conselhos aos príncipes novos em o príncipe de...
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
Otávio Vasconcelos Vieira
Conselhos aos príncipes novos em O Príncipe de Maquiavel
Campinas, SP 2019
Otávio Vasconcelos Vieira
Conselhos aos príncipes novos em O Príncipe de Maquiavel
Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos exigidos para a obtenção do título de Mestre em Filosofia
Orientadora: Professora Dra. Yara Adario Frateschi
ESTE TRABALHO CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELO ALUNO OTÁVIO VASCONCELOS VIEIRA, E ORIENTADA PELO PROFA. DRA. YARA ADARIO FRATESCHI
Campinas, SP 2019
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 20/03/2019, considerou o candidato Otávio Vasconcelos Vieira aprovado. Profa. Dra. Yara Adario Frateschi (Orientadora)
Prof. Dr. Helton Machado Adverse
Prof. Dr. Rafael Rodrigues Garcia
A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Dedicatória
A Oneida, Clóvis, Cristiano e Bárbara
Agradecimentos Este trabalho não teria sido possível sem o suporte de pessoas que gostaria aqui de mencionar e imensamente agradecer. Professora Yara Frateschi, pelo excelente trabalho de orientação, preparo intelectual e profissional, dedicação e atenção, ensinamentos e correções, além do carinho e paciência. Os professores Rafael Garcia, Monique Hulshof, Márcio Damin e Helton Adverse, pelo tempo, atenção e cuidados dedicados e pelas observações e sugestões. Ao professor Hélio Alexandre da Silva por se disponibilizar a participar da banca de defesa e contribuir com uma leitura atenta. Ao Grupo de Filosofia Política, coordenado pela professora Yara Frateschi, que acompanharam e ajudaram intensamente no processo de pesquisa e composição do texto: Laissa Ferreira (esta surpresa incrível e inimaginável no meu caminho), Ana Cláudia Lopes Silveira: Anita (literalmente tendo lido desde meu primeiro texto na graduação, sou eternamente grato), Renata Romulo, Leonardo Renno, Paulo Bodziak, Nathália Rodrigues, Johnatas Ximenes, Igor Nunes, Nádia Junqueira e Klaus Ramalho. Também a três companheiros de estudos, que me apontaram questões importantes: Vinícius Gonzaga, Fabien Lins e Jéssica Rodrigues. Agradeço também a toda estrutura provida pelo IFCH, seus funcionários e professores. Em especial agradeço a Daniela Grigolletto e Sônia Miranda. Agradeço a Ari, Fatinha e Stela por aliviarem os golpes da Fortuna e não me deixarem morrer aos pés do inimigo. Também Cândida, pelos cuidados. Tio Nelsinho pelo interesse e pelas leituras. Ao CNPq (131826/2017-4), por dar o suporte financeiro necessário para a pesquisa. Por fim, e não menos importante, à minha família: Oneida, Clóvis, Bárbara, Silvana e meu grande amor, Cristiano.
– Agora reconheço-a – disse K. – Eis a venda nos olhos e aqui está a balança. Mas não tem asas nos calcanhares e não está prestes a começar a correr? – Sim – retorquiu o pintor –, é por exigência que sou obrigado a pintá-la assim; deverá representar, ao mesmo tempo, a Justiça e a Vitória. – Má combinação – disse K. sorrindo –, a Justiça deve permanecer imóvel, de outro modo, a balança põe-se a oscilar, e deixa de ser possível pesar equitativamente. – Fiz como o meu cliente indicou – afirmou o pintor. Franz Kafka, O Processo Sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros. É feia. Mas é realmente uma flor. Carlos Drummond de Andrade, A Flor e a Náusea
Resumo
A presente dissertação de mestrado pretende analisar O Príncipe de Maquiavel (1513, postumamente
publicado 1532). Questionamo-nos sobre o príncipe novo e no que consiste sua inovação política.
Maquiavel nos diz que seu opúsculo busca discutir o que é, de que espécies são e como se adquire,
mantem e perde o principado. Apresenta, portanto, um tratado político, especificamente, um sobre os
principados. Ele adiciona que este livro deve ser de interesse de um príncipe e, em especial, do
interesse de um príncipe novo. Investigamos em que medida um tratado político se faz do interesse
de um agente político e daquele do príncipe novo em especial. Pretendemos analisar O Príncipe
enquanto um livro de aconselhamento aos novos príncipes e explorar algumas consequências desta
abordagem. Mostramos que, na medida em que almeja o aconselhamento útil, enfatizando o preceito
retórico da verdade efetiva, para abordar o stato do príncipe, Maquiavel pondera sobre as dificuldades
e necessidades impostas ao governante do principado. Nesta investigação, Maquiavel enfatiza e
estrutura suas observações sobre a inovação política. Isto porque a inovação política é o fator que
mais profundamente altera as dificuldades e necessidades impostas aos governantes. Portanto, fator
sobre o qual mais é necessário o aconselhamento político. Nosso objetivo é entender esta abordagem
dada à inovação política por Maquiavel – enquanto dificuldade e necessidade sobre a qual se pode
aconselhar.
Palavras-chave: Maquiavel, O Príncipe, stato, necessidade, dificuldade, príncipe novo, inovação,
aconselhamento
Abstract
This dissertation aims at analyzing Machiavelli’s The Prince (c.1513, published 1532). We enquire
about the new prince and his political innovation. Machiavelli writes that his book aims at discussing
what is, which species there are, how to acquire, to maintain and how one loses one’s principality.
Thus, he presents a political treatise, specifically, one about principalities. He adds that the book
should be of interest to a prince and, specially, of interest to a new prince. We investigate how a
political treatise may be of interest to a political agent and to a new prince, specifically. We intend to
analyze The Prince as an advice book to new princes and explore some consequences of this
approach. We show that, inasmuch as he purposes at useful advice, focusing on effective truth, in
order to reason about the stato, Machiavelli ponders about the difficulties and necessities which are
imposed to princes. Within this investigation, he underlines political innovation and organizes his
book according to this problem. He does so, because political innovation is the factor which most
profoundly influences the difficulties and necessities imposed to rulers; hence, is the factor over
which political advice is most necessary. Our aim is to understand the approach given by Machiavelli
to political innovation – as difficulties and necessities over which it is possible to give advice.
Keywords: Machiavelli, The Prince, stato, necessities, difficulties, new prince, innovation, advice
Sumário
INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 11
CAPÍTULO 1: CONSELHOS AOS PRÍNCIPES: STATO E VERITÀ EFFETTUALLE ..................... 18
1. 1. PRINCIPADO E STATO .................................................................................................................. 22 1.1.1. STATI SÃO REPÚBLICAS OU PRINCIPADOS ............................................................................... 22 1.1.2. O STATO ENTRE AÇÃO E ORDENAÇÃO POLÍTICAS .................................................................... 33 1.2. A CONDUTA DOS PRÍNCIPES E SEUS CONSELHEIROS ................................................................... 57 1.2.1. ARTE DO STATO E ARTE DO CONSELHO: RETÓRICA, ESPELHOS DOS PRÍNCIPES E VERITÀ EFFETTUALLE .................................................................................................................................... 57 1.2.2 A TECEDURA DE O PRÍNCIPE: O EXAME DOS CONTEXTOS PELA DELIMITAÇÃO DAS DIFICULDADES E NECESSIDADES .................................................................................................................................. 74
CAPÍTULO 2: INOVAÇÃO POLÍTICA ENQUANTO DIFICULDADE E NECESSIDADE ............. 85
2.1. A INOVAÇÃO NOS PRINCIPADOS HEREDITÁRIOS ........................................................................... 94 2.2. A INOVAÇÃO DA CONQUISTA ....................................................................................................... 99 2.2.1. CONQUISTA E COSTUME ........................................................................................................... 99 2.2.2. A PRUDÊNCIA DOS CONQUISTADORES ...................................................................................... 105 2.2.3. A FLEXIBILIZAÇÃO DA NOÇÃO DE PRUDÊNCIA ......................................................................... 111
CAPÍTULO 3: FUNDAÇÃO DO STATO, PASSAGEM DE HOMEM PRIVADO A PRÍNCIPE E A RELAÇÃO ENTRE VIRTÙ E FORTUNA ...................................................................................... 117
3.1. A PASSAGEM DE HOMEM PRIVADO A PRÍNCIPE OU A FUNDAÇÃO DO STATO .................................. 118 3.2. FUNDAÇÃO E FORTUNA .............................................................................................................. 123 3.3. A VIRTÙ DOS FUNDADORES ........................................................................................................ 140
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................................... 155
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................................. 158
ANEXO: DI FORTUNA = DA FORTUNA ..................................................................................... 161
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Introdução
Na carta a Francesco Vettori de 10 de Dezembro de 1513, Maquiavel anuncia a seu amigo
que escrevia “um opúsculo De principatibus, no qual me aprofundo o quanto posso nas cogitações
sobre este sujeito, discutindo o que é principado, de quais espécies são, como se adquirem, se mantêm
e por que se perdem [...] um príncipe, e especialmente um príncipe novo, deve aceitá-lo”1. A presente
dissertação de mestrado pretende analisar o opúsculo do qual fala Maquiavel a Vettori, O Príncipe
(1513, postumamente publicado 1532), guiada por um questionamento que pode ser identificado nas
palavras do autor na carta. Questionamo-nos sobre o príncipe novo e no que consiste sua inovação
política. Maquiavel nos diz que seu opúsculo busca discutir o que é, de que espécies são e como se
adquire, mantem e perde o principado. Que apresenta, portanto, um tratado político, especificamente,
um sobre os principados. Ele adiciona, entretanto, que este livro deve ser de interesse de um príncipe
e, em especial, do interesse de um príncipe novo. Isto nos leva a questionar em que medida um tratado
político se faz do interesse de um agente político e daquele do príncipe novo em especial. A presente
dissertação pretende analisar O Príncipe enquanto um livro de aconselhamento aos novos príncipes
e explorar algumas consequências desta abordagem. Mostramos que, na medida em que almeja o
aconselhamento útil, enfatizando o preceito retórico da verdade efetiva, para abordar o stato do
príncipe, Maquiavel busca ponderar as dificuldades e necessidades impostas aos príncipes. Nesta
investigação, Maquiavel enfatiza e estrutura suas observações em torno da inovação política,
direcionando-se especialmente aos príncipes novos e às ações políticas da conquista do principado e
da passagem de homem privado a príncipe. Isto porque a inovação política é o fator que mais
profundamente altera as dificuldades e necessidades impostas aos governantes; portanto, fator sobre
o qual mais é necessário o aconselhamento político. Nosso objetivo é entender esta abordagem dada
à inovação política por Maquiavel – enquanto dificuldade e necessidade sobre a qual se pode
aconselhar.
Para tanto, no primeiro capítulo da dissertação (1.), partindo centralmente do primeiro capítulo
e início do segundo capítulo de O Príncipe, bem como de uma visão panorâmica da obra
(especialmente a sequência de capítulos II-VII e o XV), perguntamo-nos pelas vias de investigação
de Maquiavel, bem como o conjunto de perguntas em relação ao governo dos principados levantadas
por ele. Buscaremos examinar como Maquiavel introduz a seu leitor o tema tratado. Apesar do
começo conciso e abrupto do livro, se examinarmos meticulosamente os elementos e as asserções
apresentadas neste começo, bem como a forma como se relacionam, poderemos trazer à luz algumas
características da proposta de O Príncipe que nos permitirão, posteriormente, examinar a questão da
1 MACHIAVELLI, Niccolo. De principatibus = Le prince. Coautoria de Jean-Louis Fournel, Jean-Claude Zancarini. Paris: Presses Universitaires de France, 2000, p.530. Minha tradução.
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inovação. São dois os elementos fundamentais que buscaremos destacar nesta introdução: por um
lado, a noção de principado enquanto stato e a noção de stato como campo do exercício da ação
política; por outro, o direcionamento de Maquiavel à ação e o conselho como via para tanto.
No que concerne às noções de principado e stato, bem como ao modo pelo qual estas noções
estão relacionadas em O Príncipe (1.1), buscaremos salientar que elas parecem ser o objeto central
de investigação do autor, mas que este objeto precisa ser explicitado com cuidado. O Príncipe é um
tratado político e a experiência política que examina é o principado. O principado, diz Maquiavel no
primeiro capítulo de O Príncipe, é um stato. Assim, pode-se concluir, O Príncipe é, enquanto tratado
político, uma obra sobre o stato. No entanto, a noção de stato e, consequentemente, de principado
enquanto um stato, assume características muito peculiares e que não podem ser identificadas nem
com uma noção clássica de forma de governo, nem com uma noção moderna de Estado. No que
concerne à tradição clássica das formas de governo (1.1.1), pretendemos examinar como uma divisão
bipartida como a de Maquiavel na abertura do primeiro capítulo de O Príncipe - todos os stati são
repúblicas ou principados - soaria abrupta ou como ataque ao senso comum do pensamento político
contemporâneo do autor e a seu próprio pensamento, se consideramos o conteúdo do primeiro livro
dos Discursos e alguns momentos importantes de O Príncipe. Depois (1.1.2), buscaremos mostrar
que Maquiavel se refere na abertura de O Príncipe a uma das noções mais controversas de sua obra.
A concepção de Estado moderno não pode auxiliar-nos com segurança para entender o que Maquiavel
quer dizer por stato especificamente em O Príncipe. Não pretendemos afirmar que Maquiavel recebe
passivamente a concepção política de status de seus antecessores. De qualquer modo, começamos
por mostrar que em Maquiavel este termo, assim como na Idade Média, está envolto em um jogo
complexo de sentidos. Deve-se observar que o humanismo cívico, de forma geral, e Maquiavel, em
específico, têm suas particularidades quanto a noção de stato. Dedicaremos nosso esforço em delinear
tais particularidades na obra de Maquiavel, mostrando que o conceito de stato tem um sentido
complexo que sempre envolve a agência política e perpassa as noções de ordenação política e
exercício efetivo do poder, sem se reduzir a elas.
No que concerne ao direcionamento de Maquiavel à ação e ao conselho como via para tanto
(1.2), notamos que as observações do autor se direcionam para os que querem ou podem agir. Em O
Príncipe, esta preocupação e direcionamento à ação é flagrante na escolha de Maquiavel pelo gênero
literário dos Espelhos dos Príncipes. O conselho é a via pela qual O Príncipe direciona-se à ação e
pela qual Maquiavel entra em contato com seu leitor. Nosso esforço, portanto, será o de explicitar em
que medida a investigação sobre o stato no tratado de Maquiavel se expressa e opera pelo
aconselhamento. Mostramos, primeiramente (1.2.1), que a escolha pelo gênero dos livros de
aconselhamento e pelo conselho como forma de expressão de sua investigação alinham Maquiavel à
tradição retórica, mais especificamente ao gênero deliberativo de retórica. Buscaremos mostrar que a
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especial preocupação com a escolha do estilo utilizado (os Espelhos dos Príncipes) e as vias pelas
quais Maquiavel entra em disputa com a tradição são fundamentalmente retóricas. Neste sentido,
podemos refletir sobre alguns aspectos quanto aos procedimentos teóricos comumente salientados e
discutidos na obra de Maquiavel, buscando concatená-los e explicitá-los considerando o texto
maquiaveliano como essencialmente retórico: refletimos sobre o realismo político geralmente
atribuído aos conselhos de Maquiavel em O Príncipe e sobre a noção de verdade efetiva por ele
evocada no livro como desdobramentos de uma disputa que se dá nos termos da retórica.
Investigamos, então, (1.2.2.) de que maneira o autor faz uso e dá especial ênfase ao preceito
retórico da verdade efetiva, o exame cuidadoso dos contextos particulares e sua adequação para o
aconselhamento útil. Notamos que o autor entende sua empresa metaforicamente nos termos da
tecelagem. A alegoria do tear diz respeito à relação entre o que foi apresentado no primeiro capítulo
de O Príncipe com a questão estipulada no segundo. Em face à extensa gama de possíveis condutas
na busca pela manutenção do principado, ao examiná-las, Maquiavel tem sempre em mente que uma
ação só pode ser avaliada se consideramos o contexto político no qual se desenrola, isto é, quando se
considera suas condições singulares. Maquiavel aborda estes contextos sob o prisma das dificuldades
e necessidades por eles impostas. Esta é uma frutífera estratégia para o aconselhamento útil, pois as
dificuldades e as necessidades abarcam e relacionam o contexto singular e a ação efetiva. Por um
lado, são dificuldades e necessidades que se impõem ao sujeito e explicitá-las implica um
entendimento apurado do contexto nas quais aparecem. Por outro lado, são entendidas enquanto
dificuldades e necessidades na medida em que o sujeito deseja ou necessita superá-las, enfrentá-las.
Não é uma mera condição estabelecida, mas uma que demanda a ação dos agentes. Assim, ao discutir
as dificuldades e necessidades impostas aos príncipes, Maquiavel empreende uma investigação da
efetividade das ações dos governantes que é sensível e sempre relativa aos contextos.
É neste ponto que entramos no segundo capítulo desta dissertação (2). Nossa leitura versa, em
um primeiro momento, sobre os capítulos II, III de O Príncipe, fazendo referências detidas a
passagens de outros capítulos. Buscamos analisar o desenvolvimento do texto de O Príncipe,
rastreando o que parece ser a dificuldade e necessidade central a ser ponderada pelo conselheiro
político: a inovação política. Tratando-se do governo dos principados, inovar significa destituir
antigos modos e ordenações de governo e introduzir novos. Buscaremos explicitar que Maquiavel
entende a inovação política geralmente em relação ao costume ou hábito estabelecido. Na medida em
que novos modos e ordenações entram em conflito com os costumes estabelecidos, sua introdução se
torna dificultosa. Portanto, a relação entre costume e inovação determina centralmente as
dificuldades e necessidades sobre as quais Maquiavel aconselha o príncipe. Nesse sentido, podemos
entender a obra como uma investigação sobre a inovação e suas consequências. A manutenção do
principado é mais difícil na medida em que é novo. Esta constatação é gradualmente feita, ao se seguir
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passo a passo os contextos particulares possíveis e as dificuldades específicas dos governantes e seus
principados. O que cresce e progride ao longo as páginas do livro é a necessidade de inovar e a
dificuldade de fazê-lo.
Maquiavel apresenta duas constantes antagônicas da vida política e busca extrair seu
aconselhamento da ponderação entre elas: por um lado, quanto é dificultoso e perigoso inovar, na
medida em que se o faz contra o costume e a experiência; por outro, que inovar é inegavelmente
essencial para a prática política, uma necessidade da arte do stato. As atividades ou ações inovadoras,
que envolvem a deposição e introdução de novos modos e novas ordens, são realidades políticas que
não podem ser negadas, mas ser devem abordadas com toda cautela. É a ponderação entre estas duas
afirmações, em que medida cada uma delas se apresenta como mais pungente em contextos
específicos, que permite que Maquiavel aconselhe sobre a inovação política. É este o questionamento
que perpassa os diferentes contextos distinguidos por Maquiavel ao longo do livro. Buscaremos
mostrar não somente a ponderação sobre certas circunstâncias políticas e em que medida a dificuldade
e necessidade da inovação nelas se impõem, mas também que, por esta ponderação, Maquiavel entra
em embate com concepções tradicionais sobre os procedimentos de governos efetivos, mostrando que
em certas circunstâncias é preciso reavalia-los e flexibiliza-los, bem como, em outras, é preciso alertar
sobre suas profundas limitações. Este é especialmente o caso da inovação, que, quando considerada
nas condições políticas, tornam o aconselhamento uma tarefa extremamente complexa.
Nossa análise começa (2.1) pelo exame que Maquiavel realiza dos principados hereditários.
Nos principados hereditários, a inovação é, à primeira vista, não necessária nem dificultosa. Com
isso, o autor nos apresenta um primeiro caso da ponderação quanto às dificuldades e necessidades da
inovação. Buscaremos mostrar que Maquiavel parte de um ponto de vista tradicional ao aceitar a
asserção segundo a qual os principados hereditários são mais estáveis e menos difíceis de serem
mantidos. No entanto, ele não se compromete indiscriminadamente com este ponto de vista, pois não
assume que o príncipe esteja autorizado, por sua legitimidade tradicional, a agir como quiser. O
príncipe hereditário está atado à reprodução dos modos e ordenações ancestrais que recebera, o que,
certamente, não exige dele uma capacidade extraordinária, na medida em que naturalmente pode fazê-
lo. De todo modo, a inovação nestes principados é mais que não necessária, ela é vetada pelo preceito
da necessidade de não inovar. Portanto, podemos dizer que a inovação não deixa de ser uma
dificuldade para o príncipe hereditário: ela ainda seria dificultosa, mas não é, em geral, necessária.
Além disso, se os príncipes hereditários estão assegurados pela ação ordinária em grande medida,
isso não significa que estejam assegurados contra qualquer iniciativa interna de conspiração, nem,
especialmente, contra iniciativas estrangeiras de invasão. Assim, as dificuldades e necessidades
relativas à inovação já se apresentam nos principados hereditários. Maquiavel nos prepara, partindo
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de uma ponderação sobre a segurança e a estabilidade do príncipe hereditário tradicionalmente aceita,
para uma nova perspectiva, a do príncipe novo.
A instabilidade e falta de segurança do príncipe novo não significam mais a impossibilidade
de se pensar o seu governo, antes, significam que sua segurança e estabilidade são mais difíceis de
serem alcançadas. Se, nos principados hereditários, a menor dificuldade em se manter o principado
está associada à menor necessidade da inovação, nos principados novos esta necessidade é o que torna
a manutenção difícil para os príncipes. O príncipe novo realizou uma inovação e ela é necessária para
seu estabelecimento na posição de governo. Enquanto para o príncipe hereditário, em geral,
harmonizava-se a dificuldade em inovar com a necessidade de não inovar, o que exigia dele uma
capacidade ordinária, para o príncipe novo, a dificuldade da inovação entra em conflito com a
necessidade de inovar. Neste sentido, a habilidade exigida do príncipe novo é muito mais complexa
e nada ordinária. Ele precisa inovar na medida do necessário para se estabelecer, mas considerar em
que medida a inovação pode se tornar dificultosa e perigosa a ponto de o fazer perder a posição
estabelecida. Maquiavel examina duas condições distintas de inovação, dois diferentes tipos de
príncipes novos: a conquista e o conquistador; em seguida, examina o principado inteiramente novo
e sua fundação. No primeiro caso, a inovação se dá pela anexação de novos stati por um príncipe
hereditário (chamado novo na medida em que conquista novos stati); no segundo, a inovação se dá
pela passagem de homem privado a príncipe pela aquisição do principado.
Examinamos, então, na sequência do segundo capítulo da dissertação (2.2), a conquista em O
Príncipe. Neste caso aparecem as primeiras grandes dificuldades. Primeiramente, (2.2.1) mostramos
que o príncipe realizou uma inovação em seu stato pela conquista e expansão. As condições da
conquista são tais que a inovação é necessária, pois não há conquista sem inovação, e dificultosa, pois
o contato com novos súditos e a entrada em uma nova relação de forças acarreta dificuldades em
virtude do conflito com a ordem dos costumes estabelecidos. Dois preceitos antagônicos apresentam-
se ao conquistador: por um lado, Maquiavel não abandona o preceito aprendido com o caso dos
príncipes hereditários (segundo o qual a não-inovação e a mera contemporização segundo os
acidentes se apresentam como vias seguras); por outro, este primeiro preceito é duramente limitado
pela necessidade de inovar como condição para o posicionamento do príncipe em novo território. A
habilidade do conquistador é a de encontrar uma via entre estes dois preceitos conflituosos. Esta
habilidade é a prudência. Então (2.2.2), a partir do exame comparado entre o exemplo das conquistas
dos antigos romanos e o exemplo das conquistas de Luís XII na Itália, Maquiavel pondera sobre a
prudência enquanto atributo dos conquistadores: a capacidade de antever e se precaver pelo exame
apurado das condições, bem como a de agir ou não agir nos momentos apropriados. Esta habilidade
permite ao príncipe ponderar sua ação efetivamente entre preceitos antagônicos e decidir
apropriadamente entre eles nos momentos certos, pois a prudência permite o cálculo apropriado da
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deliberação política. Por fim (2.2.3), notamos que, para se utilizar da noção de prudência na avaliação
da conquista, para falar da prudência do conquistador, Maquiavel precisa flexibilizá-la e adaptá-la,
porque a noção de prudência era tradicionalmente pensada em harmonia com a ordem estabelecida
de costumes. A prudência do conquistador precisa transpor o mero contemporizar de acordo com os
costumes, pois o que ela identifica é que certos acidentes são irredutíveis à necessidade de inovar e,
consequentemente, ofender. A prudência do conquistador consiste em um cálculo em relação tanto
ao modo pelo qual se pode aproveitar ao máximo as condições estabelecidas em favor do príncipe
quanto aos momentos em que estas condições devem ser combatidas.
Por fim (3.), examinamos, a partir dos capítulos VI, VII e XXV de O Príncipe e dos tercetos
Di Fortuna, o caso da fundação do stato ou a passagem de homem privado a príncipe, no qual as
dificuldades e necessidades impostas pela inovação são as mais elevadas. O príncipe deve à inovação
não somente sua conquista, mas sua posição mesma enquanto príncipe, de tal forma que as
dificuldades e necessidades da inovação assumem um caráter perigoso. Observamos, primeiramente
(3.1), que aquele que passa de homem privado a príncipe não pode contar com nenhuma estrutura
anterior de costumes, buscando ponderar entre em que medida o costume estabelecido pode ser
aproveitado ou combatido. O espaço para a ponderação prudente se torna extremamente limitado,
pois a resistência ao inovador é esmagadoramente maior que as possibilidades de mobilizar as
condições estabelecidas em seu favor. A capacidade de agir de forma cirúrgica e calculada é afetada
pela extrema resistência dos costumes, e a capacidade do príncipe passa a ser descrita pelo autor nos
termos da limitação humana. Mesmo que a prudência ainda faça parte fundamental da ação do
fundador, ela não é suficiente. Certos atributos distintos ou em atrito com o que se concebe por uma
atitude calculada são exigidos, tais como introduzir a imprevisibilidade, a audácia, a força de ânimo
e o carisma na ação política. A terminologia escolhida por Maquiavel é aquela da relação entre virtù
e fortuna. Não que ela já não estivesse presente no exame da conquista, mas na fundação ela ganha
eminência. A passagem de homem privado a príncipe e a sua permanência nesta posição exigem virtù
e fortuna, o que exprime mais as limitações da ação humana do que propriamente uma asseveração
de suas possibilidades.
Para mostrar isso (3.2), buscaremos explicar como Maquiavel entende a noção de fortuna e
por que esta alegoria é usada pelo autor para evidenciar o conflito extremo com os costumes
estabelecidos. Quando o príncipe está cercado somente por forças que lhe são inimigas e
imprevisíveis em função da inovação, ele está diante da fortuna, a alegoria para o imprevisível, para
o aleatório e para o extraordinário. Neste sentido (3.3), a noção de virtù, enquanto habilidade pela
qual se entra em contato com a fortuna, indica uma capacidade extremamente elevada. O primeiro
exemplo de fundadores examinado por Maquiavel - Moisés, Ciro, Rômulo, Teseu – indica que a virtù
é ela mesma algo fora do escopo do que poderíamos considerar humanamente possível. A estes
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homens estão associados a virtù necessária para não dependerem da fortuna, a não ser pela ocasião
provida por ela. No entanto, a estes homens estão também associadas capacidades sobre-humanas,
feitos excelentíssimos dificilmente alcançáveis por homens comuns. O exame, assim, passa a ser não
o de delimitar propriamente e com certeza o que é virtù, mas em que medida os homens comuns
podem atingi-la, mesmo que imperfeitamente. Passa a interessar a Maquiavel que a fortuna
dificilmente pode ser excluída da fundação. Neste sentido, quando se passa para o exame da virtù
dentro dos limites humanos e não envoltos por mitos sobre-humanos ou pela graça divina, revelam-
se aqueles aspectos da ação humana que ultrapassam, mas não abandonam, a ação calculada, a
razoabilidade e a legitimidade tradicional. Podemos ver isso notadamente expresso no exemplo de
César Borgia. A longa narrativa que Maquiavel faz das ações do duque exprimem justamente o que
uma linguagem conceitual falha em exprimir: as muitas particularidades, a exigência de disposições
antagônicas, a capacidade de agir com a cabeça e o fígado, de mudar de rapidamente de planos ou
improvisar.
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Capítulo 1: Conselhos aos príncipes: stato e verità effettualle
Os títulos sob os quais o livro de 1513 é apresentado – De Principatibus e Il Principe -
facilmente nos permitem inferir seu conteúdo. Certamente não é uma novidade aquilo que indicam:
um livro sobre os principados. Podemos verificar uma extensa literatura ao longo da história do
pensamento político composta por tratados e investigações acerca deste tema. Ele fora debatido e
apresentado por diferentes vias, considerado a partir de diferentes questionamentos e examinado de
diversos pontos de vista. E devemos supor que o pequeno tratado de Maquiavel também o discuta por
uma via, considerando objetivos e interesses específicos. Mas qual a via de investigação de
Maquiavel? Qual é exatamente a pergunta ou o conjunto de perguntas em relação ao governo dos
principados levantados por ele? Em suma, o que Maquiavel quer saber sobre os principados?
Este primeiro capítulo da dissertação versa sobre estas questões. Buscaremos delinear os
objetivos e as questões que nos parecem centrais para o livro de Maquiavel. Em suma, no que, mais
precisamente, consiste a empresa de O Príncipe. Deve-se ter em mente que resumir brevemente e
com acuidade uma obra é uma tarefa extremamente difícil, especialmente quando se trata de O
Príncipe, cujas plurais interpretações vêm acompanhadas de agudas disputas teóricas e ideológicas2.
Nosso objetivo, entretanto, não é uma sinopse completa e definitiva (talvez nem ao menos uma
sinopse), mas antes é preparar o terreno para o problema que pretendemos discutir começando por
uma reflexão sobre os objetivos gerais do livro, dos quais buscaremos sublinhar questões e noções
com as quais desenvolveremos nosso tema posterior - as dificuldades e necessidades envolvidas da
inovação.
Esta reflexão inicial tem um escopo bem delimitado. Partindo do primeiro e do início do
segundo capítulos de O Príncipe, apoiados sobre alguns textos paralelos e buscando verificar nossas
asserções panoramicamente no decorrer do livro, buscaremos examinar como Maquiavel introduz a
seu leitor ao tema tratado. Introduzir guarda aqui um sentido que deve ser esclarecido. Em verdade,
buscamos examinar, não exatamente como e em que momentos Maquiavel instrui e esclarece seu
leitor quanto aos que parecem ser os objetivos e o sentido de seu livro - fonte infindável de debates
acirrados da literatura de comentário -, mas antes como ele efetivamente conduz seu leitor para dentro
da obra. Simples e diretamente: voltamos nossos olhos para como o autor começa seu livro. Um
2 O recente comentário de Philip Bobbitt a O Príncipe, por exemplo, é introduzido da seguinte forma: “O Príncipe é frequentemente descrito como um grande livro que mudou o mundo, ainda assim, enquanto está sem dúvida seguro em sua inclusão no canon de tais livros, foi tão variada e contraditoriamente interpretado que qualquer mudança no mundo que possa ter trazido é provável que o tenha por algum tipo de horrível inadvertência que teria divertido, apesar de não surpreendido, Maquiavel. Certamente, permanece um número de questões controversas sobre, mesmo as mais básicas, posições de Maquiavel [...] há alguns escritores que concluíram que suas ideias eram simplesmente incoerentes, enquanto outros decidiram que foram escritas no código da sátira ou de algum gnosticismo ainda mais oblíquo” [BOBBITT, Philip. The Garments of Court and Palace: Machiavelli and the World that He Made (Kindle Locations 71-81). Atlantic Books. Kindle Edition.), Londres: 2013. Minha tradução.]
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começo, como veremos, conciso e abrupto, que tem, ao longo da história, chocado e desnorteado os
leitores no lugar de confortá-los. De qualquer forma, (supomos assim) um começo calculadamente
escolhido por Maquiavel. Se examinarmos meticulosamente os elementos e as asserções apresentadas
neste começo, bem como a forma como se relacionam, poderemos trazer à luz algumas características
da proposta de O Príncipe que nos permitirão posteriormente examinar a questão da inovação nos
termos que nos propomos aqui: inovação geradora de dificuldades e necessidades.
A peculiar disposição do livro pode tornar difícil a tarefa de entende-lo. Isto em virtude da
forma abrupta como O Príncipe é introduzido a seu leitor. Se voltamos para o primeiro capítulo,
estamos longe de encontrar uma explanação prévia de objetivos e da metodologia da obra como um
todo. O capítulo intitula-se Quantos são os gêneros de principados e de que modos se adquirem. Nele
vemos uma sequência de asserções, distinções e exemplos todos referentes aos principados.
Todos os stati, todos os domínios que tiveram e têm império sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou principados. Os principados ou são hereditários - aqueles nos quais a linhagem de seu senhor é príncipe há muito tempo -, ou são novos. Os novos ou são inteiramente novos, como foi Milão para Francesco Sforza, ou são como membros anexados ao stato hereditário do príncipe que os conquista, como é o reino de Nápoles para o rei da Espanha. Os domínios assim conquistados ou são acostumados a viver sob um príncipe ou a ser livres. E são conquistados ou com as armas de outros, ou com as próprias, por fortuna ou por virtù.3
O capítulo reforça, certamente, o que os títulos já indicavam - um livro sobre os principados. As
asserções dizem respeito aos principados. São stati; hereditários ou novos; sendo estes novos
membros anexados ou principados inteiramente novos; são acostumados, quando conquistados, a ser
livres ou a viver sob um príncipe; e são conquistados por armas próprias ou por armas de outros, por
fortuna ou por virtù.
De qualquer forma, estas asserções, meramente expostas uma após a outra, só se apresentam
subordinadas a um eixo claro, a um problema especifico a ser examinado, no segundo capítulo, no
qual Maquiavel direciona seu leitor à formulação explícita de uma questão: “não tratarei aqui das
repúblicas porque, em outro momento, discorri longamente sobre o assunto. Ocupar-me-ei somente
dos principados e, tecendo os fios da urdidura antes indicada, discutirei de que forma podem ser
governados e mantidos”4. Tendo no primeiro capítulo afirmado que todos os stati são repúblicas ou
principados, Maquiavel delimita no segundo qual será seu objeto de estudo, o principado. Este objeto
de estudo delimitado deve ser explorado a parir de uma questão específica: como podem ser
governados e mantidos os principados? Esta questão, atesta o autor, será examinada em se tecendo
3 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo I, p.5. Tradução sempre adaptada para stato ou stati enquanto substantivos para esta tradução. 4 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo II, p.7
20
os fios da urdidura antes indicada - isto é, considerado as asserções do primeiro capítulo. Tendo em
vista o que são e como surgem, examina-se como podem ser governados os principados.
Entretanto, a aparente clareza e simplicidade da proposta traçada por Maquiavel, entre o
primeiro e início do segundo capítulo, logo se perde quando a observamos mais de perto. Claude
Lefort nota que “anunciar que se discutirá o governo dos príncipes e que se dará dele as regras, ou
que se perguntará o que ele é (che cosa è il principato) e, muito prosaicamente, como se o conquista,
conserva e perde, é, apesar da clareza das palavras, colocar questões cuja origem é obscura”5. Em
primeiro lugar, é preciso observar que as asserções apresentadas no primeiro capítulo estão distantes
de uma definição de principado. Poderíamos buscar sustentar que stato seja um atributo essencial de
principado, mas, longe de nos dar uma definição, este predicado é compartilhado também com as
repúblicas. Poderíamos recorrer à distinção entre domínios acostumados a viver sob um príncipe e
acostumados a viver em liberdade, definindo principado como domínio que vive sob um príncipe. No
entanto, estaríamos, então, realizando uma inferência não feita explicitamente pelo autor. O que ele
efetivamente nos diz é que principados conquistados, antes de o serem, são acostumados a viver sob
um príncipe ou em liberdade. Portanto, dificilmente poderíamos assumir que o movimento proposto
por Maquiavel seja o de examinar como se governa o principado guiado por uma definição clara e
explicitada do mesmo.
Em segundo lugar, se buscamos não uma definição ou descrição extensa, mas asserções gerais
e comumente aceitas em relação aos principados, a partir das quais se poderia investigar quanto ao
seu governo, novamente somos desiludidos, pois, ao invés disso, como buscaremos mostrar ao longo
das próximas seções, o que se apresentam são asserções que deslocam e parecem querer provocar seu
leitor. Não é, de forma alguma, senso comum a distinção entre formas de governo – que nesta
passagem específica Maquiavel parece denominar os stati – em repúblicas e principados.
Tradicionalmente, uma distinção entre repúblicas democráticas e oligárquicas seria destacada, bem
como uma distinção entre governos retos e corrompidos. Tão menos familiar aos olhos tradicionais é
que a principal distinção entre principados seja entre hereditários e novos, e que seja de especial
pertinência os meios e habilidades pelos quais se conquista o principado em um tratado sobre o tema.
Além disso, não é evidente como estas distinções devem ser levadas em conta para o exame de como
se deve governar o principado. Maquiavel ignora questões sobre a legitimidade e a justiça do
exercício do governo nos principados, temática naturalmente esperada pelos leitores instruídos pela
teoria e pelo debate político de sua época, especialmente se tratando do debate sobre o agir do
governante, sobre como governar. Maquiavel limita suas asserções iniciais de forma que não
reconhecemos nelas os princípios gerais tradicionalmente levados em conta nas investigações sobre
5 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre: Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 327. Minha tradução em todas as citações deste livro.
21
o governo dos principados, o que causa mais estranheza do que familiaridade, mais resistência do que
acolhimento de seus argumentos.
Por fim, há de se notar que a simples e concisa proposta de examinar como se governa o
principado em se considerando o que e de quais gêneros são é na verdade difusa, pois junto dela
Maquiavel salienta outros pontos. O primeiro capítulo de O Príncipe não nos informa somente tipos
de principados, mas como são adquiridos; o segundo não nos introduz a questão somente sobre como
se podem governar os principados, mas sobre como mantê-los. Parece haver uma questão
concorrente, um ponto complementar salientado pelo autor – não somente o que são e como se
governam, mas também como se conquistam e como se mantêm é uma questão fundamental. E,
assim, confiando na aparente simplicidade e evidência das linhas inicias de O Príncipe, encontramos,
no lugar de afirmações que instruem quanto às premissas assumidas e os caminhos adotados pelo
autor, um desconforto causado em seus leitores. Claude Leford descreve assim o desconforto causado
pelo primeiro capítulo de O Príncipe: Se nós nos surpreendemos com a maneira abrupta deste começo, sem dúvida que os contemporâneos [de Maquiavel] já estavam antes surpresos, pois, instruídos pela tradição clássica e cristã, eles estavam acostumados a encontrar no começo de uma obra política considerações filosóficas, morais ou religiosas. Além disso, o autor não nos diz por que ele as descarta de sua proposta. Ao negligenciar falar da origem e da finalidade do Estado [État], dos méritos comparados dos diversos regimes, da função do príncipe na sociedade, da legitimidade e ilegitimidade de certas formas de poder, ele nos dá a pensar por seu silêncio que estas ideias deixaram de ser pertinentes ou, ao menos, convida seu leitor a se perguntar se elas permanecem e em qual sentido.6
A maneira abrupta de começar o livro causa surpresa, não só a nós, leitores modernos, mas
também aos contemporâneos de Maquiavel. Ela está associada à falta de um prefácio ou introdução
- onde encontraríamos considerações filosóficas, morais ou religiosas; considerações quanto à origem
e finalidade da comunidade política, aos méritos dos diferentes regimes, à função do príncipe na
sociedade, à legitimidade e ilegitimidade de certas formas de poder. Ao salientar estes elementos
como ausentes para introduzir O Príncipe, Lefort direciona seu argumento à tese de que esta ausência
mostraria a ruptura de Maquiavel em relação a “um discurso e um mundo ordenados”, regido por
princípios normativos muito expressos e determinados7. Estamos de acordo com esta leitura. De
qualquer modo, gostaríamos de apontar para uma consequência ligada a ela, mas ligeiramente
diferente. Ao ausentar-se de pressupostos de um discurso ou mundo pré-ordenados, Maquiavel rompe
não somente com padrões normativos, mas também descritivos. O desconforto do leitor se dá porque
é convidado a pensar livre de preconceitos quanto ao que é legítimo ou não, quanto à posição e aos
deveres do príncipe num mundo bem ordenado; mas, ao mesmo tempo, porque é lançado a
6 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 346. Traduzimos doravante État por Estado em Lefort. 7 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 347
22
compreender conceitos e definições às cegas, desorientado, ou abandonado por tradições que lhe
sirvam de fio condutor. A sequência de definições e distinções apresentadas no primeiro capítulo é
apresentada “abruptamente” pela falta de parâmetros explicita e previamente formulados que, não
somente justificariam tais asserções em vistas de uma nova “ordem moral”, por assim dizer, mas
também as explicariam enquanto definições e conceitos.
E, no entanto, esta forma abrupta de introduzir a obra é a escolhida por Maquiavel. Ao
entender a abertura do livro como abrupta, não buscamos apontar nela inconsistências, que deveriam
ser ajustadas para se bem compreender a obra. Antes, buscamos seguir o texto maquiaveliano,
deixando que a forma abrupta escolhida pelo autor nos surpreenda como surpreendeu seus
contemporâneos. Voltando nossos olhos a esta introdução abrupta, busquemos descrever que
elementos são esses e em que medida são introduzidos, a fim de, então, buscar examiná-los e refletir
sobre eles. São dois os elementos fundamentais que buscaremos destacar nesta introdução: por um
lado, a noção de principado enquanto stato e a noção de stato como campo exercício e esfera política;
por outro, o direcionamento de Maquiavel à ação e o conselho como via para tanto. Em cada uma das
seguintes seções buscaremos explorar estes elementos, encaminhando-os para o questionamento
sobre a dificuldade da inovação política.
1. 1. Principado e stato
No que concerne às noções de principado e stato, salientamos nesta seção que elas parecem
ser o objeto central de investigação do autor, mas que este objeto precisa ser explicitado com cuidado.
O principado, diz Maquiavel é um stato, portanto O Príncipe é, enquanto tratado político, uma obra
sobre o stato. No entanto, a noção de stato e, consequentemente, de principado enquanto um stato,
assume características muito peculiares e que não podem ser identificadas nem com uma noção
clássica de forma de governo, nem com uma noção moderna de Estado. São as particularidades da
noção de stato que investigamos nesta seção.
1.1.1. Stati são repúblicas ou principados
A primeira asserção de O Príncipe diz respeito ao stato. Todos os stati são ou repúblicas ou
principados. Se destacamos a forma abrupta com que Maquiavel inicia seu livro, esta afirmação é
digna de nota. Antes de discorrermos sobre as dificuldades envolvidas na compreensão do termo
stato, deve-se observar que a distinção entre repúblicas e principados é muito enxuta se a comparamos
à teoria política clássica. Newton Bignotto observa que “é preciso notar que, antes de mais nada,
Maquiavel desfecha um ataque terrível à tradição, contentando-se com uma classificação
23
extremamente simplificada das formas políticas”8. O leitor reconhece nos termos da divisão uma
referência às formas de governo, aos regimentos ou regimes políticos9. Repúblicas e principados, aos
olhos das bases teóricas sobre as quais os contemporâneos de Maquiavel (e ele próprio) se
assentavam, eram denominações de formas de governo ou regimentos políticos. No entanto os termos
da divisão são expostos na asserção de Maquiavel de maneira pouco familiar a estas bases teóricas.
Estas duas bases teóricas dizem respeito à teoria clássica das formas de governo e à tradição de
debates em torno do governo misto. Estas duas perspectivas teóricas, na verdade, são indissociáveis,
nascendo e se desenvolvendo juntas ao longo de toda a tradição de pensamento político anterior à
Maquiavel. Cabe-nos, nas próximas linhas, delinear brevemente esta tradição de pensamento e,
depois, examinar como uma divisão bipartida como a de Maquiavel na abertura do primeiro capítulo
de O Príncipe soaria abrupta ou como ataque ao “senso comum” do pensamento político
contemporâneo do autor, assim como ao pensamento do próprio autor, se consideramos o conteúdo
do primeiro livro dos Discursos e alguns momentos importantes de O Príncipe.
Em A Teoria das Formas de Governo, Bobbio afirma que a teoria das formas de governo de
Aristóteles tornou-se tradicional, pois “parece ter fixado em definitivo algumas categorias
fundamentais que nós, seus pósteros, continuamos a empregar no esforço de compreender a
realidade” 10 . Ao oferecer um conjunto coerente e fundamentado de categorias, respondendo e
complementando discussões e sistemas anteriores, Aristóteles estabelece os termos com os quais se
disputará ao longo da tradição o tema das formas de organização política. Bobbio atribui às
sistematizações de formas de governo ao longo da história duas funções elementares: uma descritiva
ou sistemática, outra prescritiva ou axiológica. A primeira destas refere-se à ordenação de “dados
colhidos” 11 , uma “classificação dos vários tipos de constituição política que se apresentam à
consideração do observador de fato [...], na experiência histórica”; trata-se de “descrever, isto é,
expressar um julgamento de fato” 12 . A segunda refere-se à determinação de “uma ordem de
preferência entre tipos dispostos sistematicamente, com o propósito de suscitar nos outros uma atitude
de aprovação ou desaprovação e, por conseguinte, de orientar sua escolha”13; postula-se o problema
de indicar, de acordo com critérios, “quais das formas [de governo] descritas são boas, quais delas
são más; quais as melhores e as piores; por fim, qual é a melhor de todas, e a pior”; trata-se de
8 BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo, SP: Loyola, 1991, p. 122 9 VIVANTI, Corrado. Nicolau Maquiavel – nos tempos da política (Kindle Locations 2920-2921). Kindle Edition, Martins Fontes: São Paulo, 2016. 10 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997. p. 55 11 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997. p. 34 12 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997. p. 33 13 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997. p. 34
24
“exprimir [...] julgamentos de valor, orientando a escolha por parte dos outros. Em outras palavras,
prescrevendo”14.
Na Política, Aristóteles (§7 do Livro III) considera quantos e quais podem ser os governos
das cidades. Ele se utiliza de dois critérios para tanto. Primeiramente, o número de governantes: se
um, poucos ou muitos detêm autoridade sobre a cidade. Em segundo lugar, como se governa: se o(s)
que governa(m) o faz(em) em vista do interesse comum ou em vista do interesse privado15. A partir
destes dois critérios, Aristóteles é capaz de sistematizar uma teoria das formas de governo que cumpre
as duas funções elencadas por Bobbio. Ao tipificar, pela interação destes critérios, as formas de
governo em monarquia, tirania, aristocracia, oligarquia, politeia e democracia16, Aristóteles não
somente descreve e classifica “a variedade dos modos com que se vinham organizando as cidades
helênicas, a partir da Idade de Homero”17- isto é, procede descritivamente -, mas também propõe
meios para se identificar e distinguir formas corretas (orthas) de formas desviantes (parekbaseis)18 e
hierarquizar as piores e melhores dentre estas formas - isto é, procede prescritivamente. Aristóteles
não meramente identifica que deva haver um princípio prescritivo segundo o qual se possa distinguir
formas corretas e desviantes de governo, mas explicita que princípio é este. Quando se exerce o poder
visando o comum (pròs tò koinòn), temos as formas corretas de governo; quando se o exerce visando
o privado (pròs tò ídion) 19 , as formas desviantes. Sérgio Cardoso identifica a distinção das
“constituições propriamente políticas” ou comunidades que “visam o interesse de todos, o bem viver
comum” em relação aos “regimes não-políticos, despóticos” ou “comunidades despóticas”, “em que
se governa em função do interesse dos próprios governantes”20.
Aristóteles não criou propriamente a teoria das formas de governo; antes, fixou uma “tipologia
que se tornará clássica”21, mas que já fazia parte das reflexões de Platão e da cultura grega que a
precedia de um modo geral 22 . Depois de Aristóteles, a teoria das formas de governo foi
complementada e adaptada. De todo modo, se mantém intacta a carcaça sistemática de Aristóteles -
uma divisão em seis formas de governo, a partir dos critérios de como se governa e de quantos
governam. Bobbio nos mostra que, apesar de complementar as reflexões de Platão e Aristóteles
quanto à teoria dos ciclos de governo (anacyclose) e do governo misto, Políbio não faz mais do que
14 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997. p. 33 15 1279a23-1279b35. Para o uso da obra de Aristóteles utilizamos: Aristotle. ed. W. D. Ross, Aristotle's Politics. Oxford, Clarendon Press, 1957. Consultamos o texto original em grego em: <http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3atext%3a1999.01.0057>. Acesso em 1 de Fevereiro de 2019. 16 1279b5 17 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997. p. 33 18 1279a 24-25, 29 e 31 19 1279a 30 20 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, pp. 34-35 21 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997, p. 53 22 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997, pp. 39-54
25
confirmar “a teoria tradicional” com a tese segundo a qual “existem fundamentalmente seis formas
de governo – três boas e três más”23. Tomás de Aquino adota uma posição diversa da geralmente
tomada pelos antigos ao defender a monarquia como melhor forma de governo, de qualquer modo,
seu horizonte de debate é a divisão aristotélica tradicional24. Até o capítulo dedicado à obra de
Maquiavel, Bobbio reitera a constância da sistematização aristotélica ao longo da história do
pensamento político, sendo meramente reexposta por Cícero25 e repetida por Marcílio de Pádua26
Aristóteles não assentou as bases para as discussões acerca dos regimes políticos somente ao
sistematizar coerentemente uma teoria das formas de governo, mas também por abrir, a partir dela, a
tradição de debate em torno do governo misto, que viria a ser tão duradoura e importante quanto
aquela. Aristóteles afirma na Política, Livro IV, §8 que “politeia ou governo constitucional pode ser
descrito geralmente como uma fusão de oligarquia e democracia” 27 e que “a mistura de dois
elementos, isto é, os ricos e os pobres, chama-se uma politeia ou governo constitucional”28. Aqui
vemos a concepção de uma forma de governo que ultrapassa os parâmetros estabelecidos pela teoria
das formas de governo, apresentando-se não como o regimento reto ou desviante, exercido por um,
pouco ou muitos, mas como uma mistura de diferentes formas. Sérgio Cardoso, no artigo Que
república? Notas sobre a tradição de Governo Misto, mostra o caminho argumentativo original de
Aristóteles para, partindo da teoria das formas de governo, elaborar uma noção de melhor governo
como governo misto, bem como o problema que o leva a esta elaboração: o de não meramente atestar
o irrestrito compromisso com o princípio do interesse comum, mas buscar encontrar nas condições
presentes e imperfeitas a efetivação deste interesse.
Como vimos, segundo Cardoso, o governo em vista do interesse público é o que distinguiria,
no pensamento de Aristóteles, as “‘comunidades políticas’ [...] em oposição, sobretudo, ao gênero
‘comunidades despóticas’”29. No entanto, “Aristóteles [...], mesmo partindo da tipologia proposta
pela tradição, procura justamente assinalar a insuficiência do princípio que a articula”30. Não somente
se se governa em vista do interesse comum, mas “‘Para quem?’, ‘Em vista de quem se governa?’ é
que é a boa questão” – pois “para se determinar o caráter de um dado regime é preciso perguntar por
23 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997. pp. 65-66 24 SIGMUND, Paul E.; “Law and Politics”. In The Cambridge Companion to Aquinas, ed. Norman Kretzmann e Elconore Stump. Cambridge University Press, 1993, p. 217 (minha tradução em todas as citações deste texto). CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 47 25 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997. p. 75 26 BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997. p. 77 27 1293b32-1294a8 28 1294a9-1294a25 29 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 35 30 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 34
26
sua destinação”. Cardoso mostra que com a aplicação deste critério, pode-se mais que reiterar o
caráter político das formas retas de governo - retas justamente por governarem para o bem comum.
“No caso dos regimes desviantes” o “‘rendimento especulativo’” deste critério “é considerável, pois
conduz à averiguação de sua destinação social e das ‘bases sociais’ destes governos”. Assim, mais
que meramente descartar as formas desviantes como despóticas, Aristóteles nos conduz “à
consideração de sua natureza – em algum sentido – política” 31. Para Cardoso, “devolver a estes
regimes alguma significação ‘política’” é o “que há de mais original no trabalho de investigação de
Aristóteles”. Ao expor “a oligarquia” como “o poder dos ricos para os ricos” e “a democracia” como
“o poder dos pobres em vista dos pobres”, isto é,
ao especificar suas determinações próprias a partir da indicação da base econômico-social que os sustenta, o filósofo poderá também considerar o modo específico pelo qual entendem estabelecer um espaço comum, ou ainda a maneira pela qual ricos e pobres entendem legitimar suas pretensões políticas. Pois, é certo que eles defendem seus interesses; mas não deixam de defendê-los em nome da justiça, não deixam de projetar um horizonte de universalidade no qual esses interesses são inscritos. 32
Com isto, oligarquia e democracia (enquanto o governo desviante do vulgo), formas de
governo à primeira vista desviantes, “não aparecem para o filósofo apenas como o espaço da
irracionalidade das paixões e da injustiça ou do simples despotismo, mas surgem determinadas por
alguma aspiração de universalidade, ordem e legitimidade que as aproxima [...] das realidades
políticas”. A possibilidade de pensar, mesmo que parcialmente, a natureza política da oligarquia e da
democracia trazida por Aristóteles abre caminho para “sua postulação inteiramente original de um
regime ‘misto’, pensado a partir destas duas constituições mais comuns” – “mais frequentes, por
representarem [...] os interesses das partes fundamentais das cidades”.33 O que está em questão não é
meramente estabelecer o interesse comum como princípio, mas buscar, na realidade comum e
imperfeita, a efetivação deste princípio. A politeia aristotélica (não no sentido geral “mais preciso e
mais técnico que lhe haviam conferido a prática e o pensamento políticos gregos” - “o sentido de
‘regime de governo’, de ‘constituição política’, pensada como a forma de organização das
magistraturas ou poderes que conformam e governam a vida da cidade.”34-, mas “considerada [...] em
sentido mais restrito, como um regime político específico”, como aquele “eminentemente capaz de
levar à realização dos fins da comunidade política” e, justamente por isso, “designado pelo nome
31 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 35 32 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 36 33 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 37 34 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 32
27
genérico das constituições”) é o regimento que “entende realizar um equilíbrio, um ‘justo meio’, entre
os dois partidos opostos a que pode ser reduzida a cidade, de modo a garantir sua influência ativa nas
decisões do governo”; um regime “entendido como integrador d(os) antagonismos” da cidade35.
Segundo Cardoso, Aristóteles busca a “definição de um regime excelente, concebido não
abstratamente (como governo de e para um ‘todos’ indeterminado, designado apenas pela extensão
universal da cidadania a todos os homens livres [...]), mas concretamente, como capaz de figurar [...]
a essência dos regimes políticos retos”. Mais que um modelo de regimento misto, o que Aristóteles
lega à tradição de pensamento político é o problema teórico para o qual este regime é a resposta.
Trata-se de “encontrar na cidade realmente existente (e sempre imperfeita) a matéria [...] disposta ou
apropriada à forma política; isto é, encontrar o conjunto determinado de elementos cuja ordenação
permitisse realizar um bem efetivamente comum a toda a cidade”36. Mesmo que a estrutura conceitual
oferecida por Aristóteles seja aquela que inspiraria mais fortemente a tradição de pensamento político
quanto à realização do governo excelente na prática possível e efetivamente disposta, e que sua
resposta seja extremamente original, é preciso ressaltar que Platão já havia se colocado o problema
de uma “inclusão dos elementos diversos da comunidade através de um governo de leis” que fosse
possível na “realidade do mundo dos homens, o mundo da imperfeição e da instabilidade”. No
entanto, em Platão, este governo de leis responde à realização prática da “ciência do Bem” do “saber
da justiça”37; “um governo da virtude, entendida em seu sentido moral amplo”. Para Platão, “o Bem
transcendente é o fim verdadeiro da atividade da comunidade política”. Distintamente, em Aristóteles,
a virtude dos cidadãos e governantes é “entendida em sentido especificamente político”38 e o bem
almejado é o bem comum determinado “essencialmente como o governo de todos em vista do todo
político”. Estas distinções são, segundo Cardoso, fundamentais para entender o caráter aristocrático
da proposta platônica e o caráter mais democrático da proposta aristotélica.
