conquista de terras em conjunto: redes sociais e confiança experiência araponga

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  • ANA PAULA TEIXEIRA DE CAMPOS

    "CONQUISTA DE TERRAS EM CONJUNTO": REDES SOCIAIS E CONFIANA - A EXPERINCIA DOS AGRICULTORES E

    AGRICULTORAS FAMILIARES DE ARAPONGA-MG

    Tese apresentada Universidade Federal de Viosa, como parte das exigncias do Programa de Ps-Graduao em Extenso Rural, para obteno do ttulo de Magister Scientiae.

    VIOSA MINAS GERAIS - BRASIL

    2006

  • Ficha catalogrfica preparada pela Seo de Catalogao e Classificao da Biblioteca Central da UFV

    T Campos, Ana Paula Teixeira de, 1971- C198c Conquista de terras em conjunto : redes sociais e 2006 confiana - a experincia dos agricultores e agricultoras familiares de Araponga - MG / Ana Paula Teixeira de Campos. Viosa : UFV, 2006. xiii, 102f. : il. ; 29cm. Orientador: Fbio Faria Mendes. Dissertao (mestrado) - Universidade Federal de Viosa. Referncias bibliogrficas: f. 97-102. 1. Sociologia rural - Araponga (MG). 2. Capital social (Sociologia). 3. Redes de relaes sociais. 4. Cooperativas de crdito agrcola - Araponga (MG). 5. Sindicatos - Trabalhadores rurais - Araponga (MG). 6. Comunidade - Desenvolvimento - Araponga (MG). 7. Microfinanas - Araponga (MG). I. Universidade Federal de Viosa. II.Ttulo. CDD 22.ed. 307.72

  • ANA PAULA TEIXEIRA DE CAMPOS

    "CONQUISTA DE TERRAS EM CONJUNTO": REDES SOCIAIS E CONFIANA - A EXPERINCIA DOS AGRICULTORES E

    AGRICULTORAS FAMILIARES DE ARAPONGA-MG

    Tese apresentada Universidade Federal de Viosa, como parte das exigncias do Programa de Ps-Graduao em Extenso Rural, para obteno do ttulo de Magister Scientiae.

    APROVADA: 29 de maro de 2006 ______________________________ ___________________________ John Cunha Comeford Jos Noberto Muniz ______________________________ ___________________________ Maria Izabel Vieira Botelho Franklin Daniel Rothman (Conselheira) (Conselheiro)

    ________________________________ Fbio Faria Mendes

    (Orientador)

  • ii

    Aos meus pais, Dina e Sebastio

    (in memorian), pela presena sempre constante.

  • iii

    AGRADECIMENTOS

    Esta pesquisa no teria sido possvel sem a colaborao de vrias pessoas

    no decorrer do seu processo. Mas gostaria de agradecer as que estiveram bem

    prximas nesta caminhada.

    De forma muito especial, agradeo e dedico este trabalho ao Sindicato de

    Trabalhadores Rurais de Araponga, nas pessoas de Seu Nenm, Maurlio, Jos

    Edson, Joo Donizete, Snia, Ilson, Seu Cosme, Romualdo e Pedro, pela

    acolhida no Sindicato para discutirmos o projeto de pesquisa, no seu

    consentimento e na disponibilidade em agendar as entrevistas. s famlias que

    me receberam com todo o carinho e ateno em suas casas para a realizao das

    entrevistas gravadas: Seu Nenm e Dona Zilda; Seu Cosme e Dona Amlia;

    Nadir e Cludio; Paulinho e Cleudinia; Romualdo e Avanir; Joo e Sandrinha;

    Seu Bibim e Dona Gracinha; e por fim, Maurlio e Ftima. s 79 famlias que

    nos receberam com todo o carinho e ateno em suas casas para a realizao das

    entrevistas para aplicao do questionrio semi-estruturado. Aos demais

    agricultores(as) e trabalhadores(as) rurais que fizeram e fazem parte dessa

    histria.

  • iv

    Aos membros do Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata,

    pelo apoio, discusso do projeto, elaborao dos questionrios, disponibilidade

    de material e transporte para as viagens Araponga. Em especial ao Breno e ao

    Ferrari pela longa e esclarecedora entrevista sobre a histria do CTA e o trabalho

    conjunto com os agricultores e agricultoras. Tambm meu agradecimento muito

    especial ao Romualdo, por sempre estar disponvel para esclarecer dvidas sobre

    a histria da conquista e tambm pelo apoio na sua realizao. E Simone, pelo

    incentivo, apoio e sugestes desde o projeto de pesquisa da monografia de

    especializao.

    Ao meu orientador, prof. Fbio Faria Mendes, pela valiosa contribuio

    para a realizao deste trabalho, sempre presente em todo o seu processo para

    esclarecer dvidas, tecer comentrios, sugestes e a participar da aplicao dos

    questionrios.

    Aos assistentes de pesquisa na aplicao do questionrio: Flvia

    Imaculada Silva, Clara Teixeira Ferrari e Bruno Bottino de Paiva. Este ltimo,

    tambm pelo trabalho conjunto na codificao e tabulao dos dados.

    profa. Maria Izabel Vieira Botelho e ao prof. Franklin Daniel

    Rothman, pela contribuio enquanto conselheiros e membros da banca de tese.

    Aos demais professores do Departamento de Economia Rural, em

    especial s profas. Nora Presno Amodeo e Ana Louise Carvalho Fiza pelas

    sugestes e comentrios na defesa do projeto.

    profa. France Maria Gontijo Coelho, pelas oportunas sugestes

    durante apresentao do seminrio, mas tambm pelo exemplo de dedicao ao

    trabalho com os agricultores e agricultoras.

    Ao prof. John Cunha Comerford do CPDA-UFRRJ, pela disponibilidade

    em participar da banca de defesa da dissertao.

    Ao prof. Jos Norbeto Muniz pelas sugestes na elaborao do

    questionrio e na codificao do mesmo.

    Ao prof. Ricardo dos Santos Ferreira, do Departamento de Informtica,

    pela disponibilidade e na sugesto ao uso do programa Dot, para a construo

    dos sociogramas.

  • v

    Aos funcionrios do Departamento de Economia Rural, em especial

    Carminha, Graa, Brilhante, Cida, Helena e Tedinha, sempre atenciosos.

    Agradeo CAPES por um ano de bolsa de pesquisa que viabilizou a

    finalizao deste trabalho.

    Aos colegas do curso, Daniela, Bernadete, Selma e Valdir, em especial

    Flvia, Amanda e ao Tiago pela oportunidade de nos conhecermos melhor no

    grupo de estudo, sempre companheiros. Mas devo agradecer de forma muito

    especial Flvia, que se tornou amiga e companheira fundamental nessa

    caminhada e na vida cotidiana.

    Aos meus familiares e demais amigos e amigas pelo apoio e incentivo

    durante esses dois anos de mestrado.

    Ao meu esposo, companheiro, amigo, dedicado e paciente Cacau. Ao

    nosso filho, Luca, que est a caminho....

  • vi

    BIOGRAFIA

    Ana Paula Teixeira de Campos nasceu em 1971, na cidade de So Paulo,

    capital. Aos nove anos, juntamente com sua famlia, mudou-se para Braslia e aos

    quinze mudou-se para Goinia, onde permaneceu at completar o curso de

    Comunicao Social - Habilitao Rdio e Televiso na Universidade Federal de

    Gois, em 1995.

    Entre 1993 e 1995 trabalhou no Secretariado Nacional da Comisso

    Pastoral da Terra no setor de documentao e recepo, onde pode estar em

    contato com um mundo rural que at ento desconhecia.

    Em 1995 mudou-se para Louvain-la-Neuve, Blgica, onde inicia em 1996

    o curso de Especializao em Estudos de Pases em Desenvolvimento, na

    Universidade Catlica de Louvain.

    Em 1999, retorna ao Brasil para morar em Viosa e realiza alguns

    trabalhos em produo de vdeos documentrios para o CTA-ZM. Entre 2002 e

    2003 faz o Curso de Especializao em Planejamento Municipal, do

    Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Viosa,

    tendo como objeto de estudo da monografia a experincia da Conquista de Terras

    em Conjunto. Em maro de 2004 ingressa no curso de Mestrado em Extenso

    Rural desta mesma universidade.

  • vii

    NDICE

    Pgina

    LISTA DE FIGURAS, TABELAS E SOCIOGRAMAS........................... ixRESUMO.................................................................................................... xiABSTRACT............................................................................................... xiii

    1. INTRODUO ..................................................................................... 01

    1.1. Problema, Hiptese e Objetivos da Pesquisa.................................. 03

    1.2. Metodologia.................................................................................... 04

    2. HISTRIA DE OCUPAO NA ZONA DA MATA E ARAPONGA.............................................................................................. 11

    3. REFERENCIAL TERICO................................................................... 19

    3.1. Associaes de Crdito Rotativo..................................................... 20

    3.2. Sociologia da Vida Econmica, Anlise de Redes e Confiana..... 22

    3.3. Desenvolvimento e Capital Social ................................................. 27

    4. A TRAJETRIA DA "CONQUISTA DE TERRAS EM CONJUNTO". 32

    4.1. A Gnese da Experincia e as Comunidades Eclesiais de Base - CEBs ..................................................................................................... 33

    4.2. A Primeira Compra Coletiva........................................................... 42

  • viii

    5. A "CONQUISTA DE TERRAS EM CONJUNTO", REDES SOCIAIS, CONFIANA E AGRICULTURA FAMILIAR................................... 54

    5.1. Parentesco e Redes Sociais na Conquista de Terras em Conjunto.......................................................................................... 54

    5.2. Formas de Monitoramento e Confiana na Conquista de Terras em Conjunto..................................................................................... 68

    5.3. A Conquista de Terras em Conjunto e os Atores Externos: o Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata, o Sindicato de Trabalhadores Rurais, a Fundao Ford e a Criao do Fundo de Crdito Rotativo.......................................................................... 74

    6. DESENVOLVIMENTO E QUALIDADE DE VIDA........................... 84

    7. CONSIDERAES FINAIS................................................................. 94

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS....................................................... 97

  • ix

    LISTA DE FIGURAS, TABELAS E SOCIOGRAMAS

    Pgina

    FIGURA 01 Regies do Estado de Minas Gerais: Localizao do Municpio de Araponga na Zona da Mata Mineira..................................................................... 18

    FIGURA 02 Cronologia da Conquista de Terras em Conjunto................................................................. 33

    FIGURA 03 Nmero de Famlias Participantes e rea da Compra em Conjunto (1989-2005)......................... 47

    FIGURA 04 rea Mdia das Compras de Terras em Hectares (1989 -2005)........................................................... 48

    FIGURA 05 Padres Intergeracionais de Posse da Terra entre os(as) Agricultores(as) de Araponga (Esposo)....... 50

