 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 320 329 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.16 330 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.9 331 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.24

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acostumados a ele, sendo necessário que seus decretos resistam ao teste do tempo? E não seria,

portanto, habilidade primordial do conquistador a de deliberar de tal forma a conquistar autoridade

para que possa se contrapor à resistência do costume estabelecido, buscando autoridade? E, para

tanto, não precisaria o conquistador estar munido de conhecimento e experiência das condições

dadas a fim de alcançar bons resultados? No entanto, quando observamos com mais detalhes o que

fundamenta e como se idealiza a prática da prudência medieval de Fortescue segundo Pocock, a

imagem do conquistador prudente tal como desenhada em O Príncipe logo se perde:

Aquinas define [...] prudência como “razão reta quanto às coisas a serem feitas (agibilium)” [...] Ele continua citando Cícero ao mencionar “três outras partes da prudência, a saber, memória do passado, entendimento do presente e prevenção do futuro”, e conclui que estas “não são virtudes distintas da prudência”, mas “partes integrais ou componentes” [...] No costume, a experiência julgava o que fora provado bom e satisfatório; julgava também o que fora provado adaptado à natureza particular ou “genius” de um povo, e este julgamento tendia a ser auto-realizador, uma vez que o uso e o costume criavam esta “segunda natureza” e avaliavam-na [...] . No decreto, a experiência julgava o que mais experiência tendia a confirmar, mas deveria, em teoria, fazê-lo somente onde o costume não podia ter feito seu trabalho ainda. Quando, no curso dos eventos humanos, instáveis e flutuantes no tempo como eram, uma contingência surgia que não estava ainda integrada ao uso, os primeiros passos devem ser tomados em direção a realização desta integração. O decreto era baseado na experiência e esperava a confirmação de mais experiência; era um passo, então, tomado em um momento no qual uma nova emergência ocorrera um número de vezes e a experiência acumulara ao ponto no qual o processo de generalização no costume poderia começar. A experiência, na forma da prudência, ao realizar esta generalização, tem as faces de Janus; ela fazia a ponte sobre a lacuna entre inovação e memória, decreto e costume, presente, futuro e passado.332

O decreto prudente do governante medieval só tem espaço onde os costumes ainda não

definiram as boas práticas a serem tomadas, e mesmo restrito a este espaço ele só pode ser dito

prudente se confirma ou se aproxima daquilo que o costume já tenderia a confirmar. A prudência

consistia na habilidade de dar os primeiros passos para a adequação da instabilidade e

particularidade das contingências à generalização do costume. É ressaltada a capacidade de

integração, de ponte, do governante, que por seu decreto busca reproduzir e manter o costume

diante da particularidade. Esta descrição da prudência não poderia ser atribuída aos conquistadores

de Maquiavel – certamente, não aos romanos na Grécia, nem ao que supostamente deveriam fazer

os franceses na Itália, tal como examina no terceiro capítulo de O Príncipe.

A descrição do comportamento prudente medieval como entendida por Pocock, de

qualquer forma, é muito similar às recomendações de Maquiavel aos príncipes hereditários. A eles,

Maquiavel recomenda “não preterir as ordenações de seus antepassados e, depois, saber

contemporizar segundo os acontecimentos”. E, no entanto, Maquiavel não se refere à habilidade

332 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, pp. 24-25

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do príncipe hereditário como prudente ou o caracteriza como sábio, pelo contrário, ele nos diz,

trata-se de mera “capacidade ordinária” 333. Se consideramos também como Maquiavel aborda as

conquistas “da mesma província e língua”, “costumes e ordenações” do conquistador, vemos

também lá a recomendação de se manter “as antigas condições”334 e de se integrar o principado

conquistado ao antigo. E, no entanto, novamente, a prudência como habilidade não é citada; ao

contrário, novamente, o que é ressaltado é como “podem facilmente ajustar-se” as condições para

o príncipe, neste caso. É para avaliar os feitos dos romanos em território grego, “na conquista de

estados numa província de língua, costumes e ordenações diferentes”, quando “se encontram [...]

dificuldades” a serem superadas com “muita habilidade”335, que Maquiavel se utiliza do termo

pela primeira vez em O Príncipe. Neste caso, o costume e a ordem estabelecidos pesam contra o

príncipe, não a favor dele, e a prudência do conquistador não pode ser o mesmo comportamento

ordinário ou integrador dos que têm o costume ao seu lado, aquele comportamento

tradicionalmente chamado de prudente. Estamos diante de uma disputa, de uma ruptura, que se

revela no uso do termo prudência. Esta disputa não ocorre pela fundação de uma nova teoria

política, mas pelo teste e flexibilização de noções da teoria tradicional em vista de um caso

particular que as desafia. Assim, como mostra Lefort,

o caso da conquista é [...] privilegiado, pois ele torna de imediato sensível o problema para o qual o príncipe deve encontrar uma solução se quer se manter no Estado: trata-se para ele de resistir aos adversários que sua empresa suscitou, de se inscrever o mais rapidamente possível no sistema de forças que sua própria ação modificou e cujas perturbações tendem a se prolongar as suas custas. Assim, suas ações são determinadas pelo estado de guerra no qual se encontra ao mesmo tempo vis-à-vis com outros príncipes e vis-à-vis com seus súditos; e sua política só pode ser uma estratégia análoga àquela de um capitão que, tendo ocupado sobre o terreno a posição cobiçada, esforça-se em frustrar as iniciativas de inimigos decididos a repreendê-lo. 336

A prudência do conquistador ainda é a habilidade de fazer uso da experiência a fim de que

bons resultados sejam alcançados; de usar as circunstâncias dadas a favor da manutenção do poder

e, a partir delas, prever e precaver. No entanto, a execução desta habilidade muda completamente

quando se trata da conquista. Nestes casos, a imagem tradicional do sábio paciente esfumaça-se e

dá lugar à imagem do capitão astuto. A necessidade do pensamento estratégico e da celeridade da

ação, também características da noção clássica de prudência, eclipsam a tradicionalmente

sublinhada característica de basear-se na experiência esperando confirmação de mais experiência.

A prudência na conquista deve realizar um trabalho mais complexo: basear-se na experiência

esperando a transformação da experiência. Pocock nos explica que

333 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo II, p. 7 334 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 10 335 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.11, nossos itálicos. 336 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, pp. 352-353

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a segunda metade do capítulo III é a primeira tentativa n[a] análise estratégica do mundo deslegitimado dos que buscam poder [power-seekers], que [...] traz o pensamento de Maquiavel ao foco mais agudo; e é aqui que escutamos pela primeira vez a asserção de que a necessidade primária do comportamento estratégico é a ação. A alternativa à ação é adiamento e temporização, e, uma vez que o tempo se tornou domínio da pura contingência, é impossível temporizar, porque não pode haver nenhuma suposição segura sobre o que o tempo trará; ou ainda, a única suposição segura deve ser que, a não ser que se aja a respeito, ele trará mudanças desvantajosas. Alguém tem poder, e outros não têm; a única mudança que pode vir é que outros vão ganhar poder, fazendo perder poder o que antes era poderoso. Os romanos sabiam muito bem que a guerra não deve ser evitada, e sempre escolheram lutar contra seus inimigos agora do que depois.337

Seguindo o pensamento de Pocock, o foco mais agudo de Maquiavel não está no monarca

hereditário estabelecido em seu território e, portanto, no mundo de complexos esquemas de

legitimação; está, antes, no mundo deslegitimado dos que buscam mais poder (os power-seekers).

A primeira tentativa de análise deste mundo é o exame dos procedimentos do conquistador (o

Capítulo III). Esta análise só pode ser estratégica. Não faz sentido se perguntar quão autorizado

pelos costumes é o comportamento do príncipe, uma vez que estamos no mundo deslegitimado,

no domínio da pura contingência. O que se questiona é quão efetivo é este comportamento, o

quanto ele encontra nas condições dadas uma possibilidade para sua efetivação, bem como o

quanto é capaz de alterá-las a seu favor. Neste sentido, a análise e a própria ação do príncipe são

estratégicas, e, nos diz Pocock, a necessidade primária da estratégia é a ação. Ele opõe como

alternativa à ação a temporização e o adiamento. Adiar, deixar que as condições se desenvolvam

livremente, sem interferências, e temporizar, como recomenda Maquiavel no segundo capítulo, de

forma que as deliberações do príncipe adaptem os acidentes à ordem de coisas já estabelecida, são

procedimentos úteis somente para os governantes que não sofrem resistências do costume

estabelecido e que, portanto, não precisam demonstrar nenhuma capacidade especial, nenhuma

sabedoria excepcional. Prudentes, em O Príncipe, são os antigos romanos, que usaram sua

sabedoria política, o entendimento das condições dadas, a seu favor onde estas condições eram

muito desfavoráveis e dificultosas. A partir deles, Maquiavel pode pensar a prudência do

conquistador.

Neste sentido, devemos pensar a reflexão de Maquiavel quanto à noção de prudência não

como uma mudança radical do pensamento político, mas, como coloca Charbel, uma “redefinição

da prudência”. Segundo o comentador,

a prudência não deixa em absoluto de ser concebida como recto ratio agibilium; é precisamente a noção de “razão reta” que se transforma, distanciando-se da ideia de que modelos universais possam ser intuídos e realizados em ações particulares, e aproximando-

337 J.G.A. Pocock. The Machiavellian Moment: Florentine Political Thought and the Atlantic Republican Tradition, pp.165-166

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116 se de um entendimento mais pragmático calcado na valorização dos efeitos das ações dos agentes envolvidos e na antevisão das possibilidades em jogo no tabuleiro da política. 338

O comentador explica que as mudanças no conceito de prudência realizados por Maquiavel decorrem

de sua preocupação com o preceito retórico da verdade efetiva. Na medida em que esta verdade é

“provisória, circunscrita e retórica”339, suas afirmações só fazem completo sentido se consideradas a

partir das circunstâncias particulares que pretendem examinar. Assim, as modificações no conceito

de prudência são decorrentes da circunstância específica da conquista, que só pode ser efetivamente

aconselhada quando se flexibiliza esta noção.

Maquiavel, portanto, aborda a questão da inovação política utilizando-se do parâmetro

essencialmente retórico da verdade efetiva. Com isso, pode flexibilizar asserções políticas

tradicionais, que se concebem geralmente como razoáveis ou prudentes, às condições particulares da

conquista e do conquistador. Esta flexibilização tem uma função essencial, uma vez que é por ela que

Maquiavel pode mostrar que, diante das dificuldades e necessidades impostas pela inovação da

conquista, a ação política assume características particulares. Neste sentido, podemos adentrar o

terceiro capítulo da dissertação, que aborda a inovação política da fundação do stato ou a passagem

de homem privado a príncipe. Neste caso, a inovação é fonte das dificuldades mais extremas e a

necessidade de inovar é virtualmente irreversível. Assim, o discurso de Maquiavel precisa usar ainda

mais profundamente as potencialidades retóricas de seu discurso, indo além da flexibilização de

preceitos prudentes e tradicionais, mas propondo uma ponderação sobre os próprios limites da ação

calculada. Esta ponderação se dá por via alegórica: a alegoria da fortuna enquanto força violenta e

irresistível da imprevisibilidade dos eventos e a virtù enquanto capacidade de enfrentar esta força.

338 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p. 82 339 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p. 84

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Capítulo 3: Fundação do stato, passagem de homem privado a príncipe e a relação entre virtù

e fortuna

Agora examinamos o caso da fundação do stato ou a passagem de homem privado a príncipe.

Aqui, as dificuldades e necessidades impostas pela inovação são as mais elevadas. O príncipe deve à

inovação não somente sua conquista, mas sua posição mesma enquanto príncipe, de tal forma que as

dificuldades e necessidades da inovação assumem um caráter perigoso. Além disso, aquele que passa

de homem privado a príncipe não pode contar com nenhuma estrutura anterior de costumes, buscando

ponderar entre em que medida o costume estabelecido pode ser aproveitado ou combatido. O espaço

para a ponderação prudente se torna extremamente limitado. A resistência ao inovador e a dificuldade

de inovar são esmagadoramente maiores que as possibilidades de mobilizar as condições

estabelecidas em favor do príncipe. Neste sentido, o que observamos é um deslocamento da

abordagem feita por Maquiavel. A capacidade de agir de forma cirúrgica e calculada é afetada pela

extrema resistência dos costumes, e a capacidade do príncipe é agora descrita pelo autor nos termos

da limitação da capacidade humana e das vias razoáveis ou prudentes de ação. Não que a prudência

não faça parte fundamental da ação do fundador, mas ela não é suficiente. Certos atributos distantes

ou em atrito com o que se concebe por uma atitude calculada são exigidos, tais como introduzir a

imprevisibilidade, a audácia, a força de ânimo e o carisma na ação política.

Buscamos mostrar, assim, primeiramente que (3.1), quando se passa ao caso da fundação do

stato a terminologia escolhida por Maquiavel é aquela da relação entre virtù e fortuna. Não que ela já

não estivesse presente no exame da conquista, mas na fundação ela ganha total eminência. A

passagem de homem privado a príncipe e sua permanência nesta posição exigem virtù e fortuna. Esta

relação exprime, nas reflexões de Maquiavel, as limitações da ação humana e é a respeito desta

limitação que parece incidir primordialmente o conselho do autor aos fundadores, àqueles que passam

de homens privados a príncipes. Fundar o stato, tornar-se príncipe, é uma das ações mais difíceis a

serem almejadas, pois ela coloca o agente sempre em uma relação crua e inevitável com a fortuna.

Para mostrar isso (3.2), buscaremos explicar como Maquiavel entende a noção de fortuna e

por que é esta a alegoria usada para mostrar o conflito extremo com os costumes estabelecidos. A

fortuna é a alegoria para o imprevisível, para o aleatório e para o extraordinário. Quando o príncipe

está cercado somente por forças que lhe são inimigas e imprevisíveis em função da inovação, ele está

diante da fortuna. A Fortuna, enquanto figura mitológica da qual Maquiavel extrai sua alegoria,

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assume um caráter sobre-humano, e a peculiar imagem com a qual nosso autor a pinta chega a assumir

um caráter insuportável aos homens.

Neste sentido (3.3), vemos a noção de virtù, enquanto habilidade de relação com a fortuna,

como uma capacidade extremamente elevada, ela mesma parecendo estar acima das capacidades dos

homens comuns. É o que parece indicar o primeiro caso de fundadores examinados por Maquiavel:

Moisés, Ciro, Rômulo, Teseu. A estes homens está associada a virtù necessária para não dependerem

da fortuna, a não ser pela ocasião provida por ela. No entanto, a estes homens estão também

associadas capacidades sobre-humanas, feitos excelentíssimos dificilmente alcançáveis por homens

comuns. O exame, assim, passa a ser não o de delimitar propriamente e com certeza o que é virtù,

mas em que medida os homens comuns podem atingi-la, mesmo que imperfeitamente, para tentarem

se aproximar da virtù exigida na fundação. Passa a interessar a Maquiavel que a fortuna dificilmente

pode ser excluída da fundação: a verdade efetiva é que os homens são extremamente dependentes da

fortuna para fundarem seus stati. Neste sentido, quando se passa para o exame da virtù dentro dos

limites humanos e não envoltos em mitos sobre-humanos ou na graça divina, revelam-se aqueles

aspectos da ação humana que ultrapassam, mas não abandonam, a ação calculada, a razoabilidade e

a legitimidade tradicional. Podemos ver isso notadamente expresso no exemplo de César Borgia. A

longa narrativa que Maquiavel faz das ações do duque exprimem justamente o que uma linguagem

conceitual falha em exprimir: as muitas particularidades, a exigência de disposições antagônicas, a

capacidade de agir com a cabeça e o fígado, de mudar de rapidamente de planos ou improvisar. Tudo

isso dentro das capacidades humanas, pois Borgia, mesmo apresentando toda virtù humanamente

possível, ainda assim falhou diante da fortuna

3.1. A passagem de homem privado a príncipe ou a fundação do stato

O sexto capítulo de O Príncipe introduz uma nova condição de inovação política. Remontando

a uma das categorias enunciadas no primeiro capítulo, Maquiavel se refere aos “principados

inteiramente novos”, novos “de príncipes e principados”340. Com isso, entramos no caso da fundação

do stato, isto é, no caso em que novas ordenações e modos são introduzidos a fim de que o príncipe

possa fundar seu stato. E, para entendermos adequadamente o que isso significa, devemos estar

atentos ao sentido (que salientamos no primeiro capítulo da dissertação) que o stato tem em O

Príncipe: o de exercício efetivo e ordenado do poder ou do comando político, sempre atrelado a um

agente. Deste modo, o que implica primariamente a fundação do stato é a fundação do stato do

príncipe, é a “passagem de homem privado a príncipe”341. Assim, torna-se secundário se o corpo

político, a cidade ou província estão sendo conquistados ou também fundados, mas que, por esta

340 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 25 341 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, pp. 25-26

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conquista ou fundação, funda-se também o império sobre homens de um príncipe, seu stato. Portanto,

não se trata primariamente da fundação da cidade ou do reino, mas do stato nela imperante, o stato

do novo príncipe. O stato, no caso dos principados, é fundado na medida em que seu governante se

torna príncipe com ele, na medida em que adquire império sobre os homens.

O que distingue a inovação neste momento do livro, o que a faz total ou completa, é que ela

não significa a expansão ou anexação de novos membros a um stato hereditário, quando o príncipe

não é novo enquanto príncipe, mas enquanto governante em seus novos stati adquiridos. Significa,

antes, ser a posição de comando ela mesma nova: o príncipe novo se torna príncipe pela aquisição do

principado. Neste sentido, é fundamental e carregada de consequências a observação de Maquiavel

sobre ser o príncipe, nestes casos, “obrigado a ir pessoalmente habitar o novo stato por não dispor de

outros”. Este fato, brevemente notado pelo autor como um “que cria facilidades”342, determina em

que medida os fundadores enfrentam sua inovação enquanto necessidade e dificuldade. Este fato

baliza as diferenças mais importantes entre os que expandem seus stati e os que os fundam. Deve-se

notar, assim, que a introdução de novos modos e ordens na passagem de homem privado a príncipe

deve fundar não somente o stato do príncipe, mas também “sua segurança”. E a enfatizada

preocupação com a segurança do príncipe é reiterada na sequência do texto maquiaveliano ao se

salientar não somente que a inovação é "difícil de se fazer", mas também “perigosa de manejar”343.

