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CONFERÊNCIA SOBRE SANTA GERTRUDES D. Marco Eugênio Mística e Ascética Entre os Padres gregos encontramos referencias a Ulisses, na Odisseia, como um exemplo de experiência mística e ascética. Ulisses sai em aventura, atraído pelo canto das sereias, e, por elas, fascinado. Contudo, mesmo longe de casa, mesmo encantado com aquilo que o cerca, mesmo envolvido com a aventura, não esquece a pátria; e é esta que será sempre o motivo inspirador de toda sua ação, de sua vida no exilio. – Eis a figura da experiência mística: o homem, inserido na obra da criação, atraído por sua beleza, participando dela, não a tem como fim ultimo, não a busca por si mesma, mas esta constantemente em referencia ao Criador, sua origem e fim, sua “pátria”. São João Paulo II, com linguagem cristã, assim define esta experiência: “Mergulhar na criação, desfrutá-la como um dom, sem esquecer o Criador, em total referencia ao Doador.” Em outra situação, vendo nossa atividade na obra da criação que a nós foi entregue pelo Criador, nos diz: ”Entrar no trabalho do Senhor, sem esquecer o Senhor do trabalho.” _______ A mística é um dom de Deus, que, como expressão das Virtudes Teologais (Fé, Esperança e Caridade), tem sempre Deus como origem, objeto e meta. Expressa a Fé, enquanto reconhece o Criador, contemplando a criatura. E tal expressão terá seu ápice ao ver o Criador encarnado, feito criatura, não apenas para se revelar à criatura, mas para revelar a dignidade da própria criatura. Contemplar Deus humanado e chegar ao Pai é o maior dom místico que Deus nos concede. Portanto, não existe união mística, pela fé, com a Divindade, sem passar pela humanidade de Cristo. Expressa a Esperança, por que não coloca nas criaturas no seu apoio existencial, mas se usa delas em referencia ao Criador e em gratidão a Ele. Santo Agostinho, em oração, dizia: “Fomos criados para Vós, e nosso coração é inquieto enquanto não repousar em vós.” Portanto, nunca nas criaturas. Elas devem nos inquietar... devem ser vistas como indicadores e caminho para o Criador, e nunca fim nelas mesmas. Expressa a Caridade, enquanto vive o amor ao Criador no relacionamento com as criaturas. Assim o mesmo Santo Agostinho nos afirmava em oração: “Senhor, ama-Te menos quem não ama as coisas por causa de Ti, e se frustra quem ama em lugar de Ti.” O místico reconhece a relatividade das coisas, e não as ama ou busca em lugar de Deus, mas as ama por causa de Deus. – Deus ama as criaturas por que elas existem, mas as criaturas existem porque Deus as ama.

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Page 1: CONFERÊNCIA SOBRE SANTA GERTRUDES D. Marco Eugênio · me de mim mesma, toma-me e redime -me e devolve -me a Ti.” Assim, o asceta, em seu esforço pessoal de busca de Deus, conta

CONFERÊNCIA SOBRE SANTA GERTRUDES

D. Marco Eugênio

Mística e Ascética

Entre os Padres gregos encontramos referencias a Ulisses, na Odisseia, como um exemplo de experiência mística e ascética. Ulisses sai em aventura, atraído pelo canto das sereias, e, por elas, fascinado.

Contudo, mesmo longe de casa, mesmo encantado com aquilo que o cerca, mesmo envolvido com a aventura, não esquece a pátria; e é esta que será sempre o motivo inspirador de toda sua ação, de sua vida no exilio. – Eis a figura da experiência mística: o homem, inserido na obra da criação, atraído por sua beleza, participando dela, não a tem como fim ultimo, não a busca por si mesma, mas esta constantemente em referencia ao Criador, sua origem e fim, sua “pátria”.

São João Paulo II, com linguagem cristã, assim define esta experiência: “Mergulhar na criação, desfrutá-la como um dom, sem esquecer o Criador, em total referencia ao Doador.” Em outra situação, vendo nossa atividade na obra da criação que a nós foi entregue pelo Criador, nos diz: ”Entrar no trabalho do Senhor, sem esquecer o Senhor do trabalho.”

_______

A mística é um dom de Deus, que, como expressão das Virtudes Teologais (Fé, Esperança e Caridade), tem sempre Deus como origem, objeto e meta.

Expressa a Fé, enquanto reconhece o Criador, contemplando a criatura. E tal expressão terá seu ápice ao ver o Criador encarnado, feito criatura, não apenas para se revelar à criatura, mas para revelar a dignidade da própria criatura. Contemplar Deus humanado e chegar ao Pai é o maior dom místico que Deus nos concede. Portanto, não existe união mística, pela fé, com a Divindade, sem passar pela humanidade de Cristo.

Expressa a Esperança, por que não coloca nas criaturas no seu apoio existencial, mas se usa delas em referencia ao Criador e em gratidão a Ele. Santo Agostinho, em oração, dizia: “Fomos criados para Vós, e nosso coração é inquieto enquanto não repousar em vós.” Portanto, nunca nas criaturas. Elas devem nos inquietar... devem ser vistas como indicadores e caminho para o Criador, e nunca fim nelas mesmas.

Expressa a Caridade, enquanto vive o amor ao Criador no relacionamento com as criaturas. Assim o mesmo Santo Agostinho nos afirmava em oração: “Senhor, ama-Te menos quem não ama as coisas por causa de Ti, e se frustra quem ama em lugar de Ti.”

O místico reconhece a relatividade das coisas, e não as ama ou busca em lugar de Deus, mas as ama por causa de Deus. – Deus ama as criaturas por que elas existem, mas as criaturas existem porque Deus as ama.

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O primado de tudo é sempre o amor de Deus. Ele é anterior á própria criação que, assim, fala dele e leva a Ele. – O místico reconhece isto, e expressa em sua vida.

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A ascética seria o esforço pessoal para corresponder ao dom de Deus e ir a Ele. É o esforço de passar pelas criaturas ao Criador. Assim, enquanto esforço humano de busca de Deus, algumas peculiaridades a caracterizam:

a) Contemplar, para a ascética, é o esforço de estar diante de Deus, de conservar sua presença. Deus convidara Abraão: “anda na minha presença e sê santo” (Gn 17, 1). O convite feito deve ser assumido. E é assumir corresponder a este convite que consiste a ascética. Este sempre foi o ideal da oração frequente, constante, incansável, vigilante, evitando tudo aquilo que nos distrai e nos tira da atenção fiel a ele. O asceta, tendo em vista o objetivo final e definitivo do homem que é Deus, é capaz de evitar tudo que não leva a Deus. Santa Teresa Benedita da Cruz assim rezava: “Senhor, tira de mim tudo que me impede de ir a Ti, ou que me afaste de Ti, e dá-me tudo que me leva a Ti. Livra-me de mim mesma, toma-me e redime-me e devolve-me a Ti.” Assim, o asceta, em seu esforço pessoal de busca de Deus, conta com a ajuda do próprio Deus, pois reconhecendo a própria fragilidade, busca em Deus a força necessária para buscá-lo.

b) Para a Ascética, a busca de Deus, se faz numa natureza debilitada pelo pecado, fragilizada. Santo Tomas já nos advertia que “a Graça pressupõe a natureza.” É sobre a natureza a Graça que se coloca e esta é debilitada, fraca, por causa do pecado. Ora, se a natureza, não destru´dia, mas enfraquecida pelo pecado, não consegue mais, por si mesma encontrar Deus, como ocorria no Paraiso, necessita da ajuda divina, e conta com ela, para o exercício da busca de Deus. A meditação da Palavra, pela qual Deus é buscado pelo conhecimento de Sua vontade, promove o encontro com Ele. São Francisco nos afirma: “Meditar a Escritura é buscar o conselho do próprio Deus.” E Santo Ambrósio nos diz: “Acolher a Escritura no seio da Igreja é voltar a caminhar com Deus no Paraiso.” E São Gregório Magno apresenta a Escritura como “carta de amor de Deus”. Deus se deixa reconhecer pela sua Palavra, pois esta é o próprio Deus no sacramento de sua Palavra. O confronto da vontade humana, marcada pelo pecado, com a santa vontade de Deus, conhecida pela Escritura, revela a necessidade de conversão e promove a luta contra ela mesma, para que vença a vontade de Deus. Este é o esforço do Santo, isto é ascese.

Lc 2, 39-46 Hb 12, 4 A humanidade assumida por Deus em Jesus, viveu a ascese total e venceu. Ele veio por ele e por nós.

No texto que vimos acima, no Getsemani, lutando contra a própria vontade humana para submetê-la a Deus, Jesus chega a suar sangue. Só Ele é capaz de vencer, e só nele nós venceremos. Daí o convite da Carta aos Hebreus.

O asceta une seu esforço à luta vitoriosa de Cristo e, nele , por Ele e com Ele se faz vencedor.

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Enquanto “imagem de Deus”, o homem é um ser dotado de inteligência e vontade. Pela inteligência ele conhece e, pela vontade, com base no conhecimento, ele decide, quer.

Ora, conhecendo a santa vontade de Deus e a querendo, não se pode pensar em ter prazer, em “sentir” gozo, em viver uma experiência meramente emocional.

São João da Cruz nos apresenta a Ascética como “Noite Escura”. A presença de Deus, como prazeiroso consolo, não pode ser sentido emocionalmente.

Assim, não buscamos Deus por seu consolo, mas por Ele mesmo. Deus por Ele mesmo, e não suas obras, porque estas não são Deus, e Ele é o valor absoluto a ser buscado.

Jesus Crucificado, mesmo em “noite escura”, experimentando a pior consequência do pecado que é a ausência de Deus (“Por que me abandonaste?”) busca a Deus por Ele mesmo, e se abandona a Ele (“Pai, em vossas mãos entrego o Espirito”). Cristo é Deus vencendo, na humanidade a fraqueza da própria humanidade.

Assim, decorre daí, que a Ascética vê, na “noite escura”, a experiência da fé pura, não sentimentalista, mas vontade livre, não limitada pelo prazer ou pelo consolo, mas iluminada e atraída pelo conhecimento de Deus.