    FIGURA 06 Padres Intergeracionais de Posse da Terra entre os(as) Agricultores(as) de Araponga (Esposa)....... 51

    FIGURA 07 Acesso Educao Formal e No Formal, Aps a Conquista de Terras................................................ 90

    FIGURA 08 Melhoria da Condies de Moradia, Aps a Conquista de Terras................................................ 91

  • x

    FIGURA 09 Participao Social dos Homens, Antes e Depois da Conquista de Terras........................................... 92

    FIGURA 10 Participao Social das Mulheres, Antes e Depois da Conquista de Terras........................................... 93

    TABELA 01 Estabelecimentos Rurais - Araponga (1996).......... 16

    TABELA 02 Distribuio do Tamanho das Propriedades da Conquista de Terras - Araponga (2005)................. 17

    TABELA 03 Origem da Terra Conquistada - Araponga (2006).. 18

    TABELA 04 Estrutura Ocupacional, para as Trs Geraes de Agricultores(as) de Araponga................................. 53

    SOCIOGRAMA 01 Redes de Parentesco por Grupos de Famlia.......... 58

    SOCIOGRAMA 02 Redes de Parentesco............................................... 60

    SOCIOGRAMA 03 Redes de Informao.............................................. 62

    SOCIOGRAMA 04 Relaes de Vizinhana.......................................... 64

    SOCIOGRAMA 05 Estrutura de Rede e Seqncia Temporal das Compras de Terras.................................................. 67

  • xi

    RESUMO

    CAMPOS, Ana Paula Teixeira de. M. S.; Universidade Federal de Viosa, Maro de 2006. "Conquista de Terras em Conjunto": Redes Sociais e Confiana - A experincia dos agricultores e agricultoras familiares de Araponga - MG. Orientador: Fbio Faria Mendes. Conselheiros: Maria Izabel Vieira Botelho e Franklin Daniel Rothman.

    No municpio de Araponga, em Minas Gerais, uma experincia de compra

    coletiva de terras entre os pequenos proprietrios e trabalhadores rurais vem, at

    o momento, se destacando como uma experincia nica de compras conjuntas de

    terras em nosso pas. A experincia foi denominada, pelos prprios participantes,

    de "Conquista de Terras em Conjunto". A partir da iniciativa dos prprios

    agricultores, a iniciativa foi se consolidando progressivamente, com o suporte de

    agentes externos. Neste esquema de crdito rotativo, os pequenos proprietrios e

    trabalhadores rurais adquirem conjuntamente uma rea de terra, em que cada

    novo proprietrio pode adquirir terra de acordo com suas condies. Os lotes

    individuais variam, em mdia, de 1 a 6 hectares. Esta experincia comeou em

    1989 e, desde ento, 110 famlias j conquistaram o seu pedao de terra,

    totalizando 498,0 hectares. O nosso objetivo foi compreender como foi possvel

  • xii

    aos agricultores "criar" o conjunto de regras e procedimentos que configuram a

    Conquista de Terras em Conjunto. Ademais, buscou-se neste trabalho

    compreender como tornou-se possvel expandir e institucionalizar a experincia a

    ponto de incorporar um nmero cada vez maior de famlias. Para analisarmos a

    experincia partimos do pressuposto que redes de relaes pr-existentes e redes

    de informao, estruturadas a partir de parentesco e vizinhana, constituram a

    base de interao que permitiu, atravs da reinveno de formas tradicionais de

    ajuda mtua, superar os dilemas de ao coletiva e dar incio experincia. A

    partir da descrio, coleta e anlise dos dados foi possvel traar a histria da

    Conquista de Terras em Conjunto, compreender como novas famlias foram

    incorporadas no decorrer do tempo e identificar o papel dos atores externos na

    consolidao da experincia. Como metodologia, fizemos uso de entrevistas

    semi-estruturadas em profundidade, questionrios, observao participante e

    histria oral. O questionrio semi-estruturado foi aplicado 79 famlias, que nos

    possibilitou analisar padres de organizao familiar, mobilidade social,

    participao e estratgias econmicas das famlias, realizando um mapeamento

    das redes de relaes sociais dos envolvidos. A partir das informaes coletadas

    nos questionrios foi possvel construir sociogramas bi-dimensionais, grficos,

    tabelas e figuras, que nos permitiram representar os fluxos de informao e

    confiana que estruturaram a Conquista de Terras em Conjunto. Nossos

    conceitos centrais foram Redes Sociais (networks), Confiana e

    Desenvolvimento como Liberdade. O estudo demonstrou que a presena de redes

    de relaes e de contextos de confiana foram cruciais para que a cooperao em

    bases amplas permitissem que a experincia pudesse emergir. Deste modo, a

    experincia dos agricultores e agricultoras familiares de Araponga, nos mostra

    que possvel inventar novos modos de adquirir terra e permanecer no campo,

    mesmo em condies adversas. A conquista de liberdade para poder plantar o

    que desejar, no usar agrotxicos, os filhos poderem frequentar escola e a

    famlia poder participar dos movimentos sociais, levou meeiros e trabalhadores

    rurais a acreditar na possibilidade de comprar terra.

  • xiii

    ABSTRACT

    CAMPOS, Ana Paula Teixeira de. M. S.; Universidade Federal de Viosa, March 2006. "Joint Land Conquest": Social Networks and Trust - The smallholders experience in Araponga - MG. Adviser: Fbio Faria Mendes. Committee members: Maria Izabel Vieira Botelho and Franklin Daniel Rothman.

    This work analyses an experience of land buying by agricultural laborers and

    smallholders in Araponga, a municipality in southeast of Minas Gerais, which

    has got evidence as a singular case of common land buying in Brazil. The

    agricultural laborers and smallholders called the initiative Joint Land Conquest

    (Conquista de Terras em Conjunto). This action was started by themselves, and

    progressively becomes more strong helped by external agents. Through this

    informal organization of mutual help, the smallholders, sharecroppers and wage

    workers take a loan from a collective fund to buy jointly an area of land. The

    land area is variable, but in general, the families obtain from one to six hectares.

    Since 1989, when the experience has began, 110 families have already bought

    their own piece of land. Nowdays, the sum of all bought land is around 498

    hectares. Our goal was to understand how the agricultural laborers have defined a

    set of rules and procedures to build the Joint Land Conquest. Moreover, this

  • xiv

    work also targets to understand how this experience was scaled up and

    institutionalized to include a growing number of families. By mobilizing trust

    networks embedded in kinship, neighborhood, and religious militancy, the

    farmers have invented new ways of coping with land scarcity. The scheme

    reinvented traditional forms of mutual help and reciprocity between kin and

    friends of the Brazilian traditional peasantry. We have collected and analyzed

    data to trace the history of Joint Land Conquest, to understand how new families

    have been incorporated and to identify the role of external actors to consolidate

    this experience. The methodology was based on in-depth semi-structured

    interviews, survey questionnaires, oral history and participated observation. The

    semi-structured questionnaire was applied to 79 families, and allows us to

    analyze family organization patterns, social mobility, social participation, and

    economic strategies, thus mapping of the embedded social relationship network.

    The collected data was used to build bi-dimensional sociograms, tables and

    figures, which allow us to represent the information and trust flow that structured

    the Joint Land Conquest. Our main concepts were social networks, trustiness,

    development to get freedom. The study shows that the relationship networks and

    trust context were crucial to create a huge basis to support the experience

    growing. Arapongas association is a very interesting experience of agrarian

    change, devised by the farmers and rural workers themselves, without overt

    conflict with landholders. The practice of common buying permits peasants with

    reduced savings to join efforts and buy larger pieces of land. Landowners would

    not sell minor parts of land and would not give credit to humble rural workers.

    Special care is given to water bodies and forest reserves in the area. Moreover, in

    this context, land means freedom to chose biologic cultivation, to give

    opportunity to theirs children to go the school, to get a active hole in social

    movements. The dream of buying theirs own land becomes real.

  • 1

    1. INTRODUO

    "A terra significa assim: o meio para ns sobreviver, plantar, colher, seno tivesse terra no tinha nem como a gente sobreviver... Melhorou muito, t na casa da gente (Neuza, 27 anos, agricultora e pequena proprietria).

    A experincia de auto-organizao para a compra compartilhada de

    terras entre os pequenos proprietrios e trabalhadores rurais de Araponga, na

    Zona da Mata Mineira, at o momento se destaca como uma experincia nica

    em se tratando de compra coletiva de terras em nosso pas. Trata-se de uma

    forma alternativa de acesso terra aos que no possuam nenhuma perspectiva de

    permanecer no campo com o seu trabalho e tirando o sustento de sua famlia,

    distinta das formas de luta dos movimentos sociais de reforma agrria hoje

    existentes.

    A Zona da Mata Mineira localiza-se ao leste de Minas Gerais, fazendo

    divisa com o Esprito Santo, o Rio de Janeiro e So Paulo. A estrutura agrria da

    regio e, particularmente, do municpio de Araponga, caracteriza-se por uma

    elevada fragmentao da propriedade rural, em decorrncia da histria de sua

    ocupao e uso. A pequena propriedade familiar, entretanto, convive com a

  • 2

    presena de latifndios, com mais de 300 hectares (em Araponga h 15

    propriedades entre 200 e 1000 hectares)1.

    A cafeicultura havia sido introduzida na regio em meados do sculo

    XIX, com grandes fazendas e mo-de-obra escrava. Com a transio para o

    trabalho livre, frente indisponibilidade de um contingente de trabalhadores

    assalariados facilmente controlvel, a produo cafeeira foi organizada a partir de

    formas de relao de trabalho que davam acesso parcial ao uso da terra pelos

    trabalhadores, como o colonato e a meao. O padro atual de ocupao

    territorial, dominado pela pequena propriedade e pelo arrendamento e a parceria,

    emergiu a partir do desmembramento progressivo das antigas fazendas de caf

    que, em funo da perda do dinamismo econmico e da fragmentao da

    herana, foram sendo divididas em propriedades cada vez menores. As

    sucessivas crises da cafeicultura fizeram com que os produtores adotassem um

    padro produtivo de mltiplas culturas de subsistncia. Mas na regio de

    Araponga, a partir da dcada de 70, o caf voltou a ser o principal produto para a

    comercializao.

    Atualmente, a regio composta por micro e pequenas propriedades

    onde se produz feijo, milho, arroz, cana de acar, caf, venda de pequenas

    criaes, pastagens e, em alguns casos, mel e prpolis, alm do artesanato. A

    fragmentao da propriedade da terra acompanhada de uma distribuio

    bastante desigual de recursos. Os trabalhadores rurais no tm acesso terra a

    no ser por meio da meao e do arrendamento, e os pequenos agricultores no

    tm terra suficiente para a reproduo da unidade familiar sem o uso de

    estratgias complementares mltiplas, atravs da diversificao da produo nas

    pequenas propriedades, seja pelo arrendamento ou formas de trabalho eventual

    ou sazonal como assalariados.

