conflitos entre usos de interesse social em área periurbana de

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Revista VITAS Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade www.uff.br/revistavitas ISSN 2238-1627, Ano III, Nº 6, abril de 2013 Conflitos entre usos de interesse social em área periurbana de preservação ambiental 1 Selene Herculano 2 [email protected] Resumo: o artigo historia e analisa conflitos entre posseiros pobres, ameaçados de remoção para ceder espaço a bairro-modelo, um mega-conjunto habitacional de interesse social na localidade Fazendinha, em Pendotiba, cinturão verde de Niterói (RJ). O conflito se dá entre autoridades do executivo municipal e os moradores posseiros, em aliança com entidades ambientais e comunitárias e com alguns vereadores, em defesa desta área periurbana florestada. Questiona- se o desrespeito à unidade de conservação existente, as imprecisões na definição e contornos desta unidade, e a própria política urbana de Niterói, que prefere urbanizar e adensar o cinturão verde da cidade em vez de efetuar planos de renovação urbana em zonas mais centrais já urbanizadas, mas esvaziadas em virtude de um processo de desindustrialização. Palavras-chave: Fazendinha; Niterói; planejamento urbano; habitação popular; ambiente; conflito socioambiental; ambiente urbano Abstract: this paper focuses on a case of socio-environmental struggles in the green outskirts of the city of Niterói, Rio de Janeiro, where the local government planned to build a huge human settlements in an area of environmental preservation, also scarcely occupied by poor families that were to be displaced. It is argued that the city of Niterói has another area already completely urbanized and emptied by a process of de-industrialization that would better fit to this urban plan. Keywords: Fazendinha; Niterói; urban planning; human settlements; enviroment; socio-environmental struggles; built environment Introdução Em abril de 2010, deslizamento de terras no Morro do Bumba, em Niterói, fez desmoronar casas, matando muitas pessoas. Ali havia sido um lixão que, desativado, foi ocupado por famílias pobres, recebendo da Prefeitura 1 Baseado em texto apresentado ao I Seminário Internacional Cidade e Alteridade, BH, setembro de 2012. 2 Professora Associada da Universidade Federal Fluminense/PPGSD Programa de Pós- Graduação em Sociologia e Direito.

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Revista VITAS – Visões Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade – www.uff.br/revistavitas

ISSN 2238-1627, Ano III, Nº 6, abril de 2013

Conflitos entre usos de interesse social em área periurbana de

preservação ambiental1

Selene Herculano2

[email protected]

Resumo: o artigo historia e analisa conflitos entre posseiros pobres, ameaçados

de remoção para ceder espaço a bairro-modelo, um mega-conjunto habitacional

de interesse social na localidade Fazendinha, em Pendotiba, cinturão verde de

Niterói (RJ). O conflito se dá entre autoridades do executivo municipal e os

moradores posseiros, em aliança com entidades ambientais e comunitárias e

com alguns vereadores, em defesa desta área periurbana florestada. Questiona-

se o desrespeito à unidade de conservação existente, as imprecisões na

definição e contornos desta unidade, e a própria política urbana de Niterói, que

prefere urbanizar e adensar o cinturão verde da cidade em vez de efetuar

planos de renovação urbana em zonas mais centrais já urbanizadas, mas

esvaziadas em virtude de um processo de desindustrialização.

Palavras-chave: Fazendinha; Niterói; planejamento urbano; habitação popular;

ambiente; conflito socioambiental; ambiente urbano

Abstract: this paper focuses on a case of socio-environmental struggles in the

green outskirts of the city of Niterói, Rio de Janeiro, where the local government

planned to build a huge human settlements in an area of environmental

preservation, also scarcely occupied by poor families that were to be displaced.

It is argued that the city of Niterói has another area already completely

urbanized and emptied by a process of de-industrialization that would better fit

to this urban plan.

Keywords: Fazendinha; Niterói; urban planning; human settlements;

enviroment; socio-environmental struggles; built environment

Introdução

Em abril de 2010, deslizamento de terras no Morro do Bumba, em Niterói, fez

desmoronar casas, matando muitas pessoas. Ali havia sido um lixão que,

desativado, foi ocupado por famílias pobres, recebendo da Prefeitura

1 Baseado em texto apresentado ao I Seminário Internacional Cidade e Alteridade, BH, setembro

de 2012. 2 Professora Associada da Universidade Federal Fluminense/PPGSD – Programa de Pós-

Graduação em Sociologia e Direito.

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Municipal, à guisa de política habitacional popular, arruamento, pavimentação,

médico de família, creche, água e luz. Em julho de 2010, os meios de

comunicação noticiaram que uma área em Pendotiba, cinturão verde de Niterói,

havia sido desapropriada pelo Plano Local de Habitação de Interesse Social

para a construção de bairro modelo e moradias para os desabrigados das

chuvas de abril. Ali seriam erguidas 11 mil casas, terminal rodoviário, postos de

saúde; piscinas e escolas foram prometidos. Entidades diversas foram contra o

bairro modelo e se aliaram aos posseiros, ocupantes há mais de 50 anos da

localidade chamada Fazendinha, ora ameaçados de remoção. Invocavam a Lei

Municipal nº1.468/95, que impede o parcelamento do solo sobre bens de uso

comum do povo, como costões rochosos, bem como sobre as áreas declaradas

como de Especial Interesse Ambiental ou Unidades de Conservação Ambiental.

Através do caso, o artigo analisa as práticas das políticas urbana, fundiária e

ambiental vigentes, que não falam entre si, o que impede sua conciliação.

(E.MARICATO; F.VILLAÇA; A.C.DIEGUES; J.S. MARTINS).