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São Paulo (1Tm) nos apresenta como sendo a vontade de Deus, “a salvação de todos e o conhecimento da verdade”. Ora, tudo aquilo que se opõe à salvação ou que impede o conhecimento (intimidade) com Deus, que é a Verdade, deve ser evitado pelo asceta.

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São Francisco de Sales nos adverte que o navegante, em pleno mar, se guia mais pelo céu que pelo próprio mar. Assim o cristão, em sua vida espiritual tem que mirar mais a Deus que ao mundo.

São Gregório Nazianzeno, apresentando a um grupo de virgens a “Vida Espiritual”, (Espiritualidade), adverte que esta é como navegar, e isto leva em consideração três aspectos:

1) Mar – onde vamos navegar, a vida real, os recursos concretos que temos para viver a espiritualidade. (Vida no Espírito)

2) O Vento = sopro do Espirito Santo. 2.a) Vento sopra e acompanha o barco 2.b) Vento sopra onde quer(Jo 3) 2.c) Precisa abrir a vela

3) O barco 3.1) Bussola – nos orienta no rumo certo (Bíblia e a Igreja) 3.2) Leme – o que segurar e como guiar a vida

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Tudo isto é a experiência mística e ascética de Santa Gertrudes. Como mística, Deus vem ao seu encontro e, como asceta, soube aproveitar do apelo divino, unindo seu esforço pessoal à

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Graça. Sua realidade concreta será o fundamento de sua ascese: conhecimento da Patrística liturgia, Regra de São Bento, os costumes monásticos, a vida comunitária. É assim que Santa Gertrudes busca a Deus e se usa do próprio contexto para encontra-lo.

O que marca a Mística de Santa Gertrudes

1. Reconhecimento da própria indigência Indigencia= fragilidade criatural que leva à condição de dependência. Não à autossuficiência. Reconhecer apenas a fragilidade seria uma atividade pessimista e deprimente, mas, quando este reconhecimento se faz numa expressão de dependência para com o Ser Superior, Necessário, que é Amor, é uma experiência libertadora. Santa Gertrudes, reconhecendo seu próprio pecado e sua indignidade diante de Deus, se confia e se entrega à Misericórdia. Cristo, o Mestre Divino, lhe ensinou a doutrina da vida espiritual. Santa Gertrudes custou a se confiar à Misericórdia, à “Divina Piedade”, mas, quando se abandonou a Ela, se tornou sua embaixadora e pregoeira. “Que não ensinou o paciente Mestre à sua discípula predileta? Ensinou-lhe principalmente o que talvez Gertrudes mais custou a aprender: crer e confiar absolutamente na divina pietas, essa ternura infinita e inenarrável de Deus, da qual Gertrudes iria ser embaixadora e pregoeira. De outra vez, no Oficio de Matinas, Gertrudes estava inteiramente atenta a Deus e a si mesma, quando durante o responso “Vi a cidade santa”, o Senhor lhe recordou uma palavra que frequentemente ela repetia ao próximo para reavivar a confiança em Deus. E lhe falou: “Para que saibas com mais certeza o quanto me agrada a confiança, quero mostrar-te a bondade com a qual recebo a alma que após ter caído, volta a mim, se arrepende de sua falta e se propõe, com o socorro da minha graça a evitar o pecado”. Dizendo estas palavras, o Filho do Rei supremo, revestido das insígnias de sua soberania, dirigiu-se para diante do trono de Deus Pai e cantou com uma voz suave e sonora este responso: ‘Vi a cidade santa, Jerusalem”. A essas palavras Gertrudes compreendeu a inefável consolação que o Coração do Senhor experimenta quando alguém se propõe a evitar as faltas e imperfeições seja porque se lembra dos benefícios com os quais Deus o envolve, seja porque reconheceu ter se afastado dele por falta de vigilância sobre suas afeiçoes, palavras ou o emprego de deu tempo. Cada vez que a alma experimenta esse arrependimento, o Filho de Deus, com um novo entusiasmo de felicidade e alegria, canta a Deus Pai as palavras deste responso ou outras semelhantes. (Arauto IV, 58) Tal reconhecimento da própria indigência (fraqueza e força da Graça) faz com que a Santa vença o medo do demônio, que marcava os homens de sua época. As calamidades eram vistas como castigos de Deus pelo pecado dos homens. Mas Deus não nos abandona à tentação – afirma a Santa. – Se Ele permite a tentação é para nos fazer progredir no caminho da virtude. Se unimos nossa vontade à de Deus, Ele combate por nós e a vitória é certa. Vencer as paixões e dominar os sentidos é nosso combate espiritual, levado a termo pela Graça. Nossa união a Cristo nos capacita à vitória. O amor que nos dedica faz com que Ele não olhe nossos defeitos, mas Ele mesmo supra nossa negligencia (fruto de nossa indigência e limitação) com sua infinita perfeição. Ex.1: Demônio critica negligencia da Santa na tecelagem.

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A consciência de sua consagração a Deus dava um valor salvifico a toda sua vida. Já que se entregara a Cristo, tudo nela era ação dele. “Um dia em que ela se esforçava em pronunciar com toda atenção cada palavra e cada nota do Oficio Divino, o que a debilidade humana muitas vezes impedia, disse a si mesma com tristeza: “Que proveito pode tirar de um esforço tão grande quem se encontra em tamanha inconstância?” Então, o Senhor, não suportando ver sua ttristeza,,mostrou-lhe com suas próprias mãos, seu Coração divino, semelhante a uma lâmpada ardente, e lhe disse: “Eis aqui o meu Coração, dulcíssimo instrumento da Trindade eternamente adorável, que exponho aos olhos da tua alma, para que lhe rogues com confiança, que ele supra por ti o que não podes completar sozinha. Deste modo, tudo aparecera sumamente perfeito aos meus olhos. Por que assim como um servo fiel está sempre disposto a executar a vontade do seu senhor (Lc 12, 37), assim também meu Coração, de hoje em diante, estará sempre junto de ti, para todo momento suprir por ti as tuas negligencias”.(...) “Se tivesses uma voz sonora e bem modulada, e um grande prazer em cantar, e te encontrasses junto de uma pessoa que cantasse mal, com voz rouca e desafinada, e que, após muitos esforços, conseguisse emitir apenas alguns sons, certamente ficarias indignada por ela não confiar à tua competência e facilidade, o canto que ela encontra tanta dificuldade em executar. Assim também, com mais forte razão, o meu divino Coração, conhecedor da fragilidade e instabilidade humanas, espera com um insaciável desejo que tu – se não com palavras, pelo menos com algum sinal – O encarregues de suprir por ti e aperfeiçoar o que sozinha não podes levar a termo.” Santa Gertrudes se entrega e se abandona toda ao Senhor, que se faz possuidora do que é Dele. E Ele lhe supre tudo o que lhe falta. É a deificação da humanidade, efeito principal da união com Cristo. Santo Atanásio já afirmava: “Deus se fez homem para que o homem se tornasse Deus”. Ora, não se pode atingir a Divindade e a união com ela, sem que busque a humanidade de Cristo.

2. Mística centrada em Jesus Cristo, enquanto humanidade assumida por Deus.

É na humanidade de Cristo que todo homem, é divinizado. Em Cristo, a humanidade, assumida por Deus, se faz portadora do Espírito, para comunicá-lo a cada homem. É o Espirito de Filiação, que torna, cada homem, “filho de Deus”, no Filho.

Humanidade é que é assumida

- Cristo não tem pessoa humana que o diferencie, na humanidade, das outras pessoas humanas. (É só pessoa divina)

- Assim, toda humanidade é assumida nele, que pode dizer:

“...era eu”.

“...porque me persegues?”

Em Cristo, Pessoa Divina = Filho, na humanidade, Deus e homem tem um ponto comum de encontro, e Deus , enquanto sujeito de ação (pessoa), age humanamente, age na humanidade.

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Assim, eleva à dignidade divina todos os atos naturalmente humanos (menos o pecado, como diz Hb).

Toda a natureza humana, criada, é boa e santa em si mesma. O pecado, que lhe é contrario, a perturbou. É isto que Deus, humanizando-se, vem destruir. Deus assume a humanidade para destruir, na humanidade, o pecado e a morte, aquilo que lhe era contrario.

Assim como um antidoto é inserido no corpo para destruir a doença, o inimigo que nela está, Deus = Vida e Santidade, se fez antidoto, penetrou a humanidade para nela , com ela e por ela, destruir o que lhe era impróprio (Morte e Pecado).

É este mistério, assumido e vivido pessoalmente, que forma o místico, e que foi descoberto e vivido por Santa Gertrudes.

É através de Jesus que a “divina ternura” se manifesta, inteiramente gratuita, do abissal e superabundante, ilimitado. Deus não limita a ternura que brota de seu ser, como um rio que flui sem cessar.

Santa Gertrudes: “que mérito Vos darei quando Vos dignares vir a mim com tanta generosidade?”

Jesus: “...venha a mim inteiramente vazia e disposta a receber, pois tudo que em ti puder agradar-me, será puro dom de minha infinita bondade.”

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Ora, o amor infinito de Deus pelo homem O leva a querer para ele o Bem supremo. E, como Deus é, em Si mesmo, este Bem, Ele se doa todo ao homem. E é Jesus esse dom total.

A humanidade de Cristo é a minha humanidade. Ele assume a humanidade, marcada e condenada à morte pelo pecado, e ele lhe dá a salvação. Aquilo que é humanamente impossível, Deus torna possível em Jesus Cristo.

É mais fácil o imortal tornar-se ressuscitado, vivo, que o Imortal morrer”

São João Crisóstomo nos diz: ”A cruz foi pública, e a Ressurreição não. Porque é a Cruz que é a manifestação da glória.”

Na Cruz, o Amor se mostra total. Ali, o impossível acontece: O Imortal morre! Na Ressurreição, vemos um milagre enorme, mas consequente: o mortal revive pela presença do Imortal, mas é a Cruz quem manifesta o impossível de Deus realizado na humanidade.

Para Santa Gertrudes, viver este mistério da vitória de Deus em nossa humanidade, é sua experiência mística, que se expressa na Consagração religiosa.

