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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social RAEL BISPO BESERRA Comunidades de Relacionamento Virtual como Agentes Potencializadores de Emancipação Mestrado em Psicologia Social São Paulo – 2012

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social

RAEL BISPO BESERRA

Comunidades de Relacionamento Virtual como

Agentes Potencializadores de Emancipação

Mestrado em Psicologia Social

São Paulo – 2012

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RAEL BISPO BESERRA

Comunidades de Relacionamento Virtual como

Agentes Potencializadores de Emancipação

Mestrado em Psicologia Social

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social

São Paulo – 2012

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RAEL BISPO BESERRA

Comunidades de Relacionamento Virtual como

Agentes Potencializadores de Emancipação

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como

exigência parcial para obtenção do título de Mestre

em Psicologia Social, sob orientação do prof. Drº.

Antonio da Costa Ciampa.

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social

São Paulo - 2012

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BANCA EXAMINADORA

______________________________________

Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa

______________________________________

Prof. Dr. Juracy Armando Mariano de Almeida

______________________________________

Profa. Dra. Maria do Carmo Guedes

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AGRADECIMENTOS

Um projeto e a elaboração de uma dissertação, aparentemente, contam com um

orientador e um orientado. Digo aparentemente porque isso não é verdade, são inúmeras as

pessoas envolvidas e sem as quais não seria possível. Esta página é dedicada a algumas dessas

pessoas que, de forma direta ou indireta, contribuíram para esta dissertação.

É praxe, e muito justo, começar agradecendo ao orientador. No meu caso não quero

fugir à “regra”; realmente o profº. Ciampa foi alguém muito importante e quero agradecer-lhe

por ter dedicado seu precioso tempo para ler, sugerir e corrigir a pesquisa. Também fico grato

aos demais professores, àqueles que participaram ministrando aulas: Profº. Drº. Salvador A.

Sandoval, profª. Drª. Barder B. Sawaia, profª. Drª. Mary Jane P. Spink, profª. Drª Maria do

Carmo Guedes e o profº Drº. Juracy A. M. de Almeida; a todos quero dizer que me sinto

honrado por tê-los como mestres em parte de minha caminhada. Àqueles que participaram da

Banca – Maria do Carmo e Juracy – só posso ser eternamente grato – ao Jura (intimidade de

amigo) por “ensinar sem falar” e Maria do Carmo por ter recolocado minha auto-estima no

lugar.

Sou grato aos meus colegas no NEPIM da PUC-SP, em especial ao Alessandro e a

Patrícia que gentilmente atenderam ao meu pedido quando precisei de socorro com o texto.

Também são importantes meus amigos pessoais, eles me inspiram a estudar, agradeço

especialmente a Fernanda, Aline, Carolina e Ranieri que ajudaram com normas técnicas do

texto. Ainda referindo-se a essa “classe” de pessoas agradeço, de coração, a minha amiga

“S.”, que generosamente compartilhou parte de sua história dando vida e veracidade à

pesquisa. Somente um pesquisador sabe a importância de um sujeito emblemático – obrigado

“S.”.

Por último agradeço a Deus e a minha mãe que me deram a vida e me sustentam até

hoje. Todos: parentes, amigos, mestres e colegas, citados nominalmente ou não recebam meu

muito obrigado por tornar possível mais essa realização pessoal.

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A Lição da Borboleta

O homem observava o casulo já há dias quando percebeu que nele se abria um pequeno

orifício. Durante horas, a borboleta tentou fazer passar seu corpo pela abertura.

De repente parou, como se não conseguisse ir adiante. O homem resolveu ajudá-la. Com uma

tesoura cortou o restante do casulo. A borboleta deixou-o facilmente. Mas seu corpo era

pequeno; estava murcho e as asas amassadas.

O homem continuou observando. Esperava o momento em que as asas se abrissem e se

esticassem para o primeiro vôo.

Mas nada aconteceu. A borboleta rastejava, o corpo murcho, as asas encolhidas. Jamais foi

capaz de voar.

Ansioso para ajudar, o homem não sabia. Não conhecia o processo da metamorfose que

permite o vôo da borboleta. Pois que é o seu esforço que lhe dá esta capacidade: ao

comprimir seu corpo pelo orifício do casulo, secreta a substância necessária para esticar as

asas e voar.

Como a borboleta, também nós precisamos de esforço muitas vezes em nossa vida. Sem

obstáculos e a força necessária para vencê-los, ficaríamos enfraquecidos. Jamais seríamos

capazes de voar.

Anônimo.

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Uma pessoa em crescimento renova-se a si mesma...

Tão nova quanto um novo dia...

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RESUMO

Beserra, Rael. Comunidades de Relacionamento Virtual como agente potencializador de

Emancipação. Dissertação de Mestrado. PUC.SP, 2012.

A presente pesquisa que trabalha com a perspectiva da Psicologia Social pretende

compreender os processos envolvendo a metamorfose identitária (CIAMPA, 1987, 1995) de

pessoas que utilizam as comunidades de relacionamento virtual como um meio importante

para suas construções sociais e identidade.

A intensificação do virtual na contemporaneidade é uma questão emergente que ainda

gera algumas controvérsias quanto às consequências para o indivíduo e seus processos de

socialização. É provável e natural que as divergências permaneçam por algum tempo, estamos

diante de uma nova realidade. A pesquisa é apenas mais uma contribuição para outros estudos

que certamente acontecerão. A realidade virtual é cada vez mais real na vida das pessoas.

Trata-se de uma pesquisa qualitativa que tem como técnica principal a História de

Vida. Essa é uma técnica utilizada no NEPIM (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Identidade-

Metamorfose), do programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC-SP,

coordenado pelo profº Drº. Antonio da Costa Ciampa e tem alcançado resultados importantes

para a Psicologia Social. A pesquisa apoiou-se em um relato de uma pessoa que durante cerca

de 12 anos manteve relacionamentos sistemáticos com uma mesma comunidade virtual.

A dissertação procura compreender como uma pessoa se utiliza da realidade virtual

como agente potencializador de emancipação em sua trajetória de vida. O posicionamento

ético e crítico permitiu, também, perceber os riscos de considerar as realidades – presencial e

virtual – desconectadas, deixando clara a importância de compreendê-las como realidades

complementares e interdependentes.

Palavras Chaves: Identidade, Metamorfose, Comunidade Virtual, Emancipação

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Summary

Beserra, Rael. Relationship Virtual Communities as a potential agent of Emancipation.

Dissertation master's degree . PUC.SP, 2012.

The present research that works with the prospect of Social Psychology aims to understand the processes involving the metamorphosis of identity (CIAMPA, 1987, 1995) of people using the communities of virtual relationship as an important means of social constructions and their identity.

The intensification of the virtual nowadays is an emerging issue that still generates some controversy as to the consequences for the individual and their socialization processes. It is likely and natural that differences remain for some time, we are facing a new reality. The research is just another contribution to other studies that certainly will happen. Virtual reality is becoming more real in people's life.

This is a qualitative research technique that has as main, the Life History. This is a technique used in NEPIM (Center for Studies and Research in Identity-Metamorphosis), the program of Postgraduate Studies in Social Psychology from PUC-SP, coordinated by Prof. Drº Antonio da Costa Ciampa, with important results to Social Psychology. The research was based on a report of a person for about 12 years has systematic relationships with the same virtual community.

The dissertation seeks to understand how a person uses virtual reality as potentiating agent of emancipation in their life trajectory. The critical and ethical position also allowed us to realize the risks of considering the realities - and virtual - disconnected, making clear the importance of understanding them as complementary and interdependent realities.

Key Words: Identity, Metamorphosis, Virtual Community, Emancipation

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO...................................................................................................................11

INTRODUÇÃO........................................................................................................................13

PARTE I – CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS...................................17

1.1. Considerações Teóricas..........................................................................................17

1.1.1. Identidade: Concepção teórica de Ciampa..........................................................18

1.1.2. Influências Filosóficas.........................................................................................20

1.1.3. Emancipação.......................................................................................................21

1.1.4. Comunidades Virtuais: um recorte importante...................................................26

1.1.5. Identidade no Mundo Virtual..............................................................................29

1.2. Considerações Metodológicas................................................................................35

PARTE II – DISCUTINDO UMA HISTÓRIA DE VIDA: ARTICULANDO TEORIA E

PRÁXIS....................................................................................................................................40

2.1. Identidade Virtual no Mundo da Vida....................................................................41

2.2. Comunidades Virtuais: Agentes Potencializadores de Emancipação ...................54

2.3. Questões de Pertencimento....................................................................................56

2.4. Questões de Solidariedade.....................................................................................59

2.5. Questões de Estigmas.............................................................................................62

2.6. Questões Assincrônicas: Temporalidade, Espacialidade e Sociabilidade, sem

fronteiras........................................................................................................................69

2.7. Emancipação: um salto qualitativo........................................................................73

PARTE III – Análise Crítica.....................................................................................................78

3. Crítica e Contra crítica..............................................................................................78

3.1. As comunidades Estéticas (Bauman) e Comunidades Potencializadoras

(Castells)........................................................................................................................81

3.2. Controvérsias entre o real (Baudrillard) e o virtual (Lévy)....................................83

3.3. Crítica social à realidade contemporânea...............................................................87

CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................93

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................................96

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APRESENTAÇÃO

Nesta breve apresentação pretendo fornecer algumas informações que certamente

influenciaram minha opção por esta pesquisa sobre a participação de jovens em comunidades

de relacionamento virtual. Minha história começa como a de muitos outros. Sou filho de

nordestinos que vieram para São Paulo em busca de melhores condições de vida. Somos uma

família com 10 irmãos, filhos de pais analfabetos que sempre valorizaram mais o trabalho do

que os estudos (como se estudo e trabalho fossem coisas opostas).

Em muitos aspectos minha história lembra a história da “Severina” personagem

principal da pesquisa de Ciampa (1987). A identificação com a personagem e suas

metamorfoses foi imediata, de forma que a história de Severina mostra muito da minha

história. Também fui “criança-sem-infância”, porque tinha que trabalhar na roça e/ou cuidar

dos irmãos; um “adolescente-problemático”, porque as vezes ainda sou gago e isso gera

grandes conflitos em um adolescente. Tendo aprendido que o importante é trabalhar e

sofrendo bulling (na época nem sabia que existia isso) na escola, ser o “gaguinho-orelhudo”

não era legal e logo era o “jovem-trabalhador” (agora formalmente), fora da escola.

Nem tudo foi “tragédia grega”, meus pais sempre foram pessoas boas, honestas, que

deram a vida para criar seus filhos. As metamorfoses continuaram e já adulto voltei a estudar,

voltei a ser estudante, fui um teólogo-cristão, depois psicólogo, motoqueiro, hoje sou um

orientando e aqui estou, de metamorfose em metamorfose em busca do título de Mestre, mais

um fragmento de emancipação na minha vida e pretensão identitária.

Com isso penso ter ajudado a entender porque vim parar no Núcleo que estuda a

Identidade como Metamorfose, na PUC SP, orientado por Ciampa.

Vamos lá, o trabalho é sobre relacionamentos em comunidades virtuais. Meu interesse

específico por relacionamentos virtuais veio da observação em trabalhos voluntários com

jovens e adolescentes da comunidade (não virtual). Tive o privilégio de acompanhar duas

gerações de adolescentes e observar muitas diferenças entre duas gerações em tão pouco

tempo. Foi quando percebi as influências e a intensificação do virtual na vida das pessoas. Em

princípio imaginei uma influência negativa, visto que faltava o olhar do outro, o toque, a voz,

o cheiro e demais características dos encontros presenciais; imaginei que isso poderia gerar

anomalias sociais.

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Ao tomar conhecimento dos índices de crescimento de pessoas que utilizam

sistematicamente a internet e sobre pesquisas que falam sobre “Índice de Massa Virtual” e

sobre “Dieta Virtual” (Rondon House – Boston, EUA, 2012), não tive mais dúvidas, estamos

diante de algo maior do que um modismo, mas de transformações sociais importantes porque

é um fenômeno social de dimensão global. Estamos vivendo outras formas de sociabilidade,

marcadas pela intensificação do virtual no mundo da vida das pessoas. Em nenhum momento

da história concebeu-se um fenômeno que tivesse desencadeado tamanha mudança na

organização social, permitindo a globalização da economia, das relações de trabalho, dos

interesses políticos e a interação entre indivíduos e grupos em tempo real.

Percebi, na minha prática social, como psicólogo, que estava diante um novo sujeito

que me fazia questionar como seria a dialética sociedade-indivíduo influenciada pela

realidade do mundo virtual. A questão inicial era vista como um grande problema, não

concebia outra conseqüência para as relações virtuais senão indivíduos, solitários,

individualistas e uma sociedade de misantropos. Contudo, já nas primeiras leituras e

conversas preparatórias para as entrevistas, foi possível enxergar outras possibilidades.

É importante destacar que optei por manter certa distância das comunidades virtuais

para evitar qualquer viés em minhas interpretações; meu envolvimento limita-se ao necessário

para a pesquisa, ou seja, conversei e observei pessoas, me apropriei de conceitos teóricos, mas

em todo tempo mantive uma postura de pesquisador e não de usuário sistemático das

comunidades virtuais. Alguns pesquisadores mantêm envolvimento tácito com seus objetos de

pesquisa o que pode levar a um viés em suas pesquisas. Minha opção se justifica porque,

como veremos no relato da pesquisa, meu interesse está na atividade do indivíduo e em novas

formas de sociabilidade com a intensificação do virtual na vida e identidade dos indivíduos.

Dada a magnitude do tema não pretendo analisar todos os aspectos envolvendo as

possibilidades do virtual na sociedade. Considero que minha contribuição aos estudos está

relacionada à discussão sobre a existência de uma comunidade transnacional chamada virtual

e suas conseqüências no processo identitário à luz do sintagma Identidade-Metamorfose-

Emanciapação de Antonio da Costa Ciampa (1987).

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INTRODUÇÃO

As relações entre os homens, o trabalho, a própria inteligência dependem, na verdade, da metamorfose incessante de dispositivos informacionais de todos os tipos. Novas maneiras de pensar e de conviver estão sendo elaboradas no mundo das telecomunicações e da informática. (LÉVY, 1994 p. 04)

A primeira vez que conversei com um jovem sobre os relacionamentos virtuais fiquei

espantado ao saber que esta nova geração passa horas ou noites inteiras conversando e até

namorando em comunidades virtuais. O espanto se fez preocupação quando alguns

começaram a deixar os encontros presenciais em virtude dos encontros virtuais. E a

preocupação se fez motivação para conhecer melhor esse fenômeno; foi quando percebi a

amplitude do que estava acontecendo e que teríamos aí um tema interessante para uma

pesquisa.

Até pouco tempo atrás termos como ciberespaço e mundo virtual eram usados como

metáforas, hoje trata-se de uma nova realidade com potencial para os mais diferentes níveis de

transformações sociais. Como sugerem as terminologias esse é um tema amplo e por isso

desde já fazemos nosso recorte - as comunidades de relacionamentos virtuais - e o objetivo é

compreender os processos de construção da identidade de indivíduos participantes de

comunidades de relacionamento virtual. Partimos da proposição de que essas comunidades,

baseadas na comunicação online, possuem novos padrões de relações sociais com novas

formas de interações humanas, pois atuam sem as limitações territoriais, espaciais e sociais,

característicos das comunidades offline tradicionais.

A revolução tecnológica traz em si elementos capazes de alterar as bases sociais,

econômicas, políticas e culturais da sociedade. Diversas mudanças tecnológicas aconteceram

em outros contextos históricos, como a televisão e o telefone, por exemplo, porém, nenhuma

delas tinha como matéria-prima a informação e a interação em tempo real como a internet.

A internet, com seu potencial de alcance mundial, além de promover uma

reorganização das estruturas relacionais entre pessoas é um espaço de fluxos de relações

sociais. A emergência da realidade virtual promove transformações sociais a uma velocidade

como jamais aconteceu. Segundo Castells (2003), estamos diante de uma nova organização

social.

Esta nova forma de organização social, dentro da sua globalidade que penetra em todos os níveis da sociedade, está a ser difundida mundialmente tal como o capitalismo industrial e o seu inimigo gêmeo, o estatismo industrial (p. 22).

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Diante de tais transformações não é possível negar a realidade das novas condutas e a

necessidade de novos referenciais para compreender a construção dos processos envolvendo o

conceito de identidade, individual e coletiva. Dentro das comunidades o impacto das novas

mídias é decisivo; as identidades que eram construídas com seus espaços territoriais limitados

e socialmente definidas, hoje são construídas em espaços desterritorializados de forma

assincrônica.

Estudos recentes têm mostrado que atividades dos usuários de comunidades virtuais

não devem ser vistas como simples passa tempo. Anderson (2002, p.129), afirma: “as pessoas

ficam envolvidas, e vivem uma parte importante da vida nesses contextos”. São, na verdade,

fenômenos psicológicos que envolvem a manifestação de diferentes facetas da identidade dos

sujeitos para cada papel criado no mundo virtual, com o potencial de serem oportunidades

significativas de auto-realização, aprendizado e autonomia.

Eu não apenas habito nas minhas comunidades virtuais, mas, na medida em que eu carrego comigo as conversações na minha cabeça e começo a misturá-las com a vida real, essas comunidades virtuais habitam na minha vida (Rheingold, 1996, apud ANDERSON, 2002, p. 130).

Segundo Ciampa (1995), a atividade social metamorfoseia o real e cada uma das

pessoas. Essa é a perspectiva usada pela Psicologia Social e que adotamos para compreender

identidade, a perspectiva sócio-histórica. Uma das maiores autoridades em identidade virtual

Sherry Turkle, diz: “as comunidades de relacionamentos virtuais oferecem um contexto novo

e impressionante, no qual pensar sobre a identidade humana na era da internet” (1995, p.

267). Castells diz que “estão emergindo online novas formas de sociabilidade e novas formas

de vida urbana, adaptadas ao nosso novo meio ambiente tecnológico” (CASTELLS, 2003, p.

443).

Em um mundo marcado pela falta de sentido a busca da identidade social, atribuída ou

conquistada, torna-se fonte básica de significado social.

A busca pela identidade não é algo novo, no entanto, a identidade está se tornando a principal e, às vezes, única fonte de significado em um período histórico caracterizado pela ampla desestruturação das organizações, deslegitimação das instituições, enfraquecimento de importantes movimentos sociais e expressões culturais efêmeras. Cada vez mais as pessoas organizam seu significado não em torno do que fazem, mas com base no que elas são ou acreditam que são. Enquanto isso, as redes globais de intercâmbios instrumentais conectam e desconectam indivíduos, grupos, regiões, de acordo com sua pertinência na realização dos objetivos processados na rede, em um fluxo contínuo de decisões estratégicas. Segue-se uma divisão fundamental entre o instrumentalismo universal e as identidades particulares historicamente enraizadas (CASTELLS, 2006 P.42).

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Os efeitos práticos da realidade virtual na vida e identidade das pessoas são

inquestionáveis, porém as consequências são alvos de críticas e muitas divergências. Críticos

sociais, como Mark Slouka e Jean Baudrillard condenam o que chamam de desumanização

das relações sociais, pois, para eles a vida online parece ser uma maneira fácil de fugir da vida

real. Para esses, a internet aumenta as possibilidades de solidão, alienação e até mesmo

depressão. E falam até em um colapso da comunicação social e da vida familiar, na medida

em que indivíduos sem face praticam uma sociabilidade aleatória, abandonando ao mesmo

tempo interações presenciais em ambientes físicos (CASTELLS, 2006).