    Neste contexto de grandes dificuldades e privaes, emergiu a partir de

    uma experincia familiar, uma forma singular de auto-organizao entre um

    grupo de pequenos agricultores e trabalhadores rurais de Araponga, trazendo 1 IBGE (1996). Para a regio de Araponga, um mdulo rural e/ou fiscal eqivale a 52 hectares. Propriedades abaixo desta rea so consideradas pequenas propriedades familiares.

  • 3

    alternativas novas para uma situao de oportunidades limitadas pelo difcil

    acesso terra. A soluo encontrada foi chamada pelos prprios participantes de

    Conquista de Terras em Conjunto, uma forma de arranjo coletivo de

    microfinana que emergiu a partir da iniciativa dos prprios agricultores e que,

    progressivamente, se consolidou com o suporte de agentes externos. Neste

    esquema, os pequenos proprietrios e trabalhadores rurais adquirem

    conjuntamente uma rea de terra, onde cada novo proprietrio pode adquirir uma

    propriedade de acordo com suas condies e que pode variar, em mdia, de 1 a 6

    hectares. O local da rea que vai ser destinada ao proprietrio definido a partir

    de critrios construdos pelo grupo. Os que tm melhores condies financeiras

    fazem um emprstimo solidrio ao novo proprietrio para a compra da terra, o

    que acontece ainda hoje entre parentes e, em menor nmero, entre amigos. A

    dvida sempre paga com os produtos que o contraente da dvida colher, como

    arrobas de caf, milho e tambm em cabeas de gado. O que notvel na

    experincia de Araponga, e a aproxima de outras modalidades de associaes de

    crdito rotativo de sucesso do terceiro mundo, a capacidade de usar formas de

    solidariedade comunitria baseada em laos de confiana e reciprocidade como

    base para o desenvolvimento local sustentvel.

    1.1. Problema, Hiptese e Objetivos da Pesquisa

    Esta experincia comeou em 1989 e, desde ento, 110 famlias j

    conquistaram o seu pedao de terra, totalizando 498,0 hectares, sendo a mdia de

    6 hectares por famlia. A base inicial de organizao das comunidades foi a

    experincia das Comunidades Eclesiais de Base - CEBs, que tiveram seu auge de

    atuao, na regio, entre os anos de 1979 e 1990. Foi em uma das reunies das

    CEBs que os irmos Lopes, refletindo aps a leitura de uma passagem bblica,

    tiveram a idia de iniciar a Conquista de Terras em Conjunto.

    A partir desta experincia, buscamos compreender como e em que

    circunstncias foi possvel aos agricultores criar o conjunto de regras e

  • 4

    procedimentos que configuram a Conquista de Terras em Conjunto. Ademais,

    desejamos compreender como, e em que circunstncias, tornou-se possvel

    expandir e institucionalizar a experincia a ponto de incorporar um nmero cada

    vez maior de famlias. A pesquisa tem como hiptese de trabalho central que

    redes de relaes pr-existentes estruturadas a partir de parentesco e vizinhana

    constituram a base de interao que permitiu, atravs da reinveno de formas

    tradicionais de ajuda mtua, superar os problemas de ao coletiva e dar incio

    experincia, alm da sua expanso para crculos cada vez mais distantes. De

    outro modo, esta experincia foi possvel, tambm, graas presena de atores

    externos que auxiliaram na sua institucionalizao e reforo, alm da presena de

    formas de monitoramento baseadas em mecanismos informais de informao

    sobre reputaes e confiana, e na colateralizao indireta das responsabilidades

    a membros da rede que abrem acesso experincia. Do nosso problema de

    pesquisa derivam-se uma srie de questes:

    - Qual a natureza das redes de relaes entre os pequenos proprietrios que

    participam da Conquista de Terras em Conjunto?

    - Que formas de confiana e solidariedade foram mobilizadas para criar, manter e

    expandir a experincia?

    - Como os membros do Fundo de Crdito Rotativo definiram as regras que

    governam o funcionamento da compra coletiva de terras?

    - Que papis desempenharam o contexto poltico e o entorno institucional (como

    a Igreja, o Sindicato de Trabalhadores Rurais, o Centro de Tecnologias

    Alternativas da Zona da Mata e a Fundao Ford) no sucesso da experincia?

    - Quais os impactos da experincia na qualidade de vida, nas formas de

    participao e, consequentemente, para o desenvolvimento?

    1.2. Metodologia

    Como tcnicas de pesquisa, foram utilizadas mtodos qualitativos e

    quantitativos. Fizemos o uso de entrevistas semi-estruturadas em profundidade,

  • 5

    questionrios, observao participante (BECKER, 1999) e histria oral

    (FERREIRA & AMADO, 2002). O resgate histrico, atravs dos relatos das

    histrias orais dos participantes, como definido por LOZANO (2002) um

    espao de contato e interaes sociais em diferentes escalas, com nfase nos

    fenmenos e eventos que permitam, atravs da oralidade, oferecer interpretaes

    qualitativas de processos histricos sociais, que surgem da mais profunda viso e

    verso do interior das experincias dos atores sociais. Entrevistas qualitativas

    foram realizadas com membros-chave de oito famlias com histrico de intensa

    participao e comprometimento com a Conquista de Terras. A identificao dos

    potenciais entrevistados realizou-se atravs de contatos com membros do STR.

    Para as entrevistas foram escolhidas, entretanto, famlias com trajetrias distintas

    e diferentes perodos de entrada na conquista. Alm destas famlias de

    agricultores, realizamos tambm entrevistas com trs tcnicos do CTA-ZM, que

    acompanharam o desenvolvimento da experincia. No decorrer da aplicao do

    questionrio semi-estruturado, vrias situaes permitiram que se realizassem,

    informalmente, entrevistas que iam alm do contedo do questionrio.

    O censo, realizado atravs do questionrio semi-estruturado, nos

    possibilitou analisar padres de organizao familiar, mobilidade social,

    participao e estratgias econmicas das famlias, realizando um mapeamento

    das redes de relaes sociais dos envolvidos. O questionrio foi aplicado por

    cinco pessoas (eu mesma, meu orientador e trs assistentes de pesquisa) e sua

    aplicao durou quase trs meses, com visitas marcadas durante os finais de

    semana para no interromper o trabalho dos agricultores e agricultoras. Estes

    entrevistados, agricultores e agricultoras partilharam conosco generosamente seu

    tempo, conhecimentos, idias e sentimentos. As visitas sempre foram marcadas

    por uma acolhida generosa. Sempre tomamos um cafezinho com biscoitos, broas

    e em alguns dias almoamos com todos os membros da famlia. O questionrio

    continha perguntas sobre redes de relao de famlia e parentesco para quatro

    geraes, informaes sobre acesso terra antes e depois da conquista, ocupao,

    mobilidade geogrfica e compra da terra, participao social, qualidade de vida e

    sistemas produtivos. A mdia de permanncia para a aplicao de um

  • 6

    questionrio por famlia foi de quatro horas, devido ao seu detalhamento e

    tambm por possuir questes abertas. A partir das informaes sobre relaes de

    parentesco foi possvel construir sociogramas bi-dimensionais na forma de grafos

    utilizando o programa DOT2 (GANSNER et al., 1993) que nos permitiu

    representar os fluxos de informao e confiana que estruturaram a Conquista de

    Terras em Conjunto. O uso simultneo de tcnicas de observao participante,

    entrevistas em profundidade e questionrios nos permitiu coletar amplo espectro

    de informaes, qualitativas e quantitativas e, portanto, complementares.

    Nosso desenho de pesquisa propunha, inicialmente, a realizao de um

    censo com todas as 99 famlias que compraram terra at a data do incio da

    pesquisa em 2004. Por diversas razes, entre elas o tempo, quase no final do

    trabalho de campo j estvamos prximos da colheita do caf, o que

    impossibilitou agendar novas entrevistas. Apenas duas famlias se recusaram a

    conceder entrevista por motivos que desconhecemos. Ao final do trabalho de

    campo foi possvel aplicar o questionrio completo a 79 famlias e, de modo

    parcial, colhemos dados de mais quatro famlias, abrangendo em torno de 76%

    do total de famlias compradoras de terras, que at dezembro de 2005 eram 110.

    Como delineamento de pesquisa, nossa investigao classifica-se como

    um estudo de caso teoricamente orientado. O estudo de caso surgiu, basicamente,

    da tradio da pesquisa mdica e psicolgica em se referir a uma anlise

    individual, mas o estudo de caso foi adaptado, tornando-se um dos principais

    tipos de anlise em cincias sociais, que normalmente no se referem a um

    indivduo, mas a uma organizao ou comunidade (BECKER, 1999: 117).

    De acordo com RAGIN, o principal objetivo do estudo de caso,

    " ligar o emprico e o terico usar a teoria para dar sentido evidncia e, inversamente, usar o caso para esclarecer e refinar a teoria. (...) Delimitar casos uma parte essencial deste processo; invocamos casos para ligar idias e evidncia emprica. Casing uma parte essencial do processo de produo de descries teoricamente estruturadas da vida

    2 O programa DOT foi desenvolvido para desenhar grafos (grafo uma representao bidimensional de um conjunto de vrtices e elos. No nosso caso, os vrtices so os atores e os elos as ligaes entre eles) por pesquisadores da AT&T Bell Laboratories, New Jersey, USA, 1992. O programa de livre acesso, o download pode ser feito no stio: http://www.research.att.com/sw/tools/graphviz/

  • 7

    social, usando evidncia emprica para articular teorias" (RAGIN, 1992:225).

    Definimos como nosso estudo de caso a experincia da Conquista de

    Terras em Conjunto dos agricultores familiares de Araponga, Minas Gerais.

    Realizamos uma pesquisa de campo intensiva, com os membros do conselho do

    Fundo de Crdito Rotativo e com outros atores relevantes. As entrevistas visaram

    fazer um resgate histrico da Conquista de Terras, explorando a memria e as

    diferentes interpretaes dos diversos atores envolvidos a respeito da

    experincia.

    Nossos contatos iniciais para a realizao da pesquisa foram feitos com o

    Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata - CTA-ZM, uma

    organizao no governamental que presta assessoria aos agricultores da regio,

    promove cursos de formao e tem como baliza principal de atuao a

    agroecologia3; e com o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Araponga - STR,

    que administra o Fundo de Crdito Rotativo.