A antiguidade tardia oferece, nas reflexões de Políbio, a configuração da noção de governo
misto “mais usual e instrumentalizada pelo pensamento político”39. Tendo como objeto delimitado
de investigação a politeia romana – a República Romana -, “o que em Platão e Aristóteles aparecia
na forma de questões mais abstratas, com o historiador ganha nome: trata-se diretamente de
compreender as relações mútuas entre os poderes dos cônsules, do Senado e do povo, como
35 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 37 36 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 38 37 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 42 38 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 43 39 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 45
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componentes fundamentais da cidade”. No pensamento de Políbio, o que se coloca como imperfeição
e instabilidade do mundo está traduzido na “teoria da anacyclose” – “relativa às mudanças e à
corrupção irremediável das constituições”, de tal forma que o regime misto “como o ‘melhor regime’”
se justifica “em função do equilíbrio que [...] estabelece entre os diferentes componentes da cidade,
neutralizando seus defeitos e retardando a degradação do composto politico”. Uma vez que a
república Romana é seu paradigma, a proposta de governo misto de Políbio é de caráter aristocrático,
pois “a convicção hegemônica sobre a superioridade moral do Senado patenteia ao seu misthos. E, de
fato, mesmo que concebida nos termos de um regime misto, a res publica romana é reconhecida
amplamente como aristocrática”40. Com a influência da Política de Aristóteles no século XIII, Tomás
de Aquino enfrenta a questão do melhor regime utilizando-se da estrutura clássica das formas de
governo, bem como da efetivação deste regime por um governo misto41. É bem verdade que Tomás
considera, junto da tradição cristã que o precedia, a monarquia o melhor regime, no entanto, ele
“mudou a ênfase no pensamento sobre a melhor forma de governo”, mantendo-a, mas também
ponderando criticamente quanto o pressuposto medieval cristão ocidental de “que a monarquia era
não só a melhor forma de governo, mas também a única em acordo com a intenção divina”42. Aquinas
reconhece na realidade imperfeita dos homens “a prepotência do monarca e a tendência à degeneração
apresentada pelo regime”43; que “um monarca pode ser facilmente corrompido e parece não haver
remédio para a tirania”44. É a fim de controlar estes fatores que o filósofo recomenda “uma monarquia
eletiva, temperada por contrapesos aristocráticos (conselhos) e populares (eleições dos magistrados,
ou príncipes)” 45
Cardoso busca mostrar que a questão do governo misto se apresenta como um debate
tradicional, retomado e reavaliado ao longo da história do pensamento político. Ele nos mostra que
também um “grande momento deste debate [...] ocorre em Florença, entre a queda dos Médici em
1494 e a segunda restauração de seu governo oligárquico em 1530”, quando “os humanistas se voltam
[...] para uma reflexão propriamente constitucional, polarizada por interpretações diversas do regime
republicano […] como governo misto” 46. O Príncipe, portanto, surge em um contexto no qual a teoria
40 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 46 41 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 47 42 SIGMUND, Paul E.; “Law and Politics”. In The Cambridge Companion to Aquinas, ed. Norman Kretzmann e Elconore Stump. Cambridge University Press, 1993, pp. 219-20 43 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 47 44 SIGMUND, Paul E.; “Law and Politics”. In The Cambridge Companion to Aquinas, ed. Norman Kretzmann e Elconore Stump. Cambridge University Press, 1993, pp. 219-20 45 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p. 47 46 CARDOSO, Sérgio. “Que república? Notas sobre a tradição de Governo Misto”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. 1ed.Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002, p.47
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das formas de governo e o debate em torno do governo misto eram extremamente influentes. Tendo
isto em vista, podemos avaliar a profundidade do ataque desferido à tradição com a asserção que abre
O Príncipe – todos os stati são repúblicas ou principados. Maquiavel eliminaria completamente um
dos critérios clássicos da classificação, o de como se governa, e reduziria o outro, o do número de
governantes. Assim, de seis formas de governo, Maquiavel reconheceria apenas duas - o governo de
um e o governo de vários (muitos ou poucos); o principado e a república. Além disso, resta a dúvida
de como entender a disjunção: repúblicas ou principados. Ela é inclusiva ou exclusiva? Ao afirmar
no segundo capítulo que não tratará das repúblicas e que se ocupará somente dos principados,
tenderíamos a aceitar a segunda opção. Em outras palavras, ao identificar como regimentos possíveis
a república ou o principado e ao restringir seu objeto de análise aos principados, Maquiavel estaria
excluindo a possibilidade ou desaconselhando a mistura destes dois regimentos? Maquiavel estaria
negando em alguma medida a tradição do governo misto?
Sem sombra de dúvidas, uma afirmação que suscita dúvidas e é grave diante da história do
pensamento político. E Maquiavel deixa clara sua contraposição aos escritores da tradição: ele não
meramente afirma o que são os stati, mas também o que foram. A coordenação do verbo no presente
e no passado indica que a classificação proposta por Maquiavel se aplicaria não somente aos governos
de seu tempo, mas também às comunidades políticas da antiguidade e da idade média,
tradicionalmente tipificadas nos termos aristotélicos. Entretanto, apesar da gravidade da afirmação,
ela é apresentada de forma abrupta. Maquiavel não justifica previamente por que reduz as formas de
governo a duas ou com que finalidade teórica o faz, nem se alonga em explicar esta afirmação.
Conseguimos reconhecer o ataque desferido pelo autor à tradição, mas não conseguimos identificar
explicitamente o que Maquiavel quer com isso. Poderíamos plausivelmente interpretar, se
consideramos separadamente a primeira sentença de O Príncipe, que a afirmação de Maquiavel
signifique uma nova proposta de divisão das formas de governo, na qual passa a operar somente uma
divisão simples entre o governo de um e o governo de muitos, e que esta nova proposta seja capaz de
sistematizar melhor a realidade política em geral47. Seria um movimento dramático: deixando de lado
a distinção entre formas retas e desviadas, perde-se de vista ou, ao menos, torna-se menos importante
a função normativa que tradicionalmente foi cumprida pelas teorias das formas de governo; não se
reconhecendo a distinção entre governo de poucos e governo de muitos, torna-se insensível a
variações contundentes entre constituições republicanas com ampla participação política e as de
participação e concessão de cargos restritas. Além disso, parecemos distanciados de uma concepção
de governo misto ou da possibilidade de uma monarquia com elementos das oligarquias ou das
democracias.
47 Bobbio vai neste sentido. Cf. BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de governo. 9. ed. Brasília, DF: Editora da UnB, 1997. pp. 83-85
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Estas interpretações, entretanto, logo ganham resistência se consideramos a obra de
Maquiavel mais amplamente. Isto porque elas estão em conflito, primeiramente, com a outra das
obras políticas mais contundentes de Maquiavel, os Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio.
Nos Discursos, Maquiavel retoma em seus próprios termos a teoria clássica das formas de governo e
se utiliza dela para elaborar seus argumentos. No segundo capítulo do primeiro livro, Maquiavel
pretende “discorrer sobre as ordenações da cidade de Roma e os acontecimentos que a levaram à
perfeição” - isto é, avaliar descritivamente (meramente discorrer) e avaliar prescritivamente
(considerando o que é mais perfeito). Para tanto, ele considera
o que dizem alguns que escreveram sobre as repúblicas, ou seja, que há nelas um dos três stati, chamados principado, optimates e popular; e que aqueles que ordenam uma cidade devem voltar-se para um deles, segundo o que lhes pareça mais apropriado. Outros - mais sábios, segundo a opinião de muitos - são de opinião que existem seis formas de governo, das quais três são péssimas e três são boas em si mesmas, mas tão fáceis de corromper-se, que também elas vêm a ser perniciosas. Os bons são os três acima citados; os ruins são outros três que desses três decorrem; e cada um destes se assemelha àquele que lhe está próximo, e facilmente passam de um a outro: porque o principado se torna tirânico; os optimates […], governo de poucos; o popular […], licencioso.48
O que vemos aqui sendo mobilizada é a teoria clássica das formas de governo. Podemos reconhecê-
la notadamente, apesar de algumas particularidades na terminologia de Maquiavel. Introduz-se a
noção de stato para designar as formas de governo. Os stati são primeiramente descritos pelo critério
do número de governantes: principado, optimates e popular. Então, são considerados a partir da
distinção entre formas de governo péssimas e boas em si mesmas. As formas péssimas de governo
são entendidas como corrompidas em relação às boas. Disso, seis formas de governo são assumidas
- principado, tirania, optimates; governo de poucos, governo popular e estado de licença. Neste
momento dos Discursos, constatamos que Maquiavel está plenamente ciente da sistematização
tradicional das formas de governo, e a utilizar como fundamento de argumentos.
Certamente, Maquiavel recupera a distinção tradicional das formas de governo em um tom de
crítica. Ele nos alerta que “se um ordenador de república ordena um desses três stati numa cidade, o
ordena por pouco tempo, pois nada poderá impedir que se resvale para seu contrário, pela semelhança
que têm neste caso a virtude e o vício.”49. O autor salienta a conservação da república como condição
necessária para ser considerada boa sua constituição. Com isso, ele coloca à prova a possibilidade de
se estabelecer uma efetiva hierarquização ou distinção entre constituições boas ou péssimas, melhores
ou piores: “todos esses modos são nocivos, tanto pela brevidade da vida que há nos três bons quanto
pela malignidade que há nos três ruins”. Na medida em que a corrupção se apresenta como inevitável,
48 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Trad. MF. São Paulo: Martins Fontes, 2007. I.2. p.14. Mantido o termo stato no original. Nossos itálicos. 49 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Trad. MF. São Paulo: Martins Fontes, 2007. I.2. p.14. Mantido o termo stato no original.
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todas as formas de governo se apresentam como nocivas. Precisa-se antes combater ou amenizar a
força desta corrupção, não escolher uma exclusiva melhor forma de se governar: é preciso um governo
misto. A solução maquiaveliana não se distancia substancialmente da resposta classicamente dada a
esta dificuldade. Sua crítica não se dirige aos pensadores da tradição, aos quais na verdade se alia,
mas antes aos ordenadores de repúblicas que insistem sempre em escolher uma única forma de
governo: “aqueles que prudentemente ordenam leis evitaram cada um desses modos por si mesmos
e escolheram algum que tivesse um pouco de todos, por o julgarem mais firme e estável […] quando
numa mesma cidade há principado, optimates e governo popular, um toma conta do outro”50. A
república mista, a composição de elementos de diferentes tipos de constituição e uma ajustada
distribuição de poderes entre os grupos que compõem a cidade, é a resposta que a tradição clássica já
havia dado. Maquiavel está, nos Discursos, reavivando esta crítica que os pensadores
tradicionalmente têm feito a constituições muito rígidas.
Maquiavel está incluso nesta tradição do pensamento político inspirado pelos clássicos.
Cardoso, por exemplo, localiza Maquiavel em um debate em que se oporão partidários da formulação
da república “aristocrática (os proponentes de um ‘governo stretto’, como Patrizzi e Guicciardini) e
de sua fórmula democrática (os partidários de um ‘governo largo’, como Maquiavel ou Glanotti),
num debate em que se podem identificar facilmente os elementos das matrizes platônica e
aristotélica.”51 Então, como conciliar a abertura do primeiro capítulo de O Príncipe com o que
encontramos nos Discursos? Como deveríamos interpretar a simplificada distinção dos regimentos
políticos em repúblicas e principados do primeiro capítulo de O Príncipe, tendo em conta a maneira
- muito consoante com a tradição - com que são examinados nos Discursos? O silêncio do autor em
O Príncipe, a falta de uma justificativa, explicação ou comentário quanto à sua simplificada distinção,
dificulta entender para onde Maquiavel nos direciona com ela. Se assumimos que uma nova proposta
de entender as formas de governo, uma mais acertada e mais condizente com a realidade, está sendo
proposta, teríamos um sério problema em harmonizá-la com o que está escrito nos Discursos. No
entanto, outras interpretações são possíveis. A falta de uma explanação prévia do autor não autoriza,
nem desautoriza, de partida, uma ou outra possibilidade de interpretação.
No entanto, poderíamos, ainda assim, propor uma separação radical entre os Discursos e O
Príncipe no que diz respeito à abordagem dos regimentos políticos. Poder-se-ia propor que, em O
Príncipe, opere uma tipologia mais simplificada, que não considere distinções entre tiranias e
principados legítimos, bem como entre repúblicas oligárquicas e democráticas; e que o governo misto
ou a possibilidade de misturas constitucionais estivesse fora do escopo de investigação do livro de
50 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Trad. MF. São Paulo: Martins Fontes, 2007. I, 2. p.17. Nossos itálicos. 51 CARDOSO, S. “Que república? Notas sobre a tradição do governo misto”. In: BIGNOTTO, N. (Org.). Pensar a República. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000, p. 47
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1513. Estas propostas, de qualquer modo, encontram resistências no interior do próprio livro. Em
primeiro lugar, devemos considerar a distinção entre principados legítimos e tiranias, pois não seria
errado afirmar que a este respeito O Príncipe ofereça uma perspectiva peculiar e diferente daquela
dos Discursos. Em O Príncipe, o termo tirano não é nunca utilizado, diferentemente dos Discursos,
no qual o termo é amplamente usado. Na obra de 1513, de fato, uma divisão rígida entre tiranos e
governantes legítimos é ofuscada. Maquiavel, entretanto, não é insensível quanto a ela. Podemos
reconhecer notadamente asserções feitas no livro que caracterizam (ao menos) o que se reconhece
comumente como tirania. No sexto capítulo encontra-se a caracterização de certos senhores “que mais
espoliavam seus súditos do que os corrigiam”52. No oitavo, discorre-se sobre príncipes que chegaram
ao principado “por via celerada e nefanda”53. A noção de que certos príncipes são reconhecidos ou
desprezados, amados ou odiados, tomados como criminosos ou legítimos não está ausente do
pensamento de Maquiavel em O Príncipe. Por mais profundo que possa ser o ofuscamento de uma
delimitação entre principado e tirania, não seria possível assumir que esta distinção seja inoperante
ou ignorada no livro. Quanto à indistinção entre repúblicas oligárquicas e democráticas, também não
a poderíamos afirmar como parte dos argumentos do autor em O Príncipe, pois no quinto capítulo
vemos explicitamente usada uma noção de stato di pochi como governo oligárquico54.
Por fim, também não poderíamos dizer que Maquiavel não aborde a possibilidade de misturas
constitucionais em O Príncipe. Chama atenção, especialmente, a forma como ele descreve a
monarquia francesa de seu tempo: Dentre os reinos bem governados e bem-ordenados de nossos tempos, conta-se a França, onde se encontram inúmeras constituições boas, das quais dependem a liberdade e a segurança do rei. A principal delas é o parlamento e sua autoridade, pois quem ordenou esse reino, conhecendo a ambição e a insolência dos poderosos e julgando necessário pôr-lhes um freio na boca para corrigi-los, além de, por outro lado, conhecer o ódio do universal contra os grandes, ódio este fundado no medo, e querer dar-lhe segurança, não quis que esta preocupação específica recaísse sobre o rei, a fim de poupá-lo de ser acusado pelos grandes de favorecer os populares e de ser acusado pelos populares de favorecer os grandes. Por isso, constituiu um terceiro juiz com a função de controlar os grandes e favorecer os pequenos sem ônus para o rei. Não poderia essa ordenação ser melhor nem mais prudente, pois era a maior razão da segurança do rei e do reino.55
A segurança do reino francês se dá em função de suas boas constituições. O que a constituição
Francesa garante é autoridade para uma ordenação, o parlamento, para além do próprio rei. O
parlamento gere as disputas e permite o desafogo das partes da cidade – os populares e os grandes –
sem ônus para o rei. Portanto, a fim de assegurar a posição do rei, a constituição francesa estabelece
em relação a ele contrapesos de autoridade oligárquicos e populares. A influência da tradição do
52 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo VI, p. 33 53 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo VIII, p. 39 54 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo V, p. 23 55 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XIX, p. 92
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governo misto é inegável. O tema das repúblicas e a noção de república mista não estão excluídos do
escopo de O Príncipe.
A distinção simplificada entre repúblicas e principados surpreende o leitor, mas deveríamos
supor com ela uma ruptura radical com a tradição? Uma resposta para este problema parece difícil de
ser definitivamente traçada. Arriscamos aqui uma resposta possível: outro paralelo traçado no
primeiro capítulo entre repúblicas e principados é que os domínios conquistados por um príncipe
podem ser acostumados a viver sob um príncipe ou a ser livres. Aprendemos mais tarde, no capítulo
quinto, que são livres as cidades que vivem sob suas próprias leis, onde os cidadãos ou parte deles,
exercem o governo regulado por elas. Talvez seja, não exatamente o regimento político, a forma de
governo, especifica ou exclusivamente, o que Maquiavel busca mobilizar com a afirmação de que
stati são repúblicas ou principados, mas antes o exercício e a agência do governo ou do poder. Em
certas comunidades políticas o príncipe exerce ou não exerce poder, sendo este poder exercido por
um príncipe e podendo ser conquistado pelo príncipe. Ou, alternativamente, o poder é exercido pela
distribuição ordenada por leis (oligárquicas ou democráticas) do poder entre o povo. Essas duas
formas de exercício do poder não são excludentes, pode haver estes dois stati presentes na
comunidade política. É plausível, assim, propor que quando Maquiavel afirma no segundo capítulo
que não tratará das repúblicas, restringindo-se aos principados, ele restringe-se ao exercício do poder
dos príncipes, os stati dos príncipes. No seguimento de nossa análise, devemos explorar melhor o
sentido de stato em O Príncipe, mostrando como seu sentido abrange tanto ordenação quanto ação
política, tanto príncipe quanto principado, assumindo um sentido aproximado de exercício do poder.
1.1.2. O stato entre ação e ordenação políticas Até o momento, examinamos a afirmação de Maquiavel segundo a qual todos os stati são
repúblicas ou principados. Assumimos, com essa afirmação, que o autor esteja se referindo às formas
de governo, aos regimentos políticos. Afinal, repúblicas e principados são tradicionalmente
entendidos como tais – regimentos ou formas políticas. No entanto, como vimos, a distinção muito
simplificada de Maquiavel das formas de governo em duas categorias causa surpresa e deve ser
considerada com precaução. A verdade é que Maquiavel se refere às formas de governo da república
e do principado com uma das noções mais controversas de sua obra: lo stato.56 Em primeiro lugar é
preciso ter em mente que associar diretamente o stato de Maquiavel ao Estado moderno seria um
56 Hexter inclui o termo stato na seguinte constatação: “Prof. Giuseppe Prezzolini […] observou que ‘[…] Maquiavel usa a mesma palavra para diferentes conceitos e expressa os mesmos conceitos com diferentes palavras’ […]. Os contos particularmente inconsistentes que os exploradores do vocabulário de Maquiavel trouxeram justificam as considerações desanimadoras de Prezzolini quanto às dificuldades e excentricidades do terreno. Pois, apesar de a maior parte dos relatos concordarem quanto a quais são os principais pontos - virtù, fortuna, necessità, libertà, stato - não há consenso quanto a como são estes pontos”. [HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p. 113]. Minha tradução para todas as citações deste texto.
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anacronismo. Hexter pondera sobre a pergunta se, “quando Maquiavel usa o termo stato, ele tem em
mente o Estado moderno?”. A pergunta seria, portanto, muito natural, em função, tanto do frequente
uso que Maquiavel faz do termo, quanto da importância do fenômeno mesmo do surgimento do
Estado moderno. Entretanto, a resposta é, obviamente, não, segundo Hexter. Ele justifica afirmando
que “uma concepção jurídica total e precisamente elaborada do Estado foi forjada por juristas e
autores nos anos posteriores à morte de Maquiavel. [...] [A] concepção [destes juristas e autores] foi
amolada e definida por controvérsias das quais Maquiavel nada sabia”57. Isto não quer dizer que o
uso de Maquiavel do termo stato não tenha influenciado enormemente a elaboração posterior da
noção moderna de Estado. De qualquer forma, a concepção de Estado moderno não pode auxiliar-
nos com segurança em entender o que Maquiavel quer dizer por stato especificamente em O Príncipe.
Na obra de Maquiavel, este conceito ainda guarda uma amplitude semântica maior que a
delimitação propriamente moderna de Estado. Segundo Hexter, o conceito em O Príncipe guarda
mais semelhanças com os predecessores medievais de Maquiavel do que com a tradição moderna.
Ele afirma: “por mais difícil que possa ser especificar exatamente o que Maquiavel tinha em mente
cada uma das [...] vezes que falou de lo stato”, referia-se a “algo que está na esfera ou do status regis
ou do status regni, nos sentidos que estas duas expressões adquiriram na Baixa Idade Média”.
Maquiavel herda estes dois sentidos políticos de status: “um que focava no governante e nos atos de
governar” (status regis), e “o outro na ordem, na estrutura política e no modo de vida do governado”
(status regni)58. O conceito transita entre dois sentidos: um sentido de agência política – de exercício
ou possibilidade do exercício do governo –, outro de estrutura de uma esfera, local ou âmbito políticos
– o conjunto de ordenações e leis que constituem e organizam o exercício do governo associado a um
povo e um território. Não pretendemos afirmar que Maquiavel recebe passivamente a concepção
política de status da Idade Média, e deve-se observar que o Humanismo Cívico de forma geral e
Maquiavel em específico têm suas particularidades quanto à noção de stato. De qualquer modo,
podemos começar afirmando que, em Maquiavel, este termo, assim como na Idade Média, está
envolto em um jogo complexo de sentidos.
A complexidade do sentido de stato já pode ser apreciada no primeiro capítulo de O Príncipe.
Ao descrever o que entende por este termo e, consequentemente, o que há de comum entre repúblicas
e principados, Maquiavel nos dá uma caracterização intrigante. Ele relaciona a noção de stato às de
domínio e ter império sobre os homens. O autor está identificando o termo stato a domínio, e
atribuindo-lhe o predicado ter império sobre os homens. Mas como devemos entender esta
proposição? O que querem dizer estes termos? É uma terminologia vaga diante de uma tradição que,
57HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), pp. 115-116 58 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), pp. 118-119
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desde os antigos romanos, nunca deixou de usar, recuperar, modificar e reinterpretar estes termos à
exaustão - status, dominus, imperium. Maquiavel não nos localiza, não nos orienta em que sentido
está usando seus termos59. A descrição do stato no primeiro capítulo é imprecisa na falta de uma
introdução, prefácio ou explicação prévia do autor que nos encaminhe em que sentido deve-se
entender seus termos. Entender o stato em Maquiavel é tarefa crucial, mas extremamente difícil, pois,
como afirma Corrado Vivanti, “o termo ‘Estado’ nunca é objeto de uma definição; ao mesmo tempo,
aparece alternando sempre os vários significados, mesmo que com diferentes matizes, e, em nenhuma
de suas obras, encontra-se ocorrência mais circunscrita ou unívoca.”60. Felix Gilbert já havia alertado
que não só em Maquiavel, mas em seus contemporâneos e na literatura política do século XV, “o
sentido de stato é flexível”. Significava “o poder e o aparato de poder de um governante ou de um
grupo de governantes”. Algumas vezes usa-se “stato para designar uma área geográfica”. E o termo
poderia também servir para indicar a forma de governo61. Hexter, delimitado ao exame de O Príncipe,
apresenta um quadro mais detalhado e complexo:
Algumas vezes, parece significar o povo: lo stato é governado. Algumas vezes, parece significar a terra: na França, pode-se sempre contar com um barão para abrir caminho a lo stato para o inimigo. Algumas vezes, parece significar a terra e o povo: os venezianos queriam ganhar metade de lo stato da Lombardia. Algumas vezes, parece significar recursos em geral: é importante saber se o príncipe tem stato suficiente para defender-se. Algumas vezes é a classe dominante: os Espartanos criaram uno stato di pochi em Tebas. Algumas
59 “Tutti gli stati, tutti e’ dominii che hanno avuto e hanno imperio sopra gli uomini, sono static e sono [...]” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Diogo Pires Aurélio, 2008, 2017. p.90]. A dificuldade em se compreender estes termos vemos atestada na impressionante variedade de traduções para eles. Limitamo-nos a alguns exemplos. Em português, Diogo Pires Aurélio traduz: “Todos os estados, todos os domínios, que tiveram e têm império sobre os homens, foram e são […]”[MAQUIAVEL , Nicolau. O Príncipe. Tradução de Diogo Pires Aurélio, 2008, 2017, p.91]. Maria Júlia Goldwasser traduz: “Todos os estados, todos os domínios que tiveram e têm império sobre os homens foram e são […]” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p.5]. Mário e Celestino da Silva: “todos os estados, todos os domínios que exerceram e exercem poder sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou principados” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe: com notas de Napoleão Bonaparte e Cristina da Suécia. Brasília: Senado Federal, 1998 (Trad. Mário Celestino da Silva) (Coleção “Clássicos da Política”, v. “Conselhos aos Governantes”), p. 131]. Em inglês, a tradução de Russel Price é: All the states, all the dominions that have held sway over men, have been [...]” [Machiavelli, Niccolo. Machiavelli: The Prince (Cambridge Texts in the History of Political Thought) (Kindle Locations 623-624). Cambridge University Press. Kindle Edition. 2012 (1988)]. Robert M. Adams traduz: “All the states and governments that ever had or now have power over men were and are […]” [MACHIAVELLI, Niccolo. The Prince: A Norton Critical Edition, ed. and trans. Robert M. Adams. New York: Norton, 1977. p. 4]. HEXTER, J. H. : “All stati all dominations that have had and have political command over men have been and are […]” [HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957)]. Em francês, Jean-Louis Fournel e Jean-Claude Zancarini traduzem: “Tous les états, toutes les seigneuries qui ont eu et ont un commandement sur les hommes, ont été et sont […]” [MACHIAVELLI, Niccolo. De principatibus = Le prince. Coautoria de Jean-Louis Fournel, Jean-Claude Zancarini. Paris: Presses Universitaires de France, 2000, p. 45]; eles comentam sua tradução, retomando outros caminhos escolhidos em francês: “seigneurie (dominiii): […] ‘seigneurie’ chez Gohory; ‘souveraineté’ chez Guiraudet; ‘domination’ chez Périès; ‘puissance’ chez Lévy; ‘pouvoir’ chez Bec […] Commendement (imperio): […] ‘commendement’ […] chez Gohory et Barincou; ‘autorité’ chez Guiraudet, Lévy et Bec; ‘empire’ chez Périès.” [MACHIAVELLI, Niccolo. De principatibus = Le prince. Coautoria de Jean-Louis Fournel, Jean-Claude Zancarini. Paris: Presses Universitaires de France, 2000, pp. 223-4]. 60 Vivanti, Corrado. Nicolau Maquiavel – nos tempos da política (Kindle Locations 2876-2878). Kindle Edition. Martins Fontes: São Paulo, 2016 61 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence. Princeton University Press, 1965, p. 177. Minha tradução para todas as citações deste texto.
36 vezes, parece significar o governo sem o povo: o povo precisa de lo stato e lo stato precisa do povo. Algumas vezes, parece significar o povo, a terra e o governo juntos: a Itália é dividida em più stati. Uma vez que lo stato ‘tem comando’ [imperio]; ordinariamente é comandado. E assim por diante.62
A flexibilidade do sentido de stato torna-se uma dificuldade uma vez que esta noção é crucial
nos argumentos desenvolvidos em O Príncipe. Como expressa Hexter, stato é “uma das palavras mais
importantes nos escritos de Maquiavel – uma das palavras que ele escreve em lugares muito cruciais
para indicar o que ele tem em mente”63. Se, quando Maquiavel usa o termo stato, “ele o faz para
indicar alguma coisa que tem em mente”, se stato é um dos termos que “proporciona a ossatura de
sua escrita”64, então a indeterminação quanto a um sentido coerente desta noção põe em risco uma
compreensão coerente da obra do autor como um todo. Assim, por mais que possamos aceitar sentidos
variantes e usos diversos da noção de stato, não podemos prescindir de uma certa coerência ou
unidade que permita ao menos identificar um conjunto de elementos que se relacionam e direcionam
a um mesmo horizonte, por mais geral e distante que ele seja.
Portanto, continuemos no stato como o termo é introduzido no primeiro capítulo de O
Príncipe. Stati são principados ou repúblicas; são domínios; e têm império sobre os homens. Partindo
disso, podemos arriscar outras associações. Depois de introduzir a noção de stato, Maquiavel parte
para o que parecem ser as tarefas do capítulo primeiro anunciadas no título - explicitar os gêneros de
principados e de que modos se adquirem. Sendo o principado um stato, poderíamos esperar encontrar,
na descrição de stato, elementos importantes para a compreensão do principado. O que chama
atenção, novamente, é a concisão abrupta do autor. O leitor poderia esperar deste capítulo uma divisão
detalhada, que considerasse exaustivamente os aspectos do tema dos principados. O que os leitores
encontram no capítulo, entretanto, são distinções limitadas a uma única oposição (hereditariedade e
inovação) e a uma perspectiva específica (aquela do príncipe). Ao circunscrever todos os gêneros de
principados na oposição hereditário-novo, um aspecto muito restrito do tema não estaria sendo
considerado? Deparamo-nos com esta dúvida se levamos em conta outras abordagens tradicionais e
célebres de se tratar o principado ao longo da história desconsideradas por Maquiavel no primeiro
capítulo, como a divisão entre tiranos e monarcas já mencionada da tradicional divisão das formas de
governo; ou a divisão medieval de Fortescue entre regnum regale e regnum politicum et regale65. E
não precisaríamos sair do interior de O Príncipe para constatar a falta de abrangência dos gêneros
apresentados em sua abertura. No decorrer do livro, outros gêneros, outras caracterizações de
principado são apresentadas e consideradas. No capítulo IV, passamos a conhecer a distinção entre
62 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.124 63 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p. 115 64 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.114 65 Cf. POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003. p. 20. Minha tradução para todas as citações deste texto.
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principados nos quais a autoridade do príncipe é absoluta e nos quais a autoridade é dividida com
outros senhores; nos capítulos IX e XI, respectivamente, passamos a conhecer outros dois gêneros
possíveis de principados: o civil e o eclesiástico. Estas caracterizações fogem ao escopo da oposição
principados hereditário-novo. Por que não seriam estes também outros gêneros de principados?
No primeiro capítulo de O Príncipe, principados são hereditários ou novos. Maquiavel
descreve o primeiro gênero como aqueles principados nos quais o governante é do mesmo sangue do
governante anterior: os principados hereditários. De que os principados sejam stati, temos a noção de
stato hereditário. Nestes stati, “a linhagem de seu senhor é príncipe há muito tempo”. Que um
principado hereditário tenha seu (loro) senhor - que é, e cujo sangue também é, príncipe – é de se
levar em consideração, pois aqui se desdobra a concepção de ter império sobre os homens: império
exercido sobre e por homens, por senhores e príncipes. Em contraposição aos principados hereditários
temos os principados novos, que são divididos em dois subgêneros: são como membros anexados a
um principado hereditário ou em tudo novos. No primeiro caso, Maquiavel nos fala de “membros
anexados ao stato hereditário do príncipe que os conquista” 66. Temos então, novamente a figura do
príncipe, do senhor, que, pode não só herdar, como conquistar e anexar membros a seu stato. Quando
o faz, o príncipe governa, como saberemos no capítulo III67 , um principado misto, isto é, um
principado hereditário que é expandido pela anexação e conquista. Estes territórios são novos, pois
há a introdução de um novo governante. O governo introduzido, entretanto, não deixa de ser
hereditário em certo sentido, e é novo na medida em que é transposto ou expandido. O centro
gravitacional da distinção permanece no governante. Nápoles é um novo membro anexado ao
domínio de Fernando II de Aragão, rei da Espanha. O domínio de Fernando II, entretanto, é
hereditário; é novo para Nápoles, mas não para o povo espanhol68.
No segundo subgênero, os principados ditos em tudo novos, o príncipe não somente conquista
o principado, mas o funda. Lefort nota que, no primeiro capítulo, Maquiavel “se arranja para não
mencionar o caso da fundação do Estado, [...] de tal sorte que o Estado parece preexistir à ação do
sujeito político”69. De fato, pouco é explicitado no primeiro capítulo sobre o que se entende por
principados inteiramente novos. No entanto, o exemplo de Francesco Sforza não deixa dúvida. Ele é
retomado no sétimo capítulo como exemplo para um dos “modos [...] de tornar-se príncipe”70 . E
“aqueles que [...] se tornam príncipes” são os que devem “fundar seu stato e sua segurança”71. O
principado não é meramente expandido pela anexação de novos membros, mas fundado. Francesco
66 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo I, p. 5 67 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo III, p. 9 68 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo I, p. 5 69 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 348 70 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo VII, p. 30 71 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo VI, p. 27. Nosso itálico.
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dá início à dinastia Sforza como governantes italianos pela conquista do ducado de Milão,
suplantando a família Visconti como governantes. Seu status de governante é novo, assim como seu
principado – Sforza “passou de homem privado a duque de Milão”72. Novamente, portanto, desponta
a figura do príncipe, do senhor, junto das noções de stato e principado. E notamos que ela também é
salientada no padrão da forma como são expostos os exemplos de principados novos. Maquiavel nos
diz que Milão foi como um principado em tudo novo para Francesco Sforza; e que o reino de Nápoles
é como um membro acrescentado ao seu domínio para o rei da Espanha. Um principado é de
determinado gênero para determinado governante, diz-nos a forma como Maquiavel apresenta seus
exemplos73. Esta maneira de formular seus exemplos delimita uma perspectiva, um ponto de vista
particular - a perspectiva de Sforza e do rei da Espanha - a perspectiva do príncipe, do senhor.
Os gêneros de principados elencados por Maquiavel no primeiro capítulo parecem estar
circunscritos à posição e à figura do príncipe. Principados podem ser herdados ou conquistados pelos
príncipes. É a partir deste critério, o da agência do príncipe (se herda ou conquista), que se caracteriza
os principados no primeiro capítulo. Lefort entende esta relação entre o gênero de principado e a
perspectiva do príncipe no primeiro capítulo da seguinte forma:
Maquiavel classifica todos os Estados, antigos e modernos, em duas categorias, depois distingue diversos tipos de principados; ele só o faz adotando a perspectiva do príncipe [...]. Por um lado, o objeto, o principado, é apreendido em uma definição que o constitui como resultado de operações do sujeito [...]. Por outro lado, o sujeito, o príncipe, só é ele mesmo determinado relativamente ao lugar que ele ocupa em relação ao objeto.74
A tipificação apresentada por Maquiavel imbrica indissociavelmente príncipe e principado, como que
toma a classificação de um pela do outro. Conhecemos se o principado é novo, conhecendo se o
príncipe é novo; ou se o principado é hereditário, sendo o príncipe hereditário; ou se um domínio só
é novo enquanto membro anexado, sendo o príncipe hereditário em um principado, mas novo por
expandir seu território em outro. Em conflito com o que o título do primeiro capítulo de O Príncipe
nos diz, seu objeto não parece ser o principado, mas o príncipe.
A preeminência da perspectiva do príncipe continua na distinção seguinte: “os domínios assim
conquistados ou são acostumados a viver sob um príncipe, ou a ser livres”75. Ora, se todos os stati,
que têm império sobre os homens, são ou repúblicas ou principados, então cada um deles deve
acostumar seus homens a uma forma de governo ou outra. Portanto, todos os stati são acostumados a
viver sob um príncipe ou a ser livres. Entretanto, o que Maquiavel afirma é levemente mais complexo.
A distinção se dirige aos principados novos e Maquiavel salienta o processo de conquista envolvido.
72 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo VII, p. 30 73 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo I, p. 5 74 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 348 75 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo I, p.5
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O autor se refere aos domínios assim conquistados. O costume à liberdade ou à vida sob um príncipe
parecem ser importantes, não de forma geral ou como uma propriedade de todos os stati, mas da
perspectiva do príncipe, aquele que conquista o principado. Por fim, a perspectiva daquele que
adquire o principado se torna patente nas últimas considerações do autor no capítulo. São as
habilidades e capacidades, bem como a potência bélica daquele que adquire um novo principado que
são consideradas - por sua virtù ou por sua fortuna, por seu poder bélico ou pelo poder bélico alheio,
os principados são adquiridos. São considerações que concernem diretamente aos príncipes ou aos
que querem se tornar príncipes, são suas ações, sua habilidades e potencialidades que são sublinhadas.
Entretanto, se observamos atentamente, de que modo se adquirem os principados é a pergunta central
de todo o primeiro capítulo e não somente de suas últimas considerações. O eixo no qual se alinham
todas as asserções é a aquisição do principado.
Claude Lefort faz a seguinte reflexão: “Maquiavel [...] formula em seu capítulo de introdução
duas questões: ‘quantas espécies há de principados e por quais meios eles são adquiridos’. Na
verdade, ele retém somente uma delas, a segunda, como se ele determinasse o sentido da primeira”.
Distinguir principados entre novos ou hereditários nada mais é do que um aspecto da questão de como
se adquire um principado: por conquista ou por hereditariedade. Distinguir membros anexados de
principados em tudo novos seria detalhar as consequências da conquista: ela funda ou expande o
poder do príncipe. Desta forma, Lefort conclui sobre o conteúdo que parece efetivamente compor o
primeiro capítulo: “somente, parece, a tomada do poder retém [...] a atenção” de Maquiavel “e lhe
fornece o critério de sua classificação”76. Se no primeiro capítulo é a tomada principado o que rege
sua classificação, a questão colocada no segundo versa centralmente sobre seu governo e manutenção.
Novamente, a perspectiva do príncipe e de sua agência é fundamental. O principado, em particular,
aparece sempre sob a ação, a regência de um príncipe; o stato, em geral, sempre associado à ação de
pessoas ou grupos de pessoas.
É a constatação da preeminência do príncipe na referência aos principados – e, assim, da ação
política, de forma geral, em relação aos stati - que queremos primeiramente sublinhar na compreensão
destas noções. Verificamos que o stato e o principado estão sempre associados à atividade de um
agente político. O principado é herdado, conquistado, fundado, mantido e governado. É algo que se
adquire, que se mantém e que se perde. Estas operações devem ser praticadas ou evitadas pelos
príncipes. Esta forma de abordar o principado é nitidamente expressa na carta de Maquiavel a
Francesco Vettori de 10 de dezembro de 1513, uma das principais fontes às quais recorrem os
estudiosos para entender a proposta e as circunstâncias da redação de O Príncipe. Maquiavel anuncia
a Vettori a composição de “um opúsculo, De principatibus,” no qual se aprofunda quanto pode “nas
76 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 332
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cogitações a respeito deste objeto, discutindo que coisa é o principado, de que espécies são, como são
adquiridos, como são mantidos e por que são perdidos.”77. Maquiavel não se refere a governo ou
governar aqui, mas expressa um conjunto de atividades em harmonia com O Príncipe: adquirir,
manter e (evitar) perder o principado.
Se lemos o termo munidos por seu sentido moderno, stato parece ter o sentido de corpo
político, da cidade e suas leis, para além do governante ou qualquer agente. Poderíamos entender que
a manutenção do stato refere-se à subsistência do corpo político, não de seu governante ou de seu
regimento. Ao adquirir ou perder o stato, os governantes estariam operando nas condições acidentais
do stato, este não perdendo sua substância constitutiva. Hannah Arendt, que entende que Maquiavel
teria em mente já uma concepção moderna de Estado – o Estado-nação -, assume estas concepções.
É importante lembrar que Arendt não se propõe uma comentadora da obra de Maquiavel, nem se
compromete com uma interpretação estrita e rigorosa. A autora se utiliza de uma interpretação
coerente, mas limitada e orientada a seus próprios interesses teóricos. De qualquer modo, Arendt não
propõe uma interpretação inusitada ou extravagante da noção de stato e a clareza com a qual expõe
este entendimento do termo e suas consequências é muito instrutiva para nossos objetivos aqui:
A palavra stato vem da expressão latina status rei publicae, cujo equivalente é “forma de governo”, no sentido que encontramos ainda em Bodin. O elemento característico é que stato deixa de significar “forma” ou um dos “estados” possíveis da esfera política, e passa a significar aquela unidade política subjacente de um povo, que pode sobreviver à sucessão dos governos e também das formas de governo. O que Maquiavel tinha em mente, é claro, era o Estado-nação, isto é, o fato, que é uma coisa natural somente para nós, de que Itália, Russia, China e França, dentro de seus limites históricos, não deixam de existir junto com qualquer forma de governo.78
Um exame mais cuidadoso e detido de O Príncipe, entretanto, logo nos causa dúvida quanto
à interpretação de Arendt, junto de muitos outros autores e comentadores, sobre o que Maquiavel tem
em mente quando fala do stato. Hexter adverte que “uma coisa que lo stato nunca significa em O
Príncipe é o Estado concebido como um corpo político transcendente aos indivíduos que o
compõem”79 . É preciso ter em mente o que significa manter o principado mais precisamente.
Recuperando seu sentido etimológico, manter significa “ter em mão”, “segurar”80. Este sentido da
77 MACHIAVELLI, Niccolo. De principatibus = Le prince. Coautoria de Jean-Louis Fournel, Jean-Claude Zancarini. Paris: Presses Universitaires de France, 2000, p.530, nossos itálicos e tradução. 78 ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. Tradução de Denise Guimarães Bottmann; Apresentação de Jonathan Schell. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2011, p. 356 [Capítulo 1, nota 24]. Tradução alterada. 79 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.133 80 O Vocabolario etimologico della lingua italiana de Ottorino Pianigiani nos dá a seguinte entrada para mantenere: “mantenère prov. e sp. mantener; fr. maintenir; port. manter: dal lat. MANU-TENERE tenere in mano. Propr. Tener fermo e fisso; e nel senso figurato Conservare nel medesimo stato (come il ted. hand-haben che vale avere in mano, e fig. proteggere). …” [consultado 6 de fevereiro de 2019: https://www.etimo.it/?term=mantenere&find=Cerca]. É interessante notar que Pianigiani atribui os sentidos figurados de conservare e proteggere ao termo, mas destaca o sentido literal de tenere ou avere in mano. HEXTER, J. H. observa que, em O Príncipe, “mantenere retém seu significado etimológico:
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palavra enfatiza o sujeito da ação, diferentemente do sentido de “sustentar”, “preservar” ou
“conservar” que poderíamos também atribuir a ela. Expliquemos: quando dizemos que o principado
é sustentado, ou é preservado, ou é conservado, entendemos o sentido da oração sem grandes
problemas; não nos perguntamos, em geral, sobre o agente da passiva, nestes casos81. Isto, porque o
sentido destes verbos dá ênfase ao objeto e não ao agente. Se pensamos no sentido de sustentar,
preservar ou conservar, o que nos interessa, em geral, é o que é sustentado, preservado ou conservado.
Todavia, quando afirmamos que algo é tido em mãos, queremos logo saber - nas mãos de quem? A
ênfase está no sujeito, no agente. Se usamos ter em mãos na voz passiva, o sentido da oração pareceria
incompleto, se não somos informados, anteriormente ou na própria oração, do agente do verbo.
É especialmente significativo também o exemplo de Francesco Sforza como fundador em
Milão. Lefort o aborda enquanto uma dificuldade a ser esclarecida: se Maquiavel “fala de um
principado inteiramente novo e confronta a hipótese da fundação do Estado ou de uma mudança
radical de regime no Estado, por que dá como modelo Francesco Sforza que não fez mais que
substituir a tirania dos Visconti pela sua?”82. Deve-se lembrar, entretanto, que o que está em questão
nos capítulos VI e VII é a passagem de homem privado a príncipe, é nestes termos entendida a
fundação. Ela pode, é evidente, significar a fundação mesma da unidade do corpo político ou uma
mudança radical na forma de governo; mas a passagem à condição de príncipe é a condição necessária
da fundação do principado.
É muito instrutivo como Hexter conduz seu estudo em Il Principe and lo stato. O comentador
investiga o que Maquiavel entende por stato em O Príncipe, buscando responder ao problema da falta
de um uso consistente deste termo. Hexter reconhece a extrema variabilidade de sentidos assumida
por esta noção, mas não conclui disso que seu uso seja inconsistente. A consistência da noção de stato
não está no sentido atribuído a ela - o que Hexter reconhece ser realmente complexo e variável -, mas
no uso que dela é feito no desencadeamento argumentativo do autor. A consistência está em uma
atividade sempre direcionada ao stato, a uma relação constante que ele estabelece com os agentes
políticos. Ao longo das páginas de O Príncipe, são as atividades da manutenção, conquista, fundação,
perda e governo do stato que são reiteradamente avaliadas e ensinadas por Maquiavel. Junto delas,
aprendemos que é do interesse dos príncipes também conhecer outras operações correlatas: ocupar,
acrescentar, atacar, entrar, juntar, tirar, deter, possuir, ser expulso dos – principados e statos. Todas
ter em mão (to hold in hand)”. Hexter também afirma ser acurada a tradução de mantenere lo stato para o inglês: keep lo stato in hand; keep a grip on lo stato. [HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.120] 81 Tanto é assim que, em português, quando buscamos converter estas orações na voz passiva analítica para a voz passiva sintética, incorremos em uma ambiguidade. Sustenta-se, preserva-se, conserva-se o principado: é difícil identificar se estas orações estão na voz passiva ou na voz reflexiva. O mesmo não ocorre com ter em mãos. Ao afirmar que tem-se o principado em mãos, parece absurda a possibilidade de se interpretar a oração como, o principado tem a si mesmo em mãos, e supomos um agente específico omitido da oração. 82 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard,1972. p.333
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estas atividades, quando são apresentadas em O Príncipe, comportam-se de maneira comum: têm o
príncipe como agente e o principado ou o stato como objetos. Esta relação entre príncipe e principado
é constante na obra. É salientemente frequente no livro o príncipe ser enfatizado como agente sobre
o principado e o principado ser abordado como objeto, raramente como sujeito, da ação de agentes
políticos (em geral os príncipes). Há uma consistência quanto ao uso destes verbos em relação aos
príncipes e aos principados: “a consistência não repousa em uma denotação claramente especificada
e continuamente aderente de lo stato, mas em uma atitude ordinariamente consistente em relação a
ele; e esta atitude é exploradora [exploitative]” 83
Hexter chama esta atitude ou relação de exploradora e especifica o sentido que quer dar a ela:
“a ação da qual lo stato é o objeto quase sempre é exploradora; ela manipula e maneja lo stato para o
benefício daquele que está no controle ou que quer estar no controle”84 Principados são stati, e é
tarefa do príncipe manter o principado; é tarefa do príncipe manter lo stato. Manter é ter em mãos -
o que foi adquirido; evitando-se que se perca. Se stato é domínio que tem império sobre homens,
então manter o principado, manter lo stato do príncipe, implica manter-se numa posição de domínio,
poder exercer império sobre homens. É sobre este ponto que Maquiavel é insistente: só se governa
enquanto se mantém no governo. Conservar o principado assume o sentido mais específico de
conservar-se no principado, preservar-se na posição de príncipe. É neste sentido que Hexter entende
que Maquiavel “não distingue absolutamente o príncipe mantendo lo stato e o príncipe mantendo-se
em lo stato ou simplesmente mantendo-se”85. Maquiavel está trazendo para seu debate um conjunto
de considerações sobre a capacidade do príncipe de manter-se no posto de governante. Deve-se notar que, no segundo capítulo de O Príncipe, Maquiavel coordene na formulação de
sua questão governar e manter – como podem ser governados e mantidos. A atividade de manter o
principado é enfatizada por Maquiavel. A ênfase sobre a atividade de manter o principado é atestada
constantemente ao longo das páginas de O Príncipe. A cada capítulo, sob diferentes aspectos e
considerando diferentes contextos e casos, a questão permanece e é lembrada constantemente pelo
autor: como manter o principado? É preciso estar atento a como esta constatação é apresentada pelo
autor em contraposição a seus antecessores na arte de aconselhar os governantes. Certamente, supõe-
se que governar um principado implica mantê-lo. Aquele que governa exerce, dentre outras funções,
a preservação da autoridade do governo sobre os governados, evitando desordens, conspirações e
ataques inimigos. Isto não passou desapercebido aos olhos das tradições clássica e cristã. Entretanto,
estas tradições também sustentavam que a mera conservação do poder não esgotaria a atividade de
governar e reconheciam na figura do tirano aquele que governava visando exclusivamente a
83 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), pp. 124-125 84 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.122 85 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.120.
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preservação do poder. Tradicionalmente, a mera subsistência do poder não era considerada requisito
suficiente para o verdadeiro exercício da política, para o bom governo. O exame que Claude Leford
faz do quinto livro da Política de Aristóteles sublinha explicitamente este aspecto:
É verdade que a Política de Aristoteles, em seu quinto livro, examinava os meios dos quais dispõe um Poder, qualquer que seja sua natureza, para dispersar as revoluções que o ameaçam, mas o estudo se fundava sobre uma definição do Estado que não nos permitia duvidar das intenções do autor. Ela ensinava, em primeiro lugar, que a organização do Estado estava subordinada ao princípio da justiça; que o bom regime assegurava uma harmonia entre os diversos elementos da comunidade; em consequência, que um regime era defeituoso e vulnerável quando ele privilegiava abusivamente um de seus elementos, e ordenado e resistente quando colocava freios à desmesura. De tal sorte que a análise da tirania, por mais audaciosa que fosse na tentativa de fixar regras de sua conservação, inscrevia-se, sem equívocos, na busca pelo Bem. Se o interesse do príncipe poderia lhe servir de suporte, é porque a essência do Estado se fazia reconhecer até nas formas viciosas [de governo] e porque o bem do tirano e o bem comum não podiam se desmembrar totalmente sem provocar a ruína do poder.86
Aristóteles, e a tradição clássica de maneira geral, certamente dedicou esforços em avaliar os
meios pelos quais melhor se preserva o poder, mas o fez direcionado por uma série de pressupostos.
Examina-se a preservação do poder pressupondo que a atividade de governar deveria estar
subordinada a um princípio de justiça e à busca do bem; que um bom regime é o que garante a
harmonia e previne a desmesura na vida política; e que há uma distinção entre formas viciosas e
formas corretas de governo, portanto, uma distinção entre os verdadeiros governantes e os tiranos. Os
tiranos são aqueles que governam colocando o seu bem privado acima do bem da comunidade e do
regulamento dos princípios de justiça e harmonia. Assim, o tirano tende a desmembrar os seus
interesses e os da cidade. Este desmembramento, entretanto, se se efetivasse completamente,
significaria a ruína completa do poder: a destruição da cidade significa a destruição da fonte de
domínio do tirano. Neste sentido, o exercício do poder do tirano é visto como vicioso, na medida em
que tende à corrupção do corpo político; e o exame dos meios para a preservação do poder, embora
também se apliquem aos tiranos, só se justifica se direcionado propriamente ao bom governo, que
visa a perfeição do corpo político, realizando nele o verdadeiro bem, a justiça e a harmonia.
A tradição cristã não apresenta uma atitude muito diferente da dos pensadores clássicos neste
aspecto. Lefort compara a proposta de se examinar como se mantêm e governam os principados de
Maquiavel a de Egidio Colonna em De Regimine principum (1473), que “esforçava-se em conciliar
os príncipes cristãos com as exigências práticas do governo dos homens”. Estas exigências práticas,
entretanto, só poderiam ser apreciadas depois de considerada a função do príncipe em um mundo bem
ordenado por Deus: “antes de chegar, finalmente, ao exame da política do príncipe, em tempos de
guerra e em tempos de paz, ele devia se perguntar a quais fins a comunidade da família, da cidade e
86 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, p. 347
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do Estado havia sido criada por Deus”87. O que observamos é, também na tradição cristã, uma série
de pressupostos e princípios de bem governar aos quais deve estar submetido o príncipe para que suas
exigências práticas e seu exercício da guerra não o façam ser reconhecido como um tirano - é somente
sob a vocação de Deus e na ordem de Seu reino que os príncipes garantem seu direito de comandar e
preservar seu comando.
A maneira como Maquiavel introduz a questão da preservação do poder é sensivelmente
diferente da tradição clássica e cristã. Lefort o contrapõe a Aristoteles e Colonna mostrando que a
questão de Maquiavel “não surge do interior de um discurso e de um mundo ordenados, nos quais
aquele que a coloca” a questão teria “somente de reconhecer o lugar que [lhe] é assinalado”88. Como
já notamos, Maquiavel inicia seu livro sem direcionar seu leitor a uma tradição de pensamento
específica. Isto certamente dificulta a compreensão quanto a seu método e quanto à forma como usa
seus termos. No entanto, isto também nos indica algo importante: Maquiavel parece também não estar
preso a uma ideologia ou visão de mundo estabelecida. O autor introduz a obra com distinções e
proposições centradas em como os principados são adquiridos. Em seguida, formula a sua questão:
como são governados e mantidos os principados? A discussão quanto aos meios pelos quais se adquire
e conserva o principado, em O Príncipe, prescinde de princípios, uma natureza ou ordem divina, ela
é colocada por Maquiavel como ponto inicial e central. Nos termos de Lefort, “tudo se passa como
se doravante uma só questão comandasse a reflexão política […] : ‘disputar por quais maneiras [os
principados] podem ser governados e conservados’”89; em contraposição às questões de Aristóteles
no quinto livro da Política e de Colonna em De Regimine principum , “a questão maquiaveliana […]
se reduz a seus próprios termos”90.
Ao sublinhar o exercício da manutenção do poder como tarefa do governante, Maquiavel
reconsidera a advertência de seus antecessores quanto à tirania. Se é verdade que a manutenção não
esgota o exercício do poder, é igualmente verdade que constitui condição primária para qualquer
comando ou autoridade. Manter o principado é tarefa comum aos tiranos e aos governantes legítimos
(seja lá por que parâmetros venhamos a distinguir estes personagens). Que seja uma atividade
primária, não se segue que seja simples. É isto o que repetidamente nos adverte Maquiavel ao longo
das páginas de O Príncipe com seus exemplos: o autor narra diversas histórias de homens excelentes
que se arruinaram ou tiveram um triste fim. Se estes homens excelentes não puderam conservar o
principado, isto atesta que esta atividade não é simples. Não significa, entretanto, que aqueles que
foram o inverso de excelentes, homens maus e viciosos, tenham tido sucesso nesta tarefa, pois para
87 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, pp.346-347 88 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, p.347 89 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, p.346 90 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, p. 347
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eles a tarefa da manutenção é igualmente árdua. Um aviso não pode fugir à boca do conselheiro:
como é fácil arruinar-se e difícil conservar-se.
Podemos verificar como a ênfase na manutenção do principado contribui para a nebulosa
posição assumida pela figura do tirano na obra de Maquiavel, se examinamos o exemplo de Agátocles
Siciliano no capítulo VIII. Maquiavel não utiliza o termo tirano para se referir ao personagem; no
entanto, a descrição não deixa dúvidas do local que ocupa diante da tradição. Como indica o título do
capítulo, Agátocles é um “dos que chegaram ao principado por atos criminosos [per scelera]”. Ele
decidiu “tornar-se príncipe e manter, pela violência e sem obrigações para com os outros, aquilo que
por acordo lhe havia sido concedido”91. E, para tanto, não se poupou de “assassinar seus concidadãos,
trair os amigos, não ter fé, piedade nem religião”92. Por que o interesse de Maquiavel sobre uma tal
figura? O que permite ao autor apresentar o exemplo de um tirano como suficiente “para quem
precisar imitá-[lo]”93, portanto, como fonte de ensinamentos valiosos aos príncipes? Maquiavel assim
escreve sobre Agátocles:
Poderia alguém perguntar-se de que forma Agátocles e outros semelhante, após infinitas traições e crueldades, puderam viver por tanto tempo seguros em sua pátria e defender-se dos inimigos externos, sem que jamais seus súditos conspirassem contra eles, enquanto muitos outros, empregando a crueldade, não conseguiram manter seus stati nem nos tempos de paz, nem nos incertos tempos de guerra. Creio que isso resulte da crueldade mal ou bem empregadas.94
Não é pela crueldade de Agátocles que seu exemplo é narrado, mas por sua crueldade bem
usada. A crueldade é bem usada na medida em que permitiu ao governante defender-se dos inimigos
externos e das conspirações internas, permitiu manter o stato. Este feito, manter o stado, é o que
permite Agátocles se tornar um exemplo no escopo de O Príncipe, não a crueldade em si. O caminho
da crueldade é tão árduo quanto o da bondade; afinal, Agátocles “chegou ao principado e depois o
manteve com tantas decisões corajosas e perigosas”95. A tarefa de manter o principado nivela tiranos
e os bons governantes aos olhos do conselheiro, pois esta tarefa é ao mesmo tempo primordial e
dificultosa. Se Agátocles a realizou sob condições adversas e com extrema habilidade, seu exemplo
deve ser mencionado, mesmo que se o reconheça como um tirano.
A especial ênfase de Maquiavel quanto à necessidade imposta ao príncipe de manter o stato,
de manter-se na posição de comando - quanto à inevitabilidade de que, como coloca Lefort, “do
simples fato que o Estado existe, o príncipe é posto em uma das situações particulares que nós
91 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo VIII, p. 39 92 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo VIII, p. 40 93 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo VIII, p. 39 94 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo VIII, p. 43 95 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo VIII, p.40
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podemos observar e na necessidade de efetuar as operações que lhe prescreve seus status”96 – poderia
corroborar a interpretação de Hexter, segundo a qual “a única verdade que importa a Maquiavel em
O Príncipe [...] é se o príncipe vence, mantém o que tem, guarda lo stato, ou perde, perde o que tem,
perde lo stato”97 , de forma que “não há justificativa para a relação do príncipe com lo stato. Não
pode haver nenhuma, porque lo stato não é [...] um corpo político; é um instrumento de exploração,
o mecanismo que o príncipe usa para conseguir o que quer”98. De fato, não parece haver uma
justificativa moral para o príncipe assumir e manter a posição que ocupa (além da própria capacidade
de assim os fazer). Especialmente, no sentido do expor por qual “direito”. O príncipe tem seu stato,
para tanto, adquiriu-o de alguma forma e necessita mantê-lo. Este fato é explanado, explicado,
detalhado e ponderado pelo autor; mas raras vezes questionado “por que direito?” . Assim, o estudo
de Hexter cumpre papel fundamental em nos alertar que, se atribuímos ao termo stato
descuidadamente o sentido de corpo político, de Estado moderno ou Estado-nação, perdemos de vista
que manter, instaurar ou gerir o stato denotam com mais força e nunca estão separados do sentido de
manter, instaurar ou gerir o exercício do poder e da autoridade.
De qualquer modo, se reduzimos stato ao mero comando, império indiscriminado exercido
por alguém, corremos o risco de perder de vista que este poder se faz sobre territórios e homens que
neles habitam, organizados por este império de determinada forma, que se instaura mediante
ordenações e leis. Para entendermos bem o conceito de stato temos de estar atentos à amplitude de
seu sentido. Ele é composto de dois polos. Não só a ação do príncipe, mas também o objeto desta
ação deve e pode ser caracterizado. Podemos concordar com o que nota Hexter: Hoje podemos frequentemente falar de um Estado [state] adquirindo território, mantendo [holding] prisioneiros, mantendo [maintaining] uma posição legal, tomando propriedade, perdendo uma posse. Agora, a coisa curiosa é que nem mesmo uma vez em O Príncipe Maquiavel fala de lo stato fazendo qualquer uma dessas coisas. Lo stato não adquire, ou segura, ou mantém, ou toma, ou perde nada e ninguém.99
No entanto, deveríamos aceitar uma caracterização tão anêmica e contingente como a proposta pelo
comentador? Deveríamos ver, por um lado, o stato “simplesmente à mercê decentemente passivo e
nu, despido do menor vestígio de modesto revestimento descritivo ou denotativo, sendo adquirido,
ou assegurado, ou mantido, ou tido, ou tomado, ou perdido por alguém” 100 ? Por outro lado,
deveríamos pensar a ação do príncipe sobre o stato como restrita à manutenção do bem-estar e sucesso
imediatos e contingentes do agente, não havendo nada que transcenda e se mantenha para além deste
agente? É preciso ponderar com cautela sobre estes pontos.