Ex.1 de novo, negligencia na tecelagem

Deus é amor (1 Jo 4) e assume a humanidade para revelar, nela, a si próprio, que é Amor, e a humanidade por Ele querida e amada, é capacitada a amar. Em Cristo, Deus transforma a humanidade de objeto de seu amor, em sujeito de seu próprio amor.

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Jesus é um amante com coração humano.

Não existe espaço mais propício para esta vivencia que a comunidade e isto vive Santa Gertrudes inteiramente. Os momentos comunitários, a fraternidade, a preocupação com os problemas dos outros (que inspiravam sua oração), a solicitude pelas necessidades das irmãs, da superiora, das autoridades civis, tudo isto lhe dava a certeza de estar vivendo o amor de Cristo, a Ele servindo e a Ele se unindo no serviço aos irmãos.

Séculos mais tarde, vivendo a mesma experiência na comunidade religiosa, assim rezara a Beata Elisabete da Trindade: ”Senhor, seja minha humanidade uma extensão da sua para amar os homens.”

Nada há de divino em Jesus que não passe pelo humano e se expresse nele. Viver a humanidade em seu grau maior (=santidade) e a ela servir nos irmãos, é viver Cristo e servir a Ele, vivendo dele. Eis o caminho da conversão, da santificação. Assim afirma a Santa:

“Fora de Jesus, não tenho consolo algum. Só Ele pode saciar a sede de minha alma. Ó Jesus, único amado de meu coração, doce amante, amado, amado sobre quanto alguma vez foi amado, por Ti, ó dia primaveril, cheio de vida e de flores, suspira, e desfalece o amoroso desejo de meu coração.”

Para Santa Gertrudes, a vida espiritual era interiorizar o encontro com Cristo na humanidade assumida, na própria humanidade. Não buscar fora, mas mergulhar em si mesma.

Ora, tal descoberta e processo de interiorização requer ruptura. Santa Gertrudes compreendeu que vivia longe de Deus, em estudos liberais, descuidando do espírito, na busca de prazer intelectual. Renunciou ao estudo da literatura para buscar Deus nele mesmo.

É assim que encontra Jesus presente em sua humanidade, o Mestre que lhe ensina, que a instrue na santidade, na vida espiritual. Ela passa de visões e revelações a inspirações interiores, sugestões, estímulos, ensinamentos da graça. O maior de todos estes ensinamentos – e que ela custou a aprender – foi crer e confiar na divina pietas, ternura de Deus, da qual ela se tornaria embaixadora e pregoeira.

Ex.2 – sobre Judas

É em nossa humanidade, por causa de sua Encarnação, que Jesus quer revelar sua misericórdia: “...quero te mostrar a bondade com a qual recebo a alma que, após ter caído, volta a mim, se arrepende de seu pecado, e se propõe, com o socorro de minha graça, a evitar o pecado” (Arautos IV, 58)

Para a Santa, é por Jesus Cristo que a “divina ternura” se manifesta inteiramente gratuita, um dom abissal, superabundante, sem limites. Deus não pode dominar a ternura que transborda de seu ser; como um liquido, ela flui sem cessar. Como Deus não contém sua ternura, espera encontrar no homem acolhida.

Comparando Marta e Maria, Jesus afirma que por acolher dEle mais que querer dar-lhe, Maria escolheu a melhor parte. Agrada mais a Deus o que dEle recebemos do que o que por Ele e para Ele fazemos.

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É nosso reconhecimento de indigência, de dependência para com Ele, de necessitados que somos, cortando nossa autossuficiência de querer dar. É mudar a fonte da ação, de mim para Deus. Ele é a fonte de todo amor, e nós dele dependemos em tudo. Portanto, à pergunta da Santa: “Que mérito vos darei quando vos dignardes vir a mim, com tanta generosidade”?

Jesus responde: ”Só te peço que venhas a mim inteiramente vazia, disposta a receber, pois tudo que em ti puder me agradar, será puro dom de minha infinita bondade”. (Arautos IV, 26)

_______

Nosso coração foi criado por Deus como um vaso a ser preenchido por Ele mesmo, por seu amor. Esta é a experiência mística de vários santos

a) Teresa Benedita da Cruz: “Senhor, esvazia-me de mim e enche-me de ti”.! b) São Vicente de Paulo: “Deus não tolera o vazio. Quando nos esvaziamos de nós, Ele nos enche

de Si”. c) Santa Terezinha: “Quando me esqueci de mim, fui feliz”. d) Santo Antônio: “Sejas Tu a presença em minha solidão”. e) Beata Teresa de Calcutá: “Deus, preenche nossos vazios causados por amor a Ti”.

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Mas o esvaziar-se corresponde a uma atitude de confiança. A confiança é a condição essencial para receber a ternura divina.

“Ela atribuía à confiança qualquer graça recebida, certa de que nada merecia.

- Jesus lhe confiou: “Se demorei a atender o pedido que outra me fizera, foi porque não encontrei confiança em minha bondade, ao contrario de ti cuja forte confiança sempre se apoia em meu amor, razão pela qual jamais rejeitarei seu desejo”. (Arauto I, 10, 3.5)

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Confiar é querer o que Deus quer. Buscar Deus por Ele mesmo, e sua vontade de salvação universal. (“Deus quer que todos se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade”. – 1Tm). Nossa oração é poderosa quando buscamos a vontade de Deus e a ela nos confiamos.

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A Vida Mística não anulou sua frágil humanidade, mas a uniu a Cristo

Suas fadigas na salmodia, distrações, cansaços, enfermidades, não a impediam de ir ao Senhor. – “...ir escutar as horas canônicas, desejando que seu corpo trabalhasse pelo Senhor”, mesmo quando impedida de cantar.

Santo Agostinho, na Carta a Proba, nos afirma que nossa oração é nosso desejo e, quando o desejo é constante, constante é a oração. Mesmo que a contingencia humana (distrações, fraquezas, doenças, cansaços) nos perturbe na oração, nosso desejo de Deus garante a eficácia da nossa oração.

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Santa Gertrudes suplicava: “Fazei que vosso amor una meu coração ao vosso, de sorte que esta união seja indissolúvel, Uni-me a Vos com tão ardente amor que meu desejo de estar convosco tenha sede de morrer”. (Arauto I, 9, 3)

A morte, para a Santa, era o acesso à felicidade eterna, a consumação do matrimonio místico.

É a mesma experiência de Santa Teresa: “Enfim, esposo meu, é a hora de nos vermos face a face”. Santa Terezinha na 1ª hemoptise: É o esposo que está chegando”.

O desejo da união definitiva com deus, consumado pela morte, era o conteúdo de sua oração: “Senhor, concedei-me desejar-vos de todo coração, com total anseio e alma sedenta.”

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Sua espiritualidade é fortemente feminina

Ela faz uso do Cântico dos Cânticos de um jeito diferente de São Bernardo, São João da Cruz, ou Hugo de São Vitor.

A Santa assume imagens bíblicas femininas para encarnar sua espiritualidade. Podemos perceber uma rejeição da imagem patriarcal de Deus.

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A Santa viveu a liberdade plena, com uma vontade firme e decidida de nada ser obstáculo ao seu progresso na união mística.

Liberdade que se fundamenta na antropologia segundo a doutrina cristã. Se o homem é um ser dotado de Inteligência e Vontade, a liberdade consiste em ter estas duas faculdades formadas para o fim ultimo.

Não somos livres de, mas livres para.

A liberdade tem fim, que se confunde com sua origem, Deus.

Assim:

a) Inteligência é a faculdade que visa conhecer e conhecer as coisas em sua verdade absoluta. Ora, a Verdade independe das condições individuais de cada inteligência. A Verdade é absoluta por ela mesma. - exemplificar – Livre intelectualmente, não é ter conceitos próprios e definitivos, mas é acomodar-se à Verdade por ela mesma. A Verdade não é subjetiva. Não somos nós que temos a Verdade, mas é a Verdade que nos tem, pois a Verdade é uma pessoa, Deus. (Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida).

b) Vontade é livre quando iluminada pela Inteligência se decide pelo fim ultimo. E isto é viver segundo a própria natureza, pois conhecer Deus é conhecer-se. - exemplificar -

Nossa natureza humana foi criada boa e é, por si mesma santa. O pecado lhe é contrario.

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Não perdendo de vista o fim ultimo – Deus - a Vontade vive sua natureza santa, assumindo sua decisão por Ele. Portanto, a Vontade é tão mais livre quanto mais fiel. A fidelidade é a expressão da Vontade livre que não se deixa condicionar por novas situações ou condicionamentos que nos possam desviar do fim ultimo (É a fidelidade inerente ao Matrimonio, às consagrações sacerdotal e religiosa).

_______

Santa Gertrudes, pela vida mística, tem sua inteligência toda em Deus, e direciona para Ele toda a sua Vontade, sem se distrair ou desviar dele.

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Sua vida não é só oração, mas é ela mesma, oração.

Como o mistério da Encarnação é Deus que se deixa encontrar pelo homem na sua própria humanidade, é na própria humanidade, naquilo que nela é referencia a Deus que devemos procura-lo.

Assim, é na sua experiência concreta de vida, de alguem que cresceu e viveu num mosteiro, envolvida pela liturgia e pela meditação dos textos sagrados e patrísticos, que ela vai fazer sua experiência mística.

Aquilo que ela acolhe como revelação mística, vem de textos litúrgicos de hinos e responsórios, de textos patrísticos, de salmos e outros livros bíblicos. Estes trechos cercavam a sua vida no Mosteiro e como eram eles que a levavam a oração, à comunhão com Deus, era por eles que lhe vinham as revelações. Eles eram como a linguagem comum, entre ela e Deus, fundamentos desta comunicação. Assim:

1º) A Sagrada Escritura

A época em que viveu Santa Gertrudes é marcada pela forte devoção às relíquias. Venera-las era crescer na espiritualidade, e possuir uma delas era estar em comunhão intima com Deus, mormente se elas eram diretamente ligadas ao Mistério de Cristo.