    Em 2002, por j conhecer alguns agricultores envolvidos na Conquista

    de Terras, fui convidada por um deles a entrar em uma compra coletiva e adquiri

    1,12 hectares. Este convite aconteceu, basicamente, por dois motivos: primeiro,

    porque eu j era conhecida dos agricultores devido prestao de servio que eu

    estava fazendo para o CTA-ZM em produo de vdeos; e, segundo, para fechar

    um grupo de compra, do qual participaram tambm mais trs famlias "da

    cidade" conhecidas pelos agricultores (dois tcnicos do CTA-ZM e um professor

    da UFV)4. No mesmo ano eu estava fazendo uma especializao em

    Planejamento Municipal do Departamento de Arquitetura e Urbanismo desta

    mesma universidade. Foi a partir do Ateli de Planejamento Rural deste curso

    que me despertou interesse em fazer uma monografia relacionada agricultura

    3 Sobre agroecologia consultar o livro de ALTIERI, M. Agroecologia: Bases Cientficas para uma Agricultura Sustentvel. Guaba: Agropecuria, 2002, 592 p. Sobre agricultura alternativa e movimentos sociais: ALMEIDA, Jalcione. A construo social de uma nova agricultura. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1999, 214 p. 4 Nesta poca eu ainda no havia concorrido a uma vaga no programa de mestrado em Extenso Rural.

  • 8

    familiar. O tema escolhido foi a Conquista de Terras em Conjunto5. Porm, antes

    de realizar a pesquisa pedi ao STR autorizao para faz-la. O pedido foi aceito e

    algumas sugestes foram incorporadas ao projeto de monografia. Esta foi minha

    primeira aproximao acadmica com o tema e o seu referencial terico, mas a

    monografia por si s no me permitiu realizar uma pesquisa mais profunda sobre

    o assunto. Vale destacar que, meus contatos anteriores com os agricultores em

    funo desta pesquisa inicial, assim como o interesse do STR e do CTA de

    sistematizar a experincia, contriburam para que a pesquisa fosse realizada com

    total apoio e envolvimento tanto dos tcnicos, quanto dos agricultores e

    agricultoras.

    Em 2004, com a minha entrada no programa de mestrado, marquei

    reunies com o CTA-ZM e o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Araponga -

    STR para discutirmos a possibilidade da experincia da Conquista de Terras em

    Conjunto se tornar objeto da minha dissertao de mestrado. Deste modo, depois

    de diversas reunies, apresentamos o projeto, seus objetivos e a nossa perspectiva

    em relao pesquisa. Foram realizadas trs reunies no CTA-ZM, tambm com

    a presena de alguns agricultores, e duas reunies no STR de Araponga, uma

    delas com a presena do meu orientador. Nessas ocasies, recebi crticas e

    sugestes, e tcnicos e agricultores tambm participaram da elaborao do

    questionrio semi-estruturado. A deciso de realizar um censo, e no uma

    amostragem limitada foi tomada nestas reunies com os membros do sindicato e

    do CTA-ZM. O STR optou pelo censo por se tratar da possibilidade de fazermos

    um mapeamento e criao de um banco de dados sobre todas as famlias

    envolvidas na conquista, o que tambm foi aceito pelo CTA-ZM. Assim, as duas

    entidades deram apoio pesquisa em relao logstica para a sua realizao

    como cpias dos questionrios, carro para as viagens e a disponibilizao de um

    assistente de pesquisa para ajudar na aplicao dos questionrios. O STR tambm

    exerceu papel fundamental, realizando contatos e agendando entrevistas com as 5 CAMPOS, Ana Paula T. Conquista Conjunta de Terras, organizao social e planejamento no meio

    rural: uma iniciativa dos trabalhadores rurais de Araponga-MG. Monografia. Ps-Graduao Lato Sensu em Planejamento Municipal. Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Universidade Federal de Viosa. 2004, 33 p.

  • 9

    famlias envolvidas. Dois outros assistentes de pesquisa foram mobilizados para

    a aplicao dos questionrios graas aos recursos para pesquisa do

    PROF/CAPES, disponibilizados pelo Programa de Mestrado em Extenso Rural

    do Departamento de Economia Rural desta universidade. Para a codificao e

    tabulao dos dados contamos com um aluno do curso de geografia, bolsista

    UFV/CEF (Caixa Econmica Federal). A codificao do questionrio resultou

    em 678 variveis, que contm questes qualitativas e quantitativas. A parte A do

    questionrio relativa a Redes de Parentesco possui 1.927 pessoas identificadas no

    seu banco de dados6.

    No segundo captulo fao uma breve descrio da histria de ocupao e

    formas de uso da terra na Zona da Mata Mineira, no contexto de explorao e

    ocupao da Mata Atlntica, e, particularmente, de Araponga. Esta descrio nos

    permitiu visualizar a herana do passado no que tange s condies ambientais e,

    tambm, na diviso e na apropriao do espao agrrio.

    O terceiro captulo dedicado ao referencial terico, atravs da

    apresentao de vrios conceitos que nos permitiram analisar o objeto em estudo.

    A baliza central que norteia a pesquisa recai sobre as noes de rede (network) e

    de confiana, mas outros conceitos (desenvolvimento como liberdade,

    colateralidade, capital social) so utilizados para que os diferentes aspectos que

    envolvem a experincia sejam amplamente abordados.

    O quarto captulo descreve o incio da experincia, quando esta ainda era

    "histria de famlia'', a sua gnese e a primeira compra coletiva. Tambm

    buscamos fazer um resgate histrico da atuao do MOBON - Movimento da

    Boa Nova, das CEBs e das lideranas da Igreja e dos agricultores na regio.

    Assim, foi possvel visualizar as influncias que estes exerceram sobre a

    Conquista de Terras.

    O quinto captulo situa o contexto poltico, o entorno institucional e a

    participao de atores externos no desenvolvimento da experincia. Este captulo

    6 Chegamos a esse nmero levando em considerao, alm dos nomes dos pais e avs, os nomes dos irmos e irms dos pais e das mes dos proprietrios. Tambm dos irmos (s) dos proprietrios (as) das 79 famlias entrevistadas.

  • 10

    tambm refere-se anlise do material coletado, das entrevistas, dos

    questionrios e, no menos, das impresses que tive a partir da minha

    convivncia com os agricultores e agricultoras desde 2002. As informaes

    foram analisadas atravs de tabelas, figuras (grficos, histogramas) e dos

    sociogramas: Redes de Parentesco por Grupos de Famlia; Redes de Parentesco;

    Redes de Informao; Relaes de Vizinhana e, Estrutura de Rede e Seqncia

    Temporal das Compras de Terras.

    O sexto captulo analisa as implicaes desta iniciativa sobre os meios de

    vida dos agricultores e agricultoras, e sua contribuio no processo de

    desenvolvimento. E, finalmente, no ltimo captulo sero apresentadas as

    consideraes finais.

  • 11

    2. HISTRIA DE OCUPAO NA ZONA DA MATA E ARAPONGA

    "(...) a terra para mim vida, autonomia, liberdade, sabe? Direito que a pessoa tem de falar, de ouvir, enfim, de trabalhar. Em resumo, a terra significa vida, voc t entendendo? Porque onde voc tem tudo, se voc tem um pedao de cho voc tem tudo, voc tem autonomia, de fazer bem o que voc pensa, quer, voc sonha, voc tem a liberdade de plantar, de colher, sabe? Voc s no tem a liberdade de destruir ela, voc tem que pensar que hoje ou amanh voc tem que deixar ela para os outros, n? Sinceramente, um pedao de cho para quem trabalha na roa, principalmente, ele tudo" (Paulinho, 41 anos, agricultor e pequeno proprietrio).

    O municpio de Araponga est localizado no noroeste da Zona da Mata

    Mineira. Grande parcela do Parque Estadual da Serra do Brigadeiro, com

    importantes reas remanescentes da Mata Atlntica, est dentro dos seus limites.

    O relevo da regio tem como principal caracterstica ser bastante acidentado e os

    solos so em sua maioria de baixa fertilidade. A ocupao da regio no pode ser

    dissociada da destruio da Mata Atlntica na parte sudeste do pas pela

    expanso de culturas comerciais nos sculos XIX e XX.

    A vegetao original da Mata Atlntica foi drasticamente cedendo lugar

    cultura da cana-de-acar, primeiramente, mesmo que esta tenha tido um papel

    secundrio na destruio da floresta na regio da Zona da Mata. Sua grande

  • 12

    devastao aconteceu, contudo, com a introduo das lavouras de caf, nos

    meados do sculo XIX, isto porque o solo e a cobertura vegetal depositada pela

    floresta propiciavam a cultura desse novo produto para exportao sem maiores

    investimentos em capital e trabalho. A cultura do caf trouxe com ela o

    crescimento demogrfico, a construo de ferrovias, a urbanizao, a

    industrializao e consequentemente a necessidade de derrubar mais a floresta

    para a plantao de gneros alimentcios, para o uso da madeira e tambm para a

    agricultura. Hoje restam apenas 7,6% de sua cobertura vegetal original (DEAN,

    1996). Esta caracterstica mais marcante em regies onde o cultivo do caf foi

    mais acentuado, contudo ela se aplica tambm s regies que levaram menos

    tempo para serem povoadas. Paulo MERCADANTE, em seu livro Sertes do

    Leste, tambm descreve com pesar a realidade dessa regio outrora to rica em

    diversidade,

    "Teve a Zona da Mata, na histria, curta vida regio prspera. A eroso corroeu o solo por sculo e meio, desnudou as fraldas dos morros, gretou as ribanceiras. A cultura do caf exigia o sacrifcio. O capoeiro foi derrubado no cabeo da serra onde devia ter permanecido para guardar a umidade e refrescar as terras. As queimadas, entretanto, faziam parte daquela cupidez de sfregos aventureiros. (...) Derrudas as capoeiras, cairia a fertilidade dos declives inferiores. (...)A Mata ora se transforma" (MERCADANTE, 1973).

    No seu estudo sobre a Zona da Mata de Minas Gerais, VALVERDE

    (1958), tipifica os sistemas de utilizao de terras na regio, os quais deram

    origem aos seus tipos de paisagem. Na classificao de VALVERDE, Araponga

    localiza-se na Zona dos Cafezais, que inclui tambm os municpios de Coimbra e

    a subzona de Ervlia. A regio era caracterizada, naquela poca, pela presena de

    latifndios, grandes produtores de caf e a ausncia de sitiantes. O autor relata

    que nesta regio as condies dos trabalhadores rurais eram de extrema misria.

    Ainda de acordo com VALVERDE (1958), at meados do sculo XIX a

    Zona da Mata Mineira era quase inabitada pelo homem branco portugus e era

    somente habitada pelos ndios Catagu e Puri. Isto ocorreu por dois motivos. O

    primeiro era de ordem natural: em funo da existncia de densa cobertura

    vegetal, a coroa portuguesa no priorizou o desbravamento da regio. O segundo

  • 13

    era poltico: para que o circuito de escoamento do ouro at o litoral no fosse

    desviado, e permanecesse pelo Caminho Novo, que estava definitivamente pronto

    em 1705. O caminho novo cortava o sudoeste da Zona da Mata e do Vale do

    Paraba, at chegar ao Rio de Janeiro.