96 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, p. 348 97 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.125 98 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.134 99 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p. 119 100 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), pp. 124-125
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Em primeiro lugar, é preciso salientar que o império envolvido na descrição do stato se faz
sobre homens; homens acostumados a formas de vida e de ser. Se nos atemos a estas afirmações,
podemos colocar em dúvida o caráter muito passivo e dominável do stato proposto por Hexter. Isto
porque é muito duvidoso que os homens na obra de Maquiavel sejam passivos e facilmente
domesticados. É bem verdade que em certas condições “convém que” o príncipe “seja mais amado”
e “naturalmente benquisto”101 pelos homens que comanda; e que o príncipe, tendo certa habilidade,
pode, “com astúcia, enredar a mente dos homens”, pois “o vulgo está sempre voltado para o que
parece [...], e não há no mundo senão o vulgo” 102. De qualquer modo, a imagem preponderante é a
de homens que mudam ativamente de senhores, guiados por crenças que “os faz tomar armas”103; de
homens que se fazem amigos ou inimigos; que concedem apoio ou oferecem resistência. Maquiavel
destaca a especial dificuldade que se apresenta ao príncipe quando têm inimigos que o atacam de
forma partidária entre seus súditos. Além disso, o autor é enfático em dizer que “a natureza dos povos
é variável; e, se é fácil persuadi-los de uma coisa, é difícil mantê-los nessa persuasão”104 . Certamente
a relação entre príncipes e súditos é a do primeiro exercendo império sobre o segundo, de os súditos
serem dominados pelos senhores. Não é uma relação simétrica. Entretanto, isso não implica uma
relação de ação unilateral, na qual os súditos (o stato) são meramente objeto da ação manipulativa de
um agente dominante. Os súditos também agem, além de sofrerem a ação. Certamente não são aqueles
que governam, adquirem e mantêm o poder, mas são os que resistem e rebelam-se, apoiam e anuem,
atacam ou defendem seus senhores. É curioso que Hexter caracterize o stato de forma tão passiva,
uma vez que ele mesmo comenta que “se o povo não obedece, o príncipe não tem real comando, e
em verdade efetiva ele não mantém lo stato”105. Ter o stato depende em grande medida dos homens
que sofrem o comando, se resistem ou não, e se podem ou não resistir.
Em segundo lugar é preciso notar que o império exercido sobre os homens no stato não é
qualquer comando ou força, mas poder político. Hexter reconhece esta especificidade. Ele nos diz
que, “quando o príncipe tem lo stato, ele tem o que lo stato é: comando sobre os homens”, comando
que precisa ser suficiente e efetivo106. Entretanto, ele também nos diz que, “apenas com poucas
exceções, onde Maquiavel falava do stato em O Príncipe, era em sentido estreitamente político. O
tema de seu discurso permanece na órbita geral do governante e do governado em um principado ou
uma república”107. Assim, “o que lo stato tem, aquilo sem o qual ele deixa de ser stato, é comando
político [meu itálico], imperio, sobre os homens”108. Entretanto, acreditamos que o comentador não
101 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo II, pp. 7-8 102 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XVIII, p. 88 103 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo III, p. 9 104 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo VI, p. 27 105 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p. 125 106 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p. 126 107 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p. 119 108 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p. 125
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desenvolva todas as consequências desta especificidade política. Ele atribui um valor muito restrito
às leis e ordenações como componentes do stato, bem como às consequências públicas da ação do
príncipe, que transcendem seu interesse privado e imediato. Seu exame é muito restrito, deixando de
lado um contraponto que parece pertinente. Encontramos nas palavras de Lefort este contraponto:
“este imperio, se ele é o nome dado ao poder que exerce tal homem ou tal grupo de homens sobre os
outros, [...] ele é igualmente o que se estabelece acima dos homens, tomados em sua generalidade,
aquilo em virtude do qual suas relações se ordenam no escopo de um Estado”109. Mantemos em
dúvida o uso do termo État, que poderia ser tomado indistintamente de seu uso moderno. De qualquer
forma, o comentador francês é pertinente em mostrar o caráter mais amplo, geral e organizador de
relações contido na noção de império do que a mera vantagem imediata do príncipe. É algo que se dá
acima dos homens particulares.
Maquiavel escreve no capítulo XII que “os principais fundamentos de todos os stati [...] são
as boas leis e as boas armas”. Ele complementa dizendo que “não se podem ter boas leis onde não há
boas armas”, mas também que “onde há boas armas costumam ser boas as leis”110. As leis são um
dos principais fundamentos dos stati e, portanto, não devem ser desconsideradas para entender o
sentido a estes atribuído. Hexter busca mostrar que “buone legge são leis para a vantagem do
príncipe” e não propriamente “para o bem-estar do corpo político”. Portanto, “as boas leis e boas
armas que são os fundamentos para lo stato são boas no sentido que irão evitar que o príncipe caia
em ruína, isto é, perca lo stato”111. É bem verdade que estas leis se façam em vantagem do príncipe e
evitem sua ruína. No entanto, não se trata de qualquer vantagem e qualquer ruína. Elas são
qualificadas: são políticas. As boas leis garantem um reconhecimento público e ordenado do exercício
de comando e da posição do príncipe. Neste sentido, mesmo que se façam em sua vantagem, têm
consequências e interesses que excedem uma mera vantagem imediata do príncipe. Esta vantagem é
mediada por uma relação de poder que transcende o indivíduo do príncipe. Neste sentido, Corrado
Vivanti nota a importância de um estudo como o de Quaglioni, cuja “análise da língua de Maquiavel
coloca em evidência a cultura jurídica e explica sua ‘insistência no problema dos ‘ordenamentos’,
isto é, dos direitos positivos e das formas de regimento”112
Esta transcendência do mero privado para o público podemos observar primeiramente na
questão da sucessão do governo. Que este ponto seja de interesse no livro de Maquiavel indica que o
109 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 348 110 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XII, p. 59 111 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.129 112 Vivanti, Corrado. Nicolau Maquiavel – nos tempos da política (Kindle Locations 3116-3117). Kindle Edition. Martins Fontes: São Paulo, 2016, citando QUAGLIONI, Diego, “Machiavelli e la lingua della giurisprudenza”, in Langues et écritures de la République et de la guerra. Études sur Machiavel, organização de Alessandro Fontana, Jean-Louis Fournel, Xavier Tabet, Jean-Claude Zancarini Name, Gênova, 2004, p. 180-81.
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que está em questão transcende a contingência temporal do príncipe. As vias pelas quais se dá a
sucessão de governo garantem não só o stato de um príncipe, mas uma propriedade deste stato
estabilizada para além da morte de um governante. A garantia da sucessão é tratada por Maquiavel
nos termos de leis e ordenações. Ao falar dos que chegaram ao posto de imperadores romanos pela
hereditariedade no capítulo XIX, Maquiavel usa o termo iure hereditario113. A sucessão do poder
precisa ser instaurada pela força da lei, que dura depois do governante, e não pela mera efetividade
do controle do príncipe, que cessa junto dele. Ainda no capítulo XIX, Maquiavel nos fala sobre o
sistema de sucessão dos sultões egípcios de seu tempo
É preciso notar que o stato do sultão [...] não se pode denominar principado hereditário nem principado novo, pois não são os filhos do príncipe antigo que o herdam e se tornam seu senhor, mas alguém eleito para este posto pelos que têm autoridade para isso. Sendo esta uma ordenação antiga, não se pode chama-la de principado novo [...]: embora o príncipe seja novo, as ordenações do stato são antigas e ordenadas para recebê-lo como se fosse seu senhor hereditário.114
Hexter entende que, nesta passagem, as “ordini do stato [...] eram [...] meramente as regras de
sucessão que asseguravam a sucessão imperturbada de um sultão após o outro no comando político
sobre os egípcios”115. É correto seu julgamento, mas esta observação não nos parece suficiente para
restringir o conceito de stato e de ordenação ao interesse e poder imediato do príncipe. O que ordena
o stato, o que funda e garante pela lei o poder do príncipe, transcende-o de alguma forma. As leis são
fundamento do stato e, com isso, são fundamento de algo que vai além do próprio príncipe. Não
devemos pensar em um corpo político substancializado, ou um bem comum ou viver civil
propriamente; mas podemos pensar em uma relação entre agentes, mediada por leis e transcendentes
em alguma medida aos envolvidos nela. As leis, enquanto fundamentos do stato, fazem-se
fundamentos de algo para além do próprio príncipe. Podemos avaliar isto na seguinte passagem: “da
parte do príncipe, há a majestade do principado, as leis, a proteção dos amigos e do stato que o
defendem, de forma que, com todas essas coisas somadas à benevolência popular, é impossível que
alguém seja tão temerário a ponto de conjurar contra ele”116. É bem verdade que as leis garantam a
segurança do príncipe, defendam-no. Isso não quer dizer, no entanto, que estejam limitadas a isto.
Elas vêm acompanhadas da majestade e da proteção dos amigos. O reconhecimento público e a
garantia de uma boa relação com os governados, juntos das leis, são componentes fundamentais do
stato. Vemos isso também expresso no capítulo XXIV de O Príncipe, no qual Maquiavel afirma que
um príncipe novo que consegue manter-se seguro e firme em seu stato terá “glória dobrada: o de ter
113 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XIX, p. 98 e p.100 114 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XIX, pp. 99-100 115 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.128 116 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XIX, p. 91
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dado início a um novo principado e a de tê-lo ornado e fortalecido com boas leis, boas armas e bons
exemplos; como também terão vergonha em dobro os que, tendo nascido príncipes, o perdem devido
à pouca prudência”117. A instauração do stato, quando efetiva, orna-o de boas leis e da segurança das
armas. Este ornamento dado pelo príncipe ultrapassa sua particularidade, ele tem consequências no
reconhecimento público e na estabilidade do regimento.
Tendo em vista estas considerações sobre o caráter político de stato, da importância que se
deve dar aos governados e às leis, podemos reavaliar a aproximação deste termo ao de Estado
moderno. Não para retornar à ideia de que Maquiavel seja o precursor de uma noção acabada e
moderna de Estado, mas para entender os motivos pelos quais essa associação pode parecer plausível
e como aproveitar-se deles criticamente, extraindo uma noção mais precisa e específica de stato. O
artigo de Hexter visa rebater, como principal oponente, o estudo de Fredi Chiappelli em Studi sul
linguaggio del Machiavelli no que concerne ao conceito de stato em O Príncipe. Chiappelli busca
mostrar que o conceito de stato está sendo usado de formas diferentes em O Príncipe e em seus outros
textos políticos118. Ele começa por introduzir o trabalho de Francesco Ercole, mostrando que o estudo
deste advertiria contra “a opinião tradicional, que atribui a Maquiavel o mérito principal de ter fixado
a denominação moderna de Estado [Stato]”. Para Ercole, o termo stato apresentaria “significados
variados”, “contradizendo [...] uma rigorosidade terminológica” 119. Ainda assim, “em Maquiavel,
segundo Ercole, começa-se [...] a individuar um par de conceitos que, fundidos, reúnem-se no
conceito moderno de Estado: o conceito subjetivo (o stato como poder público) e aquele objetivo (o
stato = povo + território)” 120– e aqui podemos vislumbrar o que mais especificamente Chiappelli
toma como conceito moderno de Estado. Para Chiappelli, ainda que Ercole reconheça de forma
embrionária nestes conceitos o Estado moderno na obra de Maquiavel, eles se apresentariam ainda
de forma esparsa, em diferentes tempos e promiscuamente, faltando assim esta “fusão” de sentidos
característica do conceito moderno.
Chiappelli chama atenção, no entanto, para que o estudo de Ercole apoia-se majoritariamente
sobre os Discursos e sobre a História de Florença. Ele, então propõe um exame do conceito
isoladamente em O Príncipe. Chiappelli afirma que, “na primeira frase de O Príncipe, o termo stato
tem univocamente o significado político-nacional territorial (subjetivo + objetivo, fundidos, portanto)
em estreita técnica”121. Significado de Estado moderno, portanto. Partindo para as outras ocorrências
117 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XXIV, p. 119 118 Hexter entende que “a tese geral de Chiappelli é que, em contraste com outras obras de Maquiavel, O Príncipe é um tratado técnico ou científico” [HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p. 135] 119 CHIAPPELLI, Fredi. Studi sul linguaggio del Machiavelli, Le Monnier, Florença, 1952, p.60 120 CHIAPPELLI, Fredi. Studi sul linguaggio del Machiavelli, Le Monnier, Florença, 1952, p.61 121 CHIAPPELLI, Fredi. Studi sul linguaggio del Machiavelli, Le Monnier, Florença, 1952, p.61
51
do termo no livro, Chiappelli identifica que em três quartos do total delas “o termo stato tem o
significado de ‘Estado’ em toda sua maturidade: as implicações fundamentais (política, nacional,
territorial) coexistem nas passagens individuais, seja considerado, sinteticamente, ‘como objeto’, seja
como ‘sujeito’”122. É esta a conclusão que Hexter não pode aceitar. Para ele, “a análise de Chiappelli
cai na [...] armadilha de comprometer-se adiantadamente com alguma definição definitiva exata de lo
stato e então procurar por ele em O Príncipe. Isto é uma armadilha, porque leva inevitavelmente a
um pré-preparo dos resultados”. Este erro metodológico é fácil de ser mostrado ao se testar a asserção
segundo a qual “os contextos nos quais lo stato aparece são geralmente tão indeterminados para fazer
possível qualquer das três ou quatro denotações de lo stato”. Assim: território; os governados; poder
reinante; status, posição ou ranque; entidade nacional-politica territorial – “é raro que dois desses
sentidos não se encaixarão”, e “surpreendente quão frequentemente três, quatro ou, ocasionalmente,
mesmo os cinco dos sentidos se encaixarão”123.
No entanto, deveríamos ver neles uma diversidade tão profunda a ponto de nos impossibilitar
de estabelecer um sentido comum? Pois a estratégia de Hexter, parece-nos em certa medida, é
abandonar uma busca de coerência entre estes sentidos em seus casos particulares, buscando a
coerência entre eles, antes, na ação que se faz sobre eles. Estamos plenamente advertidos sobre o
trabalho de Sísifo que sempre se apresentou para os leitores de Maquiavel na tentativa de encontrar
um sentido mais sistemático e definido para stato, e aderimos a muitos dos avanços permitidos pelo
exame de Hexter. De qualquer modo, ainda acreditamos ser possível, se não definir seu sentido exato
ou encontrar uma unidade fixa e fundamental, refletir sobre alguma ordem de coerência e um
horizonte de sentido. O que vai em encontro com o esforço de Hexter, pois sua estratégia vai no
sentido de contornar a variedade inconsistente de sentidos de stato, encontrando uma “atitude
extraordinariamente consistente”124 em relação a ele: a atitude exploradora. No entanto, a reflexão
em relação ao conceito de stato pode ainda ultrapassar, com devida precaução e senso crítico, a
constatação desta atitude exploradora, mesmo saindo dos limites do “extraordinariamente
consistente” meticulosamente preparado por Hexter em seu artigo. Se assim não o fizermos, corremos
o risco de desconsiderar aspectos importantes, mesmo que nebulosamente dispostos, da noção de
stato e da obra de Maquiavel como um todo.
Hexter nos diz que a consistência da obra de Maquiavel não é “a consistência de um filósofo
político ou de um professor de jurisprudência”125. Consonantemente, Lefort nos diz que a démarche
de Maquiavel
122 CHIAPPELLI, Fredi. Studi sul linguaggio del Machiavelli, Le Monnier, Florença, 1952, p.68 123 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.137 124 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p. 125. Nosso itálico. 125 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p. 124
52 não é – ao menos quando se toma estas denominações em seu sentido convencional – nem aquela do filósofo, nem a do moralista, nem a do psicólogo, nem aquela do historiador. Seguramente, Maquiavel nos faz pensar sobre a história, sobre o homem, sobre a sociedade e sobre o Estado, sobre os móbiles do príncipe, sobre o bem e o mal; mas, à primeira vista, o campo de sua investigação, a realidade que visa, não se deixa claramente circunscrever.126
Entretanto, há uma fonte detectável da qual Maquiavel anuncia retirar suas reflexões. Ele diz em sua
saudação ao jovem Lourenço de Medici, a quem endereça O Príncipe, que o conhecimento que tem
a oferecer foi aprendido “por meio de uma longa experiência das coisas modernas e de uma contínua
leitura das antigas”, tendo custado “tantos anos e tantos desconfortos e perigos para conhecer e
compreender”127. Maquiavel refere-se a seus anos de serviço na chancelaria da República de Florença
e dedicação à vida política. Sua atividade política molda também o direcionamento de sua leitura das
coisas antigas, pois ela o associa ao movimento do que viemos chamar Humanismo Cívico.
Recuperando a noção de Humanismo Cívico cunhada por Baron, Adverse explica que Em linhas gerais, o termo corresponde a um redirecionamento do humanismo renascentista ocorrido no início do século XV. [...] no campo do pensamento político assistimos, por volta de 1400, uma original reformulação de alguns pressupostos filosóficos que permitem separar com precisão uma nova ideologia política daquela que caracterizava os séculos anteriores. Vale ressaltar que esta reformulação é levada a cabo em um ambiente institucional muito bem circunscrito: o humanismo cívico é um movimento de ideias estreitamente associado à prática política. Seus principais representantes não atuam diretamente nas universidades italianas, mas exercem cargos públicos nas principais cidades da península, assim como junto à cúria papal.128
Se se procura por uma fonte teórica para a consistência ou démarche de Maquiavel, deve-se
procura-la no Humanismo Cívico. Maquiavel fala enquanto ex-secretário florentino ao recomendar
seu livro a Lourenço, referindo-se a sua experiência pública, que, por sua vez, orienta sua leitura dos
clássicos enquanto humanista. No fim do século XV, “a chancelaria como um todo era um centro
para os estudos humanistas. Uma formação humanista tornou-se essencial para o serviço na
chancelaria, e era com essas qualificações que Maquiavel entrou na chancelaria em 1498”129 ressalta
Robert Black. Maquiavel está inserido no Humanismo Cívico e, consequentemente, na busca por
responder ao “desafio de pensar uma fundamentação teórica para o exercício do poder” enquanto
cumpre “sua função diplomática, notarial, administrativa”130. Os centros de poder, e especialmente a
chancelaria florentina, tinham função não somente administrativa e política, mas exerciam um papel
126 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, p. 327 127 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Dedicatória, p. 3 128 ADVERSE, Helton. “A Matriz Italiana”. In: Newton Bignotto. (Org.). Matrizes do Republicanismo. 1ed.Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p. 54 129 BLACK, Robert. “Machiavelli, servant of the Florentine Republic”. In : G. Block, Q. Skinner, M. Viroli (Ed.). Machiavelli and Republicanism. Cambridge, Cambridge University Press, 1990. p.73. Minha tradução das citações deste texto. 130 ADVERSE, Helton. “A Matriz Italiana”. In: Newton Bignotto. (Org.). Matrizes do Republicanismo. 1ed.Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p. 55
53
intelectual e cultural fundamental enquanto centros de formação e pensamento humanista. “Desde os
tempos de Salutati e Bruni, a chancelaria florentina era um centro de estudos humanistas”131. Nas
palavras de Newton Bignotto, homens como Bruni, Palmieri, Poggio Braciolini, todos tendo ocupado
cargos públicos importantes no governo florentino ou na cúria papal impuseram uma transformação
radical a de, aproveitando o retorno aos textos da antiguidade, [...] voltar a pensar nas atividades próprias à vida na cidade como fazendo parte do que de melhor podia-se fazer ao longo de nossa existência. Tratava-se, assim, de recuperar a dignidade da política, utilizando-se de um conjunto de textos antigos cujas referencias eram totalmente diferentes das que haviam presidido a reflexão nos séculos anteriores.132
A leitura que o humanismo cívico faz dos clássicos é pautada por um interesse teórico
específico. Tratava-se de recuperar a dignidade da política. Adverse salienta que um dos elementos
de destaque para a caracterização do pensamento político humanista é “uma nova valorização da vida
política, isto é, da vita activa”133 e Bignotto afirma que “a principal característica dos humanistas teria
sido a de reconhecer no espaço da vida pública o local privilegiado da manifestação dos valores mais
elevados da condição humana”134. Deve-se reter aqui que a pauta da revalorização da atividade
política se coloca em um debate, que, “no renascimento, ganha destaque” – um “debate acerca da
melhor forma de vida”135, como coloca Adverse. Trata-se, portanto, da “afirmação de um modo de
vida no qual a atuação no espaço público é altamente valorizada”136. E a valorização da vida política,
“da vita activa”, no humanismo afirma-a “como superior à vida teorética ou vita contemplativa”137.
A valorização da política que pauta o pensamento humanista junto do debate que o acompanha
em seu contexto histórico elaboram a consciência de um modo ou forma de vida, de uma atividade e
uma atuação específicas em um espaço delimitado. Uma forma de vida que não existe no isolamento
nem é a única, e que, justamente por isso, pode ser privilegiada, valorizada e hierarquizada em relação
a outras. O extremo valor dado a esta forma de vida em Florença no século XV verifica-se não
somente nos pensamentos de intelectuais ou de uma elite política, mas estendia-se a toda sociedade.
Gilbert nos diz que
131 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence. Princeton University Press, 1965, p.162 132 BIGNOTTO, Newton. “Humanismo Cívico Hoje”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. Belo Horizonte: Editora Da UFMG, 2000, p.51 133 ADVERSE, Helton. “A Matriz Italiana”. In: Newton Bignotto. (Org.). Matrizes do Republicanismo. 1ed.Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p. 56 134 BIGNOTTO, Newton. “Humanismo Cívico Hoje”. In: Newton Bignotto. (Org.). Pensar a República. Belo Horizonte: Editora Da UFMG, 2000, p.52 135 ADVERSE, Helton. “A Matriz Italiana”. In: Newton Bignotto. (Org.). Matrizes do Republicanismo. 1ed.Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p. 57. Nossos Itálicos 136 ADVERSE, Helton. “A Matriz Italiana”. In: Newton Bignotto. (Org.). Matrizes do Republicanismo. 1ed.Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p. 72. Nossos itálicos 137 ADVERSE, Helton. “A Matriz Italiana”. In: Newton Bignotto. (Org.). Matrizes do Republicanismo. 1ed.Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. p. 56
54 conforme a cidade crescia, sua administração era ampliada e a atitude em relação à posse de cargos mudava. Os postos mais altos permaneciam não assalariados, mas a influência sobre questões políticas e econômicas que poderia ser exercida pelos detentores destes postos dava a eles evidentes vantagens. Para os detentores dos postos menos prestigiados, salários foram introduzidos e graduados de acordo com a importância do posto. Considerável ganho material podia ser adquirido pelo serviço público e, então, a prévia relutância em tomar o fardo da posse de postos públicos foi substituída pela avidez por estes postos e insistência em se ter sua parte neles.138
É neste contexto, em junho de 1498, que Maquiavel assume seu primeiro cargo na chancelaria
florentina. A chancelaria, diz-nos Robert Black, “consistia majoritariamente de um corpo de oficiais
quase permanentes que administravam os negócios internos e externos da república, levando a cabo
políticas que haviam sido determinadas pelos magistrados e conselhos da cidade”139. Maquiavel e,
junto dele, a sociedade florentina concebiam a dedicação ao serviço público - a administração, decisão
e execução de deliberações políticas - como um modo vida, uma atividade com valor em si mesma,
com regras e habilidades próprias.
Podemos encontrar no estatuto que Maquiavel dava à política como modo de vida, como
atividade autônoma – não no sentido de rigidamente separada e independente de outras, mas de
distinguível e de possuidora de caráter, valor e regras próprias – o caráter eminentemente político do
sentido de stato. Maquiavel refere-se a sua atividade política – portanto, sua experiência a ser
recomendada a Lourenço – como uma arte, um ofício, a arte dello stato. Na carta à Francesco Vettori
de 10 de dezembro de 1513, Maquiavel diz sobre a reação que pretende causar nos Médici ao oferecer-
lhes O Príncipe: “ver-se-ia que nos quinze anos em que estive em estudo da arte do stato, não dormi,
nem joguei; e cada um deveria ter como valioso servir-se de alguém que [...] fosse pleno de
experiência”. É preciso notar que esta carta faz parte da correspondência entre Maquiavel e Vettori
logo depois do retorno dos Médici e durante o exílio de Maquiavel dele resultante. Maquiavel fora
forçado a deixar a vida política e lutava incessantemente para retornar a ela, mesmo que sob o poder
dos Médici e não o da república. Nesta mesma carta o ex-secretário escreve sobre o “desejo que teria
de que estes senhores Médici comecem a se utilizar de mim, mesmo que comecem por me fazer rolar
uma pedra”140. Lefort salienta que o interesse único de ser reconhecido pelos Médici e voltar a exercer
alguma atividade administrativa não poderia definir completamente os limites teóricos de O Príncipe;
escreve que mesmo que Maquiavel “tivesse a esperança de ter algum crédito diante dos novos mestres
de Florença, as considerações de ordem prática não permitem representar sua intenção de escritor”141;
138 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence. Princeton University Press, 1965, p.15 139 BLACK, Robert. Machiavelli, servant of the Florentine Republic. In : G. Block, Q. Skinner, M. Viroli (Ed.). Machiavelli and Republicanism. Cambridge, Cambridge University Press, 1990. p.71 140 MACHIAVELLI, Niccolo. De principatibus = Le prince. Coautoria de Jean-Louis Fournel, Jean-Claude Zancarini. Paris: Presses Universitaires de France, 2000. p.532. Nosso itálico e tradução. 141 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.315
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assim, mesmo que “O Príncipe fosse composto em um espaço de três ou quatro meses [...] de tal
observação não poderíamos concluir uma elaboração primária”142. Ainda assim, é inegável que a
experiência do exílio e o investimento enérgico para voltar à vida política ocorrem em relação
profunda com o processo de produção de O Príncipe. Em outra carta a Vettori do mesmo ano, de 9 de abril, Maquiavel escreve que “a Fortuna fez
com que, não sabendo discorrer [ragionare] nem da arte da seda e da arte da lã, nem dos lucros e
perdas, me conviesse discorrer sobre o stato [e’ mi conviene ragionare dello stato], e necessito calar-
me ou discorrer [ragionare] sobre isso”143. A arte do stato é implícita na passagem. Pode-se saber
discorrer sobre diferentes negócios ou atividades – diferentes artes ou ofícios. A produção da seda e
da lã, de trocas e transações financeiras (uma referência clara às duas grandes e prestigiadas Arti
Maggiori florentinas) são arti assim como o é o stato, a arte dello stato. Deve-se ter em mente que
arte guarda um sentido não precisamente da obra resultante, mas sim de uma atividade, um exercício,
um ofício. Vivanti comenta que Sob a pena de Maquiavel, no entanto, a expressão “arte do Estado” – que ficou famosa depois que Burckhardt, falando de senhores e de príncipes italianos do Renascimento, definiu seu Estado como “obra de arte” – não indica a criação original de uma única personalidade, mas a atividade por ele desenvolvida na chancelaria florentina, equiparada ao aprendizado de um ofício como qualquer outro exercido nas corporações da época.144
E o escopo das atividades desta arte ou ofício do stato é a política. Charbel Teixeira comenta
o seguinte sobre o que escreve Maquiavel a Vettori: “diante dos reveses de sua Fortuna, procurará
desafiá-la com sua capacidade de ragionamento, precisamente aquela aptidão de discorrer sobre os
assuntos da política”145. Ragionare dello stato é ragionare sobre a política, este é o escopo desta arte.
Na saudação a Lourenço, Maquiavel afirma estar resumido em seu livro, partindo de sua experiência
e leitura, a cognição das ações dos grandes homens, as quais tem longamente cogitado e
examinado146. Do que indica as passagens citadas da correspondência com Vettori acima citadas,
podemos inferir que as ações dos grandes homens – objeto de cognição, a serem cogitados e
examinados, enfim, objeto do ragionare – dizem respeito à arte do stato. Neste sentido, começamos
a entender a distinção feita por Maquiavel no terceiro capítulo: “dizendo-me o cardeal de Ruão que
142 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.317 143 Carta de Maquiavel de 9 de abril de 1513 a Vettori. Trecho traduzido e disponível em: TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p.134 144 VIVANTI, Corrado. Nicolau Maquiavel – nos tempos da política (Kindle Location 2894). Kindle Edition. Martins Fontes: São Paulo, 2016 145 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p.135 146 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Saudação, p.3
56
os italianos non si intendevano della guerra, respondi-lhe que os franceses non si intendevano dello
stato”147.
Hexter entende que Maquiavel, ao apontar para que os franceses não entendiam de stato, “não
quer dizer nada mais esotérico do que os Franceses não sabem como ter em mãos um stato
recentemente adquirido uma vez tendo-o capturado” 148 . Entretanto, a leitura de Hexter parece
limitada diante da distinção entre stato e guerra. Com ela, se delimitam campos de atuação distintos,
mesmo que intimamente relacionados. O stato certamente envolve a guerra e a violência, mas ele se
distingue e transcende da mera capacidade de ganhar batalhas ou defender territórios. Trata-se de uma
atividade política, não meramente técnica. Neste sentido, o que afirma Vivanti sobre a disputa narrada
por Maquiavel com o cardeal é de especial interesse: “não apenas se capta a noção abstrata da
instituição, mas também a própria ação política a ser desenvolvida para salvaguardá-la”.
Tenderíamos na presente dissertação a colocar em dúvida a afirmação de uma noção abstrata, que
permitiria “delinear uma concepção mais amadurecida” 149. De todo modo, consideramos essencial o
caráter de ação política envolvida no entendimento do stato.
Mas, afinal, o que é o stato em O Príncipe? O que podemos dizer sobre ele? Pudemos ver que
a noção transita entre estes dois polos: por um lado, é o exercício efetivo do poder, por outro, as
ordenações e homens governados por elas, que garantem e reconhecem o poder exercido pelo
príncipe. Notamos também o caráter essencialmente político ou público das atividades associadas ao
stato. Com isso, podemos propor um sentido, que não se pretende definitivo, mas busca abranger uma
amplitude suficiente: o de uma disposição ordenada do exercício do poder político em uma
comunidade de homens. Buscamos manter com esta formulação as amplitude e ambiguidade que o
termo assume na obra. Uma disposição pode referir-se ao posicionamento de um agente político,
portanto, especificamente ao seu exercício de poder, mas também pode referir-se à estrutura geral de
diversos posicionamentos de agentes e seus limites e possibilidades de poder numa comunidade
política. A amplitude e complexidade dadas por Maquiavel ao conceito de stato são reflexo do
pensamento do autor como um todo. Elas só podem ser alcançadas em um pensamento político que
associe fundamentalmente ordenação e ação política. E o que vemos no texto maquiaveliano é esta
constante associação. O Príncipe é um tratado sobre os principados, mas seu questionamento não se
limita a examinar o que são e de que espécies são os principados, mas com especial ênfase em sobre
como são adquiridos, mantidos e por que são perdidos. O interesse de Maquiavel é o de ocupar-se
do principado, mas discutindo como governá-lo e mantê-lo. Por isso, noções como a capacidade do
147 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo III, p.18 148 HEXTER, J. H. , "Il principe and lo stato," Studies in the Renaissance 4, no. (1957), p.127 149 VIVANTI, Corrado. Nicolau Maquiavel – nos tempos da política (Kindle Locations 2937-2938). Kindle Edition. Nossos itálicos.
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príncipe, a prudência de sua ação, sua virtù, suas deliberações, o efeito de seu comportamento em sua
imagem, sua moralidade, a imitação de grandes exemplos, entre outras – todas relativas mais
diretamente à ação política – são centrais neste estudo sobre o principado enquanto ordenação
política. Desta forma, examinar a abordagem dada por Maquiavel à ação política, à conduta dos
príncipes, torna-se essencial para a compreensão dos objetivos e vias argumentativas escolhidas pelo
autor em O Príncipe.
1.2. A conduta dos príncipes e seus conselheiros
Agora investigamos o direcionamento de Maquiavel à ação e o conselho como via para tanto.
Notamos que as observações do autor se direcionam para os que querem ou podem agir. Em O
Príncipe, esta preocupação e direcionamento à ação é flagrante na escolha de Maquiavel pelo gênero
literário dos Espelhos dos Príncipes, livros de aconselhamento aos governantes. O conselho é a via
pela qual O Príncipe direciona-se à ação e pela qual Maquiavel entra em contato com seu leitor.
Nosso esforço, portanto, será o de explicitar em que medida a investigação sobre o stato no tratado
de Maquiavel se expressa e opera pelo aconselhamento e os resultados que o autor consegue com
isso. Veremos que o aconselhamento alinha Maquiavel à tradição retórica de pensamento, mais
especificamente ao gênero deliberativo da retórica. Além disso, o preceito retórico da verdade efetiva
e do aconselhamento útil é o que leva Maquiavel a uma especial preocupação com o exame apurado
das condições e situações políticas particulares e seu exame a partir das dificuldades e necessidades
impostas aos agentes políticos.
1.2.1. Arte do stato e arte do conselho: retórica, Espelhos dos Príncipes e verità effettualle
É preciso notar que a questão de Maquiavel se volta para como - por quais procedimentos,
condutas ou ações - o príncipe governa e mantém seu principado. O que destacamos é a especial
preocupação de Maquiavel com a ação dos agentes políticos Esta especial atenção à ação política é
uma marca constante do pensamento de Maquiavel. Suas observações se direcionam para os que
querem agir. O intento do autor, destacado no capítulo XV de O Príncipe, é “escrever uma coisa útil
para quem a escuta”. E, ao preferir a verdade efetiva das coisas à imaginação que se faz delas, ou o
que se faz ao que se deveria fazer, Maquiavel não está interessado em outra coisa senão em na
efetividade das ações dos que o escutam, que devem “aprender” a “arruinar-se” ou “preservar-se” de
acordo com os aconselhamentos150.
150 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XV, p. 75
58
Esta utilidade permeia o esforço geral da obra de Maquiavel, e a vemos explicitada no
prelúdio ao primeiro livro dos Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio, quando o autor
esclarece que tipo de exame propõe em relação ao governo das repúblicas. Sendo sua proposta tecer
comentários sobre a História de Roma de Tito Lívio, Maquiavel reflete sobre como os homens de seu
tempo se interessavam pela antiguidade. Num primeiro momento, o autor compara o campo da arte
e o da história política, nos dizendo que um fragmento de estátua antiga é comprado por alto preço e
muito honra seus donos. Estes objetos são imitados por aqueles que se deleitam com eles, que buscam
representá-los com grande zelo em suas próprias obras. Por outro lado, afirma que as ações de
personagens políticos de destaque narradas pelas histórias da antiguidade seriam, em comparação ao
fragmento de estátua, igualmente admiradas por seus contemporâneos, mas não seriam com
semelhante esforço imitadas. O autor também mostra que, na aplicação das leis civis para a resolução
de litígios entre cidadãos, os jurisconsultos são ensinados a julgar pela ordenação de sentenças e
julgamentos proferidos por antigos jurisconsultos. Na medicina, na prescrição de remédios para o
tratamento de doenças, os médicos têm como fundamento experiências feitas pelos antigos médicos.
No exercício político de seu tempo, entretanto, o autor não vê homens que recorram, quer como
fundamento ou ensinamento, às ações dos antigos. Maquiavel reprova o posicionamento de seus
contemporâneos. As ações dos antigos devem ser, não meramente admiradas e recontadas, mas
também imitadas; elas devem ser devidamente interpretadas para servirem de ensinamento e
fundamento para a ação presente. Usar o conhecimento da história como objeto de imitação e não
mera admiração, como fundamento e ensinamento para a prática política, são noções importantes e
complexas no seio da obra maquiaveliana. Estas noções dizem respeito à ação, à prática. Para
expressar isso, Maquiavel nos fala em utilidade: ele está interessado na “utilidade pela qual se deve
procurar o conhecimento das histórias”151. A utilidade dos Discursos, assim como em O Príncipe,
consiste em conseguir, por alguma via, acessar e influenciar a prática política.
Em O Príncipe, esta preocupação com a ação é flagrante na escolha de Maquiavel pelo gênero
literário dos Espelhos dos Príncipes, livros de aconselhamento aos governantes. O conselho é a via
pela qual O Príncipe direciona-se à ação e pela qual Maquiavel entra em contato com seu leitor.
Newton Bignotto explica que “desde o final da Idade Média era comum dirigir-se aos governantes
oferecendo-lhes conselhos, que supostamente serviriam para que alcançassem o sucesso em suas
empreitadas”152. Assim como os conselheiros políticos da Idade Média e do Humanismo, Maquiavel
também pretende aconselhar o governante em sua empreitada; o autor também quer avaliar as
maneiras de agir e as qualidades dos governantes, buscando formular máximas para a execução de
151 MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Trad. MF. São Paulo: Martins Fontes, 2007. I, prelúdio. p.7 152 BIGNOTTO, Newton. Maquiavel. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, Kindle Edition, Location 804-139
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um bom governo. A escolha pelo gênero dos Espelhos dos Príncipes, os livros de aconselhamento, e
pelo conselho propriamente como forma de expressão de sua investigação alinham Maquiavel à
tradição retórica de pensamento. Se se quer entender o aconselhamento como forma de expressão do
autor em O Príncipe e o que há de singular nessa maneira de aconselhar, deve-se investigar sua
relação com a tradição retórica de pensamento e a particularidade do Espelho dos Príncipes deste
autor, o que buscaremos fazer brevemente nesta seção. Skinner escreve que um
gênero de escrita política a nascer diretamente da Ars Dictaminis consistiu em livros de conselho dirigidos a podestà e a outros magistrados urbanos [...]. O surgimento desses tratados assinala uma dramática ampliação da Ars Dictaminis. Seus autores [...] abandonam toda e qualquer alegação de que tenham como interesse essencial instruir seus alunos nas artes retóricas, e preferem se apresentar, diretamente, como os conselheiros políticos naturais para os governantes e cidades. [...] dirigem seus tratados diretamente aos próprios magistrados. Essa nova abordagem logo foi imitada em larga escala, e mais tarde veio a exercer uma forte influência sobre o desenvolvimento do pensamento político renascentista. O padrão de tópicos coberto nesses primeiros livros de conselhos ainda pode ser discernido, em alguma medida, até nas mais sofisticadas entre as contribuições posteriores ao mesmo gênero, como é o caso do Príncipe, de Maquiavel.153
Skinner afirma, portanto, a “existência de um importante elemento de continuidade entre os
primeiros livros de conselhos dirigidos aos governantes e o posterior desenvolvimento de um estilo
político retórico entre os humanistas da Renascença”. Maquiavel estaria incluso em um
desenvolvimento longo com elementos identificáveis de continuidade da Ars Dictaminis, que nasce
na Baixa Idade Média. Entretanto, o historiador nos alerta que “seria [...] enganoso supor que tal
continuidade assuma a forma de uma linha de derivação direta”. Esta suposição “negligencia a
influência de uma forma de teoria retórica nova, e conscientemente humanista”154, que ampliou e
alterou radicalmente o exercício da Ars Dictaminis e seus padrões medievais. Skinner explica que
“as mudanças que afetaram o estudo da retórica na Itália,” com a eminência do humanismo
“baseavam-se na ideia de que o assunto deveria ser ensinado não apenas inculcando-se regras (artes),
mas também estudando e imitando autores clássicos adequados (auctores)” 155.
A influência dos auctores na arte retórica e o uso propriamente humanista desta arte já
estavam plenamente desenvolvidos nos anos de carreira política e literária de Maquiavel. Assim,
Maurizio Viroli escreve que “Maquiavel compôs todas suas obras políticas e, acima de todas, O
Príncipe na maneira do retórico, seguindo as regras ilustradas pelos mestres romanos da retórica,
153 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo : Companhia das Letras, 1999 (1978), pp. 54-55 154 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo : Companhia das Letras, 1999 (1978), p. 56. Tradução alterada. 155 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo : Companhia das Letras, 1999 (1978), p. 57.
60
particularmente Cicero, Quintiliano, e o autor anônimo de Retórica a Herênio”156. O comentador
explica que, sob a rubrica do gênero deliberativo (genus deliberativum), estas obras ofereciam as instruções em como compor uma oração [oration] sobre negócios do estado [state affairs] (cose di stato), como Maquiavel diria mais tarde [...]. As regras do gênero deliberativo eram de fato especialmente construídas para o orador engajado em aconselhar e consultar sobre os negócios do estado.157
No entanto, o que é o gênero deliberativo na tradição retórica, praticado pelos autores antigos e
recuperado pelo humanismo? Virginia Cox remonta às bases aristotélicas estabelecidas na Retórica
mostrando que, “mais especificamente, a retórica era comumente definida como concernente às
questões cívicas, predominantemente judiciais e políticas” e que “uma divisão [...] foi feita em três
gêneros de retórica – forense, deliberativa e demonstrativa: a primeira era a retórica das cortes de lei,
a segunda, de assembleias políticas, a terceira, da oratória cerimonial, tais como discursos fúnebres e
celebrações de vitória”158. Cox observa também que a
retórica clássica alocou cada gênero em um caráter ético distintivo, definidos pelos fines ou “fins” aos quais os três gêneros eram vistos como direcionados. O objeto de um orador forense era demonstrar que sua causa era justa [...]; portanto o fim da retórica forense era a justiça. O fim da retórica demonstrativa era [...] definido como o honesto ou descente (honestum), enquanto aquele da retórica deliberativa era proveito ou utilitas: o que era materialmente benéfico para o estado [state].159
O gênero deliberativo concerne, portanto, às questões políticas; é o pensar ou raciocinar sobre a arte
ou cosa do stato como expressaria Maquiavel. Guardando-se toda a especificidade e complexidade
da noção de stato mostrada na seção anterior, a arte do stato diz respeito, ainda assim, ao exercício
político, o domínio do gênero deliberativo de retórica. Enquanto gênero da retórica, o gênero deliberativo guarda certas características importantes.
Cox explica que a retórica clássica reconhecia cinco habilidades ou competências, sendo três delas
usadas tanto na prática escrita quanto falada. Com exceção da memória e a actio ou pronuntittio,
usadas exclusivamente para os discursos falados, “a ‘descoberta’ de argumentos (inventio), sua
organização e estrutura (dispositio), e sua projeção em linguagem apropriada (elocutio)” eram
competências atribuídas à toda prática retórica. Neste sentido, a comentadora ressalta a presença “na
retórica do elemento conceitual da inventio junto dos elementos mais formais e estilísticos da
dispositio e da elocutio”. A retórica, assim, não estaria limitada a ornar os argumentos racionais dos
156 VIROLI, Maurizio. Machiavelli. Oxford : Oxford University Press, 1998. p. 73. Minha tradução para as citações deste texto. 157 VIROLI, Maurizio. Machiavelli. Oxford : Oxford University Press, 1998. p. 76 158 COX, Virginia. Rhetoric and Ethics in Machiavelli. In: John M. Najemy (ed.), The Cambridge Companion to Machiavelli. Cambridge University Press (2010), p. 175. Minha tradução para as citações deste texto. 159 COX, Virginia. “Rhetoric and Ethics in Machiavelli”. In: John M. Najemy (ed.), The Cambridge Companion to Machiavelli. Cambridge University Press (2010), p. 178
61
campos teóricos variados, mas “reivindicava a prerrogativa de originar o argumento”. Neste sentido,
há uma reivindicação de autonomia na produção, por vias retóricas, de argumentos válidos
mobilizando proposições verdadeiras com projeção a descoberta ou enunciação de novas proposições
verdadeiras. O aspecto de descoberta da inventio retórica “ganhava geralmente a hostilidade dos
filósofos” 160, que reivindicavam para si a descoberta da verdade por vias racionais em vista da
contemplação.
No lugar, entretanto, das afirmações eternas e universais da contemplação filosófica, a retórica
clássica era tipicamente “sintonizada com circunstâncias particulares de aplicação; a habilidade de
um orador era percebida como situada na celeridade [swiftness] e sensibilidade de sua resposta às
condições ambientes, tanto o status e caráter de sua audiência, e sua mais intangível disposição de
temperamento”. Cox explica, fazendo referência à obra de Aristóteles, que a “retórica é
essencialmente a arte de raciocinar sobre [...] assuntos negociáveis, em outras palavras, opostos
àqueles nos quais a certeza científica é possível”161. Em especial, as regras do gênero deliberativo,
nos explica Viroli, ditavam, ao se dar “conselho sobre questões de estado, ser preciso conseguir não
somente persuadir uma audiência ou leitores – isto é, ganhar seu apoio – mas também persuadir ou
impelir os endereçados de seu discurso ou texto a de fato colocarem o conselho em prática.”162.
Assim, seguindo as instruções retiradas da leitura das autoridades retóricas da Antiguidade,
Maquiavel também “não escreveu para explicar uma verdade científica ou moral, mas para persuadir
e impelir a agir”163. Aconselhar é a tarefa de Maquiavel em O Príncipe: uma tarefa essencialmente
retórica. Viroli nos diz que, ao compor O Príncipe, Maquiavel “compôs [uma] obra para estabelecer
sua competência em questões de estado, e ele pretendia assim fazer demonstrando sua capacidade de
oferecer bom aconselhamento em negócios políticos. A forma encontrada para fazê-lo foi compor
uma boa oração de acordo com as regras do gênero deliberativo”. Treinado no exercício retórico e
muito atento a ele, para Maquiavel, “o reconhecimento de sua competência na arte do estado era uma
questão de conteúdo tanto quanto era de forma e estilo”164
O conhecimento provido pela retórica prudencial, alerta Charbel, “assenta-se em critérios de
uma racionalidade não-cartesiana” 165 . E Eugene Garver comenta que, apesar de “Maquiavel e
Descartes ocuparem posições análogas nas histórias da prática e da teoria, porque representam um
160 COX, Virginia. “Rhetoric and Ethics in Machiavelli”. In: John M. Najemy (ed.), The Cambridge Companion to Machiavelli. Cambridge University Press (2010), p. 175 161 COX, Virginia. “Rhetoric and Ethics in Machiavelli”. In: John M. Najemy (ed.), The Cambridge Companion to Machiavelli. Cambridge University Press (2010), p. 175 162 VIROLI, Maurizio. Machiavelli. Oxford : Oxford University Press, 1998. p. 76 163 VIROLI, Maurizio. Machiavelli. Oxford : Oxford University Press, 1998. p. 73 164 VIROLI, Maurizio. Machiavelli. Oxford : Oxford University Press, 1998. p. 77 165 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p.12
62
direcionamento à autonomia”, Maquiavel “tem recursos localizados precisamente nos métodos
retóricos que Descartes rejeita para se fazer algo autônomo”. O que distingue Descartes e Maquiavel
são suas “diferentes concepções da relação entre autonomia e história”, pois para Maquiavel a história
é “o material a partir do qual o príncipe pode aprender a ser autônomo”166. No pensamento de
Maquiavel, tendo a retórica como sua base argumentativa, “a palavra das autoridades [...] possui o
poder de Lei”, mesmo que o florentino tenha posteriormente sido reverenciado como pensador
inovador, segundo Charbel. A habilidade retórica do gênero deliberativo consistiria, neste sentido,
no dispositivo responsável por flexibilizar de algum modo essas Leis, interpretando-as segundo os princípios da contingência, da necessidade e da “qualidade dos tempos”; ela permite a delimitação de regras provisórias de validação, estabelecidas segundo o critério da probabilidade e articuladas analogicamente, mostrando-se capaz, assim, de lançar alguma luz sobre a realidade sempre cambiante. 167
No lugar do argumento enquanto demonstração científica, encontramos no gênero
deliberativo da retórica a prática da “competência oratória de argumentar os dois lados de um
problema (in utramque partem), um exercício que tinha um lugar fundamental no treinamento
retórico clássico e humanista”, o que “implica um grau de relativismo epistemológico e uma atitude
instrumental, ao invés de filosófica, em relação à verdade”. A verdade do orador é, como ainda
explicitaremos com mais detalhes nesta seção, efetiva, e isso implica que “o que busca o orador não
é o que é verdade por um parâmetro putativamente universal, mas o que é persuasivamente funcional
para seu caso” 168. Neste sentido, Cox entende a retórica do gênero deliberativo uma retórica da
persuasão: “palavras eram tomadas não como o fim do orador, mas como seu meio; o material cru
com o qual ele trabalhava eram os ‘corações e mentes’ de sua audiência”169.
Quanto ao aconselhamento como via de comunicação com o leitor em O Príncipe, assim como
quanto ao caráter retórico de seu discurso, é valioso considerar o que Maquiavel escreve em sua
saudação ao jovem Lorenzo de Médici, a quem acaba por dedicar seu opúsculo. Na saudação,
Maquiavel oferece a Lorenzo um presente: o conhecimento das ações dos grandes homens. É um
conhecimento que Maquiavel aprendeu tanto pela longa experiência das coisas modernas quanto pela
leitura das antigas, mas que o autor acredita poder agora transmitir com seu livro. Por esse
ensinamento, a Lorenzo é prometido “que alcance [...] grandeza”. É neste sentido que Maquiavel
166 GARVER, Eugene. Machiavelli and the History of Prudence. Mandison : The University of Wisconsin Press, 1987. p. 4. Minha tradução para as citações deste texto. 167 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p.12 168 COX, Virginia. “Rhetoric and Ethics in Machiavelli”. In: John M. Najemy (ed.), The Cambridge Companion to Machiavelli. Cambridge University Press (2010), pp.182-183 169 COX, Virginia. “Rhetoric and Ethics in Machiavelli”. In: John M. Najemy (ed.), The Cambridge Companion to Machiavelli. Cambridge University Press (2010), pp.176
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acredita poder ser escusado, caso “seja presunçoso que um homem de baixa e ínfima condição ouse
examinar e regular o governo dos príncipes”170. Maquiavel apresenta seu conhecimento político na
forma de conselhos, pois ele pretende que seu exame em relação à política seja capaz de se efetivar
no governo dos principados, na conduta política do príncipe. O encadeamento do livro, suas
distinções, afirmações e formulações só fazem completo sentido da perspectiva do príncipe. É
frequente Maquiavel referir-se diretamente a seu leitor na segunda pessoa do singular, o que destaca
o caráter oratório da obra. Nestes momentos, não é ao leitor em geral que Maquiavel se refere, mas
ao leitor que pode se utilizar das considerações colocadas em suas ações: ao príncipe.
Se um leitor entra em contato com o livro, ele logo precisa assumir a perspectiva do príncipe.
A possibilidade de assumir outra perspectiva é algo a ser ressaltado. Não pretendemos afirmar que O
Príncipe não seja potencialmente uma obra de alcance universal ou que se prenda a um problema
extremamente circunscrito e se torne de alguma forma compreensível somente a um grupo de pessoas
- os detentores do poder. É possível assumir a perspectiva do príncipe e entender suas condições pela
via retórica de leitura, que considera diferentes perspectivas. Que alguém do povo possa compreender
e conhecer a perspectiva do príncipe é o que Maquiavel afirma sobre si mesmo quando recomenda
suas considerações a Lorenzo na dedicatória:
assim como os que desenham as paisagens se colocam embaixo, na planície, para considerar a natureza dos montes e dos lugares elevados, e, para considerar a forma dos lugares baixos, colocam-se no alto, em cima dos montes, para conhecer bem a natureza dos povos, é preciso ser príncipe e, para conhecer bem a natureza dos príncipes, convém ser do povo.171
É a possibilidade de assumir a perspectiva do outro que abre caminho para o conhecimento
da política, da natureza dos povos e dos príncipes, como escreve Maquiavel172. Este conhecimento
não estaria vedado a ninguém que se proponha a pensar cuidadosamente sobre as condições e
necessidades que cercam um determinado agente, buscando reconstituir sua perspectiva no jogo
político. Diogo Pires Aurélio nos lembra de uma interpretação sobre O Príncipe recorrente no
Iluminismo: “será antes uma sátira, que os homens avisados sempre perceberam como tal, mas que,
de tão engenhosa e camuflada, passou e ainda passa por elogio aos soberanos, como pretenderam, por
170MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 4. Nosso itálico. 171 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Dedicatória, p. 4 172 “A maior parte das pessoas vê de um único ponto de vista e não tem perspectiva sobre si mesmas, nenhuma consciência de perspectiva. Maquiavel cultivava os ‘olhos de Argus’ contra a ingenuidade: ele não via meramente por seus próprios olhos, mas pelos ‘verdadeiramente muitos olhos de príncipes cristãos que eu extraí de toda parte’. Isto é, ele trouxe de sua vasta experiência entre os grandes uma insaciável curiosidade e paixão pela observação como forma de aproximar-se do poder deles. Ainda assim, era uma questão não meramente de observação externa, mas de identificação, a capacidade de se colocar no lugar de outro e ver o mundo deste local. Ele precisa se tornar o outro e ainda permanecer si mesmo.” [PITIKIN, Hannah, Fortune is a Woman: Gender and Politics in the Thought of Niccolò Machiavelli, 2nd ed. (Chicago: University of Chicago Press, 1999), p.35]. Minha tradução para as citações deste texto.
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exemplo, Espinosa, Rousseau e a Encyclopédie?”173 A plausibilidade desta interpretação está em que,
pelos conselhos dados aos príncipes, deixa-se compreender a qualquer um os elementos e forças
construtivas das relações políticas. Maquiavel é capaz de ensinar ao povo a perspectiva do príncipe e
vice-versa.
O constante convite a supor e assumir outras perspectivas é operante ao longo de todo o livro.
Aprendemos que Maquiavel não aconselha um príncipe em especial, mas os príncipes em sua grande
variedade e conflitos. Seus conselhos se dirigem ao príncipe hereditário, que precisa resistir às
investidas de um príncipe novo, mas também se dirigem ao príncipe novo, que precisa aniquilar o
príncipe hereditário. Dirigem-se aos que chegaram ao principado por suas próprias capacidades, mas
também aos que receberam seu principado pelas habilidades de outros. Aos que são príncipes pelo
favor de seus concidadãos, mas também aos que o são contra eles. A ponderação cuidadosa e distinta
das muitas perspectivas é de caráter eminentemente retórico em O Príncipe. Somente pela via retórica
do in utramque partem, as diferentes e antagônicas perspectivas de ação podem ser consideradas e
tratadas sem que impliquem em contradições.
Como vimos, Maquiavel adere ao estilo literário dos tradicionais Espelhos dos Príncipes ao
assumir a tarefa de aconselhar os governantes; entretanto, como nos adverte Bignotto, “apesar do
‘invólucro’ tradicional,” O Príncipe “não tem nada dos antigos manuais”174. Maquiavel expõe seus
exames a partir de recursos retóricos dos tradicionais Espelhos dos Príncipes, demonstrando a
utilidade do que escreve pela tarefa de aconselhar, mas rompe sensivelmente com a tradição destes
livros quanto à abordagem dada ao exercício do poder. Apesar de escrito com especial zelo no que
diz respeito ao estilo e à forma de argumentação, permitindo um contato com seus leitores pela via
do gênero dos Espelhos dos Príncipes, o autor mobiliza seus instrumentos retóricos no sentido de
ponderar e criticar a concepção de boa conduta política tradicional. Felix Gilbert, em The Humanist
Concept of the Prince and The Prince of Machiavelli, realiza um estudo do gênero dos Espelhos dos
Príncipes do humanismo, buscando traçar suas principais características, bem como seus pontos de
desvio e conformação em relação à proposta de seus antecessores medievais e em relação à proposta
de Maquiavel em O Príncipe175. O historiador constata que, “assim como os autores medievais, os
humanistas tentavam descobrir uma norma e descrever um príncipe ideal”176. Ele atribui aos autores
dos Espelhos dos Príncipes uma concepção idealista do príncipe. Nesta concepção idealista, um
173 AURÉLIO, Diogo Pires. “Introdução” em MAQUIAVEL , Nicolau. O Príncipe. Tradução de Diogo Pires Aurélio, 2008, 2017, p.10 174BIGNOTTO, Newton. Maquiavel. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, Kindle Edition, Location 804-140 175 GILBERT, Felix."The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p.457. Minha tradução para as citações deste texto. 176 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p.461
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conjunto de valores e práticas sempre válidos, “um catálogo de virtudes”, prescrevia a conduta do
bom governante e as práticas do bem governar177.