As dificuldades encontradas por aqueles que pretendem fundar seus stati nascem da

necessidade que o fundador tem de inovar. A inovação, como Maquiavel não deixa de afirmar ao

longo de todo o livro, ofende muitos, atraindo muitos inimigos. No caso da fundação, estes inimigos

são potentes, pois se beneficiam das condições presentes e querem por isso defendê-las. É bem

verdade que a inovação pode atrair o apoio de alguns, mas estes não serão aliados fortes. Isto porque

defendem a inovação com tibieza. Assim o fazem por medo dos adversários à inovação, que

ferozmente defendem a permanência do estado presente de coisas, ou por incredulidade, na medida

em que ainda não tiveram uma firme experiência dos benefícios prometidos pela mudança e, portanto,

defendem a mudança tibiamente. A condição do fundador, neste caso, assemelha-se a do príncipe

hereditário enquanto conquistador de novos stati. Como vimos, o conquistador também está

estabelecido diante de um dúbio apoio dos amigos, que se frustram em suas expectativas, e um

violento ataque dos inimigos. E isto em decorrência das mesmas razões pelas quais o príncipe

hereditário facilmente mantém o principado herdado - pela facilidade em se seguir a necessidade de

não inovar e, consequentemente, de não ofender seus súditos. Quando se conquista, impõem-se a

necessidade de inovar e, junto dela, as dificuldades consequentes da inovação. Dificuldades que se

sentem com ainda mais peso na passagem de homem privado a príncipe.

342 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 26 343 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 27

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Os príncipes novos, sejam eles os que passam de homens privados a príncipes ou príncipes

hereditários que conquistam novos stati, encontram-se emaranhados entre a necessidade de inovar e

a dificuldade em o fazer, precisando encontrar sua via de ação entre estas duas constatações.

Entretanto, uma diferença fundamental separa estes dois agentes. Enquanto o conquistador pode

contar com outros domínios que também são seus, o fundador perderia sua posição de príncipe caso

perdesse o stato que fundou. Assim, o conquistador, caso perca a sua conquista, tem a oportunidade

de reconquistá-la, estando seguro em seu principado hereditário, o que não pode fazer o fundador.

Além disso, o conquistador, enquanto estabelecido e forte em outro stato, pode buscar algum apoio

nas condições dadas de sua conquista. Maquiavel insistia no terceiro capítulo que um conquistador

“precisará do apoio dos habitantes para penetrar numa província" e, para tanto, pode contar com “o

fato de os homens mudarem de bom grado de senhor, acreditando, com isso, que irão melhorar”344.

Maquiavel nos diz que “sempre acontecerá de” um forasteiro poderoso “ser trazido por aqueles que

se sentem descontentes”. Foi contando com o apoio dos milaneses que os franceses foram trazidos à

Itália; e foi pela entrada dos espanhóis que os franceses perderam Nápoles. “A ordem de coisas é tal

que”, explica-nos Maquiavel, “tão logo um forasteiro poderoso entre em uma província, todos os que

nela são menos poderosos unem-se a ele”345.

Em relação aos fundadores, àqueles que passam de homens privados a príncipes, a ordem de

coisas é diferente. Sobre eles supõe-se que “não é razoável que saibam comandar tendo sempre vivido

em privada fortuna”346, de forma que a tibieza de seus apoiadores é o que se destaca, junto do

obstinado partidarismo do ataque de seus inimigos. O fundador de seu stato não pode ser, o mínimo

que seja, dependente da ordem vigente de coisas. Isto porque tal ordem de coisas se apresenta a ele

não como algo do qual ele possa tirar proveito e com o qual ele possa se reconciliar, mas como total

imprevisibilidade, extrema variabilidade, como fortuna. Pocock entende que, enquanto um estudo

analítico da inovação e suas consequências, O Príncipe “vai [...] à análise do [...] problema da

fortuna”, de forma que “o tratamento de Maquiavel em relação ao ‘novo príncipe’ [...] considera-o

[...] como agindo [...] em sua relação com” ela - símbolo da “pura, incontrolada e deslegitimada

contingência”347. Assim, para Pocock, mais que, como já notamos, uma tipologia de inovadores, O

Príncipe também examina “a relação” destes inovadores “com a fortuna” 348 . Esta relação é

344 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.9 345 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.13 346 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p.29 347 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.156-157 348 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.158

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fundamental na medida em que a “inovação [...] abre as portas para a fortuna”349 . Neste sentido, o

príncipe hereditário é legitimado pelo costume e pela tradição, é relativamente invulnerável à fortuna, e tem pouca necessidade de virtù extrardinária [...] o reverso é verdade para o novo príncipe. Maquiavel está, portanto, empregando antigo costume [...] como antítese de fortuna e virtù; é quando o primeiro está faltando que as relações entre a segunda e a terceira se tornam cruciais350

Se seguimos o pensamento de Pocock, portanto, o confronto com a fortuna é uma constante

em todo o livro. O príncipe hereditário que conquista novos domínios também entra em confronto

com a fortuna. No terceiro capítulo, Maquiavel diz ser “necessário ter muita fortuna e muita

habilidade para” manter a “conquista de stati numa província de língua, costumes e ordenações

diferentes”351 das do conquistador. No entanto, “Maquiavel procedia sobre a assunção de que as

situações dominadas pela fortuna não eram uniformemente caóticas; havia variações estratégicas

nelas”352, de modo que se faz notar nas reflexões que Maquiavel dedica à conquista de novos stati

por príncipes hereditários uma ênfase maior na habilidade do conquistador - sua prudência, como

vimos – do que em sua dependência da fortuna. Quanto mais o inovador, explica Pocock, “podia

transferir para si a legitimidade habitual gozada por seu predecessor, menos ele estava exposto ao

confronto nu da virtù e da fortuna, e menos urgente sua necessidade de virtù [...] se tornava”. Assim,

a análise de Maquiavel dedicada à anexação de novos stati lidaria mais enfaticamente “com a relação

entre o poder do novo príncipe e a estrutura de costume da sociedade sobre a qual ele o adquiriu”353,

da qual o conquistador pode tomar proveito para si, afastando-se da força da fortuna por um

comportamento prudente.

Notamos que, depois do primeiro capítulo, os termos fortuna e virtù aparecem poucas vezes

e são pouco enfatizados pelo autor até o sexto capítulo, além disso não estão diretamente relacionados

entre si até este capítulo. Como já citado, Maquiavel faz uma referência à fortuna no terceiro capítulo,

em conjunção à grande indústria e não propriamente à virtù. Virtù, por sua vez, aparece no terceiro

capítulo junto da prudência, ambas no sentido da capacidade do príncipe de agir no lugar de aproveitar

os benefícios do tempo354. Também aparece no quarto capítulo - “a virtù do vencedor”355 - sem

relação com a fortuna e significando mais genericamente a habilidade ou capacidade do vencedor.

349 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.160 350 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, pp.158-159 351 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.11 352 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.161 353 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.162 354 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.15 355 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo IV, p.22

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Faz-se notar, assim, a partir do sexto capítulo, não somente uma maior ênfase na fortuna como

resultado da inovação, mas também que a noção de virtù toma o sentido mais específico de habilidade

pela qual entra-se em contato com a fortuna. Maquiavel escreve Digo, portanto, que nos principados completamente novos onde há um novo príncipe existe maior ou menor dificuldade para mantê-lo conforme seja maior ou menor a virtù de quem os conquistou. E, como a passagem de homem privado a príncipe supõe virtù ou fortuna, parece que uma ou outra dessas duas coisas ameniza, em parte, muitas das dificuldades. Contudo, aquele que contou menos com a fortuna manteve-se por mais tempo.356

Podemos ver que aqui, expressamente, a investigação passa a focar nas “gradações em que a

inovação” torna o príncipe "dependente da fortuna”357 . Vemos também a noção de virtù como, mais

especificamente, relacionada à fortuna. Isto introduz o discurso de Maquiavel em uma longa tradição

de pensamento, como mostra Pocock, na qual "virtu era aquilo pelo qual o bom homem impunha

forma sobre sua fortuna”358. Esta maneira de compreender a noção de virtù, sempre enquanto resposta

à fortuna, estava fortemente presente na vida política dos antigos romanos, é passada para a tradição

boeciana em termos cristãos e depois recebida politicamente pelo Humanismo Cívico. Maquiavel

estaria intervindo nesta tradição de pensamento, direcionando a questão sobre a relação virtù-fortuna

para o problema da inovação: “o que Maquiavel está fazendo [...] é perguntar se há alguma virtù pela

qual o inovador [...] pode impor forma sobre sua fortuna”359

Apesar da forma aparentemente disjuntiva como estas noções são apresentadas, trata-se de

uma relação mais complexa. Virtù e fortuna são termos relacionados no pensamento de Maquiavel e,

se o autor nos diz no sexto capítulo que alguns contaram mais ou menos com sua virtù, ou mais ou

menos com sua fortuna, ele nos descreve, na verdade, quão dependente ou independente da fortuna

alguém se tornou por meio de sua virtù. Alguns “não receberam da fortuna mais do que ocasião”,

ainda assim, “sem ocasião, a virtù de seu ânimo se teria extinto”360. Virtù é a relação (seja de

enfrentamento, de anuência, de precaução, de submissão, etc.) que se estabelece com a fortuna em

proveito do agente. Esta habilidade, a de se relacionar com a fortuna, é salientada por Maquiavel

como a apropriada aos fundadores. É com ênfase nestes termos que a passagem de homem privado a

príncipe é abordada por Maquiavel a partir do sexto capítulo. Portanto, as dificuldades enfrentadas

pelos inovadores são entendidas nos termos da força da fortuna; é ela que deve ser enfrentada, a

dificuldade a ser superada, pelos fundadores de seus stati. Portanto, busquemos, primeiramente,

356 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, pp.25-26 357 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.162 358 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.157 359 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.157 360 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 26

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examinar esta noção, mostrando seu sentido e relação com a virtù na obra de Maquiavel, bem como

em que medida o autor a relaciona com a inovação política, especialmente a fundação do stato.

3.2. Fundação e fortuna Para podermos compreender em que medida a fundação de principados está sempre em

alguma relação com a fortuna, precisamos esclarecer o que Maquiavel entende por esta noção.

Entendemos fortuna, em geral, como sorte ou azar, falamos dos que são bem ou mal-afortunados. A

noção de fortuna de Maquiavel abarca também uma concepção neste sentido, mas é mais ampla. A

fortuna poderia ser definida como a aleatoriedade e imprevisibilidade dos acontecimentos. Refere-se

ao fato de que muitas das coisas que acontecem, boas ou ruins, não podem ser previstas ou

justificadas. À fortuna atribui-se tudo aquilo que devemos deixar em aberto em nossas previsões, a

tudo aquilo que não podemos prever. A força da fortuna se apresenta em muitos âmbitos. Quando se

joga um dado ou quando se conta com a vontade de outros (de quem não podemos prever as reações),

estamos sob o domínio da fortuna. Maquiavel está interessado em como a força da fortuna influi e

determina a esfera dos assuntos humanos, especialmente a política. Ele está interessado, por exemplo,

nos feitos do papa Júlio II, que procedeu com audácia em suas ações, surpreendendo todos a sua volta

e arriscando-se em decisões cujos resultados eram muito incertos361. O autor dedica o capítulo XXV

de O Príncipe à discussão deste tema. Questionando- sobre o poder da fortuna nas coisas humanas,

Maquiavel faz a seguinte reflexão:

Não ignoro que muitos foram e são de opinião de que as coisas do mundo são governadas de tal modo pela fortuna e por Deus que os homens não podem corrigi-las com a prudência, e até não têm remédio algum contra elas. Por isso, poder-se-ia julgar que não devemos incomodar-nos demais com as coisas, mas deixar-nos governar à sorte. Essa opinião tem recebido mais crédito em nossos tempos devido às grandes variações das coisas que foram e são vistas todos os dias, além de qualquer conjectura humana. Pensando nisso, às vezes me sinto inclinado a essa opinião. Entretanto, para que nosso livre-arbítrio não seja eliminado, julgo possível ser verdade que a fortuna seja árbitro de metade de nossas ações, mas que também deixe a nosso governo a outra metade, ou quase.362

Se supuséssemos que todas as coisas do mundo são governadas pela fortuna, os homens,

então, não poderiam corrigi-las ou remediá-las. Ora, uma vez que a fortuna é aquilo que não podemos

prever, se as coisas do mundo forem governadas por ela, então não poderíamos prever nada e não

poderíamos agir para alterar nossas condições. De tal forma, seria melhor deixar-se governar à sorte,

sem se preocupar em como se age no mundo. Maquiavel justifica que esta opinião recebe crédito,

posto que é possível observar no mundo variações extremas, que escapam às conjecturas humanas. O

autor se sente inclinado a esta opinião. Apesar de ainda querer propor uma forma de agir diante da

361 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p. 122 362 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p.121

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fortuna, Maquiavel não deixa de reconhecer a sua imensa influência sobre o campo político e como

é difícil e incerto agir em momentos de variações extremas e imprevisibilidade. Diante da fortuna,

uma capacidade extraordinária é exigida do agente. Esta capacidade é a virtù.

Tendo isso em consideração, começamos a entender a constante relação do inovador com a

fortuna, bem como a consequente necessidade de se agir com virtù. O fundador está sempre sob as

forças da fortuna. São muitos os fatores imprevisíveis e as variações de circunstâncias que cercam

aquele que tem a tarefa de fundar e manter um principado. As condições em que se encontram os

fundadores são tais que a imprevisibilidade se torna uma constante. Antes, no entanto, de

examinarmos tais condições, devemos nos questionar como, dada a caracterização que demos à

fortuna, seria possível qualquer tentativa de ação diante dela. Como poderia haver qualquer tipo de

ação diante da pura imprevisibilidade? Ora, se pensamos a fortuna como mera imprevisibilidade,

como aquilo que se encontra fora do alcance da ação humana, seria natural julgá-la como irrelevante

politicamente. Bignotto mostra que no pensamento de Aristóteles a questão da fortuna – a tyche363 -

era, em princípio, do quadro de discussões sobre a física: para Aristóteles,

a ‘fortuna’ existe quando a causa se produz por si mesma, em vão. Enquanto conceito, no entanto, ela só revela seu sentido quando analisada junto com o “azar” (“automaton”), do qual faz parte. Ou seja, a “fortuna” é um caso particular do azar, é o azar aplicado aos seres capazes de escolher, e não a todos os seres.

Enquanto entendida nestes termos, à fortuna era reservado “um papel pequeno na definição de vida

política”. Sob “a imagem fria do azar” 364, o pensamento sobre a tyche em Aristóteles, enquanto

conceito e não como divindade, apresentava poucas consequências políticas.

Para entendermos como a questão da fortuna adquire contundência política e é herdada neste

sentido pelo pensamento de Maquiavel, devemos considerar que, “com os pensadores romanos,

tivemos uma mudança na maneira de considerar a ‘fortuna’”, ela “passa a ocupar um lugar de

destaque no pensamento político romano”. A noção física, “fria”, de “automaton” dá lugar a uma

“ideia de uma força volúvel e caprichosa, que escolhe seus prediletos e seus inimigos”. Bignotto

descreve este processo como a “humanização do conceito” de fortuna e atribui-lhe o papel de “peça-

chave no esforço de compreensão da vida social” 365. Certamente, somente com a humanização da

ideia de fortuna, ela pôde adquirir a contundência política que adquiriu e carregou no pensamento

político até os tempos de Maquiavel. Somente saindo do silencioso movimento necessário da natureza

e adquirindo uma vontade, ainda que caprichosa, ainda que com igual potência para nos favorecer e

para nos prejudicar, pôde a fortuna estar ao alcance da ação e compreensão política do homem.

363 cf. também T. FLANAGAN. “The concept of fortune in Machiavelli” in A. PAREL The Political Calculus, 1972 364 BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo, SP: Loyola, 1991, p. 142 365 BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo, SP: Loyola, 1991, p. 142

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Foi, portanto, não tanto como conceito filosófico, mas como alegoria política e religiosa que

a fortuna entrou para a história do pensamento. Flanagan explica que o termo “é formado

adjetivalmente do latim fors (sorte [luck]), que é por último derivado da raiz ferre (trazer). Então, o

núcleo do significado de fors é ‘o que é trazido’; e a Fortuna é aquela que o traz”366. A ação implícita

na etimologia do termo distancia-o do que modernamente chamamos acaso, “[chance], isto é, eventos

que parecem ocorrer aleatoriamente”. No lugar da fria aleatoriedade, a alegoria da Fortuna implicava

“uma pessoa ou poder não visível que trabalha de modos inescrutáveis para nós”. A fortuna

representava uma vontade, ainda que a vontade divina - “enquanto elástica, imprevisível”, mas

“aberta à influência da súplica humana”. Assim, “o culto à Fortuna não era uma redenção ao acaso e

à aleatoriedade na qual o esforço individual era abandonado; era muito mais uma tentativa de aplacar

a deusa para que ela sorrisse a uma empresa. A Fortuna pode ser caprichosa, mas seu comportamento

não é aleatório” 367. Foi preservando seu sentido alegórico e originalmente religioso que o tema da

fortuna “ocupou uma posição [...] proeminente”, tanto “na alta cultura da antiguidade – na filosofia,

literatura, história e arte”, quanto “nos cultos e superstições populares”.. A partir deste sentido dado

à fortuna, torna-se “parte do debate da sabedoria convencional da antiguidade debater as respectivas

contribuições para o sucesso da virtus, ou habilidade humana, e da fortuna, ou favor divino”368.

A fortuna em seu sentido alegórico e o debate que ela suscita sobreviveram ao colapso do

Império Romano, permanecendo na imaginação cristã. No entanto, sua imagem mudou quando

“adotada por uma civilização com um espírito diferente”. A promessa de abundância e a imagem da

Bona Dea dão lugar a uma “figura mais sombria” da Fortuna “cuja colorida imagética se perdeu” 369.

Permanece somente a roda, que a “Fortuna maldosamente gira”, de forma que “homens sobem e

descem inexoravelmente na concepção medieval”, havendo “pouco, se algum, espaço de

manobra”.370 Aquilo que a cultura romana havia promovido com a humanização da fortuna, a saber,

trazê-la ao alcance da ação, é suprimido pela cultura cristã, que dava pouca potência à empresa

humana e lugar secundário para vida ativa. Foi, no entanto, por ter permanecido como alegoria e por

ainda suscitar o debate sobre a capacidade da ação humana que a fortuna se tornou uma das principais

vias para a resposta do renascimento e seu humanismo à impotência humana pregada pelo

cristianismo medieval.