    No sculo XVIII, a Zona da Mata posicionada entre o distrito minerador

    de Ouro Preto e a Costa Atlntica, foi tratada como sertes proibidos pelos

    colonizadores portugueses. Isso ocorreu para que o contrabando do ouro e dos

    diamantes fosse impedido. Em 1808, a coroa Portuguesa declarou guerra aos

    ndios semi-nmades conhecidos por Botocudos, que foram massacrados e

    escravizados (LANGFUR, 2002). A coroa Portuguesa tambm combateu outros

    grupos indgenas, como os Puri, e procurou sedentariz-los em aldeamentos. Os

    ndios resistiram o mais que puderam, mas em alguns casos eles se acomodaram

    e foram aculturados. Durante os anos de 1820 e 1830 novas incurses da coroa,

    vindas do centro da Provncia e do Rio de Janeiro engajaram uma violenta guerra

    contra os grupos indgenas para disputar o domnio sobre as terras e os recursos

    naturais (CAMBRAIA & MENDES, 1988). Embora a populao indgena da

    Zona da Mata tenha sido dizimada, os agricultores, em algumas reas isoladas,

    tal como Araponga, tem suas razes na herana dos ndios Puri, influenciando

    ainda hoje seus modos de vida. Nos dias de hoje, os agricultores buscam resgatar

    esta cultura. Em recente tese de doutorado defendida na UFSC, Willer

    BARBOSA (2005), buscou, atravs do seu trabalho, entender o processo de

    reemergncia tnica Puri no entorno do Parque Estadual da Serra do Brigadeiro,

    e que tem grande parte de sua rea no municpio de Araponga, com 5.420

    hectares, o que eqivale a 41% da rea total do parque dentro dos seus limites.

    A cafeicultura comea a ser introduzida na regio em meados do sculo

    XIX. De acordo com LANNA (1989), o seu pice situa-se entre 1870 e 1905

    passando por vrias fases recessivas. A cafeicultura se estabeleceu em grandes

    fazendas e mo-de-obra escrava, com populaes vindas do centro minerador, do

    sul de Minas e da provncia fluminense. Como relata VALVERDE,

    "Este movimento mais do que gmeo, xifpago do que se verificou no mdio Paraba. Tm com este ligaes espaciais - regies contguas;

  • 14

    histricas - na mesma poca: a partir da dcada de 1830; econmicas - o mesmo produto comercial: o caf; a mesma estrutura agrria e social: o latifndio patriarcal, aristocrata e escravocrata; demogrficas e sociais - o estoque luso-brasileiro vindo do centro de Minas, superposto camada escrava de negros africanos. (...) A princpio com legtimo rebento da regio do mdio Paraba, a Zona da Mata se apresenta com estrutura agrria idntica: uma franja pioneira, formada de latifndios cafeeiros, baseados na mo-de-obra escrava" (VALVERDE, 1958: 27-30).

    Segundo BLASENHEIM (1982), a fronteira do caf chega Zona da

    Mata noroeste por volta da dcada de 1880, acompanhando a expanso da malha

    ferroviria. Com a abolio do trabalho escravo, em 1888, e a conseqente falta

    de mo-de-obra, os fazendeiros, frente indisponibilidade de um contingente de

    trabalhadores assalariados facilmente controlvel, tiveram que criar novas formas

    de relaes de trabalho, com acesso parcial ao uso da terra pelos trabalhadores.

    Como Minas Gerais possua o maior plantel escravista do pas em meados do

    sculo XIX (LANNA, 1989: 24), aps a abolio da escravatura outras formas de

    relao de trabalho tiveram que ser adotadas pelos fazendeiros da regio. De

    acordo com LANNA,

    "Foram basicamente duas as relaes que permitiriam a continuidade da explorao do caf. A parceria, com trabalhadores fixos, residentes nas fazendas, e o assalariamento temporrio com base no migrante sazonal de outras regies do estado. O parceiro denominado de colono pelos contemporneos, era responsvel por partes previamente demarcadas dos cafezais. Devia realizar as carpas e a colheita. Recebia metade dos lucros auferidos com a venda do produto. O trabalhador que migrava de outras regies do estado, em geral do Norte, era contratado por determinado perodo do ano agrcola para auxiliar na realizao da colheita" (LANNA, 1989: 108).

    O regime de trabalho nas lavouras de caf de Minas seria diferente das

    formas de organizao do trabalho desenvolvidas pelos fazendeiros paulistas, que

    adotaram o colonato. A Zona da Mata Mineira no oferecia boas condies para

    a atrao de imigrantes como So Paulo (fronteira agrcola em expanso, terra

    roxa e cafeeiros mais novos), e a estratgia dominante do Estado e dos

  • 15

    cafeicultores foi a tentativa de formar um mercado de trabalho livre com a mo-

    de-obra internamente disponvel, pois possua a maior populao do pas7.

    O arraial de Araponga originalmente surgiu por causa da descoberta de

    minas de ouro, e foi batizada, em 1781, de So Miguel e Almas dos Arripiados.

    Nessa poca, o governador da Capitania de Minas visitou a regio e distribuiu

    sesmarias e datas para a minerao. Em 1826, com o mesmo nome, o arraial se

    tornou freguesia. Mas as minas duraram pouco tempo, e o crescimento do

    povoado estagnou-se por um longo perodo. Em 1962 tornou-se cidade, com o

    atual nome (BARBOSA, 1968). Araponga localiza-se 50 km de Viosa e 280

    km de Belo Horizonte8.

    O padro atual de ocupao territorial, dominado pela pequena

    propriedade e pelo arrendamento e parceria, emergiu a partir do

    desmembramento progressivo das antigas fazendas de caf que, em funo da

    perda do dinamismo econmico e da fragmentao da herana, foram sendo

    divididas em propriedades cada vez menores. As sucessivas crises da cafeicultura

    na regio fizeram com que os produtores adotassem um padro produtivo de

    mltiplas culturas de subsistncia como o feijo, o milho, a cana-de-acar, a

    mandioca, associadas ao gado de leite e pequenas criaes.

    Mesmo passando por vrios ciclos, a cultura cafeeira, na regio,

    conseguiu se reerguer. Foi atravs dos programas do governo de erradicao e

    renovao dos ps de caf, entre 1962 e 1967, que culminou em 1970 com a

    instituio por parte do governo do Plano de Renovao e Revigoramento dos

    Cafezais, PRRC. Com este plano, o estado de Minas Gerais passa a ser o

    primeiro produtor nacional, devido sua adeso aos primeiros programas de

    erradicao e renovao, ficando frente dos principais produtores da poca, que

    eram Paran e So Paulo (ANDRADE, 1994). Deste modo, na regio de

    Araponga, a partir do final da dcada de 1970, e at os dias de hoje, o caf voltou

    a ser o principal produto para gerar renda, tanto para os grandes proprietrios, 7 Para as diferenas entre os processos de transio ao trabalho livre com relao a So Paulo, cf. STOLKE, Verena. Cafeicultura, homens, mulheres e capital (1850-1980). So Paulo: Brasiliense, 1986. 8 No final deste captulo encontra-se o mapa de Minas e a localizao do municpio de Araponga.

  • 16

    quanto tambm para os mdios e pequenos proprietrios, freqentemente atravs

    de arrendamentos.

    Atualmente, o municpio de Araponga caracterizado por micro e

    pequenas propriedades onde se produz feijo, milho, arroz, cana de acar, caf e

    pastagens. O municpio tambm possui parte significativa da terra cultivvel

    ocupada por grandes propriedades que produzem em sua maioria caf. A

    distribuio dos estabelecimentos rurais apresentada na tabela 01:

    Tabela 01 - Estabelecimentos Rurais - Araponga (1996). Tamanho das propriedades Nmero de propriedades rea (ha) %

    Menores de 10 ha 263 1.215 5,8 De 10 a menos de 50 ha 281 6.626 32 De 50 a menos de 100 ha 45 3.082 14 De 100 a menos de 200 ha 30 4.096 19,6 De 200 a menos de 500 ha 12 3.538 17,1 De 500 a menos de 1000 ha 3 2.208 10,6 Total 634 20.738 100%

    Fonte: IBGE(1996).

    A tabela 01 mostra que, em 1996, na regio de Araponga, as pequenas

    propriedades com at 50 hectares representavam 85% dos estabelecimentos (544

    unidades) de um total de 634 propriedades, mas detinham apenas 37% da rea.

    As mdias e grandes propriedades, 15% dos estabelecimentos (90 unidades)

    ocupavam 63% da rea. Pode-se notar que existiam cerca de 15 latifndios acima

    de 200 hectares, detendo 27,7% da rea. Destas 15 grandes propriedades, uma

    tem como atividade principal o gado de corte, sendo ocupada por pastagens. As

    demais possuem grandes plantaes de caf com manejo convencional,

    empregando trabalhadores rurais para o seu cultivo. Os dados da tabela 01 so

    bem ilustrativos no que se refere ocupao fundiria no municpio. Podemos

    notar a fragmentao da propriedade da terra e a concentrao de muitos hectares

    em poucas propriedades.

    Analisando os dados da tabela 01 com nosso levantamento de dados em

    campo, constatamos que o impacto da Conquista de Terras em Conjunto sobre a

  • 17

    distribuio da propriedade agrria, na faixa das propriedades com menos de 10

    hectares, muito significativo como mostra a tabela 02:

    Tabela 02 - Distribuio do Tamanho das Propriedades da Conquista - Araponga (2005)

    Tamanho das Propriedades Nmero de Propriedades rea (ha) % De 1 a 5 hectares 78 197,90 39,8 De 5 a 10 hectares 21 151,2 30,5 De 10 a 15 hectares 10 132,4 26,4 De 15 a 20 hectares 1 16,5 3,3 Total 110 498,00 100% Fonte: STR de Araponga e dados da pesquisa de campo, 2005.

    Do total de 110 propriedades derivadas da Conquista de Terras, apenas

    11 so maiores que 10 hectares. Vale ressaltar que as maiores propriedades da

    Conquista de Terras foram compradas em parcelas menores no decorrer de anos,

    at atingirem o tamanho de hoje9. A maior parte das propriedades,

    aproximadamente 70%, tem menos de 10 hectares, e abrange 99 pequenos novos

    proprietrios de terras. Embora os dados do IBGE tenham de ser tomados com

    cuidado, esta proporo parece indicar um impacto considervel sobre a estrutura

    agrria do municpio, representando fator importante de desenvolvimento local.

    Entre 1989 e 2005, os agricultores ligados Conquista de Terras em

    Conjunto compraram 498,0 hectares, o que representa, aproximadamente, cerca

    de 1/3 da terra possuda pelos agricultores da faixa de menos de 10 hectares. De

    acordo com dados do STR de Araponga, os 498,00 hectares oriundos da

    Conquista de Terras eram assim distribudos:

    9 Por exemplo, o novo comprador adquiriu um hectare hoje e depois de pagar a primeira compra, decidiu adquirir mais terra e entrou em outro grupo de compra, adquirindo mais dois hectares.