O estudo de Felix Gilbert é de interesse por nos permitir ver a grande variação sofrida pelo
gênero dos Espelhos dos Príncipes, desde seu surgimento na idade média até seus exemplares mais
comuns no humanismo. Há mudanças significativas de método para a determinação do catálogo de
valores aconselhado: enquanto, na idade média, a conduta ideal era deduzida de proposições gerais
em moldes escolásticos, os humanistas introduziram a autoridade dos textos clássicos como fonte
para a descrição deste ideal. Há também mudanças significativas no conteúdo dos catálogos de
valores: enquanto os livros de aconselhamento medievais insistiam em um quadro estritamente cristão
e orientado à salvação da alma, os humanistas - inspirados pelas novas leituras dos textos clássicos -
introduziram preceitos orientados à vida ativa em suas descrições do príncipe ideal.178 No entanto, a
prescrição de um ideal ao qual se deve adequar o príncipe resiste. O caso do livro de Majo é
paradigmático. Gilbert o descreve da seguinte forma:
seu principal propósito era provar que um governante contemporâneo, Ferrante de Nápoles, deveria ser reconhecido como a incorporação do príncipe ideal. Majo planejou o livro com este objetivo em vista. Ele começa cada capítulo com uma breve descrição de uma virtude especial; ele então demonstra, com a ajuda de citações de autores antigos, quão necessária esta virtude é para o príncipe governante, e termina o capítulo citando algum feito ou incidente da vida de Ferrante como ilustração desta virtude tendo sido realizada na prática.179
Um ideal de príncipe, um catálogo de valores, precede à figura e aos feitos do verdadeiro
Ferrante de Nápoles. Para adequá-lo a esta imagem, Majo se utiliza de uma “larga dose de adulação
humanista”, além de fazer “alguns julgamentos notavelmente falsos” e atribuir “alguns motivos
notavelmente irreais a Ferrante”180. Há uma diferença notável entre o retrato idealizado e o real
personagem de Ferrante. E o que efetivamente é aconselhado por Majo não é a imitação das ações de
Ferrante, mas conduzir-se a partir de um determinado catálogo de valores ideais, dos quais Ferrante
seria a incorporação. É uma abordagem muito diferente da de Maquiavel em O Príncipe, que nunca
aconselha a imitação sem alguma reserva a ser considerada e revela com certa crueza motivações
pouco cristãs ou nobres dos governantes mais célebres. Outro exemplo interessante são os textos de
Patrizi e Pontano, que são assim descritos por Skinner:
177 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p.462 178 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, Seção II 179 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p. 467 180 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p. 467
66 Patrizi afirma com bastante ênfase, na ementa de um de seus capítulos, que um rei ‘nunca deve iludir, nunca mentir, nunca permitir que outros mintam’. Pontano concorda, em seu Do príncipe, que ‘nada é mais infame’ do que um governante ‘não cumprir a palavra dada’, e insiste em que, ‘se for o caso, requer-se absolutamente que ele respeite a fé́ prometida até mesmo a seus inimigos’.181
Cumprir a palavra dada é uma conduta recomendada em qualquer circunstância, mesmo em
relação ao inimigo. A recomendação de uma conduta ideal, de certas virtudes aconselhadas a cima
de tudo ou em todas as circunstâncias, é o traço distintivo dos tradicionais Espelhos dos Príncipes.
Uma atitude muito diferente da recomenda por Maquiavel que, no capítulo XVIII, aconselha que “um
senhor prudente não pode, nem deve, observar a fé quando essa observância virar-se contra ele ou
quando deixarem de existir as razões que o haviam levado a prometê-la”182. O que notamos aqui não
é propriamente uma inversão do catálogo de virtudes tradicional dos Espelhos dos Príncipes; uma
recusa de um quadro de valores éticos e a proposta de um novo. É, antes, uma relativização e
contextualização destes valores. Certamente, a crítica de Maquiavel se volta também a um ideário
tradicional, no qual “as qualidades do [...] príncipe ideal eram determinadas por uma concepção
política que é fundamentalmente pacífica e irrealista” e no qual “o rei justo e brando, cercado por
sábios conselheiros e mantendo-se nos limites da lei, continuava a ser o ideal”183. Entretanto, antes
mesmo da crítica ao conteúdo dos valores que compõem os tradicionais Espelhos dos Príncipes,
Maquiavel recusa a serventia de aconselhar a partir de um ideal. De nada servem “as coisas
imaginadas acerca de um príncipe”184, um ideal de conduta, pois não há o que se aconselhar sem
reservas, em todas as circunstâncias ou acima de qualquer coisa.
Maquiavel aconselha levando em consideração a imprevisibilidade da ação. Imprevisibilidade
que se nota, por exemplo, pelo fato de que dois agentes que escolhem procedimentos distintos podem
obter sucesso em seus objetivos, e agentes que escolhem procedimentos similares obtêm, cada um,
resultados distintos, sendo que um fracassa e o outro obtém êxito. É interessante notar que nos
momentos em que o autor formula nestes termos a imprevisibilidade da ação, o que ele coloca
especificamente em debate é, por assim dizer, o temperamento do príncipe. No capítulo XIX,
Maquiavel se coloca a tarefa de entender a razão por que, procedendo uma parte dos imperadores
romanos “de um modo e outra parte de modo inverso, alguns deles tiveram um fim feliz, e outros, um
fim infeliz”185. Para tanto, o autor considera, por um lado, os imperadores “de vida moderada, amantes
de justiça e inimigos da crueldade, humanos e bondosos”. Destes, todos, exceto um, “tiveram [...] um
181 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo, SP: Companhia das Letras, c1996, p. 149 182MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XVIII, p. 86 183 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p.461 184 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XV, p. 75 185 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XIX, p. 100
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triste fim”186. Entretanto, a atitude contrária, daqueles imperadores que “foram muitíssimo cruéis e
rapaces”, não resultou em melhores frutos: destes, “todos, com exceção de Severo, tiveram triste
fim” 187 . Já no capítulo XXV, Maquiavel opõe o comportamento cauteloso ao audacioso, o
comportamento violento ao engenhoso, o comportamento paciente ao seu contrário, e sua conclusão
é muito semelhante: não são estes padrões de conduta, estes temperamentos em si, que determinam o
sucesso dos príncipes, mas a relação destes com a “qualidade dos tempos”, que é variável188. A
variabilidade das circunstâncias está intimamente ligada à imprevisibilidade da ação. É em razão da
variabilidade das circunstâncias que prever se torna uma tarefa extremamente difícil.
Maquiavel, portanto, assume a mesma tarefa dos autores dos Espelhos dos Príncipes, isto é,
aconselhar os príncipes no exercício do governo. No entanto, a tarefa de aconselhar se torna uma
tarefa muito mais complexa em sua obra. A fim de bem aconselhar o governante, o autor coloca-se
seriamente os problemas da imprevisibilidade da ação e da variabilidade das circunstâncias. Diante
destes problemas, recusando modelos ideais e conselhos sempre válidos, o conselheiro precisa levar
em consideração uma série de variáveis e perspectivas, exigindo que se façam claros os fatores que
fazem variar os tempos e os que nos permitem minimamente prever os acontecimentos e os feitos dos
homens. Neste sentido, podemos vislumbrar com mais clareza no que consiste o “realismo” de
Maquiavel de maneira mais positiva do que o atributo negativo dado por Gilbert de “não idealista”,
não pautado por um ideal. Sendo mais propositivo, Gilbert associaria o realismo à “apreciação do
fator-poder e de propostas egoístas que dominavam a vida política”189, mas o que se ressalta é, de
todo modo, o caráter “não ideal” do realismo. Verificamos isso no modo como Gilbert identifica um
movimento realista no quattrocento para além de Maquiavel:
um movimento de realismo existiu no quattrocento [...] escritores, tendo motivações práticas em vista, sabiam e usavam o vocabulário do [...] realismo. Um exemplo disso na literatura dos príncipes é Diomede Carafa (1406-87), De regis et boni principis officio. [...] Certamente, Carafa, como seus contemporâneos, gostava de citar máximas de antigos autores e apotegmas de controvérsias tradicionais; mas ele está preocupado somente com as lições práticas a serem tomadas destas generalizações, e as conclusões às quais ele chega são geralmente surpreendentemente similares às de Maquiavel. [...] Mas a obra de Carafa deriva seu excepcional caráter simplesmente do fato que ela não pertence ao esquema da literatura humanista dos príncipes: era um memorando político, escrito pelo principal ministro napolitano para o uso de uma princesa napolitana que acabara de casar com o Duque de Ferrara, não era almejada sua publicação. Uma vez que um autor tinha ambições literárias, ele sentia a necessidade de estabelecer um padrão ideal e escrever de um mundo político imaginário190
186MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XIX, p. 94 187 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XIX, p. 95 188 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XXV, p. 123 189 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p. 468 190 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, pp. 468-469
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A tese de Gilbert aqui é a de que o realismo político de Maquiavel fora já avançado por
escritores do quattrocento. O que diferenciaria estes autores de Maquiavel é que eles não buscavam
dispor seus argumentos na forma de tratados a serem publicados. Maquiavel trouxe à luz do público
literário em geral a visão realista da política. Se tomamos, agora, o realismo político proposto por
Gilbert – o não ideal – do ponto de vista da retórica como via de expressão em O Príncipe, podemos
chegar a algumas conclusões interessantes. Virginia Cox escreve que “no lugar da absoluta inovação
de O Príncipe [...], dentro da perspectiva retórica ela aparece mais como uma inovação relativa,
envolvendo contexto e tom tanto quanto substância” 191 . A intenção ou não de publicação de
observações políticas realistas levantada por Gilbert, assim, podem ser explicadas de uma perspectiva
retórica, como podemos observar na reflexão de Virginia Cox:
Dentro de regimes principescos, o processo de deliberação política era caracteristicamente “privado”, enquanto a face pública do discurso político era demonstrativa. Os livros de aconselhamento humanistas para os príncipes refletiam esta dinâmica, sendo tipicamente moldados de acordo com os canons da retórica demonstrativa. No lugar de genuinamente aconselhar (a tarefa da retórica deliberativa), estes livros de conselho se colocavam a tarefa de reafirmar valores sociais pela prática do louvor e da vergonha, seguindo prescrições clássicas para o gênero demonstrativo.
Cox traduz, da perspectiva retórica, a tese avançada por Gilbert. Para ela, “o gesto de amplo
significado” de Maquiavel foi o de “posicionar a retórica de O Príncipe como deliberativa no lugar
de demonstrativa” 192. Desta perspectiva, Cox pode alegar que o realismo de Maquiavel não é uma
inovação totalmente radical, pois tradicionalmente, “a retórica deliberativa era decididamente sobre
poder e não sobre a moralidade”. Ela nos explica que a “retórica era intrinsicamente relativista em
atribuir diferentes ‘fins’ para seus gêneros contextualmente diferenciados”. Como vimos, o fim do
gênero demonstrativo era o honestum, enquanto aquele do deliberativo era a utilitas. A inovação de
Maquiavel foi de, no contexto humanista, trazer a utilitas para um estilo literário geralmente voltado
para o honestum, os Espelhos dos Príncipes, movendo este estilo do gênero demonstrativo de retórica
para o deliberativo. Assim, o radicalismo em O Príncipe, de um ponto de vista retórico, repousa sobre seu desdenho das regras de decorum, ao elevar a linguagem da deliberação para fora de sua esfera ‘própria’, circunscrita dentro dos conselhos do estado, e posicionando-a em evidência em uma obra intencionada para circulação geral e vestida nos ornamentos formais de um tratado de governo193.
Felipe Charbel Teixeira nos explica que, em Maquiavel,
191 COX, Virginia. “Rhetoric and Ethics in Machiavelli.” In: John M. Najemy (ed.), The Cambridge Companion to Machiavelli. Cambridge University Press (2010), p.179 192 COX, Virginia. “Rhetoric and Ethics in Machiavelli”. In: John M. Najemy (ed.), The Cambridge Companion to Machiavelli. Cambridge University Press (2010), p. 178 193 COX, Virginia. “Rhetoric and Ethics in Machiavelli”. In: John M. Najemy (ed.), The Cambridge Companion to Machiavelli. Cambridge University Press (2010), p. 179
69 a reflexão sobre o presente ganha centralidade: este se torna em grande medida incompreensível, [...] porque a experiência e as histórias antigas deixam de constituir repositórios evidentes em si mesmos de ações e condutas para o presente, e o futuro já não é compreendido como algo plenamente mensurável. Não que o recurso à experiência e às histórias seja abandonado; nota-se, porém, uma maior exigência no que diz respeito à mobilização de tais expedientes, evidenciada pelo destaque conferido ao que chamavam de exame da ‘qualidade dos tempos’. Torna-se imperativo saber se valer da experiência e das histórias de forma correta, em estreita relação com as condições particulares em jogo: somente os prudentes, donos de olhar agudo e penetrante, podem distinguir, no emaranhado de situações superpostas, muitas das quais praticamente indistinguíveis entre si, as escolhas e caminhos apropriados.194
Maquiavel abandona os quadros fixos e universais de virtudes, porque seu “questionamento
fundamental diz respeito à aplicabilidade universal de tais virtudes, e a desconsiderações de práticas
que, em circunstâncias determinadas, e tendo em vista fins últimos úteis e honrosos, poderiam ser
consideradas virtuosas, não em absoluto, mas segundo condições específicas”195. Reconhecer a
verdade quanto a bondade de uma virtude - reconhecer que ser caridoso, ou dizer a verdade, ou
cumprir a promessa dada é bom – não é o interesse de Maquiavel. Seu interesse é saber se estas coisas
se podem recomendar, se podem aconselhar. Para tanto,
é preciso, antes de tudo, perceber o que é a virtude numa circunstância tal, dar moldes a ela para, então, pensar na decisão prudente a se tomar, visando à produção de bons efeitos, em acordo com um bem definido em função das situações particulares em jogo. Um exemplo desta prática está no tratamento conferido à liberalidade em O Príncipe [...]. Se a liberalidade é inquestionavelmente uma virtude em sentido amplo, sua aplicação é passível de deliberação: dependendo da circunstância, ela pode ou não ser uma virtude para a situação específica.196
O ataque de Maquiavel à tradição se dá por vias retóricas. Charbel escreve que se nota “o
emprego por Maquiavel, em O Príncipe, da paradiástole, técnica retórica de redescrição de virtudes
e vícios”. Este recurso retórico “atua precisamente na lacuna entre definições gerais e enunciados
específicos”. Por ela Maquiavel pode flexibilizar e adequar o aconselhamento de virtudes e vícios.
Não que as virtudes “devam ser descaracterizadas como virtudes em geral; apenas precisam se
adequar às situações particulares, cuja análise atenta, muitas vezes, demonstra o caráter inapropriado
do emprego destas em determinadas circunstâncias”197. Maquiavel alerta, no décimo quinto capítulo,
que se “tudo bem considerado, quem seguir alguma coisa que pareça virtù encontrará a própria ruína,
enquanto quem seguir outra que pareça vício poderá alcançar segurança e bem estar”198. O que está
194 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p. 70 195 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, pp. 82-83 196 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, pp. 83-84 197 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p. 75 198 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XV, p. 76
70
por trás do “realismo” de Maquiavel é uma especial preocupação com a qualidade dos tempos, que é
variável, e a melhor maneira de aconselhar diante disso.
No capítulo XV de O Príncipe encontramos umas das passagens mais comentadas e citadas
do livro. A passagem nos apresenta a noção de verità effettualle:
Resta agora ver como deve comportar-se um príncipe em relação a seus súditos e amigos. Como sei que muitos já escreveram sobre o assunto, temo que escrevendo eu também seja considerado presunçoso, sobretudo porque, ao discutir esta matéria, me afastarei do que foi pelos outros prescrito. Porém, sendo meu intento escrever uma coisa útil para quem a escuta, parece-me mais conveniente seguir a verità effettualle della cosa do que a imaginação sobre ela. Muitos imaginaram repúblicas e principados que jamais foram vistos e que nem se soube se existiram de verdade, porque há tamanha distância entre como se vive e como se deveria viver que aquele que abandona o que se faz por aquilo que se deveria fazer aprende antes a arruinar-se que a preservar-se; pois um homem que queira fazer em todas as partes profissão de bondade deve arruinar-se entre tantos que não são bons. Eis por que é necessário a um príncipe, se quiser manter-se, aprender a poder não ser bom e a valer-se disso ou não segundo a necessidade.199
É preciso ter em mente que a passagem marca uma nova etapa do livro. O tema a ser tratado
nos capítulos XV a XIX é como o príncipe deve ser bom ou mau, quais devem ser considerados suas
qualidades e vícios, e em que medida é louvado ou vituperado. No entanto, a verità effettualle à qual
Maquiavel associa a investigação do comportamento do príncipe não parece estar restrita a esta
temática e a estes capítulos. Felix Gilbert identifica nesta passagem “os princípios metodológicos
subjacentes ao argumento de O Príncipe”. De fato, a passagem indica uma amplitude maior do que a
abordagem dada somente naquele momento do texto. Ele expressa um ponto de afastamento entre o
autor e seus predecessores em virtude de parâmetros mais gerais: o utile e a verità effettualle. Gilbert
entende que aqui Maquiavel traça “uma firme e definitiva linha de demarcação entre ele mesmo e
seus predecessores”200.
Como já vimos, Gilbert busca atribuir a Maquiavel uma oposição ao “idealismo” de seus
predecessores, “que procuravam adaptar e subordinar a teoria política a padrões metafísicos ou
teológicos”. O realismo de Maquiavel, portanto, consistia em ter como suporte “observações e
experiências derivadas da prática política” e uma “fundação puramente empírica”201 . Implicava em
um certo “racionalismo político” e “uma apaixonada preocupação em descobrir as leis encobertas das
mudanças da história”. Assim, “pela aplicação destas leis, uma vez descobertas, o príncipe de
Maquiavel poderia ter dentro seu poder a maestria da política”202. Mas como devemos entender este
199 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo XV, p.75. Tradução alterada. 200 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p.450 201 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p.450 202 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p.470
71
realismo como um método de Maquiavel, tal como promete Gilbert? No que consiste, mais
precisamente, e como este método se aplica? O que significa e como conciliar a fundação puramente
empírica e o racionalismo político? E por que vias, mais precisamente, descobre-se as leis encobertas
da história e se as direciona para a maestria política? Gilbert é sapiente em mostrar tendências
importantes do pensamento de Maquiavel, tais como a ênfase no cálculo dos meios, a preocupação
com a variabilidade, a importância da experiência ligada à razão. No entanto, estas tendências e
qualidades atribuídas ao pensamento de Maquiavel não parecem ainda constituir um método coerente.
Parece ainda pouco nítido o que precisamente é a verità effettualle.
Novamente, as reflexões avançadas por Gilbert podem ganhar mais fôlego e coerência se
vinculadas à associação de Maquiavel com a tradição retórica. Ao ignorar a perspectiva retórica em
seu artigo, Gilbert deixa de ver aspectos importantes no que diz respeito à “influência de uma
antiga”203 teoria sobre a nova teoria de Maquiavel, bem como elos cruciais da “cadeia que levou ao
realismo de Maquiavel”204. Os esforços de Virginia Cox, Maurizio Virolli e Felipe Charbel em
mostrar a profunda influência que a arte retórica tem sobre a obra de Maquiavel permitem colocar em
evidência como o uso da verità effettualle confronta Maquiavel com seus antecessores, bem como
em que medida se faz de algum modo, como queria Gilbert, um “método” geral para todo o livro.
Como já vimos, Cox entende que a inovação de Maquiavel foi a de aconselhar os príncipes no estilo
dos Espelhos dos Príncipes a partir do gênero deliberativo e não o gênero demonstrativo de retórica.
Ao adotar este gênero, Maquiavel está comprometido com certas delimitações e objetivos que
moldam decisivamente seus procedimentos de exposição e descoberta de ideias. Tomando o
aconselhamento político como principal função do gênero deliberativo, Viroli explica que,
como um conselheiro em assuntos do estado, Maquiavel está comprometido com um tipo particular de verdade, que ele chama ‘la verità effettuale della cosa’ [...]. O adjetivo ‘effettualle’ que Maquiavel adiciona ao substantivo ‘verità’ [...] significa efetivo, produtivo. Seguir a verdade efetiva da questão significa seguir a verdade que permite atingir o resultado desejado – isto é, [...] o que é útil [utile] para o príncipe. Ele está comprometido, em outras palavras, com a verdade do orador, não a verdade do cientista. [...] Maquiavel pretende descobrir, não verdades plenas e descoloridas sobre a ação política, mas verdades adaptadas ou acomodadas obtidas por se minimizar qualquer coisa que possa fazer o argumento menos persuasivo e maximizando todas as considerações que fazem o conselho plausível.205
Viroli identifica a verità effettualle de Maquiavel com a verdade do orador. Mais
especificamente, trata-se da habilidade do orador do gênero deliberativo, empenhado em efetivamente
aconselhar em vista do útil, em vista de se atingir o resultado desejado por vias seguras. A
203 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p.452 204 GILBERT, Felix. "The Humanist Concept of the Prince and the Prince of Machiavelli," The Journal of Modern History 11, no. 4 (Dec., 1939): 449-483, p.457 205 VIROLI, Maurizio. Machiavelli. Oxford : Oxford University Press, 1998. pp.81-82
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plausibilidade e a persuasão nos argumentos e conselhos são as ferramentas do ex-secretário. Charbel
comenta que a “verità effettualle della cosa, como diz Maquiavel [...] difere do ‘agir conforme a
verdade das coisas’ de Tomás de Aquino, uma verdade inflexível, evidente e natural”206. Não é a
verdade do filósofo ou cientista, que se pretende demonstrada, evidente. A verdade efetiva diz
respeito ao que é plausível ou razoável, visando um entendimento adaptado e acomodado que permita
aconselhar quanto à melhor medida possível a ser tomada. As verdades científicas ou filosóficas, de
caráter contemplativo e universal, não estão facilmente dispostas para o uso da deliberação. Neste
sentido, a verdade almejada por Maquiavel não busca adquirir “status de verdade científica ou
filosófica”. Buscando sempre a utilidade do conselho, as verdades efeituais “permanecerão parciais,
prováveis, adornadas, acomodadas e coloridas”207.
Isto não quer dizer, entretanto, que a verdade efetiva não se submeta a um parâmetro próprio
ou que não reivindique “saber a verdade da questão”. A verdade efetiva, de qualquer modo, não põe
como parâmetro central a asserção de verdade “para acima das dúvidas” e busca sempre operar
arguindo as questões “em dois lados” 208. Seu parâmetro próprio é a capacidade da “harmonização de
um discurso com o ‘momento’”. Esta capacidade está presente nos autores clássicos e é herdada por
Maquiavel. Cox cita Quintiliano (35-95): “em prática [em oratória], quase tudo depende em causas,
tempos, oportunidade e necessidade. Portanto, uma capacidade particularmente importante em um
orador é uma astuta adaptabilidade [consilium], uma vez que ele é chamado a encontrar as mais
variadas emergências”209.
Uma vez que verdade efetiva é uma preocupação retórica já tradicional no gênero deliberativo,
podemos ver o nomeado “realismo” de Maquiavel, como queria Gilbert, não como uma quebra radical
com a tradição, mas antes uma disputa com ela, em seus próprios termos, os termos retóricos. Charbel
afirma assim uma mudança de ênfase ou “foco analítico cujo sentido fundamental seria não o de
operar uma crítica destrutiva do humanismo, e sim a tentativa de aperfeiçoar seus mecanismos
cognitivos”210. Victoria Kahn, por sua vez, afirma que Maquiavel “faz a política mais profundamente
retórica do que havia sido até então”211. Isto porque Maquiavel foca e aprofunda a tradicional e
fundamental preocupação retórica com a harmonização do discurso com o momento, com a astuta
206 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p.84 207 VIROLI, Maurizio. Machiavelli. Oxford : Oxford University Press, 1998. P.82 208 VIROLI, Maurizio. Machiavelli. Oxford : Oxford University Press, 1998. p.82 209 COX, Virginia. Rhetoric and Ethics in Machiavelli. In: John M. Najemy (ed.), The Cambridge Companion to Machiavelli. Cambridge University Press (2010), p.175 210 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, pp.15-16 211 KAHN, Victoria. Machiavellian Rethoric, p.8 conforme citado por TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p.15
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adaptabilidade, com o “o critério da adaptação às condições dos tempos”212. Charbel explica que “a
idéia de verità effettualle [...] realça tanto a importância do cálculo cuidadoso da dinâmica da
realidade como da produção, pelo orador e pelo homem de letras, de efeitos persuasivos”213. Ambas
preocupações dizem respeito ao parâmetro retórico deliberativo mais geral de harmonização com o
contexto e astuta adaptabilidade em busca do bom efeito. Por um lado, há a preocupação em adequar
a deliberação aconselhada com os tempos – uma “ênfase [...] nos resultados produzidos por certas
ações” 214 . Por outro, a preocupação em locucionar apropriadamente de acordo com o agente
aconselhado o conselho apropriado. Devemos lembrar que Maquiavel, ao introduzir em seu
pensamento uma ênfase ou foco analítico na verdade efetiva, faz parte de um movimento maior do
pensamento italiano do final do século XV e início do XVI. Charbel escreve que
Já na última década do século XV diversos tratados políticos põem em xeque algumas concepções sobre a vida civil dos “humanistas cívicos”. A discussão sobre a interferência da Fortuna nos assuntos humanos adquire evidência, uma vez que o poder do acaso e os caprichos da deusa passam a ser associados, por escritores da passagem do XV para o XVI como Pontano, Rucellai, Maquiavel e Guicciardini, às mudanças dos ventos na Península Itálica. [...] Compõem-se, assim, um horizonte de expectativas pleno de incertezas, ligados por fios ainda fortes a um espaço de experiência bastante amplo que, todavia, se mostrava cada vez mais difícil de mobilizar, por ser incapaz de fornecer, por si só e de forma evidente, as respostas necessárias às indagações sobre os rumos imprevistos das “coisas do mundo”.215
É neste contexto que surge O Príncipe. A retórica, enquanto arte de deliberar sobre o variável
e o mutável, não é abandonada por Maquiavel diante do contexto de extrema variabilidade em que se
encontra. É o uso da retórica que é disputado por ele em relação aos seus antecessores humanistas.
Maquiavel, diante de uma realidade cada vez mais difícil de ser prevista e mobilizada, busca reformar
e aprofundar o uso da retórica a partir do preceito de verdade efetiva. O aprofundamento deste
preceito implica em dois procedimentos interligados a serem seriamente executados pelo autor. Por
um lado, o exame cuidadoso dos contextos específicos, da qualidade dos tempos e das possibilidades
oferecidas por este contexto para a utilidade do agente. Por outro, a expressão apropriada que permita
ao aconselhado, em sua perspectiva particular, agir apropriadamente. Acreditamos encontrar isto em
O Príncipe na medida em que, como buscaremos explicitar com mais detalhes na seção que se segue,
Maquiavel examina os contextos nos quais os diferentes príncipes se encontram em suas
particularidades e distinções, buscando expressar apropriadamente o aconselhamento resultante deste
exame no vocabulário das dificuldades e necessidades. Maquiavel busca mostrar ao príncipe o que o
212 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p.16 213 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p.17 214 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p.90 215 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, pp. 69-70
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necessita, as dificuldades a ele impostas; assim, acomoda a verdade do conselheiro às condições
particulares dos aconselhados.
1.2.2 A tecedura de O Príncipe: o exame dos contextos pela delimitação das dificuldades e necessidades
Ao formular a questão a respeito da manutenção dos principados no segundo capítulo,
Maquiavel já indica um caminho para respondê-la: o autor pretende desenvolvê-la “tecendo os fios
da urdidura antes indicada” 216 . O autor entende sua empresa metaforicamente nos termos da
tecelagem. Assim como no funcionamento de um tear - onde os fios da urdidura estão previamente
localizados paralelamente, formando, pela alternância de fios pares e ímpares, calas por onde pode
passar o fio da trama, fabricando o tecido -, Maquiavel pretende desenvolver sua discussão acerca
dos modos de ação para a preservação do principado (a trama do tear) a partir de determinadas
considerações prévias acerca dos principados apresentadas no primeiro capítulo do livro (a urdidura
do tear). A alegoria do tear diz respeito à relação entre o que foi apresentado no primeiro capítulo
com a questão estipulada no segundo.
Como já vimos, grande parte da extrema dificuldade em se aconselhar os governantes nasce
da combinação da imprevisibilidade da ação com a variabilidade dos contextos. É da grande variedade
de contextos possíveis que nasce também a grande variedade de maneiras possíveis de se conduzir,
bem como a variação da efetividade ou falibilidade das condutas tomadas pelos agentes políticos.
Neste sentido, faz-se notar a ênfase dada por Maquiavel ao preceito retórico da verdade efetiva,
buscando explorar e aprofundar as capacidades do gênero deliberativo de harmonização entre
discurso e momento em vista do útil e de astuta adaptabilidade com as condições dos tempos. Em
face à extensa gama de possíveis condutas na busca pela manutenção do principado, ao examiná-las,
Maquiavel tem sempre em mente que uma ação só pode ser avaliada se consideramos o contexto
político onde se desenrola, isto é, a ação política só pode ser examinada quando se considera
(pressupondo ou observando) seus contextos singulares. Quando considera, no primeiro capítulo, as
condições de aquisição do principado, Maquiavel está delimitando o contexto no qual se encontram
os príncipes no momento em que têm de mantê-lo. Aquele que adquiriu algo, agora busca os meios
para manter o que foi adquirido.
As distinções apresentadas no primeiro capítulo estão majoritariamente centradas em como e
sob quais circunstâncias o príncipe atinge o principado. Sua preocupação central é distinguir
diferentes contextos em que se adquirem os principados. Os principados são hereditários ou novos,
pois os príncipes atingem o principado pela hereditariedade ou pela aquisição de um território; os
216MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo II, p. 7
75
stati adquiridos são acostumados ou não ao governo de um príncipe; os principados são adquiridos
pelas armas de quem o adquire ou pelas de outrem, e pela habilidade ou pela fortuna do príncipe.
Tendo apresentado as condições e os meios de aquisição do principado, Maquiavel oferece uma
contextualização para a questão apresentada no segundo capítulo do livro, quanto a como se pode
manter e governar os principados. Ele pretende examinar a conduta dos agentes políticos na busca
pela manutenção dos principados e, para tanto, deve considerar os diferentes contextos onde estes
agentes estão inseridos no momento em que assumem sua posição de poder. Como veremos no
próximo capítulo da dissertação, a centralidade dada por Maquiavel às aquisição e manutenção do
principado e às possíveis relações que se podem estabelecer entre estas duas ações políticas abre
espaço para e estruturam o livro em torno da investigação da inovação política; isto é, a introdução
de novos modos de governo e ordenações políticas, bem coma a fundação de um novo stato. O que
interessa neste momento salientar é que a aquisição do principado oferece ao exame de Maquiavel
uma gama de contextos singulares a partir dos quais o parâmetro da verdade efetiva se pode aplicar.
Assim, como explica Bignotto, Maquiavel procede sua análise traçando “um retrato variado
das situações que podem ser encontradas pelos príncipes e a melhor forma de enfrentá-las”217.
Conhecer as condições que colocaram o príncipe na posição de comando é fator decisivo para como
aconselhar sua conduta na manutenção do principado. O exame apurado e detalhado do contexto em
que se encontra o príncipe no momento em que chega ao principado é a via encontrada por Maquiavel
para enfrentar o problema da imprevisibilidade da ação. Se este exame tem a virtude revelar os
contextos de forma concreta e singular, torna a eficiência e os resultados esperados da ação do
governante persuasivas, portanto adaptadas ao conselho útil. Poderíamos, assim, ter uma visão efetiva
da perspectiva e das condições do príncipe. Por esta razão, o que está sendo exposto no primeiro
capítulo é essencial para a questão posta por Maquiavel no segundo. Trata-se da urdidura sobre a qual
se sustenta a trama do livro. Podemos dizer que Maquiavel responde ao parâmetro deliberativo
retórico da verdade efetiva, bem como o aprofunda, pelo exame apurado dos contextos. A partir dele,
o autor delimita o conjunto de considerações relevantes a serem levadas em conta para a conduta do
príncipe, avalia exemplos a serem imitados ou evitados e formula as possibilidades de ação.
Isto se nota na forma como Maquiavel organiza a sequência de capítulos II ao VII. Neles,
temos a impressão de ver traçado um plano bem definido das etapas da investigação do autor. Cada
capítulo questiona os meios para se manter o governo do principado considerando as distinções
realizadas no primeiro capítulo, discernindo e discorrendo sobre as condições e circunstâncias
específicas nas quais pode se encontra o príncipe quando assume sua posição. Assim, no capítulo II,
217 BIGNOTTO, Newton. Maquiavel. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, Kindle Edition, Location 804-150
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o autor considera os estados hereditários218 . No capítulo III, é considerada a situação dos principados
mistos, a junção de um principado conquistado ao principado hereditário de quem os conquistou219.
Os capítulos IV e V também se dedicam à territórios conquistados, mas consideram outra distinção
exposta no primeiro capítulo: entre domínios acostumados a serem governados por príncipes e
acostumados a viver sob as próprias leis. Ao discorrer sobre "por que razão o reino de Dario, ocupado
por Alexandre, não se rebelou contra os sucessores deste após a sua morte"220, no quarto capítulo,
Maquiavel está examinando as ações de um conquistador (Alexandre), considerando que o território
conquistado fora antes governado por outro príncipe (Dario). Já no capítulo V, o autor avalia como
se pode "manter aqueles estados conquistados [...] e habituados a viver com suas próprias leis e em
liberdade"221. Os capítulos VI ao IX, por sua vez, dedicam-se a discutir como se mantêm “principados
completamente novos onde há um novo príncipe"222. Para examiná-los, o autor leva em conta os
modos por ele enunciados no primeiro capítulo para se adquirir o principado: por armas próprias ou
de outros, por fortuna ou por virtù. Assim, no capítulo VI, considera-se a condição de príncipes que
atingiram sua posição "com armas próprias e com virtù"223. No capítulo VII, daqueles que a atingiram
"com as armas e a fortuna de outrem”224. Como já pudemos ver, as distinções apresentadas no
primeiro capítulo não dizem respeito somente aos diferentes principados, mas expressam as
perspectivas de diferentes príncipes. Os príncipes hereditários, os fundadores, os conquistadores.
Com isso, vemos que a preocupação de examinar distintamente cada contexto em sua particularidade
se cruza com a exigência retórica em se argumentar os vários lados das questões tratadas. O que
vemos desenrolar-se ao longo do príncipe é a questão da manutenção e governo do principado
considerado de diferentes perspectivas, perspectivas a serem distinguidas, comparadas e
assemelhadas.
Entretanto, o que precisamente sustenta a tecedura de Maquiavel? Como interagem o exame
singular dos contextos e o aconselhamento apropriado da ação em O Príncipe? Podemos encontrar a
resposta para tanto no vocabulário com o qual aborda sua questão. No segundo capítulo, depois de
formular sua questão – como governar e manter os principados - Maquiavel parte para o primeiro tipo
de principado a ser avaliado, o principado hereditário. Ele assim afirma: “digo, pois, que, nos estados
hereditários [...], há bem menos dificuldades para mantê-los do que nos novos”225. A constatação é
reafirmada no capítulo subsequente, dedicada aos principados mistos, iniciada pela adversativa, “mas
218 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo II, p. 7 219 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, pp. 9-10 220 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo IV, p. 19 221 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo V, p. 23 222 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 25 223 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p.25 224 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p.29 225 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo II, p.7
77
é no principado novo que aparecem as dificuldades”226. Ao analisar as condições políticas destes dois
gêneros de principados, visando ponderar sobre a preservação do poder do príncipe, Maquiavel
constata a existência de dificuldades que se impõem ao agente político. Os contextos políticos
apresentam obstáculos que devem ser superados pela conduta do príncipe para a preservação de seu
stato. Assim, ao comparar principados hereditários e novos, Maquiavel interessa-se particularmente
pelo fato de que as dificuldades impostas ao agente são maiores no segundo caso. É a partir do
escrutínio e da formulação de dificuldades que Maquiavel efetiva sua consideração dos contextos a
fim de que ela possa influir na ação do príncipe. Ao identificar as dificuldades encontradas pelos
príncipes na busca pela manutenção de seu poder, põe-se em foco em que circunstâncias elas se
impõem227. O exame de Maquiavel busca, assim, mostrar como nascem e quais as razões para tais
dificuldades228; tecer comparações entre diferentes contextos, mostrando que alguns deles apresentam
maiores, menores ou distintas dificuldades e, portanto, exigem melhores, mais ordinárias ou distintas
habilidades do príncipe em superá-las229; além de evidenciar condições que amenizam as dificuldades
ou criam facilidades ao governante230.
226 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010, Capítulo III, p.9. Nossos itálicos 227 “[…] é nos principados novos que aparecem as dificuldades." [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 9]. "[...] uma dificuldade natural que existe em todos os principados novos" [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.9]. "é na conquista de stati numa província de língua, costumes e ordenações diferentes que se encontram as dificuldades" [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.11]. "Considerando as dificuldades que existem para manter um stato recém-conquistado" [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo IV, p.19]. "[os que se tornam príncipes pela fortuna] não encontram dificuldade no caminho porque passam voando por ele: mas todas as dificuldades surgem quando chegam ao destino [...]" [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p. 29]. Nossos itálicos. Não pretendemos oferecer uma exposição exaustiva e completa com os exemplos, tampouco excluir outras possibilidades de interpretação. Queremos meramente expor exemplos suficientes para sustentar a plausibilidade de nossas afirmações. Referimo-nos às afirmações referentes a esta e às próximas notas 224 a 232. 228 “[...] suas variações nascem principalmente de uma dificuldade natural [...]"[MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.9]. "[...] não obstante seus sucessores o terem mantido sem maiores dificuldades do que as surgidas entre eles mesmos de sua própria ambição" [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. CapítuloIV, p.19]. Nossos itálicos. 229 “[...] nos stati hereditários [...] há bem menos dificuldades para mantê-los do que nos novos [...]; de modo que, se um príncipe é de capacidade ordinária, ele se manterá em seu stato" [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo II, p.7]. "[...] na conquista de stati numa província de língua, costumes e ordenações diferentes que se encontram as dificuldades, sendo necessário muita fortuna e muita habilidade para mantê-los." [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.11]. "Nos principados completamente novos onde há um novo príncipe existe maior ou menor dificuldade para mantê-lo conforme seja maior ou menor a virtu de quem o conquistou" [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p.25]. "Homens assim enfrentam grandes dificuldades, defrontando-se em seu caminho com perigos que precisam ser vencidos com avirtù" [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p.28]. “Assim, quem considerar esses dois estados encontrará dificuldade em conquistar o stato do grão-turco, porém, vencendo-o, terá grande facilidade em mantê-lo. Ao contrário, sob todos os aspectos, encontrará maior facilidade em ocupar o reino da França, porém grande dificuldade em mantê-lo" [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo IV, p. 20]. Nossos Itálicos. 230 “É bem verdade que, ao serem conquistados pela segunda vez, os países rebelados perdem-se com mais dificuldade.” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 10]. “Se forem [stati da mesma província e língua do conquistador], será fácil mantê-los” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 10]. “[...] tendo costumes semelhantes, conquanto haja alguma diversidade de língua, podem facilmente ajustar-se.” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 11]. “[...]
78
À noção de dificuldade vemos geralmente atrelada outra noção central, a de necessidade.
Certas dificuldades são maiores ou dependem da necessidade de se fazer algo231. E Maquiavel expõe
ao longo do livro as muitas necessidades impostas aos príncipes seja para que não se arruínem, seja
para que consigam os objetivos almejados232. Robert M. Adams comenta que “necessità [...] tem [...] uma interessante combinação de aspectos positivos, bem como negativos”. Com isso, ele pretende
ressaltar o caráter condicional da ação, que é duplo – é o que se obsta à ação, mas ao mesmo tempo
o que permite sua realização efetiva. Adams explica que
Algumas coisas devemos [must] fazer, outras são verboten [...]. Compulsão externa elevando-se diante de nós e desviando ou interrompendo nosso progresso é a imagem; e quando não podemos superar o obstáculo ou desviar dele, não há muito o que se fazer além de dar de ombros e desistir. Mesmo quando a necessidade nos diz que devemos [must] fazer isto, uma negativa periférica forte está acoplada a seu comando; grande parte de seu sentido é “e não aquilo ou a outra coisa ou qualquer outra coisa além disto’[...] Ainda assim, [...] mesmo que geralmente tão peremptórias quanto um sinal vermelho ou arames farpados, “necessidades” na política são mais frequentemente condicionais. Se você pretende atingir determinado
parece que uma ou outra dessas duas coisas ameniza, em parte, muitas das dificuldades [...]. Também cria facilidades o fato de o príncipe ser obrigado a ir pessoalmente habitar o novo stato" [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 26]. Nossos itálicos. 231 “há bem menos dificuldades para mantê-los do que nos novos [...] pois o príncipe natural tem [...] menos necessidade de ofender.” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo II, p. 7]. “[...] suas variações nascem principalmente de uma dificuldade natural [...] isso decorre de outra necessidade natural e ordinária” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 9]. “Considere-se agora com quão pouca dificuldade poderia o rei ter mantido sua reputação na Itália se tivesse [...] assegurado e protegido todos os seus amigos que [...] necessitavam sempre estar a seu lado.” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 16] – neste caso, há de se observar que a necessidade imposta às cidades italianas diminui as dificuldades impostas aos franceses, mesmo que em relação à diferentes agentes, verifica-se uma dificuldade posta em dependência de uma necessidade. “[...] encontrará dificuldade em conquistar o stato do grão-turco, porém vencendo-o, terá grande facilidade em mantê-lo [...] se considerares de que natureza era o governo de Dário, vereis que era semelhante ao reino do grão-turco e, por isso, foi necessário a Alexandre primeiro derrotá-lo completamente [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo IV, p. 21]. “As dificuldades que têm para conquistar o principado nascem em parte das novas ordenações e dos novos modos que são forçados a introduzir para fundar seu stato e sua segurança” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 27] – neste caso, deve-se notar que o termo necessidade não é usado; de qualquer modo, é seguro entender que ao ser forçados a introduzir novas ordenações, os príncipes estão diante de uma necessidade. “Alexandre VI tinha muitas dificuldades presentes e futuras para fazer a grandeza de seu filho, [...] era-lhe necessário, portanto, perturbar aquela ordem e desordenar a Itália” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, pp. 30-31]. Nossos itálicos. 232 “necessidade natural e ordinária, que faz com que sempre seja necessário ofender aqueles de quem se torna novo príncipe” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.9]. “[...] é necessário ou fazer isso, ou manter bastante cavalaria e infantaria” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 12]. “Luís [...] querendo começar a pôr um pé na Itália e não tendo amigos nessa província, [...] foi forçado [necessitato] a aceitar as amizades que podia” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 15]. “[...] necessitavam sempre estar a seu lado” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 16]. “Se não tivesse tornado grande a Igreja nem posto a Espanha na Itália, seria bem razoável e necessário rebaixar os venezianos” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 17]. “[...] foi necessário a Alexandre primeiro derrotá-lo completamente” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo IV, p. 21]. “Era necessário portanto que Moisés encontrasse no Egito o povo de Israel escravizado e oprimido pelos egípcios para que eles se dispusessem a segui-lo” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, pp.25-26]. “Era-lhe necessário, portanto, perturbar aquela ordem e desordenar a Itália” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p. 31]. “ [...] o duque julgou desnecessária tão excessiva autoridade” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p. 33]. “Quem, portanto, num principado novo, julgar necessário [...]” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p.36]. Nossos itálicos.
79 objetivo, você tem que lidar com esta, aquela ou outra condição preliminar ou indispensável.233
Ora, visto que o exame dos contextos proposto por Maquiavel visa avaliar como agem os
governantes e os aconselhar apropriadamente, investigar estes contextos sob o prisma das
dificuldades e necessidades por eles impostas é uma efetiva estratégia, pois estas noções abarcam
tanto o contexto quanto a ação, além de relacioná-los. Por um lado, podemos entender dificuldades e
necessidades como coisas que se impõem ao sujeito, como obstáculos que se lhe objetam. Neste
sentido, explicitar as dificuldades encontradas pelo agente e expor as necessidades nelas envolvidas
implica entender o contexto que impõe tais dificuldades e necessidades. Por outro lado, uma
dificuldade ou uma necessidade são entendidas como tais na medida em que o sujeito deseja ou
necessita superá-las, enfrentá-las. Não é uma mera condição estabelecida, mas uma que demanda a
ação e a intervenção dos agentes. Ao discutir as dificuldades e necessidades impostas aos príncipes,
Maquiavel empreende uma investigação da efetividade das ações dos governantes que é sensível e
sempre relativa aos contextos. De tal modo que possa julgar e distinguir, como o faz no quarto
capítulo, o que é próprio e como se relacionam a “muita ou pouca virtù do vencedor” – isto é, suas
capacidades e condutas – e a “diversidade do sujeito” 234– as diferenças de condições e situações nas
quais estas capacidades e condutas foram exercidas. Assim, as reflexões de Maquiavel se apresentam
em geral em tom condicional, como nos mostrou Adams a respeito da noção de necessidade. A
reflexão de Claude Lefort quanto à démarche de O Príncipe vai no mesmo sentido ao apontar os
caráteres hipotético e de um problema no uso da noção de dificuldade:
De início, diversas hipóteses se encontram enunciadas: trata-se de indicar em quais condições está estabelecido um príncipe quando ele se torna mestre do Estado. Estas hipóteses aparecem em seguida submetidas a um exame sistemático do qual surgem algumas outras particularidades. A cada vez, são analisadas as dificuldades que guardam a tomada do poder e sua conservação. O uso repetido da palavra difficultà sugere [...] que a ação política deve ser tratada como o são os termos de um problema.235
O caráter hipotético salientado por Lefort para descrever as distinções apresentadas no
primeiro capítulo explicita a sua relação com o segundo, bem como o procedimento investigativo que
permeia todo livro: a delimitação de dificuldades. Maquiavel busca aconselhar considerando
hipóteses possíveis. Se encontramos tais condições, então deve-se agir de tal forma: esta é a relação
hipotética entre o primeiro e o segundo capítulos de O Príncipe - tendo-se adquirido o principado sob
certas condições, age-se de certa forma a fim de mantê-lo. Lefort entende as dificuldades
233 ADAMS, Robert M. “Necessità/Fortuna”. In: MACHIAVELLI, N. The Prince. Norton Critical Edition, Nova York, 1992, pp. 269-270. Minha tradução para as citações deste texto. 234 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo IV, p. 22 235 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.328
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reiteradamente formuladas por Maquiavel nos termos de problemas, que organizam os dados em uma
pergunta coerente: dado este contexto, como se preserva o principado? Assim, como Lefort mostra,
em um primeiro momento, temos a impressão de que a “exposição” de Maquiavel “se apresenta como
uma demonstração”236, como o “uso de um método, graças ao qual o que parece de início difícil se
verifica depois fácil de ser resolvido”237. A exposição de Maquiavel parece “deduzir de um princípio
as consequências das quais a história oferece uma ilustração, ou induzir dos fatos uma regra de porte
universal”. E “o fracasso do príncipe é imputado a erros de raciocínio, o sucesso a um conhecimento
exato dos fatos, junto de uma reflexão rigorosa sobre os princípios”, uma vez que ele parece, em um
primeiro momento, estar sempre “em face de alternativas onde se inscrevem a inelutabilidade da
escolha e a exigência da decisão racional”. Lefort lembra ainda que “os sinais do pensamento lógico
são [...] multiplicados no curso das primeiras análises, não sem ostentação. Maquiavel habitua seu
leitor a confundir em um mesmo pensamento o que é ordinário, natural, necessário e racional, e a
respeitar a ordem das coisas”238. Enfim, em um primeiro momento, “O Príncipe se faz passar pelo
mais ordenado e o mais demonstrativo dos discursos. Redução da diversidade empírica a dados de
hipóteses; passagem do caso particular à regra geral e vice-versa; alargamento progressivo da
investigação de situações típicas e de conjunturas às constantes do comportamento político”239.
No entanto, seguindo o desenvolvimento do livro, esta primeira impressão logo se desfaz240.
Devemos estar atentos para o sentido que as noções de dificuldade e necessidade têm em O Príncipe.
Elas certamente são um recurso pelo qual as relações políticas se tornam compreensíveis, pelo qual
se revela a perspectiva e a condição do agente, e pelo qual se facilitaria prescrever meios de ação mais
ou menos adequados. Entretanto, não podemos de forma alguma imputar a Maquiavel algum tipo de
especial preocupação quanto à “concisão lógica”, por assim dizer, em sua abordagem. Ele certamente
está distante do detalhamento lógico e filosófico dos escolásticos medievais, mas também está da
precisão da ordo geometricum, da ordem das razões ou do conhecimento pelas causas típicos dos
modernos. Nem escolástico, nem geômetra, na soleira da modernidade, Maquiavel busca no
conselheiro humanista, na retórica e seu gênero deliberativo, o personagem com o qual desvendar a
política. Devemos levar isso em conta para entendermos como, mais precisamente, Maquiavel utiliza
as noções de dificuldade e necessidade. Apesar da primeira impressão, a ideia de que O Príncipe se
apresenta como uma demonstração exata não se sustenta. Lefort adverte que, sem dúvidas, os onze primeiros capítulos contêm a discussão de hipóteses particulares cujos termos tinham sido colocados no começo. Mas, visível de longe, o fio que deve, acreditamos,
236 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.329 237 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.328 238 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 329 239 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, pp. 330-331 240 Cf. LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, pp. 330-340
81 os religar se distende, logo que se o quer depreender e seguir, ele se turva ou se rompe. Entretanto, aparecem novos temas, novos exemplos, novas referências, e a relação entre o discurso de fato e o plano manifesto se revela sempre mais frouxo, ao ponto de se estar no direito de se perguntar se este é destinado a nos assegurar do caminho ou a nos enganar, e, antes mesmo, se há um caminho ou se a varietà da matéria não submerge aquele que a pretendia organizar.241
Observamos que Lefort estende o suposto plano traçado no primeiro capítulo até o décimo
primeiro. Isto porque aos meios de conquista por virtù e por fortuna já expostos no primeiro capítulo,
Maquiavel adiciona ainda mais dois, que ele afirma não se ajustarem a estes casos242. No capítulo
VIII, examina-se como são mantidos principados adquiridos por atos criminosos. No capítulo IX,
aqueles adquiridos pelo favor e acordo da comunidade civil. Estes são casos em que, segundo
Maquiavel, não se pode dizer que a conquista se deu por virtù ou fortuna; de qualquer forma, são
apresentados em referência a elas. A estes dois modos de se chegar ao principado “não se pode atribuir
totalmente à fortuna nem à virtù”243; por isto devem ser considerados à parte delas , isto é, a referência
ao primeiro capítulo permanece e uma extensão de seu conteúdo está sendo feita. E a referência ao
primeiro capítulo se repete no décimo, pois, considerar “se um príncipe dispõe de estado suficiente
para poder governar-se por si mesmo ou se tem sempre necessidade de ser defendido por outros”244,
ecoa e desenvolve a distinção apresentada no primeiro capítulo entre conquistar por armas próprias
ou por armas de outrem. Por fim, o capítulo XI, investigando o caso dos principados eclesiásticos,
afirma que estes “são obtidos por virtù ou por fortuna e são mantidos sem uma nem a outra”245. O
que permite incluir estes capítulos no “plano” do primeiro não é uma sequência exata de contextos
previamente tipificados, mas o procedimento de se considerar as circunstâncias de aquisição a fim de
responder aos meios de manutenção do principado246.
Vemos a consideração destas circunstâncias estender, extrapolar e modificar a enxuta
categorização do primeiro capítulo em toda a sequência de II a XI. Nela há a adição de novas
considerações, novos tipos de principados, novos aspectos das divisões propostas no primeiro
capítulo. Deste modo, adverte Lefort, “deve-se renunciar à ideia de que o capítulo de introdução
contém um plano, admitir antes que fornece dele um substituto, preparar-se [...] para buscar o sentido
[...] na linha do que está indicado e para além dela, na região ainda indeterminada que ela somente
delineia”247 . O que Maquiavel delineia é um procedimento, uma atitude investigativa, a de se
241 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, pp. 333-4 242 "[...] ainda existem dois outros modos de passar de homem privado a príncipe, que não se podem atribuir totalmente à fortuna nem à virtù [...]. Estes dois modos são: ascender ao principado por via criminosa e nefanda ou [...] com o favor de seus concidadãos" [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VIII, p. 39]. 243 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p. 39 244 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo X, p. 51 245MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XI, p. 55 246 “[…] a introdução não fornece propriamente um plano, […] é preciso antes procurar nela uma indicação de método” [LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 249] 247 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.340
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perguntar como o principado deve ser mantido de acordo com as circunstâncias particulares do
príncipe. Não se pode falar em um método em sentido forte, científico, como uma demonstração
exata; mas antes em um procedimento, uma maneira de encarar as circunstâncias e orientar a ação o
mais efetivamente possível. Assim, as distinções apresentadas no primeiro capítulo não são nenhum
tipo de axiomas primeiros, suposições iniciais, e a elas podem ser livremente adicionadas novas
distinções e asserções sobre as coisas do stato quando for necessário.
É distante de qualquer rigorismo que devemos entender o sentido dado às dificuldades
reiteradamente colocadas por Maquiavel ao longo do livro. Isto porque muitas das dificuldades
apresentadas pelo autor não se submetem com facilidade a métodos que as tornam mais concebíveis
à precaução e à ação calculada. Muitas vezes Maquiavel parece não ter uma resposta pronta, um
método claro, para a superação da dificuldade ou para determinar o que é necessário fazer; e o que
ele pretende fazer certas vezes é, antes, explicitar e alertar para os infinitos obstáculos e fazer com
que o príncipe esteja consciente e preparado para eles. Muitas vezes, o que Maquiavel vem
recomendar em face das dificuldades não é nenhuma máxima exata de como se deve agir, mas antes
um estado de ânimo: força, coragem, ímpeto. Além disso, como nos mostra Lefort,
os conceitos em função dos quais se articula o argumento evidenciam-se eles mesmos como ambíguos: “principado novo” se opõe a “principado hereditário”, mas se cinde em seguida para designar Estado novo e propriedade de um príncipe novo. “Povo livre” se opõe primeiro a “povo acostumado a viver sob um príncipe”, depois conota ao mesmo tempo “povo ligado às suas leis”, - o qual pode estar submetido a um príncipe -, e “república”; “virtù”, sobretudo, se projeta em múltiplas direções, formando com “Fortuna” um par discriminador que tem mais de um sentido.248
Desta forma, Lefort entende que “quando nos aproximamos da obra, a paisagem muda, as
fronteiras, inicialmente tão claras, que circunscreviam os fragmentos do discurso, se esfumam”249; “o
terreno sólido sobre o qual nos imaginamos estabelecidos é tornado movediço”250; e o “leitor perde o
sentimento de ser levado pela necessidade de um raciocínio que, como aquele do geômetra, vai
diretamente da hipótese às consequências” 251 . Verifica-se que “os primeiros conceitos
maquiavelianos não asseguram à obra sua coerência”. No lugar daquela primeira impressão de uma
demonstração científica e rigorosa, encontramo-nos diante da “digressão, [d]a insinuação, [d]a elisão,
[d]o jogo da dupla verdade”, que “confundem o argumento e sugerem que uma palavra mais profunda
o dobra”252; e se mostra “preciso considerar diversos pensamentos ao mesmo tempo, [...], se interrogar
constantemente sobre o sentido do itinerário, acolher pouco a pouco a complicação de uma
248 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.340 249 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.340 250 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.338 251 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.344 252 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.338
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matéria”253 . Maquiavel examina e identifica as dificuldades impostas aos príncipes buscando a
excelência do conselheiro, não a precisão do cientista ou do filósofo. Sendo seu objetivo que os
príncipes que o leem possam agir, e seu discurso voltado à ação política, ele não deve se limitar a
asserções exatas e distintas, ou a soluções racionais, mas deve ser capaz de identificar onde as
dificuldades e problemas se apresentam em sentido mais prático de obstáculos à ação do homem, que
exigem não somente uma conduta calculada e prescrita, mas disposições ânimo, capacidades,
habilidades, criatividade (e, muitas vezes, pura sorte).
Quanto às necessidades explicitadas pelo autor ao longo do livro, também não podemos ver
nelas o sentido de necessidade lógica, científica ou filosófica. As necessidades apresentadas por
Maquiavel não são verdades universais e afirmações substanciais sobre o mundo. Trata-se de um
sentido político de necessidade, não científico. A necessidade impõe-se sobre a ação diante de seu
contexto singular; é uma necessidade para este ou aquele agente, nesta ou naquela circunstância.
Explicitando o sentido que necessità assume em Maquiavel, Adams exemplifica: “Para governar a
Romagna, tem-se de lidar astuta e impressionantemente com Vitelozzo, Oliverotto e Remirro de
Orco”. A conduta astuta e impressionante diante de obstáculos é o que se ressalta, não a exatidão e
universalidade das condições de possibilidade para a conquista da Romagna. Evidentemente, ser
astuto envolve assertividade e raciocínio; mas estes se dissolvem dentre tantas “simbólicas ou (poder-
se-ia dizer) pedagógicas” maneiras “pelas quais a virtù lidava com a aparente necessità” 254. Adams
escreve:
necessidades de diferentes tipos são como que as coisas difíceis [tough stuff] nas quais os políticos esculpem suas reputações. Para julgar suas conquistas, temos que saber de onde elas vêm, com o que começam, onde chegam, para onde estão indo, com o que têm de trabalhar, contra o que têm de trabalhar – em resumo, todas as circunstâncias que podem ajudá-los ou impedi-los. Ameaças e inibições, superstições e mitologias podem ser não menos significantes neste cálculo do que contas em bancos e artilharia. Não há, consequentemente, uma doutrina maquiaveliana, somente uma certa clareza mental preliminar que poderia ajudar a calcular as forças reais em jogo em uma situação de fato. 255
As necessidades são o que nos permitem julgar e aconselhar a ação em sua singularidade e
contexto. Não se trata das necessidades da ação no sentido das ocorrências universais que acometem
todo e qualquer agir político; mas justamente a explicitação das condições específicas que nos
permitem discorrer sobre esta ou aquela ação política. Neste sentido, a explicitação das necessidades
visa o aconselhamento e a exemplaridade. Por ela, determinamos os exemplos apropriados, e
descriminamos condutas adequadas e habilidades exigidas. E, assim, podemos ver a arte retórica
como a mais apropriada para os fins propostos por Maquiavel. A liberdade de exposição não
253 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972 p.344 254 ADAMS, Robert M. “Necessità/Fortuna”. In: MACHIAVELLI, N. The Prince. Norton Critical Edition, Nova York, 1992, p.270 255 ADAMS, Robert M. “Necessità/Fortuna”. In: MACHIAVELLI, N. The Prince. Norton Critical Edition, Nova York, 1992, p.270
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demonstrativa do conselheiro pode ser identificada com a capacidade do orador do gênero
deliberativo de retórica de flexibilizar os preceitos estabelecidos fazendo-os efetivos diante da
contingência singular dos agentes na realidade mutável. Pela ponderação, pela consideração do
argumento de diversos ângulos, pela ênfase na verdade efetiva, Maquiavel mobiliza as dificuldades e
necessidades com as quais lê a realidade em função do aconselhamento útil.