Outros, como Pierre Lévy (2007), entendem a produção no ciberespaço como um

elemento importante de uma sociedade em transformação na qual o virtual articula com toda a

vida social, marcada pela ruptura dos limites espaço-temporais e desterritorialização. Para o

autor, o virtual é exercício da criatividade, uma característica da própria comunicação e

expansão do universo. Divergindo visceralmente, Baudrillard (1997), compreende o virtual

como sendo o esvaziamento do real e diz que estamos diante da fragmentação das cidades

modernas, ao desintegrar as funções sociais responsáveis pela compreensão absoluta do

tempo. Para ele o virtual é o reino da indiferença, isto é, o fim da capacidade de estabelecer

diferenças.

A potência do “virtual” nada mais é do que virtual. Por isso, aliás, pode intensificar-se de maneira alucinante e, sempre mais longe do mundo dito “real”, perder ela mesma todo princípio de realidade.(...) Mesmo os capitais especulativos não saem quase da própria órbita: amontoam-se e não sabem sequer onde se perder no próprio vazio especulativo. No tempo histórico, o acontecimento ocorreu e as provas estão aí. Mas não estamos mais no tempo histórico; doravante estamos no tempo real, e, no tempo real, não há mais prova de nada. (BAUDRILLARD, 1997, p. 72-73).

Mais do que apresentar divergências, as diferentes posições suscitam questionamentos

importantes para o estudo da identidade humana, tais como: O que dizer sobre a pessoa que se

mostra online (identidade nickname) e a pessoa que se mostra face a face? As identidades

virtuais encontram sentido no mundo presencial? Será, a realidade virtual, uma expansão ou

uma cisão do Eu? Trata-se de duas realidades ambíguas – real e virtual – ou realidades

complementares? Como essas duas realidades – real e virtual – se comunicam e se processam

no mesmo indivíduo?

É provável que a pesquisa não apresente todas as respostas e não temos essa pretensão.

Nosso objetivo é, partindo do pressuposto de que os relacionamentos virtuais afetam

diretamente o sujeito, verificar em que medida as comunidades de relacionamentos virtuais

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influenciam e potencializam o processo identitário de seus participantes. Para isso vamos usar

como principal subsídio teórico a proposta de Antonio da Costa Ciampa de que Identidade é

Metamorfose. Vamos, à luz do relato de história de vida, compreender sentimentos, conflitos

e comportamentos de usuários de comunidade virtual tendo a teoria de construção da

identidade de Ciampa como referencial.

A dissertação divide-se em três partes. Na primeira apresenta-se a teoria de identidade

baseada na concepção teórica de Ciampa, suas influências e as principais considerações

metodológicas da pesquisa. Na segunda é feita uma aproximação entre teoria e práxis;

conceitos teóricos e relatos da história de vida são confrontados e analisados na tentativa de

compreender como as comunidades de relacionamento virtual influenciam no processo

identitário de seus participantes. Na terceira e última parte procura-se apresentar uma análise

critica e contra-critica sobre as possibilidades e potencialidades das comunidades de

relacionamento virtual em que apresentamos uma discussão sobre a realidade contemporânea

e por fim as considerações finais.

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PARTE I – CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS

1.1. Considerações Teóricas

Esta primeira parte do trabalho pretende apresentar a concepção teórica de Identidade

de Ciampa, suas principais influências durante sua trajetória de pesquisas e a metodologia

utilizada.

A importância conferida ao estudo da identidade, assim como sua conceituação, varia

ao longo da história; ora atribuindo maior relevância à individualidade e às expressões do Eu,

ora voltando-se mais para o coletivo; contudo, nunca deixou de ser uma questão importante.

O desafio para nosso momento histórico está relacionado às novas possibilidades atribuídas

ao indivíduo e às novas configurações e possibilidades de sociabilidade.

Provavelmente estamos vivendo o momento de maior fluidez das relações humanas.

Não há setor ou aspecto da humanidade que não tenha sofrido transformações. Até mesmo

paradigmas como o tempo e o espaço adquirem novos conceitos. Os espaços únicos foram

deixados para trás, agora co-habitamos espaços diferentes ao mesmo tempo, deixamos a

limitação de conviver com uma comunidade de cada vez, para interagir com diversas

comunidades ao mesmo tempo. As novas tecnologias, como a internet, possibilitam e

disponibilizam, graças à realidade virtual, espaços em que o distanciamento espacial não mais

implica o distanciamento temporal. Castells (2000), que será uma referência importante em

nossas discussões, diz:

O tempo é apagado no novo sistema de comunicação já que o passado, presente e o futuro podem ser programados para interagir entre si na mesma mensagem. O espaço de fluxos e o tempo intemporal são as bases principais de uma nova cultura, que transcende e inclui a diversidade dos sistemas de representação histórica transmitidos: a cultura da virtualidade real, onde o faz-de-conta vai se tornando realidade (p.397).

As comunidades virtuais têm se apresentado como uma realidade na sociedade e uma

nova forma de apresentação do “eu” na vida contemporânea. Bauman (2003a) sugere que na

modernidade tem emergido um novo tipo de comunidade em substituição às comunidades de

conteúdo ético, essas são chamadas por ele de comunidades estéticas. Pierri Lévy, (2007) diz

que a internet inventou um novo objeto, uma maneira inédita de fazer sociedade inteligente e

o que se refere a isto, provavelmente ainda não se viu nada igual.

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Estamos diante de novas representações sociais que podem alterar o processo de

individuação e consequentemente potencializar novos comportamentos que podem ser

emancipatórios ou não. A internet está rompendo fronteiras em todos os níveis, levando o

conhecimento com um click e o que era mascarado ou proibido está sendo revelado

provocando transformações sociais importantes na vida das pessoas. Hoje está mais fácil

indivíduos de todas as classes sociais terem acesso à informação e à comunicação, fatores

importantes na luta pela emancipação.

Não se trata apenas da internet e seu universo virtual com a interação multimídia, são

inúmeros os indícios de que estamos vivenciando uma época limítrofe, um corte na história;

uma passagem de certo regime de poder para um outro projeto político, sociocultural e

econômico. Essas transformações atingem também as formas de ser e estar no mundo. A

relevância de uma pesquisa, com o enfoque da Psicologia Social, é significativa porque, como

foi dito, estamos diante de novas concepções de tempo e espaço e consequentemente novas

formas de subjetividades que se desenvolvem no processo identitário das pessoas.

1.1.1. Identidade: Concepção teórica de Ciampa

Feitas essas considerações preliminares vamos apresentar o arcabouço teórico da

pesquisa que está firmado na perspectiva proporcionada pelo sintagma Identidade-

Metamorfose-Emancipação, desenvolvido por Antonio da Costa Ciampa (2008, 1998, 1995,

1987), que constitui a principal base teórica e para o desenvolvimento deste estudo. Para o

autor a questão da identidade está fundamentada na dialética; não existe uma identidade dada

pela natureza. A identidade é um processo que é construído e conhecido pela ação do

indivíduo.

Ciampa inicia sua teoria sobre identidade a partir de perguntas como: “quem sou

eu?”, “o que pretendo ser?” ou “quem é você?”. Segundo o autor essas são questões

fundamentais para se conceituar identidade, pois revelam como nos apresentamos uns aos

outros e a nós mesmos. As respostas revelam características das pessoas assim como suas

habilidades, seus papéis sociais, seu grupo familiar, personagens vivenciados, etc.

Para o autor, as perguntas que norteiam sua perspectiva de construção do processo de

identidade se justificam porque identidade é relacional e histórica; é um processo de interação

e transformação humana; não pressupõem uma identidade estabelecida ou fixa. Como

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psicólogo social Ciampa entende que “... é necessário vermos o indivíduo não mais isolado,

como coisa imediata, mas sim como relação” (1995, p.133).

Nesta perspectiva, a identidade é vista como processo e, por conseguinte, movimento

que demanda um sentido à constante atividade de “ser - humano”. Reconhecido que o sujeito

da identidade se concretiza como metamorfose, tal conceito passa a garantir um olhar para a

complexidade do movimento humano, cuja performance identitária o situa na intersecção de

sua história de vida e seu projeto de futuro. O que não se pode perder de vista é que uma

identidade é sempre uma representação substantiva de um fazer-se verbo (CIAMPA, 1995).

Outros teóricos já tratam de atualizar o conceito de identidade, originalmente proposto

por Ciampa em 1986, deixando de lado concepções fixas. Hoje é comum conceitos como

Identidades fluidas (GOFMAN, 1998); Modernidade Liquida (BAUMAN, 2005); Identidade

Múltipla (TURKLE, 1997); Identidades Partilhadas (HALL, 1998); Identidade Saturada

(KENNETH GERGEN, 1993); Identidades Flexíveis (EMILY MARTIN, 1994), etc.

É certo que todos dependem de condições naturais que garantem o desenvolvimento

da humanidade (humanização), ou seja, não é nada sobrenatural, tendo as condições naturais

há a autoprodução humana graças à sociedade. A identidade se dá por aspectos que nos

assemelham e por aspectos que nos diferenciam, processos em que “internalizamos aquilo

que os outros nos atribuem de tal forma que se torna algo nosso” (CIAMPA, 1995: p.131).

Como pessoas humanas somos iguais e como indivíduos absolutamente diferentes. É um

movimento dialético de dar e receber; um processo em que a identidade se revela num jogo

complexo e contínuo de aparências, representações e reconhecimentos.

Ainda segundo Ciampa, a identidade está em constante transformação, não é produto

acabado é uma produção constante e inacabada.

...uma vez que a identidade pressuposta é reposta, ela é vista como dada – e não como se dando num contínuo processo de identificação. (...) De certa forma, reatualizamos através de rituais sociais uma identidade pressuposta que assim é reposta como algo já dado, retirando em consequência o seu caráter de historicidade (...). (...) logo a mesmice de mim é pressuposta como dada permanentemente e não como reposição de uma identidade que uma vez foi posta

(CIAMPA, apud LANE, 1984, p.66-67).

Quando alguém tem um filho é identificado como pai, contudo, ao mesmo tempo ele é

filho também; dessa forma cada papel social determina o indivíduo, fazendo com que este seja

uma unidade da multiplicidade em cada momento de sua existência. Quando está diante do

filho, é pai, e quando está diante do pai, é filho. Desta maneira desenvolve-se uma rede de

representações nas relações, onde cada identidade reflete outra identidade. Identidade é

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movimento, é desenvolvimento do concreto. Identidade é metamorfose. É sermos o Um e um

Outro, para que cheguemos a ser Um, numa infindável transformação (CIAMPA, in LANE

1984, p.74).

1.1.2. Influências Filosóficas

Alguns autores, em especial, contribuem para a conceituação teórica de Ciampa e

deste trabalho, dentre eles vamos destacar George Herbert Mead, que discute o conceito e a

importância da mente para a Psicologia Social e Jurgen Habermas, que por sua vez, é

influenciado por Mead.

Mead foi um filosofo americano interessado em ciências biológicas e sociais. Teve

influências de Wundt, Kant, Marx e Hegel. Já em 1900 falava sobre Psicologia Social, quando

a Psicologia tornava-se ciência (behaviorista), ele se contrapõe a ideias correntes e diz que

self não é algo inato, é formado socialmente. “A mente é construída pela comunicação,

através da experiência” (MEAD, 1934, p. 50, apud LIMA, S. 2007). Não existe self sem

sociedade; não existe ‘eu’ sem ‘nós’ ou nós sem ‘eu’. O self compreende uma noção reflexiva

em que o outro está implícito. Para o autor, o self é uma instância cognitiva e social que

permite movimentos de autonomia do indivíduo diante do controle imposto pela ordem social

e a capacidade na tomada de decisões no campo social e político.

Para a pesquisa que trabalha com a noção de identidade virtual, o conceito de self

como algo que emerge da interação social é muito importante, visto que é quando assumimos

o papel do outro e de nós mesmos, de forma dialética, é que o indivíduo e a sociedade

constituem-se mutuamente.

Mead chama de “outro generalizado” a comunidade organizada que dá ao indivíduo

sua unidade do self e afirma que é “na forma do outro generalizado que o processo influencia

o comportamento dos indivíduos envolvidos e a comunidade exerce controle sobre a conduta

de seus membros” (MEAD, 1967, p.154 e 155, apud LIMA, S., 2007, p.14).

Para o teórico, a mente pode ser compreendida em duas dimensões – pública e privada

e somente o indivíduo pode acessar. Ele entende que a consciência é natural e possível de ser

estudada. Ao pensar nessas duas dimensões, que também podemos chamar de interno e

externo, o autor vê a possibilidade de compreender a experiência individual: o ato social e os

gestos; o primeiro pensado como sua experiência interna que se constrói no social e o segundo

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com uma função adaptativa, ou seja, que os gestos com uma função adaptativa possibilita a

adaptação dos indivíduos na interação social (BAZILLI, 1998).

Outro autor importante que influencia os estudos de Ciampa, é Habermas. O filósofo

alemão diz que a socialização se dá como resultado de uma prática comunicativa cotidiana.

Habermas. Para o autor o conceito de identidade do Eu assume uma perspectiva que parte da

observação do Eu infantil e gradualmente entra nas estruturas gerais do agir comunicativo, e

por meio destas estruturas, adquire sua competência interativa, a consistência e a autonomia

do agir. E pode ser confirmada na

...capacidade que tem o adulto de construir, em situações conflitivas, novas identidades, harmonizando-as com as identidades anteriores agora superadas, com a finalidade de organizar – numa biografia peculiar – a si mesmo e às próprias interações, sob a direção de princípios e modos de procedimentos universais (HABERMAS, 1983: p. 70).

Para o autor as ações de fala, quando resulta em entendimento, contribuem para a

tradição e dá continuidade à sabedoria cultural. Sob o aspecto da socialização, contribui para a

formação e a manutenção de identidades pessoais. Assim pelo agir comunicativo, as pessoas

de uma comunidade, que agem moralmente, podem encontrar consenso em uma comunidade

que se comunica.

Habermas se diz convencido de que uma moral universalista, “que considere como racionais as normas universais (e os interesses capazes de generalização), pode ser defendida com bons motivos; e de que somente o conceito de uma identidade do Eu, que assegure ao mesmo tempo liberdade e individualização da pessoa singular no interior de complexos sistemas de papéis, pode fornecer hoje, aos processos educativos, uma orientação capaz de obter consenso”(HABERMAS, 1983, in LIMA, S. 2007, p. 23)

Por isso a progressiva concretização de uma identidade humana será sempre, antes de

mais nada, uma questão política, conclui Ciampa (1995, p.216).

1.1.3. Emancipação

Ainda em busca de conceituar termos importantes para a pesquisa vamos, agora, tratar

do conceito de Emancipação que será usado na pesquisa. Para essa discussão sobre a

possibilidade de emancipação por meio das comunidades de relacionamento virtual vamos

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recorrer, principalmente, à escola de Frankfurt, mais especificamente a Marx, Habermas e

Horkheimer.

Como outros dicionários de língua portuguesa, o Aurélio traz: Emancipação – do lat.

Emancipationes – ação ou efeito de emancipar-se: alforria; libertação. O dicionário

etimológico define o verbo emancipar como eximir do pátrio poder ou da tutela. Tom

Buttomore, no dicionário Marxista (p.123), diz que o conceito de emancipação está

estreitamente relacionado à concepção de liberdade.

Os marxistas tendem a ver a liberdade em termos da eliminação dos obstáculos da emancipação humana, isto é, ao múltiplo desenvolvimento das possibilidades humanas e a criação de uma forma de associação digna da condição humana. (BUTTOMORE, 1988, p.124).

Esta é uma perspectiva liberal marxista herdeira de pensamentos de filósofos como:

Spinoza, Rousseau, Kant e Hagel. É, também, a perspectiva que vamos adotar, ou seja,

analisar como as comunidades de relacionamento virtual atuam como agentes supressores de

dificuldades, internas e externas, eliminando obstáculos como a coerção, opressão e

interferência do “outro” na identidade. O “outro” que às vezes é visto como o Estado, mas que

também pode ser a própria sociedade que muitas vezes dificulta o processo de humanização

ao inibir as possibilidades e/ou capacidades humanas para ser e agir com maior autonomia e

liberdade em busca de emancipação.

Em termos práticos a realidade virtual pode ser compreendida como uma possibilidade

de rompimento com essa ação do Estado. Um jovem que busca na realidade virtual

mecanismos potencializadores de sua autonomia está lutando por emancipação. Como vimos,

na internet, temporalidade, espacialidade e sociabilidade têm suas possibilidades aumentadas,

o que torna mais acessíveis e possíveis movimentos de emancipação humana. É a ruptura de

certos limites da realidade presencial em tempo e local únicos.

Na obra de Marx, emancipação humana pode ser entendida como autodeterminação,

desenvolvimento pessoal e intelectual do ser humano; é voltada mais para si mesmo. É isso o

que os jovens estão encontrando nas relações em comunidades virtuais, porque são locais em

que a interferência e a coerção inibidora são minimizadas. Nas relações virtuais as pessoas

sentem-se mais livres para ser e agir, o que facilita o processo de superação da ordem social

de um sistema consolidado. Em termos marxistas estamos falando em sair do Estado de tutela.

É por este caminho que pretendemos seguir. As comunidades de relacionamento virtual

permitem o exercício da criatividade, permitem experimentar novas possibilidades de si

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mesmo e com isso romper barreiras que dificultam a emancipação humana. Para Marx

somente quando o homem individual real recupera em si o cidadão abstrato, é que então se

processa a emancipação humana (MARX, 1975). As limitações impostas pelo que lhe é

atribuído dificultam o processo emancipatório.

O conceito de emancipação humana também está presente na obra de Ciampa (1995),

na história de Severina, quando ele faz referência ao “bicho-humano que sempre esteve

presente, querendo ser ele-mesmo, o que diz quando começa a se reconhecer humano. (...) A

transformação das determinações exteriores em autodeterminação” (p.144). Para o autor

“ todo esforço de autodeterminação (mesmo que não plenamente concretizada) sem a ilusão

de ausência de determinações, pois o ser humano é matéria... A autodeterminação supõe

finalidade” (p. 145); ou seja, na luta para ser ela mesma, Severina alcança fragmentos

importantes de emancipação, começa a se reconhecer como humano.

Habermas, herdeiro do pensamento marxista, também trabalha com o conceito de

emancipação humana, mas prefere falar em fragmentos de emancipação, para ele liberdade,

autonomia e maioridade são fundamentais “... a emancipação é a capacidade de construir

novas identidades a partir das identidades rompidas ou superadas e de integrá-las de tal modo

com as velhas” (HABERMAS, 1987, p.141).

A importância das ideias de Habermas para a pesquisa consiste, principalmente, em

sua luta pelo fim da opressão e da coerção nas questões que circundam a comunidade,

propondo uma política mais participativa e igualitária, onde todos os cidadãos possam ter uma

sociedade mais justa. Essa forma defendida por Habermas é possível pelo “agir

comunicativo” que se expressa nas ações de fala e nos discursos.

Para Habermas (1987), na ação comunicativa ocorre a coordenação de planos de dois

ou mais atores via assentimento a definições tácitas de situação. Essa é uma visão que não

pode ser reduzido ao mero diálogo. Mas de fato a ação comunicativa pressupõe uma teoria

social - a teoria do mundo da vida - e contrapõe-se à ação estratégica, regida pela lógica da

dominação, na qual os atores coordenam seus planos no intuito de influenciar, não

envolvendo assentimento ou dissentimento. Segundo o autor, duas esferas coexistem na

sociedade: o mundo da vida e a ordem sistemica (mercado e burocracia). Esta refere-se à

'reprodução material', regida pela lógica instrumental (adequação de meios a fins),

incorporada nas relações hierárquicas (poder político) e de intercâmbio (economia). O mundo

da vida é a esfera de 'reprodução simbólica', da linguagem, das redes de significados que

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compõem determinada visão de mundo, sejam eles referentes aos fatos objetivos, às normas

sociais ou aos conteúdos subjetivos.