Este artigo está dividido em três partes: na primeira, descrevemos aspectos

sócio-econômicos e urbanísticos da cidade de Niterói, suas carências

habitacionais e as tentativas e desafios de se constituir áreas de preservação

ambiental. Na segunda parte descrevemos o conflito criado pela proposta de

um bairro modelo na localidade Fazendinha, no bairro do Sapê, região de

Pendotiba. Na terceira e última parte, tecemos considerações teóricas sobre o

caso em estudo.

Primeira parte:

Para o melhor entendimento dos conflitos em torno da proposta de edificação

de bairro modelo em área de preservação ambiental de Niterói, cabe

introduzirmos algumas informações sobre o município, com dados sócio-

econõmicos sobre a sua população, carências habitacionais e dados sobre sua

política de preservação ambiental.

Niterói ocupa uma área de 129, 375 km² a leste da Baía de Guanabara e tem

uma população de 487.562 habitantes, residentes em 191.172 domicílios (Censo

IBGE 2010). Foi até 1975 a capital do antigo Estado do Rio de Janeiro, antes da

sua fusão com o Estado da Guanabara.

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Os dados sócio-econômicos básicos apontam para uma situação de contrastes3.

Com uma renda média domiciliar de R$ 2031,18 (segundo o Censo do IBGE de

2010), Niterói alcançou a posição de município brasileiro com a maior

proporção de domicílios com renda familiar per capita maior de cinco salários

mínimos: 23,44%. Por outro lado, o Programa federal “Minha Casa, Minha

Vida” cadastrou 20.698 famílias com renda familiar mensal menor do que três

salários mínimos em 2011 em Niterói. (Se considerarmos 3 pessoas para uma

família, teríamos 62.094 pessoas nesta situação, ou seja, 14% da população total

do município).

A PEA – População Economicamente Ativa - de Niterói era de 227.912 em 2008,

das quais 97.662 em ocupações formais, o que significa menos da metade da

população trabalhadora: 42,8%. As atividades que mais ocupam sua população

são o comércio e serviços (75%).

Niterói está em 4º lugar no ranking dos 18 Municípios da Região Metropolitana

do Rio de Janeiro quanto à contribuição ao PIB Estadual e em 3º no ranking da

contribuição ao PIB dos serviços no RJ.

O município de Niterói está composto por cinco regiões: Pendotiba; Praias da

Baía; Região Norte, Região Oceânica e Região Leste. O Diagnóstico da

Consultoria Lates assim as descreve: a região Praias da Baía é a de maior

valorização imobiliária, (composta pelos bairros de Icaraí, São Francisco e

Charitas, e ainda, o centro da cidade). A Região Oceânica (com as praias

oceânicas de Itaipu, Piratininga, Itacoatiara e Itaipuaçu), foi a que mais cresceu:

24% entre 2000-2010, com um grande boom imobiliário. A região norte perdeu

população: nela fica o bairro do Barreto, que sofreu um processo de

desindustralização4. A Região Pendotiba (onde fica o sub-bairro Fazendinha,

foco de nosso estudo) “é a segunda menos populosa e cresceu 14% entre 2000 e

2010”. Nela fica a área florestada do município (onde a prefeitura verte o lixo da

cidade, no Morro do Céu). A Região Leste (Engenho do Mato, confrontante com

o Município de Maricá) é rarefeita. Ainda nos termos do documento citado (ver

nota 2), estas duas últimas regiões tem seu território “comprometido

ambientalmente”, pois incluem parte do Parque Estadual da Serra da Tiririca e

da Reserva Ecológica Darcy Ribeiro, além de outras áreas com valor ambiental

significativo”.

3 Fonte: Diagnóstico para o Plano Local de Habitação de Interesse Social -

Município de Niterói / RJ . Prefeitura de Niterói e Lates Consultoria, outubro de 2011.

4 Estudo Iconográfico do Barreto (Niteroi, Rj). Jefferson Campos et alli. Revista Vitas – Visões

Transdisciplinares sobre Ambiente e Sociedade – www.uff.br/revistavitas, Nº 3, Junho de 2012.

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Niterói tinha, segundo o Núcleo de Regulamentação Fundiária – NURF da

Secretaria Municipal de Urbanismo e Controle Urbano, 130 favelas em 2009.

Segundo o Censo Demográfico do IBGE para 2000, eram então 43. O NURF

contabilizou que 20% da população niteroiense (cerca de 95 mil pessoas)

habitavam favelas5. Segundo a Consultoria Lates, Niterói tinha 166

“comunidades” em 2011 (das quais especifica 130). “Comunidades” vem a ser

aquilo que o IBGE define como “aglomerados subnormais”, em lugar de

favelas. A maior parte delas na região norte (45%). Pendotiba, região onde fica a

Fazendinha, tinha 14% deste total.

QUADRO 1: REGIÕES DE NITERÓI, SEUS BAIRROS E

“COMUNIDADES”(AGLOMERADOS SUBNORMAIS)

PENDOTIBA LESTE OCEÂNICA NORTE PRAIAS DA

BAÍA

Vila Progresso

Maceió

Largo da Batalha

Matapaca

Sapê

Ititioca

Badu

Maria Paula

Muriqui

Rio do Ouro

Várzea das

Moças

Engenho do

Mato

Itacoatiara

Itaipu

Piratininga

St. Antônio

Serra Grande

Jardim Imbuí

Caramujo

Viçoso Jardim

Cubango

Santana

Fonseca

São Lourenço

Tenente Jardim

Gragoatá

Cachoeira

Boa Viagem

Centro

São Francisco

Santa Rosa

Icaraí

Fátima

19 comunidades 7 comunidades 29 comunidades 47 comunidades 28 comunidades

3454 domicílios

de comunidades

100 domicílios

de comunidades

2765 domicílios

de comunidades

13713 domicílios

de comunidades

9471 domicílios

de comunidades

955049 m² de

área ocupada

por

comunidades

34417 m² de área

ocupada por

comunidades

569428 m² de

área ocupada

por

comunidades

1530531 m² de

área ocupada

por

comunidades

1472379 m² de

área ocupada

por

comunidades

Fonte: tabelas diversas do Diagnóstico para o Plano Local de Habitação de Interesse Social.