Eugene Garver explica que Maquiavel “faz uso da retórica para gerar e controlar
ambiguidade”256. Como veremos no próximo capítulo, Maquiavel coloca o problema da inovação
política – a conquista e fundação dos principados – como central em O Príncipe. O que nos interessa
ressaltar agora é que a centralidade dada a esta questão não parte de uma refundação da doutrina
política clássica e humanista como um todo, de uma nova linguagem, mas da mobilização retórica
desta a fim de se comportar e abordar apropriadamente um novo problema. Garver explica que “o
assunto de O Príncipe é “como preservar (governare e mantenere) principados (capítulo 2), e a
relação entre aquisição e preservação [...] é o tópico central do qual Maquiavel deriva sua solução
para o problema geral da estabilidade em um mundo de particulares”257. Ao adentrar este mundo de
particulares, investigando suas dificuldades e necessidades específicas, o argumento de Maquiavel
avança ao ponto “de dissolver a relação estrita entre facilidade e dificuldade de adquirir e manter”,
ao ponto onde “adquirir e manter parecem ser duas ações distintas, totalmente independentes uma da
outra”. Essa dissolução do problema em seus particulares e suas ambiguidades, a capacidade de
flexibilização retórica de Maquiavel é o que abre espaço para que o autor introduza uma questão
nova: classificar estados e exibir exemplos de sucesso e falha afrouxaram a conexão entre aquisição e manutenção do estado, de forma que um príncipe que é novo e seguro é, ao menos, uma possibilidade formal [...] permanecerá uma mera possibilidade a não ser que Maquiavel possa encontrar uma conexão prática entre aquisição e preservação.258
A conexão prática entre aquisição e preservação se dá pelo aconselhamento, pela delimitação de
dificuldades e necessidades particulares envolvidas na ação inovadora. Se O Príncipe coloca a
inovação política como problema central a ser abordado, como explicitaremos abaixo, ele o faz,
primeiramente, da perspectiva do conselheiro: em que medida pode o príncipe inovar? Em que
medida a inovação se apresenta ou não como uma dificuldade ou uma necessidade para ele?
256 GARVER, Eugene. Machiavelli and the History of Prudence. Madison: The Universisty of Wisconsin Press, 1987. p.23 257 GARVER, Eugene. Machiavelli and the History of Prudence. Madison: The Universisty of Wisconsin Press, 1987. p.29 258 GARVER, Eugene. Machiavelli and the History of Prudence. Madison: The Universisty of Wisconsin Press, 1987. p.30
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Capítulo 2: Inovação política enquanto dificuldade e necessidade
Se é pelo escrutínio cuidadoso das dificuldades e pela delimitação das necessidades impostas
aos príncipes que se realiza o aconselhamento útil de Maquiavel, perguntar-se pelos fatores dos quais
dependem a variação destas dificuldades e necessidades nos revelaria as temáticas de maior
contundência para o autor. É neste ponto que entramos em nosso segundo capítulo: buscamos
reconstituir o desenvolvimento do texto de O Príncipe, rastreando o que nos parece ser a dificuldade
e a constrição central a ser ponderada pelo conselheiro político: a inovação. Inovação é certamente
uma noção ampla e, para além de se mostrar que ela se apresenta como dificuldade e necessidade em
O Príncipe, seu sentido deve ser esclarecido. Tratando-se do governo dos principados, inovar tem
sentido político, significa destituir antigos modos e ordenações de governo e introduzir novos. No
capítulo VI de O Príncipe, Maquiavel escreve:
as dificuldades que [os príncipes] têm [...] nascem [...] das novas ordenações e dos novos modos que são forçados a introduzir para fundar seu stato e sua segurança. Deve-se considerar que não há coisa mais difícil de fazer, mais duvidosa de conseguir ou mais perigosa de manejar do que assumir a tarefa de introduzir novas ordenações259.
Nesta passagem, podemos encontrar os sentidos com os quais buscamos descrever a inovação em O
Príncipe. Enquanto inovação política, envolve o stato - neste caso, sua fundação - bem como a
introdução de modos e ordenações. Enquanto dificuldade, é descrita em mais de um sentido, não só
como difícil de fazer, mas também como duvidosa e perigosa. Além disso, apresenta-se como algo
que força o agente: é condição para a segurança do príncipe, é uma necessidade. Vemos, portanto,
que as noções que introduzimos no capítulo anterior, tanto o stato enquanto disposição ordenada e
efetiva do exercício político, quanto o aconselhamento político com ênfase na verdade efetiva, pela
explanação e exposição apropriada das necessidades e dificuldades impostas à ação, encontram-se
aqui mobilizadas para abordar o tema da inovação política.
Esta inovação é descrita nos termos e ambiguidades próprios do stato. Funda-se o stato do
príncipe e, junto dele, sua segurança. De forma que não é qualquer stato – qualquer império sobre
homens – que está em questão, mas o stato que mantém a segurança, a posição de comando, do
príncipe a quem se direciona o conselho. Portanto, aqui nota-se a indissociabilidade frequente em O
Príncipe entre stato e agente político. Neste sentido, vemos também a introdução de novas ordenações
ser apresentada em conjunto à introdução de novos modos. Os modos, em O Príncipe, com exceção
dos momentos em que compõem a locução conjuntiva in modo che exaustivamente usada pelo autor,
referem-se às ações políticas. Maquiavel oferece a Lourenço, com seu tratado sobre os principados,
259 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p.27. Nossos itálicos
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uma “cognizione delle azioni delli uomini”260. Para ponderar sobre as ordini de Moisés e Ciro, no
sexto capítulo261, ou sobre as de César Borgia, no sétimo262, o pensador florentino as apresenta em
conjunto das ações destes homens. Os modos, por sua vez, referem-se à especificidade da ação, suas
possibilidades e seus limites próprios. É como se transcorre a ação em sua particularidade. O autor
investiga por que modos os príncipes adquirem, governam, possuem e mantêm seus principados; mas
também pelos quais satisfazem ou ofendem outros homens, e pelos quais estão ordenados e armados;
examina também em que medida podem ou não fazer as coisas a seu modo. Portanto, o problema da
fundação do stato e da introdução de novas ordenações está acompanhado do problema da segurança
e dos procedimentos do agente político, de seus modos. Com isso, podemos ver que a questão da
inovação política diz respeito a algo mais que a transição de uma forma de governo ou regimento a
outra, ou de uma constituição política a outra. Estas questões estão englobadas em um problema mais
amplo, que envolve também o exercício político, os modos do exercício do poder. Neste sentido, a
inovação pode ser examinada nos termos próprios do conselheiro político, pois é pela ponderação dos
modos, que podem ser aconselhados, que se apreende as ordenações, o espaço ou estrutura políticos.
E do ponto de vista do conselheiro, considerando sempre a efetividade restrita à perspectiva
do aconselhado, a inovação é uma dificuldade. Maquiavel continua: o introdutor tem por inimigos todos aqueles que se beneficiavam das antigas ordenações e por tíbios defensores todos aqueles a quem as novas ordenações beneficiariam. Essa tibieza nasce em parte do medo aos adversários, que têm as leis a seu lado, em parte da incredulidade dos homens, que não creem verdadeiramente nas coisas novas senão depois de comprovadas por firme experiência.263
Como escreve Pocock, “ele realizou uma inovação, derrubando ou substituindo alguma forma de
governo que o precedia. Ao fazê-lo, ele deve ter ofendido muitos, que não estão reconciliados com
seu governo, enquanto aqueles que bem recebem sua chegada agora esperam mais do que ele pode
prover”264. Esperam mais do que podem receber e “mais tarde percebem o engano pela própria
experiência”265; ou defendem tibiamente o novo príncipe e não creem verdadeiramente nele pela falta
de firme experiência. Seja como for, a inovação é uma dificuldade na medida em que está em conflito
com a experiência. Como coloca Pocock, “a insegurança da inovação política [...] nasce do fato de
que ofende alguns e incomoda todos, criando uma situação à qual não tiveram tempo de
acostumarem-se"266. A firmeza da experiência, o que ela pode afirmar como certo, é o costume, o
260 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Tradução de Diogo Pires Aurélio, 2008, 2017, Dedicatória, p. 84 261 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 26 262 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p. 30 263 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 27 264 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.160 265 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 9 266 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p. 163
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habitual. Entender o problema colocado por Maquiavel, portanto, implica entender a relevância da
experiência em seu contexto cultural, a saber, como um dos principais “meios pelos quais o indivíduo
limitado no tempo poderia entender e controlar o fenômeno limitado no tempo e sua relação com
outros fenômenos limitados no tempo”, como expressa de Pocock. Segundo o historiador das ideias,
“pela reiterada experiência de fenômenos recorrentes ou consequentes, era possível construir padrões
de comportamento repetidos e rememorados, estendendo-se no tempo para formar tradições de
costumes, algumas vezes institucionalizadas como corpos de leis consuetudinárias”. Recebendo
“suporte epistemológico da observação de Aristóteles de que a experiência acumulada de muitos era
algumas vezes mais confiável do que a sabedoria do filósofo” 267, o costume - a experiência firme ou
acumulada – era a via confiável para o estabelecimento de normas sociais à legitimidade de
instituições e leis.
Não só fontes epistemológicas de justificação, costume e experiência eram concepções
relevantes no efetivo modo de vida das pessoas: “o homem social podia adquirir uma segunda
natureza pelos costume, tradição e herança, o resultado da assimilação [...] do que ele e seus
antecessores experienciaram, aprenderam e tornaram-se pela experiência”268, de tal modo que “se
você priva as pessoas do que elas estão acostumadas, todos seus hábitos mentais operam contra você”.
A inovação é pré-condicionada a ser recebida como ofensa, pois “é sempre contra uso e costume,
contra segunda natureza adquirida” e, na medida em que, no contexto do século XV, “a única forma
relevante de conhecimento é experiência baseada em memória”, “as pessoas são mais conscientes
sobre o que perderam do que sobre o que podem ter ganhado” com a inovação269. Pocock explicita a
resistência do costume estabelecido diante da inovação apontada por Maquiavel nos termos da
legitimidade tradicional: “estamos ainda no mundo conceitual da política medieval, na medida em
que é ainda impossível conceber legitimidade sem tradição e antigo uso, mas nos movendo rápido
para fora dela, na medida em que Maquiavel está preparado para examinar a natureza do poder onde
falta legitimidade”270. A dificuldade consiste exatamente em examinar as possibilidades da ação
política onde falta legitimidade tradicional. A verdade efetiva é que a estrutura da experiência social
não comportava a inovação, não a legitimava; portanto, a inovação era uma dificuldade e as leis e a
razoabilidade estavam contra o inovador. De todo modo, a inovação não deixava de aparecer em
muitos casos como uma necessidade, como a condição imposta ao príncipe. Portanto, se do ponto de
267 POCOCK, J.G.A. "Custom and Grace, Form and Matter: An Approach to Machiavelli's Concept of Innovation," in Martin Fleisher (ed.), Machiavelli and the Nature of Political Thought, New Fork: Atheneum, 1972, p.157. Minha tradução para todas as citações deste texto. 268 POCOCK, J.G.A. "Custom and Grace, Form and Matter: An Approach to Machiavelli's Concept of Innovation," in Martin Fleisher (ed.), Machiavelli and the Nature of Political Thought, New Fork: Atheneum, 1972, p. 157 269 POCOCK, J.G.A. "Custom and Grace, Form and Matter: An Approach to Machiavelli's Concept of Innovation," in Martin Fleisher (ed.), Machiavelli and the Nature of Political Thought, New Fork: Atheneum, 1972, p. 167 270 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p. 159
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vista universal da legitimidade tradicional a inovação é irrazoável; do ponto de vista particular do
inovador, ela é uma necessidade e a tradição é parte do obstáculo imposto.
As asserções que expomos do capítulo VI referem-se ao caso do principado inteiramente
novo, da fundação do stato. De todo modo, o que queremos mostrar é que elas têm um caráter
abrangente e estruturante em O Príncipe - inovar é sempre uma dificuldade e, em alguma medida,
uma necessidade. A constatação da inovação e suas consequências como dificuldades e necessidades
alimenta todo o decorrer do livro, sendo apresentada em quase todos seus capítulos de diferentes
formas, ângulos e medidas. Que a inovação se apresenta como dificuldade e que saber agir diante
dela é uma habilidade necessária a ser ensinada aos príncipes são noções fundamentais e constantes
em O Príncipe. Em sua carta a Vettori de 10 de dezembro de 1513, Maquiavel escreve a seu amigo
sobre O Príncipe, que “sobretudo um príncipe novo”271 deve apreciar suas reflexões. Assim, Pocock
afirma ser o livro de 1513 um “estudo sobre o ‘novo príncipe’ [...] ou sobre a classe de inovadores
políticos a que ele pertence”272. O Príncipe é uma obra, “uma vez que [...] dedicada ao tema dos
novos príncipes, de innovatorius: uma tipologia de inovadores políticos, empregando as categorias
disponíveis e apropriadas para este estudo”273 e, neste sentido, que aborda a “inovação como um
princípio abstrato”274.
Devemos, entretanto, ser cuidadosos quanto ao sentido do “maior nível de abstração”
atribuído a Maquiavel por Pocock. O historiador o faz comparando O Príncipe a outros “tratados
menores [...] especificamente endereçados à questão concreta do que estava e estivera acontecendo
na política florentina”275. “Maquiavel”, ele nos diz, “não conduz sua análise no contexto específico
de Florença, nem em vista do problema específico da cidadania; sua preocupação é somente com [...]
o inovador”. Enquanto “Guicciardini, Vettori e Alamanni atribuíam aos Medici restaurados algumas
das características do principe nuovo”, especificando, “em variados graus de detalhe, as mudanças
históricas exatas que constituíram esta inovação”, “não é nunca possível dizer exatamente o quanto
O Príncipe intendia iluminar os problemas enfrentados pelos Médici restaurados em seu governo de
Florença”276 . É neste sentido que se entende uma abordagem abstrata da inovação política em
Maquiavel, não no sentido de uma busca por verdades universais e atributos abstratos da inovação
271 MACHIAVELLI, Niccolo. De principatibus = Le prince. Coautoria de Jean-Louis Fournel, Jean-Claude Zancarini. Paris: Presses Universitaires de France, 2000, p.530 272 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.160 273 POCOCK, J.G.A. "Custom and Grace, Form and Matter: An Approach to Machiavelli's Concept of Innovation," in Martin Fleisher (ed.), Machiavelli and the Nature of Political Thought, New Fork: Atheneum, 1972, p.167 274 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.160 275 POCOCK, J.G.A. "Custom and Grace, Form and Matter: An Approach to Machiavelli's Concept of Innovation," in Martin Fleisher (ed.), Machiavelli and the Nature of Political Thought, New Fork: Atheneum, 1972, p.167 276 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.160
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política. Se Pocock atribui a Maquiavel uma intenção de abordagem abstrata, ela tem o sentido de
uma abstração conquistada e não imposta, de uma generalidade ampla e não universal. Pocock vê no
livro de Maquiavel o exame de “uma variedade de situações”277 particulares, não uma subsunção a
princípios universais. Introduzir novas ordenações não é algo dificultoso e que se impõe como
necessidade em um único sentido, por uma única razão, sempre da mesma forma e na mesma
intensidade. A dificuldade da inovação é meticulosamente tecida ao longo de O Príncipe em uma
extensa urdidura, organizando muitas cores e formas, no desenho vívido e turbulento que lhe é
próprio.
É este desenho da tecedura que devemos reconstituir se queremos apreender a amplitude do
livro de Maquiavel. Pocock entende o livro enquanto “um estudo analítico da inovação e suas
consequências” 278 . Há uma preocupação em ampliar o exame da questão em suas várias
particularidades. Neste sentido, “O Príncipe torna-se tipologia de inovadores”, adotando “uma
abordagem classificatória [...] no início” que “percorre os capítulos chave do livro”279. Como já
vimos, o primeiro capítulo de oferece a urdidura da obra, urdidura sobre a qual se pretende tecer como
se governam e mantêm os principados. Havíamos notado, entretanto, a concisão deste primeiro
capítulo, que circunscrevia sua classificação aos modos de aquisição do principado. Agora podemos
ver que esta concisão se dá pela delimitação de um problema, de uma dificuldade específica: a
dificuldade da inovação. Maquiavel diz a Vettori na carta de 10 de dezembro de 1513 que seu livro
deve interessar a um príncipe, sobretudo um príncipe novo. Assim, parece plausível entender que O
Príncipe se direciona a entender como se governam e mantêm os principados e, em especial, em que
medida a dificuldade da inovação e a necessidade de inovar se impõem para tanto.
A inovação é abordada nos termos de dificuldades e necessidades já na passagem do capítulo
II ao III. Nestes capítulos, Maquiavel afirma e busca justificar a seguinte asserção: que há maiores
dificuldades em se preservar um principado novo do que em se preservar um principado
hereditário.280 A manutenção do principado é mais difícil na medida em que é novo. Esta constatação
é gradualmente feita, ao se seguir passo a passo os contextos particulares possíveis e as dificuldades
específicas dos governantes e seus principados. No primeiro capítulo Maquiavel havia distinguido os
277 POCOCK, J.G.A. "Custom and Grace, Form and Matter: An Approach to Machiavelli's Concept of Innovation," in Martin Fleisher (ed.), Machiavelli and the Nature of Political Thought, New Fork: Atheneum, 1972, p.167 278 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.156 279 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.158 280 No segundo capítulo, o autor afirma: “nos estados [stati] hereditários e acostumados à linhagem de seus príncipes, há bem menos dificuldades para mantê-los do que nos novos” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo II, p.7]; e o capítulo subsequente é iniciado por uma afirmação equivalente: “mas é no principado novo que aparecem as dificuldades” [MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 9]
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principados novos em inteiramente novos ou em membros anexados, e no terceiro capítulo
aprendemos que o autor, em um primeiro momento, opõe o principado hereditário àquele que “não é
totalmente novo, mas é anexado como membro”281. Isto é, os principados são ditos novos na medida
em que são membros anexados, conquistados; e, portanto, a inovação é entendida nos termos da
conquista, da expansão.
Primeiramente, duas perspectivas de agência política estão sendo consideradas e contrastadas:
a do príncipe hereditário ou natural e a do príncipe conquistador, que expande seu principado. Estes
personagens não são substancialmente distintos, mas se diferenciam pela ação que exercem para a
aquisição de seu poder. Príncipe hereditário é aquele que é príncipe por ter recebido hereditariamente
sua posição; o príncipe conquistador, por sua vez, é novo e realizou uma inovação ao anexar novos
membros ao seu domínio, introduzindo neles suas ordenações. De qualquer forma, um príncipe
hereditário pode perfeitamente ser um conquistador, na medida em que expande seu território pela
conquista e anexação de novos membros.
Quando passamos ao capítulo VI, verificamos que Maquiavel conta com uma nova
modalidade de inovação. Ele nos diz estar agora a “falar dos principados inteiramente novos, de
príncipes e de stati”282. Com isso, o autor recupera uma distinção apresentada no primeiro capítulo,
entre principados novos enquanto membros anexados e principados inteiramente novos. No primeiro
capítulo, o exemplo é o de Francesco Sforza, que fundou sua linhagem com a ascensão ao principado
de Milão. O que há de distintivo nos principados inteiramente novos é que o príncipe realiza neles “a
passagem de homem privado a príncipe” 283 . A conquista, a expansão do stato, não envolve
necessariamente esta passagem. Estamos passando da conquista a um procedimento mais completo
de inovação: a fundação. Os fundadores têm uma necessidade ainda maior de inovar, pois precisam
não só transferir suas ordenações a novos súditos, mas também criar tais ordenações e estabelecer-se
como príncipe. Esta nova perspectiva da inovação acarreta consequências importantes – a dificuldade
da inovação nestes casos exige capacidades distintas e mais complexas. Podemos afirmar ao menos,
de partida, que as dificuldades enfrentadas pelos príncipes inteiramente novos são mais perigosas,
pois perder seu domínio significa mais que não conseguir expandir seu stato, significa perdê-lo
completamente. Assim, o que podemos ver é que a inovação é o problema estruturante de O Príncipe.
Podemos identificar, portanto, condições, contextos específicos, nos quais a inovação
apresenta-se como necessidade e dificuldade. O primeiro capítulo nos apresenta uma série de
distinções. Estas distinções organizam-se em uma progressão. Começamos com o principado
hereditário e o príncipe natural. Dele, vamos ao principado que não é completamente novo, que é um
281 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 9 282 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 25 283 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, pp. 25-26
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misto entre hereditariedade e novidade – a anexação de novos membros ao antigo stato. Finalmente,
chegamos ao principado inteiramente novo, no qual é novo seu príncipe e seu stato. No entanto, como
pode “progredir” a inovação? Em que sentido “cresce” a inovação em O Príncipe? À primeira vista,
parece vago em que medida há mais ou menos, maior ou menor, inovação em diferentes casos. O
esclarecimento quanto a isso está no exame da inovação enquanto necessidade e dificuldade. O que
cresce e progride ao longo as páginas do livro é a necessidade de inovar e a dificuldade de fazê-lo.
Maquiavel apresenta duas constatações antagônicas da vida política e busca extrair seu
aconselhamento da ponderação entre elas. Por um lado, mostra, em consonância com a tradição,
quanto é dificultoso e perigoso inovar, na medida em que se o faz contra o costume e a experiência.
Por outro, busca mostrar como inovar é inegavelmente essencial para a prática política, uma
necessidade da arte do stato. As atividades ou ações inovadoras, que envolvem a deposição e
introdução de novos modos e novas ordens, são realidades políticas que não podem ser negadas, mas
devem, ainda assim, ser abordadas com toda cautela.
Para aconselhar sobre a inovação política, Maquiavel pondera em que medida cada uma destas
duas afirmações se apresenta como mais pungente: quando é mais difícil inovar do que é realmente
necessário, ou quando há necessidade da inovação, apesar de sua extrema dificuldade. É este o
questionamento que perpassa os diferentes contextos distinguidos por Maquiavel no primeiro
capítulo. No principado hereditário, são menores as dificuldades por ser menor a necessidade de
inovar. Entretanto, quando há a conquista de um novo stato, sua manutenção é difícil, pois a inovação
se apresenta como uma necessidade para além de uma dificuldade, uma dificuldade necessária. De
qualquer modo, o príncipe hereditário que conquista um novo stato ainda pode encontrar meios para
que a dificuldade da inovação seja contornada e evitada em certos pontos, avaliando em que medida
e como a inovação deve ser realizada em menor conflito possível com o costume estabelecido, quando
é realmente necessária. Além disso, a posição do príncipe enquanto governante é relativamente segura
em relação à manutenção de sua conquista, pois se a perde, não perde também seu stato hereditário.
Na fundação, na passagem de homem privado a príncipe, por sua vez, inovar é condição necessária
do príncipe e ele só pode encontrar a segurança de sua posição mantendo seu stato fundado. Aqui,
não há apoio algum que se possa ter nas condições e costumes estabelecidos, não se pode contornar
a inovação e suas dificuldades devem ser enfrentadas imediatamente.
Na medida em que se pretende um conselheiro dos príncipes, especialista na arte do gênero
deliberativo, as observações de Maquiavel, suas ponderações quanto às dificuldades e necessidades
de inovar, devem resultar em reflexões quanto à conduta política dos príncipes. Não somente se e em
que medida a inovação é necessária e difícil, mas como agir diante da inovação dificultosa e
necessária é mais propriamente a questão de Maquiavel. Buscando a verdade efetiva sobre a inovação,
Maquiavel poderá introduzir o que há de propriamente original em seu pensamento, que, segundo
92
Gilbert, “não consiste – ou não consiste primariamente – nas ideias que proferiu; sua contribuição foi
a de costurá-las de modo que uma nova visão da política emergisse”284. Esta costura de concepções
tradicionais em uma nova visão da política é precisamente o procedimento retórico de Maquiavel,
que, pela consideração das especificidades das circunstâncias e dos agentes políticos, flexibiliza e
modifica concepções tradicionais da agência política. Neste sentido, buscaremos mostrar nas
próximas seções não somente a ponderação sobre certas circunstâncias políticas e em que medida a
dificuldade e necessidade da inovação nelas se impõem, mas também que, por esta ponderação,
Maquiavel entra em embate com concepções tradicionais sobre os procedimentos de governo
efetivos, mostrando que em certas circunstâncias é preciso reavalia-los e flexibiliza-los, bem como,
em outras, é preciso alertar sobre suas profundas limitações.
Nossa análise começa (2.1) pelo exame que Maquiavel realiza dos principados hereditários,
explicitamente no segundo capítulo e, implicitamente, nas primeiras páginas do terceiro capítulo de
O Príncipe. Buscaremos mostrar que Maquiavel parte de um ponto de vista tradicional ao aceitar a
asserção segundo a qual os principados hereditários são mais estáveis e menos difíceis de serem
mantidos. Com isso, o autor nos apresenta um primeiro caso da ponderação quanto às dificuldades e
necessidades da inovação. Nos principados hereditários, a inovação é, à primeira vista, não necessária
e nem dificultosa. No entanto, a maneira como Maquiavel expõe o caso dos principados hereditários
é justificada por uma perspectiva diferente da tradicional. Enquanto tradicionalmente o costume era
uma justificativa para a legitimidade do príncipe hereditário, o que explicaria sua estabilidade,
Maquiavel propõe um caminho diferente. Para o autor, como veremos, a questão não é justificar a
legitimidade do príncipe partindo do costume, mas expor que efetivamente o costume faz com que o
príncipe seja reconhecido como legítimo por seus súditos, o que reduz consideravelmente a
resistência contra ele. No entanto, isso não quer dizer que o príncipe esteja autorizado, por sua
legitimidade tradicional, a agir como quiser. Ele está atado à reprodução dos modos e ordenações
ancestrais que recebera, o que, certamente, não exige uma capacidade extraordinária do príncipe, na
medida em que naturalmente – no sentido de que faz parte de sua segunda natureza – pode fazê-lo.
De todo modo, Maquiavel salienta os perigos em se desviar deste comportamento natural, o que
acarreta o ódio e seria recebido como ofensas por seus súditos. Portanto, a inovação nestes
principados é mais que não necessária, ela é atada pelo preceito da necessidade de não inovar, de
forma que a abertura para a inovação nestes principados se limita ao saber contemporizar segundo os
acontecimentos. Além disso, quando partimos para o terceiro capítulo do livro, vemos um alerta
importante implicitamente direcionado aos príncipes hereditários quanto às limitações de seu poder.
284 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence. Princeton University Press, 1965, pp. 159
93
Se estão assegurados pela ação ordinária no que diz respeito ao apoio de seus súditos, o que garantiria
inclusive um retorno facilitado ao posto de governante no caso de sua deposição, isso não significa
que estejam assegurados contra qualquer iniciativa interna de conspiração, nem, especialmente,
contra iniciativas estrangeiras de invasão. Desta forma, podemos ver que, para Maquiavel, as
dificuldades e necessidades relativas à inovação já se apresentam nos principados hereditários, uma
vez que as dificuldades em inovar são reconhecidas, apesar de poderem ser em grande medida
evitadas, e a necessidade se apresenta, no caso, a necessidade de não inovar. Maquiavel nos prepara,
partindo de uma ponderação flexibilizada da segurança e estabilidade do príncipe hereditário, para
uma nova perspectiva, a do príncipe novo. A instabilidade e falta de segurança deste não significam
mais a impossibilidade de pensar o seu governo, antes, significam que sua segurança e estabilidade
são mais difíceis de serem alcançadas, uma vez que introduz a necessidade da inovação no lugar da
natural reprodução de antigos modos e ordenações. Se, nos principados hereditários, a menor dificuldade em manter o principado está associada
à menor necessidade da inovação (ou, mais precisamente, à necessidade de não inovar), nos
principados novos esta necessidade é o que torna a manutenção difícil para os príncipes. Como nos
indica o termo, o príncipe é novo, realizou uma inovação, ela é necessária propriamente para seu
estabelecimento na posição de governo. A introdução desta nova perspectiva precisa lidar com dois
preceitos antagônicos. Enquanto para o príncipe hereditário, em geral, harmonizava-se a dificuldade
em inovar com a necessidade de não inovar, o que lhe exigia uma capacidade ordinária; para o
príncipe novo, continua válida a dificuldade da inovação, mas esta entra em conflito com a
necessidade fundamental de inovar. Neste sentido, a habilidade exigida do príncipe novo é muito
mais complexa e nada ordinária. Ele precisa inovar na medida do necessário para se estabelecer, mas
considerar em que medida essa inovação pode se tornar dificultosa e perigosa ao ponto de o fazer
perder a posição estabelecida. O príncipe novo, entretanto, permanece por poucas linhas como uma
noção abstrata, enquanto oposto ao príncipe hereditário por necessitar inovar. Maquiavel o examina
considerando duas condições distintas de inovação, dois diferentes príncipes novos. Primeiramente
examina a conquista e o conquistador, quando a inovação se dá pela anexação de novos stati por um
príncipe hereditário (chamado novo na medida em que conquista novos stati). Depois, passa a
examinar o principado inteiramente novo e sua fundação, quando a inovação se dá pela passagem de
homem privado a príncipe na aquisição do principado.
Com isso, nossa análise parte, em um segundo momento (2.2), para o exame da conquista em
O Príncipe. Neste caso, aparecem as dificuldades, mas o principado não é inteiramente novo. O
príncipe realizou uma inovação parcial na totalidade de seu stato pela conquista e expansão, mas
recebeu hereditariamente sua posição de governante. As condições da conquista são tais que a
inovação é necessária, pois não há conquista sem inovação, e dificultosa, pois o contato com novos
94
súditos e a entrada em uma nova relação de forças acarreta consigo aquelas dificuldades das quais
estaria o príncipe salvo se não estivesse em conflito com a ordem dos costumes. Assim, os dois
preceitos antagônicos em relação à inovação, os das necessidades de inovar e o de não inovar,
apresentam-se igualmente pungentes e em conflito. Por um lado, Maquiavel não abandona o primeiro
preceito, aprendido com o caso dos príncipes hereditários, segundo o qual a não inovação e a mera
contemporização segundo os acidentes se apresenta como uma via segura. Por outro, este primeiro
preceito é duramente limitado pela necessidade de inovar como condição para o posicionamento do
príncipe em novo território. As ações efetivas do príncipe conquistador, bem como os conselhos úteis
a serem dados a ele, são resultado de uma habilidade em encontrar uma via entre estes dois preceitos
conflituosos. Por isso, uma habilidade não ordinária é exigida. Esta habilidade, como buscaremos
mostrar, é a prudência. A partir do exame comparado entre as conquistas dos antigos romanos e as
conquistas de Luís XII na Itália, Maquiavel aponta que a falha deste e o sucesso daqueles se deu pela
falta ou uso da prudência, a capacidade de antever e se precaver pelo exame apurado das condições,
bem como a de agir ou não agir nos momentos apropriados. Esta habilidade permite ao príncipe
ponderar sua ação efetivamente entre dois preceitos antagônicos e decidir apropriadamente entre eles
nos momentos certos, pois a prudência permite o cálculo apropriado da deliberação política. No
entanto, como veremos, para se utilizar da noção de prudência na avaliação da conquista, para falar
da prudência do conquistador, Maquiavel precisa flexibilizá-la e adaptá-la. Isto porque a noção de
prudência era tradicionalmente pensada em harmonia com a ordem estabelecida de costume. A
prudência do conquistador precisa transpor a mera contemporização de acordo com os costumes, pois
o que ela discerne com sua ponderação das condições é que certos acidentes são irredutíveis à
resistência dos costumes e à necessidade de ofender. A prudência do conquistador consiste, por um
lado, em um cálculo em relação a como se pode aproveitar ao máximo as condições estabelecidas em
favor do príncipe e, por outro, em que medida e precisamente que momentos estas condições devem
ser combatidas. No capítulo subsequente, examinamos o caso da fundação do stato ou a passagem de
homem privado a príncipe, no qual as dificuldades e necessidades impostas pela inovação são as mais
elevadas e passam a ser abordadas por Maquiavel de forma distinta da como foi abordada nos casos
do príncipe hereditário e de sua conquista.
2.1. A inovação nos principados hereditários
Maquiavel começa sua análise considerando o contexto do principado hereditário, no qual,
à primeira vista, a inovação não seria nem uma grande dificuldade, nem uma necessidade.
Maquiavel explica no segundo capítulo de O Príncipe285 que as dificuldades para a permanência
285 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo II, pp.7-8
95
do príncipe em sua posição de governo são menores nos principados hereditários. Neles, a
continuidade de uma linhagem de governantes garante ao príncipe sua posição. Os procedimentos
seguidos pelos antepassados garantiram sua permanência em suas posições de governo, sendo eles
capazes de transferi-las hereditariamente. Na medida em que a linhagem de príncipes é antiga em
seu domínio, e seus súditos e amigos tornam-se habituados a sua linhagem, ao príncipe hereditário
cabe somente agir de acordo com os procedimentos de seus antecessores para preservar sua
posição. Esta tarefa não deve impor-lhe grandes dificuldades, na medida em que ele não precisa
desviar de um caminho com o qual já está familiarizado, aquele de seus antepassados. Assim, do
príncipe é exigida uma capacidade ordinária no sentido de uma capacidade mediana, não
excepcional.
Maquiavel considera com especial atenção a questão do hábito ou do costume dos
principados. O autor nos adverte para o fato de que os agregados de homens organizados em uma
vida em comunidade, sob uma estrutura política, compartilham um conjunto de normas e práticas,
que são tradicionalmente aceitas, repetidas e nutridas, isto é, para o fato de que as comunidades
politicamente organizadas têm seus hábitos ou costumes. Estes hábitos ou costumes são como
forças consolidadas que, ao mesmo tempo em que estabilizam o poder do príncipe natural, criam
resistências à introdução de novas ordens e à conquista estrangeira. A introdução de novas
ordenações se apresenta como dificuldade na medida em que está em conflito com estas forças
consolidadas e sofre resistência. Entretanto, a noção de ordinário não se esgota no sentido de
mediano e fácil. Ela também nos remete a uma concepção de manutenção da ordem, de agir
ordinariamente. Maquiavel sustenta que a antiguidade das ordenações de uma linhagem de
governantes gera um hábito em seus governados. Estes se habituam aos procedimentos de governo
desta linhagem, fazendo deles uma ordem estabelecida, um modo de vida específico. Não se trata,
entretanto, de um sentimento de respeito irrestrito ao nome e à linhagem do príncipe; a preservação
deste modo de vida é o que garante segurança e estabilidade ao principado. Tudo aquilo que é
estranho aos procedimentos habituais de governo consolidados, tudo o que é extraordinário, é
sentido como ofensa e vício; tudo o que impulsiona ou deixa viver o modo de vida habitual é
respondido com amor e benevolência.
O príncipe natural tem menos necessidade e razões para ofender na medida em que os
costumes corroboram seu poder. Na medida em que não ofende, o príncipe é amado e benquisto
por seus súditos, o que corrobora a sua permanência na posição de governante. No entanto, o que
garante o poder do príncipe natural não é algum tipo de direito hereditário irrestrito de governar.
Ele está submetido à necessidade de manter a ordem, de tal forma que quando age de forma
extraordinária ou quando está em face de situações extraordinárias, o príncipe hereditário corre o
risco de perder seu domínio. Neste ponto, podemos observar que a inovação já é tematizada como
96
dificuldade nos principados hereditários, já para os príncipes naturais. Eles não estão totalmente
livres das dificuldades e necessidades relativas à inovação. Lefort, em Le Travail de l’Oœuvre nos
diz que, ao começar pelo estudo dos principados hereditários, o leitor de O Príncipe “é primeiro
confrontado com um exemplo que os pensadores políticos, durante a Idade Média, privilegiaram:
aos seus olhos, o príncipe hereditário é de fato aquele cuja autoridade é considerada legítima e que
chega ao principado por meios pacíficos.”286 A fim de mostrar que à primeira vista, a análise de
Maquiavel “permanece fiel à convenção”, Lefort ressalta o uso do termo príncipe natural no
primeiro capítulo de O Príncipe. “Ora, sem dúvida este termo respondia em origem a uma
concepção precisa da Monarquia”287, comenta Lefort. Ele se refere a uma concepção medieval de
monarquia, na qual a ideia de governante natural está fundamentada em concepções tomistas de
costume como segunda natureza e de uma hierarquia dos seres que tendem a permanecer em seus
lugares naturais. Concepções estas de raiz aristotélica e que ecoaram e serviram de autoridade para
autores chave na alta idade média e no humanismo, como Colona e Savonarola.288
Há, portanto, uma ideia de natureza e uma suposição de um mundo ordenado como
referência no termo natural. No entanto, mostra Lefort, a referência ao universo conceitual
medieval não faz mais que abrir caminho para uma mudança radical de perspectiva289. Natural
perde todo seu sentido tradicional; Maquiavel estaria preparado para explicar a distinção entre
príncipes hereditários e novos por novas vias e não aquelas da legitimidade tradicional dos
medievais em toda sua complexidade. “A verdade” explica Lefort “é que [o] poder [do príncipe
natural] se beneficia de um costume à opressão: a permanência do dominador enfraquece a
resistência dos dominados, de tal sorte que sua submissão se obtém sem grandes custos”290
Costume não envolve mais uma segunda natureza imutável, uma ordem natural, legitimidade ou
busca pelo bem. O que vale é o costume à opressão, composto por dois polos: a permanência do
dominador contra a resistência dos dominados. Costume não passa do resultado da oposição entre
príncipes e seus súditos na passagem do tempo. Para Lefort, é ao considerar esta oposição que
concluímos a estabilidade do príncipe hereditário e a instabilidade do príncipe novo, “e não uma
concordância fundada sobre a disposição íntima do corpo social” 291: O leitor gostava de ver na estabilidade o efeito de uma boa forma, cuja instauração responde a um projeto da providência ou uma finalidade natural, e dava ao príncipe o crédito de saber se fazer instrumento para tanto, diferentemente do tirano – sempre ocupado com a violência; mas revela-se que a estabilidade deve ser sempre pensada em função de uma instabilidade e de uma violência primeiras, e que o “príncipe antigo” tem
286 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 349 287 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 349 288 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, pp. 349-50 289 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 350 290 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 350 291 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 350
97 somente o privilégio de explorar os sucessos conquistados outrora na luta por um “príncipe novo”. Entre o regime de um e aquele de outro, não há uma diferença substancial, mais uma diferença de gradação, que tem sua posição respectiva em vista dos adversários que têm para dominar. À conquista do poder corresponde um movimento rápido e violento que deve triunfar diversas forças de resistência; mas, tendo conseguido, vem o momento no qual ele se transforma em um movimento lento, que tende a conservar-se. É esta passagem de um regime ao outro que se pode julgar natural.292
Aqui se faz notar especialmente o caráter retórico do argumento de Maquiavel. O que o
autor faz não é recusar afirmação clássica da legitimidade tradicional, mas, antes, abordá-la de
uma nova perspectiva, uma que abarque outros lados da questão. O que Maquiavel busca
flexibilizar é a asserção fixada da tradição segundo a qual o príncipe hereditário tem facilidade em
governar na medida em que faz parte da natureza de seus súditos, na medida em que é natural.
“Certamente, permanece válida a distinção entre príncipe antigo e príncipe novo, entre ordem do
costume e ordem da inovação, mas ela não pode ser compreendida em referência à ideia clássica
de natureza”. Maquiavel propõe uma nova forma de distinguir o príncipe hereditário do príncipe
novo, de tal modo que se possa discorrer sobre as possibilidades de ação dos dois agentes. Ao
induzir, “antes, a imaginar o campo da política como um campo de forças onde o poder deve
encontrar as condições de um equilíbrio”, Maquiavel abre espaço para se pensar o príncipe novo
em distinção do príncipe antigo – enquanto neste a manutenção é mais fácil e a inovação não
necessária na medida em que o campo de forças está estabilizado, naquele a manutenção é difícil
e a inovação necessária porque o campo de forças está desequilibrado em desvantagem ao
governante293. Assim, Lefort salienta que evocando a figura de um príncipe hereditário, Maquiavel não escolhe o exemplo que se impõe ao pensamento de todos, aquele do rei da França, mestre de um Estado poderoso e solidamente estabelecido, mas fala dos duques de Ferrara, personagens de segundo plano, dos quais ele sabia, dos quais era notório que retomaram seu stato, assim como haviam perdido, em razão somente das vicissitudes da política internacional294.
É preciso estar atento, portanto, para os limites da noção de legitimidade tradicional do
pensamento político medieval como artifício de Maquiavel para explicar a estabilidade dos
príncipes hereditários. Esta noção é limitada porque a legitimidade tradicional medieval pode
denotar mais que mero costume e baixa resistência a um governo. Maquiavel não toma para si a
totalidade desta noção, restringindo-se a afirmar a maior facilidade de manutenção de governo
quando é mais antigo. Pocock reconhece que deve-se [...] enfatizar que uma monarquia transalpina completamente desenvolvida dos tempos de Maquiavel tinha mais para se legitimar que somente o uso: podia alegar representar uma ordem universal, moral, sagrada e racional; além de o povo estar há muito tempo acostumado ao seu poder, ela podia derivar a legitimidade de um corpo de antigas
292 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 350-351 293 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 352 294 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 351
98 leis de costume que administrava em sua jurisdictio; e podia alegar exercer um conjunto de capacidades em seu gubernaculum. Maquiavel não pinta um quadro com ricos detalhes destes sistemas de poder tão legitimizados, apesar de sabermos, a partir de suas observações quanto aos franceses, que ele estava familiarizado com muitas de suas características. A única instância de poder hereditário neste capítulo [II] de O Príncipe é italiano, os d’Este de Ferrara, e ele indica que estas famílias são meramente usurpadores bem-sucedidos que se mantiveram por gerações suficientes para que a inovação original fosse esquecida. Há um grande passo que separa os d’Este - vamos dizer – dos ungidos Capetianos; ainda assim, mesmo os d’Este são colocados antiteticamente em relação ao ‘novo príncipe’”295
Reivindicar legitimidade tradicional no mundo medieval significa mais que reivindicar harmonia
com o modo de vida ordinário. Os Valois ou os Habsburgo certamente não derivavam sua
legitimidade somente do longo tempo de sua posição de poder, mas de uma complexa e
consolidada estrutura de justificação de ordem religiosa, moral e jurídica; de antigos acordos e
estruturas de governança e justiça. O exemplo de príncipe hereditário escolhido por Maquiavel no
segundo capítulo de O Príncipe, os duques de Ferrara, os D’Este, no entanto, não representam
nada disso. Sua semelhança com os Valois ou os Habsburgo é somente o seu (não tão, é preciso
dizer) antigo domínio. Ao fazer esta escolha, ao equiparar Capetianos e os D’Este, Maquiavel
reduz a riqueza de detalhes dos sistemas de poder considerados legitimados na Idade Média – o
que resta é a antiguidade do domínio como parâmetro.
A escolha do exemplo dos duques de Ferrara, notoriamente vulneráveis à vicissitude da
política internacional, como coloca Lefort, e meros usurpadores bem-sucedidos por suficientes
gerações, como coloca Pocock, indica uma nova perspectiva em relação a como entender os
principados hereditários e seus príncipes. Se não inovam, nem são aconselhados a inovar, ao
mesmo tempo não podem fazer muito para que inovações e condições extraordinárias ocorram
fora de sua zona de controle. É bem verdade que, como atesta Maquiavel, a hereditariedade do
príncipe o permite de reconquistar seu domínio a qualquer revés do ocupante e, como nos mostra
seu exemplo, o ducado de Ferrara resistiu aos ataques dos venezianos em 1484 e aos do papa Júlio
em 1510 por ser antigo em seu domínio. No entanto, a hereditariedade não pode fazer nada para
suprimir a iniciativa de ocupar dos conquistadores e a antiguidade da linhagem do ducado de
Ferrara os fez resistir aos ataques de forças estrangeiras, mas nada pôde fazer para suprimir estas
iniciativas ofensivas.
No terceiro capítulo, quando é propriamente introduzida a perspectiva dos inovadores, as
limitações da segurança do príncipe hereditário podem ainda ser observadas. Aprendemos que é
“muito natural e ordinário o desejo de conquistar” e que, “quando os homens que podem o fazem,
295 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.159
99
sempre são louvados, e não reprovados”, havendo somente erro e reprovação “quando não podem
e querem realizá-lo”296. Assim, por mais estável que seja a posição de um príncipe que continua
uma linhagem de governantes, ele nada pode fazer, a não ser resistir, contra as iniciativas de
conquista estrangeira. O exemplo das ocupações de Luís XII da França em Milão implicitamente
alerta os príncipes hereditários para os limites de sua segurança. Ludovico Sforza pôde retomar
sua cidade, mas teve pouca influência sobre a iniciativa ofensiva francesa, com fôlego suficiente
para duas empresas. Também aprendemos sobre a “dificuldade natural” de “os homens mudarem
de bom grado de senhor, acreditando, com isso, que irão melhorar”297. Esta afirmação poderia
parecer contraditória com o que foi afirmado no capítulo anterior. Afinal, por ter “menos razões e
menos necessidade de ofender”, não “convém que” o príncipe natural “seja mais amado”? Não “é
razoável que seja naturalmente benquisto pelos seus”298?
No entanto, que tenha menos razões e necessidade não implica que nunca ofenda; que seja
mais amado e benquisto não significa que seja hegemonicamente aceito. A obediência ordinária
não elimina os desejos extraordinários de mudança. Assim, por mais que “mais tarde percebam o
engano, pela própria experiência, vendo que pioram”299, a crença na melhora incita os habitantes
a dar apoio aos conquistadores para penetrar em uma província. Esta dificuldade natural, portanto,
não se impõe somente ao conquistador, que posteriormente se vê obrigado a frustrar seus aliados,
mas também é sentida pelos príncipes hereditários, que, se têm “menos dificuldades para
manter”300 seus principados, todavia, ainda podem enfrentar alguma dificuldade.
2.2. A inovação da conquista
2.2.1. Conquista e costume
Maquiavel, no início do terceiro capítulo de O Príncipe, escreve que “é no principado
novo que aparecem as dificuldades”301.Grande parte das dificuldades impostas aos príncipes na
manutenção de seus principados se dão em virtude da relação que ele estabelece com o costume
ou a ordem vigente em seu domínio. Pela necessidade que o príncipe tem de alterar estes costumes,
que tem de inovar. Assim, para pensar os meios para a superação destas dificuldades, Maquiavel
terá de considerar como se dá a relação entre o príncipe e seus súditos, bem como de que forma o
príncipe deve inovar mantendo-se seguro. O primeiro tipo de inovação a ser analisada é a dos
296 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, pp.16-17 297 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 9 298 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo II, pp. 7-8 299 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 9 300 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo II, p. 7 301 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 9. Nosso itálico.
100
conquistadores. Em sentido mais específico, daqueles príncipes que já têm um poder estável ou
são hereditários em um principado e expandem seus territórios, conquistando novos domínios. O
conquistador inova no sentido de que introduz o seu governo, suas ordenações e leis (já antigos
em seu stato hereditário) em um novo território (sua conquista, onde os súditos eram acostumados
a outro governo).
Maquiavel descreve uma situação de delicadas condições em que se encontra o príncipe
conquistador. Para conquistar deve contar com o apoio de parte dos habitantes do território que
pretende conquistar. Entretanto, apesar de a esperança em uma melhora inicialmente traga apoio
ao príncipe conquistador, este não pode satisfazê-la. Isto porque a conquista acarreta sempre
injúrias contra os conquistados. O príncipe conquistador necessita sempre ofender seus novos
súditos. Estas ofensas são relativas à guerra, uma vez que a conquista de um novo território
pressupõe investidas militares, o que perturba a paz e segurança dos súditos. Entretanto, elas são
também relativas à destituição da ordem e de um modo de vida compartilhado e reconhecido como
bom. Ao conquistar um domínio, o conquistador tem de introduzir suas ordenações no lugar das
antigas. Uma vez que estas antigas ordenações estabeleciam a norma, as formas costumeiras de
vida política, a introdução de novas ordenações sofre resistências para ser aplicada, é recebida
como injúrias e ofensas. Assim, aqueles que apoiaram inicialmente o conquistador se veem
frustrados em suas expectativas, pois seus parâmetros de boa vida eram baseados nas ordenações
tradicionais e a interrupção da normalidade inerentes à conquista não satisfaz estes parâmetros,
mas distancia-se deles. Como resultado, o príncipe se vê cercado por inimigos em novo território.
Por um lado, tem como inimigos aqueles que se beneficiavam das antigas ordenações. Por outro,
não pode tomar como amigos aqueles que inicialmente o ajudaram, pois estes indispõem-se com
o novo governante ao se verem frustrados em suas expectativas.
O exemplo da Luís XII no território italiano é central no terceiro capítulo. Ele é
primeiramente evocado para corroborar a extrema dificuldade encontrada pelos conquistadores em
oposição aos príncipes hereditários atestada por Maquiavel. Na medida em que se viu “enganado
em sua opinião em relação aos benefícios futuros que havia imaginado” e não podendo “suportar
os aborrecimentos provocados pelo novo príncipe”, o mesmo povo de Milão que abriu as portas a
Luís XII, auxiliou na retomada do poder por Ludovico302. A situação do príncipe hereditário e do
príncipe conquistador podem ser ditas inversas, Ludovico Sforza e Luís XII atestam esta oposição.
Enquanto ao primeiro são menores as razões para ofender, o segundo necessita ofender. Em função
disso, enquanto o primeiro é amado por seus súditos e amigos, o segundo está cercado por
inimigos. O que baliza esta distinção é a maneira como está disposto o príncipe em relação aos
302 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 10
101
costumes e hábitos de seus governados. Na medida em que os principados são acostumados aos
seus governantes, estes encontram menores dificuldades para manter sua posição de governo, e as
dificuldades aumentam na medida em que se distanciam ou conflitam costume e governante. A
dificuldade da inovação é, portanto, neste primeiro momento, atribuída à resistência dos costumes
estabelecidos.
Tendo esta concepção como parâmetro, Maquiavel pode explorar as dificuldades impostas
pela conquista em variados aspectos e gradações. No terceiro capítulo, aprendemos que as
dificuldades do conquistador não se esgotam no momento da conquista, nas ofensas e frustrações
primeiramente causadas pelos conquistadores. Depois de conquistado, o território deve ser
devidamente anexado, deve integrar-se “ao principado antigo, formando um único corpo”303. Caso
contrário, nada deterá a efemeridade de “rapidamente” conquistar e “rapidamente” perder. É isso
que nos mostra o exemplo de Luis XII. A mera ocupação vitoriosa não bastava. Era ainda preciso
suprimir as rebeliões, punir os culpados por elas, denunciar suspeitos e reforçar os pontos fracos
da dominação do conquistador304. Era preciso estabelecer-se, assegurar-se da posição de governo.
Foi preciso uma segunda ocupação para que Luís XII tivesse ocasião para tanto (e mesmo com ela,
ainda foi derrotado).
As “causas universais da primeira perda” de Luís XII, discorre Maquiavel, foram
comentadas no início do terceiro capítulo e remontam às ofensas e frustrações aderentes a toda
conquista 305 . Uma vez superada esta primeira dificuldade, entretanto, há uma série de
particularidades e novas dificuldades a serem observadas e superadas. Uma vez conquistados
novos territórios, as dificuldades para assegurar-se de sua manutenção variam de acordo com
diferentes condições e contextos. Esta variação e as razões para tanto não escapam ao exame de
Maquiavel. Ele começa por estabelecer a seguinte distinção: domínios anexados se localizam na
mesma província e vivem com a mesma língua, com costumes e ordenações semelhantes aos do
príncipe conquistador, ou não. Segundo o autor, pode-se identificar onde se encontram maiores ou
menores dificuldades para a manutenção das conquistas partindo da consideração desta distinção.
No primeiro caso, será fácil a manutenção dos territórios conquistados se comparada ao segundo
caso306.
Reflitamos sobre o caráter destes elementos destacados pelo autor: território, língua,
costumes e ordenações. Todos eles indicam práticas consolidadas por grupos de pessoas pela
repetição e transmissão entre gerações ao longo do tempo. O estabelecimento de um grupo humano
em determinada região e sua permanência no local por gerações permitem delimitar para este grupo
303 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 11 304 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 10 305 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 10 306 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 10
102
um território, uma extensão de terra que estes homens entendem como sua, onde suas leis são
aplicáveis e seu modo de vida presente (sua província). A língua e as produções intelectuais
formam-se e consolidam-se ao longo do tempo de maneiras distintas em diferentes agrupamentos
humanos em diferentes condições e momentos. Igualmente, em diferentes congregações humanas
estabelecem-se ao longo do tempo diferentes formas de vida, com as quais os homens se
acostumam e a partir das quais eles determinam as leis e as relações políticas que lhes são mais
apropriadas. O que se preserva, portanto, como fonte de dificuldades é a relação estabelecida entre
o príncipe e o costume vigente em seu território.
Destarte, o conquistador facilmente mantém sua posição de governo quando seus costumes
são conformes aos do conquistado. Apesar de não poder, como podia o príncipe hereditário,
esquivar-se da ofensa (uma vez que é necessário ofender para a conquista), o conquistador de
territórios cujos costumes são similares aos seus não deve encontrar tão grande resistência de seus
novos súditos. Isto porque a ordem introduzida pelo conquistador, suas práticas ordinárias, não
representa uma grande modificação da ordem anteriormente vigente no território. Por facilmente
poder evitar conflitos culturais e a necessidade da alteração da ordem, o príncipe conquistador
nestas condições não encontra dificuldades em manter-se. Já ao conquistar um membro em outra
província, cujos costume, língua e leis são diversos, o conquistador se encontra em posição de
estrangeiro, ele é uma figura estranha, negativa, em seu novo domínio. Suas formas costumeiras
de proceder e as ordenações que lhes são habituais não são organicamente adaptáveis à conquista.
É-lhe mais dificultosa a permanência, pois lhe será imposta com mais força a resistência dos modos
habituais de vida do principado conquistado.
Como observamos, as condições da conquista são tais que o conquistador está cercado por
inimigos e seus aliados não podem ser satisfeitos em seus anseios, pois a inovação inerente à
conquista é sempre ofensiva. Nestas condições, são muitas as adversidades que podem privar o
príncipe de sua posição de governo. E elas são maiores na medida em que é maior a necessidade
de inovar. Isto porque a inovação coloca o príncipe em uma posição que chamamos aqui de posição
de exterioridade. A posição de inimigo do conquistador em virtude de suas ofensas lhe confere
posição de exterioridade. Por insatisfazer seus aliados e ser odiado por aqueles que ofendeu ao
conquistar o principado, o conquistador se vê cercado por inimigos. Por outro lado, a posição de
estrangeiro e rejeitado onde se encontra, na medida em que seu governo sofre resistência dos
modos de vida costumeiros no território em que passa a governar. Tal condição acarreta grandes
dificuldades para a promoção do poder do conquistador. Assim, para inovar com segurança, o
conquistador deve fazê-lo de modo a dar uma resposta à sua condição de exterioridade.
Portanto, para o príncipe em novo território, agir em favor de seu stato parece ser em grande
medida agir a respeito de sua posição de exterioridade em relação ao seu novo domínio. Quando
103
analisamos o exame das dificuldades enfrentadas e dos meios escolhidos pelos conquistadores para
suplantá-las, podemos observar, em um primeiro momento, o que poderíamos chamar aqui de uma
política conciliatória. Avaliando os procedimentos dos conquistadores e considerando o conflito
estabelecido entre ele e seu domínio, Maquiavel propõem meios que amenizem e modifiquem a
condição de exterioridade do príncipe, buscando reconciliá-lo com os hábitos de seu novo
território. A capacidade do príncipe conquistador é a de contornar os conflitos estabelecidos entre
ele e os costumes de seu principado, saindo da posição de exterioridade em que a inovação o
colocou. Maquiavel afirma que “por mais que alguém seja fortíssimo graças a seus exércitos,
sempre precisará do apoio dos habitantes para penetrar numa província”307. Com isso, ele adverte
para um caráter importante de uma conquista segura: ela deve mais que conquistar pela força,
deve entrar na província pelo apoio dos habitantes. Uma atividade mais complexa e sútil que a
mera guerra está sendo aconselhada por Maquiavel: a de estabelecer relações e um posicionamento
seguro no território conquistado. E quanto maior é a inovação do conquistador, mais ele precisará
desta capacidade.
Em algumas circunstâncias, o príncipe pode evitar sua posição de exterioridade, evitando
inovar. Isto é possível na conquista de principados cujos costumes sejam similares ao do
conquistador308. Nestes casos, Maquiavel recomenda que o mínimo necessário de mudança seja
instaurada, a saber, somente aquelas que estabelecem o príncipe novo como governante e impedem
o antigo príncipe de voltar ao poder (extinguir a linhagem dos antigos governantes). Na medida
em que as formas de vida do território conquistado são semelhantes à do conquistador, o príncipe
pode manter as antigas condições, evitando inovar. Com isso, sem necessidade de conflitos, o
príncipe pode transferir para si a autoridade do antigo governante e se manter em segurança entre
seus novos súditos. Ao príncipe é recomendado, em certo sentido, uma minimização da ação de
inovar. É recomendado que se inove, que se modifique as condições dadas, o mínimo possível.
No entanto, em outras circunstâncias, o conquistador não pode evitar as turbulências
causadas pelas inovações. Nestes casos, ele não pode simplesmente amenizar a novidade
introduzida, sua ação não pode ser meramente conciliatória. É o caso dos príncipes que conquistam
territórios cujos hábitos e costumes são diferentes do seu.309 Nestes casos, o príncipe, sendo
oriundo de outra cultura, de outro modo de vida, já se apresenta aos governados antes de tudo
como um estrangeiro. Estrangeiro e inimigo, na medida em que não só ofende com a guerra
necessária às conquistas, mas também com a ameaça aos modos de vidas habituais e amados no
território que conquista. Neste caso, uma minimização da ação, reduzindo e evitando a inovação,
307 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 9 308 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 10-11 309 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 11
104
deixando as condições como estão, não será suficiente. O príncipe terá de agir, de modificar as
condições dadas, a fim tanto de implantar as inovações necessárias para a conquista quanto para
se reconciliar com seus governados e sair de uma posição de exterioridade.