Ernst Cassirer, em O Indivíduo e o Cosmos na Filosofia do Renascimento, nota como o

caráter alegórico da noção de fortuna tem especial efeito no espírito da renascença. Para o filósofo

366 T. FLANAGAN. “The concept of fortune in Machiavelli” in A. PAREL The Political Calculus, 1972, p.129. Minha tradução para as citações deste texto. 367 T. FLANAGAN. “The concept of fortune in Machiavelli” in A. PAREL The Political Calculus, 1972, p.130 368 T. FLANAGAN. “The concept of fortune in Machiavelli” in A. PAREL The Political Calculus, 1972, p.131 369 T. FLANAGAN. “The concept of fortune in Machiavelli” in A. PAREL The Political Calculus, 1972, p.131 370 T. FLANAGAN. “The concept of fortune in Machiavelli” in A. PAREL The Political Calculus, 1972, pp.131-132

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alemão, era característico da cultura renascentista que o “pensamento não” estivesse “enclausurado

em si mesmo [...] antes, esforçava-se por símbolos visíveis”. Para ele, “Giordano Bruno [...], expoente

[...] claro destas disposição e atitude básicas da filosofia renascentista, [...] mantinha [...] que, para o

conhecimento humano, as ideias só podem ser apresentadas e incorporadas na forma de imagens.”371

O tratamento alegórico dado à fortuna - se não sua humanização, ao menos sua associação a uma

força determinada por uma vontade (ainda que não humana ou sobre-humana) - é o que permite

Giordano Bruno, segundo Cassirer, conceituar politicamente os limites da ação humana diante da

determinação do cosmos. Se a tomamos em sua alegoria romana, em seus traços humanos, há a

possibilidade se submetê-la à mesma influência que toda ação humana está submetida – ao

convencimento, ao engano ou à força. Enquanto alegoria, a fortuna passa, mesmo que numa

possibilidade muito remota, a estar sob influência das capacidades humanas. E, assim, no pensamento

de Giordano Bruno, Fortezza (coragem) assume o lugar da honra; mas ela não deve ser entendida somente em sua significação ética ou em sua limitação moral. Ao manter o sentido etimológico original de virtus, cuja ideia ela expressa, Fortezza significa a força da virilidade ela mesma, a força da vontade humana, que se torna a domesticadora do destino, a domitrice della fortuna.372

Cassirer mostra que encontramos na alegoria da fortuna e seu embate com a força da vontade

humana, virtus, “a raiz final à qual devemos sempre retornar se quisermos compreender em sua

verdadeira profundidade as doutrinas filosóficas da Renascença quanto à relação entre liberdade e

necessidade”. A redescoberta dos clássicos, a proeminência da perspectiva humanista e a valorização

da vida política entravam em combate com o mundo medieval através deste par conceitual. Cassirer

descreve que “as formas rígidas medievais da Fortuna foram mantidas por um longo tempo; mas [...]

outros motivos emergiam com crescente força”373. Tratava-se, nas palavras do filósofo, de uma nova

tensão. Uma busca por “fórmulas intelectuais de equilíbrio entre a ‘fé medieval em Deus e

autoconfiança do homem do Renascimento’”374.

A autoconfiança do homem do renascimento tinha imensa potência. Neste ambiente

intelectual, veríamos “a representação da Fortuna como um veleiro. E esta embarcação não é

controlada somente pela Fortuna – o homem ele mesmo a está conduzindo”375. No entanto, ainda era

forte a influência da igreja e do cristianismo como visão de mundo como contrapeso ao otimismo

humanista. Além disso, especialmente no início do século XVI, a confiança nas capacidades humanas

foi abalada, não por forças retroativas do ideário cristão, mas pela realidade política em que se

encontrava a Itália, berço do Renascimento. A ambição política dos poderosos italianos, resultado ao

371 CASSIRER, Ernst. The individual and the cosmos in Renaissance philosophy. Mineola, NY: Dover, 2000 p.74. Minha tradução para as citações deste texto. 372 CASSIRER, Ernst. The individual and the cosmos in Renaissance philosophy. Mineola, NY: Dover, 2000 p.75 373 CASSIRER, Ernst. The individual and the cosmos in Renaissance philosophy. Mineola, NY: Dover, 2000 p.75 374 CASSIRER, Ernst. The individual and the cosmos in Renaissance philosophy. Mineola, NY: Dover, 2000 p.76 375 CASSIRER, Ernst. The individual and the cosmos in Renaissance philosophy. Mineola, NY: Dover, 2000 p.77

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menos indireto da cultura da glória política do humanismo, causou imensa instabilidade social e

violência nas cidades italianas. O evento limite dessa instabilidade e violência foram as invasões

francesas ao território italiano em 1494. Depois delas e do estado de caos e tirania delas resultante, a

imagem da fortuna assumiu traços mais cruéis e a habilidade humana, tons menos otimistas.

Quando Maquiavel, no capítulo XXV de O Príncipe, propõe examinar “quanto pode a fortuna

nas coisas humanas e de que modo se pode resistir-lhe”376, ele está entrando em um debate corrente

do renascimento e respondendo-o nos termos correntes. Aqui, também, a noção de fortuna é usada

para um questionamento sobre os limites da capacidade humana de agir diante da imprevisibilidade

do mundo e, em acordo com a tradição, a fortuna é logo colocada em relação com a noção de virtù.

Em acordo com a tradição, a possibilidade de agir diante da fortuna é sua humanização: “a fortuna é

mulher”. Esse traço humano, ser mulher, é o que permite que se aja diante dela. Por ser mulher -

revela-nos a misoginia de Maquiavel - é que pode (e deve) ser submetida, batida e maltratada377. Se

a humanização do conceito de fortuna, sua abordagem alegórica, é um movimento tão importante na

tradição de pensamento político, é de interesse examinar como Maquiavel aborda esta alegoria e que

traços atribui a ela. Para tanto, antes de examinarmos como o tema é abordado na tecedura de O

Príncipe, será de grande valor algumas considerações sobre outro texto do autor. No poema à

Soderini, Di Fortuna378, podemos ver explorados e expressos com maior ênfase os traços humanos

da fortuna e seu uso como alegoria.

O poema começa sendo dedicado a seu destinatário, Soderini. Maquiavel introduz a seu amigo

o tema de seus versos, bem como a importância deles. O autor canta “o reino da Fortuna/ e seus casos

prósperos e adversos” e como ela reúne, de forma “injuriosa e inoportuna”, todo o mundo sob seu

trono. A contundência de tais versos está, ao mesmo tempo, nos perigos e na inevitabilidade com os

quais a Fortuna “se opõe” aos homens, especialmente “com maior força,/ onde maior força vê ter a

natureza” deles. Concomitantemente, a “natural potência” da Fortuna “cada homem obriga,/ e seu

reino é sempre violento”. Diante desta mortal combinação, os homens não devem “ter medo/ de outras

feridas que não as de seus [da Fortuna] golpes” e buscar “uma grande virtù” que amorteça sua

violência.379 O poema, portanto, versa sobre aquela temática clássica à qual nos referíamos acima

quanto as capacidades e limites da ação humana. É bem verdade que o termo virtù só ocorra duas

vezes no poema – primeiro como capacidade de amortecer a fortuna; depois como algum tipo de

376 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p. p.121 377 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p.125 378 A tradução do poema por Patrícia Fontoura Aranovich foi publicada em 2011 nos Cadernos de Ética e Filosofia Política da USP. Usamos na presente dissertação esta tradução. Na medida em que nos engajamos aqui uma leitura interpretativa do poema e que o vemos como um texto importante para a compreensão da obra de Maquiavel, reproduzimos integralmente a tradução de Aranovich em um anexo no final da dissertação. 379 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.233

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motor das ações humanas380. De qualquer forma, a temática da capacidade e limitação humana diante

da fortuna é evidente.

Depois de uma espécie de invocação da musa às avessas, na qual Maquiavel, no lugar de pedir

inspiração, nota temerosamente a presença da divindade sobre quem escreve a mirá-lo com olhos

furiosos381, o autor passa propriamente às considerações sobre a “volátil criatura”382. Ele começa por

uma asserção comum – a Fortuna “por muitos é dita onipotente”. Esta onipotência, entretanto, não

tem nada da onipotência do Deus cristão. Trata-se, certamente, de uma divindade que “dispõe o tempo

a seu modo” 383, cuja força e potência “qualquer um que venha a esta vida, / cedo ou tarde”384, e até

“mesmo Júpiter” sentem. No entanto, esta potência inexorável não é fruto de uma providência perfeita

e transcendente, que, se é incompreendida pelos homens, é muito mais pela imperfeição e maldade

do próprio homem do que por si mesma. A potência da Fortuna é “sem piedade, sem lei ou razão” 385,

o que caracteriza seu comportamento é a arbitrariedade. Alertar-se sobre a Fortuna, portanto, causa

nos humanos uma sensação muito diferente daquela tranquilidade e passividade cristãs dos que creem

serem governados por um criador onipotente, mas perfeito e justo. O sentimento impresso nos versos

de Maquiavel é a angústia constante quanto à relação estabelecida com um ser de potência sobre-

humana. Pocock explica que a experiência humana medieval era em grande parte baseada em uma

fé repousada na providência divina. A sucessão de eventos temporais particulares podia ser vista como dirigidas por um aspecto da mente divina que, precisamente porque dirigia a sucessão de particulares, era inescrutável e fora de descoberta. A mente humana devia observar o curso dos eventos assim dirigidos e aprender sobre eles dentro de limites; a prudência era a virtude pela qual os homens vivam o presente providencial, assim como era, podemos dizer, o tempo [tense] presente da experiência; mas os modos de Deus devem permanecer para além do alcance do intelecto humano. [...] Como pareceriam [os modos da providência] se não vistos pelos olhos da fé? Este era o ponto no qual o intelecto medieval, mesmo achando impossível descrever uma existência coerente sem a fé, fez uso do símbolo antigo greco-romano de fortuna (fortuna). Fortuna era o que a providência pareceria se não

380 “oculta virtù que nos governa”. [MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich - Cadernos de ética e filosofia politica, n18, 2011, p.241] 381 “E a diva cruel volta, no momento, para mim seus olhos ferozes, e lê o que canto dela e de seu reino. E, ainda que, no alto, sobre todos sente comande e reine impetuosamente, vê quem ousa cantar o seu estado.” [MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011, p.235] 382 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.233 383 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.235 384 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.233 385 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.235

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129 tivéssemos fé; mas, uma vez que se tem, ela se torna providência novamente. 386

A fé como necessária para a associação entre fortuna e e providência característica da Baixa Idade

Média é explicita por Cassirer a partir do Inferno de Dante:

É Virgílio quem esclarece Dante acerca da verdadeira natureza e função da Fortuna. Os homens, explica-lhe ele, têm o costume de falar da Fortuna como se ela fosse um ser independente. Mas tal concepção é um mero resultado da cegueira humana. Seja o que for que a Fortuna faz, não o faz em seu nome, mas em nome de um poder mais alto. Os homens louvam a Fortuna enquanto recebem os seus favores; insultam-na quando ela lhes é contrária. Ambas as atitudes são insensatas. A Fortuna não pode ser louvada nem condenada; e isso porque ela não tem qualquer poder próprio, sendo apenas o agente de um princípio mais alto. Se ela atua, atua sob o controle da providência divina, que lhe atribui a tarefa que ela tem a desempenhar na vida humana. Portanto, ela se encontra acima dos juízos dos homens; está para além da condenação e do louvor.387

No contexto medieval, a fortuna passa a fazer parte da ordem da providência. Ela não é

desordem e caos em si mesma, mas aparece aos homens dessa forma na medida em que ele é limitado

diante do Criador. Consequentemente, a fé na providência perfeita tranquilizaria o homem medieval,

bem como tentar avaliar ou combater a fortuna seria herético. A Fortuna caracterizada por Maquiavel,

diferentemente, não trabalha em nome de nenhuma perfeição e bondade divina: é “inconstante deusa

e móvel diva”, age “segundo seu capricho”, favorece alguns e destrói violentamente outros, “e se

alguma vez te promete / alguma coisa, jamais mantém a promessa”388. Se ela fosse indiferente aos

homens, ou se os desprezasse com ódio, talvez ela fosse melhor evitada ou aplacada. No entanto, ela

Ela permanece no topo, onde

jamais recusa seu olhar a qualquer homem; mas, em pouco tempo, o desvia e move

E ela tem duas faces, esta antiga bruxa, uma feroz e outra tranquila; e, no momento em que a volta, ora não te vê, ora te ameaça, ora te convida. 389

A Fortuna está sempre interessada nas coisas humanas. Ela voluntariamente visa interferir nos

destinos humanos. Dizemos interferir, e não controlar, porque a imagem de duas faces que se desviam

e movem, ora convidando, ora ameaçando, mas ora não te vendo, nos distancia da ideia de um projeto

cósmico ao qual poderíamos (ou não deveríamos evitar) confiar nossos destinos. A Fortuna

certamente tem a potência para controlar todo o destino de uma pessoa; mas, se o faz, é por decisão

arbitrária, assim como poderia permanecer indiferente.

A relação descrita no poema de Maquiavel entre a Fortuna e os homens se torna mais

386 POCOCK, J.G.A. "Custom and Grace, Form and Matter: An Approach to Machiavelli's Concept of Innovation," in Martin Fleisher (ed.), Machiavelli and the Nature of Political Thought, New Fork: Atheneum, 1972, p.158 387 CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. São Paulo: Conex, 2003, p.193

388 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.235 389 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p. 237

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complexa quando observamos que, nesta relação, estes não são meras vítimas da onipotência daquela:

“Todo mundo reúne-se ao seu redor, / desejoso de ver coisas novas, /cheio de ambições e de

vontades”. Os homens, o desejo, a ambição e as vontades humanas, invocam o poder da fortuna. Esta

invocação se dá porque o desejo do homem está direcionado às coisas novas – coisas, estas, que

somente invariabilidade fortuna, que altera a ordem do mundo sem razão, pode trazer. Assim,

Maquiavel mostra como é complexo ponderar entre o que é próprio do erro humano e o que é próprio

da crueldade da fortuna, “porque todo mal que vos ocorre / se atribui à ela; e se algum bem o homem

encontra, / crê tê-lo adquirido por sua própria virtude [virtute]”390. Esta complexidade está no modo

como Maquiavel descreve o exercício da onipotência da Fortuna. Junto da perene e tradicional

imagem da roda, Maquiavel utiliza a imagem do palácio da Fortuna. “Sobre um palácio totalmente

aberto/ se vê reinar, e a ninguém impede / a entrada, mas o partir é incerto”391. Os homens, em busca

de coisas novas, pedem abrigo neste palácio. O interesse da fortuna pelas coisas humanas,

benignamente escuta o pedido. No entanto, “se ira” e “impede a passagem” dos que querem sair. E o

palácio da Fortuna, aprendemos, é, em primeiro lugar, povoado de homens: “suspiros, blasfêmias e

palavras injuriosas / se ouvem em toda parte daquelas pessoas” 392.

O palácio da Fortuna está repleto. “Dentro, são tantas rodas que se veem rodar/ quão variado

é o subir até aquelas coisas / que cada um vive em mira”. Repleto de instrumentos para o controle –

suas várias rodas, em distinção à inexorável e única roda da tradição medieval – e repleto de uma

volumosa corte de homens mirando e desejando variadas coisas. A dinâmica deste palácio é

composta, portanto, do controle arbitrário da fortuna, por um lado, mas da ação humana não menos

arbitrária, por outro; e a variabilidade deste ambiente é fruto não só das variações da fortuna, mas

também daquela “turba variada e nova” de homens que adentraram o recinto. As palavras de

Maquiavel aqui, ecoam suas palavras no sexto capítulo de O Príncipe, quando diz que “a natureza

dos povos é variável; e, se é fácil persuadi-los de uma coisa, é difícil firmar nessa persuasão”393. Os

homens em grande número, buscando interesses particulares, tendem ao caos. Esta turba de homens

logo se transmuta em uma turba de novas alegorias – alegorias para os traços, as paixões e o

comportamento humanos: Audácia, Juventude, Temor, Penitência, Inveja, Ocasião, Ócio,

Necessidade, Paciência, Usura, Fraude, Liberdade, Caso e Sorte. Todas estas personificações dos

sentimentos e relações humanas habitam e auxiliam no governo do palácio da Fortuna. A fortuna “o

390 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p. 237 391 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p. 235 392 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p. 237 393 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p .27

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raivoso furor / demonstra com esta derradeira família”. Essas personagens “se destacam”, se prostram

em terra, “fazem guerra”, se divertem e brincam, “giram”, sentam, estraçalham-se, compondo a

dinâmica de caos e inexorabilidade do domínio da Fortuna. Elas assombram os homens, acima,

abaixo, entre e em torno das milhares de rodas que os controlam.394 De tamanha semelhança entre

estes fantasmas e a própria alma humana, é confuso quando o caos é proveniente desta ou daqueles.

É contando com estes traços humanos do reino da Fortuna que os homens podem de alguma

forma resistir-lhe. Sua arbitrariedade e variabilidade se atribuem a uma certa vontade – ainda que

volátil. Assim, O que melhor sorte consegue;

entre todos os outros que estão naquele lugar, é que aquele que pega a roda segundo seu querer;

porque os humores que usares em tua escolha, segundo o que para ela é conveniente será a razão de teu bem e de teu dano.395

Aquele que melhor se sai no reino da Fortuna é aquele que consegue ajustar seus humores aos dela.

Ao saber escolher os humores segundo o que é conveniente à Fortuna, ao girar na direção que ela

aponta, o homem pode chegar ao topo. “Isto não quer dizer, porém, que tu possas confiar nela / nem

crer evitar sua dura mordida / seus duros golpes, impetuosos e maus”396. A dificuldade do homem

diante da Fortuna é que, para entrar em acordo com ela, ele precisa, em certa medida, confiar nela. O

homem é um ser de acordos e confiança, um ser que espera estabilidade. É neste ponto que a Fortuna

o surpreende; “porque, enquanto tu és girado pelas costas, / pela roda, agora feliz e boa, / ela costuma

mudar os giros no meio do curso”397. Diferentemente da Fortuna, com duas faces, o homem não tem

olhos nas costas e não pode ver a Fortuna mudando seu curso.