Assim Santa Gertrudes viu-se ansiosa por possuir um pedacinho mesmo pequenino da Cruz do Senhor. Diante de tal desejo, assim lhe falou seu Mestre interior:

“Se queres ter relíquias que façam de seu possuidor um amigo do meu Coração, lê o relato da Paixão, e considere com cuidado as palavras que pronunciei com mais amor. Escreve-as, conserva-as como relíquias, medita-as sem cessar, e esteja certa de que, desse modo, merecerás minhas graças mais facilmente que por meio de qualquer outra relíquia... Acredita que as relíquias mais preciosas que se possam possuir na terra são as palavras que expressam amais terna afeição do meu coração.” (Arauto IV, 2)

Com base nesta instrução que recebera de seu Mestre, Santa Gertrudes amadurece seu amor à Escritura. Mas isso sem eliminar sua originalidade devocional. Assim ela se expressa em uma oração que encontramos no Exercício Quinto:

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“Como estás perto daqueles que Vos buscam, Ó Deus Amor! Como sois doce e suave para aqueles que Vos encontram! Ah! Se vos dignásseis abrir diante de mim, neste momento, vosso alfabeto admirável, esse tivesse a felicidade de receber de Vós uma lição e aí ler! Ensinai-me, pois, por experiência, em que consiste o glorioso e soberano Ω do vosso amor tão sublime. Não me deixeis ignorar o β da vossa real sabedoria, esta fecunda letra que significa a vida que vos dais a todos os seres. Mostrai-me, com vosso divino dedo, que é o Espírito Santo, todas e cada uma das letras de vosso amor, a fim de que, purificados pela verdade, os olhos do meu coração, penetre nas vossas delicias mais escondidas, sonde, percorra, aprenda, saiba e reconheça, tanto quanto possível, nesta vida, os caracteres deste alfabeto celeste.

Ensinai-me, de acordo com o Espírito Santo, o Ƭ da suprema perfeição, e conduzi-me, enfim, até o Ω da completa consumação. Ensinai-me, já agora, tão perfeitamente vossa Escritura toda de caridade e de ternura, que em mim não tenha um só I que não esteja preenchido por vosso amor.”

Notar:

a) Sua experiência de estudos seculares e familiaridade com o alfabeto grego b) Vivência com textos litúrgicos: Dedo de Deus, como figura do Espírito Santo no “Veni Creator.” c) Formação Monástica Beneditina, pela Santa Regra: olhos do coração”, como São Bento no

Prólogo convida a inclinar o “ouvido do coração”. d) Sua feminilidade: ternura.

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A santa ainda se usava da Escritura como recurso para ajudar aqueles que a ela recorriam, evangelizando, pois via nos ensinamentos da Escritura, recursos uteis as inteligências mais fracas. Chegou mesmo a traduzir os textos do latim em um estilo muito simples para que pudessem ser aproveitados pelos que os lessem.

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Acolhendo a oferta do Senhor como relíquia (sua Paixão a meditar), desenvolveu sua piedade pessoal sobre a devoção às Chagas do senhor, e seus exercícios espirituais, marcados pela sequencia das horas litúrgicas, são assinalados pela meditação da Paixão.

Isto caracteriza a grande originalidade da Santa, que consiste em realçar o vinculo existente entre a Palavra de Deus e a liturgia. Ela tinha dois modos de penetrar em Deus:

a) Êxtase – experiência mística de penetrar espiritualmente no Mistério de Deus, coisa que nos é reservada para o céu. Este contato com Deus pouco era falado aos outros, porque lhes era de pouca utilidade.

b) Sagrada Escritura – encontrava grande saber e gosto diante do texto sagrado, que a levava a se posicionar como diante de um amigo, em colóquio agradável. A Palavra de Deus se tornava a resposta clara para todos os que a procuravam. 2º) A liturgia

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Os textos que a Santa nos deixou são marcados pelos hinos e responsórios da liturgia, pelos salmos e outros textos usados nas celebrações no mosteiro. Podemos dizer que ela tinha uma visão litúrgica do mundo, era esta visão que realizava a unidade de toda a sua vida espiritual. A liturgia é o nervo orientador de sua vida espiritual. Eucaristia, Oficio Divino, festas litúrgicas, marcavam a orientação de sua vida espiritual. É em torno da liturgia que se desenvolve sua espiritualidade. Tudo o mais gira em torno da liturgia enquanto preparação, prolongamento ou consequência dela. A experiência mística da Santa tem, como fundamento objetivo, a liturgia da Igreja, que a afasta da subjetividade mal controlada. Ela se alimenta da ação litúrgica, acolhendo seu mistério, interiorizando-o, assimilando as verdades da fé, formulas que as conduzem e lhe dão segurança em seu caminho espiritual. Gertrudes vive o que canta. Ela vive a objetividade da Liturgia (Mistério Pascal de Cristo). Deus, presente na liturgia modela o coração de Santa Gertrudes. Notemos, em um texto narrativo de uma revelação do Senhor numa noite de Natal. “Nessa noite sacratíssima na qual num doce orvalho de divindade, os céus derramaram mel sobre a terra, minha alma... se esforçava pela meditação em assistir e prestar ajuda a esse parto mais que celestial, em que, assim como a estrela emite um raio, a Virgem deu à luz um Filho, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Em rápida e momentânea visão percebi que era oferecido a minha alma – que o acolheu no lugar correspondente ao coração – um frágil Menino recém-nascido e que sem duvida era, embora sem o parecer, o dom soberanamente perfeito, dom por excelência (Tg 1, 17). Tendo-O consigo, minha alma, de repente, pareceu ficar da mesma cor do Menino, se é possível chamar “cor” algo que não pode ser comparado a nenhuma qualidade material. Então, minha alma entendeu o sentido inefável destas palavras cheias de doçura: Deus ser tudo em todos ( 1 Cor 15,28)...Por isso ela bebeu com avidez insaciável estas palavras do Senhor, que era, como uma taça de mel por Ele apresentada: “Assim como eu sou a figura da substancia de Deus Pai (Hb 1, 3), por natureza divina, também tu serás a figura de minha substancia pela sua natureza humana, recebendo em tua alma deificada os raios da minha divindade. Como o ar recece os raios de sol, para que, penetrada até a medula por sua ação, seja capaz de uma maior união comigo.” (Arautos II, 6,2) 3º) A piedade pessoal Todos crescemos com alguma piedade devocional que nos são apresentadas pela família, pela comunidade, e que enraizadas na cultura humana são expressões da busca de Deus. Elas são integradas à nossa personalidade e passam a constituir nossa estrutura espiritual de comunhão com Deus. Santa Gertrudes nunca abandonou as manifestações de sua devoção particular, mas sabe conciliá-las, sem dificuldade, com sua vida litúrgica. Ela se ajoelha para as orações pessoais, passa a 6ª feira na memoria da Paixão, quer ver pessoalmente, a hóstia consagrada, nunca abandona seu crucifixo, é devota das Cinco chagas, rezando cinco Pai nosso com jaculatória própria. Sua vida de piedade devocional e/ou litúrgica, não se limita a determinados momentos, embora os tenha bem definidos, mas se irradia por toda a sua vida. Sua vida é oração. Seu testemunho de vida monástica, onde mesmo o trabalho e as outras atividades comunitárias são envolvidos na oração. Assim, ela se faz mestra da oração, não por teoria, mas pela pratica. Ela ensina a rezar, rezando.

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Sua oração é união, pela Graça do Espirito Santo, à oração do Filho no Pai. Contemplação, conforme nos afirma o Beato Paulo VI, é atitude alerta à presença de Deus! Ora, sendo Deus quem sempre toma a iniciativa na vida espiritual, a contemplação, enquanto dom de Deus, não é algo extraordinário; a vida mística não é um privilegio reservado a poucos, aos iniciados. Para Santa Gertrudes o “extraordinário” conduz ao “ordinário” da vida. A união com Deus se realiza por vários caminhos, enquanto dom da Graça; é conversão do desejo; é despertar o desejo da alma em busca de Deus: cresce o amor, une-se a Deus, celebra-se nos sacramentos, na contemplação das chagas de Cristo, na oração, na correspondência à Graça, no exercício das virtudes, na vigilância da vida, na guarda do coração. – A deificação do homem é o efeito principal da união com Cristo. Para Santa Gertrudes, a divinização do homem se realiza agora, em todo cristão que recebe o Filho de Deus encarnado. Graças à sua união com Cristo, Santa Gertrudes recebe o sinete da Trindade. É através de Jesus Cristo que a “divina ternura” se manifesta inteiramente gratuita, sem limites... Vejamos uma experiência da própria Santa: “Em certa sexta-feira Santa, à hora de Terça, Gertrudes sentiu-se abrasada de amor, recordando que a essa hora, o Senhor havia sido coroado de espinhos, cruelmente flagelado e que suas costas cansadas e ensanguentadas haviam recebido o fardo de uma pesada Cruz. Disse-lhe então: “Ó meu Bem Amado, para responder ao amor que vos me testemunhastes sofrendo esta Paixão à qual fostes injustamente condenado, ofereço-vos meu coração e, desde agora até à hora da minha morte, desejo suportar a amargura e a dor de vosso dulcíssimo Coração e de vosso corpo imaculado; e se por fragilidade humana, minha memoria perder um instante a memoria de vossas dores, concedei-me experimentar no coração um sofrimento sensível que corresponda dignamente à amargura de vossa Paixão”. O Senhor respondeu: “ Tua boa vontade e fidelidade trazem-me consolo. Mas, para que eu possa encontrar plenamente minhas delicias em teu coração, dá-me a liberdade de realizar e guardar nele tudo o que eu quiser, sem determinar que aí eu coloque doçura ou amargura”.” (Arautos IV, 26) 4º) Nossa Senhora A piedade mariana de Santa Gertrudes, sua doutrina sobre Nossa Senhora, é discreta, mas importante. Nossa Santa a vê como a humanidade toda investida das virtudes de Cristo. Ela não se detém em nenhuma devoção sentimental, mas interpreta a figura de Nossa Senhora teologicamente. Nossa Senhora é aquela que dá aos homens, o Filho de Deus, sendo a mediadora do Mediador. Nossa Senhora nos traz Jesus e nos leva a Ele pela sua fruição de Mãe e de intercessora Santa Gertrudes se assume sob a Maternidade de Nossa Senhora, e a contempla como modelo a imitar. Para ela, a vida monástica é imitação de Nossa Senhora no serviço a Jesus, pois é esta devoção (o serviço a Jesus e à Igreja, seu corpo) que é o elemento essencial da vida cristã. (Ex: Nossa Senhora aos pés da Cruz- discípulo e descendência da Mulher). Nossa Senhora é parte integrante do Mistério de Cristo. “Então, ela saudou piedosamente a Rainha do Céu com o versículo: Paraiso de Delicias (paradisus voluptatis...)etc., exaltando-a por haver sido a agradibilíssima morada que a inescrutável sabedoria de Deus, que conhece todas as criaturas e vive nas alegrias das delicias do Pai, escolhera para nela habitar. E pediu que lhe dessem um coração adornado de tantas virtudes que a Deus agradasse também fazer nela sua morada. A bem-aventurada Virgem