Município de Niterói / RJ. Prefeitura de Niterói e Latus Consultoria,outubro de 2011,

consolidadas pela autora

Somando-se a última linha do quadro acima, temos que o total da área ocupada

por comunidades (aglomerações subnormais) alcança 4.561.804 m². Segundo o

estudo da consultoria Lates, com base em dados da Embrapa 2000, Niterói tem

11% de seu território urbanizado, ou seja, em torno de 14 km² de uma área total

de 129 km². Destes 14 km², como foi visto acima, a quarta parte (25%) está

ocupada por comunidades, ou, nos termos do IBGE, aglomerados subnormais.

As 20.968 famílias mais pobres se concentram em Fonseca (Região Norte) – 14%;

Santa Rosa (Praias da Baía) – 6%; e Caramujo (Região Norte) – 5%. Deste total

5 “Expansão descontrolada”, matéria de Cassio Bruno publicada no Jornal O Globo de

25/jan/2009.

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de famílias mais pobres, 40% eram chefiadas por mulheres – um conjunto de

8.210 famílias. Destas, a maior concentração está nos bairros Fonseca (14%),

Caramujo (7%) e Santa Rosa (6%). As comunidades carentes maiores são o

Morro do Preventório, em Charitas (4870 habitantes em 2009), pelos dados do

NURF) e Vila Ipiranga, no Fonseca (3813 habitantes)

A análise da política de habitação popular se faz através dos conceitos de déficit

e de inadequação (segundo metodologia da Fundação João Pinheiro) e do seu

enfrentamento. O deficit habitacional diz respeito à coabitação, rusticidade e

improvisação das construções. O déficit de Niterói foi calculado pelo estudo em

epígrafe como sendo de 10.004 unidades. A inadequação habitacional foi

definida como carência de banheiro, adensamento excessivo em imóveis não

alugados, inadequação da cobertura, carência de infraestrutura urbana e

inadequação fundiária. A Consultoria Lates considerou que a questão de

relevância é a inadequação fundiária. Em quadro inespecífico quanto ao ano,

totalizou 996 domicílios (3984 pessoas) em situação de risco: em áreas sujeitas a

inundações, sob linhas de transmissão, junto a lixões. Neste total incluiu 78

domicílios em áreas de preservação permanente. Não ficou claro qual seria este

risco. Supõe-se que para esta Consultoria a situação de risco seja a inadequação

fundiária, mais que a falta de titulação e domínio pleno do terreno.

As áreas de preservação ambiental de Niterói são fruto da atuação de seu

movimento ambientalista. Nenhuma destas tem suas áreas claramente

conceituadas e contornos demarcados; algumas são de grande abrangência e

pouca nitidez. São elas:

A APA das Lagunas e Florestas de Niterói (Artigo 44 do Plano Diretor de

1992 – Lei 1157/92, alterada pela Lei 2123/2004). A rigor englobaria três

das cinco regiões: Pendotiba e Região Leste, com seus maciços ainda

florestados, e a região Oceânica, com suas lagunas e praias.

O Parque da Cidade, uma APA do Morro da Viração, na região das

Praias da Baía (de 1976, foi definida no Artigo 47 do Plano Diretor de

1992). Tem 149.338 m².

O Parque estadual da Serra da Tiririca (1991), ainda de definição incerta

e foco de debates sobre seus limites. Menciona-se 2260 hectares

(22.600.000m²)

O Parque Natural Darcy Ribeiro: criado como Reserva Ecológica Darcy

Ribeiro pela Lei Municipal nº 1566/97, fica localizado entre o Engenho do

Mato, Rio do Ouro, Pendotiba e a Serra do Cantagalo. A área desta

Reserva Ecológica Municipal Darcy Ribeiro teria 12.317.631 m².

Ambientalistas propõem para a área um complexo de figuras de

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unidades de conservação: Área proposta para o Parque Natural

Municipal Darcy Ribeiro, com 11.994.396 m2; Área proposta para a

ARIE-Área de Relevante Interesse Ecológico -- 8.266.048 m2. Isto

totalizaria 20.260.444 m².

A APREC – Ecossistemas Costeiros, entidade ambientalista de Niterói,

disponibilizou lista das discrepâncias entre o plano legal e a realidade no que

diz respeito ao ambiente e à qualidade de vida de Niterói. Destacamos:

Loteamentos subaquáticos. Apesar de o Decreto 2765/76 declarar todos

os lotes subaquáticos na lagoa de Piratininga como “non aedificandi”, a

fim de evitar construções e ocupações irregulares, a própria Prefeitura

iniciou o aterro da lagoa com a ciclovia.

APA das Lagunas e Florestas de Niterói

Art. 44 da Lei 1157/92 - Foi criada a APA (Área de Proteção Ambiental)

das Lagunas e Florestas de Niterói, abrangendo toda Região Oceânica de

Niterói e áreas de Pendotiba. Contudo, o avanço da especulação

imobiliária e o crescimento desordenado de residências e favelas

compromete a integridade da Lei. A APA não dispõe de zoneamento

econômico-ecológico e plano diretor, o que facilita a destruição do meio

ambiente.

Parque Municipal da Pedra do Cantagalo

Lei 1254/93 - Instituiu área de especial interesse ambiental para criação

do Parque Municipal da Pedra do Cantagalo, parte integrante da Reserva

da Biosfera da Mata Atlântica. O Parque ainda não foi regularizado, não

tendo diretor, plano de manejo, sede e levantamento fundiário. O prazo

de regulamentação expirou há vários anos.