Assim, não basta ajustar-se confiantemente à Fortuna. É preciso ajustar-se e reajustar-se; estar

sempre atento e em movimento. “Seria sempre feliz e beato, / quem pudesse saltar de roda em

roda”398. Esta habilidade, a de mudar energicamente de planos, de objetivos, de procedimentos; de

agir com a mesma energia e violência da Fortuna; de saltar de roda em roda; é o que poderia salvar

os homens diante da deusa. No entanto, é mais propenso ao homem que não possa “mudar de pessoa

/ nem abandonar a ordem da qual o céu te dota”399, estando impedido deste constante salto de rodas

394 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011, pp. 237-238 395 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p. 239 396 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p. 239 397 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p. 239-241 398 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p. 241 399 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p. 241

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em rodas uma vez que é um ser limitado. É bem verdade que Maquiavel diz que “Audácia e Juventude

são as que mais se destacam”400; e, talvez, por elas o homem possa alcançar um combate vitorioso

com a Fortuna. No entanto, se pensamos na condição humana, o que vemos é que a juventude é algo

que necessariamente se perde; e a audácia, depois de tantas consequências negativas, acaba por se

tornar prudência, caso o homem aprenda alguma coisa com seus erros, ou medo, caso não reste mais

que o trauma. Esta escassez humana diante da força sobre-humana da fortuna vemos nestes versos:

Por esse exemplo se vê com clareza

quanto a esta apraz, quão agradável lhe seja, quem a bate, quem a empurra ou quem a caça.

Mesmo assim, ao desejado porto um não chegou, e o outro cheio de feridas foi à sombra do inimigo morto.401

A passagem revela que as capacidades humanas são finitas e escassas em comparação com a

força da Fortuna. Aqueles que apresentam ímpeto suficiente contra ela são testados e esgotados em

suas energias e potencialidades. Este ímpeto necessário contra a Fortuna responde à violência de seus

poderes. Ao responder com violência, o homem não só se defende contra a Fortuna, mas a agrada.

No entanto, um reino no qual tudo é violência e audácia, onde somente facínoras e injustos têm vez,

é um local onde pode viver um imortal como a Fortuna, mas vive por breve tempo uma criatura mortal

como o homem. Assim, inclui-se nos versos de Maquiavel, junto da imprevisibilidade das coisas

humanas, sua finitude: “neste mundo, nenhuma coisa é eterna: / a fortuna o quer assim, disso ela se

embeleza, / a fim de que seu poder mais se distinga.”402. E, assim, a Fortuna expõe orgulhosa nas

paredes de seu palácio a história da humanidade, dos grandes impérios e dos grandes homens, todos

elevados às alturas por ela , para depois serem arremessados com extrema força ao chão, tal como as

águias às tartarugas403.

Muito do que Maquiavel canta em seus versos a Soderini é retomado no capítulo XXV de O

Príncipe. A reflexão que Maquiavel propõe aqui é novamente quanto aos limites e possibilidades de

ação do homem diante da fortuna. Depois de ter, no início do capítulo XXV, mostrado as implicações

de um mundo governado pela fortuna e ter questionado a abertura que ela dá a ação humana,

Maquiavel passa a considerar que tipo de ação é essa que poderia resistir à fortuna. Para tanto,

compara “a fortuna a um desses rios impetuosos que, quando se iram, alagam as planícies, derrubam

400 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.237 401 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.243 402 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.241 403 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.241-245

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as árvores e as casas, arrastam terras de um lado para levar a outro: todos fogem deles, todos cedem

a seu ímpeto sem poder detê-los em parte alguma.”404 Ao comparar a fortuna a um fenômeno natural

como o alagamento de um rio impetuoso, Maquiavel ressalta sua inevitabilidade e potência destrutiva.

Considerada nestes termos, a fortuna não é, nem resultado da ação humana, nem passível de ser

evitada por ela. Tratando-se de um rio impetuoso, mesmo a capacidade do homem de prever com

exatidão seu comportamento é falha, diferentemente de outros fenômenos mais amenos e amigáveis

da natureza, tal como a passagem das estações para o plantio e a colheita.

De qualquer modo, mesmo que esteja fora de alcance do homem controlar os fenômenos

impetuosos da natureza, está ao seu alcance alertar-se contra eles e ter consciência de seus danos. Isto

é suficiente para que, “quando os tempos estão calmos, os homens tomem providências, construam

barreiras e diques, de modo que, quando a cheia se repetir, ou os rios fluem por um canal, ou seu

ímpeto não seria nem tão licencioso nem tão danoso”. Por mais que não se possa prever exatamente

como ou prevenir que a cheia se repita, é possível contornar seus danos. De tal forma que a inevitável

e violenta cheia seja amortecida pela antecipação do homem. “O mesmo acontece com a fortuna, que

demonstra sua potência onde não encontra uma virtù ordenada, pronta para resistir-lhe, e volta seu

ímpeto para onde sabe que não foram erguidos diques nem barreiras para contê-la”.405 Neste sentido,

somos lembrados dos versos: “seu reino é sempre violento, / se uma grande virtù não o amorteça”406.

Em contraposição com o poema, entretanto, a fortuna não assume, nesta primeira representação,

traços humanos407. Assim, a virtù, a ação humana diante da fortuna, pode ter a sua parte enquanto

antecipação e preparo. O curso indiferente da natureza quanto às coisas humanas é distinto daquela

arbitrariedade injusta apresentada no poema. A virtù do homem, portanto, aparece como força

consciente e calculada diante de um ímpeto e uma força inanimados.

Esta abordagem, entretanto, não se mantém por muito tempo. Depois de comparar a fortuna

aos rios impetuosos, Maquiavel passa a outros aspectos da questão sobre como enfrentá-la. Nestes

outros aspectos, verifica-se, como coloca Pitkin, “um reexame ou rejeição parcial de sua metáfora”

inicial. Esta primeira metáfora, a dos rios caudalosos, “implica mais em prudência e cálculo,

habilidade técnica e certeza de engenharia, o manuseio de materiais, do que em interações entre

homens. E estas implicações acabam não sendo o que Maquiavel queria - ou o total do que queria -

404 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV p.121-122 405 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV p.122 406 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.233 407 De qualquer modo, é importante notar, como fez Pitikin : “mas conceitos como ira e ímpeto <intent to harm> não são literariamente apropriados a forças naturais; mesmo quando Maquiavel invoca as imagens da cheia e da tempestade, ele continua a personificar a força envolvida” [PITIKIN, Hannah, Fortune is a Woman: Gender and Politics in the Thought of Niccolò Machiavelli, 2nd ed. (Chicago: Uniiversity of Chicago Press, 1999), p.150]

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no final das contas dizer”408. Ernst Cassirer comenta sobre o conceito de fortuna em Maquiavel que

Em física podemos sempre invocar o princípio de que as mesmas causas produzem, invariavelmente, os mesmos efeitos. Podemos predizer com absoluta certeza um acontecimento futuro: por exemplo, um eclipse do solou da lua. Mas quando se trata de ações humanas tudo isso está sujeito a variações. Podemos, em certa medida, antecipar o futuro, mas não podemos predizê-lo. As nossas expectativas e esperanças são frustradas; as nossas ações, mesmo as mais bem planejadas, não produzem o efeito desejado. Como esta diferença deve ser considerada? 409

Como vimos, a fortuna vem, primeiramente, na imagem de um fenômeno natural, impetuoso

e violento, mas a ser previsto e calculado pela capacidade humana. Depois desta metáfora, então,

podemos ver um sentido mais propriamente político da reflexão. Ao falar como a Itália está

desprotegida, enquanto a Alemanha, a Espanha e a França estão defendidas contra a fortuna, vemos

que a fortuna se impõe contra a capacidade dos homens enquanto estes estão organizados em relações

de poder. Quanto a estas relações, no que diz respeito aos stati, “hoje se vê que um príncipe tem

sucesso e amanhã arruína-se sem ter mudado sua natureza ou qualidade”410 . Em um primeiro

momento, Maquiavel retoma razões, segundo ele já discutidas, para explicar sua constatação: “o fato

de um príncipe que se apoia completamente na fortuna arruinar-se quando ela muda”411. Explicando

assim a queda dos príncipes de seu tempo, Maquiavel retoma a metáfora do rio e dos diques: é preciso

estar sempre precavido contra as variações do mundo, agindo onde e quando a fortuna não age para

proteger-se dela. O autor também está retomando uma reflexão feita no capítulo precedente, XXIV:

“aqueles nossos príncipes que tiveram por muitos anos seu principado, que não acusem a fortuna por

tê-lo perdido, mas sua própria ignávia por nunca terem, em tempos tranquilos, pensado que poderiam

mudar”412. Portanto, no que diz respeito aos príncipes, sobre por que perdem seus principados, a

resposta de Maquiavel quanto ao poder da fortuna nas coisas humanas é que, muitas vezes, é a ação

humana que falha, não a fortuna que é extrema.

De qualquer forma, o autor adiciona na sequência: “creio ainda que é feliz aquele que ajusta

seu modo de proceder à qualidade dos tempos e, similarmente, que é infeliz aquele que, por seu modo

de agir, está em desacordo com os tempos”413. Maquiavel nos diz que o príncipe deve ser capaz de

modificar seus procedimentos de acordo com as variações a que está exposto. Agora é com esta

capacidade de adaptação que Maquiavel expressa o sentido de virtu como ação diante fortuna. No

entanto, há uma tensão neste momento do texto: a noção de virtù enquanto precaução e cautela não

408 PITIKIN, Hannah, Fortune is a Woman: Gender and Politics in the Thought of Niccolò Machiavelli, 2nd ed. (Chicago: Uniiversity of Chicago Press, 1999), p. 151 409 CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. São Paulo: Conex, 2003, p.189. Tradução alterada. 410 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p. 122 411 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p. 122 412 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXIV, p. 120 413 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p. 122

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entra em total acordo com uma noção de adaptabilidade. Evidentemente, em um primeiro momento

poderíamos pensar que estas duas noções não são incompatíveis; afinal, é de se esperar que aquele

que é cauteloso e precavido pense em meios de adaptação e ajustes. No entanto, o argumento de

Maquiavel segue em outro sentido. Pode-se ver que os homens, no que diz respeito às coisas que os conduzem aos fins que perseguem, isto é, glória e riquezas, agem de maneira diversa: um, com cautela, outro com impetuosidade; um com violência, outro, com arte; um, com paciência, outro, com o contrário; e cada qual, por meio desses vários modos, poderá alcançar sucesso. Por outro lado, vê-se que, de dois homens cautelosos, um chega a seu objetivo, e outro, não; que dois homens bem-sucedidos adotaram dois modos de agir diferentes, sendo um cauteloso, e outro, impetuoso. O que não acontece por outra razão que a qualidade dos tempos, que se conformam ou não aos modos de proceder deles. Disso resulta o que eu disse: que duas pessoas, agindo diversamente, alcançam o mesmo efeito; enquanto que outras duas, agindo da mesma forma, uma chega a seu fim, e outra, não. 414

Ser feliz tem o sentido de chegar aos fins que se persegue – glórias e riquezas. Quando se

coloca em questão por que vias se chega a estes fins, Maquiavel constata uma impossibilidade de

associar com certeza as condutas dos homens e aos efeitos destas condutas. Alguns falham se

conduzindo exatamente como os que sucederam; dois bem-sucedidos, muitas vezes, escolheram vias

opostas. Sua conclusão é que não são estas condutas em si mesmas, mas a relação delas com a

qualidade dos tempos, que determina o sucesso dos príncipes. Sendo a qualidade dos tempos variável,

e o sucesso associado à conformidade da conduta a ela, varia também a possibilidade de sucesso.

“Disso também”, escreve Maquiavel, “depende a variação do bem, porque, se um príncipe se conduz

com cautela e paciência, e o tempo e as coisas caminham de tal modo que seu governo seja bom, será

bem-sucedido; mas, se mudam os tempos e as coisas e ele não mudar seu modo de proceder, então se

arruinará”415. A chance que o homem encontra contra a variabilidade do mundo é conseguir mudar

seu modo de proceder tão continuamente for necessário para acompanhar a mutabilidade do mundo.

Mas podemos associar esta capacidade, esta concepção de virtù, com aquela de construir barreiras e

diques apresentada no início do capítulo?

“Nada impede”416 os homens de construir diques e barreiras. Diferentemente, ajustar os

procedimentos políticos às contingências não é uma habilidade simples – “não há homem

suficientemente prudente que saiba acomodar-se a isso”417. Maquiavel alerta para que os homens

agem de acordo com a inclinação que o hábito lhes impõe. Suas práticas naturais são difíceis de serem

mudadas. Alerta também que, tendo escolhido um procedimento que funcione, muitas vezes,

tendemos a repeti-lo indiscriminadamente418. Por estas razões, adaptar-se e agir de acordo com o que

414 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p.123 415 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p.123 416 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p.122 417 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p.123 418 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p.123

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os tempos exigem é uma tarefa difícil para os homens. A construção de diques e barreiras “implica

em uma forma de proceder – planejamento prudente, habilidade de engenharia, a construção de

estruturas”419. Esta forma de proceder não está livre de não ser a adequada no momento adequado. E

é justamente à oposição entre cautela e ímpeto como modos de se proceder que Maquiavel dá especial

ênfase: “por isso, o homem cauteloso, quando chega o momento de agir impetuosamente, não sabe

como fazê-lo e, por esse motivo, arruína-se, pois, se mudasse de natureza de acordo com os tempos,

não mudaria de fortuna”420. Cassirer explica que No Capítulo XXV de O Príncipe, Maquiavel expõe as regras táticas desse grande e contínuo combate contra a Fortuna. Essas regras são muito confusas e não é fácil usá-las da maneira conveniente. Porque elas contêm dois elementos que parecem antagônicos. O homem que pretende manter-se nesse combate deve combinar no seu caráter duas qualidades opostas. Deve ser tímido e corajoso, reservado e impetuoso. Somente por tal mistura paradoxal ele pode ter esperanças de alcançar a vitória. Não existe um método uniforme a ser utilizado em todas as circunstâncias. Num certo momento devemos colocar-nos na defensiva, no outro, ousar os maiores atrevimentos. Devemos ser uma espécie de Proteu, que de um momento para outro podia mudar de forma.421

A dificuldade apresentada pelo autor aqui no confronto com a fortuna é muito semelhante

àquela apresentada no poema Di Fortuna, acima analisados. No poema, é “sempre feliz e beato” em

seu palácio “quem pudesse saltar de roda em roda”422. Mas lá, como também aqui no capítulo XXV,

Maquiavel tende a asseverar a incapacidade do homem. Não que os homens não atinjam seus fins e

glórias; mas pouco se pode afirmar quanto a que parte destes fins e glórias são frutos da fortuna ou

da ação dos homens. Maquiavel, assim, mostra que “o papa Júlio II procedeu em tudo

impetuosamente” e sempre teve êxito, porque “sempre encontrou os tempos e as coisas conformes a

seu modo de proceder”. Com suas deliberações impetuosas, o papa deixou “atônitos e estáticos”,

causando “medo” e interferindo em seu “desejo”, os venezianos e o Rei da Espanha, que não estavam

satisfeitos com ele; e “arrastou consigo”, por necessidade, um aliado fortíssimo, o Rei da França.

“Portanto, Júlio causou com seu movimento impetuoso o que jamais outro pontífice, com toda

humana prudência, teria causado”. Foi sem respeitar acordos e surpreendendo seus inimigos que Júlio

pôde obter êxito. E assim aconteceu porque as condições, os tempos e as coisas, eram propícias. A

conclusão de Maquiavel quanto ao papa, entretanto, apesar abalar a noção de que a cautela seja o

caminho para confrontar a fortuna, também não atribui ao seu comportamento impetuoso uma virtù

suficiente para combater a fortuna, porque “a brevidade de sua vida não o deixou sofrer os reverses,

porque, caso tivessem chegado os tempos em que tivesse precisado agir com cautela, ele se teria

419 PITIKIN, Hannah, Fortune is a Woman: Gender and Politics in the Thought of Niccolò Machiavelli, 2nd ed. (Chicago: University of Chicago Press, 1999), p. 150 420 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p.123 421 CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. São Paulo: Conex, 2003, p.193 422 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.239_241

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arruinado, pois jamais desviaria daqueles modos para os quais o inclinava sua natureza”. 423

Aqui encontramos outra semelhança notável com o que fora apresentado no poema Di

Fortuna. Lá também víamos que, no palácio da Fortuna, “Audácia e Juventude são as que mais se

destacam”424, pois estes traços humanos impulsionam os homens ao ímpeto e à potência de mudarem

constantemente os planos de seus destinos. No entanto, a finitude do homem não é capaz de manter

estes traços por muito tempo, acabando o homem sempre vencido ou extremamente danificado. O

que vemos é a oposição entre o homem contra a fortuna como a oposição entre um ser que depende

de acordos estáveis, que tem capacidades limitadas e previsíveis, contra uma força de extrema

violência, variabilidade e potência. O que é jovem logo envelhece; a audácia acaba por resultar em

vingança e medo. Antes que o ímpeto de Júlio arrefecesse ou que sofresse as consequências de seus

atos, sua finitude diante da fortuna veio com a morte. Não é ao acaso que o exemplo de Júlio venha

logo antes da conclusão do capítulo XXV. O exemplo serve para corroborar a reflexão final de

Maquiavel no capítulo: Estou convencido do seguinte: é melhor ser impetuoso do que cauteloso, porque a fortuna é mulher, e é necessário, para submetê-la, bater nela e maltratá-la. Vê-se que ela se deixa vencer mais pelos que agem assim do que do que pelos que agem friamente; e, como mulher, é sempre amiga dos jovens, porque são menos cautelosos, mais ferozes e a comandam com maior audácia.425

As situações em que se encontram os homens diante da fortuna são contextos de crise,

instabilidade e violência. Com a metáfora da mulher para descrever a fortuna, o capítulo XXV pode

ser, finalmente, diretamente associado aos versos de Di Fortuna. Com ela, a fortuna não é mais uma

força natural violenta e indiferente aos homens. Ela se incorpora na alegoria da deusa Fortuna, uma

mulher - traiçoeira, instável, volúvel. Dessa forma, para controlá-la, um comportamento audacioso e

impetuoso é exigido; com este comportamento o homem não só se defende da Fortuna, mas ganha

seus favores. Como vimos, Maquiavel dedica alguns de seus versos no poema a mostrar que os

homens não se relacionam com a Fortuna meramente na condição de vítimas caçadas por ela. Os

homens reúnem-se ao seu redor, desejosos “de ver coisas novas”, cheios de “ambições e vontades”

426. Assim, por suas ambições e vontades, os homens buscam mudanças e, ao fazerem, invocam o

poder da Fortuna e sua atenção. No poema, Maquiavel descreve uma distinção muito turva entre o

que é próprio do homem e o que é próprio da fortuna. As variações e perigos que afligem aos homens

parece vir simultaneamente do poder arbitrário da Fortuna. Por um lado, mas da ação humana não

menos arbitrária. Por outro, a variabilidade deste ambiente é fruto não só das variações da fortuna,

423 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, pp. 123-124 424 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.237 425 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, pp.124-125 426 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.237

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mas também daquela turba de homens ambiciosos e em conflito. As muitas outras alegorias do poema

que auxiliam a Fortuna a perturbar os homens - Audácia, Juventude, Temor, Penitência, etc. - refletem

os traços, as paixões e o comportamento humanos.