  • 18

    Tabela 03 - Origem da Terra Conquistada Araponga (2006)

    Origem da Terra

    rea (ha) %

    Fazendeiros, vendeu uma parte 290,00 58,2 Pequeno proprietrio, vendeu uma parte 105,0 21,0 Tem outra profisso e vendeu uma parte 45,5 9,2 Mudou-se de Araponga 57,5 11,6 Total 498,00 100%

    Fonte: STR - Araponga.

    Os dados da tabela 03 revelam que as transformaes do espao agrrio

    no municpio de Araponga, a partir da experincia da Conquista de Terras em

    Conjunto, mesmo que de forma gradativa, esto proporcionando uma melhor

    distribuio das terras que, na sua maioria se concentravam nas mos de poucos.

    Figura 01 Regies do Estado de Minas Gerais: Localizao do Municpio de Araponga na Zona da Mata Mineira10.

    10 Mapa desenvolvido a partir da base de dados da GeoMINAS, stio: www.geominas.gov.br

  • 19

    3. REFERENCIAL TERICO

    Terra tudo, liberdade, sade, porque brota da natureza (Maria Terezinha, 43 anos, agricultora e pequena proprietria).

    Esta pesquisa define-se como um estudo de caso teoricamente orientado.

    Nosso objeto de pesquisa, a Conquista de Terras em Conjunto dos agricultores

    familiares de Araponga, foi investigada a partir da articulao de conceitos e

    teorias derivados de diversas linhagens tericas. Procuramos combinar

    referncias internacionais sobre experincias de associaes de microcrdito e

    fundos rotativos para mltiplos propsitos (GEERTZ, 1962) (SMETS, 2000); a

    idia de desenvolvimento como liberdade, de Amartya Sen (SEN, 2000); a noo

    de capital social (PUTNAM, 1996) e, especialmente, desenvolvimentos ligados

    sociologia da vida econmica (POLANYI, 1980) redes sociais (FELDMAN-

    BIANCO, 1987) e anlise de redes (GRANOVETTER, 2000) (WASSERMAN

    & FAUST, 1994). Tambm buscamos compreender o papel da confiana

    interpessoal (ZUCKER, 1986) (SZTOMPKA, 1999) (GAMBETTA, 1988) e das

    formas de monitoramento informal atravs do conceito de colateralizao

    (BIGGART & CASTANIAS, 2001).

  • 20

    3.1. Associaes de Crdito Rotativo

    O princpio fundamental de uma associao de crdito rotativo o

    mesmo em qualquer parte do mundo: um fundo global, para o qual todos

    contribuem e retiram algum benefcio em turnos (GEERTZ, 1962). A literatura

    antropolgica tem registrado uma ampla variedade de tipos de associaes de

    crdito rotativo e ajuda mtua, em contextos rurais e urbanos. Estas associaes

    diferem umas das outras na forma de administrao do fundo de crdito, nas

    regras de operao e formas de monitoramento e na sua finalidade: construo da

    casa prpria, simplesmente poupar e fazer a retirada em dinheiro, cooperativas de

    trabalho, entre outras. No grande nmero de casos identificados na literatura

    internacional, no fomos capazes de encontrar, at o momento, nenhum grupo

    que tenha como finalidade a compra de terras. O caso mais prximo, talvez fosse

    a de uma associao javanesa que administra terras que so cultivadas pelos

    agricultores em sistema de rotao, ou seja, a cada ano ou dois a terra passada

    entre os membros da associao11.

    GEERTZ (1962), analisando associaes de crdito rotativo em vrios

    pases na sia e na frica, conclui que, apesar de significativas diferenas na

    maneira de se administrar as associaes, todas tm em comum o fato de no

    serem apenas instituies econmicas, mas mecanismos de estreitamento da

    solidariedade nessas comunidades e vilas. SMETS (2000) em estudo mais

    recente sobre associaes de crdito rotativo entre agricultores na ndia, tambm

    ressalta a importncia dessas associaes, que permitem aos participantes terem

    acesso ao crdito, o que era impossvel em instituies convencionais

    financeiras, como bancos. Segundo esse autor, outro aspecto importante nas

    associaes de crdito rotativo que sua dinmica determinada por fatores

    sociais, culturais, confiana e reputao.

    Desta forma, o que podemos constatar, a partir de outros exemplos e do

    caso em estudo, que, na formao de associaes de crdito rotativo a busca e

    11 H um stio na internet que possui um amplo banco de dados com referncias sobre associaes de crdito rotativo e microcrdito nos cinco continentes, o The Global Development Research Center: www.gdrc.org/icm/index.html

  • 21

    disseminao de informaes acerca da confiabilidade dos outros de

    fundamental importncia. Redes de relaes oferecem mecanismos de coleta e

    fluxo de informaes relevantes que so decisivos, simultaneamente, para

    selecionar os participantes, monitorar seu comportamento e disciplin-los. A

    expanso da associao para alm do crculo fechado de pessoas mais prximas,

    por sua vez, depende de mecanismos de "colateralizao", pelos quais h sempre

    algum que estabelece elos fiducirios entre o ncleo inicial e os novos

    membros.

    A presena de redes de relaes na formao e manuteno de

    Associaes de Crdito Rotativo essencial para superar dilemas de ao

    coletiva 12. Situaes de crdito mtuo, com a presena de intervalos de tempo

    so marcadas por riscos de oportunismo por parte daqueles que receberam os

    benefcios primeiro, mas no esto mais dispostos a contribuir com os prximos

    beneficirios. Desta forma, tais arranjos so improvveis quando no existem

    garantias suficientes de que os participantes iro cooperar na ausncia de sanes

    contra o comportamento oportunstico. A presena de redes de relaes densas

    com mtuo monitoramento, portanto, tende a limitar estas possibilidades de

    dilemas de ao coletiva.

    Atravs das entrevistas foi possvel descrever como o Fundo de Crdito

    Rotativo foi criado e gerenciado. Como bem mostra a literatura sobre

    associaes de crdito rotativo, estes diferem na forma e na finalidade. No caso

    de Araponga, o fundo rotativo foi criado para um fim especfico, a compra de

    terras. Seu sucesso tem, no entanto, estimulado os agricultores a utilizar

    mecanismos de crdito rotativo para outros propsitos.

    12 Dilemas de ao coletiva emergem em situaes em que a cooperao entre os indivduos necessria proviso de bens pblicos, mas em que inexistem mecanismos institucionais de coordenao e monitoramento. A literatura sobre recursos comuns tem demonstrado que arranjos informais de monitoramento e sanes contra oportunismo definidas pelos prprios atores podem ser eficazes para evitar tais dilemas (OSTROM, 1990).

  • 22

    3.2. Sociologia da Vida Econmica, Anlise de Redes e Confiana

    A sociologia da vida econmica oferece uma trama conceitual que nos

    parece particularmente interessante para o tratamento do problema de pesquisa

    em questo. Na contribuio de POLANYI (1980), o conceito de embeddedness

    (imerso) servia ao propsito de interpretar os variados modos pelos quais as

    economias pr-modernas eram envolvidas e reguladas por contextos de relaes

    sociais especficas. Reciprocidade, redistribuio e domesticidade seriam os

    padres dominantes de organizao social nestas sociedades. Segundo

    POLANYI,

    A reciprocidade e a redistribuio so capazes de assegurar o funcionamento de um sistema econmico. (...) Numa tal comunidade, vedada a idia de lucro; as disputas e os regateios so desacreditados; o dar graciosamente considerado como virtude; no aparece a suposta propenso a barganha, permuta e troca. Na verdade, o sistema econmico mera funo da organizao social" (POLANYI, 1980: 64).

    Em sua crtica ao atomismo annimo e descontextualizado da teoria

    econmica clssica, entretanto, Polanyi incorre no pecado oposto, ao propor uma

    concepo super-socializada da ao humana na vida econmica, tomando a

    sociedade como uma totalidade na qual os indivduos simplesmente interiorizam

    esquemas comportamentais dados. Ademais, POLANYI (1980) acaba por aceitar

    a (inaceitvel) diviso de trabalho entre economistas e socilogos/antroplogos,

    segundo a qual as economias modernas (nas quais as relaes sociais no tm

    qualquer funo relevante) seriam objeto privilegiado dos economistas, enquanto

    que as formas mais primitivas (e mais "sociais") ficavam reservadas aos

    socilogos e antroplogos.

    GRANOVETTER (2000) prope uma reconceptualizao do conceito de

    embeddedness que d lugar central noo de redes de relaes sociais pessoais,

    sejam horizontais ou verticais, fortes ou fracas, como elo entre agncia e

    estrutura. Recuperando a tradio em network analysis, afirma Granovetter,

    O conceito de imerso, para ns, possui dois aspectos que ns designaremos, respectivamente, pelos termos de relacional e estrutural: em efeito, na ao econmica, os resultados e as instituies so afetadas,

  • 23

    primeiramente, pelas relaes pessoais dos atores e, em segundo, pela estrutura das redes gerais dessas relaes (GRANOVETTER, 2000, pg. 208).

    GRANOVETTER estabelece, pois, o programa de pesquisa da nova

    sociologia da vida econmica em torno da investigao das relaes entre ao

    econmica e contextos de relaes interpessoais concretas. Suas hipteses tm

    inspirado investigaes nos mais variados contextos de ao econmica,

    modernos ou tradicionais. Mitchel ABOLAFIA (1990), por exemplo, fez uma

    anlise do papel das redes de relaes sociais na bolsa de mercadorias de Nova

    York, onde tomou como ponto forte de anlise a noo de mercado como cultura,

    o qual continuamente reproduzido atravs de relaes de troca. Segundo este

    autor, os livros de microeconomia s definem mercado como "um grupo de

    firmas ou indivduos, os quais esto em contato uns com os outros em ordem de

    comprar ou vender algum bem". O "estar em contato uns com os outros" o que

    mais chama a ateno,

    "...esta afirmao vaga na sua descrio do processo de troca econmica. Mas, quando as pessoas "esto em contato umas com as outras" elas esto socialmente imersas numa rede de relaes sociais importantes e, culturalmente imersas em um significativo sistema de normas, regras e roteiros cognitivos. A transao no simplesmente uma troca" (ABOLAFIA, 1990).