Reserva Ecológica Municipal Darcy Ribeiro

Lei 1566/97 - Criada demagogicamente, a Reserva Ecológica Darcy

Ribeiro é uma superposição da legislação de uso e ocupação do solo,

confundindo-se com o Parque Municipal da Pedra do Cantagalo e a APA

das Lagunas e Florestas de Niterói. Não dispõe de regulamentação,

fiscalização ou administração6.

6 http://www.aprec.org.br/noticias.htm

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Segunda parte: o conflito

Em julho de 2010 eclodiu o conflito entre os posseiros da Fazendinha (Sapê-

Pendotiba) e a Prefeitura de Niterói. Após o deslizamento do ex-lixão do Morro do

Bumba (em Viçoso Jardim), o Prefeito veio a público com um projeto de habitação

popular financiado pelo programa federal Minha Casa, Minha Vida. O projeto

iria reassentar as famílias vitimadas do Morro do Bumba, removeria famílias de

posseiros ocupa ntes da Fazendinha e indenizaria a família Cruz Nunes, dada

como a grande proprietária tanto de Pendotiba

O Comunicado Público n° 01/2010, da Prefeitura Municipal de Niterói, convidava as

“empresas do ramo da construção civil a manifestarem interesse na apresentação de

propostas para a produção e execução de projeto de empreendimento contendo

480 (quatrocentas e oitenta) unidades habitacionais (apartamentos) em área situada à

Rua Frei Orlando, nº 2.349, Jacaré, no Município de Niterói, destinado a famílias

com renda familiar mensal no valor de até R$1.600,00 (hum mil e seiscentos reais)”.

Os trabalhos envolveriam “urbanização, implantação, terraplanagem,

desmembramento, topografia, memorial descritivo das unidades habitacionais, dos

equipamentos comunitários e os de uso comum”. Incluiriam dois centros

comunitários, 1 (uma) churrasqueira, 4 (quatro) academias para a 3ª idade e 4 (quatro)

áreas de lazer/recreação infantil”. O Comunicado Público faz referência ao Decreto

10.772/2010, que desapropriou a área, e a sentença do processo judicial nº

0997174-90.2011.8.19.0002, da 6ª Vara Cível de Niterói , que determinou a posse

pela municipalidade de área que viria a ser desmembrada pela EMUSA -Empresa

Municipal de Moradia Urbanização e Saneamento, originando as Glebas A, B e C:

na Gleba A deveriam ser construídos 16 Blocos contendo 310 apartamentos; na Gleba B

deverão 08 blocos contendo 154 apartamentos e na Gleba C será uma quadra

poliesportiva, uma praça, centro comunitário, creche, ciclovia e uma via pública.

O site oficial da Prefeitura de Niterói transcreveu notícia do Jornal O Fluminense,

onde se lia:

“O FLUMINENSE teve acesso, com exclusividade, à planta do Bairro Fazendinha, o

maior projeto habitacional de Niterói que ficará localizado entre Sapê e Matapaca, em

Pendotiba. O Projeto prevê construção de 5 mil unidades além da infraestrutura

de educação, saúde e segurança, haverá ainda espaço para a instalação de um centro de

geração de renda. [...]onde serão construídas 7 mil unidades habitacionais. Os

apartamentos serão erguidos pelos governos municipal, estadual e federal, em

uma área de cerca de 790 mil metros quadrados e serão voltados para famílias de

dua s faixas de renda diferentes. Os principais objetivos da iniciativa são reduzir

o déficit habitacional da cidade e atender prioritariamente às famílias desabrigadas das

chuvas do ano passado e a população em área de risco. Na última semana, uma

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audiência pública foi realizada na Câmara Municipal de Niterói para discutir o

projeto, com a presença de aproximadamente 300 pessoas. Segundo a Prefeitura, o

Bairro Fazendinha é um projeto de ocupação urbana planejada, desenvolvida em

harmonia com o meio ambiente, infraestrutura completa de pavimentação, drenagem,

distribuição de água, tratamento de esgoto, entre outros serviços públicos, como

escolas, unidades de saúde, segurança, transporte e lazer para os novos

moradores. Áreas já estão sendo desapropriadas e as obras devem começar no início

de 2012. O projeto prevê 5mil unidades para pessoas que ganham até R$ 1, 6 mil e,

além da infraestrutura básica de educação, saúde e segurança no entorno, haverá

ainda espaço para usos comerciais e instalação de um centro de geração de renda

e de uma sede para associação de moradores, o que permitirá melhores condições de

vida para todos. No Bairro Fazendinha também se prevê a construção de 2000

apartamentos, voltados para famílias com renda até nove salários mínimos (R$ 5 mil).

O prefeito deixou bem claro que não queria que essas moradias fossem feitas na

periferia da cidade e que o bairro modelo não fosse um conjunto habitacional, onde os

moradores perdessem sua identidade. O objetivo é construir um lugar onde o cidadão

se sinta seguro, que tenha oportunidades e ferramentas para construir uma vida

mais digna”, afirmou um representante da Prefeitura. O local onde será o Bairro

Modelo foi escolhido estrategicamente, devido à proximidade com o futuro

terminal do Largo da Batalha.Desse modo, os moradores poderão ter a

mobilidade para se deslocarem para as diversas regiões. A planta divulgada pela

Prefeitura refere-se ao projeto original, porém algumas mudanças serão feitas de acordo

com os pedidos feitos pelos moradores da Fazendinha. Além do que a planta apresenta,

serão construídos um centro ecumênico e um centro cultural. Também serão estudados

a preservação do Sítio de Carvalho e da fauna e da flora local.