O exemplo de Júlio II e de como sua audácia e impetuosidade puderam combater a fortuna e

levá-lo aos seus objetivos nos mostram exatamente esta ambiguidade entre Fortuna e ação humana.

Júlio II não é uma vítima da Fortuna; se ele lhe resistiu e combateu, também a evocou. Porque, sem

ações impetuosas, ele não teria tido êxito; no entanto, para modificar sua condição de poder, teve que

quebrar tratos e se utilizar da violência, o que causou a condição de caos e variabilidade com a qual

a Fortuna ataca. Portanto, a Fortuna é uma alegoria humanizada para uma coisa propriamente humana.

Pocock mostra como a relação entre virtù e fortuna é ambígua e que esta ambiguidade se faz

especialmente notar no caso da inovação política: “por um lado, virtù é aquilo pelo qual inovamos e,

portanto, liberamos sequências de contingência além de nossa predição ou controle, de forma que nos

tornamos presas da fortuna; por outro, virtù é aquilo interno a nós pelo qual resistimos à fortuna e

impomos sobre ela padrões de ordem” 427

A Fortuna é uma face do homem; na verdade, uma face dos homens, muitos, em combate e

desordem. Ela se apresenta quando os tratos e as leis não podem dar coesão à vida em conjunto,

quando são quebrados ou alterados. A questão é circular: os homens são impetuosos porque a Fortuna

é impetuosa, ou é a Fortuna que responde com impetuosidade a audácia dos homens? Se levamos em

conta o estudo proposto por Pitikin em Fortuna é uma Mulher, na qual a autora mostra com uma

leitura muito contundente a força que os signos e as questões de gênero têm na construção do

pensamento de Maquiavel, podemos ainda dizer: a Fortuna é uma face do homem – ela é mulher.

Deve-se notar que esta constatação ela é repleta de significado e consequências. Pitikin, examinando

como a noção de homem foi central para a história do pensamento, mostra que este conceito não se

reduzia meramente aos humanos em geral:

ser homem pode significar não ser uma mulher, ser macho no lugar de fêmea, masculino no lugar de feminino, másculo no lugar de efeminado. Mas, alternativamente, ser homem pode significar não ser criança, ser adulto no lugar de infantil, maduro no lugar de juvenil – isto é, independente, competente, potente. Mas, novamente, ser um homem pode significar alguma coisa como ser humano; o italiano uomo é ambíguo da mesma forma que o inglês man. Neste sentido, ser um homem pode ser contrastado a ser inumano ou bestial, mas também a ser sobre-humano, imortal ou divino. [...] Diferente das bestas, um homem é parte de uma civilização historicamente criada, uma pessoa, capaz de escolha, julgamento, ação, responsabilidade; diferente das divindades, um homem é mortal e falho, simplesmente um entre outros que têm fundamentalmente direitos e reivindicações iguais. Este último sentido de homem pode também sugerir, como sugeriu para Aristóteles e Maquiavel, ser um “animal político”, uma criatura cujo potencial é completamente desenvolvido somente em uma polis como cidadão ativo entre iguais.428

427 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, p. 167 428 PITIKIN, Hannah, Fortune is a Woman: Gender and Politics in the Thought of Niccolò Machiavelli, 2nd ed. (Chicago: Uniiversity of Chicago Press, 1999), p. 8

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Se damos a devida atenção às palavras da autora, vemos, na história da humanidade, tentativas

de definir o humano a partir de um conceito muito variado e complexo de homem. Com isso, tentativas

de compreensão da essência do homem e de suas capacidades enquanto humanos se misturavam com

preconceitos e ideologias que acabavam por excluir parte da humanidade deste atributo. Uma vida

desprovida de ordem política nos transporta para fora da humanidade, faz-nos menos homens. Que

esta concepção desde cedo se misture com a exclusão das mulheres e o discurso que o corrobora fica

evidente na raiz da palavra virtus - a virilidade, o que é próprio do homem, do mundo masculino.

Maquiavel corrobora e ressalta esta posição. Em certo momento do capítulo VI429, ele mostra como

a falta de ordem política torna os homens efeminados. O que Maquiavel parece estar mobilizando,

apesar de seus machismo e misoginia, é a noção de que a Fortuna é uma face do próprio humano;

mas de sua forma extra-humana, por assim dizer. Isto é, é aquilo que há nos humanos ou nas relações

humanas de incompreensível, de incomensurável. É o homem fora da segurança e da estabilidade que

lhe é necessária, que se torna efeminado, violento, imaturo, incapaz; mas que também, por vezes,

assume forças sobre-humanas, criando para si, ora caos incontornável, ora coisas grandes e

extraordinárias.

No entanto, devemos ser cautelosos quanto à afirmação de que a fortuna maquiaveliana tem

uma face humana. Isso não quer dizer que ela seja comensurável pelos humanos; que, por ser de certa

forma humana, esteja potencialmente sob controle humano. O que a alegoria da Fortuna – uma

divindade, força sobre-humana -, em seus traços humanos, vem lembrar é, na verdade, as limitações

humanas, bem como, em consequência destas, a parte incomensurável que acompanha todo discurso

sobre a política. Cassirer escreve que a experiência ensinou a Maquiavel “que nem sempre os

melhores conselhos políticos são eficazes. As coisas seguem o seu próprio caminho; contrariam os

nossos desejos e finalidades. [...] Essa incerteza dos negócios humanos parece tornar impossível

qualquer ciência política”. Diante do problema da fortuna Maquiavel não assume um “estilo lógico e

claro, mas um estilo retórico e imaginativo”430. A inovação política nos coloca irremediavelmente

diante do problema da fortuna. Na medida em que a inovação faz parte do domínio político e, junto

dela, a fortuna que a acompanha, podemos concluir com Cassirer que, “nesse domínio vivemos num

mundo irregular, inconstante e caprichoso, que desafia todos os nossos cálculos e previsões”431. Sobre

o caráter imprevisível e incomensurável que a política por vezes pode ter, Cassirer escreve sobre

Maquiavel que

429 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 26 430 CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. São Paulo: Conex, 2003, p. 194 431 CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. São Paulo: Conex, 2003, p. 190

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140 O seu método lógico e racional desamparava-o nesse ponto. Teve de admitir que as coisas humanas não são governadas pela razão e que, além disso, não podem ser inteiramente descritas em termos de razão. Temos de recorrer a um outro poder – um poder semi-mítico. A “Fortuna” parece governar as coisas. E, de todas as coisas, a Fortuna é a mais fantasista. Qualquer tentativa para sujeitá-la a regras está condenada a fracassar. Se a Fortuna é um elemento indispensável na vida política, é um absurdo esperar fundar uma ciência política. Falar de uma "ciência da Fortuna" seria uma contradição de termos.432

3.3. A virtù dos fundadores

Retomando o tema da inovação e da condição política da fundação do stato e da passagem de

homem privado a príncipe introduzido no sexto capítulo de O Príncipe: a perspectiva do fundador de

seu stato é aquela na qual a fortuna enquanto consequência da inovação se revela com maior

expressão. Nesta condição política, o estilo retórico e imaginativo em detrimento de um lógico e claro

salienta-se ao máximo, de forma que o recurso ao mito e as ponderações sobre os limites da ação no

lugar de suas potencialidades entram em evidência. Isto vemos na forma como Maquiavel inicia o

sexto capítulo, anunciando alguns cuidados quanto a abordagem da condição política agora

examinada:

Que ninguém se espante se, ao falar dos principados inteiramente novos, de príncipes e de estados, eu recorrer a exemplos elevados. Pois, como os homens sempre trilham caminhos percorridos por outros, procedem em suas ações com imitações mas não são capazes de manter totalmente os caminhos dos outros nem de alcançar a virtù daqueles que imitam, um homem prudente deve sempre começar por caminhos percorridos por homens grandes e imitar os que foram excelentes. Assim, mesmo que não alcance sua virtù, pelo menos mostrará algum indício dela, fazendo como os arqueiros prudentes que, julgando muito distantes os alvos que pretendem atingir e conhecendo até onde chega a capacidade de seu arco, orientam a mira para bem mais alto que o lugar destinado, não para alcançar com sua flecha tamanha altura, mas para poder, por meio de mira tão elevada, chegar ao objetivo433.

Ora, a verdade é que não seria de se espantar que Maquiavel recorra a exemplos elevados para

aconselhar o príncipe. Não fora justamente esta abordagem dada até então pelo autor? Basta

lembrarmos que o capítulo III estrutura-se em torno dos grandes exemplos (de fracasso e sucesso) de

Luis XII e dos romanos; e que o capítulo IV leva em seu título o exemplo de um grande homem,

Alexandre. O ponto é que a imitação aparece aqui como um problema, como uma via a ser adotada

não sem considerações. Maquiavel havia afirmado no terceiro capítulo que a derrota dos franceses na

Itália é coisa ordinária e razoável. Segundo nosso autor, o rei francês teria mantido a Lombardia se

tivesse observado determinadas regras já observadas por outros ao longo da história, citando o

exemplo dos romanos em suas conquistas na Grécia 434 . Maquiavel afirmava ser aos franceses

acessível uma compreensão das condições dadas e a escolha das deliberações adequadas para uma

conquista segura, se estes tivessem observado as regras observadas pelos romanos, que eram sábios

432 CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. São Paulo: Conex, 2003, p. 190 433 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 25 434 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.18

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e prudentes. A precisão e estratégia do conquistador – sua prudência -, que fazem da conquista

ordinária e razoável, entram, na passagem citada, em choque com a asserção de que com a imitação

não se é capaz de manter totalmente o caminho dos outros nem de alcançar sua virtù. Fazer como os

romanos, ou como os espartanos ou atenienses não é suficiente.

Ao expor os limites da imitação, Maquiavel está demarcando uma distinção com o que ele

expusera até o momento. Ao falar de prudência, Maquiavel refere-se àquela habilidade, descrita no

terceiro capítulo, dos romanos em suas conquistas, que, por conhecerem com antecedência as coisas

do stato, por serem prudentes, curavam facilmente os males que nele surgiam435. Mas, no sexto

capítulo, esta habilidade é caracterizada pela carência e limitação. O que a passagem nos diz é que

um homem prudente deve começar pela imitação dos que foram excelentes, buscando sua virtù,

apesar de a capacidade de imitação ser limitada; depois, que o arqueiro prudente conhece a falta de

virtù de seu arco, mirando mais alto que seu alvo. Nas condições de inovação completa, na fundação

pela passagem de homem privado a príncipe, aquela habilidade fundamental à manutenção das

conquistas, a prudência dos conquistadores, tende a falhar. Exige-se, certamente, a capacidade de

prever partindo de um exame aguçado das condições estabelecidas e de agir adequadamente de acordo

com estas previsões, mas não pode se limitar a ela.

Somente raros “homens grandes” e “excelentes”436 seriam capazes de exercer as capacidades

necessárias para superar as dificuldades impostas pela fundação. Na abertura de sexto capítulo, a

virtù aparece mais como um horizonte de conduta – tendo como parâmetro os grandes e excelentes

homens – do que propriamente um modelo facilmente seguido em vista do sucesso mais certo. Quanto

a este momento do texto maquiaveliano, comenta Lefort que “o passado oferece um objeto de

inspiração mais do que de imitação”, de forma que, “enquanto o exame minucioso da política de Luis

XII ou dos romanos induziam a uma verdade de escopo universal, a proposta do autor agora parece

flutuar em uma zona indecisa, onde não contariam nem o peso dos fatos, nem o das ideias”437 .

Pocock, por sua vez, nota que “‘estratégico’ não é uma palavra suficientemente completa. É aqui que

entramos inteiramente na questão das relações entre a virtù de um indivíduo e sua fortuna, que é

sempre um problema moral e psicológico, bem como [...] estratégico”438. Os primeiros exemplos de

Maquiavel “quanto aos que, pela própria virtù [...], se tornaram príncipes” são de fato exemplos

elevados de homens grandes e excelentes. “Os mais eminentes foram Moisés, Ciro, Rômulo,

Teseu”439. “Não poderíamos deixar de pensar que a política destes gloriosos fundadores, dos quais a

435 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 14 436 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 25 437 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 363 438 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 166 439 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 26

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memória revela mais a lenda que a História, escapa do conhecimento exato”440 comenta Lefort.

Pocock, por sua vez, diz se tratar dos “legisladores clássicos [...] seres divinos ou divinamente

amparados que podiam criar sociedades, porque sua virtù era tal que não necessitavam do quadro

social que era a precondição da virtù em homens ordinários; deuses com [...] um pouco de animal em

si”441. O que caracteriza estes personagens na urdidura do sexto capítulo? O que os eleva ao mais alto

exemplo e os estabelece em um patamar quase inatingível para a conduta ordinária? A resposta para

tanto está na relação entre virtù e fortuna.

Ao passarem de homem privados a príncipes, ao fundarem seus stati, os fundadores estão em

confronto com a fortuna, como vimos, signo das forças imprevisíveis, extraordinárias e sobre-

humanas. Este confronto é incontornável, pois o príncipe está obrigado a inovar e a manter a inovação

uma vez que todo seu poder depende dela. Seu stato não é misto, é inteiramente novo. O que é preciso

saber, portanto, para bem aconselhar os novos príncipes que passam de homens privados a príncipes

é como se dá o confronto com a fortuna: em que medida estes novos príncipes têm virtù. A influência

da fortuna na política e como lidar com ela é a questão a partir da qual Maquiavel busca abordar a

superação das dificuldades das necessidades impostas pela fundação do stato. Esta forma de abordar

o problema posiciona o autor em um lugar interessante do debate florentino corrente. Felix Gilbert

explica que,

no final do século XV, o contraste entre ragione e Fortuna criara diferentes atitudes em relação política. A Fortuna, enquanto emissária de Deus, fortalecera o sentimento de que o homem estava nas mãos de forças incontroláveis; a conduta dos negócios deve permanecer dentro do quadro tradicional dado por Deus. O ponto de vista oponente era o de que a razão do homem lhe deu o poder de moldar o curso da política; fazendo uso da experiência, ele podia imprimir eficiência e perfeição sobre a ordem política. Mas este segundo ponto de vista mal havia tomado forma quando os eventos políticos pareciam demonstrar que a razão era somente um, e talvez nem mesmo o mais efetivo, dos instrumentos nas lutas políticas. Esta era a situação perturbadora e confusa na qual os florentinos que pensavam sobre política se encontravam na segunda década do século XVI.442

O debate corrente ao qual nos referimos e descrito por Gilbert na passagem acima diz respeito

ao papel da fortuna na política e, com isso, à capacidade humana de moldar o curso da política diante

de forças incontroláveis. Mais acuradamente, diz respeito à atitude política a ser tomada diante da

influência que a fortuna exerce sobre ela. Maquiavel traz este debate para a questão da inovação dos

fundadores. A fundação coloca o agente em confronto com a fortuna e entender a virtù do fundador

é entender como ele confronta a fortuna. No entanto, o debate em torno do confronto com a fortuna

é muito delicado, pois nem uma resposta resignada da incapacidade do homem, nem uma resposta

440 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.362 441 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 168 442 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence Princeton University Press, 1965, pp. 138-9

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muito otimista sobre suas capacidades são satisfatórias. Colocando a inovação dos fundadores como

problema específico a ser discutido, Maquiavel enfatiza a necessidade de discutir o enfrentamento

dos fundadores com a fortuna, portanto discutir a virtù, que é a capacidade de responder à fortuna.

Neste sentido, o atributo central destes gloriosos fundadores ou legisladores clássicos

enfatizado por Maquiavel no início do sexto capítulo é que tornaram-se príncipes “pela própria virtù

e não pela fortuna” e, “examinando suas ações e suas vidas, veremos que não receberam da fortuna

mais do que a ocasião”, ocasião que, “sem virtù, [...] teria sido em vão”443 . Segundo Pocock,

poderíamos pensar o sexto capítulo de O Príncipe como “uma tipologia de inovadores arranjados de

acordo com a gradação na qual suas virtù os torna dependente da fortuna”. Com isso, “o caso pode

[...] aparecer de um inovador cuja virtù não deve absolutamente nada à fortuna”444. É bem verdade

que a ocasião é provida pela fortuna e que, sem ela, a virtù dos grandes fundadores não poderia ter

sido mostrada. De qualquer forma, nestes exemplos elevados, a relação proeminentemente

estabelecida entre virtù e fortuna é a antitética445. Por relação antitética entende-se aquela na qual a

virtù do fundador se relaciona com a fortuna na medida em que não depende dela a não ser pela

ocasião.