    Segundo WASSERMAN & FAUST (1994), a tcnica de "social network

    analysis" foi primeiramente empregada na sociologia e na psicosociologia, tendo

    como pioneiros Moreno, Cartwright, Newcomb e Bavelas. Ao antroplogo

    Mitchell Barnes atribudo o primeiro uso do termo, em 1954, que define rede

    como sendo um campo social formado por relaes entre pessoas (MAYER,

    1987). A anlise de redes tem sido utilizada por pesquisadores para iluminar

    inmeros fenmenos do mundo social, nos seus aspectos polticos, econmicos e

    de estruturas sociais. Ainda segundo os autores,

    "A estrutura relacional de um grupo ou um sistema social mais amplo consiste de padres de relaes entre uma coleo de atores. O conceito de rede enfatiza o fato de que cada indivduo tem laos para com outros indivduos, cada um dos quais, por sua vez, ligado a poucos, alguns ou vrios outros. A frase social network se refere ao conjunto de atores e os laos entre eles (WASSERMAN & FAUST, 1994: 9).

  • 24

    A anlise de rede utiliza-se de um conjunto especfico de conceitos, tais

    como: atores, laos relacionais, dade (entre duas pessoas), trade (estudo sobre

    subgrupos de trs pessoas), subgrupos (de dades, trades e laos associados),

    grupos (dentro de um universo finito), relao (tipos de laos no mesmo grupo) e,

    finalmente, redes sociais (WASSERMAN & FAUST,1994).

    Na dcada de 1930, o psicosocilogo Moreno criou uma tcnica de

    representao de redes a que denominou sociogramas. O sociograma uma

    figura nas quais pessoas, ou outros tipos de unidades sociais, so representadas

    como pontos em um espao bi-dimensional, e as relaes entre pares de pessoas

    so representadas por linhas ligando estes pontos. Os sociogramas, entretanto,

    no so meros artifcios de descrio. Eles corporificam um dos objetivos

    tericos cruciais da network analysis: a representao visual da estrutura das

    redes e a compreenso de suas propriedades estruturais (WASSERMAN &

    FAUST, 1994:12).

    Utilizando a perspectiva de redes, acreditamos que o sucesso da

    experincia de compra de terras entre os agricultores familiares de Araponga se

    deve presena de redes de relaes pessoais tecidas em torno de parentesco e

    vizinhana, que permitiram a mobilizao de bases de confiana, monitoramento

    mtuo e colaterizao, que tornaram possvel a superao dos dilemas de ao

    coletiva, no caso da experincia, justamente a dificuldade em adquirir terras em

    pequenas reas e para um nmero maior de famlias, alm da reduo de riscos e

    ausncia de oportunismo.

    Em artigo recente, BIGGART & CASTANIAS (2001) chamaram

    ateno para o papel crucial que relaes sociais cumprem na estabilizao das

    transaes econmicas, ao estabelecer garantias "colaterais" e mecanismos de

    monitoramento contnuo. Segundo os autores,

    ...relaes sociais e estruturas sociais que desempenham funes econmicas podem funcionar como colaterais. Alm disso, os atores econmicos usam o conhecimento de suas relaes e das relaes com os outros para alcanar os seus interesses. "Colateral" uma palavra derivada do Latim que significa "junto de" ou "caminhar lado a lado", e em usos legais e econmicos se refere uma garantia adicional de uma obrigao" (BIGGART & CASTANIAS, 2001: 480-81).

  • 25

    A importncia das redes de relaes e dos processos de colateralizao

    na criao e expanso da experincia da conquista de terras sugere que a

    literatura contempornea sobre confiana pode abrir novos caminhos para sua

    problematizao. Situaes em que a cooperao dependente de

    contraprestaes futuras, como as associaes de crdito rotativo, so

    potencialmente minadas por dilemas de ao coletiva. Possibilidades de

    cooperao efetiva dependero da presena de contextos de confiana e

    capacidades de monitoramento suficientes para que os membros se coloquem na

    posio vulnervel de esperar uma contraprestao quando j contriburam.

    Recentemente, os problemas de construo e manuteno de confiana

    passaram a ocupar um lugar de destaque na agenda de investigao das cincias

    sociais. A partir dos trabalhos seminais de LUHMANN (1979) e BARBER

    (1983)13, citados em SZTOMPKA (1999), assim como os ensaios reunidos em

    GAMBETTA (1988), vm se estruturando um campo de investigao

    interdisciplinar de abrangncia e sofisticao crescente. A popularidade recente

    da noo de confiana deve muito, tambm, ao sucesso do livro Comunidade e

    Democracia (Making Democracy Work), de Robert PUTNAM (1996), que

    discute os benefcios da confiana interpessoal para o desempenho poltico e

    econmico por meio do conceito de capital social. O destaque do tema se deve

    ao reconhecimento "da onipresena de confiana nas relaes humanas e a

    impossibilidade de se continuar construindo as relaes sociais sem algum

    elemento de confiana e significados comuns" (SZTOMPKA, 1999).

    A relevncia e a fragilidade da confiana na vida social a transformam

    em um recurso escasso e precioso. A produo e a manuteno de confiana no

    um sub-produto automtico de processos macro econmicos ou sociais, e vem

    se tornando crescentemente problemtica na modernidade. De acordo com

    GAMBETTA (1988:218): "Confiana particularmente relevante em condies

    13 LUHMANN, N. Trust and Power, New York: John Wiley, 1979. BARBER, B. The Logic and Limits of Trust, New Brunswick, New Jersey: Transaction Publishers, 1983.

  • 26

    de ignorncia e/ou incerteza sobre o conhecimento ou desconhecimento das

    aes dos outros".

    A confiana poderia ser tematizada como uma das formas disponveis

    aos sujeitos sociais de lidar com a liberdade alheia. Na vida social, a incerteza

    acerca do comportamento alheio nunca pode ser totalmente eliminada. Na

    impossibilidade de estabelecer previses seguras sobre que curso tomaro as

    aes do outro, confiana representa uma forma de aposta na manuteno de

    obrigaes de natureza eminentemente moral.

    Problemas de confiana emergem, sobretudo, em situaes de interao

    estratgica em que um lapso de tempo separa as prestaes e contraprestaes de

    uma relao de troca. Crdito, ddiva e cooperao so tipicamente dependentes

    do tecido de confiana das relaes interpessoais. Em seu clssico Ensaio sobre

    o Ddiva, MAUSS analisou como o ofertar pressupe contraprestaes que so

    simultaneamente voluntrias e obrigatrias, criando um lao moral entre aqueles

    que estabelecem trocas de modo freqente. Em certos contextos sociais, dar,

    receber e retribuir so obrigatrios, criando vnculos de reciprocidade em

    mltiplos nveis (MAUSS, 1974).

    As interaes pessoais reiteradas so fontes importantes de informaes

    e monitoramento contnuo sobre a confiabilidade dos outros. Uma das principais

    caractersticas da confiana a assimetria entre as dificuldades que se impe

    sua construo e a sua fragilidade.

    ZUCKER (1986) define trs diferentes modalidades de produo da

    confiana. A primeira processual, centrada na pessoa, e dependente de

    interaes passadas que estruturam uma reputao; a segunda baseada em

    caractersticas, e diz respeito a similaridades atribudas e esperadas em um

    grupo de pessoas, como os esteretipos ligados aos chineses ou vendedores

    de carros usados, por exemplo; a terceira modalidade de confiana centrada

    em instituies, atravs de regras e mecanismos formais previsveis e impessoais,

    que substituem caractersticas pessoais, de grupo ou reputao de interaes

    anteriores.

    Desta forma, ao recorrer anlise do papel das redes de relaes,

  • 27

    buscamos entender o que acontece no interior das redes interpessoais e como elas

    constituem um meio eficaz para ligar os fenmenos a nvel micro e macro

    sociais. GRANOVETTER (2002) estabelece uma importante distino entre

    laos fortes e laos fracos. Ele argumenta que a fora de um lao interpessoal a

    combinao de quatro fatores: a quantidade do tempo; a intensidade emocional, a

    intimidade atravs da confiana mtua; e os servios recprocos que caracterizam

    esses laos fortes. Estes quatro fatores so independentes, mas tambm

    correlatos. Laos fortes so caracterizados por redundncia nos contatos e um

    relativo fechamento da rede de relaes. Contextos como guettos tnicos,

    famlias extensas tradicionais e comunidades rurais isoladas so bons exemplos

    de redes constitudas por laos fortes. Laos fracos, por outro lado, so

    caracterizados por interaes eventuais, com baixa intensidade emocional e

    pertencimento a mltiplas sub-redes. Exemplos de laos fracos so, por exemplo,

    contatos entre conhecidos (mas no amigos) e pessoas com relaes mediadas

    por terceiros. Mesmo formando uma rede menos densa, os laos fracos servem

    de ponte para mobilizar fluxos de recursos e informaes indisponveis para

    redes de laos fortes com relaes redundantes. Experincias de desenvolvimento

    local devem ser capazes de promover bounding e bridging, mobilizando tanto

    laos fortes como fracos para a expanso da rede de relaes (WOOLCOCK &

    NARAYAN, 2000).

    3.3. Desenvolvimento e Capital Social

    Situar a experincia da Conquista de Terras em Conjunto no contexto do

    tema do desenvolvimento implica em rediscutir os conceitos chaves que foram

    dominantes durante dcadas, com concepes, aplicaes e mtodos de

    mensurao diferentes. O conceito de desenvolvimento foi proposto, por muito

    tempo, e ainda o , em alguns casos, como a frmula pela qual as naes ditas

    "atrasadas" deveriam "alcanar" (passando por etapas evolutivas) as mais

    desenvolvidas, dentro de um processo linear, ou seja, onde todas as naes

  • 28

    passariam pelo mesmo processo universal (SACHS, 1992). O ncleo central do

    desenvolvimento seria o processo de industrializao e expanso do setor urbano

    moderno sobre o tradicional. Essa noo de desenvolvimento esteve atrelada

    teoria da modernizao, que foi elaborada nas universidades norte americanas

    nas dcadas de 50 e 60, no ps-guerra,

    "A conceptualizao dessas etapas foram feitas a partir do que era visto como a experincia das sociedades j modernizadas e desenvolvidas, os pases ocidentais que indicavam, atravs do seu sucesso, o caminho natural para as outras naes. (...) O subdesenvolvimento caracterizado pela predominncia de um setor tradicional, e o desenvolvimento consiste em fazer emergir um setor moderno a partir desse setor tradicional: o dualismo o centro da modernizao" (PEEMANS, 1995: 73).

    Tal modelo de desenvolvimento, proposto e seguido por vrios pases

    perifricos, fracassou. Nas palavras de Wolfgang SACHS (1992) o "Outro

    desapareceu com o desenvolvimento". O modelo de desenvolvimento aplicado

    aos pases atrasados da periferia produziu resultados inferiores, ou inversos

    queles pretendidos. Os programas de desenvolvimento falharam, entre outras

    razes, em funo da concepo equivocada de que cada nao poderia adotar

    um pacote de medidas padro, no levando em conta as suas especificidades

    culturais, polticas, econmicas e sociais.