Remanejamento – Da área de 790 mil metros quadrados, participarão do processo de

remanejamento 320 famílias que serão indenizadas de acordo avaliação técnica dos

imóveis. Estas famílias, no entanto, terão a opção de receber a indenização ou uma

unidade habitacional a ser construída.

Audiência – O projeto foi exibido em vídeo durante a audiência pública pelo secretário

municipal de Habitação, Marcos Linhares. Durante a apresentação foram mostradas as

projeções de como ficará o novo bairro que o município pretende construir.

“É um bairro completo e, como tal, terá financiamento do Governo Federal o que dá a

garantia de que os equipamentos urbanos serão respeitados”, disse o secretário,

ressaltando que, durante o período de obras, serão gerados 2 mil empregos diretos e 500

indiretos.Já Christina Monerat, secretária municipal de Urbanismo, ressaltou que as

legislações urbanas e de preservação do meio ambiente estão garantidas no projeto. O

presidente da Niterói Transporte e Trânsito (NitTrans), Sérgio Marcolini, enfatizou que

as linhas de ônibus locais se integrarão aos novos terminais a serem construídos

no Largo da Batalha e na RJ-104.

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O procurador-geral do Município Bruno Navega lembrou que a Prefeitura

solicitou o acompanhamento da Defensoria Pública nas questões de indenizações

de desapropriações.

“Queremos que o direito de quem mora há anos na área desapropriada seja

respeitado, independente de ter ele o título ou não de posse da terra”, disse ele.

O presidente do IAB/RJ, pelo seu Núcleo Leste Metropolitano – NRLM, Carlos

Krykhtine, assim relatou os acontecimentos7

“Em 29 de Julho de 2010, a prefeitura de Niterói publicou decreto 10.772/2010, com o

intuito de desapropriar área destinada a produção habitacional para atendimento

a famílias de baixa renda que serão ocupadas preferencialmente pelos desabrigados das

chuvas de abril de 2010 e por moradores em áreas de risco ou de interesse de

preservação ambiental, no Município de Niterói – conforme seu Art.3º.Julgamos correta

e elogiamos a atitude da Prefeitura em destinar terras para o reassentamento de

famílias que ocupam áreas impróprias e fragilizadas. O passo importante na

solução dos problemas causados pela informalidade e na autoconstrução na

produção habitacional e suprir a demanda reprimida de moradias para essa

população desassistida.No entanto no caso especifico deste decreto, o polígono descrito

localiza‐se em uma área de grande relevância ambiental no Bairro do Jacaré, na

Região Oceânica de Niterói. Situada na Estrada Frei Orlando [...] o terreno é descrito

pelo instrumento de declaração de utilidade pública, mencionando uma área de

132.888,20m², mas o polígono descrito através de coordenadas geográficas nos

mostra uma área de 298.043,18m² que vai da Estrada Frei Orlando subindo toda a

encosta do Morro do Cantagalo até atingir a Pedra do Cantagalo – marco

paisagístico da geografia da cidade.

A área é ambientalmente frágil e sua legislação estabelece diversas restrições urbanas e

ambientais.[...] 87,58% da área encontra‐se na Reserva Darcy Ribeiro, área

resguardada para a criação do Parque Darcy Ribeiro – umas das áreas verdes mais

importantes de preservação da cidade de Niterói somando‐se em importância a Parque

Estadual da Serra da Tiririca e a APA da Viração. Outros 9,86% estão sobre a

incidência da ZCVS, zoneamento que prioriza a baixa ocupação por ter características

de zona de amortecimento para as unidades de preservação[...] A área encontra‐se a

cerca de 2 km de distancia da estrada Francisco da Cruz Nunes, pela Estrada

Frei Orlando – relativamente afastada da infraestrutura de serviços urbanos da cidade.

Este trecho é bem avançado no interior do vale do Rio Jacaré e conseqüentemente

na porção da Reserva da Darcy Ribeiro na Região Oceânica com características de

extrema fragilidade. A cidade já possui nesta área uma Área de Especial

Interesse Social ‐ AEIS 07 – que foi originada por duas situações de

reassentamentos nopassado e que se perdeu o controle sobre o ordenamento

urbano, favelizando‐se e colocando em risco as famílias e o ecossistema local.

7 Relatório de avaliação do Decreto 10.772/1010 da Prefeitura de Niterói (Relatório de Carlos,

Presidente do IAB/RJ – NRLM: Niterói, 4 de novembro de 2010).

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O decreto incorre em problemas conceituais, pois se objetiva servir preferencialmente

as famílias desabrigadas das chuvas de abril de 2010 e por moradores em áreas de risco

ou de interesse de preservação ambiental, mas o local tornado de utilidade

pública para desapropriação possui exatamente essas características frágeis.

Segundo o Primeiro-Secretário da Associação de Moradores da Fazendinha, Sr. José

Geraldo, o projeto do bairro modelo seria destinado a 35 mil pessoas (sete mil famílias)

e ocuparia uma área de um milhão e trezentos mil m², posteriormente reduzida para

700 mil m² (respeitando parte de área de preservação ambiental). A Associação

buscou apoio na Comissão de Regularização de Terras da OAB e participou de

audiência pública (29/08/2011) sobre o projeto do bairro modelo na Câmara de

Vereadores, cujos edís também não tinham informação sobre o projeto. Para o Sr. José

Geraldo, a questão de alocar os moradores do Morro do Bumba era só pretexto

para indenizar a família Cruz Nunes (tanto assim que aqueles moradores acabaram

alocados em prédios feitos para este fim, em Viçoso Jardim). Ainda segundo seu

testemunho, a comunidade da Fazendinha é antiga, as 350 famílias posseiras lá

estão há mais de 60 anos, enquanto que a família Cruz Nunes lavrou sete

escrituras da área apenas no ano de 1971.