Dessa forma, Maquiavel aconselha ao conquistador algumas medidas310, que cumprem a
função de integrar o príncipe ao seu território conquistado, garantindo com isso a segurança e a
autoridade ameaçadas pelas inovações. Estas medidas são as seguintes: ir habitar sua conquista;
instalar colônias nos territórios conquistados; fazer-se árbitro de todas as coisas no domínio
conquistado. Se nos detemos na análise destas ações, vemos que elas expressam uma capacidade
de modificar a ordem estabelecida em favor do conquistador, em favor de sua segurança e
autoridade, e de eliminar ou equilibrar a resistência voltada contra ele. Em um primeiro momento,
o autor recomenda que o conquistador vá residir no local de sua conquista. A razão para tanto é
que quando se está presente, o príncipe pode ver nascer as desordens oriundas dos conflitos e pode
remediá-las rapidamente. Além disso, com isto, os súditos podem recorrer de perto ao príncipe,
tendo por isso a chance de vivenciar a autoridade do novo governante com mais força. É importante
que o príncipe se faça presente, que governe e seja obedecido, seja por amor, seja por temor. Com
isso, o príncipe pode combater ou impor-se contra a resistência dos conquistados, saindo da
posição de exterioridade, preenchendo o vácuo de poder deixado pela conquista e provendo seus
súditos de uma experiência de governo com a qual podem se acostumar.
Caso o príncipe não possa residir o local de sua ocupação, Maquiavel recomenda mandar
colônias para lá. A intenção aqui é muito semelhante. As colônias atuam como vínculos do stato
conquistador. Novamente, o objetivo é fazer presente a posição do príncipe no território
conquistado. Sendo fiéis ao príncipe conquistador, as colônias têm um importante papel de
introdução das novas ordenações no novo território. Elas auxiliam na superação da condição de
exterioridade do príncipe. Ao introduzir ao domínio conquistado homens que se relacionam por
práticas habituais ao do conquistador, está se introduzido na experiência dos súditos
comportamentos que auxiliam na obediência ao comando do conquistador. O conquistador precisa
ser obedecido para exercer sua autoridade. A obediência pode ser garantida por meios violentos,
pela manutenção da força militar. Entretanto, por meio de força militar a obediência é obtida a
custo de danos a todo stato, gerando ressentimento geral contra o príncipe. As colônias são uma
via menos ofensiva para a imposição de obediência, permitindo uma maior aceitação do príncipe
no território. As colônias, portanto, reparam a autoridade do príncipe e reduzem o número de
inimigos cultivados por ele, trabalhando em favor de sua segurança.
310 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, pp. 11-13
105
O conquistador deve, por fim, também agir no sentido de "ficar como árbitro de todas as
coisas [na] província" conquistada311 - isto é, de ser nela a única autoridade efetiva. Para tanto, o
príncipe deve ser capaz de defender os menos poderosos, que se tornarão obrigados a ele. Deve
enfraquecer os poderosos, para debilitá-los em sua autoridade. Deve evitar que estrangeiros
poderosos entrem no território da conquista. Para tanto, o príncipe necessitará de forças militares
- a fim de defender a si mesmo e a amigos e atacar inimigos. Entretanto, essa força militar tem de
estar associada a um bom posicionamento político, uma escolha ajustada de quem se deve
defender, quem se deve enfraquecer e quem se deve atacar. Assim, o príncipe deve saber
reconhecer e se utilizar das relações políticas já estabelecidas para posicionar-se politicamente.
Maquiavel aponta para procedimentos que permitam ao conquistador posicionar-se de tal forma
em seu estado de príncipe que as inovações necessárias para que alcance este estado não sejam
também as que o levam para uma condição de isolamento. O príncipe deve inovar para chegar ao
seu stato, mas também deve se precaver dos inimigos e poder efetivar a sua autoridade. A
eficiência dos procedimentos apresentados por Maquiavel para tais fins no terceiro capítulo é
verificada e justificada pelo autor a partir de dois exemplos centrais, que devemos analisar a seguir.
Um são as investidas do rei francês Luís XII ao território italiano durante as Guerras da
Renascença, outro é o exemplo das conquistas dos antigos romanos na província da Grécia.
2.2.2. A prudência dos conquistadores Examinando as investidas francesas na Itália, Maquiavel nos apresenta uma reflexão por
ele exposta ao cardeal de Ruão sobre os franceses que sumariza as razões pelas quais estes
perderam suas conquistas. Ele nos conta: “dizendo-me o cardeal de Ruão que os italianos não
entendiam de guerra, respondi-lhe que os franceses não entendiam de statp, porque, se
entendessem, não teriam permitido que a Igreja alcançasse tanta grandeza” 312 .Enquanto
conquistadores do território italiano, o erro dos franceses e a causa de sua ruína foi engrandecer a
igreja. Este erro não denota uma inabilidade militar, como se esperaria de um mau conquistador
(aquele que não tem os meios para a conquista), na medida em que a conquista pressuporia
investidas militares. Em verdade, os franceses entendiam de guerra; são frequentemente notados
por isso. Como nos descreve Skinner,
Quando CarIos VIII invadiu a península, naquele ano de 1494, o rei da França submeteu Florença e Roma, avançou a ponta de espada até Nápoles e autorizou seu enorme exército
311 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 13 312 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 18
106 a devastar os campos. Seu sucessor, Luís XII, efetuou mais três invasões, atacando Milão seguidas vezes e fazendo a guerra tornar-se endêmica por toda a Itália.313
Foi contando com o excelente e furioso apoio militar francês que se engrandeceu a igreja no
período das invasões. O erro dos franceses é de natureza política; é por falta de si intendere dello
stato, de posicionamento político, que fracassaram.
A difícil condição exterior e inimiga em que se encontra o príncipe conquistador em novo
território demanda dele não só força militar, mas também a capacidade de conquistar o apoio dos
habitantes, ou parte deles. Maquiavel descreve que o rei Luís foi trazido à Itália pelos venezianos,
que queriam obter parte da Lombardia com o apoio dos franceses. As condições aceitas pela França
para adentrarem o território se mostraram frutíferas, pois, o rei logo se tornou reputado por sua
força militar e todos buscaram tornar-se amigos seus. Dessa forma, os venezianos fizeram o rei da
França senhor de dois terços da Itália, uma vez que todos queriam a ele se aliar.314 Depois de
estabelecido em território italiano, entretanto, o rei não soube assegurar-se de sua posição de
comando, pois suas ações alteraram esta posição para uma situação de isolamento e impotência:
Considere-se agora com quão pouca dificuldade poderia o rei ter mantido sua reputação na Itália se tivesse [...] assegurado e protegido todos os seus amigos que, por serem numerosos, fracos e temerosos, uns da Igreja e outros dos venezianos, necessitavam sempre estar a seu lado. Por meio deles poderia facilmente resguardar-se de quem permanecia grande. Mal chegando a Milão, porém, o rei fez o contrário, ajudando o papa Alexandre a ocupar a Romanha. Não se deu conta de que, com essa deliberação, enfraquecia a si próprio, privando-se dos amigos e daqueles que se haviam lançado a seus braços, e tornava grande a Igreja, acrescentando à força espiritual, que tanta autoridade lhe dá, tão grande força temporal. Cometido o primeiro erro, foi constrangido a prosseguir, tanto que, para pôr fim à ambição de Alexandre e para que este não se tornasse senhor da Toscana, o rei foi obrigado a vir à Itália. Não lhe bastou ter tornado grande a Igreja e ter-se privado de seus próprios amigos. Por querer o reino de Nápoles, dividiu-o com o rei da Espanha e, de árbitro da Itália que era, arrumou um companheiro, para que os ambiciosos daquela província, descontentes com ele, tivessem a quem recorrer; e, em vez de deixar um rei que lhe fosse tributário, tirou-o dali para pôr em seu lugar outro capaz de expulsá-lo.315
O apoio dado à igreja atestava uma incapacidade política dos franceses, seu pouco
entendimento das coisas do stato. Aqui vemos este apoio como elemento central na narrativa da
queda do poder francês na Itália. Este foi o erro primordial dos franceses e dele derivam as
complexas e perigosas necessidades enfrentadas pelos franceses e as causas de sua derrota. Em
razão das ofensas necessárias à conquista, um príncipe em novo território tende a insatisfazer
aqueles que inicialmente o apoiavam, pois não pode garantir as benesses que estes apoiadores
supunham receber; ademais, são inimigos aqueles que se beneficiavam do antigo estado de coisas.
313 SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1999, p. 134 314 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, pp.15-16 315 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.16
107
O poderio militar dos franceses e suas consecutivas vitórias amenizaram a condição de isolamento
do rei francês. A capacidade militar é sem sombra de dúvida um elemento político de primeira
ordem neste contexto, pois ela podia, não só frear os inimigos, mas também satisfazer os nativos
avessos ao statu quo, ao rebaixar os venezianos e a igreja. No lugar, entretanto, de satisfazer os
anseios de seus amigos, que poderiam conceder-lhe autoridade e segurança, na medida em que
eram numerosos, fracos e temerosos, necessitando sempre ao lado do conquistador, ofendeu-os ao
aumentar a grandeza de um de seus mais temerosos inimigos. O rei Luís tinha a possibilidade de
contornar o impasse em que se encontra em geral os príncipes novos, pois podia satisfazer uma
parte dos conquistados. Assim o fazendo, poderia contar com eles para sua proteção e ao mesmo
tempo exercer sobre eles autoridade, pois estavam divididos e fracos.
Em vez disso, em consequência de sua própria deliberação, tornou o impasse mais
perigoso. A deliberação do governante é central, ela revela a capacidade política do príncipe. A
deliberação é a escolha dos procedimentos, dos meios pelos quais se manterá o principado. As
deliberações de Luís XII foram tais, que aqueles que poderia contar como amigos tornaram-se
inimigos e a igreja não poderia ser contada como amiga, pois seu projeto (e sua real possibilidade)
de força temporal está em conflito com as intenções expansionistas dos franceses. Tanto é assim
que o rei posteriormente teve de encontrar maneiras de pôr fim à ambição de Alexandre, que queria
expandir sua autoridade também à Toscana. Contribuir com a grandeza da igreja enfraquece os
franceses, pois os dois disputam o mesmo objeto de autoridade, os dois desejam exercer comando
sobre o mesmo território.
É bem verdade que os franceses, contando com sua força militar, ainda podiam deter a
igreja na Itália, pois, por mais que estivesse em situação de desamparo, encontrava uma Itália
dividida. Os oprimidos pela igreja não tinham força suficiente para, por si mesmos e ao mesmo
tempo, expulsarem os franceses e deter o papa; precisavam, para tornarem-se inimigos potentes,
submeterem-se a um senhor estrangeiro mais forte. Mas, novamente, o que se mostrou foi que o
poderio militar só pode resultar em autodestruição se usado sem sabedoria política. Foi exatamente
este estrangeiro mais forte que Luís XII trouxe à teia de relações deste período das Guerras da
Renascença, ao estabelecer uma aliança com o trono espanhol para a conquista de Nápoles. Assim
como com a igreja, uma aliança com os espanhóis estaria fadada ao fracasso, pois seus interesses
são conflitantes com os dos franceses e sua força comparável a destes. Os espanhóis são, em
verdade, potencialmente mais poderosos, pois, se os inimigos da França na Itália não podiam se
aliar à igreja, aos espanhóis, eles podiam; e aí estará formada uma conjuntura de forças
insuportáveis para a permanência do império francês.
Como nos mostra Newton Bignotto, Maquiavel está interessado em revelar que "o mundo
da violência, que caracteriza a guerra, é na verdade um mundo marcado por complexas relações
108
políticas" 316 . A conquista demanda a guerra; esta não só mantém aqueles que já nasceram
príncipes, como também permite que os homens ascendam a esse grau317. Entretanto, se o poderio
militar não for utilizado pela deliberação de uma boa prática política, de boas decisões do stato, a
guerra se torna apenas um processo destrutivo e inútil ou mesmo autodestrutivo. Não se tratava,
portanto, de evitar a guerra, pois um conflito com o papa ou com a Espanha seria inevitável318,
mas de decidir quando e como a guerra corrobora para conquistar o apoio necessário para
estabelecer sua segurança e autoridade.
Examinando a correspondência entre Maquiavel e a Signoria de Florença durante a missão
diplomática junto da corte de Luís XII em Lion, ocasião na qual Maquiavel provavelmente teria
tido o embate mencionado com o cardeal de Ruão, Bignotto traduz a ideia de deliberações do
governante nos termos do juízo político: “os franceses perdiam de vista a importância do juízo
político para a boa condução da guerra. Encantados com a superioridade de seus exércitos, [os
franceses] transformavam em fraqueza e em erro o que poderia ser o fator de seu sucesso em sua
política de conquista” 319. A capacidade política se revela, como coloca Bignotto em Maquiavel
Republicano, quando o agente sai da posição de exterioridade e inimigo que visa seus adversários
como puros objetos, e se vê posicionado em um contexto, em uma nova ordem estabelecida.320 É
essencial que o príncipe conquistador possa entender sua posição no contexto estabelecido para
que possa transformá-lo em seu favor. O conquistador deve passar de invasor para criador e, não
entendendo esta posição, que suas ações alteram o contexto estabelecido, ele cria para si mesmo
uma armadilha. O rei francês, por suas deliberações, por seu procedimento político, por sua escolha
de amigos e inimigos, daqueles com quem devia fazer a guerra e daqueles com quem não devia
fazê-la, não saiu de sua posição de exterioridade, não se estabeleceu em sua posição de árbitro da
Itália, não se precaveu das consequências desastrosas de suas escolhas. Em vez disso, deixou que
outros assumissem a posição de governo, ajudando-os a aumentarem sua grandeza no território
italiano.
Ao ponderar sobre a manutenção de novas conquistas pelo exemplo do fracasso dos
franceses, Maquiavel apresenta uma profunda reflexão sobre o espaço da guerra e da força na
política. A capacidade política do conquistador não se esgota na guerra e na força, apesar de não
prescindir delas. É preciso que as deliberações do conquistador sejam ajustadas, que suas alianças
316 BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo, SP: Loyola, 1991, p. 126 317 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XIV, p. 71 318 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 17 319 BIGNOTTO, NEWTON. “O aprendizado da força”. In: Helton Adverse. (Org.). Reflexões sobre Maquiavel. 500 anos de O Príncipe. 1ed.São Paulo: Editora Loyola, 2015, p. 100 320 BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo, SP: Loyola, 1991. p.126
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sejam proveitosas e que sua capacidade militar seja direcionada a favor do conquistador. A
seguinte citação de Newton Bignotto sumariza com precisão a reflexão de Maquiavel:
Maquiavel combate os jovens de seu tempo, que viam na força o único elemento motriz da política, mostrando que nem mesmo uma conquista levada a cabo pela força das armas se esgota no momento da invasão. Ao contrário, os problemas militares são o sinal inequívoco dos problemas políticos, que o conquistador terá de enfrentar se quiser garantir a durabilidade das novas instituições.321
Em contraposição aos franceses, Maquiavel mostra que, politicamente, os romanos eram
excelentes conquistadores322. Em oposição à França, os romanos instalavam colônias em suas
conquistas; apoiavam os menos poderosos sem lhes aumentar o poder; rebaixaram os poderosos
que podiam competir a autoridade sobre o domínio; e não deixavam que forasteiros fortes
alcançassem reputação323. Ao analisarmos como Maquiavel vê os procedimentos dos romanos em
relação às conquistas, podemos inferir algumas características do que o autor entende como uma
boa política de conquista, realizada com deliberações - isto é, decisões de procedimentos políticos
- acertadas.
O exemplo aludido por Maquiavel é o das conquistas romanas no território dos gregos. Ao
conquistarem este domínio, os romanos se aliaram aos etólios contra a dominação dos macedônios
no território. Tendo rebaixado os macedônios junto aos romanos, os etólios buscaram aumentar
sua autoridade e a extensão de seu território, indo contra os interesses dos romanos e aliando-se
com uma força estrangeira, a de Antíoco. Entretanto, os romanos souberam se precaver da ambição
dos etólios, aos quais nunca foi concedida força suficiente, e das forças de Antíoco. Conquistaram
o apoio dos aqueus e dos rebaixados macedônios. Assim, as forças de Antíoco foram expulsas do
território, os macedênios rebaixados, os etólios e aqueus mantidos com algum poder, mas sem a
capacidade de confrontar os romanos. Ao entender e reconhecer as condições políticas
estabelecidas (o que Newton Bignotto chama de "disposições políticas internas”324) os romanos
souberam identificar naquela ordem estabelecida a fonte da resistência ao seu poder. Com isso,
puderam tomar decisões que os estabeleceram bem nas relações já vigentes no território. Ao
321 BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo, SP: Loyola, 1991. p.127 322 Devemos notar que o exemplo das conquistas da antiga República Romana é peculiar. Bignotto afirma que “o terceiro capítulo, ao refazer o percurso de Luís XII, põe o problema das inovações no centro do pensamento maquiaveliano. Nesse sentido, ele expande os limites do texto, que parecia destinado apenas a se ocupar de questões referentes aos principados. O próprio Maquiavel recorre a exemplos da república romana para ilustrar seu pensamento sobre a conquista, sugerindo que nesse terreno nenhuma fronteira separa as repúblicas dos principados. [...] Se o objeto privilegiado d’O Príncipe é o príncipe conquistador, isso não quer dizer que ele não esteja submetido às mesmas exigências que as repúblicas, e que o conhecimento que venhamos a ter de suas ações possa ser transformado em conhecimento sobre a política em geral. Estudando a política através do caso particular dos conquistadores solitários, Maquiavel abre as portas para um estudo mais universal das condições de criação e destruição de toas as formas políticas. [...] Considerando a questão dessa maneira, transformamos o ator político em um ente abstrato, pois ele pode encarnar-se tanto em uma república quanto em um principado” [BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo, SP: Loyola, 1991. p.125] 323 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.13-14 324 BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo, SP: Loyola, 1991. p. 126
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analisar estes meios escolhidos pelos romanos, as deliberações políticas que tomaram, Maquiavel
nos diz que os romanos fizeram aquilo que todos príncipes sábios devem fazer: precaver-se não somente contra as desordens presentes, como também contra as futuras, e evitá-las com toda a indústria porque, prevendo-as quando estão distantes, podem facilmente remediá-las, mas, esperando que se avizinhem, será tarde demais para o medicamento, pois a doença já se terá tornado incurável. Acontece, nesse caso, o mesmo que dizem os médicos dos tísicos: no princípio o mal é fácil de curar e difícil de diagnosticar, mas, com o passar do tempo, não tendo sido nem diagnosticado nem medicado, torna-se fácil diagnosticá-lo e difícil curá-lo. Assim, acontece nas coisas de estado, já que, quando se conhecem com antecedência (o que só ocorre quando se é prudente), os males que nele surgem se curam facilmente; mas, quando, por não terem sido identificados, deixa-se que cresçam a ponto de todos passarem a conhecê-los, já não há remédio.325
Maquiavel utiliza a noção de prudência para caracterizar os bons procedimentos dos
romanos. A prudência do conquistador denota a capacidade de prever problemas futuros além de
reconhecer os presentes, de precaver-se deles e evitá-los. Esta capacidade só é possível quando se
sabe identificar as possíveis fontes de resistência que o desenvolvimento das condições políticas
estabelecidas pode causar e como agir apropriadamente quanto a elas. Se as condições
estabelecidas apresentam alguma fonte de resistência ao príncipe, estas condições não podem se
desenvolver, mas devem ser rapidamente identificadas pelo príncipe para que sejam rapidamente
adaptadas pelo conquistador. Maquiavel afirma que os romanos não eram afeitos à recomendação
de se "gozar os benefícios do tempo, mas, ao contrário, o benefício de sua virtù e prudência”. Isto,
porque o "tempo", isso é, o livre desenvolvimento das condições estabelecidas, "pode trazer
consigo o bem como o mal, e o mal como bem"326. O príncipe deve ser capaz de identificar que
males ou benefícios pode trazer o tempo contra ou a favor de sua posição e agir sobre isso,
preservando o que lhe fortalece e remediando o que lhe enfraquece. O príncipe necessita do apoio
de seus governados, portanto deve buscar algo de produtivo nas relações políticas já dadas.
Necessita, por outro lado, romper a resistência destas relações em relação a ele, saindo de sua
posição de exterioridade, e, portanto, deve saber adaptar as condições dadas a seu favor.
Para descrever o comportamento prudente dos romanos, Maquiavel se utiliza de uma
comparação. O autor equipara a tarefa cumprida pelo conquistador àquela cumprida pelos médicos
e associa as condições da conquista à condição de um corpo enfermo, um organismo vivo doente.
A relação entre conquistador e domínio conquistado é entendida nos termos da relação entre o
médico e o tísico. Sobre a tuberculose, os médicos recomendam um diagnóstico rápido. Isto,
porque a doença é facilmente curável quando identificada no começo de seu desenvolvimento e
dificilmente contornável quando já desenvolvida. Entretanto, o diagnóstico precoce da doença é
325 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 14 326 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 15
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difícil de ser feito, ele não é evidente aos olhos do leigo ou do mau médico. O conhecimento
preciso do funcionamento do organismo vivo e a capacidade de identificar sinais de anomalia são
fundamentais ao bom médico, que, com seu diagnóstico rápido, pode intervir com procedimentos
pouco invasivos ao corpo do paciente e com maior eficácia na cura da doença. O conquistador
deve proceder em relação a sua nova conquista como o bom médico em relação ao corpo enfermo.
Tendo a sagacidade e a sapiência de reconhecer e entender as condições dadas, as relações políticas
estabelecidas, podendo prever disto futuros problemas, o conquistador pode intervir pontualmente
e sem grandes danos na ordem de coisas, encontrando nesta ordem uma posição segura. Outra
imagem é utilizada além da do médico: a do sábio. A conquista, como nos indica a passagem
citada, é uma tarefa para os príncipes sábios. Maquiavel qualifica o bom conquistador como sábio.
O conquistador deve conhecer bem as condições dadas, ponderar sobre elas e sobre suas
consequências cuidadosamente. Os franceses falharam, Maquiavel conta ao cardeal de Ruão,
porque não entendiam dello stato. É preciso entender as condições dadas para poder agir nelas e a
partir delas. Esta parece ser a capacidade prudente exigida do conquistador.
2.2.3. A flexibilização da noção de prudência No entanto, precisamos examinar com cuidado essas comparações de Maquiavel, bem
como o sentido que o autor dá à noção de prudência, pois aqui há uma tensão e uma disputa. E
uma disputa de grande peso. Afinal, a prudência é uma noção central para a tradição do pensamento
político que precede Maquiavel. Por um lado, o universo do sábio, do médico, da prudência nos
indicaria uma capacidade do conquistador que pressupõe um objeto que seja inteligível,
compreensível. Afinal, os bons procedimentos do conquistador dependem de uma boa
compreensão das condições políticas de sua conquista, que devem, portanto, ser passíveis de ser
compreendidas pelo governante. O conquistador deve ser capaz de apreender as condições dadas
a fim de diagnosticá-las e medicá-las. É nesse sentido que Maquiavel afirma que o fato de os
franceses terem perdido seus domínios na Itália em função de seus erros "não é milagre algum,
mas coisa ordinária e razoável"327. O autor quer ressaltar com tal afirmação que as condições
políticas ordinárias, a ordem estabelecida em um território, podem ser compreendidas pois não
fogem à capacidade de compreensão e ação calculada do conquistador. Isto é, não fogem das
precauções de um comportamento prudente. Assim sendo, o conquistador deve inovar observando
e alterando a resistência dos hábitos e costumes estabelecidos, manejando sua posição de comando
e estabilidade. As condições dadas podem ser aproveitadas e direcionadas em favor do príncipe.
Neste sentido, ao sugerir que o governante deve ser portador de uma sabedoria política, que garanta
327 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.18. Nossos itálicos.
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sua harmonia com a ordem de coisas de seu governo, e, ao evocar a imagem do governante
prudente, Maquiavel parece alinhar suas reflexões com a tradição.
Entretanto, as cores com que Maquiavel pinta a prudência têm tonalidades muito
contrastantes com uma noção tradicional de prudência. Se é a imagem do médico que é evocada
por Maquiavel, não se trata do tratamento constante e da manutenção continuada da saúde do
corpo, mas do caso urgente do tísico. Se é a imagem do sábio, trata-se de uma sabedoria e prudência
bem distintas das tradicionalmente idealizadas na Idade Média ou das pregadas pelos “pseudo-
sábios de Florença”328, esperando sempre gozar dos benefícios do tempo. Outro contraste sensível
é o personagem político a quem a prudência é atribuída: o conquistador. Tradicionalmente,
prudente é aquele que governa guiado para o bem e legitimado pela tradição. A prudência do
príncipe hereditário era em geral a idealizada pelos teóricos. Maquiavel propõe um exercício de
pensamento e busca pensar sobre uma realidade da qual os teóricos haviam pouco pensado: é
possível pensar a prudência do conquistador? A prudência daqueles que não têm como fundamento
outro para suas iniciativas que o “desejo de conquistar”329? Para entendermos estes contrastes, é
interessante considerar e concatenar as reflexões de alguns comentadores, buscando delinear a
amplitude e as tonalidades dadas por Maquiavel à noção de prudência.
Primeiramente, é de interesse o estudo de Pocock em relação ao uso da noção de prudência
como atributo dos bons governantes na Idade Média. O historiador das ideias toma como objeto
de análise a obra De Laudibus Legum Anglie (Em Louvor das Leis da Inglaterra) de “Sir John
Fortescue (c.1390-1479), um jurista e tipo de amador de filosofia que nos ajuda a entender as ideias
de uma era ao simplifica-las”330. Explicando em que sentido Fortescue entende as sabedoria e
prudência das quais deveriam estar repletos os decretos de um rei, Pocock diz: A “prova” – não, é claro, uma demonstração – de um costume é sua antiguidade, e “prudência” pode ser definida como a habilidade de formular decretos que resistirão ao teste do tempo e adquirirão a autoridade e antiguidade já gozada pelos costumes. Mas a prudência é também a virtude exibida pelo indivíduo ao tomar suas decisões, pois, em última análise, ela não é nada menos que a habilidade de fazer uso de sua experiência e a de outros de forma que bons resultados sejam alcançados.331
Em um primeiro momento, a noção de prudência delineada aqui por Pocock a partir de Fortescue
poderia parecer também passível de ser dirigida aos conquistadores do terceiro capítulo de O
Príncipe. Ora, não é um dos problemas centrais da conquista, justamente a posição de
exteriorioridade do príncipe conquistador em virtude de seus súditos não estarem ainda
328 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 320 329 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.16 330 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.9 331 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.24
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acostumados a ele, sendo necessário que seus decretos resistam ao teste do tempo? E não seria,
portanto, habilidade primordial do conquistador a de deliberar de tal forma a conquistar autoridade
para que possa se contrapor à resistência do costume estabelecido, buscando autoridade? E, para
tanto, não precisaria o conquistador estar munido de conhecimento e experiência das condições
dadas a fim de alcançar bons resultados? No entanto, quando observamos com mais detalhes o que
fundamenta e como se idealiza a prática da prudência medieval de Fortescue segundo Pocock, a
imagem do conquistador prudente tal como desenhada em O Príncipe logo se perde:
Aquinas define [...] prudência como “razão reta quanto às coisas a serem feitas (agibilium)” [...] Ele continua citando Cícero ao mencionar “três outras partes da prudência, a saber, memória do passado, entendimento do presente e prevenção do futuro”, e conclui que estas “não são virtudes distintas da prudência”, mas “partes integrais ou componentes” [...] No costume, a experiência julgava o que fora provado bom e satisfatório; julgava também o que fora provado adaptado à natureza particular ou “genius” de um povo, e este julgamento tendia a ser auto-realizador, uma vez que o uso e o costume criavam esta “segunda natureza” e avaliavam-na [...] . No decreto, a experiência julgava o que mais experiência tendia a confirmar, mas deveria, em teoria, fazê-lo somente onde o costume não podia ter feito seu trabalho ainda. Quando, no curso dos eventos humanos, instáveis e flutuantes no tempo como eram, uma contingência surgia que não estava ainda integrada ao uso, os primeiros passos devem ser tomados em direção a realização desta integração. O decreto era baseado na experiência e esperava a confirmação de mais experiência; era um passo, então, tomado em um momento no qual uma nova emergência ocorrera um número de vezes e a experiência acumulara ao ponto no qual o processo de generalização no costume poderia começar. A experiência, na forma da prudência, ao realizar esta generalização, tem as faces de Janus; ela fazia a ponte sobre a lacuna entre inovação e memória, decreto e costume, presente, futuro e passado.332
O decreto prudente do governante medieval só tem espaço onde os costumes ainda não
definiram as boas práticas a serem tomadas, e mesmo restrito a este espaço ele só pode ser dito
prudente se confirma ou se aproxima daquilo que o costume já tenderia a confirmar. A prudência
consistia na habilidade de dar os primeiros passos para a adequação da instabilidade e
particularidade das contingências à generalização do costume. É ressaltada a capacidade de
integração, de ponte, do governante, que por seu decreto busca reproduzir e manter o costume
diante da particularidade. Esta descrição da prudência não poderia ser atribuída aos conquistadores
de Maquiavel – certamente, não aos romanos na Grécia, nem ao que supostamente deveriam fazer
os franceses na Itália, tal como examina no terceiro capítulo de O Príncipe.
A descrição do comportamento prudente medieval como entendida por Pocock, de
qualquer forma, é muito similar às recomendações de Maquiavel aos príncipes hereditários. A eles,
Maquiavel recomenda “não preterir as ordenações de seus antepassados e, depois, saber
contemporizar segundo os acontecimentos”. E, no entanto, Maquiavel não se refere à habilidade
332 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, pp. 24-25
114
do príncipe hereditário como prudente ou o caracteriza como sábio, pelo contrário, ele nos diz,
trata-se de mera “capacidade ordinária” 333. Se consideramos também como Maquiavel aborda as
conquistas “da mesma província e língua”, “costumes e ordenações” do conquistador, vemos
também lá a recomendação de se manter “as antigas condições”334 e de se integrar o principado
conquistado ao antigo. E, no entanto, novamente, a prudência como habilidade não é citada; ao
contrário, novamente, o que é ressaltado é como “podem facilmente ajustar-se” as condições para
o príncipe, neste caso. É para avaliar os feitos dos romanos em território grego, “na conquista de
estados numa província de língua, costumes e ordenações diferentes”, quando “se encontram [...]
dificuldades” a serem superadas com “muita habilidade”335, que Maquiavel se utiliza do termo
pela primeira vez em O Príncipe. Neste caso, o costume e a ordem estabelecidos pesam contra o
príncipe, não a favor dele, e a prudência do conquistador não pode ser o mesmo comportamento
ordinário ou integrador dos que têm o costume ao seu lado, aquele comportamento
tradicionalmente chamado de prudente. Estamos diante de uma disputa, de uma ruptura, que se
revela no uso do termo prudência. Esta disputa não ocorre pela fundação de uma nova teoria
política, mas pelo teste e flexibilização de noções da teoria tradicional em vista de um caso
particular que as desafia. Assim, como mostra Lefort,
o caso da conquista é [...] privilegiado, pois ele torna de imediato sensível o problema para o qual o príncipe deve encontrar uma solução se quer se manter no Estado: trata-se para ele de resistir aos adversários que sua empresa suscitou, de se inscrever o mais rapidamente possível no sistema de forças que sua própria ação modificou e cujas perturbações tendem a se prolongar as suas custas. Assim, suas ações são determinadas pelo estado de guerra no qual se encontra ao mesmo tempo vis-à-vis com outros príncipes e vis-à-vis com seus súditos; e sua política só pode ser uma estratégia análoga àquela de um capitão que, tendo ocupado sobre o terreno a posição cobiçada, esforça-se em frustrar as iniciativas de inimigos decididos a repreendê-lo. 336
A prudência do conquistador ainda é a habilidade de fazer uso da experiência a fim de que
bons resultados sejam alcançados; de usar as circunstâncias dadas a favor da manutenção do poder
e, a partir delas, prever e precaver. No entanto, a execução desta habilidade muda completamente
quando se trata da conquista. Nestes casos, a imagem tradicional do sábio paciente esfumaça-se e
dá lugar à imagem do capitão astuto. A necessidade do pensamento estratégico e da celeridade da
ação, também características da noção clássica de prudência, eclipsam a tradicionalmente
sublinhada característica de basear-se na experiência esperando confirmação de mais experiência.
A prudência na conquista deve realizar um trabalho mais complexo: basear-se na experiência
esperando a transformação da experiência. Pocock nos explica que
333 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo II, p. 7 334 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 10 335 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.11, nossos itálicos. 336 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, pp. 352-353
115
a segunda metade do capítulo III é a primeira tentativa n[a] análise estratégica do mundo deslegitimado dos que buscam poder [power-seekers], que [...] traz o pensamento de Maquiavel ao foco mais agudo; e é aqui que escutamos pela primeira vez a asserção de que a necessidade primária do comportamento estratégico é a ação. A alternativa à ação é adiamento e temporização, e, uma vez que o tempo se tornou domínio da pura contingência, é impossível temporizar, porque não pode haver nenhuma suposição segura sobre o que o tempo trará; ou ainda, a única suposição segura deve ser que, a não ser que se aja a respeito, ele trará mudanças desvantajosas. Alguém tem poder, e outros não têm; a única mudança que pode vir é que outros vão ganhar poder, fazendo perder poder o que antes era poderoso. Os romanos sabiam muito bem que a guerra não deve ser evitada, e sempre escolheram lutar contra seus inimigos agora do que depois.337
Seguindo o pensamento de Pocock, o foco mais agudo de Maquiavel não está no monarca
hereditário estabelecido em seu território e, portanto, no mundo de complexos esquemas de
legitimação; está, antes, no mundo deslegitimado dos que buscam mais poder (os power-seekers).
A primeira tentativa de análise deste mundo é o exame dos procedimentos do conquistador (o
Capítulo III). Esta análise só pode ser estratégica. Não faz sentido se perguntar quão autorizado
pelos costumes é o comportamento do príncipe, uma vez que estamos no mundo deslegitimado,
no domínio da pura contingência. O que se questiona é quão efetivo é este comportamento, o
quanto ele encontra nas condições dadas uma possibilidade para sua efetivação, bem como o
quanto é capaz de alterá-las a seu favor. Neste sentido, a análise e a própria ação do príncipe são
estratégicas, e, nos diz Pocock, a necessidade primária da estratégia é a ação. Ele opõe como
alternativa à ação a temporização e o adiamento. Adiar, deixar que as condições se desenvolvam
livremente, sem interferências, e temporizar, como recomenda Maquiavel no segundo capítulo, de
forma que as deliberações do príncipe adaptem os acidentes à ordem de coisas já estabelecida, são
procedimentos úteis somente para os governantes que não sofrem resistências do costume
estabelecido e que, portanto, não precisam demonstrar nenhuma capacidade especial, nenhuma
sabedoria excepcional. Prudentes, em O Príncipe, são os antigos romanos, que usaram sua
sabedoria política, o entendimento das condições dadas, a seu favor onde estas condições eram
muito desfavoráveis e dificultosas. A partir deles, Maquiavel pode pensar a prudência do
conquistador.
Neste sentido, devemos pensar a reflexão de Maquiavel quanto à noção de prudência não
como uma mudança radical do pensamento político, mas, como coloca Charbel, uma “redefinição
da prudência”. Segundo o comentador,
a prudência não deixa em absoluto de ser concebida como recto ratio agibilium; é precisamente a noção de “razão reta” que se transforma, distanciando-se da ideia de que modelos universais possam ser intuídos e realizados em ações particulares, e aproximando-
337 J.G.A. Pocock. The Machiavellian Moment: Florentine Political Thought and the Atlantic Republican Tradition, pp.165-166
116 se de um entendimento mais pragmático calcado na valorização dos efeitos das ações dos agentes envolvidos e na antevisão das possibilidades em jogo no tabuleiro da política. 338
O comentador explica que as mudanças no conceito de prudência realizados por Maquiavel decorrem
de sua preocupação com o preceito retórico da verdade efetiva. Na medida em que esta verdade é
“provisória, circunscrita e retórica”339, suas afirmações só fazem completo sentido se consideradas a
partir das circunstâncias particulares que pretendem examinar. Assim, as modificações no conceito
de prudência são decorrentes da circunstância específica da conquista, que só pode ser efetivamente
aconselhada quando se flexibiliza esta noção.
Maquiavel, portanto, aborda a questão da inovação política utilizando-se do parâmetro
essencialmente retórico da verdade efetiva. Com isso, pode flexibilizar asserções políticas
tradicionais, que se concebem geralmente como razoáveis ou prudentes, às condições particulares da
conquista e do conquistador. Esta flexibilização tem uma função essencial, uma vez que é por ela que
Maquiavel pode mostrar que, diante das dificuldades e necessidades impostas pela inovação da
conquista, a ação política assume características particulares. Neste sentido, podemos adentrar o
terceiro capítulo da dissertação, que aborda a inovação política da fundação do stato ou a passagem
de homem privado a príncipe. Neste caso, a inovação é fonte das dificuldades mais extremas e a
necessidade de inovar é virtualmente irreversível. Assim, o discurso de Maquiavel precisa usar ainda
mais profundamente as potencialidades retóricas de seu discurso, indo além da flexibilização de
preceitos prudentes e tradicionais, mas propondo uma ponderação sobre os próprios limites da ação
calculada. Esta ponderação se dá por via alegórica: a alegoria da fortuna enquanto força violenta e
irresistível da imprevisibilidade dos eventos e a virtù enquanto capacidade de enfrentar esta força.
338 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p. 82 339 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros : retórica, prudência e história em Maquiavel e Guicciardini. 2008. Tese (Doutorado em História Social da Cultura) – Departamento de História, PUC-Rio, p. 84
117
Capítulo 3: Fundação do stato, passagem de homem privado a príncipe e a relação entre virtù
e fortuna
Agora examinamos o caso da fundação do stato ou a passagem de homem privado a príncipe.
Aqui, as dificuldades e necessidades impostas pela inovação são as mais elevadas. O príncipe deve à
inovação não somente sua conquista, mas sua posição mesma enquanto príncipe, de tal forma que as
dificuldades e necessidades da inovação assumem um caráter perigoso. Além disso, aquele que passa
de homem privado a príncipe não pode contar com nenhuma estrutura anterior de costumes, buscando
ponderar entre em que medida o costume estabelecido pode ser aproveitado ou combatido. O espaço
para a ponderação prudente se torna extremamente limitado. A resistência ao inovador e a dificuldade
de inovar são esmagadoramente maiores que as possibilidades de mobilizar as condições
estabelecidas em favor do príncipe. Neste sentido, o que observamos é um deslocamento da
abordagem feita por Maquiavel. A capacidade de agir de forma cirúrgica e calculada é afetada pela
extrema resistência dos costumes, e a capacidade do príncipe é agora descrita pelo autor nos termos
da limitação da capacidade humana e das vias razoáveis ou prudentes de ação. Não que a prudência
não faça parte fundamental da ação do fundador, mas ela não é suficiente. Certos atributos distantes
ou em atrito com o que se concebe por uma atitude calculada são exigidos, tais como introduzir a
imprevisibilidade, a audácia, a força de ânimo e o carisma na ação política.
Buscamos mostrar, assim, primeiramente que (3.1), quando se passa ao caso da fundação do
stato a terminologia escolhida por Maquiavel é aquela da relação entre virtù e fortuna. Não que ela já
não estivesse presente no exame da conquista, mas na fundação ela ganha total eminência. A
passagem de homem privado a príncipe e sua permanência nesta posição exigem virtù e fortuna. Esta
relação exprime, nas reflexões de Maquiavel, as limitações da ação humana e é a respeito desta
limitação que parece incidir primordialmente o conselho do autor aos fundadores, àqueles que passam
de homens privados a príncipes. Fundar o stato, tornar-se príncipe, é uma das ações mais difíceis a
serem almejadas, pois ela coloca o agente sempre em uma relação crua e inevitável com a fortuna.
Para mostrar isso (3.2), buscaremos explicar como Maquiavel entende a noção de fortuna e
por que é esta a alegoria usada para mostrar o conflito extremo com os costumes estabelecidos. A
fortuna é a alegoria para o imprevisível, para o aleatório e para o extraordinário. Quando o príncipe
está cercado somente por forças que lhe são inimigas e imprevisíveis em função da inovação, ele está
diante da fortuna. A Fortuna, enquanto figura mitológica da qual Maquiavel extrai sua alegoria,
118
assume um caráter sobre-humano, e a peculiar imagem com a qual nosso autor a pinta chega a assumir
um caráter insuportável aos homens.
Neste sentido (3.3), vemos a noção de virtù, enquanto habilidade de relação com a fortuna,
como uma capacidade extremamente elevada, ela mesma parecendo estar acima das capacidades dos
homens comuns. É o que parece indicar o primeiro caso de fundadores examinados por Maquiavel:
Moisés, Ciro, Rômulo, Teseu. A estes homens está associada a virtù necessária para não dependerem
da fortuna, a não ser pela ocasião provida por ela. No entanto, a estes homens estão também
associadas capacidades sobre-humanas, feitos excelentíssimos dificilmente alcançáveis por homens
comuns. O exame, assim, passa a ser não o de delimitar propriamente e com certeza o que é virtù,
mas em que medida os homens comuns podem atingi-la, mesmo que imperfeitamente, para tentarem
se aproximar da virtù exigida na fundação. Passa a interessar a Maquiavel que a fortuna dificilmente
pode ser excluída da fundação: a verdade efetiva é que os homens são extremamente dependentes da
fortuna para fundarem seus stati. Neste sentido, quando se passa para o exame da virtù dentro dos
limites humanos e não envoltos em mitos sobre-humanos ou na graça divina, revelam-se aqueles
aspectos da ação humana que ultrapassam, mas não abandonam, a ação calculada, a razoabilidade e
a legitimidade tradicional. Podemos ver isso notadamente expresso no exemplo de César Borgia. A
longa narrativa que Maquiavel faz das ações do duque exprimem justamente o que uma linguagem
conceitual falha em exprimir: as muitas particularidades, a exigência de disposições antagônicas, a
capacidade de agir com a cabeça e o fígado, de mudar de rapidamente de planos ou improvisar. Tudo
isso dentro das capacidades humanas, pois Borgia, mesmo apresentando toda virtù humanamente
possível, ainda assim falhou diante da fortuna
3.1. A passagem de homem privado a príncipe ou a fundação do stato
O sexto capítulo de O Príncipe introduz uma nova condição de inovação política. Remontando
a uma das categorias enunciadas no primeiro capítulo, Maquiavel se refere aos “principados
inteiramente novos”, novos “de príncipes e principados”340. Com isso, entramos no caso da fundação
do stato, isto é, no caso em que novas ordenações e modos são introduzidos a fim de que o príncipe
possa fundar seu stato. E, para entendermos adequadamente o que isso significa, devemos estar
atentos ao sentido (que salientamos no primeiro capítulo da dissertação) que o stato tem em O
Príncipe: o de exercício efetivo e ordenado do poder ou do comando político, sempre atrelado a um
agente. Deste modo, o que implica primariamente a fundação do stato é a fundação do stato do
príncipe, é a “passagem de homem privado a príncipe”341. Assim, torna-se secundário se o corpo
político, a cidade ou província estão sendo conquistados ou também fundados, mas que, por esta
340 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 25 341 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, pp. 25-26
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conquista ou fundação, funda-se também o império sobre homens de um príncipe, seu stato. Portanto,
não se trata primariamente da fundação da cidade ou do reino, mas do stato nela imperante, o stato
do novo príncipe. O stato, no caso dos principados, é fundado na medida em que seu governante se
torna príncipe com ele, na medida em que adquire império sobre os homens.
O que distingue a inovação neste momento do livro, o que a faz total ou completa, é que ela
não significa a expansão ou anexação de novos membros a um stato hereditário, quando o príncipe
não é novo enquanto príncipe, mas enquanto governante em seus novos stati adquiridos. Significa,
antes, ser a posição de comando ela mesma nova: o príncipe novo se torna príncipe pela aquisição do
principado. Neste sentido, é fundamental e carregada de consequências a observação de Maquiavel
sobre ser o príncipe, nestes casos, “obrigado a ir pessoalmente habitar o novo stato por não dispor de
outros”. Este fato, brevemente notado pelo autor como um “que cria facilidades”342, determina em
que medida os fundadores enfrentam sua inovação enquanto necessidade e dificuldade. Este fato
baliza as diferenças mais importantes entre os que expandem seus stati e os que os fundam. Deve-se
notar, assim, que a introdução de novos modos e ordens na passagem de homem privado a príncipe
deve fundar não somente o stato do príncipe, mas também “sua segurança”. E a enfatizada
preocupação com a segurança do príncipe é reiterada na sequência do texto maquiaveliano ao se
salientar não somente que a inovação é "difícil de se fazer", mas também “perigosa de manejar”343.
As dificuldades encontradas por aqueles que pretendem fundar seus stati nascem da
necessidade que o fundador tem de inovar. A inovação, como Maquiavel não deixa de afirmar ao
longo de todo o livro, ofende muitos, atraindo muitos inimigos. No caso da fundação, estes inimigos
são potentes, pois se beneficiam das condições presentes e querem por isso defendê-las. É bem
verdade que a inovação pode atrair o apoio de alguns, mas estes não serão aliados fortes. Isto porque
defendem a inovação com tibieza. Assim o fazem por medo dos adversários à inovação, que
ferozmente defendem a permanência do estado presente de coisas, ou por incredulidade, na medida
em que ainda não tiveram uma firme experiência dos benefícios prometidos pela mudança e, portanto,
defendem a mudança tibiamente. A condição do fundador, neste caso, assemelha-se a do príncipe
hereditário enquanto conquistador de novos stati. Como vimos, o conquistador também está
estabelecido diante de um dúbio apoio dos amigos, que se frustram em suas expectativas, e um
violento ataque dos inimigos. E isto em decorrência das mesmas razões pelas quais o príncipe
hereditário facilmente mantém o principado herdado - pela facilidade em se seguir a necessidade de
não inovar e, consequentemente, de não ofender seus súditos. Quando se conquista, impõem-se a
necessidade de inovar e, junto dela, as dificuldades consequentes da inovação. Dificuldades que se
sentem com ainda mais peso na passagem de homem privado a príncipe.
342 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 26 343 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 27
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Os príncipes novos, sejam eles os que passam de homens privados a príncipes ou príncipes
hereditários que conquistam novos stati, encontram-se emaranhados entre a necessidade de inovar e
a dificuldade em o fazer, precisando encontrar sua via de ação entre estas duas constatações.
Entretanto, uma diferença fundamental separa estes dois agentes. Enquanto o conquistador pode
contar com outros domínios que também são seus, o fundador perderia sua posição de príncipe caso
perdesse o stato que fundou. Assim, o conquistador, caso perca a sua conquista, tem a oportunidade
de reconquistá-la, estando seguro em seu principado hereditário, o que não pode fazer o fundador.
Além disso, o conquistador, enquanto estabelecido e forte em outro stato, pode buscar algum apoio
nas condições dadas de sua conquista. Maquiavel insistia no terceiro capítulo que um conquistador
“precisará do apoio dos habitantes para penetrar numa província" e, para tanto, pode contar com “o
fato de os homens mudarem de bom grado de senhor, acreditando, com isso, que irão melhorar”344.
Maquiavel nos diz que “sempre acontecerá de” um forasteiro poderoso “ser trazido por aqueles que
se sentem descontentes”. Foi contando com o apoio dos milaneses que os franceses foram trazidos à
Itália; e foi pela entrada dos espanhóis que os franceses perderam Nápoles. “A ordem de coisas é tal
que”, explica-nos Maquiavel, “tão logo um forasteiro poderoso entre em uma província, todos os que
nela são menos poderosos unem-se a ele”345.
Em relação aos fundadores, àqueles que passam de homens privados a príncipes, a ordem de
coisas é diferente. Sobre eles supõe-se que “não é razoável que saibam comandar tendo sempre vivido
em privada fortuna”346, de forma que a tibieza de seus apoiadores é o que se destaca, junto do
obstinado partidarismo do ataque de seus inimigos. O fundador de seu stato não pode ser, o mínimo
que seja, dependente da ordem vigente de coisas. Isto porque tal ordem de coisas se apresenta a ele
não como algo do qual ele possa tirar proveito e com o qual ele possa se reconciliar, mas como total
imprevisibilidade, extrema variabilidade, como fortuna. Pocock entende que, enquanto um estudo
analítico da inovação e suas consequências, O Príncipe “vai [...] à análise do [...] problema da
fortuna”, de forma que “o tratamento de Maquiavel em relação ao ‘novo príncipe’ [...] considera-o
[...] como agindo [...] em sua relação com” ela - símbolo da “pura, incontrolada e deslegitimada
contingência”347. Assim, para Pocock, mais que, como já notamos, uma tipologia de inovadores, O
Príncipe também examina “a relação” destes inovadores “com a fortuna” 348 . Esta relação é
344 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.9 345 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.13 346 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p.29 347 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.156-157 348 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.158
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fundamental na medida em que a “inovação [...] abre as portas para a fortuna”349 . Neste sentido, o
príncipe hereditário é legitimado pelo costume e pela tradição, é relativamente invulnerável à fortuna, e tem pouca necessidade de virtù extrardinária [...] o reverso é verdade para o novo príncipe. Maquiavel está, portanto, empregando antigo costume [...] como antítese de fortuna e virtù; é quando o primeiro está faltando que as relações entre a segunda e a terceira se tornam cruciais350
Se seguimos o pensamento de Pocock, portanto, o confronto com a fortuna é uma constante
em todo o livro. O príncipe hereditário que conquista novos domínios também entra em confronto
com a fortuna. No terceiro capítulo, Maquiavel diz ser “necessário ter muita fortuna e muita
habilidade para” manter a “conquista de stati numa província de língua, costumes e ordenações
diferentes”351 das do conquistador. No entanto, “Maquiavel procedia sobre a assunção de que as
situações dominadas pela fortuna não eram uniformemente caóticas; havia variações estratégicas
nelas”352, de modo que se faz notar nas reflexões que Maquiavel dedica à conquista de novos stati
por príncipes hereditários uma ênfase maior na habilidade do conquistador - sua prudência, como
vimos – do que em sua dependência da fortuna. Quanto mais o inovador, explica Pocock, “podia
transferir para si a legitimidade habitual gozada por seu predecessor, menos ele estava exposto ao
confronto nu da virtù e da fortuna, e menos urgente sua necessidade de virtù [...] se tornava”. Assim,
a análise de Maquiavel dedicada à anexação de novos stati lidaria mais enfaticamente “com a relação
entre o poder do novo príncipe e a estrutura de costume da sociedade sobre a qual ele o adquiriu”353,
da qual o conquistador pode tomar proveito para si, afastando-se da força da fortuna por um
comportamento prudente.
Notamos que, depois do primeiro capítulo, os termos fortuna e virtù aparecem poucas vezes
e são pouco enfatizados pelo autor até o sexto capítulo, além disso não estão diretamente relacionados
entre si até este capítulo. Como já citado, Maquiavel faz uma referência à fortuna no terceiro capítulo,
em conjunção à grande indústria e não propriamente à virtù. Virtù, por sua vez, aparece no terceiro
capítulo junto da prudência, ambas no sentido da capacidade do príncipe de agir no lugar de aproveitar
os benefícios do tempo354. Também aparece no quarto capítulo - “a virtù do vencedor”355 - sem
relação com a fortuna e significando mais genericamente a habilidade ou capacidade do vencedor.
349 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.160 350 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, pp.158-159 351 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.11 352 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.161 353 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.162 354 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.15 355 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo IV, p.22
122
Faz-se notar, assim, a partir do sexto capítulo, não somente uma maior ênfase na fortuna como
resultado da inovação, mas também que a noção de virtù toma o sentido mais específico de habilidade
pela qual entra-se em contato com a fortuna. Maquiavel escreve Digo, portanto, que nos principados completamente novos onde há um novo príncipe existe maior ou menor dificuldade para mantê-lo conforme seja maior ou menor a virtù de quem os conquistou. E, como a passagem de homem privado a príncipe supõe virtù ou fortuna, parece que uma ou outra dessas duas coisas ameniza, em parte, muitas das dificuldades. Contudo, aquele que contou menos com a fortuna manteve-se por mais tempo.356
Podemos ver que aqui, expressamente, a investigação passa a focar nas “gradações em que a
inovação” torna o príncipe "dependente da fortuna”357 . Vemos também a noção de virtù como, mais
especificamente, relacionada à fortuna. Isto introduz o discurso de Maquiavel em uma longa tradição
de pensamento, como mostra Pocock, na qual "virtu era aquilo pelo qual o bom homem impunha
forma sobre sua fortuna”358. Esta maneira de compreender a noção de virtù, sempre enquanto resposta
à fortuna, estava fortemente presente na vida política dos antigos romanos, é passada para a tradição
boeciana em termos cristãos e depois recebida politicamente pelo Humanismo Cívico. Maquiavel
estaria intervindo nesta tradição de pensamento, direcionando a questão sobre a relação virtù-fortuna
para o problema da inovação: “o que Maquiavel está fazendo [...] é perguntar se há alguma virtù pela
qual o inovador [...] pode impor forma sobre sua fortuna”359
Apesar da forma aparentemente disjuntiva como estas noções são apresentadas, trata-se de
uma relação mais complexa. Virtù e fortuna são termos relacionados no pensamento de Maquiavel e,
se o autor nos diz no sexto capítulo que alguns contaram mais ou menos com sua virtù, ou mais ou
menos com sua fortuna, ele nos descreve, na verdade, quão dependente ou independente da fortuna
alguém se tornou por meio de sua virtù. Alguns “não receberam da fortuna mais do que ocasião”,
ainda assim, “sem ocasião, a virtù de seu ânimo se teria extinto”360. Virtù é a relação (seja de
enfrentamento, de anuência, de precaução, de submissão, etc.) que se estabelece com a fortuna em
proveito do agente. Esta habilidade, a de se relacionar com a fortuna, é salientada por Maquiavel
como a apropriada aos fundadores. É com ênfase nestes termos que a passagem de homem privado a
príncipe é abordada por Maquiavel a partir do sexto capítulo. Portanto, as dificuldades enfrentadas
pelos inovadores são entendidas nos termos da força da fortuna; é ela que deve ser enfrentada, a
dificuldade a ser superada, pelos fundadores de seus stati. Portanto, busquemos, primeiramente,
356 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, pp.25-26 357 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.162 358 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.157 359 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, 2003, p.157 360 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 26
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examinar esta noção, mostrando seu sentido e relação com a virtù na obra de Maquiavel, bem como
em que medida o autor a relaciona com a inovação política, especialmente a fundação do stato.
3.2. Fundação e fortuna Para podermos compreender em que medida a fundação de principados está sempre em
alguma relação com a fortuna, precisamos esclarecer o que Maquiavel entende por esta noção.
Entendemos fortuna, em geral, como sorte ou azar, falamos dos que são bem ou mal-afortunados. A
noção de fortuna de Maquiavel abarca também uma concepção neste sentido, mas é mais ampla. A
fortuna poderia ser definida como a aleatoriedade e imprevisibilidade dos acontecimentos. Refere-se
ao fato de que muitas das coisas que acontecem, boas ou ruins, não podem ser previstas ou
justificadas. À fortuna atribui-se tudo aquilo que devemos deixar em aberto em nossas previsões, a
tudo aquilo que não podemos prever. A força da fortuna se apresenta em muitos âmbitos. Quando se
joga um dado ou quando se conta com a vontade de outros (de quem não podemos prever as reações),
estamos sob o domínio da fortuna. Maquiavel está interessado em como a força da fortuna influi e
determina a esfera dos assuntos humanos, especialmente a política. Ele está interessado, por exemplo,
nos feitos do papa Júlio II, que procedeu com audácia em suas ações, surpreendendo todos a sua volta
e arriscando-se em decisões cujos resultados eram muito incertos361. O autor dedica o capítulo XXV
de O Príncipe à discussão deste tema. Questionando- sobre o poder da fortuna nas coisas humanas,
Maquiavel faz a seguinte reflexão:
Não ignoro que muitos foram e são de opinião de que as coisas do mundo são governadas de tal modo pela fortuna e por Deus que os homens não podem corrigi-las com a prudência, e até não têm remédio algum contra elas. Por isso, poder-se-ia julgar que não devemos incomodar-nos demais com as coisas, mas deixar-nos governar à sorte. Essa opinião tem recebido mais crédito em nossos tempos devido às grandes variações das coisas que foram e são vistas todos os dias, além de qualquer conjectura humana. Pensando nisso, às vezes me sinto inclinado a essa opinião. Entretanto, para que nosso livre-arbítrio não seja eliminado, julgo possível ser verdade que a fortuna seja árbitro de metade de nossas ações, mas que também deixe a nosso governo a outra metade, ou quase.362
Se supuséssemos que todas as coisas do mundo são governadas pela fortuna, os homens,
então, não poderiam corrigi-las ou remediá-las. Ora, uma vez que a fortuna é aquilo que não podemos
prever, se as coisas do mundo forem governadas por ela, então não poderíamos prever nada e não
poderíamos agir para alterar nossas condições. De tal forma, seria melhor deixar-se governar à sorte,
sem se preocupar em como se age no mundo. Maquiavel justifica que esta opinião recebe crédito,
posto que é possível observar no mundo variações extremas, que escapam às conjecturas humanas. O
autor se sente inclinado a esta opinião. Apesar de ainda querer propor uma forma de agir diante da
361 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p. 122 362 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p.121
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fortuna, Maquiavel não deixa de reconhecer a sua imensa influência sobre o campo político e como
é difícil e incerto agir em momentos de variações extremas e imprevisibilidade. Diante da fortuna,
uma capacidade extraordinária é exigida do agente. Esta capacidade é a virtù.