O interesse de Maquiavel em pensar uma relação antitética entre virtù e fortuna é explicado

por Pocock da seguinte forma :“mais o indivíduo se apoia em sua virtù, menor sua necessidade de se

apoiar em sua fortuna e – uma vez que a fortuna é por definição inconfiável [unreliable] - mais seguro

ele está”, de forma "que estamos procurando [...] o indivíduo que adquire [poder] totalmente pelo

exercício de suas qualidades pessoais e não absolutamente como resultado de contingências e

circunstâncias fora de si”446. Se o confronto com a fortuna é a grande dificuldade para a inovação

política, a capacidade de inovar com sucesso, a virtù, deve ser pensada, como coloca Lefort, como "o

poder de se subtrair da desordem dos eventos; de se elevar acima do tempo, que [...] cassa tudo diante

de si; de agarrar a ocasião e, então, de a reconhecer; de introduzir, enfim, segundo os termos do autor,

uma forma em uma matéria”447 . Os grandes fundadores que servem de exemplos a Maquiavel são

os que tomaram da fortuna não mais que a ocasião, “que lhes deu a matéria para poderem introduzir

nela a forma que lhes aprouvesse”448. A relação antitética entre virtù e fortuna, da qual os heróis

443 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p.26 444 POCOCK, J.G.A. "Custom and Grace, Form and Matter: An Approach to Machiavelli's Concept of Innovation," in Martin Fleisher (ed.), Machiavelli and the Nature of Political Thought, New Fork: Atheneum, 1972, p.170 445 “[...] era possível isolar a relação antitética entre virtù e fortuna; e o pensamento de Maquiavel estava agora concentrado nisso” J.G.A. Pocock. The Machiavellian Moment: Florentine Political Thought and the Atlantic Republican Tradition, p.167. “A criação do Estado é primeiro apresentada como obra da virtù [...] esta virtù é definida como antítese da Fortuna” LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.364 446 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 167 447 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972 p.364 448 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 26

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fundadores dão o exemplo, isto é, a capacidade de se subtrair do caos imposto pela fortuna e impor

ordem somente pela própria ação, encontra na relação entre matéria e forma sua expressão mais

ajustada. Pocock explica que Quanto mais o inovador é pensado como subvertendo e substituindo uma estrutura de costume e legitimação previamente existente, mais ele terá de lidar com contingências do comportamento subitamente desorientado e maior será sua exposição à fortuna. Para obter o tipo ideal, portanto, devemos supor uma situação na qual a matéria não tenha forma e, acima de tudo, nenhuma forma previamente existente senão a dada pelo inovador449

Neste sentido, os heróis fundadores exemplificados por Maquiavel devem ser entendidos

como “legisladores no mais estreito sentido possível de fundadores de Estados [state-founders]”450,

pois “é a função do legislador impor a forma da politeia – a constituição - sobre a forma da politeuma,

o corpo de cidadãos”451. No entanto, aqui, falamos mais do que do stato em seu sentido limitado de

exercício efetivo do poder; falamos em algo mais parecido com o Estado, o corpo político, cidade ou

reinado. Começamos, assim, a entender o entorno mítico do qual é envolvido estes personagens. Fora

dele, no contexto medieval, não poderíamos pensar a figura do legislador e, junto dele, não

poderíamos pensar uma virtù (enquanto forma) como antítese da fortuna (enquanto matéria).

É preciso considerar que os grandes legisladores, como explica Pocock, têm "virtù tal que seu

comando sobre a occasione é absoluto”, com “habilidade incondicional para ditar a forma sobre a

matéria”, no entanto, isto faz deles uma “espécie de demiurgo, capaz de atualizar todas as

potencialidades por um único comando criativo, e muito além do nível de homens ordinários"452. Eles

“oferecem”, explica Lefort, “o modelo da mais alta ação política”453, mas isto partindo da “imagem

tradicional da ação política”454. Em uma contextualização histórica mais precisa: Maquiavel estaria

referindo-se a impor “forma sobre a matéria naquele sentido puro e incondicionado que Savonarola

pensara requerer ação direta da graça divina”. Em termos apocalípticos e providenciais tradicionais,

“o legislador era pensado como impondo prima forma, ele estava fazendo o mesmo trabalho que o

profeta proclamava como a ação da graça”455 .

Moisés, o profeta, é pensado por Maquiavel junto de Ciro, Teseu e Rômulo, legisladores. E,

449 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 169 450 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 168 451 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975 p. 169 452 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 170 453 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, p.363 454 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, p.364 455 POCOCK, J.G.A. "Custom and Grace, Form and Matter: An Approach to Machiavelli's Concept of Innovation," in Martin Fleisher (ed.), Machiavelli and the Nature of Political Thought, New York: Atheneum, 1972, p.171

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escreve Maquiavel, “ainda que não se deva discutir sobre Moisés, uma vez que foi um mero executor

das coisas ordenadas por Deus, ele deve ser admirado ao menos pela graça que o tornou digno de

falar com Deus”. Quanto aos outros exemplos, “se observarmos suas ações e ordenações particulares,

não nos parecerão discrepantes das de Moisés, que teve tão grande preceptor”456. Pocock comenta

que ao equiparar Moisés aos outros legisladores, “a linguagem de Maquiavel é [...] ortodoxa. Era

somente por Deus que um caos de particulares (matéria) poderia ser comandado em uma completude

(forma), e era somente pela graça e instrução divinas que um indivíduo poderia ser autorizado a fazê-

lo” 457. Permite-se, assim, uma “identificação entre o profeta e o legislador. Os dois estão tentando

uma tarefa para além dos poderes humanos, e os dois requerem mais que virtù normal” 458.Outro

ponto importante a ser pensado sobre inovação dos legisladores no contexto medieval e que também

os ligava à graça do profeta é de cunho moral. Pocock nos diz que, a virtù dos míticos legisladores,

fundadores de Estados, “impõe legitimidade em um mundo que nunca a conheceu”459. Os heróis

fundadores, escreve Maquiavel, encontram seus povos escravizados, dispersos ou descontentes em

relação a um império debilitado460. Portanto, como coloca Lefort, “sua glória é a de ter dado a unidade

e a liberdade a um povo disperso e oprimido” e, neste sentido, o sucesso destes fundadores

“harmoniza-se com a felicidade e enobrecimento de suas pátrias”461. Portanto, a virtù destes homens

não só os preserva contra o caos imposto pela fortuna, mas também mantém sua honra moral enquanto

homens excelentes.

No entanto, como explica Pocock, para Maquiavel, “o caso puro do profeta ou do legislador,

que encontra a matéria inerte [...] e molda [...] em forma de modo que não deve nada à fortuna, nunca

existe na realidade”462. “Encontrar um indivíduo incondicionado pela filiação social é próximo de

impossível”463. E, portanto, a referência aos heróis fundadores é uma "quase-solução”464 não o que

Maquiavel tem de definitivo a dizer sobre a fundação. Como bem demarca Pocock na passagem que

citamos acima, aqueles que que conseguiram perfeitamente impor sua virtù ao caos da fortuna, não

456 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p.26 457 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 170 458 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 171 459 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 167 460 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p.26 461 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard,, p.364 462 POCOCK, J.G.A. "Custom and Grace, Form and Matter: An Approach to Machiavelli's Concept of Innovation," in Martin Fleisher (ed.), Machiavelli and the Nature of Political Thought,New Fork: Atheneum, 1972, p.171-172 463 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 167 464 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, pp.167-168

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dependendo dela a não ser pela ocasião, constituem mais “tipo ideal” 465 do que propriamente um

modelo concreto. Em sentido semelhante, Lefort diz que, em O Príncipe, “a função realista dos mais

grandes exemplos é uma função simbólica”. Ele explica: “Não é necessário, nem, sem dúvida,

possível que o príncipe novo se identifique com os heróis fundadores” 466. Isto porque a relação entre

virtù e fortuna não pode ser meramente antitética. Esta relação resta como modelo - é preciso se fazer

independente da fortuna -, no entanto, esta independência envolve sempre alguma dependência. A

autonomia completa em relação à fortuna deve ser colocada como o ponto mais alto da mira do

arqueiro, que conhece a pouca virtù de seu arco.

Maquiavel explicita que mesmo os grandes fundadores “conquistam o principado com [...]

dificuldades”467. Estas dificuldades são as que acometem todo inovador: a necessidade de inovar, o

ataque partidário dos inimigos e a defesa ambígua dos amigos. No entanto, no caso da fundação, estas

dificuldades são mais pungentes e o confronto com a fortuna inevitável. A primeira tentativa de

resposta a estas dificuldades é a de pensar uma virtù capaz de se estabelecer antiteticamente com

relação à fortuna: uma virtù que não dependa da fortuna em nada, a não ser pela ocasião a ser provida

para que a virtù imponha sua forma. Como vimos, tal suposição é muito pouco provável - somente

os heróis fundadores, os legisladores clássicos, poderiam dar uma resposta satisfatória. No entanto, o

exemplo destes grandes fundadores serve de horizonte e não como objeto exato de imitação. Mas

como, se não transpor, encurtar a distância entre o mito e as possibilidades reais de ação? Como

observa Pocock, Maquiavel nos coloca diante de um estreitamento entre inspiração divina e

Realpolitik: “não devemos dizer que a inspiração divina está sendo rebaixada ao nível da realpolitik

sem adicionar que a realpolitik está sendo elevada ao nível da inspiração divina”468. Isto é, há uma

ponderação sobre quanto há de imitável nas ações dos que foram excelentes, dos fundadores

extraordinários ou profetas inspirados, para os providos de capacidades ordinárias, meramente

humanas. Com isso, deve-se notar, em primeiro lugar, que “nem mesmo no mundo sujeito à graça”469

poder-se-ia pensar a fundação como perfeita implementação de forma sobre matéria. Maquiavel busca

explicitar em que sentido os heróis fundadores puderam agir independentemente da fortuna, uma vez

que portadores de extraordinária virtù ou graça divina:

é necessário [...] examinar se esses inovadores agem por si mesmos ou dependem de outros, isto é, se para realizar sua obra precisam rogar ou podem forçar. No primeiro caso, acabam sempre mal e nada conseguem; mas, quando dependem apenas de si mesmos e podem forçar, é raro que corram perigo [...] a natureza dos povos é variável; e, se é fácil persuadi-los de

465 POCOCK, J.G.A. The Machiavellian Moment, Princeton, Princeton University Press, 1975, p. 169 466 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre: Machiavel. Paris: Gallimard, p.363 467 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 27 468POCOCK, J.G.A. The Machiavellian Moment, Princeton, Princeton University Press, 1975, p. 171 469 POCOCK, J.G.A. "Custom and Grace, Form and Matter: An Approach to Machiavelli's Concept of Innovation," in Martin Fleisher (ed.), Machiavelli and the Nature of Political Thought, New Fork: Atheneum, 1972, p.172

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147 uma coisa, é difícil firmá-los nessa persuasão. Por isso, convém estar ordenado de modo que, quando já não acreditarem, seja possível fazê-los crer à força.470

Certamente, aquele que é portador da graça divina ou de uma mítica virtù extraordinária pode

agir por si mesmo e não precisar rogar. Isto significa que faz parte da virtù extraordinária dos

fundadores míticos e dos profetas iluminados impor ordem ao caos de opiniões e interesses da

sociedade. Eles impõem esta ordem, impõem obediência, independentemente do consentimento pela

persuasão, porque estão em posse de poderes sobre-humanos ou de autorização divina. No entanto,

agora, esta capacidade de imposição está explicitada em termos mais alcançáveis à compreensão e às

capacidades humanas. Se não é o caso que comumente se possa impor ordem na variedade e nos

conflitos de interesses por meio de poderes sobre-humanos ou inspiração divina; é ainda o caso que

assim se possa fazer mesmo sem eles, por vias meramente humanas. “Eis por que todos os profetas

armados vencem, enquanto os desarmados se arruínam”471 escreve Maquiavel. Um profeta ou herói,

se de fato é portador da graça divina ou se efetivamente imortalizou seu nome, já é previamente

pensado como portador das vias necessárias para impor seu poder. No entanto, “o problema da

inovação é tal que a autorização e inspiração divinas gozadas pelo profeta fornecia uma – mas

somente uma – das respostas aceitáveis”472 nota Pocock. Se autorização e inovação divinas são algo

de extraordinário e incomum, o uso da força é, por outro lado, uma reconhecida realidade política:

Moisés era um profeta armado, mas não precisava ser menos profeta por causa de seu uso da espada. O profeta requer armas porque, enquanto inovador, ele não deve ser dependente da boa vontade contingente de outros, e deve, portanto, possuir os meios de compelir os homens quando deixam de crer nele [...] Maquiavel está dizendo que a inspiração e a missão do profeta não o livram do contexto político criado pela inovação e que ele deve continuar a usar a arma secular por razões inerentes a este contexto.473

Se nos limitamos a entender a virtù dos legisladores como sobre-humana e, por isso, capaz de

solucionar a vulnerabilidade à variabilidade do comportamento humano nos contextos de inovação,

perdemos de vista qualquer possibilidade de imitação, mesmo aquela imitação incerta do arqueiro

prudente. No entanto, se nos questionamos sobre as vias pelas quais se efetivou a vontade divina ou

a virtù excelente, então podemos dimensionar até que ponto a imitação é possível. Assim, Lefort nos

explica que, “certamente, é na apologia da força que Maquiavel parece se deter, mas este tema revela

[...] sua função [...] de nos livrar do mito de uma história regrada pela Providência”474. O uso da

força é a parte imitável da excelência dos heróis fundadores. Ela é uma evidência ordinária da vida

470 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 27 471 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 27 472 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 170 473 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 171 474 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre: Machiavel. Paris: Gallimard, p.363

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política. O uso da força é, portanto, a alta mira na qual os que se tornam príncipes podem tentar atingir

se pensados fora do mito ou da graça, se pensados em suas realidades efetivas e limitadas. Considerar

a virtù enquanto antítese da fortuna na medida em que é capacidade do uso da força é o que permite

uma comparação de Moisés e os fundadores míticos com Savonarola:

Moisés, Ciro, Teseu e Rômulo não teriam conseguido que suas constituições fossem obedecidas por tanto tempo se estivessem desarmados. Em nossos tempos foi o que aconteceu ao frei Girolamo Savonarola, que se arruinou com suas novas ordenações a partir do momento em que a multidão começou a não acreditar nelas e ele não dispunha de meios nem para manter firmes os que haviam acreditado nem para fazer crer os descrentes. 475

A questão de Maquiavel não é se Savonarola é um falso profeta, desprovido de verdadeira graça e

que, por isso, falhou em estabelecer suas ordenações. Mesmo que Savonarola estivesse guiado pela

graça e pela sabedoria que instituiria prima forma a Florença, ele não fez o uso da força tal como um

verdadeiro profeta, tal como Moisés.

O exemplo de Savonarola e, junto dele, implicitamente, a possibilidade de se pensar o falso

profeta abrem caminho para que Maquiavel reflita sobre a fundação fora do domínio da graça e do

mito heroico. Ele termina o sexto capítulo acrescentando “a tão elevados exemplos [...] outro menor

[...] é o de Hierão, que, de homem privado, tornou-se príncipe de Siracusa”. Para pensar este exemplo,

que Maquiavel distingue com uma virtù menor do que aquela dos fundadores míticos, o autor salienta

a habilidade militar de Hierão. Foi primeiramente escolhido como “capitão, e a partir daí mereceu

tornar-se [...] príncipe”, alterou suas “milícias” e seus “soldados” a seu favor476. Nos limites humanos,

pelo uso da força pode-se aproximar daquela virtù que se pretende antítese da fortuna. O exemplo de

Hierão, entretanto, ainda é um exemplo antigo. Se não está encoberto de mitos, pode estar repleto de

imprecisões que o tempo escondeu. Maquiavel nos traz cada vez mais próximos do campo do

humanamente possível e nos apresenta um exemplo que nem se pretendia obra da graça divina, nem

estava fora de alcance da memória dos contemporâneos do autor: Francesco Sforza, que, “pelos

devidos meios e com uma grande virtù, passou de homem privado a duque de Milão” 477. Hierão e

Sforza nos apresentam possibilidades de uma aproximação das capacidades humanas com a virtù

extraordinária dos legisladores clássicos, pois, pelo uso da força, estes homens puderam se equiparar

em alguma medida com os extraordinários fundadores, estabelecendo uma relação antitética, isto é,

de independência, em relação à fortuna.

No entanto, há uma distinção demarcada, um limite claro das potencialidades destes dois

exemplos. Lefort nota que “os dois são de tão alta virtù que mantiveram sem penas aquilo que

475MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 28 476 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 28 477 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p. 30

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conquistaram ao preço de grandes perigos, mas que não foram, nem um, nem o outro, fundadores, e

estabeleceram-se pela violência; e o segundo, certamente, mais preocupado com sua segurança do

que com o interesse do Estado”478. Precisamos ser cuidadosos com as palavras de Lefort aqui, pois

ele aponta para os fundamentais limites da ação inovadora de Sforza e Hierão diante dos exemplos

elevados elencados no início do sexto capítulo. Lefort nos diz que estes personagens não foram

fundadores. Com isso, ele aponta para o fato de que o feito de Sforza e Hierão foi o de meramente

passar de homens privados a príncipes. Fundaram, certamente, seus stati naquele sentido limitado de

se estabelecerem no poder; mas não fundaram, com isso, o corpo político, não deram unidade a povos

e nações. Este fato os distancia consideravelmente dos excelentíssimos fundadores míticos por seu

escopo de inovação ser mais limitado. Eles não são legisladores, sua inovação não guarda todas as

consequências da inovação dos legisladores, eles são, mais precisamente, príncipes novos. Pocock

escreve que “a palavra stato – normalmente usada por Maquiavel [...] no sentido de ‘governo sobre

os outros’ - não parece denotar o que o legislador traz à existência, uma comunidade política

altamente viável, estabilizada pela [...] virtù” do fundador. Enquanto meramente estabelecendo e

mantendo seu stato, o “novo príncipe [...] toma posse de uma sociedade já estabilizada pelos seus

costumes próprios, e sua tarefa [...] é substituir a ‘segunda natureza’ com outra”479.

Pocock nota como a compreensão apurada do sentido de stato elaborada por Hexter

(analisada por nós no primeiro capítulo da dissertação) revela muito sobre o como Maquiavel vê a

condição do príncipe novo:

J. H. Hexter mostrou que a frase mais frequentemente usada por Maquiavel para descrever os propósitos do novo príncipe é mantenere lo stato, e que isto carrega implicações de curto termo; parece significar pouco mais do que manter-se na posição de poder e insegurança que a inovação trouxe. Deste ponto de vista, o príncipe não deve olhar mais à frente na esperança de atingir para seu stato a quase imortalidade atingida pela criação do legislador [...] Stato significa que se está sempre com um olho nos perigos imediatos; virtù é aquilo pelo qual se resiste a eles, não aquilo pelo qual se emancipa da necessidade de temê-los [...] A virtù do legislador é bem diferente; ela constrói nações para durar 480

Os grandes legisladores e profetas servem de modelo ou horizonte para uma concepção de virtù como

independência ou antítese da fortuna. No entanto, este modelo não é completamente realizável, pois,

em geral, as forças da fortuna se impõem inevitavelmente nos contextos de inovação. Alguns podem,

pelo uso da força, aproximar-se da independência das adversidades da fortuna própria da virtù

extraordinária dos grandes legisladores e profetas. No entanto, esta aproximação ainda é insatisfatória

para responder completamente a questão do caso limitado do príncipe novo, daqueles que meramente

478 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre: Machiavel. Paris: Gallimard, p.370 479 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 175 480 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, pp. 175-176

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de homens privados se tornam príncipes e precisam manter esta posição, seu stato em seu sentido

restrito de exercício efetivo do poder. A virtù e a relação com a fortuna são diferentes nestes casos.