A Internet acentua os conteúdos subjetivos e cria um espaço de interação diferente dos

anteriores, um espaço desterritorializado porque proporciona uma comunicação em tempo

quase que instantâneo e permite a interação de grande número de pessoas a grandes distâncias

umas das outras. Essa é a posição de Lévy (1996), quando diz que uma das grandes

características do processo de virtualização que ocorre em diversos campos (seja no corpo, na

linguagem ou na economia) é o de desterritorializar o presente, de trazer uma unidade de

tempo sem uma unidade de lugar. O virtual em sua visão seria o “deixar em aberto”, uma

abertura para a possibilidade, para a contingência ao invés da solução das questões. É nesse

espaço, e nesse presente desterritorializado, que vem surgindo novas formas de individuação e

mostram-se um importante aliado na luta pela emancipação humana.

O terceiro autor que destacamos, nesta tentativa de conceituar emancipação, é Max

Horkheimer, um expoente da escola de Frankfurt, que foi diretor do Instituto de Pesquisa

Social e professor dessa cadeira na Universidade de Frankfurt.

O ideal de emancipação do homem enquanto sujeito racional é revitalizado pela crítica

de Max Horkheimer ao modelo de fundamentação da racionalidade contemporânea. O autor

faz, em seus escritos de 1937, uma crítica contundente à razão nos moldes do iluminismo,

porém, sem negá-la. Afirma que a crise da racionalidade se deu devido à forma como ela foi

historicamente conduzida e ao modelo de sociabilidade a que esteve associada, desde sua

origem. Em seu livro, Eclipse da Razão, ele questiona e critica a razão. Entretanto, insinua

que esse desterro da razão a uma posição subordinada, subjetivada, utilizada para meios, mas

não para fins, e sua redução a mero instrumento, afeta inclusive sua utilização até mesmo

como instrumento. Anula-se a razão, em nome da busca por novos interesses até então

desconhecidos (HORKHEIMER, 1985).

O conceito de teoria crítica de Horkheimer é constituído a partir do confronto com o

conceito de teoria tradicional e está presente uma concepção de razão que se dirige para a

emancipação, para a liberdade. O projeto emancipatório da teoria crítica pode ser

caracterizado, nas palavras de Horkheimer como “a teoria crítica que visa a felicidade de

todos os indivíduos, ao contrário dos servidores dos Estados autoritários, não aceita a

continuação da miséria” (1991, p.72).

O dito pessimismo de Horkheimer encontra-se em seu inconformismo com a situação

humana de escravização, seja de mitos, medos ou das pressões sociais em relação à própria

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construção de nós mesmos. Apesar disso, Horkheimer só faz a denúncia da razão por entendê-

la como um serviço à emancipação e felicidade humanas. Devido a isto, Horkheimer aponta

um caminho ao defender a razão objetiva, aquela que representa a essência e exige uma

atitude teórico-prática que parte da realidade existente e compromete-se com sua

emancipação. O mesmo ocorre com sua Teoria Crítica, que mesmo preocupada com a

realidade social existente, não conseguiu exercer a sua função enquanto práxis e inserir-se na

sociedade.

Horkheimer se dirige à razão que antes alicerçava e depois se vê presa ás artimanhas

da dominação, transformando-se em instrumentos desta. É uma crítica às conquistas da razão

iluminista. Para ele, a razão é sobremaneira emancipatória, e ao instrumentalizar-se nega o

seu fundamento. A crítica do autor visa repensar a própria racionalidade, resgatando o

significado de orientar-se pela razão. Parte de uma suspeita lançada sobre as condições de

vida a que estão sujeitos os Homens, onde “... a humanidade, em vez de entrar em um estado

verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova barbárie” (HORKHEIMER &

ADORNO, 1985, p.11).

Sua Crítica tem como propósito reavaliar as conquistas e autonomia da humanidade. O

projeto emancipatório que Horkheimer desenvolve parte da constatação de que a sociedade

está contaminada por mecanismos e artimanhas que mascaram a visão da realidade. Conceito

esse bastante discutido quando falamos em mundo real e realidade virtual como realidades

complementares e não contraditórias.

Ainda que o autor não estivesse referindo-se à realidade virtual de nossos dias,

acredito que sua crítica é atual e potencializa a crítica que se faz hoje sobre formas de

dominação e artimanhas para mascarar e manipular a realidade das pessoas. Desde o século

passado a história tem mostrado-se testemunha da crítica de Horkheimer e como diz Ciampa

(1995) “...somos todos história-encarnada e linguagem-corporificada. Isso possibilita essa

primeira emancipação, porque o ser humano nasce da síntese, natureza cultura, deixando de

ser apenas animal, passando a ser humano”.

A história que está sendo construída hoje aponta para uma realidade objetiva

potencializada pela realidade virtual. A sociedade tem mais uma ferramenta em sua luta

emancipatória – as comunidades de relacionamento virtual.

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1.1.4. Comunidades Virtuais: um recorte importante

O terceiro conceito importante a ser explicitado neste capítulo é de Comunidade

Virtual.

O ciberespaço é definido como um novo meio de comunicação identificado não

apenas por sua infra-estrutura mundial da comunicação digital, mas também pelo universo

oceânico de informações que ele abriga, assim como os indivíduos que navegam e alimentam

esse universo. É neste ciberespaço que se criam as comunidades virtuais (LÉVY, 1999, 2007).

O conceito de Comunidade virtual a ser utilizado na pesquisa é o de que comunidade

virtual é um grupo de pessoas que estabelecem entre si relações sociais por tempo suficiente

para que elas possam constituir relações contínuas; por meio da comunicação mediada por

computador (RECUERO, 2009).

O termo comunidade é uma construção sociológica que evoluiu, por meio dela, de um

sentido quase ideal de família, comunidade rural, passando a integrar um maior conjunto de

grupos humanos com o passar do tempo (GARBIN, 2001). Ainda segundo a autora, citando

Oldenburg (1999) e Rheingold (1996), com o advento da modernidade e da urbanização,

principalmente, as comunidades rurais passaram a desaparecer, cedendo espaço para as

grandes cidades. Com isso, a ideia de comunidade como sendo concebida como um tipo rural,

ligado por laços de parentesco em oposição à ideia de sociedade, parece desaparecer, não da

teoria, mas da prática. Rheingold (1996) diz que através do advento da comunicação mediada

por computador e sua influência na sociedade e na vida cotidiana, as pessoas estariam

buscando novas formas de conectar-se, estabelecer relações e formar comunidades.

As comunidades virtuais são agregados sociais que surgem da Rede [Internet], quando uma quantidade suficiente de gente leva adiante essas discussões públicas durante um tempo suficiente, com suficientes sentimentos humanos, para formar redes de relações pessoais no espaço cibernético [ciberespaço] (RHEINGOLD, 1996, p. 20).

Assim, um dos pontos em comum entre os diversos tipos de comunidades, virtual ou

não, é o compartilhamento de informações, conhecimentos, interesses e esforços em busca de

objetivos comuns. Portanto, uma comunidade virtual é um tipo de relacionamento entre

pessoas com objetivo comum, fortalecido pela identidade coletiva entre os membros deste

grupo social, formado e efetivado num ambiente virtual.

Ao falar sobre comunidade virtual estamos falando de uma nova era, o ciberespaço,

cuja experiência vem alterando dimensões até então consideradas fundantes de novos

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conceitos de comunidade. Não há mais necessidade de uma interação presencial, ou de se

estar num mesmo território geográfico, para que se realize um processo comunitário. A

realidade no mundo virtual das comunidades passa a ser um modo de existência, um modo de

relação, aquele desterritorializado geograficamente, mas não uma forma única e independente

de existência, pois é unida em torno de especificidades concretas e com vínculos que

extrapolam o espaço virtual, especialmente aquelas de interesse social. As relações, no caso

das redes de interesses sociais, perpassam o simbólico e se conectam à vida cotidiana.

Estamos diante de um espaço social emergente, um espaço alternativo no qual as

pessoas trabalham, divertem-se, encontram-se e interagem constantemente. Formar e manter

comunidades sempre foi um dos principais objetivos do ser humano; essa é apenas mais uma

nova forma. A internet é um mecanismo potencializador que permite a persecução conjunta

de objetivos, de aprendizagem, de desenvolvimento, de evolução e de sobrevivência.

Para Rheingold (1996), o lar desdobrou-se em dois: o das relações entre o agregado

familiar e o da comunidade virtual disponível a quem participa das comunidades virtuais. Os

indivíduos buscam alternativas associativas que se reconstituem nas comunidades virtuais. As

comunidades virtuais

(...) implicam uma nova forma de ligação que passa a existir no meio de, ou entre, comunidades no espaço geossocial real, ligando-as e estendendo-as, trazendo mesmo comunidades reais para o seu contacto. Nesse sentido, a Net representa uma analogia do mundo, ou seja, é um lugar onde se constrói um espaço topográfico (interface), com lugares (sites) e os caminhos (path) que irão ser percorridos, até se chegar ao destino (RHEINGOLD, 1996 apud, SILVA, A. 2002).

Neste sentido uma comunidade virtual possui características de uma comunidade

chamada “real”, ou seja, de encontros face a face em espaço delimitado. As pessoas que se

comunicam num ambiente virtual interagem entre si, têm suas emoções afetadas

reciprocamente. As diferenças estão mais relacionadas ao espaço de encontro, a confiança, a

identidade e os interesses comuns se mantêm. O ciberespaço é uma construção social em que

pessoas co-habitam mundos online e offline ao mesmo tempo.

Os autores destacam diferentes características para definir comunidade; Silva A.,

(2002), citando Ávila (1975) diz que uma comunidade apresenta

(...) uma certa continuidade espacial, que permita contatos diretos entre os seus membros; a consciência da existência de interesses comuns, que permitem aos seus membros atingirem objetivos que não seriam alcançados individualmente; a participação numa obra, que sendo a realização desses objetivos é também uma força de coesão interna da comunidade (SILVA, A., 2002, p. 34).

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Mais recentemente, o dicionário Webster define comunidade como um corpo

unificado de indivíduos. De acordo com alguns escritores, a palavra é originária do latim

“Communis” que quer dizer comum. Communis, pode por sua vez originar as seguintes

combinações de palavras: Cum (junto) + munus (bens ou serviços). Aqui a palavra significa

pôr em comum bens ou serviços. Cum (junto) + unus (um). Podemos interpretá-la com o

sentido de unidade ou uno.

O conceito de comunidade virtual, tal como as comunidades presenciais, é um tanto

amorfo. Rheingold (1993), um dos primeiros a falar em comunidade virtual, diz que as

comunidades virtuais são agregações sociais que emergem na internet, quando as pessoas dão

continuidade a discussões, expressam seus sentimentos e formam redes de relações pessoais

no ciberespaço.

De acordo com Taylor (1982 apud SILVA, A. 2002 p. 36), o advento das novas

tecnologias da comunicação modificou a maneira como as pessoas olham para a comunidade.

As comunidades de relacionamento virtual não são apenas frutos da imaginação, nem seus

participantes são pessoas alienadas da realidade social e cultural; acontece, de fato, um

encontro social que reflete na comunicação, na relação de poder que se estabelece entre os

participantes.

Depois de pensarmos sobre o termo “Comunidade”, vamos agora tratar de fazer o

mesmo com o termo “virtual”. A etimologia da palavra “virtual” provém do latim virtualis

que significa força ou potência. Assim concordamos com Lévy (2007) para quem o virtual

opõe-se muito mais ao atual do que ao real. Para este autor o virtual se aproxima e se opõe,

como se haveria de pensar, à noção de concreto, que tem origem no termo latim com-crescere

e significa crescer junto ou condensar. Tal como a semente, virtual e concreto, denota aquilo

que contém uma tendência.

O virtual é associado, por muitos, à “não-realidade”, mas, segundo autores como,

Lévy e Castells, essa concepção não é adequada para se pensar o ciberespaço, e argumentam

que o virtual não se opõe ao real, mas sim que o complementa e transforma ao subverter as

limitações espaço-temporais que este apresenta. O virtual não é oposto do real, mas sim um

aspecto singular da própria realidade na qual categorias de espaço e tempo assumem

características diferentes. (LÉVY, 1999, 2007).

A nova realidade marcada pelo “intemporal” (CASTELLS, 2003) e pela superação de

um espaço limitado, constitui-se um novo mundo mediatizado, um suporte aos processos

cognitivos, sociais e afetivos, os quais afetam seus participantes que re-constroem as suas

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identidades e os seus laços sociais. Esses espaços criam novas formas de sociabilidade que

suscitam novos valores, que, por sua vez, reforçam as novas sociabilidades.

Teóricos como Berger e Luckmann (1997) entendem que as novas formas de relações

podem gerar um novo tipo de identidade, produto de uma realidade diferente da realidade

objetiva com a qual estamos acostumados, o que facilita a crítica tão importante para a

pesquisa em psicologia social. E Gilles Deleuze, ao se referir ao virtual, diz que o possível já

está todo constituído, mas permanece no limbo. O possível se realizará sem que nada mude

em sua determinação nem em sua natureza. É um real latente. O possível é exatamente como

o real: só lhe falta a existência. Para Deleuze a diferença entre possível e real é, portanto,

puramente lógica (LÉVY, 1996).

Em suma, queremos fechar essa parte do trabalho ciente de que pensar a identidade

como metamorfose em busca de emancipação por meio da potencialização do mundo virtual

consiste um exercício imprescindível para a pretensão de fazer uma Psicologia Social crítica,

em que conceitos teóricos encontrem bases sólidas na realidade do mundo da vida. Conforme

Silva, A. (2002), citando Watzlawick (1991:7), acreditamos que existem diferentes

perspectivas da realidade.

(...) acreditar que a nossa própria perspectiva da realidade é a única realidade, é a mais perigosa das ilusões e torna-se ainda mais perigosa se estiver associada a um zelo missionário de iluminar o resto do mundo, quer o resto do mundo deseje ser iluminado ou não (WATZLAWICK, 1991, apud SILVA A., 2002, p. 45).

Sobre os diferentes aspectos da realidade será tratado na segunda parte do trabalho,

onde será possível mostrar que em muitos aspectos a realidade virtual consiste em uma luta

em que os processos de desenvolvimento psicológicos são, muitas vezes, retomados e/ou

intensificados; mundo virtual como que repondo o mundo da vida.

1.1.5. Identidade no Mundo Virtual

(...) participamos de grupos de discussão, revelamos o que não temos coragem

para revelar pessoalmente, falamos de coisas “proibidas”, criamos personagens de

nós mesmos que jamais ousaríamos... somos aquilo que quisermos ser... somos

aquilo que fingimos ser. Reconstruímos nossa identidade do outro lado da tela.

(co-habitante de comunidade virtual)

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O conceito de identidade virtual será retomado e amplamente discutido na segunda

parte do trabalho, quando iremos pensar sobre a práxis, porém, faz-se necessário apresentar,

de forma preliminar, a construção social de identidade e perguntar: Podemos falar em

“Identidade no mundo virtual”?

Como geralmente acontece quando vamos conceituar, definir ou explicar algo novo

devemos partir do que já existe e/ou está estabelecido. Então vamos retomar o tema central –

Identidade – e perguntar: O que é Identidade? Como as pessoas constroem sua identidade?

Além do próprio Ciampa, autores importantes também ajudam a fundamentar e a

responder nossa questão central. Goffman (2004), diz que identidade é construída num

contato real cotidiano, que é a representação do Eu. Giddens (2002), afirma que toda

identidade é construída num processo de constante reflexividade. E Bauman (2005), trabalha

com o conceito de “mundo moderno-líquido”, para o autor as identidades tornam-se cada vez

mais passageiras e em constante mudança.

De certa forma esses autores seguem a teoria de Ciampa (1995), nossa referencia para

conceituar Identidade, quando diz que identidade é Metamorfose. O autor compreende

identidade como um processo que é construído e conhecido pela ação do indivíduo,

fundamentado na dialética das relações; é relacional e histórico, um processo de interação e

transformação humana. Para Ciampa (1995), identidade é sempre uma representação

substantiva de um fazer-se verbo; é um constante transformar-se.

Ciampa (1995), diz que para evitar o engano de pensarmos que a identidade sempre se

coloca de forma igual precisamos considerar a estrutura social e o momento histórico.

Partindo deste princípio ao considerar a estrutura histórica do mundo contemporâneo

observamos que, graças à tecnologia e à internet, existem novas estruturas sociais que são

potencializadas pela desterritorialização do espaço e pela forma assincrônica, até então

imutável. Essas são algumas características do momento histórico, marcado pela

intensificação da realidade virtual, que possibilita novas formas de sociabilização e que

certamente atua no processo identitário do indivíduo.

A observação de Ciampa pode ser demonstrada quando falamos da identidade no

mundo virtual. No mundo virtual a identidade não está, necessariamente, presa a conteúdos

historicamente predicados. No mundo da realidade virtual o sujeito apresenta-se como

representante de si mesmo, ele não precisa ficar preso a papéis que lhe foram predicados. É a

possibilidade de revelar parte de si mesmo não contida na identidade pressuposta. Com isso é

possível pensar em não “re(a)presentar, repor o presente” indesejado e assim expressar o

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outro outro que também sou Eu; a alterização da minha identidade. É a “metamorfose da

minha identidade, na superação de minha identidade pressuposta” (CIAMPA, 1995, p.180).

No caso de “Severina” a oportunidade de “sair do zero”, de fato (idem).

Pensar em identidade como processo dialético – indivíduo, sociedade – e não como

uma questão estática fruto de uma realidade concreta é algo que, durante a história, autores

consagrados já assinalaram quando pensaram o conceito de identidade. Em sua teoria

psicanalítica, Freud desempenhou um papel complexo no desenvolvimento histórico em torno

da questão da natureza unitária ou múltipla da identidade. Ele propõe uma visão

descentralizada do Eu. Outros teóricos como Jung, que trabalhou com a ideia de que o Eu é o

lugar de encontro de diversos arquétipos, encoraja o indivíduo a familiarizar-se com diversas

identidades e entendê-las como manifestações desses arquétipos universais. E, mais

recentemente, pesadores pós-estruturalistas como Lacan, para quem, segundo Turkle (1997),

os complexos encadeamentos de associações que constituem o significado para cada

indivíduo não conduzem a qualquer instância final ou nuclear.

Lacan insiste que o ego é ilusão. Com isto, ele estabelece a ponte entre a psicanálise e a tentativa pós-moderna de retratar o eu como um domínio discursivo, e não uma coisa real ou uma estrutura permanente da mente humana. (...) a internet é outro elemento da cultura do computador que contribui para encararmos a identidade como multiplicidade (TUKKLE, 1997, p.263).

Com a revolução tecnológica e as transformações sociais muitos conceitos e

possibilidades do Eu estão sendo revistos. Os discursos no ciberespaço sugerem que se podem

ampliar as possibilidades do Eu numa extensão tal que se pode recriar o Eu, conferindo-lhe

uma identidade virtual. A construção de identidade que aparece no ciberespaço pode ser

compreendida com outra face do Eu, ou, outra realidade – virtual - mas real. Não podemos

pensar em identidade virtual como distinta ou separada da identidade na realidade não virtual.

Vejamos, passo a passo, a consistência de falar em Identidade Virtual na teoria de Ciampa.

Identidade é processo. Se identidade (não virtual) é processo, quando falamos da

realidade virtual isso fica ainda mais explícito. No mundo virtual a identidade da pessoa inicia

com um nome (nickname) que o identifica e a partir daí inicia-se o processo de construção da

identidade fundamentada nas interações sociais do mundo virtual. Esse princípio atende ao

enunciado de Ciampa (1987) de que para compreender a identidade o primeiro passo é

responder a pergunta “quem sou?”. É uma forma como o indivíduo representa o Eu. As

demais informações sobre seu perfil nas comunidades virtuais constituem uma descrição do

indivíduo co-habitante da comunidade, uma forma de mostrar como se sente e/ou se vê, no

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momento. Nosso sujeito, como veremos, irá usar músicas, personagens e um nickname que,

segunda ela, descreve quem é, mas que pode ser mudado – metamorfoseando-se. Para

Bauman (2005), um indicativo de Identidade Líquida; para Goffman (2004), uma forma de

expressividade baseada em seu momento e para Giddens (2002), uma amostra de Identidade

como reflexividade.