Tendo isso em consideração, começamos a entender a constante relação do inovador com a
fortuna, bem como a consequente necessidade de se agir com virtù. O fundador está sempre sob as
forças da fortuna. São muitos os fatores imprevisíveis e as variações de circunstâncias que cercam
aquele que tem a tarefa de fundar e manter um principado. As condições em que se encontram os
fundadores são tais que a imprevisibilidade se torna uma constante. Antes, no entanto, de
examinarmos tais condições, devemos nos questionar como, dada a caracterização que demos à
fortuna, seria possível qualquer tentativa de ação diante dela. Como poderia haver qualquer tipo de
ação diante da pura imprevisibilidade? Ora, se pensamos a fortuna como mera imprevisibilidade,
como aquilo que se encontra fora do alcance da ação humana, seria natural julgá-la como irrelevante
politicamente. Bignotto mostra que no pensamento de Aristóteles a questão da fortuna – a tyche363 -
era, em princípio, do quadro de discussões sobre a física: para Aristóteles,
a ‘fortuna’ existe quando a causa se produz por si mesma, em vão. Enquanto conceito, no entanto, ela só revela seu sentido quando analisada junto com o “azar” (“automaton”), do qual faz parte. Ou seja, a “fortuna” é um caso particular do azar, é o azar aplicado aos seres capazes de escolher, e não a todos os seres.
Enquanto entendida nestes termos, à fortuna era reservado “um papel pequeno na definição de vida
política”. Sob “a imagem fria do azar” 364, o pensamento sobre a tyche em Aristóteles, enquanto
conceito e não como divindade, apresentava poucas consequências políticas.
Para entendermos como a questão da fortuna adquire contundência política e é herdada neste
sentido pelo pensamento de Maquiavel, devemos considerar que, “com os pensadores romanos,
tivemos uma mudança na maneira de considerar a ‘fortuna’”, ela “passa a ocupar um lugar de
destaque no pensamento político romano”. A noção física, “fria”, de “automaton” dá lugar a uma
“ideia de uma força volúvel e caprichosa, que escolhe seus prediletos e seus inimigos”. Bignotto
descreve este processo como a “humanização do conceito” de fortuna e atribui-lhe o papel de “peça-
chave no esforço de compreensão da vida social” 365. Certamente, somente com a humanização da
ideia de fortuna, ela pôde adquirir a contundência política que adquiriu e carregou no pensamento
político até os tempos de Maquiavel. Somente saindo do silencioso movimento necessário da natureza
e adquirindo uma vontade, ainda que caprichosa, ainda que com igual potência para nos favorecer e
para nos prejudicar, pôde a fortuna estar ao alcance da ação e compreensão política do homem.
363 cf. também T. FLANAGAN. “The concept of fortune in Machiavelli” in A. PAREL The Political Calculus, 1972 364 BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo, SP: Loyola, 1991, p. 142 365 BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo, SP: Loyola, 1991, p. 142
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Foi, portanto, não tanto como conceito filosófico, mas como alegoria política e religiosa que
a fortuna entrou para a história do pensamento. Flanagan explica que o termo “é formado
adjetivalmente do latim fors (sorte [luck]), que é por último derivado da raiz ferre (trazer). Então, o
núcleo do significado de fors é ‘o que é trazido’; e a Fortuna é aquela que o traz”366. A ação implícita
na etimologia do termo distancia-o do que modernamente chamamos acaso, “[chance], isto é, eventos
que parecem ocorrer aleatoriamente”. No lugar da fria aleatoriedade, a alegoria da Fortuna implicava
“uma pessoa ou poder não visível que trabalha de modos inescrutáveis para nós”. A fortuna
representava uma vontade, ainda que a vontade divina - “enquanto elástica, imprevisível”, mas
“aberta à influência da súplica humana”. Assim, “o culto à Fortuna não era uma redenção ao acaso e
à aleatoriedade na qual o esforço individual era abandonado; era muito mais uma tentativa de aplacar
a deusa para que ela sorrisse a uma empresa. A Fortuna pode ser caprichosa, mas seu comportamento
não é aleatório” 367. Foi preservando seu sentido alegórico e originalmente religioso que o tema da
fortuna “ocupou uma posição [...] proeminente”, tanto “na alta cultura da antiguidade – na filosofia,
literatura, história e arte”, quanto “nos cultos e superstições populares”.. A partir deste sentido dado
à fortuna, torna-se “parte do debate da sabedoria convencional da antiguidade debater as respectivas
contribuições para o sucesso da virtus, ou habilidade humana, e da fortuna, ou favor divino”368.
A fortuna em seu sentido alegórico e o debate que ela suscita sobreviveram ao colapso do
Império Romano, permanecendo na imaginação cristã. No entanto, sua imagem mudou quando
“adotada por uma civilização com um espírito diferente”. A promessa de abundância e a imagem da
Bona Dea dão lugar a uma “figura mais sombria” da Fortuna “cuja colorida imagética se perdeu” 369.
Permanece somente a roda, que a “Fortuna maldosamente gira”, de forma que “homens sobem e
descem inexoravelmente na concepção medieval”, havendo “pouco, se algum, espaço de
manobra”.370 Aquilo que a cultura romana havia promovido com a humanização da fortuna, a saber,
trazê-la ao alcance da ação, é suprimido pela cultura cristã, que dava pouca potência à empresa
humana e lugar secundário para vida ativa. Foi, no entanto, por ter permanecido como alegoria e por
ainda suscitar o debate sobre a capacidade da ação humana que a fortuna se tornou uma das principais
vias para a resposta do renascimento e seu humanismo à impotência humana pregada pelo
cristianismo medieval.
Ernst Cassirer, em O Indivíduo e o Cosmos na Filosofia do Renascimento, nota como o
caráter alegórico da noção de fortuna tem especial efeito no espírito da renascença. Para o filósofo
366 T. FLANAGAN. “The concept of fortune in Machiavelli” in A. PAREL The Political Calculus, 1972, p.129. Minha tradução para as citações deste texto. 367 T. FLANAGAN. “The concept of fortune in Machiavelli” in A. PAREL The Political Calculus, 1972, p.130 368 T. FLANAGAN. “The concept of fortune in Machiavelli” in A. PAREL The Political Calculus, 1972, p.131 369 T. FLANAGAN. “The concept of fortune in Machiavelli” in A. PAREL The Political Calculus, 1972, p.131 370 T. FLANAGAN. “The concept of fortune in Machiavelli” in A. PAREL The Political Calculus, 1972, pp.131-132
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alemão, era característico da cultura renascentista que o “pensamento não” estivesse “enclausurado
em si mesmo [...] antes, esforçava-se por símbolos visíveis”. Para ele, “Giordano Bruno [...], expoente
[...] claro destas disposição e atitude básicas da filosofia renascentista, [...] mantinha [...] que, para o
conhecimento humano, as ideias só podem ser apresentadas e incorporadas na forma de imagens.”371
O tratamento alegórico dado à fortuna - se não sua humanização, ao menos sua associação a uma
força determinada por uma vontade (ainda que não humana ou sobre-humana) - é o que permite
Giordano Bruno, segundo Cassirer, conceituar politicamente os limites da ação humana diante da
determinação do cosmos. Se a tomamos em sua alegoria romana, em seus traços humanos, há a
possibilidade se submetê-la à mesma influência que toda ação humana está submetida – ao
convencimento, ao engano ou à força. Enquanto alegoria, a fortuna passa, mesmo que numa
possibilidade muito remota, a estar sob influência das capacidades humanas. E, assim, no pensamento
de Giordano Bruno, Fortezza (coragem) assume o lugar da honra; mas ela não deve ser entendida somente em sua significação ética ou em sua limitação moral. Ao manter o sentido etimológico original de virtus, cuja ideia ela expressa, Fortezza significa a força da virilidade ela mesma, a força da vontade humana, que se torna a domesticadora do destino, a domitrice della fortuna.372
Cassirer mostra que encontramos na alegoria da fortuna e seu embate com a força da vontade
humana, virtus, “a raiz final à qual devemos sempre retornar se quisermos compreender em sua
verdadeira profundidade as doutrinas filosóficas da Renascença quanto à relação entre liberdade e
necessidade”. A redescoberta dos clássicos, a proeminência da perspectiva humanista e a valorização
da vida política entravam em combate com o mundo medieval através deste par conceitual. Cassirer
descreve que “as formas rígidas medievais da Fortuna foram mantidas por um longo tempo; mas [...]
outros motivos emergiam com crescente força”373. Tratava-se, nas palavras do filósofo, de uma nova
tensão. Uma busca por “fórmulas intelectuais de equilíbrio entre a ‘fé medieval em Deus e
autoconfiança do homem do Renascimento’”374.
A autoconfiança do homem do renascimento tinha imensa potência. Neste ambiente
intelectual, veríamos “a representação da Fortuna como um veleiro. E esta embarcação não é
controlada somente pela Fortuna – o homem ele mesmo a está conduzindo”375. No entanto, ainda era
forte a influência da igreja e do cristianismo como visão de mundo como contrapeso ao otimismo
humanista. Além disso, especialmente no início do século XVI, a confiança nas capacidades humanas
foi abalada, não por forças retroativas do ideário cristão, mas pela realidade política em que se
encontrava a Itália, berço do Renascimento. A ambição política dos poderosos italianos, resultado ao
371 CASSIRER, Ernst. The individual and the cosmos in Renaissance philosophy. Mineola, NY: Dover, 2000 p.74. Minha tradução para as citações deste texto. 372 CASSIRER, Ernst. The individual and the cosmos in Renaissance philosophy. Mineola, NY: Dover, 2000 p.75 373 CASSIRER, Ernst. The individual and the cosmos in Renaissance philosophy. Mineola, NY: Dover, 2000 p.75 374 CASSIRER, Ernst. The individual and the cosmos in Renaissance philosophy. Mineola, NY: Dover, 2000 p.76 375 CASSIRER, Ernst. The individual and the cosmos in Renaissance philosophy. Mineola, NY: Dover, 2000 p.77
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menos indireto da cultura da glória política do humanismo, causou imensa instabilidade social e
violência nas cidades italianas. O evento limite dessa instabilidade e violência foram as invasões
francesas ao território italiano em 1494. Depois delas e do estado de caos e tirania delas resultante, a
imagem da fortuna assumiu traços mais cruéis e a habilidade humana, tons menos otimistas.
Quando Maquiavel, no capítulo XXV de O Príncipe, propõe examinar “quanto pode a fortuna
nas coisas humanas e de que modo se pode resistir-lhe”376, ele está entrando em um debate corrente
do renascimento e respondendo-o nos termos correntes. Aqui, também, a noção de fortuna é usada
para um questionamento sobre os limites da capacidade humana de agir diante da imprevisibilidade
do mundo e, em acordo com a tradição, a fortuna é logo colocada em relação com a noção de virtù.
Em acordo com a tradição, a possibilidade de agir diante da fortuna é sua humanização: “a fortuna é
mulher”. Esse traço humano, ser mulher, é o que permite que se aja diante dela. Por ser mulher -
revela-nos a misoginia de Maquiavel - é que pode (e deve) ser submetida, batida e maltratada377. Se
a humanização do conceito de fortuna, sua abordagem alegórica, é um movimento tão importante na
tradição de pensamento político, é de interesse examinar como Maquiavel aborda esta alegoria e que
traços atribui a ela. Para tanto, antes de examinarmos como o tema é abordado na tecedura de O
Príncipe, será de grande valor algumas considerações sobre outro texto do autor. No poema à
Soderini, Di Fortuna378, podemos ver explorados e expressos com maior ênfase os traços humanos
da fortuna e seu uso como alegoria.
O poema começa sendo dedicado a seu destinatário, Soderini. Maquiavel introduz a seu amigo
o tema de seus versos, bem como a importância deles. O autor canta “o reino da Fortuna/ e seus casos
prósperos e adversos” e como ela reúne, de forma “injuriosa e inoportuna”, todo o mundo sob seu
trono. A contundência de tais versos está, ao mesmo tempo, nos perigos e na inevitabilidade com os
quais a Fortuna “se opõe” aos homens, especialmente “com maior força,/ onde maior força vê ter a
natureza” deles. Concomitantemente, a “natural potência” da Fortuna “cada homem obriga,/ e seu
reino é sempre violento”. Diante desta mortal combinação, os homens não devem “ter medo/ de outras
feridas que não as de seus [da Fortuna] golpes” e buscar “uma grande virtù” que amorteça sua
violência.379 O poema, portanto, versa sobre aquela temática clássica à qual nos referíamos acima
quanto as capacidades e limites da ação humana. É bem verdade que o termo virtù só ocorra duas
vezes no poema – primeiro como capacidade de amortecer a fortuna; depois como algum tipo de
376 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p. p.121 377 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p.125 378 A tradução do poema por Patrícia Fontoura Aranovich foi publicada em 2011 nos Cadernos de Ética e Filosofia Política da USP. Usamos na presente dissertação esta tradução. Na medida em que nos engajamos aqui uma leitura interpretativa do poema e que o vemos como um texto importante para a compreensão da obra de Maquiavel, reproduzimos integralmente a tradução de Aranovich em um anexo no final da dissertação. 379 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.233
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motor das ações humanas380. De qualquer forma, a temática da capacidade e limitação humana diante
da fortuna é evidente.
Depois de uma espécie de invocação da musa às avessas, na qual Maquiavel, no lugar de pedir
inspiração, nota temerosamente a presença da divindade sobre quem escreve a mirá-lo com olhos
furiosos381, o autor passa propriamente às considerações sobre a “volátil criatura”382. Ele começa por
uma asserção comum – a Fortuna “por muitos é dita onipotente”. Esta onipotência, entretanto, não
tem nada da onipotência do Deus cristão. Trata-se, certamente, de uma divindade que “dispõe o tempo
a seu modo” 383, cuja força e potência “qualquer um que venha a esta vida, / cedo ou tarde”384, e até
“mesmo Júpiter” sentem. No entanto, esta potência inexorável não é fruto de uma providência perfeita
e transcendente, que, se é incompreendida pelos homens, é muito mais pela imperfeição e maldade
do próprio homem do que por si mesma. A potência da Fortuna é “sem piedade, sem lei ou razão” 385,
o que caracteriza seu comportamento é a arbitrariedade. Alertar-se sobre a Fortuna, portanto, causa
nos humanos uma sensação muito diferente daquela tranquilidade e passividade cristãs dos que creem
serem governados por um criador onipotente, mas perfeito e justo. O sentimento impresso nos versos
de Maquiavel é a angústia constante quanto à relação estabelecida com um ser de potência sobre-
humana. Pocock explica que a experiência humana medieval era em grande parte baseada em uma
fé repousada na providência divina. A sucessão de eventos temporais particulares podia ser vista como dirigidas por um aspecto da mente divina que, precisamente porque dirigia a sucessão de particulares, era inescrutável e fora de descoberta. A mente humana devia observar o curso dos eventos assim dirigidos e aprender sobre eles dentro de limites; a prudência era a virtude pela qual os homens vivam o presente providencial, assim como era, podemos dizer, o tempo [tense] presente da experiência; mas os modos de Deus devem permanecer para além do alcance do intelecto humano. [...] Como pareceriam [os modos da providência] se não vistos pelos olhos da fé? Este era o ponto no qual o intelecto medieval, mesmo achando impossível descrever uma existência coerente sem a fé, fez uso do símbolo antigo greco-romano de fortuna (fortuna). Fortuna era o que a providência pareceria se não
380 “oculta virtù que nos governa”. [MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich - Cadernos de ética e filosofia politica, n18, 2011, p.241] 381 “E a diva cruel volta, no momento, para mim seus olhos ferozes, e lê o que canto dela e de seu reino. E, ainda que, no alto, sobre todos sente comande e reine impetuosamente, vê quem ousa cantar o seu estado.” [MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011, p.235] 382 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.233 383 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.235 384 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.233 385 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.235
129 tivéssemos fé; mas, uma vez que se tem, ela se torna providência novamente. 386
A fé como necessária para a associação entre fortuna e e providência característica da Baixa Idade
Média é explicita por Cassirer a partir do Inferno de Dante:
É Virgílio quem esclarece Dante acerca da verdadeira natureza e função da Fortuna. Os homens, explica-lhe ele, têm o costume de falar da Fortuna como se ela fosse um ser independente. Mas tal concepção é um mero resultado da cegueira humana. Seja o que for que a Fortuna faz, não o faz em seu nome, mas em nome de um poder mais alto. Os homens louvam a Fortuna enquanto recebem os seus favores; insultam-na quando ela lhes é contrária. Ambas as atitudes são insensatas. A Fortuna não pode ser louvada nem condenada; e isso porque ela não tem qualquer poder próprio, sendo apenas o agente de um princípio mais alto. Se ela atua, atua sob o controle da providência divina, que lhe atribui a tarefa que ela tem a desempenhar na vida humana. Portanto, ela se encontra acima dos juízos dos homens; está para além da condenação e do louvor.387
No contexto medieval, a fortuna passa a fazer parte da ordem da providência. Ela não é
desordem e caos em si mesma, mas aparece aos homens dessa forma na medida em que ele é limitado
diante do Criador. Consequentemente, a fé na providência perfeita tranquilizaria o homem medieval,
bem como tentar avaliar ou combater a fortuna seria herético. A Fortuna caracterizada por Maquiavel,
diferentemente, não trabalha em nome de nenhuma perfeição e bondade divina: é “inconstante deusa
e móvel diva”, age “segundo seu capricho”, favorece alguns e destrói violentamente outros, “e se
alguma vez te promete / alguma coisa, jamais mantém a promessa”388. Se ela fosse indiferente aos
homens, ou se os desprezasse com ódio, talvez ela fosse melhor evitada ou aplacada. No entanto, ela
Ela permanece no topo, onde
jamais recusa seu olhar a qualquer homem; mas, em pouco tempo, o desvia e move
E ela tem duas faces, esta antiga bruxa, uma feroz e outra tranquila; e, no momento em que a volta, ora não te vê, ora te ameaça, ora te convida. 389
A Fortuna está sempre interessada nas coisas humanas. Ela voluntariamente visa interferir nos
destinos humanos. Dizemos interferir, e não controlar, porque a imagem de duas faces que se desviam
e movem, ora convidando, ora ameaçando, mas ora não te vendo, nos distancia da ideia de um projeto
cósmico ao qual poderíamos (ou não deveríamos evitar) confiar nossos destinos. A Fortuna
certamente tem a potência para controlar todo o destino de uma pessoa; mas, se o faz, é por decisão
arbitrária, assim como poderia permanecer indiferente.
A relação descrita no poema de Maquiavel entre a Fortuna e os homens se torna mais
386 POCOCK, J.G.A. "Custom and Grace, Form and Matter: An Approach to Machiavelli's Concept of Innovation," in Martin Fleisher (ed.), Machiavelli and the Nature of Political Thought, New Fork: Atheneum, 1972, p.158 387 CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. São Paulo: Conex, 2003, p.193
388 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.235 389 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p. 237
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complexa quando observamos que, nesta relação, estes não são meras vítimas da onipotência daquela:
“Todo mundo reúne-se ao seu redor, / desejoso de ver coisas novas, /cheio de ambições e de
vontades”. Os homens, o desejo, a ambição e as vontades humanas, invocam o poder da fortuna. Esta
invocação se dá porque o desejo do homem está direcionado às coisas novas – coisas, estas, que
somente invariabilidade fortuna, que altera a ordem do mundo sem razão, pode trazer. Assim,
Maquiavel mostra como é complexo ponderar entre o que é próprio do erro humano e o que é próprio
da crueldade da fortuna, “porque todo mal que vos ocorre / se atribui à ela; e se algum bem o homem
encontra, / crê tê-lo adquirido por sua própria virtude [virtute]”390. Esta complexidade está no modo
como Maquiavel descreve o exercício da onipotência da Fortuna. Junto da perene e tradicional
imagem da roda, Maquiavel utiliza a imagem do palácio da Fortuna. “Sobre um palácio totalmente
aberto/ se vê reinar, e a ninguém impede / a entrada, mas o partir é incerto”391. Os homens, em busca
de coisas novas, pedem abrigo neste palácio. O interesse da fortuna pelas coisas humanas,
benignamente escuta o pedido. No entanto, “se ira” e “impede a passagem” dos que querem sair. E o
palácio da Fortuna, aprendemos, é, em primeiro lugar, povoado de homens: “suspiros, blasfêmias e
palavras injuriosas / se ouvem em toda parte daquelas pessoas” 392.
O palácio da Fortuna está repleto. “Dentro, são tantas rodas que se veem rodar/ quão variado
é o subir até aquelas coisas / que cada um vive em mira”. Repleto de instrumentos para o controle –
suas várias rodas, em distinção à inexorável e única roda da tradição medieval – e repleto de uma
volumosa corte de homens mirando e desejando variadas coisas. A dinâmica deste palácio é
composta, portanto, do controle arbitrário da fortuna, por um lado, mas da ação humana não menos
arbitrária, por outro; e a variabilidade deste ambiente é fruto não só das variações da fortuna, mas
também daquela “turba variada e nova” de homens que adentraram o recinto. As palavras de
Maquiavel aqui, ecoam suas palavras no sexto capítulo de O Príncipe, quando diz que “a natureza
dos povos é variável; e, se é fácil persuadi-los de uma coisa, é difícil firmar nessa persuasão”393. Os
homens em grande número, buscando interesses particulares, tendem ao caos. Esta turba de homens
logo se transmuta em uma turba de novas alegorias – alegorias para os traços, as paixões e o
comportamento humanos: Audácia, Juventude, Temor, Penitência, Inveja, Ocasião, Ócio,
Necessidade, Paciência, Usura, Fraude, Liberdade, Caso e Sorte. Todas estas personificações dos
sentimentos e relações humanas habitam e auxiliam no governo do palácio da Fortuna. A fortuna “o
390 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p. 237 391 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p. 235 392 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p. 237 393 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p .27
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raivoso furor / demonstra com esta derradeira família”. Essas personagens “se destacam”, se prostram
em terra, “fazem guerra”, se divertem e brincam, “giram”, sentam, estraçalham-se, compondo a
dinâmica de caos e inexorabilidade do domínio da Fortuna. Elas assombram os homens, acima,
abaixo, entre e em torno das milhares de rodas que os controlam.394 De tamanha semelhança entre
estes fantasmas e a própria alma humana, é confuso quando o caos é proveniente desta ou daqueles.
É contando com estes traços humanos do reino da Fortuna que os homens podem de alguma
forma resistir-lhe. Sua arbitrariedade e variabilidade se atribuem a uma certa vontade – ainda que
volátil. Assim, O que melhor sorte consegue;
entre todos os outros que estão naquele lugar, é que aquele que pega a roda segundo seu querer;
porque os humores que usares em tua escolha, segundo o que para ela é conveniente será a razão de teu bem e de teu dano.395
Aquele que melhor se sai no reino da Fortuna é aquele que consegue ajustar seus humores aos dela.
Ao saber escolher os humores segundo o que é conveniente à Fortuna, ao girar na direção que ela
aponta, o homem pode chegar ao topo. “Isto não quer dizer, porém, que tu possas confiar nela / nem
crer evitar sua dura mordida / seus duros golpes, impetuosos e maus”396. A dificuldade do homem
diante da Fortuna é que, para entrar em acordo com ela, ele precisa, em certa medida, confiar nela. O
homem é um ser de acordos e confiança, um ser que espera estabilidade. É neste ponto que a Fortuna
o surpreende; “porque, enquanto tu és girado pelas costas, / pela roda, agora feliz e boa, / ela costuma
mudar os giros no meio do curso”397. Diferentemente da Fortuna, com duas faces, o homem não tem
olhos nas costas e não pode ver a Fortuna mudando seu curso.
Assim, não basta ajustar-se confiantemente à Fortuna. É preciso ajustar-se e reajustar-se; estar
sempre atento e em movimento. “Seria sempre feliz e beato, / quem pudesse saltar de roda em
roda”398. Esta habilidade, a de mudar energicamente de planos, de objetivos, de procedimentos; de
agir com a mesma energia e violência da Fortuna; de saltar de roda em roda; é o que poderia salvar
os homens diante da deusa. No entanto, é mais propenso ao homem que não possa “mudar de pessoa
/ nem abandonar a ordem da qual o céu te dota”399, estando impedido deste constante salto de rodas
394 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011, pp. 237-238 395 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p. 239 396 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p. 239 397 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p. 239-241 398 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p. 241 399 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p. 241
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em rodas uma vez que é um ser limitado. É bem verdade que Maquiavel diz que “Audácia e Juventude
são as que mais se destacam”400; e, talvez, por elas o homem possa alcançar um combate vitorioso
com a Fortuna. No entanto, se pensamos na condição humana, o que vemos é que a juventude é algo
que necessariamente se perde; e a audácia, depois de tantas consequências negativas, acaba por se
tornar prudência, caso o homem aprenda alguma coisa com seus erros, ou medo, caso não reste mais
que o trauma. Esta escassez humana diante da força sobre-humana da fortuna vemos nestes versos:
Por esse exemplo se vê com clareza
quanto a esta apraz, quão agradável lhe seja, quem a bate, quem a empurra ou quem a caça.
Mesmo assim, ao desejado porto um não chegou, e o outro cheio de feridas foi à sombra do inimigo morto.401
A passagem revela que as capacidades humanas são finitas e escassas em comparação com a
força da Fortuna. Aqueles que apresentam ímpeto suficiente contra ela são testados e esgotados em
suas energias e potencialidades. Este ímpeto necessário contra a Fortuna responde à violência de seus
poderes. Ao responder com violência, o homem não só se defende contra a Fortuna, mas a agrada.
No entanto, um reino no qual tudo é violência e audácia, onde somente facínoras e injustos têm vez,
é um local onde pode viver um imortal como a Fortuna, mas vive por breve tempo uma criatura mortal
como o homem. Assim, inclui-se nos versos de Maquiavel, junto da imprevisibilidade das coisas
humanas, sua finitude: “neste mundo, nenhuma coisa é eterna: / a fortuna o quer assim, disso ela se
embeleza, / a fim de que seu poder mais se distinga.”402. E, assim, a Fortuna expõe orgulhosa nas
paredes de seu palácio a história da humanidade, dos grandes impérios e dos grandes homens, todos
elevados às alturas por ela , para depois serem arremessados com extrema força ao chão, tal como as
águias às tartarugas403.
Muito do que Maquiavel canta em seus versos a Soderini é retomado no capítulo XXV de O
Príncipe. A reflexão que Maquiavel propõe aqui é novamente quanto aos limites e possibilidades de
ação do homem diante da fortuna. Depois de ter, no início do capítulo XXV, mostrado as implicações
de um mundo governado pela fortuna e ter questionado a abertura que ela dá a ação humana,
Maquiavel passa a considerar que tipo de ação é essa que poderia resistir à fortuna. Para tanto,
compara “a fortuna a um desses rios impetuosos que, quando se iram, alagam as planícies, derrubam
400 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.237 401 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.243 402 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.241 403 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.241-245
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as árvores e as casas, arrastam terras de um lado para levar a outro: todos fogem deles, todos cedem
a seu ímpeto sem poder detê-los em parte alguma.”404 Ao comparar a fortuna a um fenômeno natural
como o alagamento de um rio impetuoso, Maquiavel ressalta sua inevitabilidade e potência destrutiva.
Considerada nestes termos, a fortuna não é, nem resultado da ação humana, nem passível de ser
evitada por ela. Tratando-se de um rio impetuoso, mesmo a capacidade do homem de prever com
exatidão seu comportamento é falha, diferentemente de outros fenômenos mais amenos e amigáveis
da natureza, tal como a passagem das estações para o plantio e a colheita.
De qualquer modo, mesmo que esteja fora de alcance do homem controlar os fenômenos
impetuosos da natureza, está ao seu alcance alertar-se contra eles e ter consciência de seus danos. Isto
é suficiente para que, “quando os tempos estão calmos, os homens tomem providências, construam
barreiras e diques, de modo que, quando a cheia se repetir, ou os rios fluem por um canal, ou seu
ímpeto não seria nem tão licencioso nem tão danoso”. Por mais que não se possa prever exatamente
como ou prevenir que a cheia se repita, é possível contornar seus danos. De tal forma que a inevitável
e violenta cheia seja amortecida pela antecipação do homem. “O mesmo acontece com a fortuna, que
demonstra sua potência onde não encontra uma virtù ordenada, pronta para resistir-lhe, e volta seu
ímpeto para onde sabe que não foram erguidos diques nem barreiras para contê-la”.405 Neste sentido,
somos lembrados dos versos: “seu reino é sempre violento, / se uma grande virtù não o amorteça”406.
Em contraposição com o poema, entretanto, a fortuna não assume, nesta primeira representação,
traços humanos407. Assim, a virtù, a ação humana diante da fortuna, pode ter a sua parte enquanto
antecipação e preparo. O curso indiferente da natureza quanto às coisas humanas é distinto daquela
arbitrariedade injusta apresentada no poema. A virtù do homem, portanto, aparece como força
consciente e calculada diante de um ímpeto e uma força inanimados.
Esta abordagem, entretanto, não se mantém por muito tempo. Depois de comparar a fortuna
aos rios impetuosos, Maquiavel passa a outros aspectos da questão sobre como enfrentá-la. Nestes
outros aspectos, verifica-se, como coloca Pitkin, “um reexame ou rejeição parcial de sua metáfora”
inicial. Esta primeira metáfora, a dos rios caudalosos, “implica mais em prudência e cálculo,
habilidade técnica e certeza de engenharia, o manuseio de materiais, do que em interações entre
homens. E estas implicações acabam não sendo o que Maquiavel queria - ou o total do que queria -
404 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV p.121-122 405 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV p.122 406 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.233 407 De qualquer modo, é importante notar, como fez Pitikin : “mas conceitos como ira e ímpeto <intent to harm> não são literariamente apropriados a forças naturais; mesmo quando Maquiavel invoca as imagens da cheia e da tempestade, ele continua a personificar a força envolvida” [PITIKIN, Hannah, Fortune is a Woman: Gender and Politics in the Thought of Niccolò Machiavelli, 2nd ed. (Chicago: Uniiversity of Chicago Press, 1999), p.150]
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no final das contas dizer”408. Ernst Cassirer comenta sobre o conceito de fortuna em Maquiavel que
Em física podemos sempre invocar o princípio de que as mesmas causas produzem, invariavelmente, os mesmos efeitos. Podemos predizer com absoluta certeza um acontecimento futuro: por exemplo, um eclipse do solou da lua. Mas quando se trata de ações humanas tudo isso está sujeito a variações. Podemos, em certa medida, antecipar o futuro, mas não podemos predizê-lo. As nossas expectativas e esperanças são frustradas; as nossas ações, mesmo as mais bem planejadas, não produzem o efeito desejado. Como esta diferença deve ser considerada? 409
Como vimos, a fortuna vem, primeiramente, na imagem de um fenômeno natural, impetuoso
e violento, mas a ser previsto e calculado pela capacidade humana. Depois desta metáfora, então,
podemos ver um sentido mais propriamente político da reflexão. Ao falar como a Itália está
desprotegida, enquanto a Alemanha, a Espanha e a França estão defendidas contra a fortuna, vemos
que a fortuna se impõe contra a capacidade dos homens enquanto estes estão organizados em relações
de poder. Quanto a estas relações, no que diz respeito aos stati, “hoje se vê que um príncipe tem
sucesso e amanhã arruína-se sem ter mudado sua natureza ou qualidade”410 . Em um primeiro
momento, Maquiavel retoma razões, segundo ele já discutidas, para explicar sua constatação: “o fato
de um príncipe que se apoia completamente na fortuna arruinar-se quando ela muda”411. Explicando
assim a queda dos príncipes de seu tempo, Maquiavel retoma a metáfora do rio e dos diques: é preciso
estar sempre precavido contra as variações do mundo, agindo onde e quando a fortuna não age para
proteger-se dela. O autor também está retomando uma reflexão feita no capítulo precedente, XXIV:
“aqueles nossos príncipes que tiveram por muitos anos seu principado, que não acusem a fortuna por
tê-lo perdido, mas sua própria ignávia por nunca terem, em tempos tranquilos, pensado que poderiam
mudar”412. Portanto, no que diz respeito aos príncipes, sobre por que perdem seus principados, a
resposta de Maquiavel quanto ao poder da fortuna nas coisas humanas é que, muitas vezes, é a ação
humana que falha, não a fortuna que é extrema.
De qualquer forma, o autor adiciona na sequência: “creio ainda que é feliz aquele que ajusta
seu modo de proceder à qualidade dos tempos e, similarmente, que é infeliz aquele que, por seu modo
de agir, está em desacordo com os tempos”413. Maquiavel nos diz que o príncipe deve ser capaz de
modificar seus procedimentos de acordo com as variações a que está exposto. Agora é com esta
capacidade de adaptação que Maquiavel expressa o sentido de virtu como ação diante fortuna. No
entanto, há uma tensão neste momento do texto: a noção de virtù enquanto precaução e cautela não
408 PITIKIN, Hannah, Fortune is a Woman: Gender and Politics in the Thought of Niccolò Machiavelli, 2nd ed. (Chicago: Uniiversity of Chicago Press, 1999), p. 151 409 CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. São Paulo: Conex, 2003, p.189. Tradução alterada. 410 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p. 122 411 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p. 122 412 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXIV, p. 120 413 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p. 122
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entra em total acordo com uma noção de adaptabilidade. Evidentemente, em um primeiro momento
poderíamos pensar que estas duas noções não são incompatíveis; afinal, é de se esperar que aquele
que é cauteloso e precavido pense em meios de adaptação e ajustes. No entanto, o argumento de
Maquiavel segue em outro sentido. Pode-se ver que os homens, no que diz respeito às coisas que os conduzem aos fins que perseguem, isto é, glória e riquezas, agem de maneira diversa: um, com cautela, outro com impetuosidade; um com violência, outro, com arte; um, com paciência, outro, com o contrário; e cada qual, por meio desses vários modos, poderá alcançar sucesso. Por outro lado, vê-se que, de dois homens cautelosos, um chega a seu objetivo, e outro, não; que dois homens bem-sucedidos adotaram dois modos de agir diferentes, sendo um cauteloso, e outro, impetuoso. O que não acontece por outra razão que a qualidade dos tempos, que se conformam ou não aos modos de proceder deles. Disso resulta o que eu disse: que duas pessoas, agindo diversamente, alcançam o mesmo efeito; enquanto que outras duas, agindo da mesma forma, uma chega a seu fim, e outra, não. 414
Ser feliz tem o sentido de chegar aos fins que se persegue – glórias e riquezas. Quando se
coloca em questão por que vias se chega a estes fins, Maquiavel constata uma impossibilidade de
associar com certeza as condutas dos homens e aos efeitos destas condutas. Alguns falham se
conduzindo exatamente como os que sucederam; dois bem-sucedidos, muitas vezes, escolheram vias
opostas. Sua conclusão é que não são estas condutas em si mesmas, mas a relação delas com a
qualidade dos tempos, que determina o sucesso dos príncipes. Sendo a qualidade dos tempos variável,
e o sucesso associado à conformidade da conduta a ela, varia também a possibilidade de sucesso.
“Disso também”, escreve Maquiavel, “depende a variação do bem, porque, se um príncipe se conduz
com cautela e paciência, e o tempo e as coisas caminham de tal modo que seu governo seja bom, será
bem-sucedido; mas, se mudam os tempos e as coisas e ele não mudar seu modo de proceder, então se
arruinará”415. A chance que o homem encontra contra a variabilidade do mundo é conseguir mudar
seu modo de proceder tão continuamente for necessário para acompanhar a mutabilidade do mundo.
Mas podemos associar esta capacidade, esta concepção de virtù, com aquela de construir barreiras e
diques apresentada no início do capítulo?
“Nada impede”416 os homens de construir diques e barreiras. Diferentemente, ajustar os
procedimentos políticos às contingências não é uma habilidade simples – “não há homem
suficientemente prudente que saiba acomodar-se a isso”417. Maquiavel alerta para que os homens
agem de acordo com a inclinação que o hábito lhes impõe. Suas práticas naturais são difíceis de serem
mudadas. Alerta também que, tendo escolhido um procedimento que funcione, muitas vezes,
tendemos a repeti-lo indiscriminadamente418. Por estas razões, adaptar-se e agir de acordo com o que
414 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p.123 415 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p.123 416 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p.122 417 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p.123 418 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p.123
136
os tempos exigem é uma tarefa difícil para os homens. A construção de diques e barreiras “implica
em uma forma de proceder – planejamento prudente, habilidade de engenharia, a construção de
estruturas”419. Esta forma de proceder não está livre de não ser a adequada no momento adequado. E
é justamente à oposição entre cautela e ímpeto como modos de se proceder que Maquiavel dá especial
ênfase: “por isso, o homem cauteloso, quando chega o momento de agir impetuosamente, não sabe
como fazê-lo e, por esse motivo, arruína-se, pois, se mudasse de natureza de acordo com os tempos,
não mudaria de fortuna”420. Cassirer explica que No Capítulo XXV de O Príncipe, Maquiavel expõe as regras táticas desse grande e contínuo combate contra a Fortuna. Essas regras são muito confusas e não é fácil usá-las da maneira conveniente. Porque elas contêm dois elementos que parecem antagônicos. O homem que pretende manter-se nesse combate deve combinar no seu caráter duas qualidades opostas. Deve ser tímido e corajoso, reservado e impetuoso. Somente por tal mistura paradoxal ele pode ter esperanças de alcançar a vitória. Não existe um método uniforme a ser utilizado em todas as circunstâncias. Num certo momento devemos colocar-nos na defensiva, no outro, ousar os maiores atrevimentos. Devemos ser uma espécie de Proteu, que de um momento para outro podia mudar de forma.421
A dificuldade apresentada pelo autor aqui no confronto com a fortuna é muito semelhante
àquela apresentada no poema Di Fortuna, acima analisados. No poema, é “sempre feliz e beato” em
seu palácio “quem pudesse saltar de roda em roda”422. Mas lá, como também aqui no capítulo XXV,
Maquiavel tende a asseverar a incapacidade do homem. Não que os homens não atinjam seus fins e
glórias; mas pouco se pode afirmar quanto a que parte destes fins e glórias são frutos da fortuna ou
da ação dos homens. Maquiavel, assim, mostra que “o papa Júlio II procedeu em tudo
impetuosamente” e sempre teve êxito, porque “sempre encontrou os tempos e as coisas conformes a
seu modo de proceder”. Com suas deliberações impetuosas, o papa deixou “atônitos e estáticos”,
causando “medo” e interferindo em seu “desejo”, os venezianos e o Rei da Espanha, que não estavam
satisfeitos com ele; e “arrastou consigo”, por necessidade, um aliado fortíssimo, o Rei da França.
“Portanto, Júlio causou com seu movimento impetuoso o que jamais outro pontífice, com toda
humana prudência, teria causado”. Foi sem respeitar acordos e surpreendendo seus inimigos que Júlio
pôde obter êxito. E assim aconteceu porque as condições, os tempos e as coisas, eram propícias. A
conclusão de Maquiavel quanto ao papa, entretanto, apesar abalar a noção de que a cautela seja o
caminho para confrontar a fortuna, também não atribui ao seu comportamento impetuoso uma virtù
suficiente para combater a fortuna, porque “a brevidade de sua vida não o deixou sofrer os reverses,
porque, caso tivessem chegado os tempos em que tivesse precisado agir com cautela, ele se teria
419 PITIKIN, Hannah, Fortune is a Woman: Gender and Politics in the Thought of Niccolò Machiavelli, 2nd ed. (Chicago: University of Chicago Press, 1999), p. 150 420 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, p.123 421 CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. São Paulo: Conex, 2003, p.193 422 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.239_241
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arruinado, pois jamais desviaria daqueles modos para os quais o inclinava sua natureza”. 423
Aqui encontramos outra semelhança notável com o que fora apresentado no poema Di
Fortuna. Lá também víamos que, no palácio da Fortuna, “Audácia e Juventude são as que mais se
destacam”424, pois estes traços humanos impulsionam os homens ao ímpeto e à potência de mudarem
constantemente os planos de seus destinos. No entanto, a finitude do homem não é capaz de manter
estes traços por muito tempo, acabando o homem sempre vencido ou extremamente danificado. O
que vemos é a oposição entre o homem contra a fortuna como a oposição entre um ser que depende
de acordos estáveis, que tem capacidades limitadas e previsíveis, contra uma força de extrema
violência, variabilidade e potência. O que é jovem logo envelhece; a audácia acaba por resultar em
vingança e medo. Antes que o ímpeto de Júlio arrefecesse ou que sofresse as consequências de seus
atos, sua finitude diante da fortuna veio com a morte. Não é ao acaso que o exemplo de Júlio venha
logo antes da conclusão do capítulo XXV. O exemplo serve para corroborar a reflexão final de
Maquiavel no capítulo: Estou convencido do seguinte: é melhor ser impetuoso do que cauteloso, porque a fortuna é mulher, e é necessário, para submetê-la, bater nela e maltratá-la. Vê-se que ela se deixa vencer mais pelos que agem assim do que do que pelos que agem friamente; e, como mulher, é sempre amiga dos jovens, porque são menos cautelosos, mais ferozes e a comandam com maior audácia.425
As situações em que se encontram os homens diante da fortuna são contextos de crise,
instabilidade e violência. Com a metáfora da mulher para descrever a fortuna, o capítulo XXV pode
ser, finalmente, diretamente associado aos versos de Di Fortuna. Com ela, a fortuna não é mais uma
força natural violenta e indiferente aos homens. Ela se incorpora na alegoria da deusa Fortuna, uma
mulher - traiçoeira, instável, volúvel. Dessa forma, para controlá-la, um comportamento audacioso e
impetuoso é exigido; com este comportamento o homem não só se defende da Fortuna, mas ganha
seus favores. Como vimos, Maquiavel dedica alguns de seus versos no poema a mostrar que os
homens não se relacionam com a Fortuna meramente na condição de vítimas caçadas por ela. Os
homens reúnem-se ao seu redor, desejosos “de ver coisas novas”, cheios de “ambições e vontades”
426. Assim, por suas ambições e vontades, os homens buscam mudanças e, ao fazerem, invocam o
poder da Fortuna e sua atenção. No poema, Maquiavel descreve uma distinção muito turva entre o
que é próprio do homem e o que é próprio da fortuna. As variações e perigos que afligem aos homens
parece vir simultaneamente do poder arbitrário da Fortuna. Por um lado, mas da ação humana não
menos arbitrária. Por outro, a variabilidade deste ambiente é fruto não só das variações da fortuna,
423 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, pp. 123-124 424 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.237 425 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo XXV, pp.124-125 426 MAQUIAVEL, Nicolau. Di Fortuna e Dell ́Occasione, di Niccolò Machiavelli - Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich- Cadernos de ética e filosofia politica n18 2011 p.237
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mas também daquela turba de homens ambiciosos e em conflito. As muitas outras alegorias do poema
que auxiliam a Fortuna a perturbar os homens - Audácia, Juventude, Temor, Penitência, etc. - refletem
os traços, as paixões e o comportamento humanos.
O exemplo de Júlio II e de como sua audácia e impetuosidade puderam combater a fortuna e
levá-lo aos seus objetivos nos mostram exatamente esta ambiguidade entre Fortuna e ação humana.
Júlio II não é uma vítima da Fortuna; se ele lhe resistiu e combateu, também a evocou. Porque, sem
ações impetuosas, ele não teria tido êxito; no entanto, para modificar sua condição de poder, teve que
quebrar tratos e se utilizar da violência, o que causou a condição de caos e variabilidade com a qual
a Fortuna ataca. Portanto, a Fortuna é uma alegoria humanizada para uma coisa propriamente humana.
Pocock mostra como a relação entre virtù e fortuna é ambígua e que esta ambiguidade se faz
especialmente notar no caso da inovação política: “por um lado, virtù é aquilo pelo qual inovamos e,
portanto, liberamos sequências de contingência além de nossa predição ou controle, de forma que nos
tornamos presas da fortuna; por outro, virtù é aquilo interno a nós pelo qual resistimos à fortuna e
impomos sobre ela padrões de ordem” 427
A Fortuna é uma face do homem; na verdade, uma face dos homens, muitos, em combate e
desordem. Ela se apresenta quando os tratos e as leis não podem dar coesão à vida em conjunto,
quando são quebrados ou alterados. A questão é circular: os homens são impetuosos porque a Fortuna
é impetuosa, ou é a Fortuna que responde com impetuosidade a audácia dos homens? Se levamos em
conta o estudo proposto por Pitikin em Fortuna é uma Mulher, na qual a autora mostra com uma
leitura muito contundente a força que os signos e as questões de gênero têm na construção do
pensamento de Maquiavel, podemos ainda dizer: a Fortuna é uma face do homem – ela é mulher.
Deve-se notar que esta constatação ela é repleta de significado e consequências. Pitikin, examinando
como a noção de homem foi central para a história do pensamento, mostra que este conceito não se
reduzia meramente aos humanos em geral:
ser homem pode significar não ser uma mulher, ser macho no lugar de fêmea, masculino no lugar de feminino, másculo no lugar de efeminado. Mas, alternativamente, ser homem pode significar não ser criança, ser adulto no lugar de infantil, maduro no lugar de juvenil – isto é, independente, competente, potente. Mas, novamente, ser um homem pode significar alguma coisa como ser humano; o italiano uomo é ambíguo da mesma forma que o inglês man. Neste sentido, ser um homem pode ser contrastado a ser inumano ou bestial, mas também a ser sobre-humano, imortal ou divino. [...] Diferente das bestas, um homem é parte de uma civilização historicamente criada, uma pessoa, capaz de escolha, julgamento, ação, responsabilidade; diferente das divindades, um homem é mortal e falho, simplesmente um entre outros que têm fundamentalmente direitos e reivindicações iguais. Este último sentido de homem pode também sugerir, como sugeriu para Aristóteles e Maquiavel, ser um “animal político”, uma criatura cujo potencial é completamente desenvolvido somente em uma polis como cidadão ativo entre iguais.428
427 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, p. 167 428 PITIKIN, Hannah, Fortune is a Woman: Gender and Politics in the Thought of Niccolò Machiavelli, 2nd ed. (Chicago: Uniiversity of Chicago Press, 1999), p. 8
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Se damos a devida atenção às palavras da autora, vemos, na história da humanidade, tentativas
de definir o humano a partir de um conceito muito variado e complexo de homem. Com isso, tentativas
de compreensão da essência do homem e de suas capacidades enquanto humanos se misturavam com
preconceitos e ideologias que acabavam por excluir parte da humanidade deste atributo. Uma vida
desprovida de ordem política nos transporta para fora da humanidade, faz-nos menos homens. Que
esta concepção desde cedo se misture com a exclusão das mulheres e o discurso que o corrobora fica
evidente na raiz da palavra virtus - a virilidade, o que é próprio do homem, do mundo masculino.
Maquiavel corrobora e ressalta esta posição. Em certo momento do capítulo VI429, ele mostra como
a falta de ordem política torna os homens efeminados. O que Maquiavel parece estar mobilizando,
apesar de seus machismo e misoginia, é a noção de que a Fortuna é uma face do próprio humano;
mas de sua forma extra-humana, por assim dizer. Isto é, é aquilo que há nos humanos ou nas relações
humanas de incompreensível, de incomensurável. É o homem fora da segurança e da estabilidade que
lhe é necessária, que se torna efeminado, violento, imaturo, incapaz; mas que também, por vezes,
assume forças sobre-humanas, criando para si, ora caos incontornável, ora coisas grandes e
extraordinárias.
No entanto, devemos ser cautelosos quanto à afirmação de que a fortuna maquiaveliana tem
uma face humana. Isso não quer dizer que ela seja comensurável pelos humanos; que, por ser de certa
forma humana, esteja potencialmente sob controle humano. O que a alegoria da Fortuna – uma
divindade, força sobre-humana -, em seus traços humanos, vem lembrar é, na verdade, as limitações
humanas, bem como, em consequência destas, a parte incomensurável que acompanha todo discurso
sobre a política. Cassirer escreve que a experiência ensinou a Maquiavel “que nem sempre os
melhores conselhos políticos são eficazes. As coisas seguem o seu próprio caminho; contrariam os
nossos desejos e finalidades. [...] Essa incerteza dos negócios humanos parece tornar impossível
qualquer ciência política”. Diante do problema da fortuna Maquiavel não assume um “estilo lógico e
claro, mas um estilo retórico e imaginativo”430. A inovação política nos coloca irremediavelmente
diante do problema da fortuna. Na medida em que a inovação faz parte do domínio político e, junto
dela, a fortuna que a acompanha, podemos concluir com Cassirer que, “nesse domínio vivemos num
mundo irregular, inconstante e caprichoso, que desafia todos os nossos cálculos e previsões”431. Sobre
o caráter imprevisível e incomensurável que a política por vezes pode ter, Cassirer escreve sobre
Maquiavel que
429 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 26 430 CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. São Paulo: Conex, 2003, p. 194 431 CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. São Paulo: Conex, 2003, p. 190
140 O seu método lógico e racional desamparava-o nesse ponto. Teve de admitir que as coisas humanas não são governadas pela razão e que, além disso, não podem ser inteiramente descritas em termos de razão. Temos de recorrer a um outro poder – um poder semi-mítico. A “Fortuna” parece governar as coisas. E, de todas as coisas, a Fortuna é a mais fantasista. Qualquer tentativa para sujeitá-la a regras está condenada a fracassar. Se a Fortuna é um elemento indispensável na vida política, é um absurdo esperar fundar uma ciência política. Falar de uma "ciência da Fortuna" seria uma contradição de termos.432
3.3. A virtù dos fundadores
Retomando o tema da inovação e da condição política da fundação do stato e da passagem de
homem privado a príncipe introduzido no sexto capítulo de O Príncipe: a perspectiva do fundador de
seu stato é aquela na qual a fortuna enquanto consequência da inovação se revela com maior
expressão. Nesta condição política, o estilo retórico e imaginativo em detrimento de um lógico e claro
salienta-se ao máximo, de forma que o recurso ao mito e as ponderações sobre os limites da ação no
lugar de suas potencialidades entram em evidência. Isto vemos na forma como Maquiavel inicia o
sexto capítulo, anunciando alguns cuidados quanto a abordagem da condição política agora
examinada:
Que ninguém se espante se, ao falar dos principados inteiramente novos, de príncipes e de estados, eu recorrer a exemplos elevados. Pois, como os homens sempre trilham caminhos percorridos por outros, procedem em suas ações com imitações mas não são capazes de manter totalmente os caminhos dos outros nem de alcançar a virtù daqueles que imitam, um homem prudente deve sempre começar por caminhos percorridos por homens grandes e imitar os que foram excelentes. Assim, mesmo que não alcance sua virtù, pelo menos mostrará algum indício dela, fazendo como os arqueiros prudentes que, julgando muito distantes os alvos que pretendem atingir e conhecendo até onde chega a capacidade de seu arco, orientam a mira para bem mais alto que o lugar destinado, não para alcançar com sua flecha tamanha altura, mas para poder, por meio de mira tão elevada, chegar ao objetivo433.
Ora, a verdade é que não seria de se espantar que Maquiavel recorra a exemplos elevados para
aconselhar o príncipe. Não fora justamente esta abordagem dada até então pelo autor? Basta
lembrarmos que o capítulo III estrutura-se em torno dos grandes exemplos (de fracasso e sucesso) de
Luis XII e dos romanos; e que o capítulo IV leva em seu título o exemplo de um grande homem,
Alexandre. O ponto é que a imitação aparece aqui como um problema, como uma via a ser adotada
não sem considerações. Maquiavel havia afirmado no terceiro capítulo que a derrota dos franceses na
Itália é coisa ordinária e razoável. Segundo nosso autor, o rei francês teria mantido a Lombardia se
tivesse observado determinadas regras já observadas por outros ao longo da história, citando o
exemplo dos romanos em suas conquistas na Grécia 434 . Maquiavel afirmava ser aos franceses
acessível uma compreensão das condições dadas e a escolha das deliberações adequadas para uma
conquista segura, se estes tivessem observado as regras observadas pelos romanos, que eram sábios
432 CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. São Paulo: Conex, 2003, p. 190 433 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 25 434 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p.18
141
e prudentes. A precisão e estratégia do conquistador – sua prudência -, que fazem da conquista
ordinária e razoável, entram, na passagem citada, em choque com a asserção de que com a imitação
não se é capaz de manter totalmente o caminho dos outros nem de alcançar sua virtù. Fazer como os
romanos, ou como os espartanos ou atenienses não é suficiente.
Ao expor os limites da imitação, Maquiavel está demarcando uma distinção com o que ele
expusera até o momento. Ao falar de prudência, Maquiavel refere-se àquela habilidade, descrita no
terceiro capítulo, dos romanos em suas conquistas, que, por conhecerem com antecedência as coisas
do stato, por serem prudentes, curavam facilmente os males que nele surgiam435. Mas, no sexto
capítulo, esta habilidade é caracterizada pela carência e limitação. O que a passagem nos diz é que
um homem prudente deve começar pela imitação dos que foram excelentes, buscando sua virtù,
apesar de a capacidade de imitação ser limitada; depois, que o arqueiro prudente conhece a falta de
virtù de seu arco, mirando mais alto que seu alvo. Nas condições de inovação completa, na fundação
pela passagem de homem privado a príncipe, aquela habilidade fundamental à manutenção das
conquistas, a prudência dos conquistadores, tende a falhar. Exige-se, certamente, a capacidade de
prever partindo de um exame aguçado das condições estabelecidas e de agir adequadamente de acordo
com estas previsões, mas não pode se limitar a ela.
Somente raros “homens grandes” e “excelentes”436 seriam capazes de exercer as capacidades
necessárias para superar as dificuldades impostas pela fundação. Na abertura de sexto capítulo, a
virtù aparece mais como um horizonte de conduta – tendo como parâmetro os grandes e excelentes
homens – do que propriamente um modelo facilmente seguido em vista do sucesso mais certo. Quanto
a este momento do texto maquiaveliano, comenta Lefort que “o passado oferece um objeto de
inspiração mais do que de imitação”, de forma que, “enquanto o exame minucioso da política de Luis
XII ou dos romanos induziam a uma verdade de escopo universal, a proposta do autor agora parece
flutuar em uma zona indecisa, onde não contariam nem o peso dos fatos, nem o das ideias”437 .
Pocock, por sua vez, nota que “‘estratégico’ não é uma palavra suficientemente completa. É aqui que
entramos inteiramente na questão das relações entre a virtù de um indivíduo e sua fortuna, que é
sempre um problema moral e psicológico, bem como [...] estratégico”438. Os primeiros exemplos de
Maquiavel “quanto aos que, pela própria virtù [...], se tornaram príncipes” são de fato exemplos
elevados de homens grandes e excelentes. “Os mais eminentes foram Moisés, Ciro, Rômulo,
Teseu”439. “Não poderíamos deixar de pensar que a política destes gloriosos fundadores, dos quais a
435 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo III, p. 14 436 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 25 437 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p. 363 438 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 166 439 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 26
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memória revela mais a lenda que a História, escapa do conhecimento exato”440 comenta Lefort.
Pocock, por sua vez, diz se tratar dos “legisladores clássicos [...] seres divinos ou divinamente
amparados que podiam criar sociedades, porque sua virtù era tal que não necessitavam do quadro
social que era a precondição da virtù em homens ordinários; deuses com [...] um pouco de animal em
si”441. O que caracteriza estes personagens na urdidura do sexto capítulo? O que os eleva ao mais alto
exemplo e os estabelece em um patamar quase inatingível para a conduta ordinária? A resposta para
tanto está na relação entre virtù e fortuna.
Ao passarem de homem privados a príncipes, ao fundarem seus stati, os fundadores estão em
confronto com a fortuna, como vimos, signo das forças imprevisíveis, extraordinárias e sobre-
humanas. Este confronto é incontornável, pois o príncipe está obrigado a inovar e a manter a inovação
uma vez que todo seu poder depende dela. Seu stato não é misto, é inteiramente novo. O que é preciso
saber, portanto, para bem aconselhar os novos príncipes que passam de homens privados a príncipes
é como se dá o confronto com a fortuna: em que medida estes novos príncipes têm virtù. A influência
da fortuna na política e como lidar com ela é a questão a partir da qual Maquiavel busca abordar a
superação das dificuldades das necessidades impostas pela fundação do stato. Esta forma de abordar
o problema posiciona o autor em um lugar interessante do debate florentino corrente. Felix Gilbert
explica que,
no final do século XV, o contraste entre ragione e Fortuna criara diferentes atitudes em relação política. A Fortuna, enquanto emissária de Deus, fortalecera o sentimento de que o homem estava nas mãos de forças incontroláveis; a conduta dos negócios deve permanecer dentro do quadro tradicional dado por Deus. O ponto de vista oponente era o de que a razão do homem lhe deu o poder de moldar o curso da política; fazendo uso da experiência, ele podia imprimir eficiência e perfeição sobre a ordem política. Mas este segundo ponto de vista mal havia tomado forma quando os eventos políticos pareciam demonstrar que a razão era somente um, e talvez nem mesmo o mais efetivo, dos instrumentos nas lutas políticas. Esta era a situação perturbadora e confusa na qual os florentinos que pensavam sobre política se encontravam na segunda década do século XVI.442
O debate corrente ao qual nos referimos e descrito por Gilbert na passagem acima diz respeito
ao papel da fortuna na política e, com isso, à capacidade humana de moldar o curso da política diante
de forças incontroláveis. Mais acuradamente, diz respeito à atitude política a ser tomada diante da
influência que a fortuna exerce sobre ela. Maquiavel traz este debate para a questão da inovação dos
fundadores. A fundação coloca o agente em confronto com a fortuna e entender a virtù do fundador
é entender como ele confronta a fortuna. No entanto, o debate em torno do confronto com a fortuna
é muito delicado, pois nem uma resposta resignada da incapacidade do homem, nem uma resposta
440 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.362 441 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 168 442 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence Princeton University Press, 1965, pp. 138-9
143
muito otimista sobre suas capacidades são satisfatórias. Colocando a inovação dos fundadores como
problema específico a ser discutido, Maquiavel enfatiza a necessidade de discutir o enfrentamento
dos fundadores com a fortuna, portanto discutir a virtù, que é a capacidade de responder à fortuna.