Diferentemente do caso dos heróis fundadores, “a função da virtù” dos príncipes novos “não

é impor prima forma [...], mas perturbar velhas formas e mudá-las em novas”. Esta virtù não pode

ser antítese da fortuna, mas uma capacidade de convivência e confronto constante com ela, pois “o

que o novo príncipe é visto como estabelecendo é stato, uma forma de governo limitada, somente

parcialmente legitimada, somente parcialmente enraizada nos costumes”481. Esta nova concepção da

relação virtù-fortuna, que não as veem antiteticamente, é a mais apropriada para aqueles “novos

príncipes que não têm a virtù super-humana dos legisladores e profetas”482. Um novo modelo pode

então ser proposto por Maquiavel: o exemplo daqueles “que, somente pela fortuna, de homens

privados tornam-se príncipes”483. De todo modo, pensar sobre um exemplo tal seria, como coloca

Pocock, “de pouco interesse teórico”, pois alguém que conta somente com a fortuna logo deve se

arruinar. A hipótese só é de interesse na medida em que é "possível considerar o caso de um homem

usualmente endividado com a fortuna enquanto também possui habilidade fora da usual com a qual

ele neutraliza sua dependência.” 484

Este é o caso de César Bórgia. Maquiavel afirma sobre o Duque Valentino que desconhece

“preceitos melhores para dar a um príncipe novo do que os exemplos de suas ações”485. No entanto,

o que faz de César Bórgia o melhor exemplo de conduta a ser dado a um príncipe novo? Por que

Bórgia e não os fundadores míticos mencionados no sexto capítulo? O exemplo de César Bórgia

oferece os melhores preceitos a se dar a um príncipe novo porque sua “virtù e sua fortuna não estão

em uma simples relação inversa”486 Esta forma de relação com a fortuna é a mais apropriada para a

realidade concreta, para a verdade efetiva dos que passam de homens privados a príncipes que,

geralmente, se não o fazem pela fortuna, ao menos encontram-se muito dependentes dela para manter-

se. “César Bórgia é o paradigma do ‘príncipe novo’, porque teve de exercer sua ‘virtù’ em um

universo político onde todas as forças conspiram contra seu sucesso”487 comenta Bignotto. Pocock

explica que a relação do príncipe novo "com a fortuna não é aquela do fundador”, pois este incorpora

a “imagem da criatividade pessoal extraordinária imprimindo-se na circunstância como sobre uma

481 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 175 482 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 173 483 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p. 29 484 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 173 485 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p. 30 486 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 174 487 BIGNOTTO, Newton.Maquiavel republicano. São Paulo, SP: Loyola, 1991, p.130

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tábula rasa”. No lugar desta capacidade improvável de uma capacidade pessoal extraordinária, “a

tomada da occasione por Césare meramente o fez um cavaleiro [rider] da roda; ele entrou em uma

situação na qual ele deve muito à fortuna que pode, a qualquer momento, ser levada embora.”488.

Neste sentido, a virtù não pode ser meramente independência da fortuna, pois esta dependência é

inevitável.

Como coloca Felix Gilbert, “quando Maquiavel discutia os pré-requisitos para o sucesso, ele

dizia que tinha de haver não somente uma situação que permitisse a ação e um homem capaz de agir,

mas também tinha de haver uma ocasião favorável”.489 É neste sentido que pensar o caso de Bórgia

é de especial interesse. A virtù dos legisladores clássicos e profetas não precisa mais que da mera

ocasião para se efetivar. No entanto, são exemplos muito elevados e podemos esperar pouco da

tentativa de imitá-los. Em geral, o que efetivamente ocorre, especialmente no cenário italiano em que

vivia Maquiavel, é que as instabilidades políticas, os acontecimentos imprevisíveis, o estado caótico

de coisas é o que levava um homem privado à posição de príncipe; e que estes príncipes não visavam

e nem podiam visar mais que manutenção de seus stati e uma tentativa de ao menos transferi-los

hereditariamente para uma próxima geração. Nestas condições, a virtù tem de ser pensada não como

antítese pura da fortuna, mas a partir da imagem de uma “competindo [...] contra a outra em um

embate pela superioridade” 490. Dessa forma, “a formulação de Maquiavel presumia o dinamismo de

uma cena constantemente cambiante, na qual a ação repentina pode trazer a assistência da

Fortuna”491. Esta cena constantemente cambiante, “esta contínua mudança”, explica ainda Gilbert,

“toma a forma de um embate; embate contínuo é uma condição permanente da vida política”,

especialmente se a pensamos como influenciada pela fortuna. O exemplo de Bórgia convida a pensar

a virtù, não como antítese e independência, mas como embate com a fortuna. Bórgia adequa-se mais

apropriadamente à crença maquiaveliana de que, em geral, diante da fortuna, “a oportunidade de

controlar eventos externos é oferecida ao homem somente em momentos breves e fugazes”. 492

No entanto, o exemplo de César Bórgia, por mais adequado aos contextos concretos das

contingências adversas, não se apresenta como uma solução para a fortuna, antes coloca seu problema

e dificuldade em outros termos. Problema este que posiciona Bórgia, como exemplo a ser seguido,

em uma situação parecida com a dos fundadores míticos. A questão que se coloca é: como é possível

imitar César Bórgia? Na medida em que estava constantemente envolto pela força da fortuna e,

488 POCOCK, J.G.A. The Machiavellian Moment, Princeton, Princeton University Press, 1975, p. 174 489 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence, Princeton University Press, 1965, p. 159 490 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence, Princeton University Press, 1965, pp. 195 491 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence, Princeton University Press, 1965, pp. 194 492 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence, Princeton University Press, 1965, pp. 195

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portanto, em combate incessante com ela; na medida, além disso, em que era um exemplo ainda vivo

na memória dos interlocutores diretos de Maquiavel; o exemplo de Bórgia abria caminho para uma

virtù humana, não envolta em narrativas míticas, nem pressupondo uma relação sobre-humana com

a fortuna (a antitética ou de pura independência). Entretanto, o exemplo do Duque Valentino e a

forma como o autor o aborda não parecem causar menos problemas para a imitação do que

apresentavam os exemplos extraordinários dos heróis fundadores. Quando se trata da imitação de

César Bórgia, Maquiavel não deixa de lado a metáfora do arqueiro prudente. Não se trata de imitar

completamente, mas adequar a imitação às condições.

Para bem entendermos em que sentido o exemplo de Bórgia não é mais acessível à perfeita

imitação do que os exemplos dos excelentes fundadores do sexto capítulo, precisamos estar atentos

para o que representava o exemplo de Bórgia aos interlocutores diretos de Maquiavel. Felix Gilbert

explica que aqueles que pensavam em política após a volta dos Medici à Florença não “estavam

completamente convencidos que uma política de cálculo racional [...] era de alguma forma aplicável

a seu próprio tempo de mudanças rápidas, inesperadas e quase miraculosas na cena política.” Dentre

as motivações para tanto estava “a curta e meteórica carreira de César Bórgia”, que alimentava uma

crescente crença por parte dos humanistas de que o “sucesso político no início do século XVI parecia

ter pouca conexão com cálculo racional”493. Se, por um lado, as ações dos fundadores míticos estavam

envoltas em mistérios, no sentido de que ultrapassavam a compreensão e, logo, a possibilidade de

imitação pelos homens ordinários; por outro, a carreira política de Bórgia, ainda viva na memória

dos italianos, não se dispõe tão facilmente à compreensão e imitação. Segundo Felix Gilbert, os

pensadores florentinos contemporâneos a Maquiavel “estavam profundamente perplexos pela

emergência de personalidades e líderes políticos cuja conduta não correspondia a suas ideias de uma

política baseada no cálculo racional”, eles “tentavam penetrar o segredo que podia explicar o sucesso

de ações que deveriam ter levado à ruína.”494. As palavras de Gilbert exprimem que o exemplo de

Bórgia não era completamente apreendido pelo raciocínio político de seu tempo, de forma que se

apresentava como um mistério, uma perplexidade ou um segredo a ser penetrado. Maquiavel também

estava ciente de que conduzir a política de acordo com a pura razão tinha seus limites. Ele era extremamente crítico da hesitação e do adiamento. Determinação e força de vontade eram as qualidades que deveriam permanecer contra toda razão [reason]. Sua descrição de César Bórgia sublinhava sua crença de que a decisão resoluta é inerentemente superior à hesitação que vem de se ponderar sobre todas as variáveis. 495

493 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence, Princeton University Press, 1965, pp. 122-123 494 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence, Princeton University Press, 1965, p. 123 495 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence, Princeton University Press, 1965, p. 157

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Maquiavel apresenta uma narrativa muito minuciosa das ações do Duque e às relaciona a

causas muito particulares ao seu contexto. E conclui, a partir de uma minuciosa narrativa, que

Quem, portanto, num principado novo, julgar necessário assegurar-se contra os inimigos, ganhar amigos, vencer pela força e pela fraude, fazer-se amado e temido pelo povo, ser obedecido e reverenciado pelos soldados, eliminar aqueles que podem ou devem ofendê-lo , restaurar com novos modos as antigas ordenações, ser severo e grato, magnânimo e liberal, eliminar as milícias infiéis, criar outras novas, manter as amizades dos reis e dos príncipes de modo que devam fazer tudo para beneficiá-lo ou refletir antes prejudicá-lo, não pode encontrar melhor exemplo do que as ações deste duque. 496

Esta passagem apresenta uma diversidade de capacidades variadas. Conseguimos reconhecer o

conselho geral de fazer o que for necessário para balancear incessantemente a dependência em relação

à força da fortuna, mas o que mais precisamente une todas estas ações? A particularidade extrema do

confronto com a fortuna não parece ser resolvida de forma definitiva ou completamente acessível

quando se considera o exemplo de Bórgia e se o recomenda. Aprendemos, antes, que, em vista da

“demanda pela coincidência de virtù individual com circunstâncias favoráveis [...] nenhuma

qualidade humana especial garantirá o sucesso na política; as qualidades pelas quais o homem pode

controlar os eventos variam de acordo com as circunstâncias” 497. O exemplo do duque é polêmico

para os contemporâneos de Maquiavel e sentido por eles como um segredo a ser penetrado. Além

disso, é preciso notar que o Duque Valentino não foi vitorioso contra a fortuna e não pôde terminar

sua vida enquanto um príncipe, sendo jogado de volta à condição privada e depois morto. Portanto,

imitar o Duque como faria um arqueiro de pontaria muito precisa seria mirar a ruína.

O exemplo de César Bórgia, portanto, não resolve as dificuldades envolvidas na fundação. A

capacidade de passar de homem privado a príncipe, a capacidade de fundar, permanece em Maquiavel

sendo algum tipo de mistério, de segredo a ser penetrado. No entanto, o enfoque e as razões para este

mistério mudam profundamente. Não é o mistério da fé, da providência superior; nem o de como

recuperar uma antiga virtù heroica presente nos legisladores clássicos. Trata-se do mistério da

contingência extrema, extremamente difícil de ser apreendida pelos humanos e ordenada pelas suas

ações. Esta mudança de enfoque, entretanto, tem consequências profundas. Se, do ponto de vista de

uma busca de verdade certa e apurada sobre a política, Bórgia permanece uma dúvida, do ponto de

vista da verdade efetiva e do aconselhamento útil, seu exemplo pode e deve ser aproveitado. Isto

porque o que se aconselha sobre Bórgia não são suas condutas em específico, mas sua atitude diante

da fortuna: uma atitude incansável de disposição constante de ânimo e coragem.

496 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p. 36 497 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence, Princeton University Press, 1965, p. 195

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Pocock nos diz sobre o exemplo de César Bórgia que “Maquiavel era notoriamente fascinado

por esta figura; e, tanto foi escrito assumindo-se que ele é o herói de O Príncipe e de que os temas

centrais do livro devem todos ser entendidos em referência a esta função, que é desejável definir o

exato status que ele ocupa no livro”498. O escopo de nossa dissertação não permite uma análise

acurada da posição exata assumida por Bórgia em O Príncipe, nem uma discussão aprofundada da

tese de que ele seria o “herói” do livro. De qualquer modo, parece que há motivos razoáveis para

considera-lo central no que diz respeito ao problema da inovação, bem como à reflexão sobre a força

da fortuna como resultante da inovação e sobre a virtù como capacidade de enfrentar a força da

fortuna. A partir de seu exemplo, Maquiavel mostra o caso mais extremo de inovação: a passagem de

homem privado a príncipe. Mostra ainda que a dependência com relação à fortuna é praticamente

inevitável nesta passagem e que, portanto, a virtù é a capacidade não só de superar a fortuna, mas de

estar em constante embate com ela.

498 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 173

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Considerações finais

Buscamos mostrar ao longo desta dissertação como Maquiavel aborda o tema da inovação

política em O Príncipe, um tratado político sobre os principados que confere especial atenção à

inovação, mais especificamente, à conquista e à fundação dos principados. O Príncipe é escrito no

estilo de um livro de aconselhamento. Portanto, é um livro de aconselhamento aos novos príncipes.

Na medida em que aborda o stato dos príncipes pelo aconselhamento, na medida em que pretende

que suas observações sejam úteis aos que são príncipes ou querem ser príncipes, Maquiavel busca

ponderar sobre as dificuldades e necessidades impostas para tanto. Ele constata que a inovação

política é o fator que mais profundamente influencia nas dificuldades e necessidades impostas aos

governantes, e assim busca discorrer sobre as dificuldades e necessidades da inovação política.

Tratando-se do governo dos principados, inovar significa destituir antigos modos e ordenações de

governo e introduzir novos. Na medida em que novos modos e ordenações entram em conflito com

os costumes estabelecidos entre seus novos súditos, sua introdução se torna dificultosa. Portanto, a

relação entre costume e inovação determina centralmente as dificuldades e necessidades sobre as

quais Maquiavel aconselha em O Príncipe, obra que pode se lida como a investigação sobre a

inovação e suas consequências.

Se, nos principados hereditários, a menor dificuldade de manter o principado está associada à

menor necessidade da inovação, nos principados novos a necessidade de inovação introduz uma série

de dificuldades e a habilidade exigida do príncipe novo é muito mais complexa e nada ordinária.

Portanto, o aconselhamento também se torna mais complexo. Duas constatações antagônicas devem

ser consideradas para abordar o problema da inovação: por um lado, a inovação política é muito

dificultosa e perigosa, na medida em que se faz contra o costume e a experiência; por outro, a inovação

se apresenta muitas vezes como necessidade, como a condição para o poder do príncipe. O

aconselhamento de Maquiavel busca ponderar quanto às vias de ação possíveis entre estas duas

constatações. Portanto, o conselho da mera contemporização segundo os acidentes como via mais

segura de ação é duramente limitado pela necessidade de inovar. Maquiavel, como vimos, examina

duas condições distintas de inovação, dois casos de príncipes novos, que necessitam enfrentar a

dificuldade da inovação: primeiramente, a conquista e o conquistador; depois, o principado

inteiramente novo e aquele que passa de homem privado a príncipe pela fundação do principado.

No caso da conquista, Maquiavel nos mostra que a habilidade exigida do príncipe é a

prudência, a capacidade de antever e se precaver pelo exame apurado das condições, bem como a de

agir ou não agir nos momentos apropriados. Se o príncipe conquistador é prudente, pode ponderar

sobre a efetividade de sua ação diante dos antagonismos da inovação que realizou e decidir

apropriadamente como se conduzir, pois a prudência permite o cálculo apropriado na deliberação

política. No entanto, para se utilizar da noção de prudência na avaliação da conquista, para falar da

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prudência do conquistador, Maquiavel precisa flexibilizá-la, porque esta noção era tradicionalmente

pensada em harmonia com a ordem estabelecida de costume.

No caso da fundação do stato ou da passagem de homem privado a príncipe, as dificuldades

e necessidades impostas pela inovação são as mais elevadas. O príncipe deve à inovação não somente

sua conquista, mas sua posição mesma enquanto príncipe, de tal forma que as dificuldades e

necessidades da inovação assumem um caráter perigoso. Aquele que passa de homem privado a

príncipe não pode contar com nenhuma estrutura anterior de costumes. O espaço para a ponderação

prudente se torna extremamente limitado, pois a resistência ao inovador é esmagadoramente maior

que as possibilidades de mobilizar as condições estabelecidas em seu favor. Assim, a capacidade do

príncipe passa a ser descrita pelo autor nos termos da limitação da ação humana. Por esta razão, torna-

se eminente a relação entre virtù e fortuna, que exprime mais as limitações da ação humana do que

propriamente uma asseveração de suas possibilidades. A noção de virtù, enquanto habilidade de

relação com a fortuna, é uma capacidade extremamente elevada, que parece estar fora do escopo das

capacidades humanas ordinariamente disponíveis. Para bem aconselhar aqueles que de homens

privados se tornam príncipes é preciso ponderar sobre em que medida eles têm virtù e podem enfrentar

a fortuna.

Passa a interessar a Maquiavel que a fortuna dificilmente pode ser excluída da fundação. A

ponderação de Maquiavel sobre a relação virtù-fortuna, entretanto, não se pretende definitiva. Ele

não busca delimitar propriamente e com certeza o que é virtù, mas em que medida se pode atingi-la,

mesmo que imperfeitamente. Tampouco busca oferecer uma cura definitiva para os males da fortuna,

mas refletir sobre como sobreviver a eles . Quando se trata da fundação, é premente avaliar a

capacidade humana de moldar o curso da política diante de forças incontroláveis, diante da influência

da fortuna. No entanto, esta avaliação é muito delicada, pois nem uma resposta resignada à

incapacidade do homem, nem uma resposta muito otimista sobre suas capacidades são satisfatórias.

Quando se passa para o exame da virtù dentro dos limites humanos, revelam-se aqueles aspectos da

ação humana que ultrapassam a ação calculada e a razoabilidade.