Passeatas foram realizadas (fotos 1, 2 e 38):

Foto 1

8 http://www.desabafosniteroienses.com.br/2011/12/passeata-contra-construcao-do-bairro.html

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Foto 2

:

Foto 3:

Fonte: blog Desabafos Niteroienses

Blogs na internet veiculavam a argumentação crítica da comunidade da

Fazendinha, apoiada pelo vereador Renatinho (PSOL):

O secretário de Habitação, Marcos Linhares faz uso de sofisma quando afirma

que: "Dizer que estamos tirando as pessoas da Fazendinha, isso não é

verdade"..."as pessoas podem permanecer na Fazendinha, não naquelas casas de

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hoje que ocupam 2 mil, 3 mil metros quadrados, mas sim em apartamentos..". "Temos

que ter um posicionamento de governo para enfrentar esta situação..." Sem dúvida Sr

Marcos Linhares, os niteroienses vem aguardando um posicionamento de governo há

MUITO TEMPO...e sem dúvida 1500 famílias é um número menor que as 7000

unidades.Mas... são dois pesos e medida diferentes. Cadê o senhor Mocarzel

[presidente da EMUSA]que esteve à frente dessa discussão toda, será que é porque

também possui, como todo niteroiense sabe, um sítio em Várzea das Moças?! Que

área tem o sítio de Mocarzel? Por que não pegam a área do senhor presidente

da EMUSA e não desapropriam e colocam suas coisas todas dentro de um

apartamento de 45 metros quadrados?!

Que preocupação social é essa?! Que preocupação social é esta que não considera o

modo de vida de uma população existente, também de 0 a 3 salários mínimos?! Isso é o

que considera preservação da área ambiental?! Ambiente o senhor considera apenas

como árvores?!

Na audiência ouvi inclusive citarem que o Bairro Modelo contará com drenagem

e pavimentação... Será que a cidade conta com drenagem e habitação?

Se uma cidade abandonada pelo poder público - em termos de serviços!, porque em

termos de ganancia, corrupção e especulação, ela não é abandonada! - como Niterói e

seus bairros, que possui um dos maiores IDH do País, maior poder aquisitivo etc etc, e

seus bairros não contam com serviços como saúde, que está totalmente sucateada,

escolas, creches, quadras, lazer, idem, idem idem..por que devemos acreditar nas

intenções ditas sobre este projeto que pretende começar suas obras em início 2012, ano

das eleições..?! Esse projeto é exclusivamente eleitoreiro. Este projeto é ruim,

tecnicamente falando.Este projeto segue as errôneas linhas preconizadas na década de

60, época de Carlos Lacerda, onde comunidades foram removidas e criou-se a

Cidade de Deus, Vila Kennedy.. A ONU desaconselha firmemente a implantação

de grandes projetos urbanísticos em um único local. Hoje é claro que isso não funciona.

Hoje é notório que isso é ruim, para os moradores e para a cidade. Só os técnicos da

prefeitura de Niterói não sabem?! Ou os políticos? Alegam que Niterói não tem áreas

vagas... isso é mentira porque existem vários prédios vazios e abandonados no centro

de Niterói. Há diversas áreas que podem ser ocupadas por partes desse déficit

habitacional... mas para isso é necessária vontade política. A comunidade da

Fazendinha é contra a remoção de suas casas; é contra a implantação de um mega

projeto. A cidade é contra um mega projeto concentrado num único local, que só vai

agravar a situação que parece hoje insustentável que vivemos no dia-a-dia.. Mas pode

piorar.. e muito9

Videos também foram veiculados10 e panfletos distribuídos pelo bairro do Sapê:

9 http://www.desabafosniteroienses.com.br/2011/09/dois-pesos-duas-medidas-videobairro.html 10 http://www.tvoflu.com.br/TvOFlu/Videos/Cidades/2011/8/bairro-modelo-e-apresentado-

862.aspx

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Figura 1: Panfleto sobre o Bairro Modelo

Grutas, de valor histórico presumido, foram descobertas na Fazendinha e

noticiadas em outubro de 2011 pela Associação de Moradores, na tentativa de

conseguir que a localidade fosse considerada também de interesse para o

patrimônio histórico e cultural.

“Um esconderijo de escravos? Um abrigo para judeus fugitivos da Segunda Guerra?

Um lugar secreto para guardar material roubado? Duas grutas descobertas há pouco

mais de duas semanas, por moradores da Fazendinha, na localidade do Sapê,

vêm dando origem a boatos e prometem ser mais um elemento na polêmica que

envolve a construção do Bairro Modelo.Conversando sobre o passado da região, antigos

moradores lembram a existência dos buracos, que, há, ao menos, 40 anos, foram

fechados pelo próprios habitantes, temerosos da queda de crianças nas “cavernas”. A

associação de moradores local decidiu então localizar e reabrir as cavernas, na

esperança que o possível valor histórico delas possa adiar ou suspender a construção do

Bairro Modelo, contra a qual se opõe.

- Tem gente que diz que esses buracos foram abertos por escravos, outros por índios. A

atividade de mineração já foi descartada. Segundo os mais antigos, ainda há um

terceiro buraco. Um deles seria na verdade um túnel e chegaria a Maria Paula,

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segundo contam. Achamos que isso pode evitar as desapropriações previstas no

projeto do Bairro Modelo - diz Nei Carvalho, membro da associação de moradores”11