    Em todos os casos, tendo pacotes prontos ou no, as estratgias propostas

    invariavelmente foram construdos de cima para baixo. No caso do Brasil, por

    exemplo, durante as dcadas de 60, 70 e 80 os modelos adotados por governos

    militares seguiram uma corrente modernizante, desenvolvimentista e autoritria.

    O setor rural tambm foi "agraciado" por um conjunto de expresses

    para definir o que seria o desenvolvimento rural, e como o processo deveria

    ocorrer. Como descrevem NAVARRO (2001) e ELLIS, BIGGS (2001), no

    Brasil, foram dominantes os conceitos de desenvolvimento agrcola, nos anos 50

    e 60, com nfase nas condies de produo, preconizando a modernizao da

    agricultura; desenvolvimento agrrio, final dos anos 60 e parte dos 70, que era

    para ser mais abrangente do que a primeira concepo e englobar o "mundo

    rural", com destaque para a transferncia de tecnologia e tendo como principal

  • 29

    "pacote" a Revoluo Verde; desenvolvimento rural que pretendia induzir

    mudanas em determinado ambiente rural; desenvolvimento rural sustentvel,

    que surgiu na dcada de 80 com o intuito de incorporar noes de equidade

    social e dimenses ambientais; e por fim, desenvolvimento local, que s vezes

    tem o seu conceito confundido com os demais.

    A noo de desenvolvimento local emergiu, em um primeiro momento,

    em associao com a multiplicao de Organizaes No Governamentais -

    ONGs que atuavam em locais geograficamente restritos e criaram estratgias de

    ao local, e, em segundo lugar, devido ao processo de descentralizao pelo

    qual passaram vrios pases da Amrica Latina e entre eles o Brasil, na dcada de

    90. Esta descentralizao valorizou o local e, mais precisamente, o municpio

    como unidade de desenvolvimento.

    Com uma definio mais precisa, desenvolvimento local deveria ser antes

    de tudo, um processo de reconstruo social que deve acontecer de baixo para

    cima, com a participao efetiva dos atores sociais, onde prevaleam as

    necessidades sociais e culturais locais, a mobilizao de experincias e do

    conhecimento local, e, mais importante, o compromisso das comunidades locais

    para a realizao e o acompanhamento das propostas de desenvolvimento

    (CAMPANHOLA & GRAZIANO, 1999). De acordo com os autores,

    No h regras ou modelos pr-determinados para a definio consensual dos objetivos e metas que conduzam ao desenvolvimento local, pois este , em essncia, um processo microsocial de construo coletiva, onde prevalece as necessidades sociais e culturais, mas que devem estar sincronizadas com as oportunidades locais de desenvolvimento, tanto nos aspectos econmicos da insero no mercado, como nos aspectos dos recursos naturais disponveis e de sua conservao (CAMPANHOLA & GRAZIANO, 1999, p. 04).

    Entre os conceitos e definies sobre o que vem a ser desenvolvimento, a

    experincia de auto-organizao dos agricultores de Araponga parece ajustar-se

    de modo particularmente feliz noo de Desenvolvimento como Liberdade,

    de Amartya SEN (2000). Nesta concepo de desenvolvimento, as liberdades

    individuais so elementos constitutivos bsicos, e levam expanso das

    capacidades para que as pessoas tenham o tipo de vida que desejam e valorizam.

  • 30

    Para SEN, a liberdade o principal fim, mas tambm o meio fundamental do

    desenvolvimento. O eixo fundamental nessa estratgia de desenvolvimento a

    ampliao das capacidades e das escolhas dos indivduos, no seu processo de

    condio de agente que ocasiona e provoca mudanas.

    No conceito de desenvolvimento como liberdade, o desenvolvimento no

    apenas visto como o crescimento do PNB (Produto Nacional Bruto), o aumento

    da renda pessoal, a industrializao, o avano tecnolgico ou a modernizao

    social, mas depende tambm de outros fatores como as disposies sociais e

    econmicas, como os servios de educao e sade e, tambm, os direitos civis

    como, por exemplo, a liberdade de participar de discusses, de exercer

    fiscalizao poltica e o direito democracia. Assim, o desenvolvimento

    concentra-se em um objetivo mais abrangente e no apenas em um meio

    especfico ou uma lista de instrumentos.

    As complexas interaes entre as dimenses sociais, econmicas e

    polticas nos processos de desenvolvimento tem sido, recentemente, iluminadas

    pelo conceito de capital social, que tematiza as relaes entre confiana,

    reciprocidade e redes de relaes sociais. Grosso modo, esses conceitos fazem

    parte de um paradigma emergente de anlise que tenta unificar a teoria do capital

    social (DURSTON, 1999).

    Segundo Robert PUTNAM (1996), capital social diz respeito a

    propriedades da organizao social, como confiana, normas e networks, que

    contribuem para a resoluo de dilemas coletivos de cooperao,

    Assim como outras formas de capital, o capital social produtivo, possibilitando a realizao de certos objetivos que seriam inalcanveis se ele no existisse (...). Por exemplo, um grupo cujos membros demostrem confiabilidade e que depositem ampla confiana uns nos outros capaz de realizar muito mais do que outro grupo que carea de confiabilidade e confiana (...). Numa comunidade rural (...) onde um agricultor ajuda o outro a enfardar o seu feno e onde os implementos agrcolas so reciprocamente emprestados, o capital social permite a cada agricultor realizar o seu trabalho com menos capital fsico sob a forma de utenslios e equipamento (COLEMAN, citado em PUTNAM, 1996:177).

  • 31

    O conceito de capital social representou importante avano, ao iluminar

    o papel das variveis no-econmicas do processo de desenvolvimento. Sua

    ampla disseminao atesta a insatisfao generalizada com as estratgias de

    desenvolvimento centradas em programao econmica e pesados investimentos

    em capital fsico. Entretanto, os usos de conceito de capital social tm gerado

    densa controvrsia metodolgica, que tem colocado em juzo problemas de

    unidade de anlise, mensurao e definio circular (PORTES, 1998). Apesar

    disso, consideramos o conceito til como uma metfora para iluminar as relaes

    entre dilemas coletivos, confiana e a anlise de redes sociais.

    Estudos empricos recentes na literatura sobre capital social e

    desenvolvimento econmico demonstram que organizaes locais e comunitrias

    que possuem um estoque de capital social produzido a partir de participao

    ativa, autogesto e confiana mtua, promovem o desenvolvimento local

    (KLIKSBERG, 2002).

    Milton ESMAN e Norman UPHOFF (1984), juntamente com um grupo

    de pesquisadores espalhados por vrios pases, fizeram a anlise de 150

    organizaes locais, entre elas as associaes de crdito rotativo, as cooperativas

    para mltiplos propsitos, as associaes de mulheres e as associaes de

    desenvolvimento local em parcerias com governos. A pesquisa concluiu que as

    organizaes que estimulavam a participao dos envolvidos e foram criadas de

    baixo para cima" tiveram xito, se comparadas com as outras que foram

    construdas sem processos participativos ou da prpria iniciativa dos atores

    locais. Enquadram-se neste tipo 99 organizaes locais. Assim, ao analisar o

    xito ou o fracasso de uma determinada organizao necessrio observar o que

    levou ao seu surgimento, quem a iniciou, o prprio grupo, o governo, ONGs,

    agncias de cooperao, etc.. A forma de como a organizao/grupo comeou o

    que vai afetar as suas relaes estruturais e os seus resultados.

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    4. A TRAJETRIA DA "CONQUISTA DE TERRAS EM CONJUNTO"

    "A Conquista de Terra... eu acho que conheci uma histria

    maravilhosa e fao parte dela. O que eu puder fazer para um trabalhador ter um pedao de terra, o que eu puder contribuir, eu vou fazer. Para mim a histria da Conquista de Terra no pode acabar nunca, porque cada dia que ela cresce um trabalhador que est conseguindo o seu pedao de terra, um sonho realizado" (Snia, 33 anos, agricultora e pequena proprietria).

    Para compreendermos como comeou a Conquista de Terras em

    Conjunto faz-se necessrio resgatar a histria sobre o aparecimento das

    Comunidades Eclesiais de Base - CEBs, na regio e descrever os seus

    fundamentos. O surgimento das CEBs insere-se em um contexto de

    transformaes internas da Igreja Catlica na Amrica Latina. Entretanto, a

    expanso das CEBs dependeu da existncia de ambiente propcio para se

    desenvolver nas comunidades rurais ou da periferia urbana. Em algumas regies

    no Brasil, as CEBs foram de fundamental importncia para a construo de bases

    slidas de solidariedade e de politizao das discusses sobre a realidade de cada

    comunidade. As CEBs conseguiram aglutinar pessoas em torno de um ideal

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    comum: a reflexo sobre seus problemas, tendo como motivao final a

    esperana de melhores condies de vida.

    Para termos uma viso geral da histria da Conquista de Terras em

    Conjunto elaboramos uma linha do tempo com datas e acontecimentos mais

    importantes no decorrer da institucionalizao da experincia:

    Figura 02 - Cronologia da Conquista de Terras em Conjunto

    1977 1979 1987 1989

    1 Compra Incio dos trabalhos Fundao Fundao do STR

    Irmos Lopes das CEBs na regio do CTA-ZM 1 Compra Coletiva

    1994/95 1995 1997 1998

    Elaborao O CTA-ZM toma Projeto enviado Criao do Fundo

    dos Dez conhecimento Fundao de Crdito

    Mandamentos da experincia Ford Rotativo

    4.1. A Gnese da Experincia e as Comunidades Eclesiais de Base - CEBs

    A Conquista de Terras em Conjunto originou-se na famlia dos irmos

    Lopes, que realizaram a primeira compra de terra em conjunto na famlia, entre

    1977 e 1978. A famlia Lopes composta por 9 irmos(s), sendo quatro

    mulheres e cinco homens. Trs deles criaram a Conquista de Terras em

    Conjunto: o Seu Alfires, conhecido por Fizim (faleceu em 1999), o Seu Aibes,

    conhecido por Bibim e o Seu Niuton, conhecido por Nenm14. Segundo o

    depoimento do Seu Nenm, apesar de ter nascido em Araponga, a famlia migrou

    para o municpio de Ervlia e depois para Jequeri, retornando para Araponga

    aps dez anos, no incio dos anos 1960. Seu Nenm sente orgulho em se

    identificar como descendente dos ndios Puri, descendncia que vem da bisav

    14 Daqui em diante passo a cit-los pelo apelido.

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    paterna. Segundo ele, todo o respeito, a ligao com a terra e o compromisso em

    preserv-la, sentimento compartilhado por todos, vem dessa memria15.

    O pai dos irmos Lopes, Sr. Jos Lopes Filho, era pequeno proprietrio e

    possua cerca de 6 alqueires e trabalhava tambm como meeiro. Segundo uns dos