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I Jornada Acadêmica Discente – PPGMUS/USP
Concertino Con's'certado: um olhar sobre a partitura do Concertino para
Clarineta de Francisco Mignone
Henrique Villas BoasUniversidade de São Paulo – [email protected]
Resumo: O presente artigo aborda as questões interpretativas do Concertino para clarinete e orquestra de Francisco Mignone pelo viés da crítica editorial da partitura. Tem como objetivo elucidar as problemáticas que a obra oferece e suas possíveis resoluções. Para tanto nos utilizaremos de dois autores fundamentais: James Grier (The critical editing of music) e Fernando José Silva Rodrigues da Silveira (“Concertino para Clarineta e Orquestra” de Francisco Mignone: reflexões interpretativas).
Palavras-chave: Mignone, Clarinete, Concertino.
Title of the paper in English (fonte Times New Roman, tamanho 10, negrito, espaço simples, centralizado)
Abstract: This article addresses the questions of interpretation of the Concertino for clarinet and orchestra by Francisco Mignone bias of the critical editorial of the score. Aims to clarify the issues that the work offers and possible resolutions. For this purpose we will use two key authors: James Grier (The critical editing of music) and Jose Fernando Silva Rodrigues da Silveira ("Concertino for Clarinet and Orchestra" by Francisco Mignone: interpretive reflections).
Keywords: Mignone, Clarinet, Concertino
1. Introdução
“Editing, therefore, consists of a series of choices, educated, critically, informed choices; in short, the act of interpretation. Editing, more-over, consists of the interaction between the authority of the composer and the authority of the editor.” (JAMES GRIER, 1996, p.2).1
A frase de Grier demonstra a quantidade de desafios que um editor se depara à
frente da obra a ser trabalhada, delata a quantidade de escolhas a serem feitas e aponta para as
consequências dessas escolhas. Porém, dada a responsabilidade legada ao editor, a frase
aproxima a atividade do editor com a do intérprete e ainda coloca em equilíbrio as autoridades
do compositor e do editor. Ora, pode parecer óbvio para nós que o trabalho de um editor
desde o século XIX com o advento das grandes editoras tenha se assemelhado tanto ao do
interprete no processo que leva a música até o público, e que as escolhas interpretativas dos
editores frente ao texto musical tem reflexo instantâneo na execução musical desse texto. Para
Grier, o ato da comunicação da obra para uma audiência é parte totalmente integrante do
processo criativo (1996, p.16), logo a realização da edição é análoga à performance,
1“Editar, portanto, consiste de uma série de escolhas eruditas, escolhas informadas criticamente; em resumo, o ato da interpretação. Editar, além disso, consiste na interação entre a autoridade do compositor e a autoridade do editor” (JAMES GRIER, 1996: 3). Tradução de Luiz Guilherme Duro Goldberg.
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[grifo nosso], (1996, p.6). Como demonstra Chartier, nasce daí a obsessão pelos manuscritos
perdidos numa disciplina destinada ao confronto de objetos impressos e a separação radical
entre o texto em sua identidade perfeita e ideal e suas múltiplas encarnações (CHARTIER,
1998, P. 63). Através do pensamento de Grier, buscaremos revelar como o editor (intérprete)
pode influenciar na obra musical revelando sua autoridade em diálogo com a autoridade do
compositor.
Nos utilizaremos da experiência de ensaios, gravações e performance do
Concertino para Clarineta de Francisco Mignone junto à Orquestra Sinfônica da Unicamp,
que teve como solista o clarinetista Diogo Maia em junho do ano corrente.
2. Identificação das fontes
Um dos pontos chave para a compreensão e organização do pensamento
interpretativo do editor é a identificação das fontes a serem utilizadas; segundo Grier, cada
obra encerra em si um campo semântico singular (1996, p.19). A identificação das fontes
ajuda a comunicar esse campo semântico e torná-lo inteligível. Cada obra é um caso singular,
cada fonte é um caso singular e cada edição, por conseguinte, também.
Utilizaremos três fontes primárias: F1 - o manuscrito do autor de 1957; F2 – a
edição de Silveira de 2004; F3 – a redução para piano de Silveira de 2004. Todas as fontes
apresentam dificuldades de interpretação do texto musical contudo, é importante salientar que
existe uma hierarquia entre as fontes distintas e nesse caso a F1, o manuscrito do autor, ocupa
o lugar principal. Todavia, a possibilidade da F2 e F3 serem decisivas dentro do processo
interpretativo não está descartada.
As três fontes utilizadas para esse trabalho são possivelmente as únicas versões
impressas existentes. Contudo, a partitura para piano (F3) pode ter sido escrita não como uma
redução da partitura orquestral mas, como uma cópia de uma partitura para piano específica.
Isso porque existem diferenças claras se compararmos a F3 com a partitura orquestral de
Silveira (F2). Portanto, há a hipótese de que exista ou existiu uma partitura pianística escrita
pelo próprio Mignone. Apoiando essa hipótese está o fato de Mignone habitualmente escrever
suas obras ao piano e depois orquestrá-las2. Não existe registro da partitura manuscrita para
piano, ela pode ter se perdido ou não ter sido catalogada ainda.