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parece, então, inclinar-se para ela, como se quisesse plantar em seu coração orante as diversas flores da virtudes... O que demonstra estar a Virgem sempre disposta a escutar as preces daqueles que a invocam”. (Arautos III, 19, 1). 5º) Eucaristia A vida sacramental é a base da vida litúrgica, e tem seu centro e sua fonte na Eucaristia. Esta, enquanto sacramental é presença real de Cristo; e enquanto sacrifício; é o ato por excelência da entrega oblativa ao Pai. Santo Tomás nos adverte: “Tanto vale Missa como sacrifício do Calvário. Lá Ele se oferecia, aqui, ele une a Si a sua Igreja.” Assim, Santa Gertrudes, vivendo a experiência da Misericórdia Divina, tem a Eucaristia como centro de sua vida espiritual e experiência da misericórdia. Para ela a comunhão eucarística é o auge da manifestação da ternura divina. O Senhor mesmo a instruiu sobre a Eucaristia. Que delicia encontrais em mim, que sou rebotalho de toda criatura, para compara-las as demonstrações do mutuo carinho entre o esposo e a esposa? Disse-lhe o Senhor: “Encontro essa delicias ao entregar-me a ti no sacramento do altar, nesta união que não existirá mais depois desta vida. Esta união tem para mim encantos infinitos, dos quais as mais ardentes demonstrações do amor humano não podem dar a menor ideia. Os caminho terrenos passam com o tempo, mas a doçura da união com que me entrego a ti no sacramento do altar, não pode debilitar jamais. Ao contrário, quanto mais se renova mais vigor e eficácia adquire.” (Arauto V,28, 2) Em sua época não era possível a comunhão frequente, mas era grande o fervor eucarístico devocional. A Santa reflete certo escrúpulo, medo de escândalo, de sacrilégio, de irreverencia. Percebemos na Santa vivencia de momentos de angustia por tudo isto. “Outro dia, após um longo sermão de um pregador sobre a justiça divina, ela, que prestara muita atenção, assustada, não se atrevia a aproximar-se dos divinos mistérios. Deus, com sua bondade a reconfortou com estas palavras: “Se com os olhos da fé te recusas a ver tantas demonstrações que te dei de minha bondade, vê, ao menos com os olhos do corpo, em que vaso pequenino eu me encerro para vir ao teu encontro. E esteja certa de que o rigor da minha justiça está inteiramente encerrado na mansidão de minha misericórdia, pois é esta que nesse sacramento quero manifestar de modo visível ao gênero humano”” (Arauto III, 18, 13) Santa Gertrudes, inspirada pelo Senhor, se converterá na grande defensora da comunhão frequente. Percebe-se em Gertrudes uma grande evolução nesse sentido. Inspirada pelo Senhor protestará contra os desvios da piedade eucarística e se converterá na grande defensora da comunhão frequente. Chegará o momento em que poderá dizer ao Senhor: ”Tua insondável munificência para com aquela que é o mais vil e desprezível dos teus instrumentos, dignou-se ainda acrescentar este adorno ao teu dom: por tua graça adquiri a certeza de que qualquer pessoa, desejosa de aproximar-se do teu sacramento, mas retida por uma consciência temerosa, se vier humildemente buscar ajuda junto a mim, a ultima das tuas servas, o teu amor magnânimo há de considera-la, devido ao seu ato de humildade, digna desse grande sacramento, que ela receberia então, efetivamente, como fruto de eternidade. Acrescentaste que aqueles que a tua justiça considerasse indignos não receberiam de ti a humildade de recorrer ao meu conselho.” (Arauto II, 20, 1)

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6º) Igreja Santa Gertrudes tem forte consciência eclesial. Para ela a Igreja é o Corpo de Cristo, da qual ela se assume como membro. Unir-se a Cristo é unir-se a sua Igreja, que é o Corpo do qual Ele é a cabeça. A este corpo, sua Igreja, Cristo concede autoridade, que é exercida por todos os membros pela mediação da oração, da correção fraterna, do exercício do perdão e da misericórdia, da comunhão dos santos que vai além da morte. Santa Gertrudes relata graças recebidas para ser exemplo para os outros membros da Igreja, exortando-os à vida mística. Em uma oitava de Páscoa, o Senhor soprou sobre ela e lhe deu também o Espírito Santo, dizendo: “Recebe o Espírito Santo, a quem perdoardes os pecados, serão perdoados”(Jo 20, 22). Ao que ela replicou: “Senhor, como posso realizar isso, pois o poder deligar e desligar só é concedido aos sacerdotes?” Respondeu o Senhor: “Quando conduzida por meu Espírito, julgares que alguém não é culpado, também eu o considerarei inocente, e ao que julgares culpado igualmente o será aos meus olhos, porque eu mesmo falarei por tua boca”.(Arauto IV, 32) Sua vida ascética era assumida em união com Cristo, pelo seu Corpo Místico. Quem quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga (Mt16, 24). Por estas palavras ela compreendeu que a cruz de cada um é a sua própria provação. Por exemplo: a cruz de alguns é a obrigação de agir de modo contrário ao seu desejo, sob o aguilhão da obediência; a cruz de outros é se verem impedidos de fazer o que gostariam, oprimidos pelo peso das enfermidades; e assim por diante. Portanto, cada um deve levar a sua cruz do melhor modo possível, aceitando de boa vontade sofrer as provações e procurando não desprezar nada que sirva ao louvor de Deus. (Arauto III,30,10) Por estas palavras: Onde está teu irmão Abel? (Gn 4, 9), comprendeu ela que o Senhor pede contas a cada religioso de toda falta cometida por seu irmão contra a observância regular, a qual teria podido evitar, de algum modo, se houvesse sido diligente em admoesta-lo ou em sugerir algo aos superiores. Por isso, a desculpa dada por alguns: “Não estou encarregado de corrigir os outros” ou “Eu sou pior do que ele”, vale tão pouco diante de Deus quanto a desculpa de Caim: Acaso sou o guarda de meu irmão? (Gn 9, 9). Portanto, cada um está obrigado a afastar seu irmão do mal e ganha-lo para o bem. E sempre que negligencia este dever de consciência, peca contra Deus. E de nada lhe serve o pretexto de isso não lhe foi encomendado, porque, verdadeiramente, Deus o encarregou disso. Além do mais, sua própria consciência lho manifesta. Porém, se apesar de tudo, ele continua negligenciando-o, Deus pedirá contas à sua alma, e até de maneira mais rigorosa do que ao superior, pois talvez esta não estivesse presente ou, mesmo estando, não notou a falta. E daí a ameaça da Escritura: Infeliz daquele que comete o pecado! Duas vezes infeliz aquele que aprova! (Rm1, 32). Assim, portanto, quem dissimula a falta está aprovando-a, logo, é culpado porque se a houvesse manifestado, teria dado gloria a Deus.(Arauto III, 30, 18) 7º) Virtudes Não somos nós, pelas nossas virtudes, que nos aproximamos de Deus, mas é Ele que de nós se aproxima pelo seu advento.

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Não são nossas obras que nos levam a Deus, mas elas são expressão de nossa união com Ele. Nossas boas obras são consequência de nossa acolhida do Senhor. Assim, a união de nossa Santa com nosso Senhor a levou a ter obras de santidade, a viver santamente, e eram mais ações dele nela, do que obras próprias dela mesma. Vejamos alguns aspectos:

7.1. Obediência e confiança

O amor é tão importante para ela que atribui a redenção não tanto aos sofrimentos e à morte de Cristo como ao amor com que os suportou: “As chagas de Cristo são redentoras porque foram suportadas e oferecidas por amor... O valor e o poder da cruz de Cristo originam-se do ato de amor divino, da perfeição do amor que representa; por isso a cruz é redentora”.

Porém o amor de Cristo adquiriu em sua paixão, como em toda a sua vida mortal, o mais alto grau de perfeição em sua total obediência ao Pai. A obediência, considerada com uma equação entre a vontade de Deus e a vontade do homem é uma das virtudes preferida de Gertrudes.

Ela compreendeu que assim como Abraão, no momento em que estendia seu braço para obedecer a ordem do Senhor, mereceu ser chamado por um anjo, assim também o justo que por Deus se empenha na realização de uma obra difícil, pondo nisto toda a sua vontade, nesse mesmo instante, por um suave favor da graça divina, merece ser sustentado pelo testemunho de sua consciência. E é assim que a generosíssima liberalidade de Deus antecipa a recompensa eterna, quando cada um receberá sua recompensa conforme o seu trabalho (1 Cor 3,8). (Arauto III, 30, 21)

Em outra passagem realça o mérito da renuncia e sua eficácia para progredir no amor de Deus.

A doutrina espiritual de Gertrude é luminosa, otimista, repleta de esperança, atraente. O relato de sua “conversão” demonstra quanto Gertrudes experimentou o amor de Cristo que gratuitamente lhe oferece sua amizade. Tudo é pura graça, puro dom de Deus. Impulsionada pela graça, Gertrudes fala com Cristo como a um amigo, comporta-se como uma rainha em relação ao rei, uma noiva com seu noivo. Esforça-se para expressar o inexprimível: a metamorfose de uma pessoa “mundana” em uma pessoa “deificada”. O Deus que Gertrudes encontrou é infinitamente bom, rico em misericórdia, penetrado em sua própria essência pelo que ela denomina “divina pietas”

A doutrina gertrudiana da graça alcança na “suplência” o seu ápice. “O amor torna amável o amado”. Para Gertrudes, o amor que Cristo nos dedica faz com ele não olhe nossos defeitos. Mais ainda: ele os supre. Gertrudes sente vivamente a necessidade do amor infinito do Senhor para anular a dívida do pecado. Todavia a perfeição infinita de Cristo suprirá a negligencia, fruto da fragilidade e limitação humanas.

