conceito de elemento

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21 QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 16, NOVEMBRO 2002 A seção ‘Conceitos científicos em destaque’ tem por objetivo abordar, de maneira crítica e/ou inovadora, conceitos científicos de interesse dos professores de Química. O conceito de elemento U ma das maneiras de utilizar a história da Ciência para melhorar o ensino consiste em realizar uma análise histórica da gênese do co- nhecimento científico e da sua cons- trução. Entre as possíveis estratégias para alcançar esses objetivos, tem-se a identificação dos chamados “concei- tos estruturantes” das ciências e uma análise da sua evolução histórica. Segundo Gagliardi (1988), “os concei- tos estruturantes são aqueles que permitiram e impulsionaram a transfor- mação de uma ciência, a elaboração de novas teorias, a utilização de novos métodos e novos instrumentos concei- tuais”. O conceito de elemento químico é um dos mais importantes da Química, podendo ser considerado, de acordo com a proposta de Glagiardi, como um conceito estruturante que, ao lado de tantos outros, como átomo, molécula, substância, reação química, ligação química etc., foram fundamentais para o desenvolvimento dessa ciência. Através do uso da história e episte- mologia da Química, podemos conhe- cer a gênese desse conceito, as várias concepções que se sucederam nos seus diferentes contextos e as modifi- cações ocorridas ao longo do tempo relacionadas a fatores socioculturais. Um estudo usando o referencial his- tórico-epistemológico também revelará relações importantes com outros con- ceitos, que certamente serão impor- tantes para o ensino de Química. Atualmente, o conceito de elemento químico é introduzido, de um modo ge- ral, nos primeiros capítulos dos livros de Química. Alguns dos conceitos que são apresentados podem ser vistos a seguir: “Um elemento é uma subs- tância simples, fundamental e elemen- tar. Um elemento não pode ser sepa- rado ou decomposto em substâncias mais simples” (Russel, 1994); “Os ele- mentos são substâncias que não po- dem ser decompostas em outras mais simples... Cada elemento é constituído por apenas uma espécie de átomo” (Brown et al., 1999). Os trechos anteriormente citados foram extraídos de livros adotados no Brasil e traduzidos dos originais na lín- gua inglesa dos referidos autores. Nota-se que o conceito de elemento remete ao conceito de substância, mais especificamente ao de substân- cia simples. A simbiose entre os dois conceitos gera confusão, que poderia ser evitada se os tradutores esclare- cessem aos leitores o duplo sentido associado ao emprego dessa palavra na língua inglesa. Em artigo publicado na revista Quí- mica Nova sobre o ensino de conceitos em Química, Tunes et al. (1989) discu- tem os equívocos existentes no empre- go da expressão “elemento químico” em nosso país, o que é ocasionado pe- lo maior uso no nível superior de livros traduzidos da língua inglesa, nos quais o vocábulo utilizado “element” inclui tanto o conceito de substância simples quanto o de elemento. Para Tunes et al. (1989), o elemento químico constitui uma classe de áto- mos formada pelos diferentes nuclí- deos ou “tipo de átomo caracterizado por um número atômico específico”. Nesse artigo define-se nuclídeo como “tipo de um dado elemento químico ca- racterizado por um número de massa específico”. Maria da Conceição Marinho Oki Este artigo apresenta uma maneira de utilização da história e epistemologia da Ciência para melhorar o ensino através da identificação e estudo de conceitos estruturantes das ciências. A evolução histórica do conceito de elemento é apresentada destacando-o como um conceito estruturante da Química. São apresentadas concepções de elemento que se sucederam desde a antigüidade grega até o século XX. história e epistemologia, ensino de química, conceito de elemento Recebido em 18/06/01; aceito em 10/06/02 CONCEITOS CIENTÍFICOS EM DESTAQUE

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 16, NOVEMBRO 2002

A seção ‘Conceitos científicos em destaque’ tem por objetivo abordar, de maneira crítica e/ou inovadora, conceitoscientíficos de interesse dos professores de Química.

O conceito de elemento

Uma das maneiras de utilizar ahistória da Ciência para melhoraro ensino consiste em realizar

uma análise histórica da gênese do co-nhecimento científico e da sua cons-trução.