Neste sentido, o atributo central destes gloriosos fundadores ou legisladores clássicos
enfatizado por Maquiavel no início do sexto capítulo é que tornaram-se príncipes “pela própria virtù
e não pela fortuna” e, “examinando suas ações e suas vidas, veremos que não receberam da fortuna
mais do que a ocasião”, ocasião que, “sem virtù, [...] teria sido em vão”443 . Segundo Pocock,
poderíamos pensar o sexto capítulo de O Príncipe como “uma tipologia de inovadores arranjados de
acordo com a gradação na qual suas virtù os torna dependente da fortuna”. Com isso, “o caso pode
[...] aparecer de um inovador cuja virtù não deve absolutamente nada à fortuna”444. É bem verdade
que a ocasião é provida pela fortuna e que, sem ela, a virtù dos grandes fundadores não poderia ter
sido mostrada. De qualquer forma, nestes exemplos elevados, a relação proeminentemente
estabelecida entre virtù e fortuna é a antitética445. Por relação antitética entende-se aquela na qual a
virtù do fundador se relaciona com a fortuna na medida em que não depende dela a não ser pela
ocasião.
O interesse de Maquiavel em pensar uma relação antitética entre virtù e fortuna é explicado
por Pocock da seguinte forma :“mais o indivíduo se apoia em sua virtù, menor sua necessidade de se
apoiar em sua fortuna e – uma vez que a fortuna é por definição inconfiável [unreliable] - mais seguro
ele está”, de forma "que estamos procurando [...] o indivíduo que adquire [poder] totalmente pelo
exercício de suas qualidades pessoais e não absolutamente como resultado de contingências e
circunstâncias fora de si”446. Se o confronto com a fortuna é a grande dificuldade para a inovação
política, a capacidade de inovar com sucesso, a virtù, deve ser pensada, como coloca Lefort, como "o
poder de se subtrair da desordem dos eventos; de se elevar acima do tempo, que [...] cassa tudo diante
de si; de agarrar a ocasião e, então, de a reconhecer; de introduzir, enfim, segundo os termos do autor,
uma forma em uma matéria”447 . Os grandes fundadores que servem de exemplos a Maquiavel são
os que tomaram da fortuna não mais que a ocasião, “que lhes deu a matéria para poderem introduzir
nela a forma que lhes aprouvesse”448. A relação antitética entre virtù e fortuna, da qual os heróis
443 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p.26 444 POCOCK, J.G.A. "Custom and Grace, Form and Matter: An Approach to Machiavelli's Concept of Innovation," in Martin Fleisher (ed.), Machiavelli and the Nature of Political Thought, New Fork: Atheneum, 1972, p.170 445 “[...] era possível isolar a relação antitética entre virtù e fortuna; e o pensamento de Maquiavel estava agora concentrado nisso” J.G.A. Pocock. The Machiavellian Moment: Florentine Political Thought and the Atlantic Republican Tradition, p.167. “A criação do Estado é primeiro apresentada como obra da virtù [...] esta virtù é definida como antítese da Fortuna” LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972, p.364 446 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 167 447 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, 1972 p.364 448 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 26
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fundadores dão o exemplo, isto é, a capacidade de se subtrair do caos imposto pela fortuna e impor
ordem somente pela própria ação, encontra na relação entre matéria e forma sua expressão mais
ajustada. Pocock explica que Quanto mais o inovador é pensado como subvertendo e substituindo uma estrutura de costume e legitimação previamente existente, mais ele terá de lidar com contingências do comportamento subitamente desorientado e maior será sua exposição à fortuna. Para obter o tipo ideal, portanto, devemos supor uma situação na qual a matéria não tenha forma e, acima de tudo, nenhuma forma previamente existente senão a dada pelo inovador449
Neste sentido, os heróis fundadores exemplificados por Maquiavel devem ser entendidos
como “legisladores no mais estreito sentido possível de fundadores de Estados [state-founders]”450,
pois “é a função do legislador impor a forma da politeia – a constituição - sobre a forma da politeuma,
o corpo de cidadãos”451. No entanto, aqui, falamos mais do que do stato em seu sentido limitado de
exercício efetivo do poder; falamos em algo mais parecido com o Estado, o corpo político, cidade ou
reinado. Começamos, assim, a entender o entorno mítico do qual é envolvido estes personagens. Fora
dele, no contexto medieval, não poderíamos pensar a figura do legislador e, junto dele, não
poderíamos pensar uma virtù (enquanto forma) como antítese da fortuna (enquanto matéria).
É preciso considerar que os grandes legisladores, como explica Pocock, têm "virtù tal que seu
comando sobre a occasione é absoluto”, com “habilidade incondicional para ditar a forma sobre a
matéria”, no entanto, isto faz deles uma “espécie de demiurgo, capaz de atualizar todas as
potencialidades por um único comando criativo, e muito além do nível de homens ordinários"452. Eles
“oferecem”, explica Lefort, “o modelo da mais alta ação política”453, mas isto partindo da “imagem
tradicional da ação política”454. Em uma contextualização histórica mais precisa: Maquiavel estaria
referindo-se a impor “forma sobre a matéria naquele sentido puro e incondicionado que Savonarola
pensara requerer ação direta da graça divina”. Em termos apocalípticos e providenciais tradicionais,
“o legislador era pensado como impondo prima forma, ele estava fazendo o mesmo trabalho que o
profeta proclamava como a ação da graça”455 .
Moisés, o profeta, é pensado por Maquiavel junto de Ciro, Teseu e Rômulo, legisladores. E,
449 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 169 450 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 168 451 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975 p. 169 452 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 170 453 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, p.363 454 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard, p.364 455 POCOCK, J.G.A. "Custom and Grace, Form and Matter: An Approach to Machiavelli's Concept of Innovation," in Martin Fleisher (ed.), Machiavelli and the Nature of Political Thought, New York: Atheneum, 1972, p.171
145
escreve Maquiavel, “ainda que não se deva discutir sobre Moisés, uma vez que foi um mero executor
das coisas ordenadas por Deus, ele deve ser admirado ao menos pela graça que o tornou digno de
falar com Deus”. Quanto aos outros exemplos, “se observarmos suas ações e ordenações particulares,
não nos parecerão discrepantes das de Moisés, que teve tão grande preceptor”456. Pocock comenta
que ao equiparar Moisés aos outros legisladores, “a linguagem de Maquiavel é [...] ortodoxa. Era
somente por Deus que um caos de particulares (matéria) poderia ser comandado em uma completude
(forma), e era somente pela graça e instrução divinas que um indivíduo poderia ser autorizado a fazê-
lo” 457. Permite-se, assim, uma “identificação entre o profeta e o legislador. Os dois estão tentando
uma tarefa para além dos poderes humanos, e os dois requerem mais que virtù normal” 458.Outro
ponto importante a ser pensado sobre inovação dos legisladores no contexto medieval e que também
os ligava à graça do profeta é de cunho moral. Pocock nos diz que, a virtù dos míticos legisladores,
fundadores de Estados, “impõe legitimidade em um mundo que nunca a conheceu”459. Os heróis
fundadores, escreve Maquiavel, encontram seus povos escravizados, dispersos ou descontentes em
relação a um império debilitado460. Portanto, como coloca Lefort, “sua glória é a de ter dado a unidade
e a liberdade a um povo disperso e oprimido” e, neste sentido, o sucesso destes fundadores
“harmoniza-se com a felicidade e enobrecimento de suas pátrias”461. Portanto, a virtù destes homens
não só os preserva contra o caos imposto pela fortuna, mas também mantém sua honra moral enquanto
homens excelentes.
No entanto, como explica Pocock, para Maquiavel, “o caso puro do profeta ou do legislador,
que encontra a matéria inerte [...] e molda [...] em forma de modo que não deve nada à fortuna, nunca
existe na realidade”462. “Encontrar um indivíduo incondicionado pela filiação social é próximo de
impossível”463. E, portanto, a referência aos heróis fundadores é uma "quase-solução”464 não o que
Maquiavel tem de definitivo a dizer sobre a fundação. Como bem demarca Pocock na passagem que
citamos acima, aqueles que que conseguiram perfeitamente impor sua virtù ao caos da fortuna, não
456 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p.26 457 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 170 458 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 171 459 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 167 460 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p.26 461 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris: Gallimard,, p.364 462 POCOCK, J.G.A. "Custom and Grace, Form and Matter: An Approach to Machiavelli's Concept of Innovation," in Martin Fleisher (ed.), Machiavelli and the Nature of Political Thought,New Fork: Atheneum, 1972, p.171-172 463 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 167 464 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, pp.167-168
146
dependendo dela a não ser pela ocasião, constituem mais “tipo ideal” 465 do que propriamente um
modelo concreto. Em sentido semelhante, Lefort diz que, em O Príncipe, “a função realista dos mais
grandes exemplos é uma função simbólica”. Ele explica: “Não é necessário, nem, sem dúvida,
possível que o príncipe novo se identifique com os heróis fundadores” 466. Isto porque a relação entre
virtù e fortuna não pode ser meramente antitética. Esta relação resta como modelo - é preciso se fazer
independente da fortuna -, no entanto, esta independência envolve sempre alguma dependência. A
autonomia completa em relação à fortuna deve ser colocada como o ponto mais alto da mira do
arqueiro, que conhece a pouca virtù de seu arco.
Maquiavel explicita que mesmo os grandes fundadores “conquistam o principado com [...]
dificuldades”467. Estas dificuldades são as que acometem todo inovador: a necessidade de inovar, o
ataque partidário dos inimigos e a defesa ambígua dos amigos. No entanto, no caso da fundação, estas
dificuldades são mais pungentes e o confronto com a fortuna inevitável. A primeira tentativa de
resposta a estas dificuldades é a de pensar uma virtù capaz de se estabelecer antiteticamente com
relação à fortuna: uma virtù que não dependa da fortuna em nada, a não ser pela ocasião a ser provida
para que a virtù imponha sua forma. Como vimos, tal suposição é muito pouco provável - somente
os heróis fundadores, os legisladores clássicos, poderiam dar uma resposta satisfatória. No entanto, o
exemplo destes grandes fundadores serve de horizonte e não como objeto exato de imitação. Mas
como, se não transpor, encurtar a distância entre o mito e as possibilidades reais de ação? Como
observa Pocock, Maquiavel nos coloca diante de um estreitamento entre inspiração divina e
Realpolitik: “não devemos dizer que a inspiração divina está sendo rebaixada ao nível da realpolitik
sem adicionar que a realpolitik está sendo elevada ao nível da inspiração divina”468. Isto é, há uma
ponderação sobre quanto há de imitável nas ações dos que foram excelentes, dos fundadores
extraordinários ou profetas inspirados, para os providos de capacidades ordinárias, meramente
humanas. Com isso, deve-se notar, em primeiro lugar, que “nem mesmo no mundo sujeito à graça”469
poder-se-ia pensar a fundação como perfeita implementação de forma sobre matéria. Maquiavel busca
explicitar em que sentido os heróis fundadores puderam agir independentemente da fortuna, uma vez
que portadores de extraordinária virtù ou graça divina:
é necessário [...] examinar se esses inovadores agem por si mesmos ou dependem de outros, isto é, se para realizar sua obra precisam rogar ou podem forçar. No primeiro caso, acabam sempre mal e nada conseguem; mas, quando dependem apenas de si mesmos e podem forçar, é raro que corram perigo [...] a natureza dos povos é variável; e, se é fácil persuadi-los de
465 POCOCK, J.G.A. The Machiavellian Moment, Princeton, Princeton University Press, 1975, p. 169 466 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre: Machiavel. Paris: Gallimard, p.363 467 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 27 468POCOCK, J.G.A. The Machiavellian Moment, Princeton, Princeton University Press, 1975, p. 171 469 POCOCK, J.G.A. "Custom and Grace, Form and Matter: An Approach to Machiavelli's Concept of Innovation," in Martin Fleisher (ed.), Machiavelli and the Nature of Political Thought, New Fork: Atheneum, 1972, p.172
147 uma coisa, é difícil firmá-los nessa persuasão. Por isso, convém estar ordenado de modo que, quando já não acreditarem, seja possível fazê-los crer à força.470
Certamente, aquele que é portador da graça divina ou de uma mítica virtù extraordinária pode
agir por si mesmo e não precisar rogar. Isto significa que faz parte da virtù extraordinária dos
fundadores míticos e dos profetas iluminados impor ordem ao caos de opiniões e interesses da
sociedade. Eles impõem esta ordem, impõem obediência, independentemente do consentimento pela
persuasão, porque estão em posse de poderes sobre-humanos ou de autorização divina. No entanto,
agora, esta capacidade de imposição está explicitada em termos mais alcançáveis à compreensão e às
capacidades humanas. Se não é o caso que comumente se possa impor ordem na variedade e nos
conflitos de interesses por meio de poderes sobre-humanos ou inspiração divina; é ainda o caso que
assim se possa fazer mesmo sem eles, por vias meramente humanas. “Eis por que todos os profetas
armados vencem, enquanto os desarmados se arruínam”471 escreve Maquiavel. Um profeta ou herói,
se de fato é portador da graça divina ou se efetivamente imortalizou seu nome, já é previamente
pensado como portador das vias necessárias para impor seu poder. No entanto, “o problema da
inovação é tal que a autorização e inspiração divinas gozadas pelo profeta fornecia uma – mas
somente uma – das respostas aceitáveis”472 nota Pocock. Se autorização e inovação divinas são algo
de extraordinário e incomum, o uso da força é, por outro lado, uma reconhecida realidade política:
Moisés era um profeta armado, mas não precisava ser menos profeta por causa de seu uso da espada. O profeta requer armas porque, enquanto inovador, ele não deve ser dependente da boa vontade contingente de outros, e deve, portanto, possuir os meios de compelir os homens quando deixam de crer nele [...] Maquiavel está dizendo que a inspiração e a missão do profeta não o livram do contexto político criado pela inovação e que ele deve continuar a usar a arma secular por razões inerentes a este contexto.473
Se nos limitamos a entender a virtù dos legisladores como sobre-humana e, por isso, capaz de
solucionar a vulnerabilidade à variabilidade do comportamento humano nos contextos de inovação,
perdemos de vista qualquer possibilidade de imitação, mesmo aquela imitação incerta do arqueiro
prudente. No entanto, se nos questionamos sobre as vias pelas quais se efetivou a vontade divina ou
a virtù excelente, então podemos dimensionar até que ponto a imitação é possível. Assim, Lefort nos
explica que, “certamente, é na apologia da força que Maquiavel parece se deter, mas este tema revela
[...] sua função [...] de nos livrar do mito de uma história regrada pela Providência”474. O uso da
força é a parte imitável da excelência dos heróis fundadores. Ela é uma evidência ordinária da vida
470 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 27 471 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 27 472 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 170 473 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 171 474 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre: Machiavel. Paris: Gallimard, p.363
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política. O uso da força é, portanto, a alta mira na qual os que se tornam príncipes podem tentar atingir
se pensados fora do mito ou da graça, se pensados em suas realidades efetivas e limitadas. Considerar
a virtù enquanto antítese da fortuna na medida em que é capacidade do uso da força é o que permite
uma comparação de Moisés e os fundadores míticos com Savonarola:
Moisés, Ciro, Teseu e Rômulo não teriam conseguido que suas constituições fossem obedecidas por tanto tempo se estivessem desarmados. Em nossos tempos foi o que aconteceu ao frei Girolamo Savonarola, que se arruinou com suas novas ordenações a partir do momento em que a multidão começou a não acreditar nelas e ele não dispunha de meios nem para manter firmes os que haviam acreditado nem para fazer crer os descrentes. 475
A questão de Maquiavel não é se Savonarola é um falso profeta, desprovido de verdadeira graça e
que, por isso, falhou em estabelecer suas ordenações. Mesmo que Savonarola estivesse guiado pela
graça e pela sabedoria que instituiria prima forma a Florença, ele não fez o uso da força tal como um
verdadeiro profeta, tal como Moisés.
O exemplo de Savonarola e, junto dele, implicitamente, a possibilidade de se pensar o falso
profeta abrem caminho para que Maquiavel reflita sobre a fundação fora do domínio da graça e do
mito heroico. Ele termina o sexto capítulo acrescentando “a tão elevados exemplos [...] outro menor
[...] é o de Hierão, que, de homem privado, tornou-se príncipe de Siracusa”. Para pensar este exemplo,
que Maquiavel distingue com uma virtù menor do que aquela dos fundadores míticos, o autor salienta
a habilidade militar de Hierão. Foi primeiramente escolhido como “capitão, e a partir daí mereceu
tornar-se [...] príncipe”, alterou suas “milícias” e seus “soldados” a seu favor476. Nos limites humanos,
pelo uso da força pode-se aproximar daquela virtù que se pretende antítese da fortuna. O exemplo de
Hierão, entretanto, ainda é um exemplo antigo. Se não está encoberto de mitos, pode estar repleto de
imprecisões que o tempo escondeu. Maquiavel nos traz cada vez mais próximos do campo do
humanamente possível e nos apresenta um exemplo que nem se pretendia obra da graça divina, nem
estava fora de alcance da memória dos contemporâneos do autor: Francesco Sforza, que, “pelos
devidos meios e com uma grande virtù, passou de homem privado a duque de Milão” 477. Hierão e
Sforza nos apresentam possibilidades de uma aproximação das capacidades humanas com a virtù
extraordinária dos legisladores clássicos, pois, pelo uso da força, estes homens puderam se equiparar
em alguma medida com os extraordinários fundadores, estabelecendo uma relação antitética, isto é,
de independência, em relação à fortuna.
No entanto, há uma distinção demarcada, um limite claro das potencialidades destes dois
exemplos. Lefort nota que “os dois são de tão alta virtù que mantiveram sem penas aquilo que
475MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 28 476 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VI, p. 28 477 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p. 30
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conquistaram ao preço de grandes perigos, mas que não foram, nem um, nem o outro, fundadores, e
estabeleceram-se pela violência; e o segundo, certamente, mais preocupado com sua segurança do
que com o interesse do Estado”478. Precisamos ser cuidadosos com as palavras de Lefort aqui, pois
ele aponta para os fundamentais limites da ação inovadora de Sforza e Hierão diante dos exemplos
elevados elencados no início do sexto capítulo. Lefort nos diz que estes personagens não foram
fundadores. Com isso, ele aponta para o fato de que o feito de Sforza e Hierão foi o de meramente
passar de homens privados a príncipes. Fundaram, certamente, seus stati naquele sentido limitado de
se estabelecerem no poder; mas não fundaram, com isso, o corpo político, não deram unidade a povos
e nações. Este fato os distancia consideravelmente dos excelentíssimos fundadores míticos por seu
escopo de inovação ser mais limitado. Eles não são legisladores, sua inovação não guarda todas as
consequências da inovação dos legisladores, eles são, mais precisamente, príncipes novos. Pocock
escreve que “a palavra stato – normalmente usada por Maquiavel [...] no sentido de ‘governo sobre
os outros’ - não parece denotar o que o legislador traz à existência, uma comunidade política
altamente viável, estabilizada pela [...] virtù” do fundador. Enquanto meramente estabelecendo e
mantendo seu stato, o “novo príncipe [...] toma posse de uma sociedade já estabilizada pelos seus
costumes próprios, e sua tarefa [...] é substituir a ‘segunda natureza’ com outra”479.
Pocock nota como a compreensão apurada do sentido de stato elaborada por Hexter
(analisada por nós no primeiro capítulo da dissertação) revela muito sobre o como Maquiavel vê a
condição do príncipe novo:
J. H. Hexter mostrou que a frase mais frequentemente usada por Maquiavel para descrever os propósitos do novo príncipe é mantenere lo stato, e que isto carrega implicações de curto termo; parece significar pouco mais do que manter-se na posição de poder e insegurança que a inovação trouxe. Deste ponto de vista, o príncipe não deve olhar mais à frente na esperança de atingir para seu stato a quase imortalidade atingida pela criação do legislador [...] Stato significa que se está sempre com um olho nos perigos imediatos; virtù é aquilo pelo qual se resiste a eles, não aquilo pelo qual se emancipa da necessidade de temê-los [...] A virtù do legislador é bem diferente; ela constrói nações para durar 480
Os grandes legisladores e profetas servem de modelo ou horizonte para uma concepção de virtù como
independência ou antítese da fortuna. No entanto, este modelo não é completamente realizável, pois,
em geral, as forças da fortuna se impõem inevitavelmente nos contextos de inovação. Alguns podem,
pelo uso da força, aproximar-se da independência das adversidades da fortuna própria da virtù
extraordinária dos grandes legisladores e profetas. No entanto, esta aproximação ainda é insatisfatória
para responder completamente a questão do caso limitado do príncipe novo, daqueles que meramente
478 LEFORT, Claude. Le travail de l'oeuvre: Machiavel. Paris: Gallimard, p.370 479 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 175 480 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, pp. 175-176
150
de homens privados se tornam príncipes e precisam manter esta posição, seu stato em seu sentido
restrito de exercício efetivo do poder. A virtù e a relação com a fortuna são diferentes nestes casos.
Diferentemente do caso dos heróis fundadores, “a função da virtù” dos príncipes novos “não
é impor prima forma [...], mas perturbar velhas formas e mudá-las em novas”. Esta virtù não pode
ser antítese da fortuna, mas uma capacidade de convivência e confronto constante com ela, pois “o
que o novo príncipe é visto como estabelecendo é stato, uma forma de governo limitada, somente
parcialmente legitimada, somente parcialmente enraizada nos costumes”481. Esta nova concepção da
relação virtù-fortuna, que não as veem antiteticamente, é a mais apropriada para aqueles “novos
príncipes que não têm a virtù super-humana dos legisladores e profetas”482. Um novo modelo pode
então ser proposto por Maquiavel: o exemplo daqueles “que, somente pela fortuna, de homens
privados tornam-se príncipes”483. De todo modo, pensar sobre um exemplo tal seria, como coloca
Pocock, “de pouco interesse teórico”, pois alguém que conta somente com a fortuna logo deve se
arruinar. A hipótese só é de interesse na medida em que é "possível considerar o caso de um homem
usualmente endividado com a fortuna enquanto também possui habilidade fora da usual com a qual
ele neutraliza sua dependência.” 484
Este é o caso de César Bórgia. Maquiavel afirma sobre o Duque Valentino que desconhece
“preceitos melhores para dar a um príncipe novo do que os exemplos de suas ações”485. No entanto,
o que faz de César Bórgia o melhor exemplo de conduta a ser dado a um príncipe novo? Por que
Bórgia e não os fundadores míticos mencionados no sexto capítulo? O exemplo de César Bórgia
oferece os melhores preceitos a se dar a um príncipe novo porque sua “virtù e sua fortuna não estão
em uma simples relação inversa”486 Esta forma de relação com a fortuna é a mais apropriada para a
realidade concreta, para a verdade efetiva dos que passam de homens privados a príncipes que,
geralmente, se não o fazem pela fortuna, ao menos encontram-se muito dependentes dela para manter-
se. “César Bórgia é o paradigma do ‘príncipe novo’, porque teve de exercer sua ‘virtù’ em um
universo político onde todas as forças conspiram contra seu sucesso”487 comenta Bignotto. Pocock
explica que a relação do príncipe novo "com a fortuna não é aquela do fundador”, pois este incorpora
a “imagem da criatividade pessoal extraordinária imprimindo-se na circunstância como sobre uma
481 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 175 482 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 173 483 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p. 29 484 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 173 485 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p. 30 486 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 174 487 BIGNOTTO, Newton.Maquiavel republicano. São Paulo, SP: Loyola, 1991, p.130
151
tábula rasa”. No lugar desta capacidade improvável de uma capacidade pessoal extraordinária, “a
tomada da occasione por Césare meramente o fez um cavaleiro [rider] da roda; ele entrou em uma
situação na qual ele deve muito à fortuna que pode, a qualquer momento, ser levada embora.”488.
Neste sentido, a virtù não pode ser meramente independência da fortuna, pois esta dependência é
inevitável.
Como coloca Felix Gilbert, “quando Maquiavel discutia os pré-requisitos para o sucesso, ele
dizia que tinha de haver não somente uma situação que permitisse a ação e um homem capaz de agir,
mas também tinha de haver uma ocasião favorável”.489 É neste sentido que pensar o caso de Bórgia
é de especial interesse. A virtù dos legisladores clássicos e profetas não precisa mais que da mera
ocasião para se efetivar. No entanto, são exemplos muito elevados e podemos esperar pouco da
tentativa de imitá-los. Em geral, o que efetivamente ocorre, especialmente no cenário italiano em que
vivia Maquiavel, é que as instabilidades políticas, os acontecimentos imprevisíveis, o estado caótico
de coisas é o que levava um homem privado à posição de príncipe; e que estes príncipes não visavam
e nem podiam visar mais que manutenção de seus stati e uma tentativa de ao menos transferi-los
hereditariamente para uma próxima geração. Nestas condições, a virtù tem de ser pensada não como
antítese pura da fortuna, mas a partir da imagem de uma “competindo [...] contra a outra em um
embate pela superioridade” 490. Dessa forma, “a formulação de Maquiavel presumia o dinamismo de
uma cena constantemente cambiante, na qual a ação repentina pode trazer a assistência da
Fortuna”491. Esta cena constantemente cambiante, “esta contínua mudança”, explica ainda Gilbert,
“toma a forma de um embate; embate contínuo é uma condição permanente da vida política”,
especialmente se a pensamos como influenciada pela fortuna. O exemplo de Bórgia convida a pensar
a virtù, não como antítese e independência, mas como embate com a fortuna. Bórgia adequa-se mais
apropriadamente à crença maquiaveliana de que, em geral, diante da fortuna, “a oportunidade de
controlar eventos externos é oferecida ao homem somente em momentos breves e fugazes”. 492
No entanto, o exemplo de César Bórgia, por mais adequado aos contextos concretos das
contingências adversas, não se apresenta como uma solução para a fortuna, antes coloca seu problema
e dificuldade em outros termos. Problema este que posiciona Bórgia, como exemplo a ser seguido,
em uma situação parecida com a dos fundadores míticos. A questão que se coloca é: como é possível
imitar César Bórgia? Na medida em que estava constantemente envolto pela força da fortuna e,
488 POCOCK, J.G.A. The Machiavellian Moment, Princeton, Princeton University Press, 1975, p. 174 489 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence, Princeton University Press, 1965, p. 159 490 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence, Princeton University Press, 1965, pp. 195 491 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence, Princeton University Press, 1965, pp. 194 492 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence, Princeton University Press, 1965, pp. 195
152
portanto, em combate incessante com ela; na medida, além disso, em que era um exemplo ainda vivo
na memória dos interlocutores diretos de Maquiavel; o exemplo de Bórgia abria caminho para uma
virtù humana, não envolta em narrativas míticas, nem pressupondo uma relação sobre-humana com
a fortuna (a antitética ou de pura independência). Entretanto, o exemplo do Duque Valentino e a
forma como o autor o aborda não parecem causar menos problemas para a imitação do que
apresentavam os exemplos extraordinários dos heróis fundadores. Quando se trata da imitação de
César Bórgia, Maquiavel não deixa de lado a metáfora do arqueiro prudente. Não se trata de imitar
completamente, mas adequar a imitação às condições.
Para bem entendermos em que sentido o exemplo de Bórgia não é mais acessível à perfeita
imitação do que os exemplos dos excelentes fundadores do sexto capítulo, precisamos estar atentos
para o que representava o exemplo de Bórgia aos interlocutores diretos de Maquiavel. Felix Gilbert
explica que aqueles que pensavam em política após a volta dos Medici à Florença não “estavam
completamente convencidos que uma política de cálculo racional [...] era de alguma forma aplicável
a seu próprio tempo de mudanças rápidas, inesperadas e quase miraculosas na cena política.” Dentre
as motivações para tanto estava “a curta e meteórica carreira de César Bórgia”, que alimentava uma
crescente crença por parte dos humanistas de que o “sucesso político no início do século XVI parecia
ter pouca conexão com cálculo racional”493. Se, por um lado, as ações dos fundadores míticos estavam
envoltas em mistérios, no sentido de que ultrapassavam a compreensão e, logo, a possibilidade de
imitação pelos homens ordinários; por outro, a carreira política de Bórgia, ainda viva na memória
dos italianos, não se dispõe tão facilmente à compreensão e imitação. Segundo Felix Gilbert, os
pensadores florentinos contemporâneos a Maquiavel “estavam profundamente perplexos pela
emergência de personalidades e líderes políticos cuja conduta não correspondia a suas ideias de uma
política baseada no cálculo racional”, eles “tentavam penetrar o segredo que podia explicar o sucesso
de ações que deveriam ter levado à ruína.”494. As palavras de Gilbert exprimem que o exemplo de
Bórgia não era completamente apreendido pelo raciocínio político de seu tempo, de forma que se
apresentava como um mistério, uma perplexidade ou um segredo a ser penetrado. Maquiavel também
estava ciente de que conduzir a política de acordo com a pura razão tinha seus limites. Ele era extremamente crítico da hesitação e do adiamento. Determinação e força de vontade eram as qualidades que deveriam permanecer contra toda razão [reason]. Sua descrição de César Bórgia sublinhava sua crença de que a decisão resoluta é inerentemente superior à hesitação que vem de se ponderar sobre todas as variáveis. 495
493 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence, Princeton University Press, 1965, pp. 122-123 494 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence, Princeton University Press, 1965, p. 123 495 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence, Princeton University Press, 1965, p. 157
153
Maquiavel apresenta uma narrativa muito minuciosa das ações do Duque e às relaciona a
causas muito particulares ao seu contexto. E conclui, a partir de uma minuciosa narrativa, que
Quem, portanto, num principado novo, julgar necessário assegurar-se contra os inimigos, ganhar amigos, vencer pela força e pela fraude, fazer-se amado e temido pelo povo, ser obedecido e reverenciado pelos soldados, eliminar aqueles que podem ou devem ofendê-lo , restaurar com novos modos as antigas ordenações, ser severo e grato, magnânimo e liberal, eliminar as milícias infiéis, criar outras novas, manter as amizades dos reis e dos príncipes de modo que devam fazer tudo para beneficiá-lo ou refletir antes prejudicá-lo, não pode encontrar melhor exemplo do que as ações deste duque. 496
Esta passagem apresenta uma diversidade de capacidades variadas. Conseguimos reconhecer o
conselho geral de fazer o que for necessário para balancear incessantemente a dependência em relação
à força da fortuna, mas o que mais precisamente une todas estas ações? A particularidade extrema do
confronto com a fortuna não parece ser resolvida de forma definitiva ou completamente acessível
quando se considera o exemplo de Bórgia e se o recomenda. Aprendemos, antes, que, em vista da
“demanda pela coincidência de virtù individual com circunstâncias favoráveis [...] nenhuma
qualidade humana especial garantirá o sucesso na política; as qualidades pelas quais o homem pode
controlar os eventos variam de acordo com as circunstâncias” 497. O exemplo do duque é polêmico
para os contemporâneos de Maquiavel e sentido por eles como um segredo a ser penetrado. Além
disso, é preciso notar que o Duque Valentino não foi vitorioso contra a fortuna e não pôde terminar
sua vida enquanto um príncipe, sendo jogado de volta à condição privada e depois morto. Portanto,
imitar o Duque como faria um arqueiro de pontaria muito precisa seria mirar a ruína.
O exemplo de César Bórgia, portanto, não resolve as dificuldades envolvidas na fundação. A
capacidade de passar de homem privado a príncipe, a capacidade de fundar, permanece em Maquiavel
sendo algum tipo de mistério, de segredo a ser penetrado. No entanto, o enfoque e as razões para este
mistério mudam profundamente. Não é o mistério da fé, da providência superior; nem o de como
recuperar uma antiga virtù heroica presente nos legisladores clássicos. Trata-se do mistério da
contingência extrema, extremamente difícil de ser apreendida pelos humanos e ordenada pelas suas
ações. Esta mudança de enfoque, entretanto, tem consequências profundas. Se, do ponto de vista de
uma busca de verdade certa e apurada sobre a política, Bórgia permanece uma dúvida, do ponto de
vista da verdade efetiva e do aconselhamento útil, seu exemplo pode e deve ser aproveitado. Isto
porque o que se aconselha sobre Bórgia não são suas condutas em específico, mas sua atitude diante
da fortuna: uma atitude incansável de disposição constante de ânimo e coragem.
496 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Capítulo VII, p. 36 497 GILBERT, Felix. Machiavelli and Guicciardini: Politics and History in Sixteenth-Century Century Florence, Princeton University Press, 1965, p. 195
154
Pocock nos diz sobre o exemplo de César Bórgia que “Maquiavel era notoriamente fascinado
por esta figura; e, tanto foi escrito assumindo-se que ele é o herói de O Príncipe e de que os temas
centrais do livro devem todos ser entendidos em referência a esta função, que é desejável definir o
exato status que ele ocupa no livro”498. O escopo de nossa dissertação não permite uma análise
acurada da posição exata assumida por Bórgia em O Príncipe, nem uma discussão aprofundada da
tese de que ele seria o “herói” do livro. De qualquer modo, parece que há motivos razoáveis para
considera-lo central no que diz respeito ao problema da inovação, bem como à reflexão sobre a força
da fortuna como resultante da inovação e sobre a virtù como capacidade de enfrentar a força da
fortuna. A partir de seu exemplo, Maquiavel mostra o caso mais extremo de inovação: a passagem de
homem privado a príncipe. Mostra ainda que a dependência com relação à fortuna é praticamente
inevitável nesta passagem e que, portanto, a virtù é a capacidade não só de superar a fortuna, mas de
estar em constante embate com ela.
498 POCOCK, J. G. A. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic Republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975, p. 173
155
Considerações finais
Buscamos mostrar ao longo desta dissertação como Maquiavel aborda o tema da inovação
política em O Príncipe, um tratado político sobre os principados que confere especial atenção à
inovação, mais especificamente, à conquista e à fundação dos principados. O Príncipe é escrito no
estilo de um livro de aconselhamento. Portanto, é um livro de aconselhamento aos novos príncipes.
Na medida em que aborda o stato dos príncipes pelo aconselhamento, na medida em que pretende
que suas observações sejam úteis aos que são príncipes ou querem ser príncipes, Maquiavel busca
ponderar sobre as dificuldades e necessidades impostas para tanto. Ele constata que a inovação
política é o fator que mais profundamente influencia nas dificuldades e necessidades impostas aos
governantes, e assim busca discorrer sobre as dificuldades e necessidades da inovação política.
Tratando-se do governo dos principados, inovar significa destituir antigos modos e ordenações de
governo e introduzir novos. Na medida em que novos modos e ordenações entram em conflito com
os costumes estabelecidos entre seus novos súditos, sua introdução se torna dificultosa. Portanto, a
relação entre costume e inovação determina centralmente as dificuldades e necessidades sobre as
quais Maquiavel aconselha em O Príncipe, obra que pode se lida como a investigação sobre a
inovação e suas consequências.
Se, nos principados hereditários, a menor dificuldade de manter o principado está associada à
menor necessidade da inovação, nos principados novos a necessidade de inovação introduz uma série
de dificuldades e a habilidade exigida do príncipe novo é muito mais complexa e nada ordinária.
Portanto, o aconselhamento também se torna mais complexo. Duas constatações antagônicas devem
ser consideradas para abordar o problema da inovação: por um lado, a inovação política é muito
dificultosa e perigosa, na medida em que se faz contra o costume e a experiência; por outro, a inovação
se apresenta muitas vezes como necessidade, como a condição para o poder do príncipe. O
aconselhamento de Maquiavel busca ponderar quanto às vias de ação possíveis entre estas duas
constatações. Portanto, o conselho da mera contemporização segundo os acidentes como via mais
segura de ação é duramente limitado pela necessidade de inovar. Maquiavel, como vimos, examina
duas condições distintas de inovação, dois casos de príncipes novos, que necessitam enfrentar a
dificuldade da inovação: primeiramente, a conquista e o conquistador; depois, o principado
inteiramente novo e aquele que passa de homem privado a príncipe pela fundação do principado.
No caso da conquista, Maquiavel nos mostra que a habilidade exigida do príncipe é a
prudência, a capacidade de antever e se precaver pelo exame apurado das condições, bem como a de
agir ou não agir nos momentos apropriados. Se o príncipe conquistador é prudente, pode ponderar
sobre a efetividade de sua ação diante dos antagonismos da inovação que realizou e decidir
apropriadamente como se conduzir, pois a prudência permite o cálculo apropriado na deliberação
política. No entanto, para se utilizar da noção de prudência na avaliação da conquista, para falar da
156
prudência do conquistador, Maquiavel precisa flexibilizá-la, porque esta noção era tradicionalmente
pensada em harmonia com a ordem estabelecida de costume.
No caso da fundação do stato ou da passagem de homem privado a príncipe, as dificuldades
e necessidades impostas pela inovação são as mais elevadas. O príncipe deve à inovação não somente
sua conquista, mas sua posição mesma enquanto príncipe, de tal forma que as dificuldades e
necessidades da inovação assumem um caráter perigoso. Aquele que passa de homem privado a
príncipe não pode contar com nenhuma estrutura anterior de costumes. O espaço para a ponderação
prudente se torna extremamente limitado, pois a resistência ao inovador é esmagadoramente maior
que as possibilidades de mobilizar as condições estabelecidas em seu favor. Assim, a capacidade do
príncipe passa a ser descrita pelo autor nos termos da limitação da ação humana. Por esta razão, torna-
se eminente a relação entre virtù e fortuna, que exprime mais as limitações da ação humana do que
propriamente uma asseveração de suas possibilidades. A noção de virtù, enquanto habilidade de
relação com a fortuna, é uma capacidade extremamente elevada, que parece estar fora do escopo das
capacidades humanas ordinariamente disponíveis. Para bem aconselhar aqueles que de homens
privados se tornam príncipes é preciso ponderar sobre em que medida eles têm virtù e podem enfrentar
a fortuna.
Passa a interessar a Maquiavel que a fortuna dificilmente pode ser excluída da fundação. A
ponderação de Maquiavel sobre a relação virtù-fortuna, entretanto, não se pretende definitiva. Ele
não busca delimitar propriamente e com certeza o que é virtù, mas em que medida se pode atingi-la,
mesmo que imperfeitamente. Tampouco busca oferecer uma cura definitiva para os males da fortuna,
mas refletir sobre como sobreviver a eles . Quando se trata da fundação, é premente avaliar a
capacidade humana de moldar o curso da política diante de forças incontroláveis, diante da influência
da fortuna. No entanto, esta avaliação é muito delicada, pois nem uma resposta resignada à
incapacidade do homem, nem uma resposta muito otimista sobre suas capacidades são satisfatórias.
Quando se passa para o exame da virtù dentro dos limites humanos, revelam-se aqueles aspectos da
ação humana que ultrapassam a ação calculada e a razoabilidade.
Podemos ver isso notadamente expresso no exemplo de César Borgia. A partir de seu
exemplo, Maquiavel mostra o caso mais extremo de inovação e que a dependência com relação à
fortuna é praticamente inevitável na passagem de homem privado a príncipe e que, portanto, a virtù
é a capacidade não só de superar a fortuna, mas de estar em constante embate com ela. O exemplo de
Bórgia convida a pensar a virtù como embate com a fortuna. Bórgia adequa-se ao fato de que, em
geral, diante da fortuna, controlar eventos externos é uma oportunidade breve e efemeramente
oferecidas aos humanos. A longa narrativa que Maquiavel faz das ações do duque exprimem
justamente a dificuldade em se apreender as inovações radicais na cena política. As muitas
particularidades, a exigência de disposições antagônicas, a capacidade de agir com a cabeça e o
157
fígado, de mudar rapidamente de planos ou improvisar: essas são as exigências da fortuna quando os
homens ousam inovar. A partir do exemplo deste personagem, podemos apreciar a busca pela
abordagem da inovação política dentro dos limites da ação possível aos humanos.
De todo modo, Maquiavel busca abordar esta dificuldade de modo que o conselho útil ainda
possa operar. Quando se trata da imitação de César Bórgia, ele não deixa de lado a metáfora do
arqueiro prudente. Não se trata de imitar completamente, mas adequar a imitação às condições. O
exemplo de César Bórgia, portanto, não resolve as dificuldades envolvidas na fundação. A capacidade
de passar de homem privado a príncipe, a capacidade de fundar, permanece em Maquiavel sendo
algum tipo de mistério, de segredo a ser penetrado. Trata-se do mistério da contingência extrema,
extremamente difícil de ser apreendida pelos humanos e ordenada pelas suas ações. Se, do ponto de
vista de uma busca pela verdade certa e apurada sobre a política, Bórgia permanece uma dúvida, do
ponto de vista da verdade efetiva e do aconselhamento útil, seu exemplo pode e deve ser aproveitado.
Isto porque o que se aconselha a partir de Bórgia não são suas condutas particulares, mas sua atitude
diante da fortuna: uma atitude incansável de disposição constante de ânimo e coragem
158
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160
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161
Anexo: Di Fortuna = Da Fortuna Tradução de Patrícia Fontoura Aranovich (Cadernos de ética e filosofia politica, n18, 2011)
DI FORTUNA
A GIOVAN BATTISTA SODERINI
Con che rime giammai o com che versi
canterò io del regno di Fortuna,
e de’ suo’ casi prosperi e avversi?
E come iniuriosa ed importuna,
secondo iudicata è qui da noi,
sotto il suo seggio tutto il mondo aduna?
Temer, Giovan Battista, tu non puoi,
né debbi in alcun modo aver paura
d’altre ferite che de’ colpi suoi;
perché questa volubil creatura
spesso si suole oppor con maggior forza,
dove più forza vede aver natura.
Sua natural potenza ogni uomo sforza;
e ‘l regno suo è sempre violento,
se virtù eccessiva non l’ammorza.
Ond’io ti priego che tu sia contento
considerar questi miei versi alquanto,
se ci sia cosa di te degna drento.
E la diva crudel rivolga intanto
ver di me gli occhi sua feroci, e legga
quel ch’or di lei e del suo regno canto.
E benché in alto sopra tutti segga,
DA FORTUNA
A GIOVAN BATTISTA SODERINI
Com quais rimas ou com quais versos, jamais,
cantarei eu o reino da Fortuna
e seus casos prósperos e adversos?
E como, injuriosa e inoportuna,
conforme aqui a julgamos,
sob seu trono todo o mundo reúne?
Temer, Giovan Battista, não podes,
nem deves, de modo algum, ter medo
de outras feridas que não as de seus golpes;
porque esta volúvel criatura
freqüentemente se opõe com maior força,
onde maior força vê ter a natureza.
Sua natural potência cada homem obriga,
e seu reino é sempre violento,
se uma grande virtù não o amortece
E te peço que fiques contente
ao considerar meus versos
se tiver neles algo digno de ti.
E a diva cruel volta, no momento,
para mim seus olhos ferozes, e lê
o que canto dela e de seu reino.
E, ainda que, no alto, sobre todos sente
162
comandi e regni impetuosamente,
chi del suo stato ardisce cantar vegga.
Questa da molti è detta onnipotente,
perché qualunche in questa vita viene,
o tardi o presto la sua forza sente.
Costei spesso gli buon sotto i piè tiene,
gl’improbi innalza; e se mai ti promette
cosa veruna, mai te la mantiene.
E sottosopra e regni e stati mette
Secondo ch’a lei pare, e’ giusti priva
del bene che agli ingiusti larga dette.
Questa incostante dea e mobil diva
gl’indegni spesso sopra un seggio pone,
dove chi degno n’è, mai non arriva.
Costei il tempo a suo modo dispone;
questa ci esalta, questa ci disface,
senza pietà, senza legge o ragione
Né favorire alcun sempre le piace
per tutt’i tempi, né sempre mai preme
colui che ‘n fondo di sua rota giace.
Di chi figliuola fussi, o di che seme
nascessi, non si sa; ben si sa certo
ch’infino a Giove sua potenzia teme.
Sopra un palazzo d’ogni parte aperto
regnar si vede, e a verun non toglie
l’entrar in quel, ma è l’uscir incerto.
Tutto il mondo d’intorno vi si accoglie,
desideroso veder cose nove,
e pien d’ambizione e pien di voglie.
comande e reine impetuosamente,
vê quem ousa cantar o seu estado.
Esta, por muitos é dita onipotente,
porque qualquer um que venha a esta vida,
cedo ou tarde sente sua força.
Ela tem freqüentemente os bons sob seus pés,
enquanto ergue os ímprobos; e se alguma vez te
[promete
alguma coisa, jamais mantém a promessa.
De cabeça para baixo coloca reinos e estados
segundo seu capricho, e priva os justos,
do bem que aos injustos oferece largamente.
do qu
Esta inconstante deusa e móvel diva
os indignos freqüentemente põe sobre um trono
onde quem é digno jamais chega.
Ela dispõe o tempo ao seu modo;
exalta este, derruba aquele,
sem piedade, sem lei ou razão.
Nem favorecer sempre o mesmo a apraz,
por todo o tempo, nem preme sempre
alguém que no mais baixo de sua roda jaz.
De quem é filha, ou de que semente
nasceu, não se sabe; o que é certo
é que mesmo Júpiter teme sua potência.
Sobre um palácio totalmente aberto
se vê reinar, e a ninguém impede
a entrada, mas o partir é incerto.
Todo o mundo reúne-se ao seu redor,
desejoso de ver coisas novas,
cheio de ambições e de vontades.
163
Lei si dimora in su la cima, dove
la vista sua a qualunque uom non niega;
ma piccol tempo la rivolve e muove.
E ha duo volti questa antica strega,
l’un fero e l’altro mite; e mentre volta,
or non ti vede, or ti minaccia, or prega.
Qualunque vuole entrar, benigna
[ascolta;
ma con chi vuole uscirne poi s’adira,
e spesso del partir gli ha la via tolta.
Dentro, con tante ruote vi si gira
quant’è vario il salire a quelle cose
dove ciascun che vive pon la mira.
Sospir, bestemmie e parole iniuriose
s’odon per tutto usar da quelle genti,
che dentro al segno suo fortuna ascose;
e quanto son più ricchi e più potenti,
tanto in lor più discortesia si vede,
tanto son del suo ben men conoscenti.
Perché tutto quel mal ch’in voi
[procede,
s’imputa a lei; e s’alcun ben l’uom truova,
per sua propria virtude averlo crede.
Tra quella turba variata e nuova
di que’ conservi che quel loco serra,
Audacia e Gioventù fa miglior pruova.
Vedevisi il Timor prostrato in terra,
Tanto di dubbii pien, che non fa nulla;
poi Penitenzia e Invidia li fan guerra.
Quivi l’Occasion sol si trastulla,
Ela permanece no topo, onde
jamais recusa seu olhar a qualquer homem;
mas, em pouco tempo, o desvia e move.
E ela tem duas faces, esta antiga bruxa,
uma feroz e a outra tranqüila; e, no momento em que a
[volta,
ora não te vê, ora te ameaça, ora te convida.
A quem quer que queira entrar, benigna ela
[escuta;
mas, com quem quer sair depois, se ira,
e, freqüentemente, impede a passagem.
Dentro, são tantas rodas que se vêem rodar
quão variado é o subir até aquelas coisas
que cada um que vive tem em mira.
Suspiros, blasfêmias e palavras injuriosas
se ouvem em toda parte daquelas pessoas
que pela Fortuna foram escondidas em seu signo;
e quanto mais ricos e poderosos se tornam,
tanto mais descortesia se vê neles,
tanto são de seus bens pouco reconhecidos.
Porque todo mal que vos ocorre
se atribui à ela; e se algum bem o homem encontra,
crê tê-lo adquirido por sua própria virtude.
Entre aquela turba variada e nova
daqueles que naquele lugar se encontram encerrados,
Audácia e Juventude são as que mais se destacam.
Se vê o Temor prostrado em terra,
com tantas dúvidas que nada faz
Penitência e Inveja depois lhe fazem guerra.
Ali a Ocasião apenas se diverte
164
e va scherzando fra le ruote attorno
la scapigliata e semplice fanciulla;
e quelle ruoton sempre notte e giorno,
perché il ciel vuole (a cui non si contrasta)
ch’Ozio e Necessità le volti intorno.
L’una racconcia il mondo, e l’altro il
[guasta.
Vedesi d’ogni tempo e ad ogni otta
quanto val Pazienzia e quanto basta.
Usura e Fraude si godono in frotta
potenti e ricchi; e tra queste consorte
sta Liberalità stracciata e rotta.
Veggonsi assisi sopra de le porte
che mai, come s’è detto, son serrate
senz’occhi e senza orecchi Caso e Sorte.
Potenzia, onor, ricchezza e sanitate
stanno per premio; per pena e dolore,
servitù, infamia, morbo e povertate.
Fortuna il rabbioso suo furore
dimostra con quest’ultima famiglia;
quell’altra porge a chi lei porta amore.
Colui con miglior sorte si consiglia,
tra tutti gli altri che in quel loco stanno,
che ruota al suo voler conforme piglia;
perché gli umor ch’adoperar ti fanno,
secondo che convengon con costei,
son cagion del tuo bene e del tuo danno.
Non però che fidar ti possa in lei
né creder d’evitar suo duro morso
suo’ duri colpi impetuosi e rei;
e vai brincando entre e em torno das rodas,
a descabelada e simples donzela.
As rodas giram sem cessar dia e noite,
porque o céu o quer (a quem não se contraria)
que o Ócio e a Necessidade girem em torno delas.
Uma conserta o mundo e o outro o estraga.
Se vê, todo tempo e a cada instante,
o quanto vale a Paciência e o quanto ela basta.
o qua
Usura e Fraude divertem-se em grupo
potente e rico; e entre estes dois companheiros,
está a Liberalidade, estraçalhada e rota.
Se vêem sentadas, acima das portas
que jamais, como já se disse, são fechadas
sem olhos e sem orelhas, Caso e Sorte.
Potência, honra, riqueza e saúde
são os prêmios, por pena e dor,
servidão, infâmia, doença e pobreza.
Fortuna, o raivoso seu furor
demonstra com esta derradeira família,
aquela outra dá a quem ela tem amor.
O que melhor sorte consegue;
entre todos os outros que estão naquele lugar,
é que aquele que pega a roda segundo o seu querer;
porque os humores que usares em tua escolha,
segundo o que para ela é conveniente
será a razão de teu bem e de teu dano.
Isto não quer dizer, porém, que tu possas
[confiar nela
nem crer evitar sua dura mordida
seus duros golpes, impetuosos e maus.
165
perché, mentre girato sei dal dorso
di ruota per allor felice e buona
la suol cangiar le volte a mezzo il corso;
e, non potendo tu cangiar persona
né lasciar l’ordin di che ‘l ciel ti dota
nel mezzo del cammin la t’abbandona.
Però, se questo si comprende e nota,
Sarebbe un sempre felice e beato,
che potessi saltar di rota in rota;
ma perché poter questo ci è negato
per occulta virtù che ci governa,
si muta col suo corso il nostro stato.
Non è nel mondo cosa alcuna eterna:
Fortuna vuol così, che se n’abbella,
acciò che ‘l suo poter più si discerna.
Però si vuol lei prender per sua stella
e quanto a noi è possibile, ogni ora
accomodarsi al variar di quella.
Tutto quel regno suo, dentro e di fuora
istoriato si vede e dipinto
di que’ trionfi de’ qua’ più s’onora.
Nel primo loco, colorato e tinto,
si vede come già sotto l’Egitto
il mondo stette subiugato e vinto:
e come lungamente il tenne vitto
con lunga pace, e come quivi fue
ciò ch’è di bel ne la natura scritto;
veggonsi poi gli Assirii ascender sue
ad alto scettro, quand’ella non volse
che quel d’Egitto dominassi piue;
Porque, enquanto tu és girado pelas costas,
pela roda, agora feliz e boa,
ela cos ela costuma mudar os giros no meio do curso;
e, não podendo tu mudar de pessoa
nem a nem bandonar a ordem da qual o céu te dota,
no no meio do caminho ela te abandona.
Porém, se isto se compreende e nota,
seria sempre feliz e beato,
quem pudesse saltar de roda em roda.
Mas, porque este poder nos é negado
pela oculta virtù que nos governa,
muda, com seu curso, o nosso estado.
Neste mundo, nenhuma coisa é eterna:
a fortuna o quer assim, disso ela se embeleza,
a fim de que seu poder mais se distinga.
Mas se quer ser conforme sua estrela
quanto a nós, é possível, a cada hora,
acomodar-se ao variar daquela.
Todo seu reino, dentro e fora,
ilustrado se vê, e pintado,
com os triunfos dos quais mais se honra.
Em primeiro lugar, colorido e pintado,
se vê como já sob o Egito
o mundo esteve subjugado e vencido:
e como longamente ele venceu,
com duradoura paz, e como então
o que é belo na natureza se escreveu.
Se vêem depois os Assírios ascenderem
ao domínio supremo, quando ela não quis
que o Egito dominasse mais;
166
poi, come a’ Medi lieta si rivolse;
da’ Medi a’ Persi: e de’ Greci la chioma
ornò di quello onor ch’a’ Persi tolse.
Quivi si vede Menfi e Tebe doma,
Babilon, Troia e Cartagin con quelle,
Ierusalem, Atene, Sparta e Roma.
Quivi si mostran quanto furon belle
alte, ricche, potenti e come al fine
fortuna a’ lor nimici in preda dielle.
Quivi si veggon l’opre alte e divine
de l’imperio roman, poi, come tutto
il mondo infranse con le sue rovine.
Come un torrente rapido, ch’al tutto
superbo è fatto, ogni cosa fracassa,
dovunque aggiugne il suo corso per tutto;
e questa parte accresce e quella
[abbassa,
varia le ripe, varia il letto e ‘l fondo
e fa tremar la terra donde passa;
così Fortuna, col suo furibondo
impeto, molte volte or qui or quivi
va tramutando le cose del mondo.
Se poi con gli occhi tuoi più oltre
[arrivi,
Cesare e Alessandro in una faccia
vedi fra que’ che fur felici vivi.
Da questo esempio, quanto a costei
[piaccia,
quanto grato le sia, si vede scorto,
chi l’urta, chi la pigne o chi la caccia.
depois, como aos Medas se volta alegre,
dos Medas aos Persas: e a cabeleira dos Gregos
ornou com aquela honra que tirou dos Persas.
Aqui se vê Mênfis e Tebas domados,
Babilônia, Tróia e Cartago com aquelas,
Jerusalém, Atenas, Esparta e Roma.
Aqui se mostram como foram belas,
altas, ricas, potentes, e como, no fim,
a fortuna lhes deu como presa a seus inimigos.
Aqui se vêem as obras altas e divinas
do Império Romano; depois, como todo
o mundo se despedaçou com suas ruínas.
Como uma torrente rápida, que tão
soberba se tornou, cada coisa se despedaça
e em qualquer lugar é alcançada por seu curso
e esta parte cresce e aquela abaixa,
variam as margens, varia o leito e o fundo,
e faz tremer a terra por onde passa;
assim a Fortuna, com seu furibundo
ímpeto, muitas vezes, aqui ou ali
vai transmutando as coisas do mundo.
Se, depois, com teus olhos, puderes chegar bem
[longe,
César e Alexandre, em uma face,
vês entre os que foram felizes na vida.
Por esse exemplo se vê com clareza
quanto a esta apraz, quão agradável lhe seja,
quem a bate, quem a empurra ou quem a caça.
167
Pur nondimanco al desiato porto
l’un non pervenne, e l’altro, di ferite
pieno, fu l’ombra del nimico morto.
Appresso questi son genti infinite,
che per cadere in terra maggior botto,
son con costei altissimo salite.
Con questi iace preso, morto e rotto
Ciro e Pompeio, poi che ciascheduno
fu da Fortuna infin al ciel condotto.
Avresti tu mai visto in loco alcuno
come una aquila irata si trasporta,
cacciata da la fame e dal digiuno?
E come una testudine alto porta
acciò che ‘l colpo del cader la ‘nfranga,
e pasca sé di quella carne morta?
Così Fortuna, non, ch’ivi rimanga,
porta uno in alto, ma che, ruinando,
lei se ne goda e lui cadendo pianga.
Ancor si vien dopo costor mirando
come d’infimo stato alto si saglia,
e come ci si viva variando.
Dove si vede come la travaglia
e Tullio e Mario, e li splendidi corni
più volte di lor gloria or cresce, or taglia.
Vedesi alfin che tra’ passati giorni
pochi sono e’ felici; e que’ son morti
prima che la lor ruota indrieto torni,
o che voltando al basso ne li porti.
Mesmo assim, ao desejado porto
um não chegou, e o outro cheio de feridas
foi à sombra do inimigo morto.
Em seguida, estas são gentes infinitas
que para cair na terra com tão grande impacto
devem ter subido com ela muito alto
Com estes jaz, preso, morto e roto.
Ciro e Pompeu, depois que cada um
foi enfim pela Fortuna ao céu conduzido.
Já vistes em algum lugar
Como uma águia irada se lança
empurrada pela fome e pelo jejum?
E como uma tartaruga leva para o alto
a fim de que o golpe da queda a rompa
e alimenta-se daquela carne morta?
Assim a Fortuna, não para que ali fique,
eleva-o alto, para que, arruinando,
ela se divirta e ele, caindo, se lamente.
Admirando os que vêm, depois
vê-se como de ínfimo estado,
alto se sobe e como ali se vive variando.
Onde se vê como ela atormenta
seja Túlio e Mário, e como tantas vezes
os esplêndidos cornos de sua glória ora cresce ora corta.
Vê-se, ao fim, que entre os dias que se passaram,
poucos são os felizes; e os que são mortos
antes que sua roda retorne ao início,
ou que, voltando para baixo os leve.