“Um dia em que ela se esforçava em pronunciar com toda atenção cada palavra e cada nota do Oficio Divino, o que a debilidade humana muitas vezes impedia, disse a si mesma com tristeza: “Que proveito pode tirar de um esforço tão grande quem se encontra em tamanha inconstância?” Então, o Senhor, não suportando ver sua ttristeza,,mostrou-lhe com suas próprias mãos, seu Coração divino, semelhante a uma lâmpada ardente, e lhe disse: “Eis aqui o meu Coração, dulcíssimo instrumento da Trindade eternamente adorável, que exponho aos

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olhos da tua alma, para que lhe rogues com confiança, que ele supra por ti o que não podes completar sozinha. Deste modo, tudo aparecera sumamente perfeito aos meus olhos. Por que assim como um servo fiel está sempre disposto a executar a vontade do seu senhor (Lc 12, 37), assim também meu Coração, de hoje em diante, estará sempre junto de ti, para todo momento suprir por ti as tuas negligencias”.(...) “Se tivesses uma voz sonora e bem modulada, e um grande prazer em cantar, e te encontrasses junto de uma pessoa que cantasse mal, com voz rouca e desafinada, e que, após muitos esforços, conseguisse emitir apenas alguns sons, certamente ficarias indignada por ela não confiar à tua competência e facilidade, o canto que ela encontra tanta dificuldade em executar. Assim também, com mais forte razão, o meu divino Coração, conhecedor da fragilidade e instabilidade humanas, espera com um insaciável desejo que tu – se não com palavras, pelo menos com algum sinal – O encarregues de suprir por ti e aperfeiçoar o que sozinha não podes levar a termo.” (Arautos III, 25, 1,2)

7.2. Paciência

Gertrudes sofria com frequência. Sua falta de saúde não lhe permitia suportar “as santas fadigas da salmodia” – as monjas salmodiavam de pé – e dos cantos de louvor”. Ela se humilhava e orava pelas que cantavam no coro. Em um domingo da Sexagésima, encontrando-se prostrada na cama pela enfermidade, ouviu cantar em Matinas o responso: “Bendisse portanto...” – “Ah, Senhor, exclama, quantas vezes cantei com tal fervor que me via no alto, de pé, servindo-me de teu Coração como de um instrumento de infinita suavidade, para fazer ressoar cada palavra e cada nota!” E Cristo reponde: “Quero oferecer-te agora, em troca, um canto suave”. “A enfermidade é a solidão em que o Senhor fala ao coração de sua amada, não ao seu ouvido” e lhe permite fruir ininterruptamente das delicias da contemplação.

Entretanto, quando sua pouca saúde não lhe concedia cantar no coro, “ia escutar as Horas canônicas, desejando que pelo ,menos seu corpo trabalhasse pelo Senhor”.

Impedida de cantar em um dia de festa, devido a uma dor de cabeça, ela perguntou ao Senhor por que permitia suceder-lhe isto, com frequência, em dias festivos. E recebeu a seguinte resposta: “Por que temer que, arrebatada pelo encanto da melodia, te tornes menos apta para receber a minha graça”. Mas ela disse: “Senhor, tua graça poderia muito bem guardar-me deste perigo.” E o Senhor:” É mais proveitoso para o homem ser preservado da ocasião perigosa pelo incomodo da enfermidade, pois assim duplica-se o seu mérito: paciência e humildade”. (Arauto III, 30, 26)

As alusões às suas enfermidades são muito frequentes na obra gertrudiana: “Estando de cama pela sétima vez”; na festa da Purificação, “estando acamada após uma grave enfermidade”; em meados da Quaresma seguinte, sofre de novo “uma grave enfermidade”; em certa ocasião oferece a Cristo “todo o sofrimento de seu coração e de seu corpo” que suportou em suas “contínuas enfermidades”.

Enquanto oferecia ao Senhor, em uma breve oração, todo sofrimento, tanto físico quanto espiritual que pesava sobre ela, e toda alegria, tanto da alma quanto do corpo e da qual se via separada, o Senhor lhe apareceu com esta dupla oferta –sofrimento e alegria – semelhante a dois anéis com pedras preciosas que Ele trazia como adorno em ambas as mãos(...) o que a fez compreender que, assim como o anel é sinal de união, também a adversidade – física ou

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espiritual – é o sinal mais autentico da eleição divina e dos esponsais da alma com Deus. (Arauto III, 2)

De tudo isso se depreende que após sua “conversão”, Gertrudes passou em seu leito de enfermaria grande parte de sua vida. Em fevereiro de 1288 seu estado de saúde se agrava e não mais se restabelecerá.

7.3. Liberdade de coração

Gertrudes era extremamente dotada: boa, afável, simpática, comunicativa; possuía um temperamento apaixonado, um pouco inclinado à sensualidade; de sensibilidade delicada, imaginação plástica com dotes de escritora e talento musical. Distinguia-se principalmente por sua inteligência, cultura e eloquência; seu discurso era tão persuasivo e encantador que a maioria dos que a escutavam afirmavam que o Espirito de Deus falava através dela, de tal forma tocava seus corações e transformava suas vontades”.

Suas virtudes foram inumeráveis, algumas brilharam com esplendor especial: obediência, continência, espirito de pobreza, prudência, fortaleza, temperança, misericórdia, constância, discrição, desprezo do mundo... profundo sentido de justiça, ardente zelo pela salvação e progresso espiritual das almas, absoluta confiança em Deus, discreta e ardente caridade.

A afetividade e compaixão de Gertrudes manifestavam-se das mais variadas formas. Através de seus sofrimentos – especialmente de suas enfermidades que além das dores físicas lhe causam solidão, impossibilidade de participar do Oficio Divino, enfraquecimento do pensamento e da intensidade da oração – participa do mistério da cruz, seguindo a Jesus, experimentando uma aflição semelhante à sua e mais profundamente sentindo o seu amor e dor.

“Não apenas em relação às pessoas, mas a toda criatura ela demonstrava um sentimento de tão viva compaixão que, quando via um pássaro ou qualquer outro animal sofrendo, com fome, sede ou frio, logo oferecia piedosamente a Deus, em louvor eterno, o sofrimento da criatura irracional, em vista a dignidade que todo ser possui soberanamente, com perfeição e nobreza, no Criador, e desejava que o Senhor, apiedando-se de sua criatura, se dignasse alivia-la de sua desgraça.(Arauto I, 8, 1)

A sensibilidade e compaixão de Gertrudes encontram talvez sua expressão mais emocionante em um texto referente à festa da Epifania, As palavras do Evangelho: e prostrando-se, o adoraram (Mt 2, 11), despertaram em Gertrudes um ardente desejo de, à semelhança dos Magos, prostrar=-se aos pés de Jesus para adorá-lo em nome de tudo o que existe no céu, na terra e nos abismos, Como não encontrasse oferenda alguma digna de Deus, percorre mentalmente o mundo inteiro em busca desse dom. Encontra coisas desprezíveis, rejeitadas como incapazes de contribuir para o louvor e a gloria do Salvador. Ela as toma com avidez para oferece-las Àquele a quem toda criatura deve servir..

“Colocou em seu coração todas as penas, dores, temores e ansiedades que as criaturas sofreram, não para a gloria de Deus, mas em consequência da fraqueza humana, e as ofereceu ao Senhor como mirra escolhida. Em segundo lugar, reuniu toda a falsa santidade, a devoção de fachada que outrora afetou os hipócritas, os fariseus, os hereges e todas as pessoas desse

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tipo, e as apresentou ao Senhor como sacrifício de um incenso de agradável odor. Para a terceira oferenda ela se esforçou em recolher a aflição material e ate mesmo o amor falso e impuro dispensado em vão por tantas criaturas e os apresentou a Deus como ouro preciosíssimo. Em virtude do ardente e amoroso desejo com que se esforçava para conduzir todas as coisa para a gloriado seu Bem Amado, essas miseráveis oferendas se tornaram ouro purificado no crisol e separado, pela fusão de todas as suas escorias. Ela os ofereceu ao Senhor após lhes ter comunicado esse maravilhoso valor. O Senhor encontrou suas delicias na variedade dessas oferendas de que ele considerava como presente de imenso valor. - Tomou-as sob a forma de pedras preciosas e as colocou no diadema real: Eis aqui as pedrarias que acabaste de me oferecer - disse – por causa de sua raridade, eu as aceito com alegria”. (Arauto IV, 5)

7.4. Humildade

A profunda humildade de Gertrudes requer especial atenção. Estava solidamente fundada na humildade, acreditava-se, como vimos anteriormente, inteiramente indigna dos dons de Deus, de tal modo que as graças extraordinárias recebidas seriam para os outros. O Senhor confiou acerta pessoa espiritual: “Quanto mais maravilhosos são os efeitos que nela realizo, tanto mais a consciência de sua própria fragilidade a mergulha no mais profundo abismo de humildade”. O Memorial, o Arauto e os Exercícios estão repletos de textos semelhantes. Porem é necessário destacar que quando Gertrudes insiste em confessar sua miséria, é perfeitamente sincera, profundamente humilde. Todavia como nos adverte Pierre Doyère, não se sente miserável frente a um ideal de perfeição que não consegue alcançar apesar de seus esforços. A miséria que realmente afaz gemer não se relaciona com sua falta de virtude ou de boa intenção; as raízes de sua humildade são incomparavelmente mais profundas. A miséria que lhe dói, e que tão amiúde confessa, é a de seu ser, é como uma reação vital ante a presença do Ser divino que se lhe manifesta.