Opondo-se também ao projeto, o CCRON – Conselho Comunitário da Região

Oceânica – oficiou em janeiro de 2011 ao Procurador A. A. Soares Canedo Neto,

do Ministério Público Federal, onde opinava que o processo desapropriatório

deveria ser suspenso para analise sob a ótica da legislação ambiental, a fim de se

ter a garantia de que o meio ambiente não sofreria danos irreparáveis. Em seu

arrazoado o CCRON dizia que a gleba de terras situada na localidade Jacaré, de

Pendotiba, era eminentemente rural e que possuía 298.043,18m² e não

132.888,20m² (como mencionava o decreto municipal). Parte dela estava situada em

região elevada do maciço rochoso do morro do Cantagalo (Unidade de Proteção

Permanente – Parque Municipal Darcy Ribeiro - Lei Municipal 1.566/97), se

estendendo pela sua encosta, em direção transversal, até a sua linha de cumeada. A

gleba em desapropriação possuía declividade média superior àquelas estabelecidas

pela legislação e, pela sua constituição geológica e por se tratar de área coberta

por remanescente da Mata Atlântica, não deveria ser utilizada em programas

habitacionais. A área pretendida possuía nascentes e córregos contribuintes do Rio

Jacaré e em sua parte plana era cortada pelo rio Jacaré, que deveria ter suas margens

protegidas, em conformidade com as leis pertinentes, (Portaria SERLA n° 324/2003

regulamentada pelo Decreto Estadual n° 42.356/2010), em pleno acordo com o Código

Florestal – Lei nº 4.771/65, Lei Lehman n° 6.776/79 e Lei Municipal nº 2.571/2008).

Além disso, a gleba estava situada cerca de dois km de distância da malha urbana,

em local desprovido de qualquer infra estrutura básica para os ocupantes de um

conjunto habitacional, mantendo inclusive suas caracteristicas rurais; havia na área

evidências de escorregamentos, periodicamente, de fragmentos de rocha do maciço

rochoso, que requeria estudos e projetos de contenção de encosta.12

O Movimento Acorda Niterói lhe fez coro:

“Enquanto no mundo todo se noticia a tragédia da Região Serrana do Rio como uma

resposta da Natureza ao descaso das autoridades por desviarem cursos de rios,

permitirem a construção em encostas, Niterói vai na contramão de tudo o que se

entende como ecologia e preservação ambiental e a cada dia o que se vê são mais

favelas surgindo na Região Oceânica e as que já existem, se alastrarem, como ervas

daninhas, sobre as reservas e encostas. Até quando a impunidade dos governantes

continuará?Até quando o povo permitirá que, mesmo pagando impostos

altíssimos, seus direitos não valham nada, seus imóveis, construídos com sacrifício,

com o suor de seu trabalho, ao fim da vida, estejam no meio de uma "comunidade", que

11 http://oglobo.globo.com/rio/bairros/posts/2011/10/01/descoberta-de-grutas-cria-

boatospolemica-408839.asp, 01 de outubro de 2011 12 Ofício CCRON nº 1/2011.

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cresceu à sua volta? No lugar em que se paga o IPTU mais caro do Rio de Janeiro, maior

do que no bairro mais chique do Rio, o Leblon, isso é possível? Até quando se

permitirá a degradação e destruição do que resta de Mata Atlântica? Até quando

continuaremos calados, vendo a desvalorização e a favelização de uma das

regiões mais lindas do Estado, sendo vilipendiada, vendida, usurpada pela mesma

corja que suga do poder há anos?Acorda Niterói!”13

O FONECO – Forum Niteroiense de Ecologistas destacou a superposição e a

indefinição da Reserva Ecológica Municipal Darcy Ribeiro. Gerhard Sardo, seu

Coordenador, definiu a lei que criou a reserva como geradora de um “imbróglio

jurídico e administrativo” e afirmou a existência de “milhares de ocupações humanas”

na área :

“O ato oficial definiu como Zona de Preservação da Vida Silvestre – ZPVS (onde

éproibida qualquer atividade que importe na alteração do meio ambiente, como

dificações, parcelamento do solo, abertura de vias, extração mineral

edesmatamentos) uma área aproximada de 12,4 Km2 onde coexistem milhares de

ocupações humanas. A contradição jurídica chegou a ser reconhecida pela

administração pública municipal através da Portaria Conjunta SMMA/SMU nº 01/00 –

ratificada pela Portaria Conjunta SMMA/SMU 02/00 – onde indicou a necessidade de

adequar os usos das unidades de conservação à sua viabilidade ambiental e

econômica.”14

Em resumo, o projeto do Bairro Modelo de Pendotiba foi apresentado pela

prefeitura, nas entrelinhas, como solução para o déficit e a inadequação habitacionais

da cidade, não apenas a dos desabrigados do Morro do Bumba . Pela sua magnitude, é

de se supor que cobriria todo o déficit habitacional de Niterói (10004 unidades, como

visto acima). Como ficariam as cerca de 29503 habitações “inadequadas” de suas 130

favelas (Quadro 1)? O movimento comunitário da cidade (CCOB – Conselho

Comunitário da Orla da Baía de Niterói, o CCRON já citado e outros) critica a

Prefeitura por ter supostamente planos de gentrificação15 dos morros da cidade,

todos voltados para a magnífica paisagem da baía de Guanabara, implicando na

remoção de suas populações, o que estaria embutido nas intenções ocultas do Bairro

Modelo. O teor geral das críticas é que a gestão do Prefeito Jorge Roberto Silveira não

se preocupou com a população pobre e trabalhadora e teria favorecido a

especulação imobiliária via verticalização de seus bairros.16

13 http://cafecomglorinha.blogspot.com.br/2011/01/denuncia-sos-parque-ecologico-reserva.html 14 http://www.portaldeitaipu.com.br/portugues/meio_ambiente32.htm 15 Transformação de uso e de ocupação de um bairro, pela qual estratos sociais mais afluentes

substituem as classes sociais dos estratos “inferiores”. 16 http://www.conselhoorlaniteroi.xpg.com.br/index.html

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Como vimos no relato acima, há imprecisões e indefinições não apenas sobre o projeto

do Bairro Modelo, mas sobre os limites das áreas de preservação ambiental. Para

os ambientalistas, tais imprecisões seriam propositais por parte das autoridades

municipais, para favorecer a inserção de edificações em áreas de preservação.