2Maria Josephina Mignone em entrevista exclusiva cedida em São Paulo em março de 2010.
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Embora a partitura para piano manuscrita de Mignone possa ser decisiva nas escolhas
interpretativas que tomaremos a seguir, as fontes presentes possuem material suficiente para
que o pensamento musical de Mignone seja abordado.
3. Ponderações interpretativas
Para nós será suficiente apontar, dentro do vocabulário que se busca, a discriminação
do que poderiam ser equívocos do autor e equívocos do primeiro editor, afim de demonstrar
as sugestões interpretativas que foram tomadas com base na experiência empírica da
performance da obra e no conhecimento do estilo e orquestração do autor.
No primeiro movimento, Fantasia, os compassos 5 e 6 do manuscrito e da edição de
Silveira apresentam uma mudança de nota nas violas que suscita interesse. As violas saem da
terça mi e sol para a terça sol e si, quando todo o restante das cordas mantêm suas respectivas
notas. Tal alteração não tem força suficiente para “discursar” dentro do fluxo sonoro. Embora
tanto o manuscrito quanto a edição de Silveira estejam idênticos, existem indícios de que
Mignone possa ter se enganado como sugere a redução para piano de Silveira. O compasso 6
esta exatamente na virada da página 1 para a 2 no manuscrito, e na página 2 Mignone não
anota a clave. A hipótese é a de que Mignone tenha por distração elevado as violas uma terça.
Fig. 1 - comp. 5 a 7 do manuscrito
Fig. 2 - comp. 5 a
7 da edição de Silveira
Cla Bb
Vln 1Vln 2
Vla
VclCb
Cla Bb
Vln 1
Vln 2
Vla
VclCb
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A questão que é aparentemente simples se amplia se observarmos a arcada para baixo
no compasso 6, que interrompe o gesto musical em direção ao compasso 7. Embora o
manuscrito demonstre a convicção de Mignone no trecho, a partitura para piano apresenta o
que parece ser a intenção musical do autor melhor expressada.
Fig. 3 - comp. 5 e 6 da redução pianística
O fato é que a ideia composicional de um gesto que seja um crescendo do acorde de
Em7+/F das cordas no compasso 5 em direção ao acorde de F7+/E (presente apenas na
partitura do piano) em sf do compasso 6 para culminar no Dm7 do sf do compasso 7 parece
mais consistente, de mais fácil realização e mais coerente com o restante da obra.
Ainda no primeiro movimento no compasso 24 na parte de segundos violinos há uma
defasagem harmônica por conta da nota lá que ora é natural e ora é sustenida. O fluxo
harmônico3 do trecho sugere a alteração harmônica no terceiro tempo do compasso (de ré
menor para fá sustenido “maior” com sétima), este fluxo está apoiado pela trompa, pelos
primeiros violinos e pela viola. Apenas o segundo violino retarda essa alteração e mais uma
vez sem força discursiva suficiente que se justifique.
Fig. 5 - comp. 23 e 24 do manuscrito
3O fluxo harmônico pode ser compreendido como a periodicidade da alternância entre as forças de tensão e resolução de um aglomerado de alturas. Discurso harmônico. (Nota do autor)
Cla Bb
Piano
Cla Bb
Vln 1
Vln 2
Vla
Vcl
Cb
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A edição de Silveira confirma a defasagem.
Fig. 6 - comp. 24 da edição de Silveira
Mais uma vez pode-se perceber a convicção da escrita de Mignone, todavia a
experiência da performance mostra que o efeito acústico atingido pelo retardo do lá# na
harmonia é insuficiente para se justificar frente aos materiais sonoros e estrutura
composicional da obra; um “esbarro pianístico” como resultado sonoro. A possibilidade das
influências populares serem a razão da convicção da escrita de Mignone tampouco se sustenta
suficientemente para ser decisiva. Mesmo que Mignone tivesse a intenção clara, a escrita não
foi suficiente para torná-la sonora - e nesse caso a “correção” deveria ser feita em favor do
retardo e não contra ele. Por último, esse procedimento não figura como material
composicional nas escolhas que Mignone faz durante a composição. A escolha pelo lá#
direto, ocupando a cabeça do terceiro tempo torna o ritmo harmônico mais fluido.
Outro ponto intenso de discussão nesse primeiro movimento é o trinado da clarineta
no compasso 41, que Mignone escreve com tr apenas sem especificar qual deverá ser a nota
superior. Comumente executa-se a nota superior como do natural, porém a harmonia disposta
pelos outros instrumentos indica um Aaum79 e quinta bemol (presença de do#; acorde típico
dominante). A nota do natural não estaria excluída enquanto uma nona aumentada porém, a
resolução melódica na nota ré da clarineta no compasso 42 suscita a presença do do#,
corroborando com a harmonia da orquestra. Além disso a não utilização de nonas
aumentadas na harmonia da peça como um todo parece confirmar que Mignone não estava
utilizando acordes dessa natureza como material sonoro.
Cla Bb
Vln 1
Vln 2
Vla
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Fig. 7 - comp. 41 e 42 do manuscrito
Ainda outro ponto de discussão seria o posicionamento da vírgula (ou respiração)
entre os compassos 41 e 42, que sugere que a apogiatura seja realizada como finalização do
trillo e não como anacruse da frase que se inicia no compasso 42. Corroborando com a ideia
de que o do# (nota superior do trillo sugerida) encaminha a harmonia e a melodia para o
compasso 42, sugere-se que a apogiatura seja realizada depois da respiração. Como anacruse
do compasso 42.
Fig. 8 - comp. 41 e 42 da edição de Silveira
Fl
Ob
Fg
Trompas
Trompetes
Cla Bb
Fl
Ob
Fg
Trompas
Trompetes
Cla Bb
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Até aqui pudemos visualizar algumas das questões interpretativas da partitura de
Mignone, dialogando diretamente com suas propostas composicionais e de escrita através do
manuscrito.
Há uma outra categoria interpretativa em discussão que é o diálogo entre editores4
de uma mesma obra, que tem por objetivo ampliar as possibilidades interpretativas do texto
musical garantindo uma gama mais rica de resoluções para a obra. Possivelmente a falta desse
diálogo resultou nos equívocos que a cópia de Silveira apresenta se comparada com o
manuscrito.
Um dos equívocos mais emblemáticos que a edição de Silveira comete, é o último
trecho do primeiro movimento (Fantasia). O ritmo da orquestra no penúltimo compasso do
movimento está diferente do manuscrito. A correção é simples, mas esse equívoco fez com
que a obra fosse executada e gravada desde 20045 com o ritmo errado. Prova da
responsabilidade e influência direta que o editor tem sobre a obra musical.
Fig. 9 - comp. 98 e 99 da edição de Silveira Fig. 10 - comp. 98 e 99 do manuscrito
4Para GRIER a edição de uma obra passa por diversas fases de amadurecimento, o diálogo entre editores de uma mesma obra é uma dessas fases que para ele se expressa na figura do revisor. 5Em 2007 a obra foi apresentada pela Orquestra de Câmara da USP, tendo como regente o maestro Gil Jardim e como solista o clarinetista Diogo Maia. Em 2012 a obra foi gravada pela Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, tendo como regente a maestrina Marin Alsop e como solista o clarinetista Sérgio Burgani. Nas duas ocasiões as escolhas interpretativas foram tomadas com base na edição de Silveira (F2), não levando em conta as indicações do manuscrito.
Fl
Ob
Fg
Trompas
Trompetes
Cla Bb
Vln 1
Vln 2
Vla
Fl
Ob
Fg
Trompas
Trompetes
Cla Bb
Vln 1
Vln 2
Vla
Vlc
Cb
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4. Conclusão
Não obstante a demonstração das escolhas interpretativas apresentadas nesse artigo ser uma fração pequena da quantidade de questões que o confronto das fontes e a performance da obra acenderam, buscamos demonstrar um caminho, dentre alguns possíveis, que apontasse para o que pudesse ser a acepção das intenções do compositor. Vale salientar que as resoluções apresentadas são apenas sugestões interpretativas sobre o texto do autor e que não pretendem encerrar a discussão mas, fornecer subsídios para uma edição crítica e, consequentemente, para uma performance melhor sucedida.
Mignone não era avesso às proposições dos que interpretavam sua obra e, frequentemente, absorvia as sugestões dos interpretes como uma colaboração dentro do processo de recriação da obra musical. Essa característica amplia o interesse pela obra do compositor sob a ótica do pensamento de Grier e agussa a discussão sobre a contribuição do interprete na obra musical.
5. Referências:
GRIER, James. The critical editing of music: history, method, and practice. Cambridge University Press, Cambridge, 1996. (fazer fichamento)
SILVEIRA, José Silva, Rodrigues da. Concertino para Clarineta e Orquestra de Francisco Mignone: reflexões interpretativas. Universidade Federal da Bahia. Programa de Pós-Graduação em Música - Doutorado em Música - Execução Musical. Salvador. 2005
CHARTIER, Roger. A aventura do livro – do leitor ao navegador. São Paulo: UNESP, 1998.
MIGNONE, Francisco. Concertino para Clarineta e Orquestra de Cordas. Partitura manuscrita. Rio de Janeiro: 1957.
MIGNONE, Francisco. Concertino para Clarineta e Orquestra de Cordas. Edição orquestral de José Silva Rodrigues da Silveira. Rio de Janeiro: 2004.
MIGNONE, Francisco. Concertino para Clarineta e Orquestra de Cordas. Partitura para piano de José Silva Rodrigues da Silveira. Rio de Janeiro: 2004.