Na santa vigília [de Pentecostes] pediu com fervor ao Senhor, durante o Ofício Divino, ser preparada para a vinda do Espírito Santo. O Senhor lhe disse com uma ternura infinita: “Recebereis a força do Espírito Santo” (At1, 8). Essas palavras lhe infundiram uma grande suavidade e ela passou a considerar humildemente sua profunda miséria. Percebeu, então, que o sentimento de sua indignidade cavava em si uma espécie de abismo; e à medida que se estimava mais vil, tornava-se cada vez mais profundo. Uma fonte puríssima jorrava do dulcíssimo Coração do Filho de Deus, derramando-se gota a gota nesse abismo de seu coração, para enchê-lo até à borda”. (Arauto IV, 38)

Os moralistas tendem a apresentar o ascetismo como um caminho que conduz da humildade ao êxtase. Em Gertrudes como em toda a alma verdadeiramente mística, a humildade autentica não é a raiz da contemplação, mas seus fruto.

Contudo, Gertrudes possuía também seus defeitos e excessos: ela os reconhecia e se angustiava com isso. No Memorial acusa-se de movimentos de cólera, de impaciência, inercia e negligencia, malicia e perversão, frieza de coração; de esbanjar os dons de Deus, de possuir um coração indomável... Sem duvida, exagera e muito, É evidente que não era má e perversa, nem dissipava os dons de Deus. Certamente, às vezes percebe-se alguma inclinação para a ira,

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a cólera, o ressentimento. De vezem quando suportava mal as observações que lhe eram feitas.

Próximo a festa de São Bartolomeu, uma tristeza desordenada e uma impaciemcia lançaram-na em tão espessas trevas, que lhe parecia ter perdido quase todo contentamento da presença divina. Porem, no sábado seguinte, teve a alegria de vê-las dissiparem, por intercessão da Virgem Mãe de Deus, durante o canto da antífona Stella Maris Maria ( Maria, Estrela do mar). No dia seguinte, domingo, regozijando-se pela bondade de Deus que a acariciava muito suavemente e recordando-se de sua recentes impaciências e de seus outros defeitos, começou a se detestar grandemente.(Arauto III, 4, 1)

Possuía um gênio muito vivo e um zelo intransigente. Certa vez pediu a Mectildes de Hackeborn que lhe obtivesse do Senhor as virtudes da mansidão e paciência pois acreditava ter delas uma necessidade especial. Em outra ocasião, Mectildes assim falou ao Senhor: “Se sua vida é tão admirável, porque às vezes ela julga com tanta severidade as faltas e negligencias dos outros?” O Senhor respondeu com bondade: “Como não suporta a menor mancha em sua alma, também não pode tolerar com indiferenças faltas do próximo”. Com frequência Gertrudes acorria aos pés do Senhor para alcançar o perdão de suas faltas, inevitáveis em toda a vida humana. A luz deslumbrante de Deus a levava a perceber demasiadamente seus próprios defeitos. Como uma pessoa a pedido de Gertrudes suplicasse a Deus conceder-lhe a graça de corrigir seus defeitos, recebeu do Senhor, a seguinte resposta:

No que esta minha escolhida vê em si como defeitos, há, antes, grande proveito para sua alma, pois a fragilidade humana mal preservaria do vento da vangloria a graça que opero nela, se não se ocultasse sob a aparência de defeitos. Assim como a terra bem adubada torna-se fértil, do conhecimento de seus defeitos ela colhe frutos de graças mais saborosos. (Arauto I, 3,7)

7.5. Zelo pelas almas

O zelo pela salvação das almas devorava Gertrudes. Em certo domingo Laetare (quarto domingo da Quaresma), Gertrudes falou ao Senhor: “Se apesar de minha indignidade, pudesse atrair para vós, ó meu Senhor, todos aqueles nos quais encontrais vossas delicias, iria com o maior gosto, descalça, pelo mundo inteiro desde esta hora até o dia do juízo, e tomaria em meus braços todos aqueles que não vos conhecem e cujo amor poderia vos satisfazer, para vos apresentá-los, ó doçura de minha alma...Se fosse possível, eu gostaria ainda de dividir meu coração em tantas partes quanto o numero de pessoas viventes a fim de dar a cada uma a boa vontade de vos servir conforme o supremo desejo do vosso divino Coração”.

Às monjas cujo comportamento era incoerente, Gertrudes exortava; e não cessava de rezar e fazer rezar por elas até que obtivesse alguma emenda em sua conduta. Sempre que se lhe oferecia oportunidade para fazer alguma advertência, afastando todo respeito humano e temor, sua língua se expressava como uma pena tinta com o sangue do coração. Certa vez, uma monja que julgava excessivo seu zelo pela gloria de Deus e salvação das almas, rogou ao Senhor que moderasse uma paixão tão abrasadora. O Senhor como de costume defendeu Gertrudes: ”Quando eu vivia na terra também experimentava sentimentos e afeições muito ardentes. Tinha ódio profundo a toda injustiça. Pois bem, esta minha eleita nisso assemelha-se a mim”. Mas Senhor, retorquiu a monja, falaste duramente apenas aos pecadores, enquanto

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ela fere, às vezes, mesmo as pessoas com reputação de virtuosas”. E o Senhor respondeu: ”Quando nasci os judeus pareciam os mais santos dos homens, no entanto, foram os primeiros que se escandalizaram de mim”.

Plenamente feminina, cheia de encanto, audaz, extravagante, Gertrudes se expressa como mulher. Rejeita a representação tradicional de Deus como imagem do tipo patriarcal. Para se referir à união com Deus utiliza a linguagem do Cântico dos Cânticos mas não do mesmo modo que São Bernardo de Claraval ou Hugo de São Vitor. Gertrudes assume as imagens bíblicas dando-lhes uma tonalidade rica, afetiva, intima, deixando transparecer sua feminilidade.

“Como lhe acontecesse, às vezes, não receber, durante certo tempo, a visita do Senhor, sem se entristecer com isso, ela perguntou-lhe o motivo. Ele lhe respondeu: ”Às vezes, a demasiada proximidade atrapalha a visibilidade dos amigos, por exemplo, quando eles se unem num abraço ou num beijo: neste momento, eles são privados da alegria de se verem(...) como em uma esposa que conhece todos os segredos do esposo e, vivendo sempre junto dele, aprendeu a fazer em tudo a sua vontade”.

Gertrudes tem uma profunda convicção de ser esposa de Cristo; talvez sua expressão máxima e mais audaz encontre-se nas palavras que dirige ao Senhor: ”Alegria e jubilo a vós, pela puríssima carne de vossa humanidade, através da qual me purificastes tendo-vos feito os ossos de meus ossos e a carne de minha carne”. A consagração virginal não se reduz a um mero cerimonial; sentiu-se constituída esposa de Cristo e as transformações de sua vida mística a confirmaram cada vez mais nessa ideia fundamental. Cristo é seu Esposo enamorado e ardentemente amado. “Quanto a mim sou toda dele; minha alma e meu corpo estão em suas mãos, que faça de mim o que sua caridade quiser”. Por outro lado, Cristo lhe assegura continuamente que é seu divino Esposo. Quando certo dia, lamentava-se porque retida no leito estava impedida de assistir à missa, o Senhor lhe disse: ”Porquanto parece que estás me dirigindo uma repreensão, escuta, ó minha bem amada, vou cantar-te um epitalâmio, cheio de doçura e amor”.

A maior e mais constante preocupação de Gertrudes se resume em seu veemente desejo de corresponder ao amor de seu Esposo. Esta preocupação corta-lhe o coração pois sente que não ama suficiente, que não ama como quer amar: com um amor total, imenso, ardente, puro, irrepreensível... Quem senão o próprio Senhor pode conceder-lhe esta graça? Gertrudes suplica ao seu esposo: ”Fazei que vosso amor uma meu coração ao vosso, de sorte que sua união seja indissolúvel...Uni-me a vós com tão ardente amor, que em meu desejo de estar convosco tenha sede de morrer”. “Sede de morrer!” Este é o motivo verdadeiro e profundo de um anseio tantas vezes expressado. A morte era para Gertrudes a porta de acesso à felicidade eterna, a consumação do matrimonio místico.

Uma pessoa digna de crédito, desejando que o Senhor lhe confiasse alguma mensagem para esta sua eleita, ouviu a seguinte resposta:”Diga-lhe por mim: Bela e graciosa”. Sem compreender, tornou a perguntar duas ou tres vezes, recebendo sempre a mesma resposta. Então, bastante surpresa, assim falou: ”Explica-me, Deus pleno de amor, o sentido dessas palavras”. E o Senhor disse: “Diga-lhe que me comprazo na beleza harmoniosa de sua alma, pois é o esplendor insigne da minha pureza e da minha imutável divindade que ilumina sua alma com uma misteriosa harmonia. Além disso, comprazo-me na graça particular de suas

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virtudes, pois é a amenidade suave e alegre de minha humanidade deificada que floresce com imarcessivel vivacidade em todas as suas obras”.(Arauto I, 9, 3)

Cristo, perdidamente enamorado de sua amada, a compara a uma pomba sem fel, à brancura de um lírio, a uma rosa perfumada, uma flor primaveril, um som melodioso. Revelou a uma pessoa:

Obriga-me a minha bondade gratuita que, por especial privilegio, nela formou e manteve cinco dons dos quais mais me deleito, a saber: a verdadeira pureza devida ao continuo influxo da minha graça; a verdadeira humildade, devida à grandeza de meus inúmeros dons, pois quanto mais maravilhas faço nela, mais a consciência da sua própria fraqueza a lança no mais profundo abismo da humildade; a verdadeira bondade, que a faz desejar a salvação de todos os homens para minha gloria; a verdadeira fidelidade, que a leva, em meu louvor, a comunicar, sem reservas, todos os bens recebidos, para a salvação do universo inteiro; enfim, a verdadeira caridade, com a qual ela me ama, ardentemente, de todo o seu coração, de toda a sua alma e com todas as suas forças, e ao próximo como a si mesma por causa de mim. (Arauto I, 3,3)

A variedade e flexibilidade das atitudes de Gertrudes, ora rigorosas, escrupulosas e impacientes, ora condescendentes, compreensiva e indiferente a formalidades insignificantes, mostram a complexidade de sua figura moral. Porem, se a alma mística de Gertrudes de Helfta, escalou os mais altos cumes da caridade e da contemplação, deve-se a sua liberdade de coração, simultaneamente dom de Deus e fidelidade à Sua vontade.