Ambientalistas e o movimento comunitário, por sua vez, usam tal imprecisão em

defesa das áreas, como acontece no caso em tela, estendendo, em sua argumentação,

o território das unidades de conservação para açambarcar áreas que o governo

e/ou empresariado pretendem urbanizar. Tal parece ter se dado com o caso em tela,

onde, da defesa da localidade do Rio Jacaré e adjacências, passou-se a se incluir

a Fazendinha e o Sapê na área protegida pela Reserva Ecológica Darcy Ribeiro.

As casas da Fazendinha estão ligadas às redes elétrica e de abastecimento de

água, mas suas estradas vicinais continuam sem asfaltamento e toda a região

sem esgotamento sanitário, que corre para as suas micro-bacias, inclusive seus

condomínios. Os moradores da Fazendinha ergueram suas casas sob linhas de

transmissão de eletricidade e, antes do projeto do bairro modelo, já haviam recebido

carta da Ampla, a concessionária de energia elétrica, com a informação de que

deveriam deixar o local , por razões de risco de saúde e de acidentes e por projeto de

expansão das torres das linhas de transmissão. A região vem sendo disputada já há

anos, seja para projetos rodoviários (a pretexto de desafogar o trânsito para a

Região dos Lagos), seja pela família Cruz Nunes, buscando, via judicial, indenizações

de milhões de reais. O Morro do Céu, destino final do lixo de Niterói , no

Caramujo,vizinho à região de Sapê-Pendotiba, continua a receber o lixo da

cidade.17

Condomínios fechados, de diferentes estratos de renda, foram erguidos em

Pendotiba, assinalando contrastes, mas também estabelecendo alianças com a

comunidade da Fazendinha, todos interessados em defender a região dos projetos

de adensamento bem como de uma população bandida que estaria migrando da

cidade do Rio de Janeiro, escapando das UPPs – Unidades de Polícia Pacificadora.

No momento da redação final deste texto, a cidade elege seu novo prefeito;

estamos no final do ano de 2012 e o Bairro Modelo, cu ja implantação seria neste

mesmo ano, não se realizou. Um dos prefeitáveis acenou com a sua continuação,

anunciando que já haveria dotação orçamentária em Brasília.

Terceira parte: algumas considerações teóricas

17 Houve projeto, abortado pelo movimento ambientalista e comunitário niteroiense, de destinar

o lixo de Niterói ao buraco deixado pelas pedreiras fechadas, localizadas no Parque Estadual

da Serra da Tiririca.

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As políticas de ordenamento urbano, fundiárias, habitacionais, ambientais e de

mobilidade urbana são, em geral e por todo o país, políticas isoladas, que não falam

entre si. O resultado final é que a lógica de cada qual tende a se converter em

problemas para as demais. A política de habitação popular é feita de forma

pontual, fragmentada, nas periferias e os conjuntos construídos são “guetificados” e

se tornam novos problemas; assim o tem demonstrado toda a literatura especializada

(CARRIL, 2006; BONDUKI, 2004; ZALUAR & ALVITO, 1999).

A tradição da engenharia urbana desconsidera o ambiente físico e seus ecossistemas e

intervém sobre os territórios de maneira uniforme e cartesiana, manilhando rios,

fazendo aterros e terraplanagem dos “acidentes geográficos” e da topografia,

desmatando e transformando locais peculiares em cenários urbanos padronizados,

igualmente desoladores e cinzentos. A ênfase na ideia do plano estratégico urbano

leva seus gestores a negligenciarem a cidade como território e ambiência de vida

de seus habitantes e a privilegiarem mega-projetos como meio de multiplicação do

capital (HARVEY, 1996; ARANTES, 2007).

As terras, em especial as terras urbanas, são apropriadas como reserva de valor

pelos investidores. Daí resultam áreas esvaziadas, abandonadas ou de ocupação

informal, “ilegal”, marcando conflito entre suas funções e entre seu valor de troca

e valor de uso. A cidade de Niterói tem áreas mais centrais, como o Barreto, já

urbanizado, mas esvaziado em virtude da desindustrialização, bem dotado de

artérias urbanas e até de leito de via férrea (ver Nota 4). No entanto, a escolha da

Prefeitura para a localização do Bairro Modelo não cogitou do Barreto e sim de

uma área de preservação ambiental e periférica.

As áreas de preservação ambiental urbana tendem a se tornar áreas sacrificadas

às funções que ninguém quer ter por perto (depósito de lixo, prisões etc.) e a

serem vistas pelo gestor local como áreas de expansão do perímetro, em lugar

de perceberem sua função de equilíbrio ambiental e mesmo econômico, como a de

um cinturão de produção rururbana.

Duas tendências tem sido discutidas pelo urbanismo: uma preconiza a cidade

compacta, de prédios altos e densos, de multiusos, compensados por vastos espaços

verdes (GLAESER, 2011). Apesar de Niterói estar se adensando e se

verticalizando, não há maior preocupação com áreas verdes de preservação,

tampouco com uma rede de transporte urbano coletivo para uso da população

adensada. A outra tendência é a da diversificação de ocupações da convivência

de população de diferentes perfis nos bairros (JACOBS, 1973), uma corrente que

ganhou visibilidade a partir dos anos 60,como crítica ao princípio da Carta de

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Atenas, do CIAM18, que recomendava espacialização das funções. Niterói, com o

projeto do mega Bairro Modelo, parece repetir os erros que o então Estado da

Guanabara cometeu nos anos 60, quando construiu a Cidade de Deus, Vila Aliança

e Vila Kennedy para substituir favelas da cidade do Rio por supostos bairros

modelares na sua periferia.

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