Podemos ver isso notadamente expresso no exemplo de César Borgia. A partir de seu

exemplo, Maquiavel mostra o caso mais extremo de inovação e que a dependência com relação à

fortuna é praticamente inevitável na passagem de homem privado a príncipe e que, portanto, a virtù

é a capacidade não só de superar a fortuna, mas de estar em constante embate com ela. O exemplo de

Bórgia convida a pensar a virtù como embate com a fortuna. Bórgia adequa-se ao fato de que, em

geral, diante da fortuna, controlar eventos externos é uma oportunidade breve e efemeramente

oferecidas aos humanos. A longa narrativa que Maquiavel faz das ações do duque exprimem

justamente a dificuldade em se apreender as inovações radicais na cena política. As muitas

particularidades, a exigência de disposições antagônicas, a capacidade de agir com a cabeça e o

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fígado, de mudar rapidamente de planos ou improvisar: essas são as exigências da fortuna quando os

homens ousam inovar. A partir do exemplo deste personagem, podemos apreciar a busca pela

abordagem da inovação política dentro dos limites da ação possível aos humanos.

De todo modo, Maquiavel busca abordar esta dificuldade de modo que o conselho útil ainda

possa operar. Quando se trata da imitação de César Bórgia, ele não deixa de lado a metáfora do

arqueiro prudente. Não se trata de imitar completamente, mas adequar a imitação às condições. O

exemplo de César Bórgia, portanto, não resolve as dificuldades envolvidas na fundação. A capacidade

de passar de homem privado a príncipe, a capacidade de fundar, permanece em Maquiavel sendo

algum tipo de mistério, de segredo a ser penetrado. Trata-se do mistério da contingência extrema,

extremamente difícil de ser apreendida pelos humanos e ordenada pelas suas ações. Se, do ponto de

vista de uma busca pela verdade certa e apurada sobre a política, Bórgia permanece uma dúvida, do

ponto de vista da verdade efetiva e do aconselhamento útil, seu exemplo pode e deve ser aproveitado.

Isto porque o que se aconselha a partir de Bórgia não são suas condutas particulares, mas sua atitude

diante da fortuna: uma atitude incansável de disposição constante de ânimo e coragem

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Anexo: Di Fortuna = Da Fortuna Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich (Cadernos de ética e filosofia politica, n18, 2011)

DI FORTUNA

A GIOVAN BATTISTA SODERINI

Con che rime giammai o com che versi

canterò io del regno di Fortuna,

e de’ suo’ casi prosperi e avversi?

E come iniuriosa ed importuna,

secondo iudicata è qui da noi,

sotto il suo seggio tutto il mondo aduna?

Temer, Giovan Battista, tu non puoi,

né debbi in alcun modo aver paura

d’altre ferite che de’ colpi suoi;

perché questa volubil creatura

spesso si suole oppor con maggior forza,

dove più forza vede aver natura.

Sua natural potenza ogni uomo sforza;

e ‘l regno suo è sempre violento,

se virtù eccessiva non l’ammorza.

Ond’io ti priego che tu sia contento

considerar questi miei versi alquanto,

se ci sia cosa di te degna drento.

E la diva crudel rivolga intanto

ver di me gli occhi sua feroci, e legga

quel ch’or di lei e del suo regno canto.

E benché in alto sopra tutti segga,

DA FORTUNA

A GIOVAN BATTISTA SODERINI

Com quais rimas ou com quais versos, jamais,

cantarei eu o reino da Fortuna

e seus casos prósperos e adversos?

E como, injuriosa e inoportuna,

conforme aqui a julgamos,

sob seu trono todo o mundo reúne?

Temer, Giovan Battista, não podes,

nem deves, de modo algum, ter medo

de outras feridas que não as de seus golpes;

porque esta volúvel criatura

freqüentemente se opõe com maior força,

onde maior força vê ter a natureza.

Sua natural potência cada homem obriga,

e seu reino é sempre violento,

se uma grande virtù não o amortece

E te peço que fiques contente

ao considerar meus versos

se tiver neles algo digno de ti.

E a diva cruel volta, no momento,

para mim seus olhos ferozes, e lê

o que canto dela e de seu reino.

E, ainda que, no alto, sobre todos sente

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comandi e regni impetuosamente,

chi del suo stato ardisce cantar vegga.

Questa da molti è detta onnipotente,

perché qualunche in questa vita viene,

o tardi o presto la sua forza sente.

Costei spesso gli buon sotto i piè tiene,

gl’improbi innalza; e se mai ti promette

cosa veruna, mai te la mantiene.

E sottosopra e regni e stati mette

Secondo ch’a lei pare, e’ giusti priva

del bene che agli ingiusti larga dette.

Questa incostante dea e mobil diva

gl’indegni spesso sopra un seggio pone,

dove chi degno n’è, mai non arriva.

Costei il tempo a suo modo dispone;

questa ci esalta, questa ci disface,

senza pietà, senza legge o ragione

Né favorire alcun sempre le piace

per tutt’i tempi, né sempre mai preme

colui che ‘n fondo di sua rota giace.

Di chi figliuola fussi, o di che seme

nascessi, non si sa; ben si sa certo

ch’infino a Giove sua potenzia teme.

Sopra un palazzo d’ogni parte aperto

regnar si vede, e a verun non toglie

l’entrar in quel, ma è l’uscir incerto.

Tutto il mondo d’intorno vi si accoglie,

desideroso veder cose nove,

e pien d’ambizione e pien di voglie.

comande e reine impetuosamente,

vê quem ousa cantar o seu estado.

Esta, por muitos é dita onipotente,

porque qualquer um que venha a esta vida,

cedo ou tarde sente sua força.

Ela tem freqüentemente os bons sob seus pés,

enquanto ergue os ímprobos; e se alguma vez te

[promete

alguma coisa, jamais mantém a promessa.

De cabeça para baixo coloca reinos e estados

segundo seu capricho, e priva os justos,

do bem que aos injustos oferece largamente.

do qu

Esta inconstante deusa e móvel diva

os indignos freqüentemente põe sobre um trono

onde quem é digno jamais chega.

Ela dispõe o tempo ao seu modo;

exalta este, derruba aquele,

sem piedade, sem lei ou razão.

Nem favorecer sempre o mesmo a apraz,

por todo o tempo, nem preme sempre

alguém que no mais baixo de sua roda jaz.

De quem é filha, ou de que semente

nasceu, não se sabe; o que é certo

é que mesmo Júpiter teme sua potência.

Sobre um palácio totalmente aberto

se vê reinar, e a ninguém impede

a entrada, mas o partir é incerto.

Todo o mundo reúne-se ao seu redor,

desejoso de ver coisas novas,

cheio de ambições e de vontades.

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Lei si dimora in su la cima, dove

la vista sua a qualunque uom non niega;

ma piccol tempo la rivolve e muove.

E ha duo volti questa antica strega,

l’un fero e l’altro mite; e mentre volta,

or non ti vede, or ti minaccia, or prega.

Qualunque vuole entrar, benigna

[ascolta;

ma con chi vuole uscirne poi s’adira,

e spesso del partir gli ha la via tolta.

Dentro, con tante ruote vi si gira

quant’è vario il salire a quelle cose

dove ciascun che vive pon la mira.

Sospir, bestemmie e parole iniuriose

s’odon per tutto usar da quelle genti,

che dentro al segno suo fortuna ascose;

e quanto son più ricchi e più potenti,

tanto in lor più discortesia si vede,

tanto son del suo ben men conoscenti.

Perché tutto quel mal ch’in voi

[procede,

s’imputa a lei; e s’alcun ben l’uom truova,

per sua propria virtude averlo crede.

Tra quella turba variata e nuova

di que’ conservi che quel loco serra,

Audacia e Gioventù fa miglior pruova.

Vedevisi il Timor prostrato in terra,

Tanto di dubbii pien, che non fa nulla;

poi Penitenzia e Invidia li fan guerra.

Quivi l’Occasion sol si trastulla,

Ela permanece no topo, onde

jamais recusa seu olhar a qualquer homem;

mas, em pouco tempo, o desvia e move.

E ela tem duas faces, esta antiga bruxa,

uma feroz e a outra tranqüila; e, no momento em que a

[volta,

ora não te vê, ora te ameaça, ora te convida.

A quem quer que queira entrar, benigna ela

[escuta;

mas, com quem quer sair depois, se ira,

e, freqüentemente, impede a passagem.

Dentro, são tantas rodas que se vêem rodar

quão variado é o subir até aquelas coisas

que cada um que vive tem em mira.

Suspiros, blasfêmias e palavras injuriosas

se ouvem em toda parte daquelas pessoas

que pela Fortuna foram escondidas em seu signo;

e quanto mais ricos e poderosos se tornam,

tanto mais descortesia se vê neles,

tanto são de seus bens pouco reconhecidos.

Porque todo mal que vos ocorre

se atribui à ela; e se algum bem o homem encontra,

crê tê-lo adquirido por sua própria virtude.

Entre aquela turba variada e nova

daqueles que naquele lugar se encontram encerrados,

Audácia e Juventude são as que mais se destacam.

Se vê o Temor prostrado em terra,

com tantas dúvidas que nada faz

Penitência e Inveja depois lhe fazem guerra.

Ali a Ocasião apenas se diverte

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e va scherzando fra le ruote attorno

la scapigliata e semplice fanciulla;

e quelle ruoton sempre notte e giorno,

perché il ciel vuole (a cui non si contrasta)

ch’Ozio e Necessità le volti intorno.

L’una racconcia il mondo, e l’altro il

[guasta.

Vedesi d’ogni tempo e ad ogni otta

quanto val Pazienzia e quanto basta.

Usura e Fraude si godono in frotta

potenti e ricchi; e tra queste consorte

sta Liberalità stracciata e rotta.

Veggonsi assisi sopra de le porte

che mai, come s’è detto, son serrate

senz’occhi e senza orecchi Caso e Sorte.

Potenzia, onor, ricchezza e sanitate

stanno per premio; per pena e dolore,

servitù, infamia, morbo e povertate.

Fortuna il rabbioso suo furore

dimostra con quest’ultima famiglia;

quell’altra porge a chi lei porta amore.

Colui con miglior sorte si consiglia,

tra tutti gli altri che in quel loco stanno,

che ruota al suo voler conforme piglia;

perché gli umor ch’adoperar ti fanno,

secondo che convengon con costei,

son cagion del tuo bene e del tuo danno.

Non però che fidar ti possa in lei

né creder d’evitar suo duro morso

suo’ duri colpi impetuosi e rei;

e vai brincando entre e em torno das rodas,

a descabelada e simples donzela.

As rodas giram sem cessar dia e noite,

porque o céu o quer (a quem não se contraria)

que o Ócio e a Necessidade girem em torno delas.

Uma conserta o mundo e o outro o estraga.

Se vê, todo tempo e a cada instante,

o quanto vale a Paciência e o quanto ela basta.

o qua

Usura e Fraude divertem-se em grupo

potente e rico; e entre estes dois companheiros,

está a Liberalidade, estraçalhada e rota.

Se vêem sentadas, acima das portas

que jamais, como já se disse, são fechadas

sem olhos e sem orelhas, Caso e Sorte.

Potência, honra, riqueza e saúde

são os prêmios, por pena e dor,

servidão, infâmia, doença e pobreza.

Fortuna, o raivoso seu furor

demonstra com esta derradeira família,

aquela outra dá a quem ela tem amor.

O que melhor sorte consegue;

entre todos os outros que estão naquele lugar,

é que aquele que pega a roda segundo o seu querer;

porque os humores que usares em tua escolha,

segundo o que para ela é conveniente

será a razão de teu bem e de teu dano.

Isto não quer dizer, porém, que tu possas

[confiar nela

nem crer evitar sua dura mordida

seus duros golpes, impetuosos e maus.

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perché, mentre girato sei dal dorso

di ruota per allor felice e buona

la suol cangiar le volte a mezzo il corso;

e, non potendo tu cangiar persona

né lasciar l’ordin di che ‘l ciel ti dota

nel mezzo del cammin la t’abbandona.

Però, se questo si comprende e nota,

Sarebbe un sempre felice e beato,

che potessi saltar di rota in rota;

ma perché poter questo ci è negato

per occulta virtù che ci governa,

si muta col suo corso il nostro stato.

Non è nel mondo cosa alcuna eterna:

Fortuna vuol così, che se n’abbella,

acciò che ‘l suo poter più si discerna.

Però si vuol lei prender per sua stella

e quanto a noi è possibile, ogni ora

accomodarsi al variar di quella.

Tutto quel regno suo, dentro e di fuora

istoriato si vede e dipinto

di que’ trionfi de’ qua’ più s’onora.

Nel primo loco, colorato e tinto,

si vede come già sotto l’Egitto

il mondo stette subiugato e vinto:

e come lungamente il tenne vitto

con lunga pace, e come quivi fue

ciò ch’è di bel ne la natura scritto;

veggonsi poi gli Assirii ascender sue

ad alto scettro, quand’ella non volse

che quel d’Egitto dominassi piue;

Porque, enquanto tu és girado pelas costas,

pela roda, agora feliz e boa,

ela cos ela costuma mudar os giros no meio do curso;

e, não podendo tu mudar de pessoa

nem a nem bandonar a ordem da qual o céu te dota,

no no meio do caminho ela te abandona.

Porém, se isto se compreende e nota,

seria sempre feliz e beato,

quem pudesse saltar de roda em roda.

Mas, porque este poder nos é negado

pela oculta virtù que nos governa,

muda, com seu curso, o nosso estado.

Neste mundo, nenhuma coisa é eterna:

a fortuna o quer assim, disso ela se embeleza,

a fim de que seu poder mais se distinga.

Mas se quer ser conforme sua estrela

quanto a nós, é possível, a cada hora,

acomodar-se ao variar daquela.

Todo seu reino, dentro e fora,

ilustrado se vê, e pintado,

com os triunfos dos quais mais se honra.

Em primeiro lugar, colorido e pintado,

se vê como já sob o Egito

o mundo esteve subjugado e vencido:

e como longamente ele venceu,

com duradoura paz, e como então

o que é belo na natureza se escreveu.

Se vêem depois os Assírios ascenderem

ao domínio supremo, quando ela não quis

que o Egito dominasse mais;

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poi, come a’ Medi lieta si rivolse;

da’ Medi a’ Persi: e de’ Greci la chioma

ornò di quello onor ch’a’ Persi tolse.

Quivi si vede Menfi e Tebe doma,

Babilon, Troia e Cartagin con quelle,

Ierusalem, Atene, Sparta e Roma.

Quivi si mostran quanto furon belle

alte, ricche, potenti e come al fine

fortuna a’ lor nimici in preda dielle.

Quivi si veggon l’opre alte e divine

de l’imperio roman, poi, come tutto

il mondo infranse con le sue rovine.

Come un torrente rapido, ch’al tutto

superbo è fatto, ogni cosa fracassa,

dovunque aggiugne il suo corso per tutto;

e questa parte accresce e quella

[abbassa,

varia le ripe, varia il letto e ‘l fondo

e fa tremar la terra donde passa;

così Fortuna, col suo furibondo

impeto, molte volte or qui or quivi

va tramutando le cose del mondo.

Se poi con gli occhi tuoi più oltre

[arrivi,

Cesare e Alessandro in una faccia

vedi fra que’ che fur felici vivi.

Da questo esempio, quanto a costei

[piaccia,

quanto grato le sia, si vede scorto,

chi l’urta, chi la pigne o chi la caccia.

depois, como aos Medas se volta alegre,

dos Medas aos Persas: e a cabeleira dos Gregos

ornou com aquela honra que tirou dos Persas.

Aqui se vê Mênfis e Tebas domados,

Babilônia, Tróia e Cartago com aquelas,

Jerusalém, Atenas, Esparta e Roma.

Aqui se mostram como foram belas,

altas, ricas, potentes, e como, no fim,

a fortuna lhes deu como presa a seus inimigos.

Aqui se vêem as obras altas e divinas

do Império Romano; depois, como todo

o mundo se despedaçou com suas ruínas.

Como uma torrente rápida, que tão

soberba se tornou, cada coisa se despedaça

e em qualquer lugar é alcançada por seu curso

e esta parte cresce e aquela abaixa,

variam as margens, varia o leito e o fundo,

e faz tremer a terra por onde passa;

assim a Fortuna, com seu furibundo

ímpeto, muitas vezes, aqui ou ali

vai transmutando as coisas do mundo.

Se, depois, com teus olhos, puderes chegar bem

[longe,

César e Alexandre, em uma face,

vês entre os que foram felizes na vida.

Por esse exemplo se vê com clareza

quanto a esta apraz, quão agradável lhe seja,

quem a bate, quem a empurra ou quem a caça.

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Pur nondimanco al desiato porto

l’un non pervenne, e l’altro, di ferite

pieno, fu l’ombra del nimico morto.

Appresso questi son genti infinite,

che per cadere in terra maggior botto,

son con costei altissimo salite.

Con questi iace preso, morto e rotto

Ciro e Pompeio, poi che ciascheduno

fu da Fortuna infin al ciel condotto.

Avresti tu mai visto in loco alcuno

come una aquila irata si trasporta,

cacciata da la fame e dal digiuno?

E come una testudine alto porta

acciò che ‘l colpo del cader la ‘nfranga,

e pasca sé di quella carne morta?

Così Fortuna, non, ch’ivi rimanga,

porta uno in alto, ma che, ruinando,

lei se ne goda e lui cadendo pianga.

Ancor si vien dopo costor mirando

come d’infimo stato alto si saglia,

e come ci si viva variando.

Dove si vede come la travaglia

e Tullio e Mario, e li splendidi corni

più volte di lor gloria or cresce, or taglia.

Vedesi alfin che tra’ passati giorni

pochi sono e’ felici; e que’ son morti

prima che la lor ruota indrieto torni,

o che voltando al basso ne li porti.

Mesmo assim, ao desejado porto

um não chegou, e o outro cheio de feridas

foi à sombra do inimigo morto.

Em seguida, estas são gentes infinitas

que para cair na terra com tão grande impacto

devem ter subido com ela muito alto

Com estes jaz, preso, morto e roto.

Ciro e Pompeu, depois que cada um

foi enfim pela Fortuna ao céu conduzido.

Já vistes em algum lugar

Como uma águia irada se lança

empurrada pela fome e pelo jejum?

E como uma tartaruga leva para o alto

a fim de que o golpe da queda a rompa

e alimenta-se daquela carne morta?

Assim a Fortuna, não para que ali fique,

eleva-o alto, para que, arruinando,

ela se divirta e ele, caindo, se lamente.

Admirando os que vêm, depois

vê-se como de ínfimo estado,

alto se sobe e como ali se vive variando.

Onde se vê como ela atormenta

seja Túlio e Mário, e como tantas vezes

os esplêndidos cornos de sua glória ora cresce ora corta.

Vê-se, ao fim, que entre os dias que se passaram,

poucos são os felizes; e os que são mortos

antes que sua roda retorne ao início,

ou que, voltando para baixo os leve.