Outros aspectos importantes usados para conceituar identidade na obra de Ciampa

(1987), também são encontrados na realidade virtual e corroboram com a hipótese de que

podemos pensar em identidade no mundo virtual.

O primeiro é que não podemos falar em identidade sem falar do “outro”, visto que

identidade é relacional. Nas comunidades de relacionamento virtual o principal objetivo é

relacionar-se com “outros” é encontrar alguém para interagir. A identidade é definida não só a

partir do que diz de si, mas a partir do “outro” que encontra na comunidade. O perfil virtual

do usuário é visto e compartilhado por outros. Meucci e Matuck (2005), falam sobre a

importância da alteridade e da definição dada pelos outros na internet. Segundo eles “a

definição, direta ou indireta, dado pelo outro é tão importante quanto o processo de

autodefinição. É o relato do outro que legitima, deslegitima, ou acrescenta qualidades ao

perfil do sujeito” (MEUCCI & MATUCK, 2005, apud MOCELLIN, 2007, p. 108). Esse é o

que acontece em uma comunidade virtual, encontramos relatos de amigos que compartilham o

perfil (“identidade”) postado na internet.

Outro autor que reforça esse aspecto é Habermas (1983), para quem a identidade surge

na e pela interação com os outros. Ciampa (1995), compartilha e discute amplamente essa

questão como veremos na segunda parte do trabalho, quando faremos a aproximação entre

teoria e práxis.

Identidade é histórica. O segundo aspecto importante a ser considerado sobre a

possibilidade de se pensar em identidade no mundo virtual é verificar sua realidade histórica.

Podemos pensar em identidade virtual como processo histórico?

Uma característica importante da identidade virtual é sua capacidade de se

metamorfosear, ou seja, são constantemente modificadas conforme seu operador. À medida

que elas são modificadas podemos estabelecer uma relação com o tempo – passado, presente e

futuro. Portanto, percebemos o mesmo princípio estabelecido para conceituar Identidade

(histórica), pode ser encontrado no mundo virtual. Nas comunidades virtuais reencontramos

amigos, fazemos novos amigos, somos confrontados, experimentamos emoções, enfim,

transformamos e somos transformados à medida que as relações acontecem.

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Identidade do Eu. O terceiro aspecto sobre identidade é a identidade virtual e o Eu. A

identidade virtual também pode ser compreendida como uma forma de construção do Eu. O

ciberespaço constitui-se um laboratório para a realização de experiências com as construções

e reconstruções do Eu (Turkle, 1997). Ao adotar um fake (perfil falso) ou mesmo o nickname

(identidade virtual) estamos acionando novas formas do Eu. Ninguém pode ser “fake” de si

mesmo

“...nos casos em que as pessoas expõem fatos, ou características, que não correspondem com ela na realidade, os usuários costumam dizer que a pessoa está criando outra identidade, criando uma personagem, sendo falso, exagerando. O fake serve para os casos em que realmente busca-se ser outra pessoa... agindo de maneira diferente do esperado pelas pessoas que o conhecem pessoalmente” (MOCELLIM, 2007, p.114). {grifo meu}

Os nicknames remetem-nos a um aspecto importante da identidade. No mundo

presencial, temos rostos, corpos, cheiros, jeitos e um nome oficial que nos identifica - “fulano

filho de sicrano”; o nome nos identifica e com ele nos identificamos, nosso nome se funde a

nós (Ciampa, 1995). No mundo virtual é o nickname que vai dar os primeiros dados sobre a

pessoa, sobre como ela se apresenta naquela comunidade. As pessoas se aproximam, muitas

vezes, por conta de seus nicknames que são formas de comunicação ou expressão de si

mesmo.

Nas comunidades virtuais o nickname adquire força e potência ainda maior em sua

função de identificar visto que é a única forma de nos identificar socialmente. Escolhe-se o

nickname que melhor representa ou com o qual se quer ser representado naquele momento.

No relato da história de vida de Severina, Ciampa observa que Severina sentia-se falsa porque

seu sobrenome foi trocado, quando teve que fazer um novo registro de nascimento, adotando

o sobrenome da família para quem trabalhava. Ciampa complementa: “surpreendentemente,

ela não diz que seu nome é falso; diz ‘eu sou falsa!’. (...) Está claro que o nome não é a

identidade; é uma representação dela”. (CIAMPA, 1995, p.132). Assim também é o

nickname, passa a ser a representação do indivíduo; uma representação do Eu no mundo

virtual.

Fakes e nicknames podem ser vistos como uma forma de romper com uma identidade

pressuposta, que também reflete o Eu; desde que aconteça de forma integrada. As identidades

virtuais pode ser uma forma criativa de construção do Eu. Esse conceito é encontrado na obra

de Mead (1967) quando fala sobre o conceito de Self. O sujeito encena personagens e

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apropria-se de suas representações (também essa questão será discutida à frente quando esses

conceitos serão confrontados com o relato da história de vida escolhida).

“...nas comunidades virtuais em tempo real do ciberespaço encontramos-nos no limiar entre o real e o virtual, inseguros da nossa posição, inventando-nos a nós mesmos à medida que progredimos” (TURKLE, 1997, p.13).

Para a professora de Sociologia e doutora em Psicologia da Personalidade do Institute

of Technology em Massachusetts, Sherry Turkle, as janelas que separam e organizam os

aplicativos na tela de um computador tornam-se poderosas metáforas para se pensar no self

como um sistema múltiplo, de forma que a vida presencial (offline) pode acabar tornando-se

apenas mais uma janela. O Eu não é mais simplesmente experimentar diferentes papeis em

diferentes situações em diferentes lugares. A prática de vida das janelas (no mundo virtual) é

a de um Eu descentrado que existe em muitos mundos e que experimenta muitos papéis ao

mesmo tempo (TURKLE, 1996, online - http://www.wired.com/wired/archive/4.01/turkle.html).

A virtualidade no mundo das comunidades passa a ser um modo de existência, um

modo de relação, aquele desterritorializado geograficamente, mas não uma forma única e

independente de existência, pois é unida em torno de especificidades concretas e com

vínculos que extrapolam o espaço virtual. As relações nas comunidades virtuais perpassam o

simbólico e se conectam à vida cotidiana (CASTELLS, 2000).

O sujeito virtual exprime-se através de um corpo virtual no ciberespaço. É uma forma

de ampliação da imaginação com diversas implicações subjetivas. Por exemplo, o cibersexo,

com a possibilidade de sensações organicamente experimentadas. Segundo Turkle (1997), nos

MUDs (multiple users dimension) e em outros sítios virtuais, pode-se mover, fazer, ver, ser,

estar em outros lugares, com outras pessoas e objetivos, produtos da definição e intenções, da

volição, enfim, do sujeito real, ancorado no mundo presencial com o seu corpo “real” que, em

última instância está em um “aqui” protegido, familiar e seguro, a despeito de quais sejam as

incursões virtuais que realize. É a realidade virtual atuando na realidade presencial.

Com essa discussão preliminar creio que deixamos em aberto a possibilidade para se

pensar em Identidade no mundo virtual, sem contrariar o conceito de Identidade adotado

como referência de nosso estudo. Se é possível transformar e ser transformado

(dialeticamente), ser aceito, compreendido, participar ativamente (ser verbo) na vida e

identidade de outros através da realidade do ciberespaço, posso pensar em identidade no

mundo virtual. Trata-se de uma nova forma de representação e de significar. São novas

formas de metamorfoses que precisam ser discutidas por uma Psicologia Social que se diz

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crítica, relevante e atual. Não podemos ignorar as novas formas de socialização e sua

influencia na compreensão do processo identitário do indivíduo.

1.2. Considerações Metodológicas

"Método é a ordem que se deve impor aos diferentes processos necessários para

atingir um fim dado (...) é o caminho a seguir para chegar à verdade nas ciências".

(JOLIVET, 1979, p.71)

O objetivo central nesta dissertação é compreender como os relacionamentos em

comunidades virtuais influenciam o processo identitário com o sentido emancipatório de seus

participantes.

Para responder à questão central da pesquisa, vamos utilizar a técnica da narrativa de

história de vida de uma pessoa que utiliza no NEPIM que tem se mostrado um importante

instrumento para compreender como identidade é metamorfose em busca de emancipação.

Para o autor, “o singular materializa o universal na unidade do particular” (CIAMPA,

1995: p.213). Assim, cada história de vida constitui uma identidade que se dá como um

processo ao mesmo tempo coletivo e individual. A partir dessa premissa, acreditamos que por

meio do relato de uma história de vida podemos atingir o objetivo da pesquisa.

A história de vida também pode ser usada como método de pesquisa usado em

abordagens qualitativas e foi introduzido no meio acadêmico em 1920, pela Escola de

Chicago e desenvolvida por Znaniescki na Polônia. Contudo, somente na década de 1960 esse

método de pesquisa foi estruturado, estabelecendo estratégias de análise e constituindo um

método de coleta de dados do sujeito no contexto de suas relações sociais (CHIZOTTI, 1991).

O termo História de Vida, traduzido de historie (francês) e de story (inglês), tem

significados diferentes. O sociólogo americano Denzin propôs, em 1970, a distinção das

terminologias: life story (a estória ou relato da vida), terminologia que designa a história de

vida contada pela pessoa que a vivenciou – neste caso, o pesquisador não confirma a

autenticidade dos fatos, pois o importante é o ponto de vida de quem está narrando; e life

history (ou estudo de caso clínico), o qual compreende o estudo aprofundado da vida de um

indivíduo ou grupos de indivíduos. Esse inclui, além da narrativa de vida, todos os

documentos que possam ser consultados, como laudos médicos, testes psicológicos,

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testemunhas, enfim, tudo o que envolve o indivíduo (BERTAUX, 1980, apud SPINDOLA,

T., SANTOS R.,2003).

Na perspectiva adotada o contato direto do pesquisador com a situação estudada

valoriza o processo e o resultado da pesquisa, porque retrata a perspectiva dos entrevistados,

possibilitando que este se aproxime dos significados que o entrevistado atribui aos

acontecimentos da vida (LUDKE M., MEDA A., 1986). O importante é o significado que o

indivíduo atribui ao relato; podemos nos preocupar se é um fato ou não, analisando a

coerência da narrativa.

A história de vida, mesmo sendo relatos ímpares, é sempre relato de práticas sociais:

das formas com que o indivíduo insere-se e atua no mundo de que faz parte. Desta forma, a

narrativa tem a função de descrever e avaliar, visto que avaliamos os fatos naquele momento.

O pesquisador respeita a opinião e conta a história que lhe foi contada. Assim, a avaliação é

muito mais do sujeito do que do pesquisador.

Nesta pesquisa a história de vida é usada como uma técnica de investigação que

permite ao entrevistado uma narrativa livre, o que não impede que o entrevistador, ao longo

do depoimento, faça intervenções a fim de aprofundar temas de seu interesse. Segundo

Becker, a história de vida “... se interessa... por um relato fiel da experiência e interpretação

por parte do sujeito do mundo no qual vive” (BECKER,1999, p.102).

Trata-se de uma pesquisa qualitativa e considera que há uma relação dinâmica entre o

mundo real e o sujeito, isto é, um vínculo indissociável entre a realidade objetiva e a

subjetividade do sujeito que não pode ser traduzido em números. A interpretação dos

fenômenos e a atribuição de significados são básicas no processo de pesquisa qualitativa. Não

requer o uso de métodos e técnicas estatísticas. O ambiente natural é a fonte direta para coleta

de dados e o pesquisador é o instrumento chave. O processo e seu significado são os focos

principais de abordagem (KAPLAN & DUCHON, 1988, apud MORESI, 2003, p.71).

Finalmente, a pesquisa qualitativa é freqüentemente descrita como sendo

essencialmente indutiva em sua abordagem, isso quer dizer que a mesma é conduzida pelos

dados, sendo os resultados e conclusões extraídos diretamente destes últimos. Isto contrastaria

com a abordagem dedutiva, através da qual ideia e hipóteses formuladas são testadas em

dados coletados especialmente com este propósito. O método qualitativo é apropriado quando

o fenômeno em estudo é complexo, de natureza social e não tende à quantificação.

Normalmente, são usados quando o entendimento do contexto social e cultural é um elemento

importante para a pesquisa (LIEBSCHER, 1998, apud MORESI, 2003).

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Para a pesquisa foram realizadas diversas entrevistas exploratórias até chegar a um

caso que pareceu-nos atender aos nossos objetivos. Optamos por trabalhar com um relato

porque sendo esse um estudo exploratório, em que a pessoa fala sobre toda sua vida, foi

possível discutir as principais questões envolvendo sua identidade a partir de um caso

emblemático.

Chegamos à nossa entrevistada por meio das relações de trabalho com o pesquisador

que enxergou ali um sujeito potencial para a pesquisa. Em seguida foram realizadas conversas

no sentido de verificar o interesse em participar do projeto e tendo sido confirmado passamos

às entrevistas que aconteceram em três momentos diferentes. Primeiro para estabelecer um

vínculo de confiança e fazer alguns esclarecimentos; num segundo momento ouvimos seu

relato de história de vida; e, por fim, cerca de um ano depois retomamos os encontros para

alguns esclarecimentos sobre questões mais pontuais envolvendo seu relacionamento em

comunidades virtuais e os processos emancipatórios.

Os encontros para ouvir as histórias de S.1, deviam ocorrer de modo a revelar a base

subjetiva de mudanças sociais duradouras nos padrões de percepção e comportamento de

grupos sociais particulares. Isso garante maior profundidade qualitativa, pois permite ao

entrevistado falar sobre assuntos de sua escolha, nas suas próprias estruturas de referência e

permite que os significados que as pessoas atribuem para os eventos e relacionamentos sejam

compreendidos nos seus próprios termos.

Assim chegamos a S., estudante de Psicologia que aos 13 anos começou seu

relacionamento em comunidades virtual. A opção por S., em princípio, deu-se porque foi

quem apresentou maior potencial para os objetivos da pesquisa. Outro fator importante, esse

só descobrimos depois, foi que o discurso apresentado era quase auto-interpretativo,

provavelmente devido ao fato de estudar Psicologia S. apresentou um discurso carregado

significados que ela atribui às coisas e à vida.

Conhecemos S. no trabalho e a proximidade das relações permitiu uma aproximação

amigável entre pesquisador e entrevistado, criando um ambiente propício para que o relato de

sua história de vida transcorresse sem maiores dificuldades. A narrativa da história de vida de

S. será apresentada na segunda parte do trabalho em que vamos aproximar os conceitos

teóricos do trabalho com a práxis social.

1 S. usuária de comunidades virtuais há cerca de 12 anos foi a pessoa escolhida para a pesquisa. P. seu nickname que também precisa ser mantido em sigilo de contrato.

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Como análise categorial na interpretação foi utilizado o referencial teórico da

Psicologia Social em que se busca compreender os aspectos mais relevantes para a pesquisa.

Segundo Bardin (1997), por meio da história de vida é possível observar o contexto de vida

do indivíduo; isso facilitou identificar significados nas relações sociais de S. estabelecidas nas

comunidades de relacionamento virtual.

A análise dos dados iniciou-se logo após transcrições, procedimento esse que se inicia

imediatamente após os primeiros encontros, o que facilitou a avaliação do procedimento

metodológico. Os relatos foram lidos e relidos com o objetivo de fazer uma análise cuidadosa

dos dados, pois assim

“... a atenção prestada à transcrição se torna um aspecto essencial da análise que se segue: a relação da entrevista é organizada em três pontos diferentes e interdependentes: o primeiro reproduz por escrito o texto do registro; o segundo descreve a estrutura (frame) de interação tal como foi instaurada no curso da entrevista; o terceiro consiste na interpretação obtida do cruzamento do primeiro com o segundo” (CIPRIANI, 1983, apud: SPINDOLA, T., SANTOS R. 2003 p.125).

Entendemos que o sujeito reflete sobre sua vida enquanto conta sua história. Acontece

uma intervenção à medida que leva o sujeito a refletir sobre sua vida. Pesquisador e sujeito se

completam e modificam mutuamente em uma relação dialética (GLAT, 1989). Quando

fazemos um relato de algo estamos tendo a oportunidade de refletir sobre aquele momento. As

pessoas estão refletindo sobre suas vidas e analisando-as enquanto contam. Essa reflexão, às

vezes, leva tempo como aconteceu com nossa entrevistada. O fato de retomar o terceiro

momento das entrevistas algum tempo depois foi decisivo para os resultados da pesquisa,

como veremos na segunda parte da dissertação, quando será feita a análise das entrevistas.

Quando analisamos os indivíduos e seus contextos em suas complexidades,

aproximamos-nos da realidade e da sua identidade, ou seja, dos processos de metamorfoses

que identificam o indivíduo como único. Essa é uma pesquisa qualitativa, portanto, baseia-se

na premissa de que os conhecimentos sobre os indivíduos só são possíveis com a descrição da

experiência humana, assim como é vivida e tal como a própria pessoa define (POLIT, 1995).

Por isso respeitamos ao máximo o relato do sujeito, deixando-o o mais livre possível para

fazer o recorte de sua história; como fez S.

Ressaltamos ainda que todos os aspectos éticos de sigilo e privacidade de acordo com

a Resolução 196/96 de proteção ao sigilo e procedimentos adotados em casos de pesquisas

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acadêmicas foram observados. O conteúdo de natureza Bioética foi garantido assim como o

anonimato da participante.

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PARTE II – DISCUTINDO UMA HISTÓRIA DE VIDA: Articulando Teoria e Práxis

A segunda parte do trabalho tem como objetivo específico fazer a articulação entre os

pressupostos teóricos da teoria de identidade entendida como metamorfose em busca de

emancipação e um relato de história de vida, coletado de acordo com a metodologia

escolhida.

Antes de iniciar os esforços para articular teoria e práxis é importante ressaltar que o

Programa de Estudos de Pós-Graduados em Psicologia Social, assim como o NEPIM (Núcleo

de Estudos e Pesquisa em Identidade-Metamorfose) da PUC- SP, estão comprometidos com

uma Psicologia Social crítica. Como vimos nos pressupostos teóricos, ao identificar

identidade como a luta pela emancipação, Ciampa (1987), rompe com alguns conceitos

estáticos de identidade e com métodos tradicionais de fazer pesquisa, optando por uma visão

mais compreensiva de se fazer pesquisa.

Portanto, ainda que este seja um trabalho de cunho acadêmico, a intenção é fazer uma

articulação direta entre produção teórica e práxis de vida, pois acreditamos ser esse um

diferencial da Psicologia Social. A própria escolha do tema surgiu com a observação de

práticas, principalmente dos mais jovens, marcadas pela intensificação do virtual nas relações

e a diminuição das relações tradicionais em tempo e espaço tradicionalmente estabelecidos.

Hoje em dia, o ciberespaço tem sido local em que as pessoas pagam suas contas,

compram mercadorias, buscam entretenimento, conhecem mais o mundo, estudam, visitam

bibliotecas, desenvolvem círculos de amizade e iniciam relações afetivas. Diante de tais

transformações sociais em função da intensificação do virtual na vida das pessoas surgem

perguntas como: Quais são os efeitos da comunicação e socialização via computador nos

compromissos necessários para se viver em comunidade? Essas novas tecnologias irão

satisfazer as necessidades de pertencer dos indivíduos, ou irá aumentar ainda mais as relações

já fragilizadas? A que tipos de consequências individuais e coletivas estaremos dispostos a

assumir pelas ações virtuais?

Ao articular os pressupostos teóricos com o relato de história de vida, pretendemos

trazer alguns esclarecimentos sobre essas questões e abrir caminho para outras pesquisas que

certamente serão necessárias, tendo em vista que esse é um fenômeno recente. Foi a partir da

década de 1990 que as comunidades de relacionamento virtual adquiriram maior abrangência.

Para tentar compreender e, quando possível, apresentar algumas respostas para essa

nova realidade, escolhemos a narrativa de história de vida de S., uma jovem estudante de

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Psicologia que fala sobre sua luta por emancipação em seu processo identitário nas

comunidades de relacionamento virtual.

S. tinha 13 anos quando conheceu as comunidades de relacionamento virtual e durante

aproximadamente 12 anos foi frequentadora assídua dessas comunidades. A opção por sua

história de vida deu-se em função de seu relato carregado de significado. Em seu relato, a

entrevistada demonstrou espontaneidade, capacidade crítica, amplitude na argumentação e

sinceridade. É o que podemos chamar de sujeito emblemático, ou seja, trabalhamos com um

sujeito que representa tendências antecipadas.

Feitas essas considerações preliminares partimos para a entrevista buscando

compreender como, também no mundo virtual, a identidade é um processo contínuo e

permanente que se dá como metamorfose em busca de emancipação.

2.1. Identidade Virtual no Mundo da Vida

“Para os seres atentos, o mundo é um só.”

Heráclito

A opção por falar em “mundo da vida” acontece porque vemos, na teoria de Husserl,

um paralelo importante ao que acontece nas comunidades virtuais quando um indivíduo usa

um nickname para co-habitar no mundo virtual.

Ao falar em mundo da vida não temos a intenção de discutir questões filosóficas

envolvidas, mas apenas fortalecer nosso argumento de que práxis e teoria precisam caminhar

juntas. A teoria de “Mundo da Vida” de Husserl objetivava, entre outras coisas, romper com o

abismo entre práxis do cotidiano e a teoria da ciência da natureza como única forma de

conhecimento. Para Husserl era preciso resgatar a noção de que o mundo real não é o mundo

visto pela ciência, mas aquilo que é experimentado, aquilo que se vive. Nisto consiste o

paralelo importante, o real não está restrito ao presencial, mas àquilo que é vivido.

Para o autor, a ciência tem pouco a oferecer, no que se refere às questões da

humanidade, uma vez que ela deixa de fora as questões essenciais do homem, as questões que

dizem respeito ao seu modo de ser, promovendo, assim, o distanciamento entre o mundo que

eu experiencio e o mundo que me é dado cientificamente. A intensificação do mundo virtual

na vida das pessoas parece remeter ao descontentamento de Husserl com o “mundo das

ciências” que, segundo ele, promovia a desconstituição do sujeito na relação com o mundo da

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vida. Era uma tentativa de aproximar o homem de sua realidade empírica. A obviedade do

mundo, portanto, fora colocada em questão: "o ser do mundo não mais pode constituir para

nós um fato óbvio, mas somente um problema de vigência" (HUSSERL, 1929, p.5).

É com essa abertura sobre o mundo da vida que iniciamos o relato da história de S., no

“mundo da vida”. S. tem 25 anos e está cursando Psicologia; na época (2011) trabalhava

como estagiária, remunerada, em uma cidade da região metropolitana de São Paulo. O início

de seu relato fala de um momento difícil de sua vida, quando tinha 13 anos de idade.

O ano era 1999, eu tinha 13 anos, cursava a sétima série,

morava com os meus pais e meu irmão. Era uma pré-adolescente

típica, vivia entre o colégio e a casa das minhas melhores amigas

(que são minhas melhores amigas até hoje). A única coisa “atípica”

era um problema que eu tinha desde a infância: insônia. E o meu

vício por livros.

Um dia, depois de já ter lido os meus livros e os livros do meu pai,

fiquei aborrecida e perguntei se não havia mais. Ele abriu o armário

e tirou uma caixa onde guardava (ou escondia) seus livros da

maçonaria. Folheei alguns, a maioria escrita em códigos

incompreensíveis pra mim, ele tirou de lá três livros do Paulo Coelho.

Um deles mudaria a minha vida.

Quando li “Brida”, e descobri o que o Paulo Coelho chamava de

Tradição da Lua, eu senti aquele “momento em que tudo faz sentido”,

eu havia descoberto meu caminho, era como se tivessem aberto as

janelas e eu conseguisse ver o mundo pela primeira vez. Fiquei

extasiada, havia me encontrado. Até então, nunca havia me

interessado por absolutamente nenhuma fé ou religião. O problema é

que o livro não trazia maiores informações, e eu não sabia o quanto

daquilo era ficção ou realidade. Fiquei dois meses entre o êxtase e a

angústia. Eu havia descoberto meu caminho, mas não sabia o que ele

era, não sabia por onde começar, não sabia por quem ou pelo que

procurar... Perguntei onde meu pai havia encontrado aquilo, e ele

respondeu no site do Paulo Coelho e me mostrou. Esse foi o meu

primeiro contato com a internet. Naquela época o acesso a internet

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era por conexão discada, ou seja, só conectávamos depois da meia

noite, por causa do preço dos pulsos.

Assim começa a luta de S., em uma fase da vida em que as questões sobre a identidade

são intensas, talvez a mais marcante – pré-adolescência. S. começa falando de sua vida

“tipica”, talvez como crítica à sua realidade que se constituía apenas de escola, algumas

amigas e sua casa. Depois de ler “todos os livros do pai” ela queria mais... “Eu havia

descoberto meu caminho, mas não sabia o que ele era, não sabia por onde começar, não

sabia por quem ou pelo que procurar”. A internet pareceu-lhe o seu caminho.

Ainda referindo-se às primeiras falas de S. é possível observar um movimento de

metamorfose importante, diz que “... até então nunca havia me interessado por absolutamente

nenhuma religião”, entretanto, mesmo sendo muito jovem S. está preocupada com uma

questão existencial – a busca de sentido para sua vida – e é na religião que, conforme suas

palavras, encontra “seu caminho”. Um pouco mais à frente S. vai dizer:

Foi também graças a esse despertar místico/religioso que passei a

adolescência muito próxima do meu pai. Ele me apoiava em tudo.

Deu-me meu primeiro pentagrama (impossível de achar naqueles

dias...), fez com as próprias mãos meu altar, me deixava sair mais

cedo do trabalho em dias de ritual (eu trabalhei dos 14 anos 17 anos

como atendente em 3 pizzarias da família). Conversávamos muito

sobre o assunto.

A maior parte das pessoas que passam horas nas comunidades de relacionamento

virtual está em busca de encontro existencial. Para a Psicologia Existencial o encontro

descreve uma relação especial entre duas pessoas e ocorre quando elas atingem uma

verdadeira comunhão ou comunicação; quando uma existência se comunica com a outra. É

através do encontro que o outro não é mais um indivíduo impessoal, ele passa a sentir-se

humano, ou seja, parte da humanidade. Há uma espécie de fusão, apesar de cada um preservar

o seu próprio eu distinto. Como escreve e.e. Cummings: (in POWELL, 1991) “Um não é

metade de dois. Os dois é que são metades de um”.

É importante notar que apesar de sua fala carregada de conteúdos aparentemente

emancipatórios como: “... senti que tudo fazia sentido... havia me encontrado... descoberto o

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caminho...”, o que acontece são insights importantes em seu processo de metamorfose em

busca de emancipação. Isso fica mais claro quando em seguida S. diz: “Eu havia descoberto

meu caminho, mas não sabia por onde começar, não sabia por quem ou pelo que procurar...

eu não sabia o quanto daquilo era realidade ficção ou realidade”. A luta estava apenas

começando.

Bem, eu comecei a usar a internet e as redes virtuais quando essa

identidade estava ainda em construção, quando eu buscava aprender

sobre as coisas e sobre eu mesma.

(...) Também tive blogs, que na época eram diários virtuais, e o

processo de escrita diário sobre as experiências que eu tinha era uma

forma de reflexão, de internalizar e entender tudo aquilo. Sempre

gostei muito de escrever, e na internet eu poderia também ser lida!

Nisso, me tornei mais assertiva, ao menos na escrita. Na rede e nos

blogs, eu falava sobre o que eu fazia, o que aprendia, sobre as minhas

descobertas, o que eu não concordava, sobre as coisas engraçadas da

minha família, sobre autores e livros, sobre diretores, sobre filmes.

Questionava o mundo. Onde mais um adolescente tem “voz” pra

isso?

Aos 13 anos a pretensão identitária de S. é acentuada, a busca por sua humanização se

intensifica. S. depois de dizer que era “uma pré-adolescente típica”, talvez porque não

reconhece sua própria identidade, diz que “essa identidade estava ainda em construção”. Usa

os livros, estabelece diálogos intelectuais com o pai e finalmente encontra a realidade das

comunidades virtuais um espaço para “reflexão, de internalizar e entender tudo”.

Uma noite eu descobri uma sala de bate papo no UOL sobre

bruxaria. Entrei e conheci um garoto chamado M., tinha 21 anos na

época, morava no Japão.

Esse é seu primeiro encontro com/na comunidade que iria fazer parte de sua vida e

atuar diretamente em seu processo de pretensão identitária. S. conhece M., e aqui destacamos

que, de todas as pessoas que conheceu na comunidade de relacionamento virtual essa é a

única citada nominalmente, e também, a única que nunca conheceu pessoalmente. Talvez, a

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falta da relação presencial acentuou seu potencial criativo para criar novas personagens de si

mesma, livre de predicados indesejados. S. encontra um grupo com valores que eram também

os seus, “encontra vida. Num grupo assim, pode-se supor, cada indivíduo reconhece no outro

um ser humano e é assim reconhecido por ele. (...)Ter uma identidade humana é ser

identificado e identificar-se como humano!” (CIAMPA,1995, p.38).

(...) Foi nessa época que adotei um nick2, um nome que “veio” na

minha mente, eu não sabia o que significava. Fui pesquisando o

significado durante anos, esse nome e tudo que ele representa era

exatamente a minha história de vida e foi se tornando parte de minha

personalidade. A um ponto em que, em determinados momentos

(muitos anos depois), eu era de fato a P (meu nick) e a S. (meu nome

real) era a máscara que eu vestia pra sociedade.

Um fato revelador na história de S. diz respeito a seu nickname. Ela diz que o nick

“veio à mente”, depois diz que foi buscar o que significa. Nisto vemos sua luta em busca de

uma identidade livre da coerção do outro. Depois de algum tempo diz: “Meu nick

representava exatamente a minha história de vida e foi se tornando parte de minha

personalidade”. Noutro momento diz: “... quero buscar o melhor das duas (S. nome próprio e

P. nickname) e criar uma terceira... a ética, doçura e sonhos de uma e as paixões e desejos da

outra” . Freud diria que estamos descrevendo a relação Id, Ego e Superego, o princípio do

prazer de uma e princípio da realidade de outra, em ação.

Vemos de forma clara a maneira saudável com que S. trata as duas realidades, ambas

se completam, se retro-alimentam, co-habitam. Ela não rompe com o mundo tradicionalmente

sistematizado, mantém o que ela chama de “máscara” (seu nome próprio) e naquilo que não a

satisfaz busca na realidade virtual. É esse contato com a realidade objetiva, essa dialética

entre o presencial e o virtual, que vai possibilitar um salto emancipatório importante como

veremos no final de seu relato.

A história continua... depois de conhecer M.

Ele me conduziu em uma conversa que durou 5 horas, e eu não me

sentia mais ali. Falou sobre Deus e o Diabo, sobre Yin e Yang, sobre

2 Apelido usado para identificar pessoas na internet.

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maniqueísmo, eu viajei em cada linha do que ele escrevia. Ideias

totalmente inéditas pra uma garota de 13 anos. (grifo do autor)

O caso de S. representa bem a minha preocupação inicial e que gerou interesse pela

pesquisa. Ela tinha o que chama de vida normal, com amigas da escola, mas só depois com

amigos virtuais encontrou seu caminho. É como se, só agora (com a realidade virtual),

encontrasse algo que buscava e não havia encontrado. E é interessante notar que ela logo trata

de encontrar um nickname, um novo nome, para ela, uma nova identidade.

É difícil identificar alguém sem falar em nomes, o senso comum, aliás, começa por aí.

A própria pessoa quando pretende se identificar começa dizendo: “meu nome é...”. Então

vamos seguir esse caminho e falar sobre identidade no mundo da vida usando como

referencial prático a narrativa de S., que em seu primeiro contato online tratou de adotar um

nickname. Sabemos que o nome oficial não é a identidade, que é uma das formas de

representação, uma forma que nos foi predicada. No caso das comunidades de relacionamento

virtual o nickname assume um papel identificatório ainda maior; uma potencia à sua forma de

representação, visto que ela mesma escolheu, um nome que lhe parece melhor apresentá-la e

não algo predicado. Em suas palavras “um nome que representa exatamente minha história”.

S. encarna sua identidade virtual. Parece razoável pensar que, diante das dificuldades

da realidade objetiva para conseguir “ser alguém”, S. se transforma em P., prefere deixar de

lado a realidade do mundo presencial e parte para a realidade virtual. Algo muito semelhante

ao encontrado no relato de vida da Severina que: “De repente, a realidade que se mostrava

tão hostil... a ponto de ela começar inconscientemente a se evadir da mesma – muda

surpreendentemente: encontra um rapaz com quem durante cinco anos tem um namoro e um

noivado perfeitos”. (CIAMPA, 1995, p.57). S. encontra em M. um ideal para sua pretensão

identitária.

Se no mundo presencial temos rostos, corpos, cheiros, jeito, voz que ajudam a nos

identificar; no mundo virtual tudo isso inicialmente se reduz ao nickname. É ele que vai dar os

primeiros dados sobre a pessoa, é como ela se apresenta. O nickname além de ser uma forma

de apresentar-se, muitas vezes representa seus interesses, como a pessoa se sente e o que

deseja, ou seja, ajuda a responder uma das perguntas chaves para nossa compreensão de

Identidade: quem é você?

Usar um nickname foi, também, uma forma de romper com a mesmice de S., ela

deixou sua identidade pressuposta. Para que a mesmice não se reproduza ou manifeste-se de

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forma continua, é necessário que se elimine a identidade pressuposta e surja o outro "outro",

que também sou eu, havendo a negação da negação de mim, superando, então, minha

identidade pressuposta, desenvolvendo uma identidade posta como metamorfose constante

(CIAMPA, 1995).

Isso acontece porque nas relações virtuais os indivíduos, de forma criativa e lúdica,

adquirem uma identidade aparentemente imaginária (nickname) e apropriam-se dela para

construir relações sociais. Um nickname pode ser uma oportunidade de não ficar preso àquilo

que nos foi predicado, podemos fazer interiorizações além daquilo (representação do nome

predicado) que nos foi imposto. Pode-se não ser ou ser algo mais que o “fulano filho de

sicrano”. Trata-se de um recomeço de seu processo de construção da identidade; um

recomeço de seus processos primários.

Atendendo à nossa proposta de articular teoria e práxis temos aqui algo que nos remete

ao conceito de Mead para a formação do self. Para ele a criança, em seu processo primário,

brinca (play) e encena seus personagens imaginários, apropriando-se do outro por meio de

suas próprias atitudes. É neste momento em que a criança fala consigo mesma, imita pessoas

próximas ou cria personagens, que ela constitui a relação com o outro e utiliza suas próprias

respostas aos estímulos na construção do self. Ao assumir um nickname (nova identidade), o

usuário da comunidade virtual está assumindo uma personagem de si mesmo; ele está

“brincando” de ser outro para ser ele mesmo. É como se estivesse reconstruindo sua

identidade.

Para Ciampa (1995), a identidade se apresenta empiricamente como uma personagem,

ainda que esta seja apenas chamada por um nome próprio. Sua identidade se expressa por

múltiplas personagens.

A identidade é composta por articulações de vários personagens e ela é posta sob a forma de personagem. A personagem é um momento da identidade que expressa as diversas formas que esta pode assumir, particularmente através dos papéis sociais atribuídos ao indivíduo - mãe, filho, etc. Nessa perspectiva, é necessário ver o indivíduo não mais isolado, mas entendê-lo numa relação. Portanto, identidade é a articulação da diferença e da igualdade, (CIAMPA 1995).

Esse é outro conceito importante que encontramos no relato de S. e, também, na obra

de Mead, quando ele fala da relação entre “eu” e “mim”. Para explicar como se dá a

apresentação da identidade enquanto metamorfose, Lima A, (2009), recorre a Mead quando

fala da relação entre “eu” e os vários “mins”. Segundo ele, Mead

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(...) escreve que a relação (“eu” e “mim”) é semelhante ao relacionamento entre parceiros de um diálogo, “a consciência de si-mesmo, atualmente operante no relacionamento social, é um “mim” objetivo ou vários mim (ns) num processo contínuo e que implica um “eu” fictício sempre fora de seu campo de visão” (MEAD, 1912, apud: LIMA, A. 2009, p. 117).

Em sua teoria de construção do self, Mead, argumenta ainda que a segunda etapa para

sua formação, é o jogo (game), o que também encontramos paralelo nas relações virtuais. As

relações virtuais pressupõem regras nas quais os participantes assumem seus papéis para

estabelecer uma relação entre si. É por meio do jogo que a criança exercita a representação de

papéis e a internalização de regras e de atitudes pois, “... a atitude dos outros jogadores que o

participante assume organiza-se em uma unidade e é esta organização que controla a

resposta do indivíduo (MEAD, 1967, p.154, apud: LIMA, A. 2009). Esse é o mesmo

princípio encontrado nas comunidades de relacionamentos virtuais, de forma lúdica, os

indivíduos assumem uma nova “identidade” (nickname). Ainda segundo Lima, A. (2009), o

indivíduo assume novas atitudes que permitem sua transformação e passa a sentir-se, nas

palavras de Mead (1967, p.159), “...membro orgânico da sociedade”. S. diz que agora é P.

(abreviação do nickname escolhido) assume nova identidade e S. (nome oficial) era uma

máscara.

Em seu discurso S., ainda que intuitivamente, faz diferenciação entre realidade

objetiva e mundo da vida. Ela tem consciência de quem é, ou representa, para o mundo,

enquanto sistema, mas intuitivamente busca no mundo da vida (naquele momento o mundo

virtual) a solidariedade e um sentido maior para sua pretensão identitária. É na realidade

virtual, onde é P. e não S., que se reconhece melhor.

A fim de revelar outra questão importante na teoria de Ciampa (1995) – a encarnação

da personagem - recorremos à internet e buscamos o significado do nickname de S. e

encontramos algo revelador sobre sua história, as descrições sobre o significado de “P.” diz

que é uma pessoa que:

Passa a impressão de uma pessoa muito inteligente e intuitiva, desde muito cedo é notória sua vocação por atividades intelectuais. Não se atrai por atividades desgastantes e de esforço físico. Na maturidade demonstra ter a vida sob controle. Alguém que valoriza a espiritualidade. Sempre envolvida com seus pensamentos pode passar a impressão de solitária. Séria, não aceita intimidades ou brincadeiras inoportunas. Bastante reservada, torna-se difícil ter sua confiança, e guarda seus segredos sempre para si. Não se familiariza com encontros sociais, prefere sempre atividades que exijam concentração. Fala pouco, e evita comentários óbvios, nunca age com a intenção de impressionar, por isso só participa de conversas quando está embasada de sua observação e cuidadosa analise. Preocupa-se com o conteúdo e nunca com a forma. Esta postura tende a isolá-la do mundo, pois dificilmente confia

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na ajuda de alguém, a maneira de ser bem compreendido e aproveitar os aspectos positivos da personalidade é controlar o egoísmo e buscar abrir-se mais ao mundo 3.

Para quem conhece S. pessoalmente essa é, exatamente, a melhor forma de descrevê-

la; o que nos leva a pensar que ela dedicou-se, trabalhou, “lutou” para ser assim. S. encarnou a

personagem para dizer “quem é”. Lembramos que o texto trata de responder a pergunta

central: “Quem sou?”, para falar sobre identidade.

Lima, A. (2009) recorre a Ciampa (1995), quando utiliza a perspectiva da

dramaturgia para falar da identidade de Severina, para dizer que metodologicamente isso

implica em defender que a identidade passa a ser vista, expressada empiricamente, por meio

de personagens. É a articulação dessas personagens que evidencia o processo de identidade e

metamorfose do indivíduo. Ciampa (1995), baseado no pensamento de Hegel, diz que “as

personagens são momentos da identidade, degraus que se sucedem, círculos que se voltam

sobre si em um movimento, ao mesmo tempo, de progressão e de regressão” (p. 198). No

relato de vida de S. podemos pensar que P. é um momento da identidade de S., um

movimento que irá facilitar sua pretensão identitária e busca de emancipação.

Ainda segundo Ciampa (1995), a identidade é composta por articulações de diversos

personagens. A personagem é um momento da identidade que expressa as várias formas que

esta pode assumir. Nesta perspectiva, é necessário ver o indivíduo não mais isolado, mas

entendê-lo numa relação. “Só assim ele pode ser determinado, pois efetivamente ele é

determinado pelo que não é ele, pelo que o nega” (CIAMPA, 1995, p.137). Outros autores

usam o termo personalidade para referir-se às identidades utilizadas no mundo virtual, mas

com o mesmo sentido, reforçando o coro de que as personagens (nicknames) das comunidades

de relacionamento virtual são representações de si mesmos.

“...a realidade parece ser que muitos, provavelmente a maioria, dos usuários sociais da comunicação mediada por computador criam personalidades online compatíveis com suas identidades offline. (BAYM, 1998, p.55, apud: CASTELLS, 2003, p. 110)

O mundo das comunidades virtuais é habitado por diferentes construções de

identidades, que são distribuídas em diversas realidades. Tanto o avatar4 como o nickname

são realidades e fonte de autoconhecimento do Eu. É o que Richard Parrish chama a 'fluência

da identidade', uma experiência que ele vê como potencialmente rica. Quando um indivíduo

3 Por motivo de sigilo não identificamos o endereço eletrônico da informação. 4 Cibercorpo inteiramente digital. Uma figura que empresta sua vida simulada para o transporte identicatório de cibernautas (Enciclopédia livre Wikipédia).

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entra em uma comunidade virtual, os outros membros não sabem nada sobre ele, exceto o

nome, na verdade o nickname, que por si só representa uma personagem de si mesmo ou

como ele deseja se revelar; isso é o que lhe permite reinventar a sua identidade.

(SILVEIRINHA , online, s/d).

Ainda em nossa busca de articular o conceito de identidade, usando os nicknames do

mundo virtual, destacamos outra característica que nos remete ao conceito de Ciampa, de que

identidade é metamorfose, sua versatilidade ou capacidade de mudar. Muitos usuários de

comunidades virtuais afirmam que têm vários nicks e/ou mudam constantemente; S. diz:

Dependendo da comunidade eu me apresento diferente embora seja a

mesma pessoa... meu nick não é só personagem, são características

minhas.

Sem saber S. descreve bem o fato de que não existe identidade fixa ou cristalizada.

Como foi dito as personagens são momentos da identidade; cada comunidade por qual passou

S. experimenta um momento de sua identidade, são desdobramentos das múltiplas

determinações.

São múltiplas determinações que às vezes coexistem e em outras se completam.

Apesar de S. dizer que não é personagem, essa é a confirmação do que Ciampa (1995), diz

que não é possível viver sem personagens.

(...) em cada momento de minha existência, embora eu seja uma totalidade, manifesta-se uma parte de mim como desdobramento das múltiplas determinações a que estou sujeito... nunca compareço frente aos outros apenas como portador de um único papel, mas como uma personagem (chamada por um nome) como uma totalidade... parcial (p.170).

Ciampa (1995) acredita que a personagem, em nosso caso representada pelo

nickname, pode representar melhor o indivíduo do que o nome próprio. Com isso podemos ir

além do paralelo nome/personagem/nick e questionar: Quem identifica melhor o indivíduo, o

nickname (nome fictício) ou o nome próprio (chamado oficial)? Diante da impossibilidade de

apresentar a totalidade de si mesma com seu nome oficial, S. cria um nickname, algo que a

represente melhor porque não foi um nome predicado. Estamos falando de mais uma

possibilidade no “jogo de reflexões múltiplas que estrutura as relações sociais” (p.171). São

os movimentos de metamorfose que caracterizam a identidade – conservando e transformando

– um permanente processo de identificação.

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Voltemos ao discurso de S., falando de seu nickmane.

Existem duas em mim. E eu não sei exatamente qual das duas eu

efetivamente sou. Qual é uma máscara, qual é a essência. E se eu

pudesse escolher quem eu quero ser? A P. (nick) ou a S. (nome

oficial)? O que eu quero é buscar o melhor das duas e criar uma

terceira. As paixões, desejos e a auto-confiança da P. (não a

arrogância, embora seja divertido) e a ética, a doçura, os sonhos, a

moral e os valores da S. Até hoje eu nunca consegui conciliar essas

duas personas.

Invariavelmente podemos perceber o conflito de S. que acredita existir uma identidade

fixa, isso a faz sentir-se dividida, “Existem duas de mim. E eu não sei exatamente qual das

duas eu efetivamente sou”. Mas inconscientemente sabe que “as duas” (que na verdade é

uma), são personagens dela mesma. Não quer abrir mão de nenhuma de suas formas de

representação, quer ser S. e quer ser, P., em suas palavras quer “conciliar as duas personas”.

Como podemos perceber, há em seu discurso uma alusão a um processo de incremento

do interesse pelas experiências derivadas das janelas online, equivalendo-se à importância

dada à janela associada à “vida real” - como se a outra realidade não fosse real – se assim

fosse teríamos que perguntar: o que é o real, neste caso? Quando S. está sendo ela mesma?

Nas relações tradicionais usando um nome que lhe foi atribuído (predicado) ou quando está

nas comunidades de relacionamento virtual onde tem o nome que escolheu e que permite

expressar-se livremente? Ela está sendo real quando se apresenta face a face (com sua

identidade pressuposta) representada por S., ou em suas descrições em comunidades virtuais

quando se representa como P.? É possível sustentar a percepção de que existe uma realidade

distinta da simulação? Essas são questões infinitas suscitadas pela realidade virtual e tem

estimulados muitos pesquisadores.

Turkle (1997) diz que as “janelas” que separam e organizam os aplicativos na tela de

um computador tornam-se poderosas metáforas para se pensar no self como um sistema

múltiplo e distribuído, de forma que a vida presencial (offline) pode acabar tornando-se

apenas mais uma “janela”.

O ‘eu’ não é mais simplesmente experimentar diferentes papéis em diferentes situações em diferentes lugares. A prática de vida das ‘janelas’ [no mundo virtual] é

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a de um ‘eu’ descentrado que existe em muitos mundos e que experimenta muitos papéis ao mesmo tempo. (TURKLE, 1996, online).

A autora defende que a internet é um lugar de identidades múltiplas, fronteiras de

gênero fluidas e renegociações ativas da identidade, particularmente no contexto das

comunidades virtuais. Da perspectiva da identidade pessoal e da psicologia social, as novas

tecnologias oferecem uma série de possibilidades de jogo e transformação (TURKLE, 1997).

Certamente não se trata de verdadeiro ou falso. Ainda que o próprio indivíduo, ao usar

um nickname, pense que está usando um nome falso ou fictício, na verdade está falando de si

mesmo, está dizendo quem é, está revelando sua identidade, o que se confunde com sua

história de vida. Parafraseando Ciampa (1995) ao se referir às personagens, podemos dizer

que os usuários de comunidades virtuais encarnam e se transformam à medida que vivem seus

nicknames.

As comunidades virtuais surgem como uma esfera própria, nas quais os sistemas de

gênero do presencial já não se aplicam, e onde, ao abandonar o corpo quando se entra nelas,

nos tornamos livres para assumir diferentes personagens ajudando a compreender nossa

pretensão identitária. São sistemas que, por meio do mundo virtual, possibilitam formas

emancipadoras e revolucionárias no mundo da vida.

Na história da construção da identidade na cultura de simulação, as experiências na internet ocupam um lugar de destaque, mas essas experiências só podem ser entendidas como parte de um contexto cultural mais vasto. Esse contexto é a história da erosão das fronteiras entre o real e o virtual, o animado e o inanimado, o eu unitário e o eu múltiplo, que está a ocorrer tanto nos domínios da investigação científica de ponta, como nos padrões da vida quotidiana. Desde cientistas que tentam criar formas de vida artificial até crianças 'metamorfeseando-se' numa série de personagens virtuais, irão deparar-se-nos numerosas evidências de alterações fundamentais na maneira como criamos e vivemos a identidade humana. Todavia, é na internet que as nossas confrontações com os aspectos da tecnologia, que ferem a nossa concepção de identidade humana, são mais acesas, cruas até. Nas comunidades em tempo real do ciberespaço, encontramo-nos no limiar entre o real e o virtual, inseguros da nossa posição, inventando-nos a nós mesmos à medida que progredimos' (TURKLE, 1997, 12-13).

São questões como essas que tornam a realidade virtual tão atraente. O ambiente

criativo da realidade virtual permite buscar uma ‘versão melhorada de si próprio’ (TURKLE,

1997, p. 286), onde determinados atributos são ressaltados visando compensar ou

complementar psicologicamente aspectos presentes em sua vida cotidiana, principalmente

aqueles relacionados a uma percepção fragilizada da auto-imagem. Com a realidade virtual há

uma quebra de conceitos tradicionais de identidade. Essa fluidez de noção do “eu” atrai

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muitos para estas formas de relacionamentos; potencializando movimentos que podem ser

emancipatórios.

Bauman (2003a), e seus estudos sobre identidade é outro autor importante para nossa

pesquisa. Quando ele usa termos como identidade liquida está referindo-se às novas

possibilidades de se entender o que é identidade. Para o autor, ao ultrapassar as barreiras do

mundo real concreto, os usuários passam a ter um leque ampliado de possibilidades de

combinações para a composição de sua identidade social. Ainda segundo o autor, o processo

de representação por meio dos nicknames, ou identidades sociais, é executado na sociedade

ocidental de tal forma que não interfere na constituição de uma singularidade do “eu”, ou seja,

independente das várias facetas requeridas e representáveis nas mais diversas situações

contextuais, a “identidade pessoal” com características biográficas é preservada.

A realidade objetiva é difícil de ser vivida fazendo com que a pessoa busque uma

“outra” realidade. Foi o que S. fez. A dinâmica verificada no ambiente presencial, como o

desempenho dos vários papéis, estariam estabelecidos previamente e entrelaçados entre si,

deixando o sujeito “amarrado” e impelido a representá-los. Em determinados momentos de

nossa conversa S. diz sentir-se “presa”; por exemplo, quando se refere ao papel de aluna. A

maioria das vezes as pessoas possuem padrões de comportamentos socialmente determinados

por expectativas criadas por estes respectivos papéis. Os comentários de Goffman (1996)

reforçam essa linha de entendimento.

Quando um ator assume um papel social estabelecido, geralmente verifica que uma determinada fachada já foi estabelecida para esse papel. Quer a investidura no papel tenha sido primordialmente motivada pelo desejo de desempenhar a mencionada tarefa, quer pelo desejo de manter a fachada correspondente, o ator verificará que deve fazer ambas as coisas. Além disso, se um indivíduo assume um papel que não somente é novo para ele, mas também não está estabelecido na sociedade, ou se tenta modificar o conceito em que o papel é tido, provavelmente descobrirá a existência de várias fachadas bem estabelecidas entre as quais tem de escolher (p.34).

Encerrando essa parte sobre identidade e nickname é importante dizer que autores de

diferentes áreas de estudo, sustentam e reforçam nossos argumentos para dizer que identidade

virtual (online) e identidade real (offline) refletem aspectos e/ou características diferentes e

complementares do processo identitário do mesmo indivíduo. Giuseppe Riva, do Instituto de

Tecnologia Aplicada a Neuropsicologia (Itália), afirma que o sucesso da internet “está

criando um novo espaço psicossocial, que é um chão fértil para relacionamentos sociais,

papéis e um novo senso de self” (RIVA, 2001, p. 1). Também John Suler (2001), psicólogo,

pesquisador da internet e criador do livro virtual intitulado “The Psychology of Cyberspace”,

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declara que “A Web é um lugar seguro para se tentar diferentes papéis, vozes e identidades”,

e completa: “É um tipo de experimentação para o eu (self) que você quer trazer para a vida

real” (MURRAY, 2000, online).

Enfim, o mundo virtual no mundo da vida, fascina porque permite criar e se

reinventar, o que potencializa o processo identitário emancipatório porque aumenta as

possibilidades de si mesmo, são novas oportunidades de metamorfoses (identidades). As

pessoas navegam para ampliar o self; para deixar de ser “eu” e ser “outro”, que também sou

eu. O nickname é mais uma personagem possível. Segundo Ciampa (1995), a personagem é

um momento da identidade que expressa as diversas formas que esta pode assumir,

particularmente por meio dos papéis sociais atribuídos ao indivíduo – pai diante do filho e

filho diante do pai, etc – nessa perspectiva, é importante ver o indivíduo de forma relacional e

não isolada. A identidade é a articulação da diferença e da igualdade.

2.2. Comunidades Virtuais: Agentes Potencializadores de Emancipação

A comunicação consciente (linguagem humana) é o que faz a especificidade biológica da espécie humana. Como nossa prática é baseada na comunicação, e a internet transforma o modo como nos comunicamos, nossas vidas são profundamente afetadas por essa tecnologia de comunicação (CASTELLS, 2003, p.10).

Vamos dar continuidade ao relato da história de vida de S. e verificar como as

comunidades virtuais atuaram como agentes potencializadores de emancipação em sua vida.

Primeiro é importante compreender como se forma uma comunidade virtual, como se adapta e

reinterpreta a realidade virtual.

Uma noite eu descobri uma sala de bate papo no UOL sobre

bruxaria. Entrei e conheci um garoto chamado M., tinha 21 anos na

época, morava no Japão. Ele me conduziu em uma conversa que

durou 5 horas, e eu não me sentia mais ali. Falou sobre Deus e o

Diabo, sobre yin e yang, sobre maniqueísmo; eu viajei em cada linha

do que ele escrevia. Ideias totalmente inéditas pra uma garota de 13

anos. M. foi meu primeiro mentor. Entrando vários dias seguidos, eu

descobri que todos os dias as mesmas pessoas frequentavam aquele

lugar, e que eram amigos.

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Assim como as demais comunidades, uma comunidade virtual parte de algo em

comum. No caso estudado a comunidade se formou de um interesse comum por bruxaria, mas

com características muito diferente das comunidades presenciais. Encontrar um grupo com os

mesmos valores é encontrar vida.

Não estamos falando de qualquer grupo de pessoas mas de uma comunidade que

estabelece entre si relações sociais por tempo suficiente para que possam constituir relações

duradouras. Na comunidade de que S. participava, “todos os dias as mesmas pessoas

frequentavam aquele lugar, e eram amigos”. Isso é importante porque existem espaços

virtuais, como o twitter, por exemplo, chamado de comunidade virtual, mas que não se aplica

ao conceito de comunidade adotado na pesquisa. É preciso que as relações sejam sistemáticas

e contínuas, que haja tempo para as relações sociais. As comunidades a que nos referimos...

são agregações sociais que emergem da rede quando um número suficiente de pessoas têm discussões públicas durante tempo suficiente, com suficiente sentimento humano, para formar teias de relações pessoais no ciberespaço (RHEINGOLD, 1993, p. 5).

Mesmo virtualmente os relacionamentos acontecem de fato, não se trata de

imaginação, real e virtual são aspectos diferentes de um agir comunitário. São comunidades

de relacionamento virtual que não precisam se opor às comunidades presenciais; são formas

diferentes de comunidades, com dinâmica específica, mas que interage de maneira diferente.

É o que podemos chamar de evolução da construção sociológica das comunidades tradicionais

onde nascemos ou de onde viemos com território e tempo delimitados. Agora podemos

avançar mais livremente para um tipo de comunidade organizada e fragmentada por

interesses; como o caso de S.

Feitas essas considerações vamos buscar no relato da história de vida de S.,

características marcantes das comunidades de relacionamento virtual, que nos permitem

compreender como e por que podem funcionar como agente potencializador no processo

identitário de seus participantes. Baseado no relato, destacamos quatro características

importantes encontradas na comunidade de S.

1. O pertencimento sem a limitação espacial;

2. A solidariedade sem a presença física do outro;

3. As relações estigmatizadas e

4. A sociabilidade assincrônica.

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2.3. Questões de Pertencimento

Eles (a comunidade) se tornaram uma segunda família pra mim.

Como eu era a mais nova do grupo, todos eles de certa forma me

adotaram. (S.)

O que faz o humano é seu processo de humanização; as pessoas necessitam comer,

beber, ser protegidas e pertencer a um grupo. Caso contrário sentem-se excluídas, sós, sem

identidade, “inumanos”. Ser humano é ser semelhante. Pertencer significa simultaneamente

ser incluído e estar separado, é ser parte de uma comunidade diferenciada e não de outra. Por

outras palavras, o ser humano é inerentemente uma criatura social cujas necessidades de

identidade só podem ser satisfeitas numa relação comparativa de inclusão/exclusão com

outros grupos.

Para que uma “identidade nickname” (identificação no ciberespaço) seja a

representação da pretensão identitária é necessário que o outro entre no jogo pretendido pelo

usuário. Para que seja possível o exercício das características e das práticas comportamentais

escolhidas faz-se necessário que o outro seja um sujeito ativo que também está exercitando e

explorando novas possibilidades existenciais. Sem essa interação corre-se o risco de um

delírio identitário.

Segundo Almeida, J. (2005), a “nova identidade” só se realiza no movimento de

reconhecimento do outro. Para o autor,

Todo movimento de auto-realização contém pretensões que terão de ser reconhecidas intersubjetivamente pelos outros membros da comunidade real e se isto não acontecer, ou o sujeito terá que atropelar os outros para se realizar, ou será impedido por elas (FERREIRA, R., 2000, p.153, apud: ALMEIDA, 2005).

Portanto, a pretensão identitária construída virtualmente, também, necessita de

reconhecimento do outro. O usuário precisa que alguém compartilhe de sua identidade online,

que seja um cúmplice, a fim de que possa se tornar, ainda que por meio do nickname e dos

papéis representados naquele momento. S. que se apresentava como P. encontrou um “outro”

que permitiu dar continuidade às suas relações.

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...nas comunidades virtuais; tenho o mesmo grupo de amigos há mais

de uma década e acredito que uma amizade demanda tempo e atenção

consideráveis. Prefiro manter muito bem os que eu tenho, a ter uma

rede vasta de “colegas” com os quais não interajo efetivamente.

Nem todo grupo é uma comunidade. O sentimento de pertencimento é um elemento

fundamental para a definição de uma comunidade. A “novidade” ou um dos diferenciais das

comunidades virtuais é que é possível pertencer a distancia; o pertencimento não depende de

uma localização estática. Evidentemente, isso não implica a pura e simples substituição de um

tipo de relação (presencial) por outra à distância, mas possibilita a co-existência de ambas as

formas, com o sentimento de pertencimento sendo comum às duas. Em seu relato sobre a

comunidade S. diz que costumava encontrar-se num parque, contudo, a única pessoa citada

nominalmente, ‘M’, que mora no Japão, nunca encontrou pessoalmente.

O M. veio ao Brasil algumas vezes, mas eu nunca o encontrei. Outras

pessoas do grupo chegaram a conhecê-lo. Meu ultimo contato com ele

foi em 11 de setembro de 2011. Era o dia em que ele retornaria em

definitivo para o Japão.

Quando se constitui uma identidade online, o indivíduo está projetando desejos e

fantasias que satisfazem suas carências e necessidades mais íntimas e por meio de contatos,

efêmeros ou duradouros, a pessoa encontra reconhecimento protegida pelo anonimato da

internet. Em outras palavras, nas páginas da internet o usuário convive com multiplas

pretensões identitárias, podendo transitar livremente de acordo com as contingências e com

sua própria vontade, vivenciando novas e distintas situações por meio de uma sucessão rápida

e cambiante de aspectos e características de si mesmo.

Desejos e crenças, necessidades e memórias, fantasias e normas me dizem, de diferentes maneiras, quem sou, e me sugerem uma forma móvel de composição daquela diversidade. Naturalmente, também a natureza fluida da identidade dos internautas não escapa à ambivalência. De fato, se de um lado indica multiplicidade e abertura no possível, de outro evoca incoerência e impossibilidade de decidir, com risco de resvalar na irresponsabilidade (MININNI, 2008, p.206).

O fato de que a pessoa mais importante para S. – seu mentor - ser a única pessoa que

ela não conheceu pessoalmente é extremamente relevante porque é uma característica ímpar

da comunidade virtual. É a possibilidade de encontrar-se e/ou projetar-se no outro. Sem as

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limitações do encontro presencial as possibilidades e concretude da pretensão identitária são

potencializadas.

O trânsito livre das comunidades virtuais permite o desenvolvimento da

individualização no sentido de autonomia e rompe com barreiras isolacionistas. Castells

(2000, p. 79), referindo-se a Michel Maffesoli, fala sobre “pulsão gregária”; isso para

ressaltar que as pessoas resistem ao processo de individualização e atomização, tendendo a

agrupar-se em organizações comunitárias que ao longo do tempo, geram um sentimento de

pertença. Esse movimento dialético – incluindo-se ao se excluir - encontra realização e

satisfação nas comunidades de relacionamento virtual.

Rheingold (1993), foi um dos primeiros a afirmar, já na década dos anos 1990, quando

nascia uma nova forma de comunidade, que reuniria as pessoas online em torno de valores e

interesses compartilhados poderiam se estender também à interação presencial. A partir da

comunidade e sua virtualidade S. encontrou o pertencimento e da extensão do virtual para o

presencial iniciou seu primeiro namoro, um salto importante para uma adolescente que “vivia

de casa para a escola”.

Por alguns anos essa rotina se manteve. Encontros diários na sala de

bate papo e encontros em pic-nics e círculos de estudo, aos finais de

semana. O Parque da Água Branca, em Perdizes, era nosso ponto de

encontro. (...) uma das pessoas desse grupo se tornou meu primeiro

namorado e é um dos meus melhores amigos até hoje.

O que podemos pensar é que a internet e as comunidades virtuais podem ser mais uma

alternativa de comunidade com características diferentes e comuns às comunidades

presenciais. Diferente em sua espacialidade e temporalidade e comum nos laços criados em

toda comunidade. São comunidades importantes porque abrem novas oportunidades que

contribuem para a expansão de vínculos sociais e afetivos.

S. encontra acolhimento na comunidade virtual, em uma noite difícil de uma fase

difícil, adolescência, com/em pessoas de diferentes partes do mundo presencial, ela encontra

pessoas para compartilhar seus sentimentos, angustias e conflitos. Em seu relato diz que tinha

insônia, passava noites solitárias e assim como o Severino da obra de Ciampa, encontra uma

porta para buscar concretizar uma identidade humana, “sozinhos certamente não podemos ver

reconhecida nossa humanidade, consequentemente não nos reconhecemos como humanos”

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(CIAMPA, 1995, p.38). S. salta para fora daquela vida (realidade concreta) e encontra vida

acordada (estado de vigília) no mundo virtual. No grupo cada indivíduo reconhece no outro

um ser humano e é assim reconhecido por ele.

2.4. Questões de Solidariedade

Pertencimento e solidariedade caminham junto, essa é mais uma característica das

comunidades virtuais encontrada no discurso de S.

Eu havia não só encontrado meu caminho, como também meu clã,

meu grupo. (...) Foi o momento em que eu deixava de ser apenas mais

uma, mais uma aluna aleatória, mais uma amiga, mais uma

adolescente e ia aos poucos, formando minha identidade.

Descobrindo o que eu acreditava, o que eu buscava, o que me

despertava paixão. A internet desde então sempre foi um dos meios

para encontrar e estar “entre os meus”.

Tendo sua capacidade de encontrar afinidade ampliada, graças às características

ímpares das comunidades de relacionamento virtual, fica mais fácil encontrar o outro e com

isso encontrar-se consigo mesmo. É na realidade da comunidade virtual que S. “... ia aos

poucos, formando minha identidade. Descobrindo o que eu acreditava, o que eu buscava, o

que me despertava paixão”. Tudo o que S. não encontrara começa a surgir diante de si:

amizade, confiança, pertencimento, solidariedade, etc. É o mesmo processo encontrado na

comunidade de José quando nasce seu primeiro filho; é “como que há uma mágica

transformação da realidade” (CIAMPA, 1995, p.33). O cenário é outro, tudo adquire novo

significado. Parafraseando Ciampa (idem), a solidariedade e a amizade não são impedidas

pela realidade concreta, presencial. É na ação da comunidade que S. encontra vida. “É o

sentido da atividade social que metamorfoseia o real e cada uma das pessoas” (p.34).

Nem toda comunidade é solidária, aliás, nas comunidades presenciais, onde nem

sempre escolhemos estar ali, isso é cada vez mais difícil. Muitas vezes, as pessoas fazem parte

de uma comunidade, simplesmente porque vivem naquele bairro ou trabalham na mesma

empresa. No caso das comunidades virtuais as pessoas escolhem estar ali, elas se aproximam

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por iniciativa e escolha própria. Têm um lugar seguro de encontro que permite os seus

membros experimentar e explorar novas identidades e/ou personagens, conduzindo a uma

interação muito mais desinibida que nas relações presenciais. Embora possivelmente nunca se

venham a conhecer pessoalmente, é possível desenvolver uma relação de verdadeira amizade,

encontrar solidariedade.

Nas relações presenciais há, inclusive, uma tensão entre pertencer a uma comunidade e

ter segurança ou viver fora da comunidade e ter liberdade. A comunidade tradicional

presencial geralmente não é aquela sonhada, mas garante certa proteção, entretanto, tira e/ou

limita a liberdade porque ali o outro, que não depende de você para estar ali, precisa ser

respeitado. A busca por comunidades virtuais, com iniciativa própria, tem sido uma tentativa

para lidar com essa tensão entre pertencer e ser livre. S. encontra pertencimento na

comunidade que escolheu, encontrou algo importante em seu processo de construção da

identidade.

As redes me ajudaram a fazer amizades e construir relacionamentos

que foram importantes no processo de construção da minha

identidade. Ajudaram a definir quem eu sou, quais são meus gostos,

meus objetivos, o que eu espero do mundo, o que eu quero me tornar.

(...) Antigamente as pessoas se aproximavam mais por força das

circunstâncias (ex. mora perto, estuda junto, etc), hoje se aproxima

por interesse; por identificação; por afinidade.

A qualidade de membro numa comunidade virtual é normalmente intencional, uma

vez que as pessoas escolhem a comunidade da qual querem fazer parte. Os membros

solidarizam-se, há um sentido de pertença e de apoio social. Basicamente, as pessoas

desempenham as mesmas atividades no mundo virtual e no mundo físico – discutem,

protestam, lutam, reconciliam-se, fazem amigos, divertem-se (RHEINGOLD, 1993). As

comunidades virtuais oferecem maior flexibilidade de escolhas e com isso facilitam suas

pretensões identitárias.

Ao falar de sua identidade S. traz abertamente alguns dos princípios fundamentais

para, segundo Ciampa, entender identidade. O autor conceitua identidade a partir de perguntas

como: “Quem sou eu?” e “o que pretendo ser?”. S. diz que suas relações ajudaram a “definir”

quem é e o que quer se “tornar”. Assim como defende Ciampa, S. fala de seu processo de

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identidade como sendo relacional e histórico; um processo de interação e transformação

humana.

A sociedade contemporânea tem se mostrado contraditória; ao mesmo tempo em que

há movimentos favorecendo a reprodução de valores egoístas e de isolamento pessoal, estes

também acabam por gerar seu contraditório.

Os relacionamentos virtuais oferecem uma alternativa ao contraditório. Se a sociedade

parece estar mergulhada no individualismo, por um empobrecimento das relações sociais, o

uso da internet e suas comunidades virtuais permitem, sem a necessidade de um encontro

presencial, criar vínculos sociais e afetivos. Essa possibilidade favorece movimentos que

funcionam como fragmentos emancipatórios.

Nos relacionamentos face a face sou mais tímida e mais

“inassertiva”, estou mudando isso aos poucos. Na rede eu sei me

posicionar muito bem, colocar minhas ideias e opiniões de forma

clara, mesmo que vá contra a maioria. Nos relacionamentos

cotidianos, costumo “ficar na minha” mais vezes, exceto no trabalho

(risos).

A superação de algumas dificuldades impostas pelo mundo presencial é destacada

quando S. diz que nas relações face a face tem mais dificuldade de dizer o que pensa –

inassertiva – (sic) e reconhece que uma realidade virtual está ajudando a romper essa

dificuldade, aos poucos está adquirindo autocontrole sobre sua vida.

Castells (2000), fala que as pessoas resistem ao processo de individuação e

atomização, tendendo a agrupar-se em comunidades que geram um sentimento de pertença.

Segundo o autor existem diversos tipos de movimentos sociais que desenvolvem uma práxis

comunitária, dentre os quais estão os relacionamentos em comunidades virtuais voltadas para

a solidariedade, em que as pessoas encontram seus “iguais”; onde identificam-se garantindo

melhores condições de existência e participação na sociedade. É o que vemos acontecer com

S., depois de ser acolhida, depois de experimentar a solidariedade da comunidade virtual,

alguns meses depois, ela pode fortalecer seu nível de relacionamentos e dar continuidade em

seu “caminho”.

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Nos conhecemos pessoalmente alguns meses depois, em um pic-nic

organizado por uma das listas de discussão de que participávamos.

Depois desse encontro, formamos um círculo de estudos sobre magia

chamado Água da Lua, meu pai teve que assinar uma autorização e

autenticar em cartório para que eu pudesse participar (risos).

Tomando por base o exposto podemos pensar que as pessoas enfrentam uma luta por

“sobrevivência”, um desejo de emancipação. Se o mundo presencial, por suas características

pluralistas e hedonistas, dificulta a luta por emancipação, o mundo virtual com suas

potencialidades aumentadas, surge como uma nova realidade. As comunidades virtuais não

são tão carregadas de estigmas como as comunidades presenciais; esta é outra característica

importante que vamos destacar.

2.5. Questões de Estigmas

(...) o que mais me atraía quando buscava conhecer as pessoas nas

comunidades virtuais, é que na internet eu conhecia primeiramente o

interior delas. Quem elas são, o que pensam de diversos assuntos,

quais são seus gostos, hobbys, valores. Tinha tempo pra conhecer a

fundo quem a pessoa realmente é, antes de conhecer a “Casca”...isso

realmente me fascinava. (grifos do autor).

Na Grécia antiga foi criado o termo estigma, este conceito estava relacionado a algum

sinal corporal que representava um status, fosse ele bom ou ruim. Um sinal que o identificava

como diferente – de um ideal imaginário – e, portanto, deveria ser evitado especialmente em

lugares públicos. Esse é o recorte do estigma que vamos usar. A opção pelos estigmas

corporais, mais uma vez, deu-se em virtude do relato de história de vida de S. que nos leva a

pensar que, neste ponto, há um motivo importante para que S. optasse pelas comunidades de

relacionamento virtual.

Assim como na Grécia antiga o estigma continua a ser usado, as sociedades modernas,

de forma implícita ou explicita, continuam categorizando as pessoas, usando padrões estéticos

aos quais são atribuídos significados estigmatizantes. Atualmente, o estigma é mais usado

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afim de “preservar” um ideal imaginário. Aqueles que estiverem fora do padrão, ou com diz

Goffman (2004), diferente da identidade virtual, são estigmatizados.

Quando a sociedade faz afirmações e/ou atribuições em relação ao que o outro deveria

ser, está imputando um estereótipo que não corresponde a sua identidade real, essa

caracterização é sua “identidade social virtual” (GOFFMAN, 2004). O estigma atualizado.

Essa “identidade social virtual”, geralmente, é algo indesejado porque se for algo positivo irá

esbarrar na falta de veracidade e se for algo negativo, pelo óbvio. Por isso todo estigma

dificulta relações sinceras e duradouras. As pessoas mantêm relações distantes com receio de

ser marginalizadas em função do estigma que lhe foi predicado. Os ambientes sociais

estabelecem as categorias de pessoas que têm probabilidade de serem neles encontradas.

A sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas categorias: Os ambientes sociais estabelecem as categorias de pessoas que têm probabilidade de serem neles encontradas. As rotinas de relação social em ambientes estabelecidos nos permitem um relacionamento com "outras pessoas" previstas sem atenção ou reflexão particular. Então, quando um estranho nos é apresentado, os primeiros aspectos nos permitem prever a sua categoria e os seus atributos, a sua "identidade social" (GOFFMAN, 2004 p. 5).

O autor amplia as possibilidades de estigmas e faz referência a três tipos de estigmas:

aqueles relacionados ao corpo, assim como os gregos (sinais ou deformações físicas, por

exemplo); estigmas relacionados às culpas de caráter individual (viciados, doente mental,

homossexualidade) e os estigmas tribais de raça, nação, religião (negros, macumbeiros). Visto

assim, de forma mais ampla, não podemos afirmar que as comunidades virtuais estão livres de

estigmas, contudo, é possível falar que suas características diminuem as possibilidades de se

estigmatizar alguém.

Ao preencher seu perfil a pessoa escolhe as características que irão identificá-la. O

perfil pessoal geralmente inclui traços raciais, altura, aparência, gênero sexual, preferências,

etc. A construção de um perfil é algo pensado, de forma a dar opção a respeito de como quer

ser visto. Busca-se eliminar o que não condiz com o que se quer representar, o que favorece a

representação de sua pretensão identitária. Sobre isso S. diz:

Costumo colocar na minha profile5. alguma citação que tenha relação

à fase em que estou vivendo no momento. Pequenos trechos de

5 Página em que o perfil da pessoa é traçado.

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músicas, poesias ou livros. Também deixo claro tudo que é importante

pra mim, quais as minhas principais relações sociais, meus autores

favoritos, músicos, filmes, enfim, tudo que faz parte de quem eu sou.

(...) Quem conseguir descobrir “quem eu sou” através delas, é

alguém que conhece os mesmos códigos que eu. Uma delas é uma

frase de uma música do John Lennon, chamada Beautiful Boy, a frase

é “Life is what happens to you while you're busy making other plans”

“Vida é o que acontece a você, enquanto você esta ocupado fazendo

outros planos”. Acho a música inteira linda, é um pai cantando para

seu filho pequeno dormir, e enquanto isso, falando sobre alguns

valores, algumas expectativas. Coloquei no meu perfil porque estou

passando por um período intenso de viver. Mas principalmente, é o

melhor conselho que já li. Atualmente me sinto vivendo e aprendendo

intensamente, e não fazendo planos. Uma outra frase que esta no

perfil é o trecho de uma música da Loreena McKennitt, “O vento é

preenchido por milhares de vozes, elas passam pela ponte e por

mim”. Essa música, que se chama All souls night, chega a me levar às

lágrimas todas as vezes que ouço. É uma oração pra mim. Fala sobre

um dos mais importantes rituais da minha religião6, o Samhain, o ano

novo celta. E fala sobre reencontrar-se. Fala sobre imagens que

sempre me perseguiram... aqui tem a tradução dela

http://letras.terra.com.br/loreena-mckennitt/25249/traducao.html A

frase em específico que eu escolhi “O vento é preenchido por

milhares de vozes, elas passam pela ponte e por mim” é porque me

6 Wicca é uma religião neopagã baseada em crenças pré-cristãs da Europa Ocidental. Seus seguidores são conhecidos como Wiccanos ou simplesmente bruxos. É uma religião matriarcal de culto à Deusa Tríplice e ao Deus Cornífero. Celebram os ciclos da natureza através de rituais solares e lunares. Esses rituais solares são conhecidos como Sabbaths, e tem origem no ano novo celta. Os celtas tinham uma concepção de tempo cíclica e não linear, dividiam o tempo em duas grandes rodas, marcando o início das estações através da observação de solstícios e equinócios, e os festivais do fogo, marcando importantes períodos para a colheita. O mais importante desses festivais é o Samhain, que marca o início do ano novo celta, e a entrada na parte escura da Roda do ano, um período de introspecção e recolhimento, prenuncio da chegada do Inverno. Esse festival ainda hoje é comemorado e sobreviveu à cristianização como Halloween ou Dia das Bruxas.

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sinto fazendo parte do mundo, como se eu tivesse encontrado meu

lugar.

Sendo a identidade um processo contínuo não podemos falar em um Eu real,

verdadeiro ou fixo, simplesmente porque ser um pessoa implica sempre tornar-se uma pessoa,

estar num processo. Ao se identificar na comunidade virtual S. fala, em sua profile, que se

identifica com base em um momento de sua vida; acredita que esta é a melhor forma de

responder ao objetivo da página – responder a pergunta: Quem sou? “Em minha profile faço

citação que tenha relação à fase em que estou vivendo no momento”. S. descreve o que

Ciampa (1995) diz: identidade são momentos da história de vida.

Diante da dificuldade que todos temos para responder: “Quem sou?”; S. usa códigos e

desafia que a identifiquem “...Quem conseguir descobrir quem eu sou através delas, é alguém

que conhece os mesmos códigos que eu”. E em seguida fala de seus sentimentos, naquele

momento, segundo a música escolhida para a representar, S. “é” uma filha que precisa carinho

e acolhimento, a música fala sobre “...um pai cantando para seu filho pequeno dormir...”.

Fala de seu presente (valores) e seu futuro (expectativas), aspectos importantes que a

identifica como pessoa. Assim ela descreve quem é naquele momento, se sente como se

tivesse encontrado seu lugar. S. assinala para o encontro de S. com P., em que deixaria de ser

só mais uma (S.) e seria alguém (P.).

É em uma página na internet, onde acredita poder falar do “interior” e onde não se

valoriza a “casca”, que S. sente-se livre para dizer quem é. Acredita que essa é uma forma de

evitar estigmas em uma sociedade estigmatizadora. A sociedade apresenta características

sociológicas em que os indivíduos possuem um traço que dificulta fazer-se conhecido para

além do estigma e que acaba por antecipar sua apresentação. Uma vez que em nossa

sociedade o indivíduo estigmatizado adquire modelos de identidade que aplica a si mesmo é

inevitável que sinta alguma ambivalência em relação a seu próprio eu (Goffman, 2004).

Essa ambivalência pode ser compreendida como a necessidade de ser conhecido e o

desejo de esconder-se temendo as repressões da comunidade presencial. Esse movimento

dialético tem impulsionado a busca pelas comunidades virtuais, por suas características

aestigmatizadas. “Uma vez que as comunidades virtuais são normalmente baseadas em textos

e acorpóreas, não há lugar para o estigma” (SMITH, 1995, apud SILVA, A., 2002, p. 38).

Ainda segundo a autora as comunidades virtuais são comunidades “incorporporeas”

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poderosas e construídas livre da geografia ou de fronteiras territoriais (BUGLIARELLO,

1997, apud: SILVA, A. 2002, p.37). Vejamos.