Entre as possíveis estratégias paraalcançar esses objetivos, tem-se aidentificação dos chamados “concei-tos estruturantes” das ciências e umaanálise da sua evolução histórica.Segundo Gagliardi (1988), “os concei-tos estruturantes são aqueles quepermitiram e impulsionaram a transfor-mação de uma ciência, a elaboraçãode novas teorias, a utilização de novosmétodos e novos instrumentos concei-tuais”.

O conceito de elemento químico éum dos mais importantes da Química,podendo ser considerado, de acordocom a proposta de Glagiardi, como umconceito estruturante que, ao lado detantos outros, como átomo, molécula,substância, reação química, ligaçãoquímica etc., foram fundamentais parao desenvolvimento dessa ciência.

Através do uso da história e episte-

mologia da Química, podemos conhe-cer a gênese desse conceito, as váriasconcepções que se sucederam nosseus diferentes contextos e as modifi-cações ocorridas ao longo do temporelacionadas a fatores socioculturais.Um estudo usando o referencial his-tórico-epistemológico também revelarárelações importantes com outros con-ceitos, que certamente serão impor-tantes para o ensino de Química.

Atualmente, o conceito de elementoquímico é introduzido, de um modo ge-ral, nos primeiros capítulos dos livrosde Química. Alguns dos conceitos quesão apresentados podem ser vistos aseguir: “Um elemento é uma subs-tância simples, fundamental e elemen-tar. Um elemento não pode ser sepa-rado ou decomposto em substânciasmais simples” (Russel, 1994); “Os ele-mentos são substâncias que não po-dem ser decompostas em outras maissimples... Cada elemento é constituídopor apenas uma espécie de átomo”(Brown et al., 1999).

Os trechos anteriormente citadosforam extraídos de livros adotados no

Brasil e traduzidos dos originais na lín-gua inglesa dos referidos autores.Nota-se que o conceito de elementoremete ao conceito de substância,mais especificamente ao de substân-cia simples. A simbiose entre os doisconceitos gera confusão, que poderiaser evitada se os tradutores esclare-cessem aos leitores o duplo sentidoassociado ao emprego dessa palavrana língua inglesa.

Em artigo publicado na revista Quí-mica Nova sobre o ensino de conceitosem Química, Tunes et al. (1989) discu-tem os equívocos existentes no empre-go da expressão “elemento químico”em nosso país, o que é ocasionado pe-lo maior uso no nível superior de livrostraduzidos da língua inglesa, nos quaiso vocábulo utilizado “element” incluitanto o conceito de substância simplesquanto o de elemento.

Para Tunes et al. (1989), o elementoquímico constitui uma classe de áto-mos formada pelos diferentes nuclí-deos ou “tipo de átomo caracterizadopor um número atômico específico”.Nesse artigo define-se nuclídeo como“tipo de um dado elemento químico ca-racterizado por um número de massaespecífico”.

Maria da Conceição Marinho Oki

Este artigo apresenta uma maneira de utilização da história e epistemologia da Ciência para melhorar oensino através da identificação e estudo de conceitos estruturantes das ciências. A evolução histórica doconceito de elemento é apresentada destacando-o como um conceito estruturante da Química. Sãoapresentadas concepções de elemento que se sucederam desde a antigüidade grega até o século XX.

história e epistemologia, ensino de química, conceito de elemento

Recebido em 18/06/01; aceito em 10/06/02

CONCEITOS CIENTÍFICOS EM DESTAQUE

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA N° 16, NOVEMBRO 2002

Elementos: os princípios constituintesda matéria

A origem do nome elemento encon-tra-se relacionada ao vocábulo grego“stocheion”, correspondente ao termolatino “elementum”, que reúne trêsletras consecutivas do centro doalfabeto latino: L, M e N (Lockemann,1960). Aristóteles usou a palavra“stocheion”, que significava para eletanto elemento quanto princípio. Essapalavra foi posteriormente adotada nasvárias línguas européias.

Elementos, princípios e áto-mos acompanhar-nos-ão em to-da a história da Química, masnão assinalam uma unidade,uma continuidade conceitual àqual a história da Química estejasubmetida (Bensaude-Vincent eStengers, 1992).

O uso desses termos nos diferentescontextos denota as divergências exis-tentes nas explicações das qualidadesda matéria manifestadas na sua apa-rência e nas suas transformações sus-tentadas em diferentes bases interpre-tativas.

O conceito de elemento começoua se estruturar a partir da necessidadede explicação das mudanças obser-vadas na natureza; os filósofos pré-socráticos foram os primeiros a tentarjustificar o que aparentemente mudavae o que permanecia sem alteração,estando esse conceito vinculado às es-peculações desses filósofos sobre osprincípios constituintes da matéria, ouseja, a sua causa primária, a suaessência.

Tales de Mileto (624-544 a.C.) consi-derou a água o único e primordial prin-cípio responsável pela multiplicidadedos seres. Anaximandro (610-546 a.C.), discípulo de Tales, foi o primeiro ausar o termo “arché”, que significa prin-cípio; no entanto, discordava de Talesem relação à explicação da existênciade um único princípio, o que conside-rava uma limitação. Segundo ele, oprincípio de tudo seria o “apeíron”, umasubstância primária, indeterminada eimaterial.

Empédocles (490-430 a.C.) usouem suas explicações a idéia de quatroprincípios ou elementos primordiais:

terra, água, ar e fogo. O amor e o ódioeram as forças antagônicas que pro-moviam a união ou dissociação dosquatro elementos e explicavam as mu-danças observadas no mundo. Essefilósofo não utilizou em seus textos apalavra elemento,substituindo-a porraízes, mas manten-do o mesmo signifi-cado. “O termo ele-mento parece ter sidoutilizado pela primeiravez por Platão” (Maar, 1999).

Os quatro “elementos-princípios”de Empédocles foram adotados peloimportante filósofo grego Aristóteles(384-322 a.C.), que lhes atribuiu quali-dades. Um estudo das obras de Aristó-teles revela que a sua visão sofreu al-gumas modificações ao longo do tem-po (Mierzecki, 1991). No seu trabalho“Física”, no qual examina conceitosgerais relativos ao mundo físico, Aristó-teles declarou a existência de somentetrês elementos; na sua obra “Sobre ageração e a corrupção”, considerou aexistência de quatro elementos e, em“Sobre o céu”, onde apresenta estudossobre o mundo sideral e sublunar,acrescentou o quinto elemento: o éter,a matéria constituinte dos corpos ce-lestes. Posteriormente, esse último ele-mento foi chamado de quinta essência,caracterizando-se como o princípioformador de todos os corpos existen-tes no mundo supralunar, ou seja, aparte do Universo que se inicia com aLua (Chassot, 1995).

Aristóteles considerava que tudoera formado por uma matéria de ba-se ou substrato “hylé”; a este se jun-tavam as qualidades responsáveispela sua aparência e forma. Essasqualidades elementares eram: quen-te, seco, frio e úmido. Todas as subs-tâncias existentes seriam formadaspelos quatro elementos e cada ele-mento era caracterizado por um parde qualidades.

O conceito de “elemento-princípio”oriundo da filosofia grega revela umaciência baseada nas qualidades apa-rentes dos corpos e que são perce-bidas pelos sentidos e o importante pa-pel conferido à observação e à contem-plação. Essa é uma ciência que con-cebe a realidade natural como um

mundo hierarquizado com lugares pré-determinados para todas as coisas.

A concepção de que a mudança naproporção quantitativa dos elementosconstituintes podia levar à mudançanas propriedades e aparência dos

corpos foi a base teó-rica para a crença natransmutação demetais menos nobresnaquele cuja combina-ção de qualidades se-ria a mais perfeita pos-

sível: o ouro. Essas tentativas foramempreendidas por alquimistas árabese europeus durante o período medievalusando-se vários procedimentos eoperações.

Nesse período, os quatro elemen-tos de Empédocles e, posteriormente,de Aristóteles, eram consideradoscomo existentes em todas as substân-cias; os metais, por exemplo, não eramconsiderados como corpos simples.

Atribui-se a Jabir ibn Hayyan, umalquimista árabe sobre o qual não setem certeza sobre as suas origens, masque teria vivido entre os séculos VIII eIX, a introdução da teoria do “enxofre-mercúrio”, baseada numa concepçãodualista. Segundo essa teoria, todosos corpos seriam formados em dife-rentes proporções por dois princípios:o enxofre, portador da propriedadecombustibilidade, e o princípio mercú-rio, carregador da metalicidade.

A transmutação seria possível pelamodificação da composição naturaldos corpos. O ouro era o metal queencerrava uma composição ideal dosconstituintes enxofre e mercúrio e umamaior pureza.

Esses “elementos-princípios” intro-duzidos no período da Alquimia fica-ram conhecidos como espagíricos e aeles foi adicionado por Paracelso(1493-1541), no século XVI, o elementosal, causador da solubilidade doscorpos e cuja presença estava relacio-nada à estabilidade.

Devemos considerar que, no con-texto em que foram propostos, os ele-mentos enxofre e mercúrio eram prin-cípios abstratos, numa concepçãometafísica de elemento, não devendoser confundidos com as substânciasreais que desde aquela época e atéhoje têm o mesmo nome.

O conceito de elemento

O conceito de elementocomeçou a se estruturar apartir da necessidade deexplicação das mudançasobservadas na natureza

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Elementos: os limites extremos daanálise química

Uma definição de elemento que jáé considerada por alguns historiadorescomo moderna foi formulada por umdos mais importantes químicos do sé-culo XVII, o inglês Robert Boyle (1627-1691). Segundo Partington (1961),Boyle apresentou uma definição quediscordava das concepções de ele-mentos como princípios. Maar (1999)considera que a proposta de Boyle foirealmente moderna, só deixando deservir à Química com a descoberta dosisótopos a partir do início do século XX.No entanto, existem algumas divergên-cias quanto a essa abordagem.

Alfonso-Goldfarb (1987) consideraque Boyle apresentou uma definiçãoaparentemente moderna de elemento,uma vez que, ao final, questionava asua validade. A sua principal contribui-ção foi a destruição do conceito exis-tente, abrindo caminho para uma novaelaboração. Para outros historiadores,Boyle não substituiu a definição tradi-cional por outra moderna, mas questio-nou a função de elemento na práticado químico, expressando as suas dú-vidas quanto ao fato de que cada ele-mento estaria ou não presente na cons-tituição de todos os corpos (Bensaude-Vincent e Stengers, 1992).

O conceito de elemento de Boyle,bem como suas dúvidas, aparecemexplicitadas na sua importante obra “Oquímico cético” (1661), como pode serobservado no trecho a seguir, extraídodo apêndice desse livro:

Chamo agora elementos certoscorpos primitivos e simples,perfeitamente puros de qualquermistura, que não são constituídospor nenhum outro corpo, ou unspelos outros, que são os ingre-dientes a partir dos quais todosos corpos que chamamos mistu-ras perfeitas são compostos demodo imediato, e nos quais estesúltimos podem ser finalmenteresolvidos. E o que me perguntoagora é se existe um corpo destetipo que se encontre de modoconstante em todos, e em cadaum, daqueles que se dizemconstituídos por elementos (Ben-saude-Vincent e Stengers, 1992).

Esse conceito difere em sua essên-cia das concepções aristotélicas e es-pagíricas, que dominaram a Química atéo período medieval, e passa a funda-mentar o principal programa da Qímicano século XVIII: a análise dos corpos.

Para Boyle, os elementos eram osconstituintes que resultavam da análisequímica, ou seja, “os verdadeiros limitesextremos da análise química” (Mason,1964). Boyle, no entanto, não cita emsuas obras exemplos de elementosexistentes na natureza.

Embora nesse trabalho outros as-suntos tenham sido discutidos, como oproblema da combustão, uma das prin-cipais questões colocadas era o númerode elementos existentes e a influênciada composição dos corpos nas proprie-dades.

Boyle criticou o raciocínio usado pe-los alquimistas e propôs que todos oscorpos químicosfossem produzi-dos por diferen-tes texturas,resultantes dacombinação dediferentes partí-culas; as proprie-dades dos “cor-pos mistos” ousubstâncias compostas deveria resultartambém de sua estrutura e não somentede sua composição. Tal concepçãorevela a influência das idéias perten-centes ao atomismo mecanicista, muitoinfluente na Química no século XVII.

O novo conceito de elemento “boylia-no” influenciou a Química nos séculosseguintes, embora as concepções an-tigas tenham resistido até o século XVIII.

Lavoisier (1743-1794) usou meiosempíricos para contestar os conceitosantigos, herdados de Aristóteles e dosalquimistas. Ele adotou o conceito intro-duzido por Boyle, dando-lhe uma exis-tência concreta e precisa e definindo-oclaramente no trecho a seguir, extraídodo seu importante livro “Tratado Elemen-tar de Química” (1789):

Se [...] associarmos ao nomede elementos ou de princípiosdos corpos a idéia do últimotermo ao qual chega a análise,todas as substâncias que não po-demos decompor por meio al-

gum são para nós elementos: nãoque possamos assegurar que es-tes corpos, que nós considera-mos como simples, não sejameles mesmos compostos de doisou mesmo de um maior númerode princípios, mas como estesprincípios jamais se separam, ouantes, como não temos nenhummeio de os separar, eles com-portam-se para nós como os cor-pos simples, e não devemos su-pô-los compostos senão no mo-mento em que a experiência e aobservação nos tenham fornecidoa prova (Bensaude-Vincent eStengers, 1992).

A proposta de Lavoisier e colabo-radores (Louis Bernard Guyton de Mor-veau, Claude Louis Berthollet e AntoineFrançois de Fourcroy) de introduzir

uma nova nomenclaturapara as substâncias quí-micas teve como princípiogeral que o nome da subs-tância refletisse a sua com-posição; para tanto, a novadefinição de elemento foiessencial.

Uma análise da tabela desubstâncias simples propos-

ta por Lavoisier no seu “Tratado Ele-mentar de Química” demonstra que elejá reconhecia os metais como subs-tâncias simples, embora alguns doselementos considerados fossem, naverdade, substâncias compostas. Dostrinta e três elementos citados, cinco de-les são hoje reconhecidos como óxidos,três são radicais que ainda não haviamsido identificados e dois correspondemà luz e ao calórico.

Apesar dos méritos do importantetrabalho de Lavoisier e dos avanços in-troduzidos na Química Teórica, algunsequívocos foram cometidos por ele,como a inclusão do calórico e da luzcomo elementos imponderáveis. Asconcepções apresentadas sobre o ca-lórico, assim como sobre o “princípiooxigênio”, trazem ainda embutidos resí-duos de uma Química qualitativa. Emseu livro, Lavoisier ainda se referia aoselementos químicos usando diferentesnomenclaturas, como: princípio, ele-mento, substância simples e corposimples (Tolentino et al., 1997).

O conceito de elemento

Segundo Boyle, elementosseriam certos corposprimitivos e simples,

perfeitamente puros dequalquer mistura, que nãofossem constituídos pornenhum outro corpo, ou

uns pelos outros

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Corpos simples, substâncias simples ouelementos?

A concepção de elemento como si-nônimo de corpo simples foi tambémexplicitada em um livro-texto do maisinfluente químico da primeira metadedo século XIX, Jons Jacob Berzelius(1779-1848), “Manual de Química”(1825), como pode ser visto a seguir:

Corpos que ocorrem na Terrasão divididos em simples, nãodecompostos e compostos:

(1) Corpos simples são aque-les que podemos acreditar comcerteza que eles não são com-postos e que ocorrem comoconstituintes do restante da na-tureza.

(2) Corpos não decompostos(“indecomposed“) são aquelesque nós podemos supor quenão são simples, mas eles nãoforam decompostos em ele-mentos mais simples; se estescorpos são compostos não seconhece os seus constituintesabsolutamente.

(3) Corpos compostos sãoaqueles que podem ser decom-postos por meios químicos emoutros mais simples (Mierzecki,1991).

Observa-se que nesse período con-fundia-se o conceito de elemento como de corpo simples; uma outra questãoa ser observada é que os vocábuloscorpo e substância eram usados indis-tintamente, não se fazendo diferen-ciação entre ambos.

A confusão conceitual envolvendoos termos elemento e substância sim-ples ainda hoje é observada em algunslivros de Química, como visto anterior-mente. No entanto, ainda no séculoXIX, Mendeleiev já registrava esse fato,propondo uma diferenciação entre ele-mento e corpo simples no seu impor-tante artigo científico “A lei periódicados elementos químicos” (1871).

Tal como Laurent e Gerhardtempregaram as palavras molé-cula, átomo e equivalente indis-tintamente, também hoje em diase confundem freqüentementeas expressões corpos simples eelemento. Contudo, cada uma

delas tem um significado bemdistinto, que importa precisarpara evitar confusões nos termosda filosofia química. Um corposimples é qualquer coisa dematerial, metal ou metalóide, do-tada de propriedades físicas equímicas. A expressão corposimples corresponde à idéia demolécula[...]. Pelo contrário,deve-se reservar o nome deelemento para caracterizar aspartículas materiais que formamos corpos simples e compostose que determinam o modo comose comportam do ponto de vistafísico e químico. A palavra ele-mento corresponde à idéia deátomo (Bensaude-Vincent eStengers, 1992).

O conceito de elemento passou a servinculado ao conceito de átomo; essarelação está claramente explicitada porMendeleiev nesse trecho de sua autoriae o peso atômico passou a se imporcomo critério de classificação.

Critérios modernos para umaconceituação de elemento químico

Embora os conceitos de elemento eátomo tenham sido introduzidos pelosgregos, não coube a eles a associaçãodesses conceitos; este foi um mérito daQuímica moderna e do processo intera-tivo teoria e prática, idéias e técnicas quepermanentemente se modificam e seinfluenciam mutuamente.

Os avanços na Química Teórica doséculo XIX e a suaaproximação da Físicapermitiram que outroscritérios passassem aser utilizados para sedistinguir um elementoquímico, tais como avalência e o peso atô-mico (atualmentemassa atômica rela-tiva). Tais critérios fo-ram fundamentais pa-ra a identificação de grande número deelementos químicos e possibilitaram aorganização dos mesmos em diversossistemas de classificação e o relaciona-mento das propriedades dos elemen-tos com os seus pesos atômicos.

As primeiras determinações de pe-

sos atômicos foram realizadas por JohnDalton (1766-1844) e os resultadosobtidos para essas grandezas foramresponsáveis pela aceitação da Químicacomo uma ciência exata.

A primeira metade do século XIXcaracterizou-se por disputas inclusive noplano ideológico envolvendo a comu-nidade química. Os químicos compro-metidos com o positivismo não aceita-vam os pesos atômicos e preferiam fazeruso dos pesos equivalentes, obtidosexclusivamente a partir das relações decombinações ponderais ou volumé-tricas. Um outro grupo acreditava que opeso atômico era a característica fun-damental de um elemento, definindo assuas propriedades.

O fim dessa disputa teve início coma importante contribuição do químicoitaliano Stanislao Canizzaro (1826-1910),que teve distribuído ao fim do importanteCongresso de Karlsruhe (1860) umartigo científico de sua autoria, “Suntodi um Corso di Filosofia Chimica“, noqual deixava clara a diferença entre osconceitos de átomo e molécula, ba-seando-se na hipótese que havia sidoformulada em 1811 por seu conterrâneoAmedeo Avogadro (1776-1856).

Após a superação das divergências,estabeleceram-se definitivamente osconceitos de átomo e molécula, equiva-lente, atomicidade e valência e as basesda Teoria Atômico-Molecular.

Nesse período, os valores determi-nados para os pesos atômicos nemsempre eram concordantes, o que se

atribuía à imprecisãodos métodos experi-mentais e aos diferen-tes referenciais queeram usados como ba-se para os cálculos. Avariação nos valoresdeterminados foi du-rante um certo períodoum problema inexpli-cável e não podia serresolvido apenas comum maior rigor nas me-

dições efetuadas. Foi necessária umanova maneira de interpretação dosdados experimentais pautada numa mu-dança conceitual, que colocava emcheque o segundo postulado de Daltone passava a admitir a idéia de queátomos de um mesmo elemento pudes-

O conceito de elemento

Em 1871, Mendeleievchamava atenção para a

confusão conceitualenvolvendo os termos

‘elemento’ e ‘substânciasimples’ (no século XIX,‘corpo simples’). Apesar

disso, ainda hoje talconfusão é observada emalguns livros de Química

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sem ter pesos diferentes. Essa idéia pas-sou a orientar pesquisas que pudessemfornecer evidências da existência dosisótopos.

O termo isótopo foi criado em 1913por Frederick Soddy (1877-1956) eincorporado à linguagem científica nasprimeiras décadas do século XX. Aconstrução do conceito de isótopo de-monstra a necessidade do diálogo darazão com a experiência, pré-requisitohoje necessário para o processo deconstrução racional do conhecimentoquímico, que é mediado pela técnica.

Cabe destacar nesse episódio acontribuição de Francis William Aston(1877-1945) que, visualizando o princí-pio do espectrômetro de massa efazendo uso desse instrumento, estabe-leceu evidências de que o conceito deisótopo aplicava-se a todos os elemen-tos e não apenas aos radioativos.

O conceito de elemento passou a serdefinido com base na estrutura atômicae molecular, acessível por métodosfísicos baseados principalmente eminterações radiação-matéria. A signifi-cação dos fenômenos elétricos dosátomos é dada pelo aparelho; cabe aoespectrômetro de massa essa funçãoquando separa, seleciona e registra amassa dos diferentes isótopos. Aestreita relação entre a teoria e oinstrumento é uma das característicasda Química moderna; o processo de

aplicação experimental é que confere ovalor de uma teoria, o instrumentocientífico é uma teoria materializada(Bachelard, 1977).

No século XX, a Química Teórica pas-sou a se utilizar cada vez mais de co-nhecimentos produzidos no âmbito daMecânica Quântica e da Física de Par-tículas. Os conhecimentos físicos sobrea estrutura do átomo penetraram naQuímica e introduziram mudançasradicais em conceitos básicos, apoia-das em um mundo submicroscópico emque muitas das leis naturais não seaplicam.

A identificação de um elemento quí-mico passou a ser feita pelo seu núme-ro atômico e a sua caracterização con-sidera a configuração eletrônica e os elé-trons responsáveis pelas interações quí-micas que chamamos de elétrons devalência. Os conceitos de isótopo e denuclídeo tornaram-se fundamentais paraa elaboração de um novo conceito deelemento químico. A identidade doelemento químico foi modificada, já queesse passou a reagrupar um certonúmero de isótopos distintos.

O elemento químico deixou de ser ofim último da análise química, posiçãoque passou a ser ocupada pelaspartículas subatômicas. Novas proprie-dades, hoje consideradas como “ele-mentares”, foram propostas visandosistematizar o grande número de par-

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A evolução do conceito de elemen-to químico nos fornece um bom exemplo“da natureza multidisciplinar da Químicaonde se contrapõe a atividade manualcom a intelectual, o microscópico como macroscópico, o pragmatismo empíri-co com a especulação teórica” (Chagas,1989).

É importante não nos esquecermosda provisoriedade dos conceitos, de-corrente das modificações da Ciênciaresultantes dos avanços científicos;queremos registrar a dificuldade ine-rente à formulação desse conceito, queestabelece uma importante relação en-tre o que é macroscopicamente obser-vado e o que se imagina microsco-picamente, ou seja, requer que faça-mos uso da nossa importante capa-cidade de abstração.

Maria da Conceição Marinho Oki ([email protected]),engenheira química, mestre em Química Inorgânica,é professora do Departamento de Química Geral eInorgânica do Instituto de Química da UFBA.

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Abstract: The Concept of Element: from Antiquity to Modern Times - This paper reports a way of using the history and epistemology of science for improving education through the identification and studyof structuring concepts in the sciences. The historic evolution of the concept of element is presented highlighting it as a structuring concept of chemistry. Succeeding conceptions of element from antiquityto the 20th century are presented.Keywords: history and epistemology, education in chemistry, concept of element