A esse respeito o próprio Senhor a elogiou quando, em reposta a um homem devoto que lhe perguntara em oração o que mais lhe agradava em sua eleita, disse: ”A liberdade de coração”. Surpreso e como que menosprezando esta virtude, o homem disse:” Eu pensava, Senhor, que a vossa graça havia feito sua alma chegar a um elevado conhecimento espiritual e a um amor muito fervoroso”. E o Senhor replicou: É assim como pensas; mas o caminho a esta graça da liberdade, tão excelente bem que a conduz diretamente à suma perfeição. Pois assim, a cada momento ela está disponível à ação de todos os seus dons, jamais permitindo ao seu coração apegar-se a qualquer coisa que me faça obstáculo.” (Arauto I, 11, 7)

7.6. Obstinação na santidade

Gertrudes estava decidida a não permitir que coisa ou pessoa alguma fosse obstáculo a seu progresso na união com Deus, cada vez mais perfeita. Esta é a chave de ouro de uma definição real de liberdade interior em sua relação essencial a um fim. O segredo de Gertrudes tem suas raízes na importância impar que concede à união com o Senhor. De fato, para ela não há outra obrigação verdadeira que esta união; todas as demais lhe estão sujeitas. Miriam Schmitt chamou a atenção sobre a semelhança do itinerário espiritual de Gertrudes com o assinalado pela Regra de São Bento: a conversão, as lagrimas de compunção, a pureza de intenção, a atenção constante à presença de Deus, a humildade nascida da abnegação, a ação de graças e o jubilo espiritual.

A liberdade de coração encontra-se em todas as partes da vida e da obra de Gertrudes, em coisas importantes e em coisas secundarias. “A toda hora, empenhava-se em cumprir tudo

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quanto vinha a seu espirito, como se para ela fosse a mesma coisa orar, ler, escrever, instruir o próximo, corrigi-lo ou consolá-lo”, escreve sua biografa. O Senhor falou que “de tal modo une sua alma ao meu Coração sagrado que, tendo tornado-se um só espirito comigo, sua vontade se harmoniza com a minha como os membros de um homem se harmonizam com a sua vontade... Por minha graça ela permanece unida a mim a fim de realizar a toda hora o que espero dela”.

O que vês é a imagem da vida da minha escolhida que caminha na minha presença, sempre atentaem descobrir o querer benevolente do meu Coração. E ao conhecer minha vontade, imediatamente se dispõe a realiza-la, para logo em seguida buscar outro desejo meu, pronta a satisfazê-lo fielmente. E assim toda a sua vida se passa no meu louvor e gloria. (Arauto I,11,9)

7.7. Abandono à Graça (Vencer paixões e tentações)

Os historiadores e cronistas medievais revelam que monges, monjas e cristãos em geral, viviam aterrorizados de medo do demônio: todas as calamidades que afligiam a humanidade consideravam-nas como obra demoníacas permitidas por Deus a fim de castigar os pecados dos homens. Gertrudes não participa desta crença e terror. Sabe que a vitória sobre o “adversário” é um dos aspectos do combate espiritual, mas que o demônio não tem poder sobre o livre arbítrio: poderá corromper os sentimentos espirituais mas Deus não lhe permite tentar-nos acima de nossas forças. Se permite a tentação é para fazer-nos progredir no caminho da virtude; se unimos nossa vontade `a vontade divina, Deus combaterá por nós e alcançaremos a vitória.

Em outra ocasião e com outra imagem, tu me ensinaste que, na medida em que se cede mais facilmente ao adversario, mais ele ganha audácia; pois é uma exigência da tua perfeita justiça que, às vezes, o poder da tua misericórdia não se manifeste plenamente onde a nossa própria negligencia causou maior insistência da tentação. Assim, quanto mais rápida a nossa reação a qualquer mal, mais a tua misericórdia age com eficácia, proveito e sucesso.(Arauto II, 11, 4)

Vencer as paixões más e dominar os sentidos é a outra faceta do combate espiritual, tarefa árdua, levada a termo com a ajuda da graça. Gertrudes denomina as paixões ”afeições da alma” e seguindo Ricardo de São Vitor, dá-lhe o mesmo numero e nome: temor, dor, gaudio, amor, esperança, ódio e pudor. A perfeição consiste em manter a harmonia, o equilíbrio entre a sensibilidade afetiva e a razão, e é fruto da ascese. Sob a inspiração divina, a sensibilidade afetiva (affectio) e a razão são ordenadas ao mesmo fim, buscar unicamente a Deus.

Se, por teu amor, aplicar-me à guarda das minhas paixões e dos meus sentidos, nem por isso ficarei sem a abundancia da tua graça.(Arauto II, 13, 1)

Os ensinamentos de Gertrudes não separam a ascese da mística; o verdadeiramente importante é a plenitude de amor ao qual a ascese deve conduzir, se é autentica, sob o duplo aspecto de extirpação dos vícios e aquisição das virtudes.

Um dia, impelida pelo ímpeto do seu amor, ela disse ao Senhor: “Ó Senhor, quem me dera possuir tal ardor que a minha alma se derretesse, como que liquefeita, pudesse mais sutilmente derramar-se totalmente em ti!” O Senhor respondeu: “Esse fogo é a tua vontade”. Ouvindo

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isso ela entendeu que o homem, por meio de sua vontade, pode realizar plenamente todos os desejos que dizem respeito a Deus. (Arauto III, 30, 27)

A Doutrina da Suplência de Santa Gertrudes

A doutrina gertrudiana da graça alcança na “suplência” o seu ápice. O amor torna amável o amado. Para Gertrudes, o amor que Cristo nos dedica faz com que ele não olhe nossos defeitos. Mais ainda: ele os supre. Gertrudes sente vivamente a necessidade do amor infinito do Senhor para anular a dívida do pecado. Todavia a perfeição infinita de Cristo suprirá a negligencia, fruto da fragilidade e limitação humanas.

“Um dia em que ela se esforçava em pronunciar com toda atenção cada palavra e cada nota do Oficio Divino, o que a debilidade humana muitas vezes impedia, disse a si mesma com tristeza: “Que proveito pode tirar de um esforço tão grande quem se encontra em tamanha inconstância?” Então, o Senhor, não suportando ver sua ttristeza,,mostrou-lhe com suas próprias mãos, seu Coração divino, semelhante a uma lâmpada ardente, e lhe disse: “Eis aqui o meu Coração, dulcíssimo instrumento da Trindade eternamente adorável, que exponho aos olhos da tua alma, para que lhe rogues com confiança, que ele supra por ti o que não podes completar sozinha. Deste modo, tudo aparecera sumamente perfeito aos meus olhos. Por que assim como um servo fiel está sempre disposto a executar a vontade do seu senhor (Lc 12, 37), assim também meu Coração, de hoje em diante, estará sempre junto de ti, para todo momento suprir por ti as tuas negligencias”.(...) “Se tivesses uma voz sonora e bem modulada, e um grande prazer em cantar, e te encontrasses junto de uma pessoa que cantasse mal, com voz rouca e desafinada, e que, após muitos esforços, conseguisse emitir apenas alguns sons, certamente ficarias indignada por ela não confiar à tua competência e facilidade, o canto que ela encontra tanta dificuldade em executar. Assim também, com mais forte razão, o meu divino Coração, conhecedor da fragilidade e instabilidade humanas, espera com um insaciável desejo que tu – se não com palavras, pelo menos com algum sinal – O encarregues de suprir por ti e aperfeiçoar o que sozinha não podes levar a termo.”(Arauto III, 25,1,2)

“Da oferenda de si mesma ao amor resulta um dom reciproco entre o Senhor e Gertrudes. Doravante tudo o que pertence a Jesus, pertence a Gertrudes. Jesus suprirá tudo o que lhe falta. Seu sonho de corresponder ao amor com que é amada com um amor de algum modo infinito, poderá realizar-se”.

Conclusões Gerais: “Santo” é todo aquele que, pela graça do Batismo, é configurado a Jesus Cristo. O “ser” santo nos é dado, e somos obrigados a viver a santidade. Alguns fazem isto de maneira heroica e, tendo o reconhecimento da Igreja, são apresentados como exemplo a todos os cristãos. A santidade, nos lembra a Beata Teresa de Calcutá, não é “um luxo reservado a poucos, mas uma obrigação imposta a todos os cristãos”. (Ex. João Paulo II) Santa Gertrudes viveu segundo o Evangelho e, heroicamente seguiu Nosso Senhor.

_______ “Doutor” é alguém dentre estes cuja santidade se torna exemplo que, por sua vida, apresenta uma doutrina de vida espiritual. A meu pobre ver, Santa Gertrudes nos apresenta, sim, uma doutrina de vida que merece ser reconhecida.

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Assim, gostaria de destacar alguns pontos que constituem sua doutrina. a) Misericórdia como suplência Reconhecimento da própria fragilidade e da incapacidade de, pessoalmente, ir a Deus. É Ele quem se dá a nós e se faz em nós, nos capacitando a vir a Ele (Oração Eucarística II - ...estar aqui, em vossa presença e Vos servir.) Reconhecer que, assumindo nossa humanidade, Deus nos ama com coração humano, e capacita a humanidade a amar NEle, por Ele e com Ele. Cristo é a humanidade recriada, redimida e já glorificada (Ascenção) E é esta misericórdia que supre nossa deficiência, que ela anuncia e proclama. b) Não buscar fora do concreto da vida A vida própria de cada um, (no caso dela a vida monástica) é definitória para o encontro com Deus. Não se faz algo subjetivo, do jeito que eu quero, mas se assume aquilo que Deus quer para mim, e, vivendo bem a situação concreta da vida, se obedece a Deus. Não é a vida que eu quero, mas a que Deus me dá! Note-se que a Santa renunciou aos próprios projetos (estudos clássicos) para viver a intimidade com Deus.

_______ Sua doutrina sobre a Misericórdia, fundamentada na humanidade de Cristo que se prolonga na Eucaristia e na Igreja vai inspirar o que mais tarde será assumido como devoção própria da Igreja: Jesus Cristo.

“No seio de Jesus” *Palestra proferida no dia 21 de outubro de 2015, na Assembléia Temática e Eletiva da CIMBRA, no Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro.