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    18/06/2016 ConJur - Ao em sentido material ainda existe em nosso sistema? (parte 1)

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    DIREITO CIVIL ATUAL

    16 de maio de 2016, 9h22

    Por Marcel Edvar Simes

    Inicio, com enorme satisfao, a minha participao na Coluna Direito Civil Atual,dirigida pela Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporneo e coordenada pelos

    ministros Lus Felipe Salomo, Antonio Carlos Ferreira e Humberto Martins, ao ladodos professores Ignacio Poveda, Otavio Luiz Rodrigues Junior, Jos Antonio PeresGediel, Rodrigo Xavier Leonardo e Rafael Peteffi da Silva. Este vem sendo,reconhecidamente, um espao privilegiado para discusses verticalizadas, e aomesmo tempo extremamente atuais, de dogmtica jurdica de Direito Privado, eespero me manter fiel a essa proposta, a comear pelo tema ora enfrentado.

    No Cdigo Civil de 1916, havia dois artigos de teor emblemtico, mas que sempredesafiaram a inteligncia dos estudiosos (tanto dos mais atentos como dos mais

    despreocupados): estou me referindo aos artigos 75 e 76 do antigo Estatuto Civil. Eiso texto dos referidos dispositivos:

    Art. 75. A todo o direito corresponde uma ao, que o assegura.

    Art. 76. Para propor, ou contestar uma ao, necessrio ter legitimo interesseeconmico, ou moral.

    Poucos foram os que conseguiram entender o verdadeiro sentido e a verdadeira

    importncia dos citados dispositivos neles, est em jogo um conceito hoje quaseesquecido pela doutrina jurdica mdia brasileira, o conceito de ao em sentidomaterial. Trata-se de conceito que, uma vez bem compreendido, corresponde noo degarantia, o quarto elemento da teoria geral da relao jurdica, em suaverso original desenvolvida no mbito da Escola Pandectista, no sculo XIX.

    Em Portugal, graas a autores como Manuel Domingues de Andrade[1], Lus Cabralde Moncada[2]e Carlos Alberto da Mota Pinto[3]o elemento garantia permanecevivo na cultura jurdica daquele pas o que, no se pode negar, facilitado pelaredao exemplar dos artigos constantes do Subttulo IV (Do Exerccio e da Tutelados Direitos) do Ttulo II (Das Relaes Jurdicas) da Parte Geral do Cdigo Civilportugus, os quais tocam diretamente a matria atinente garantia das relaes

    Ao em sentido material ainda existe em nossosistema jurdico? (parte 1)

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    jurdicas em geral. No toa que um grande civilista brasileiro j afirmou que oCdigo Civil portugus, embora diploma de Direito positivo, poderia perfeitamenteservir como um manual didtico de Direito Civil, dada a clareza de muitos de seusdispositivos e pela cientificidade exemplar subjacente sua estrutura...

    com base na obra de Mota Pinto, por sinal, que podemos realizar uma formulaosuficientemente precisa do que seja a garantia das relaes jurdicas: trata-se doconjunto de meios que o ordenamento jurdico coloca disposio do sujeito ativode uma relao jurdica, a fim de assegurar a realizao do seu direito subjetivo[4](rectius, das posies jurdicas subjetivas titularizadas por esse sujeito ativo[5]).Estou convencido de que, para alm dessa definio analtica do conceito degarantia, tal conceito igualmente corresponde, de forma sinttica, ideia de ao emsentido material, conforme ser exposto infra.

    No Brasil, porm, somente dispnhamos dos artigos 75 e 76 do Cdigo Civil de 1916

    para o desenvolvimento de uma teoria geral da garantia no mbito do Direito Civil.Como de costume, o grande autor brasileiro que se lana tentativa de entender ofuncionamento da garantia em geral das relaes jurdicas em instante anterior,do ponto vista lgico, ao doprocesso judicial foi Pontes de Miranda. E ele o faz combase no conceito de ao em sentido material, que expe de modo magistral emdiversos escritos[6].

    curioso assinalar, a essa altura, dado tpico do pensamento ponteano: quando estse referindo ao em sentido material, Pontes de Miranda grafa o vocbulo aosem aspas; quando, contudo, esta a se referir ao em sentido processual, o autorem comento grafa o vocbulo aosempre entre aspas. Trata-se de recurso paratrazer maior preciso cientfica no emprego de um termo polissmico (o que deveriaser um objetivo almejado por todos estudiosos do Direito).

    Para Pontes de Miranda, a ao em sentido material um poder jurdico de Direitomaterial(de Direito Civil, por exemplo), e no de Direito processual. um poderjurdico (uma situaoouposiojurdica) que surge no polo ativo de uma relao

    jurdica de Direito material no exato momento em que a pretenso (igualmente deDireito material) exercitada em face do polo passivo e resistida, ou no satisfeita. A partir desse momento lgico, o ocupante do polo ativo da relao (osujeito ativo) passa dopoder exigir(pretenso) aopoder agir(ao), epoder agirportodos os meios que o ordenamento jurdico lhe assegure(o que, como se pode notar,exprime o conceito de garantia da teoria geral da relao jurdica).

    O que ocorre que, no mais das vezes, desde o advento do Estado moderno, com omonoplio estatal sobre o uso da fora e a vedao geral autotutela, essa ao em

    sentido material ter que ser exercitada, ter que ser canalizada, por meio de umaao processual, vale dizer, por meio do recurso ao Poder Judicirio, aos tribunaisestatais[7]. O que poucos civilistas e processualistas brasileiros conseguiramentender foi que isso ocorre no mais das vezes, na maioria das vezes. Mas no

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    O que Pontes de Miranda colocou em evidncia foi a existncia de um conceito deao que preexiste ao momentoprocessual, ao momento do processo judicial. Essadescrio foi adotada e desenvolvida por alguns autores posteriores, exemplo deMarcos Bernardes de Mello[8]e de Ovdio Baptista da Silva (o qual chega a afirmarque as categorias jurdicas a que se d o nome de ao de depsito, ao deconsignao em pagamento, ao de usucapio, ao de anulao de ttulos ao

    portador, e todas as demais que deixem de ser abstratas, como deveria s-lo aao processual so categorias que pertencem ao direito material[9]), mas deuma maneira geral no penetrou entre os civilistas e especialmente entre osprocessualistas ptrios.

    A bem da verdade, pode-se creditar a uma espcie de lobbyoriundo de setores dadoutrina processual civil brasileira a no repetio, no Cdigo Civil de 2002, de

    artigos com contedo semelhante aos artigos 75 e 76 do Cdigo Civil de 1916.

    Muitos processualistas brasileiros, impressionados com a luta histrica do DireitoProcessual por autonomia cientfica, sempre entenderam que a ao assuntoprprio e exclusivo do seu campo de estudo. E eles esto certos. Mas apenas no quese refere ao em sentido processual, a pretenso e correlata ao exercitadapela parte autora em direo ao Juiz, tendo por objeto a prestao de tutelajurisdicional, e que se mostra como autnoma em relao ao direito subjetivomaterial e segundo a doutrina dominante abstrata. Existe porm um universomais amplo, que interessa ao Direito Civil e, mais do que isso, Teoria Geral doDireito: o universo que se revela atravs da expresso ao em sentido material.

    Mas em face da no repetio, no Cdigo Civil de 2002, das normas contidas nosartigos 75 e 76 do antigo Cdigo Bevilqua, lcito perguntar: ser que a figura daao em sentido material continua presente, continua relevante, no ordenamentojurdico privado brasileiro?

    A resposta afirmativa, e passa pela deteco, no ordenamento legal, de diversoscasos em que a ao em sentido material no se exerce atravs de ao em sentidoprocessual, no se canaliza por meio de ao processual, no dependendo deatuao do Poder Judicirio. Vale referir os seguintes exemplos:

    (i) a figura da legtima defesa (artigo 188, I CC), por meio da qual o titular deum direito subjetivo pode garantir,por seus prprios meios, a proteo dessedireito ante uma agresso atual e contrria lei;

    (ii) o instituto do desforo imediato para a proteo do fato da posse (artigo1.210, pargrafo 1 CC), atravs do qual o possuidor turbado ou esbulhado podemanter-se ou restituir-se pela sua prpria fora, desde que o faa logo e comproporcionalidade nos meios empregados;

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    (iii) o cumprimento especfico assinalado a terceiro, em sede das dvidas defazer e de no fazer, que em caso de urgncia pode ser providenciado pelocredor independentemente de autorizao judicial (artigo 249, pargrafo nicoe artigo 251, pargrafo nico CC);

    (iv) a compensao entre dvidas (artigo 368 e ss. CC).

    So todos casos de ao em sentido material que no envolvem ajuizamento deao em sentido processual, mostrando que o primeiro conceito permanece vivodentro do nosso ordenamento jurdico (sendo, alis, da maior importnciacompreender a sistemtica prpria, as caractersticas do regime jurdico comumsubjacente a todas essas situaes enumeradas). Resta claro, assim, que a ao emsentido material um daqueles elementos to enraizados na prpria estrutura dosistema jurdico que, por mais que se tente retir-la pela porta, ela insiste emretornar pela janela...

    Na prxima coluna, prosseguiremos com o exame da ao em sentido material embusca das respostas a duas ordens de questes. Em primeiro lugar: a qual espcie depoder jurdico corresponde a ao material? Vale dizer: qual a sua naturezajurdica? E em segundo lugar: como se relacionam os momentos da pretenso (erespetiva ao) material, pr-processual e processual?

    *Esta coluna produzida pelos membros e convidados daRede de Pesquisa de Direito

    Civil Contemporneo(USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Girona, UFMG, UFPR,

    UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFMG).

    [1]Cf. Teoria Geral da Relao Jurdica. v. 1. Coimbra: Almedina, 1997, pp. 22-27.

    [2]Cf.Lies de Direito Civil. 4 ed. Coimbra: Almedina, 1995, pp. 236-237

    [3]Cf. Teoria Geral do Direito Civil. 4 ed. Atualizada por Antnio Pinto Monteiro ePaulo Mota Pinto. Coimbra: Coimbra, 2012, pp. 190-191; pp. 663-669.

    [4]Cf. Teoria Geral do Direito Civil cit., p. 190.

    [5]Acerca da teoria das posies jurdicas subjetivas, cf. Giuseppe Lumia,Lineamenti di teoria e ideologia del diritto. 3 ed. Milano: Giuffr, 1981, pp. 102-123(existe excelente traduo em portugus, com adaptaes e modificaes, docaptulo atinente Teoria da Relao Jurdica, por Alcides Tomasetti Jr., mimeo, SoPaulo, 1999).

    [6]Cf. Tratado de Direito Privado. t. V. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, pp. 457 a 501;Pretenso Tutela Jurdica, Pretenso Processual e Pretenso Objeto do Litgio. In:Revista Forense171, 1957, pp. 21-30. Ainda, todo o Tratado das Aes(So Paulo: RT,1971-...) apresentado como um tratado das aes em sentido material.

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    [7]Cf. Tratado de Direito Privado t. V cit., p. 478.

    [8]Cf. Teoria do fato jurdico Plano da eficcia 1 Parte. 9 ed. So Paulo: Saraiva,2014, pp. 191 e ss.; Teoria do fato jurdico Plano da existncia. 12. ed. So Paulo:Saraiva, 2003, pp. 11, 20 e 98.

    [9]Procedimentos Especiais. 2 ed. Rio de Janeiro: Aide, 1993, p. 159.

    Marcel Edvar Simes procurador federal, chefe da Procuradoria FederalEspecializada junto ao Ibama em So Paulo, professor de Direito Civil no Instituto deDireito Pblico de So Paulo (IDP So Paulo) e mestre em Direito Civil pela USP.

    Revista onsultor Jurdico, 16 de maio de 2016, 9h22