S. busca nas comunidades virtuais pessoas iguais, no caso que se interessam por

bruxaria, ou seja, que compartilham coisas em comum, sendo assim o estigma não é

conhecido, ou não existe, já que um estigma está ligado ao “diferente” que lhe é atribuído, ela

está entre os iguais, ou seja, aqueles que se interessam por bruxaria.

Além de um lugar livre de alguns estigmas, as comunidades virtuais têm sido local

para encontros entre os iguais. Segundo Goffman (2004), quando o indivíduo se depara com

outro igual, que compartilha os mesmos interesses poderá encontrar nesse apoio moral, a

potência para se livrar do peso de carregar um estigma que lhe foi imputado pela comunidade

presencial. A comunidade virtual pode propiciar à vida do indivíduo estigmatizado, refugio e

amparo. Quando S. diz: “o que mais me atraía quando buscava conhecer pessoas nas

comunidades virtuais, é que na internet eu conhecia primeiramente o interior delas... antes de

conhecer a casca.”, podemos pensar que sentia-se estigmatizada no mundo concreto-

presencial e por isso recorre à realidade virtual.

As comunidades de relacionamentos virtuais oportunizam e permitem que as pessoas

se sintam aceitas independente de sua aparência, livre de estigmas tão comuns nas

comunidades presenciais.

As amizades não são mais necessariamente locais. As pessoas não são mais abordadas por serem bonitas, se vestirem bem ou exibirem sinais de riqueza. As aparências e o dinheiro tornaram-se pouco importantes, pelo menos para um contato inicial. Os primeiros estágios da comunicação tornaram-se anônimos e “afísicos”. As pessoas se aproximam umas das outras por conta do que seus nicknames ou por conta de que conseguem expressar de si mesmas por escrito (mesmo quando criam um personagem imaginário) (NICOLLACI DA COSTA, citado por CAMPOS, 2000, online).

A dimensão emancipadora das comunidades virtuais permite às pessoas ligar-se a uma

representação de si mesmo sem estigmas; permite vivenciar papéis diferentes, qualidades

mais satisfatórias e aproximar os sonhos da realidade. S. reconhece seu papel de jovem

universitária, mas quer, também, assumir o estado do ego que lhe permita ser a criança de

escuta canção de “ninar”. A criança que está dentro dela é ativada por causa do momento

difícil que está passando. Na comunidade virtual encontra quem a “adote” como é.

Com a possibilidade do anonimato a pessoa participa de comunidades sem os receios

dos julgamentos prévios, dos conhecimentos já acumulados sobre a vida. O sujeito virtual

pode ser diferente do sujeito estigmatizado no mundo presencial. Ele pode multiplicar-se em

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outras subjetividades, de acordo com os objetivos no mundo virtual, assumindo uma atitude

mais assertiva no mundo da vida, por ser menos podada pelos estigmas e pelas visões

arraigadas das relações face a face; S diz que:.

Nos relacionamentos virtuais sou verdadeira não faço o que não

tenho vontade, não converso com quem não tenho vontade, me

permito ser eu mesma e mostrar exatamente quem eu sou, sem me

preocupar com “o que vão pensar disso”. Se eu fizesse isso nas

relações cotidianas, nenhuma sobreviveria (risos).

Um relato como esse corrobora a hipótese de que as comunidades de relacionamentos

virtuais, livres de alguns estigmas, podem atuar como agente potencializador de emancipação

por sua facilidade em eliminar e/ou manipular estigmas. O fato é que, se no cotidiano as

pessoas são constrangidas por discursos rígidos em que não permitem revelar emoções

sinceras, nas comunidades virtuais, atrás de um ecrã, usando um nickname, podem contrariar

discursos estigmatizantes, satisfazer a necessidade de pertencimento, romper barreiras de

preconceito e experimentar novos momentos de identidade; enfim permite experimentar

novas metamorfoses na sua luta por emancipação. Pode ser a ruptura de certos limites da

realidade presencial.

S. não apenas escolhe uma nova “identidade” – um nickname – mas trata de encarnar

sua nova realidade. Ainda referindo-se a seu perfil nas comunidades virtuais diz:

Em um perfil, cada pessoa é um pequeno universo infinito de

possibilidades. Apenas de olhar um perfil no Orkut você já consegue

saber o que essa pessoa mais gosta de fazer, de ler, de comer, de

ouvir, o que ela faz nas horas vagas, o que ela é profissionalmente,

...como são suas relações e como elas foram construídas, quais são

seus sonhos, medos, o que ela odeia, quais movimentos participa e um

mundo de outras coisas. Pra quem tem curiosidade sobre o ser

humano, é um prato cheio. Não há lugar melhor pra colher

informações sobre alguém.

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Nas comunidades virtuais as pessoas manifestam discursivamente uma valorização de

se apresentar como “verdadeirqs”, buscam expor características que façam sentido não só

online, mas que representem seus interesses pessoais. Quando S. diz que apenas olhando o

perfil é possível conhecer a pessoa, não percebe que está manipulando estigmas visto que é

ela mesma quem escolhe o que apresenta como seu perfil (veremos isso mais à frente). Ao

escolher músicas, filmes, poemas e livros, S. está dizendo quem é, sem dizer, deixe que o

outro a “leia”. Mas é assim que se sente melhor representada e não por traços sociais que

estigmatizam como: cor, raça, gênero, opção sexual, biótipo, religião, nacionalidade, etc.

Identidade social virtual e identidade social real (GOFFMAN, 2004), são realidades

de uma sociedade estigmatizante. Quando aqui defendemos a importância da identidade

virtual (nickname), não estamos nos referindo ao que Goffman chama de identidade social

virtual, uma forma dicotomizada entre o real e o virtual, defendemos sim, uma forma de

integração da pessoa. Quando uma pessoa está se relacionando em comunidades virtuais ela

está sendo única – não são duas pessoas – o que ela sente e vive é real. O diferencial nos

relacionamentos virtuais e a ausência das restrições e de estruturas sociais externas. Com isso

a pessoa tem mais facilidade para se reinventar, para experimentar novos personagens de si

mesmo, cultivar a diferença do que é, do que gostaria de ser.

...eu passava os dias ansiosa para chegar a madrugada e poder entrar

na internet e dividir tudo com eles.

A animação, interação, sentimentos e confrontos nas comunidades virtuais acontecem

de fato; a ansiedade de S. era real. Esse é um argumento importante contra os críticos que

tratam o virtual como alienante. Não é isso o que a pesquisa está mostrando, ao contrário, no

caso de S. as interações online potencializam as relações sociais existentes.

(...) a realidade virtual não é alienação; abre consciência; se

aprofunda; se expande. (...) Desse grupo inicial, saíram muitos

namoros entre os membros, formação de grupos de magia (os

chamados covens7.), muitas descobertas e a amizade que dura até

hoje, pois graças ao Orkut, em 2004, os poucos contatos que eu havia

perdido, foram retomados.

7 Nome dado a um grupo de bruxos(as) que se une num laço mágico, físico e emocional para louvar a deusa.

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A sociedade é construída de forma tal que é difícil não considerar que, de um jeito

ou de outro, convivemos com estigmas. As discrepâncias entre identidade social virtual e

identidade social real descrita por Goffman (2004), sempre existirão. Não serão as relações

virtuais que irão libertar completamente a humanidade dessa realidade, contudo, vemos nas

comunidades virtuais formas importantes de, senão eliminar, ao menos manipular estigmas

que dificultam aos humanos se humanizar. Alguém estigmatizado não é completamente

humano.

2.6. Questões Assincrônicas: Temporalidade, Espacialidade e Sociabilidade sem

fronteiras

No ciberespaço criam-se novas comunidades – as comunidades virtuais - em que participam pessoas de todo mundo, mas que não necessitam necessariamente de ter um contacto físico (TURKLE, 1997, 287-288).

Sem as limitações físicas das comunidades virtuais presenciais, as comunidades

virtuais não seguem os mesmos modelos de comunicação e interação, mas nem por isso

deixam de ser reais, funcionam em outro plano da realidade. Segundo Wellman (1999, apud

CASTELLS 2006), não são imitações de outras formas de vida, têm sua própria dinâmica.

Transcendem a distância, o custo financeiro, costumam ter natureza assincrônica, combinam a

rápida disseminação da comunicação de massa com penetração da comunicação pessoal e não

existem no isolamento de outras formas de sociabilidade. As comunidades virtuais

constituem-se novos lugares de sociabilidade.

Trata-se não mais de nossos vizinhos, de nossos amigos, de nossos colegas de trabalho ou outros afins, mas de "[...] pessoas de todos os cantos do mundo, pessoas com quem dialogamos diariamente, com quem podemos estabelecer relações bastante íntimas, mas que talvez nunca venhamos a encontrar fisicamente." (TURKLE, 1997, p. 12).

Está é a quarta característica das comunidades que estamos estudando – uma

comunidade com características assincrônicas – sua capacidade de transcendência temporal e

espacial, também é responsável pela emergência da realidade virtual no mundo da vida.

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O lugar onde eu me reunia com os meus amigos diariamente era uma

sala de bate papo do UOL chamada "Bruxaria", ainda existe. Era

uma sala aberta, e naquela época, as pessoas eram sempre as

mesmas. Você pode acessar a sala clicando aqui

http://batepapo.uol.com.br/bytheme.html?nodeid=525041.

É interessante como S. fala naturalmente de sua comunidade virtual como “lugar onde

se reunia”, parece não fazer distinção alguma entre um espaço virtual e o espaço presencial.

Dando, inclusive, o endereço. Essa é uma forma importante para mostrar como a realidade

virtual está incorporada socialmente, como esses novos espaços fazem parte da realidade das

pessoas.

Muito do que era visto na ficção dos cinemas hoje faz parte da realidade; a realidade

virtual é a supressão de fronteiras territoriais e temporais que certamente implicam na

transcendência das subjugações físicas. As pessoas partilham experiências de formas variadas

em um mundo diferente o que leva também a entrar em contato com novas representações

sociais. Se uma comunidade presencial emprega códigos não-verbais para acompanhar as

expressões verbais – numa mistura de gestos, vestuário, etiqueta, expressões ou sotaques,

produzindo sentimentos, atitudes e comportamentos - os participantes de uma comunidade

virtual também possuem seus códigos, recriam ambientes e aceitam regras não escrita, nem

visualizada, facilitando o contato entre pessoas que normalmente não o fazem, por timidez,

distância geográfica ou qualquer outra forma de inibição (SILVA, A. 2002).

Participar implica em ter acesso, quer seja a um lugar ou ao conhecimento. Foi o que

aconteceu com S., ela não poderia obter os livros de Paulo Coelho, contudo, por meio das

comunidades assincrônicas, rompeu barreiras espaciais, econômicas e de sociabilidade ao

conhecer M., que mora no Japão. Assim obteve conhecimento e com isso pode dar um passo

importante, participar das discussões religiosas na comunidade de bruxaria. A participação se

opõe a opressão, pois permite que os indivíduos influenciem as decisões que de outra maneira

seriam impostas e este é um dos imperativos para a emancipação. Foi participando da

comunidade virtual que, em suas palavras, S. deixou “de ser só mais uma...”, atingindo assim,

o que Habermas chama de fragmentos de emancipação (sobre isso falaremos a seguir).

O jovem da periferia que dificilmente tem acesso a bibliotecas, viagens ou contatos

com pessoas com nível socioeducativo maior, encontra na realidade virtual um mecanismo

potencializador onde temporalidade, espacialidade e sociabilidade se mostram mais acessíveis

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e possíveis a ele, naquele momento. É a ruptura de certos limites da realidade presencial em

tempo e espaços únicos. O indivíduo, em sua luta por emancipação, precisa transgredir os

espaços e lugares estáticos que lhes são atribuídos.

A metamorfose representa, em sua forma emancipadora, uma violência criativa que se caracteriza como tal não só por seu impacto, mas, sobretudo, porque este procedimento está além dos limites do pensamento reificado que toma o estabelecimento como normal ou natural, além dos limites do socialmente conveniente e do razoável (ALMEIDA, J. 2005. p.116)

Essa “violência criativa” tem se levantado contra a estrutura social moderna de um

Estado capitalista que é rígida e controladora. Castells (2006), citando Nico Poulantzas

(1978), ao falar sobre sociabilidade diz que a novidade nas formas de socialização:

...é que absorve o tempo e o espaço sociais, estabelecem as matizes de tempo e espaço e monopoliza a sua organização que se transforma, por ação do Estado, em redes de dominação e poder. Hoje em dia não é assim. O controle do Estado sobre o tempo e espaço tem sido contornado pelos fluxos globais de capital, produtos, serviços, tecnologias, comunicação e informação. O poder histórico do Estado tem sido desafiado por identidades plurais, definidas por sujeitos autônomos. (CASTELLS, 2003, p.293)

É importante lembrar que estamos partindo de uma visão sócio-histórica de Homem;

assim ao romper barreiras estruturais como o controle do Estado, estamos falando também,

em transformações na identidade dos indivíduos; tendo em vista que indivíduo e sociedade se

constroem em um movimento dialético. Ao partir ou preferir os relacionamentos virtuais o

indivíduo busca um meio radical de libertação. É radical porque, em princípio, rompe com o

mundo presencial e concreto.

Retomemos a história de S.:

Acredito que o universo virtual não tem fronteiras, não falo apenas

sobre poder falar com uma pessoa de qualquer canto do mundo, mas

poder falar sobre qualquer assunto, a qualquer hora, com a

profundidade que eu quiser. Sempre vou encontrar alguém

interessado nas mesmas coisas que eu. Na “vida real”, nós temos que

falar de assuntos de trabalho no trabalho, de assuntos da faculdade

na faculdade, e só nos momentos do tal “cafezinho” é permitido falar

de qualquer outra coisa. Somos “formatados” no cotidiano a ser o

que a sociedade espera naquele determinado período. Nas relações

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virtuais sou 100% sincera; meus valores, pensamentos, interesses e

ideias. Na rede eu me permito ser eu mesma, sem máscaras. Não

acrescento nada, mas claro que procuro apresentar o meu melhor.

Mais do que romper espaços físicos nas comunidades virtuais os participantes

manifestam o sentimento comum de que as suas identidades virtuais são objetos evocativos

para pensar acerca do Eu (Turkle, 1997). O espaço virtual permite repensar o que é chamado

de natural e mascarado, levando à descobertas sobre si mesmos.

Deste modo, as identidades online têm algo em comum com o Eu que emerge num encontro psicanalítico. Também este é significativamente virtual, construído dentro do espaço da análise, onde as alterações que sofre, por mais ligeiras que sejam, podem ser objeto dum aturado exame (TURKLE, 1997 p.383).

Com as relações disseminadas, ou como diz S. “sem fronteiras”, existimos num estado

de contínua construção e reconstrução. Cada realidade do Eu abre caminho a novas

explorações, a outras realidades.

Algo importante que acontece nas comunidades virtuais e que ajuda a romper barreiras

de dominação e poder do Estado é a força potencializadora do grupo. Ao fazer parte de um

grupo, nas comunidades virtuais, o indivíduo adquire um sentimento de poder invencível que

lhe permite romper barreiras internas que, se ele estivesse sozinho, o teriam mantido sob o

domínio e o poder do Estado. O grupo formado por iniciativa e vontade do indivíduo,

marcado por interesses comuns, livres de alguns estigmas, em que a solidariedade acontece

exerce uma influencia positiva e libertadora sobre o indivíduo. Os grupos de relacionamento

virtual permitem o desenvolvimento de maior criatividade e imaginação; não está limitado à

realidade concreta. Freud, em seu artigo sobre Psicologia das Massas, referindo-se à obra de

Lebon (1920), diz que o grupo dá preferência ao que é “irreal sobre o real”. Os indivíduos, em

um grupo, possuem tendências a não distinguir entre as duas coisas. (FREUD, 1976 apud

LEBON, 1920, p.33, 77). Penso que o “irreal” a que Freud se refere pode ser aplicado ao

virtual, não como contrário ao real, mas como uma realidade diferente. O que Freud chama de

irreal podemos chamar e virtual, mas não como contrário do real e sim com algo além do

concreto ou presencial.

Essa questão da força do grupo é complexa, Freud e Lebon divergem em alguns

pontos, contudo, o princípio que destacamos é que nas comunidades de relacionamentos

virtuais o indivíduo se sente fortalecido. S. não distingue família (grupo sanguíneo) e família

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(grupo virtual) e usa expressões como: “... eles me adotaram... me sinto em família, em casa...

estar entre os meus... existem duas de mim... só faço que gosto...”. São falas que reforçam a

ideia de uma força potencializadora do grupo sobre o indivíduo que pode ser libertador do

“poder do Estado”.

Encerramos essa parte em que procuramos argumentar como as comunidades virtuais

potencializam o processo emancipatório destacando algumas características – pertencimento,

solidariedade, estimas e assincronias – que diferenciam as comunidades virtuais das

comunidades presenciais. Vamos, em seguida, destacar como a questão da emancipação

acontece na história de vida de S.

2.7. Emancipação: um salto qualitativo

Partimos agora para a última parte de nossa conversa com S. fazendo uma análise da

história de vida aplicando os conceitos teóricos que sustentam a teoria de Ciampa, de que

Identidade é Metamorfose em busca de Emancipação.

Esclarecemos que essa parte da história de vida de S. deu-se há cerca de um ano

depois de nossos primeiros encontros. Essa é uma informação importante porque permite

analisar e compreender como a comunidade de relacionamento virtual atuou no processo de

identidade de S.

Ao retomar nossa conversa fomos surpreendidos com a seguinte fala:

Rael, está acontecendo um processo novo agora... lembra que te falei

das diferenças entre a S. e a P., (ver II parte, item 1) e que era a P.

que tomava as rédeas da vida, que era assertiva, que sabia se

posicionar, etc? Bem... No meu facebook eu não adotei mais um nick.

Esta lá, meu nome e sobrenome. E antes havia várias travas, como S,

eu não poderia ter "opiniões polêmicas" ou lutar por alguma causa

que eu acreditasse, porque ou havia alguém a me lembrar "Você é

uma psicóloga, não pode pensar assim..." ou eu mesma me cobrava

um posicionamento mais neutro, afinal, eu era uma psicóloga...

(risos).

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Bem, não mais. Pela primeira vez eu estou me permitindo ser eu

mesma, sem nenhum recurso, nenhuma máscara para me proteger

disso.

O texto é auto-explicativo, vale lembrar que na primeira parte da pesquisa tratamos de

conceituar emancipação e a primeira definição, do dicionário Aurélio, diz que é a ação ou

efeito de emancipar-se: alforriar; libertação. Na perspectiva marxista falamos em

emancipação humana que pode ser entendida como autodeterminação, desenvolvimento

pessoal, algo voltado mais para si mesmo.

Vimos, ao falar sobre algumas características das comunidades de relacionamento

virtual, como S. encontrou na comunidade virtual formas para romper limitações, superar

dificuldades, encontrar caminhos e sentir-se mais livre para se mostrar como gostaria de se

representar. Neste novo momento de sua vida S., inicia falando em “um novo processo”,

exatamente como um dos pressupostos teóricos adotado para compreender identidade. Essa

informação é vital para nosso objetivo de compreender como as comunidades de

relacionamento virtual atua no processo identitário, sob o prisma do sintagma Identidade-

Metamorfose-Emanciapção, de Ciampa (1987, 1995).

E o que vem a seguir é ainda mais surpreendente porque descreve o conceito de

emancipação que adotamos. S. consegue assumir as “rédeas” de sua vida, diz que não precisa

mais de P. seu nick, agora usa, em uma nova comunidade de relacionamento virtual

(facebook) o seu nome e sobrenome oficial. Deixando evidente um salto emancipatório em

sua vida. Diz ainda que hoje não está mais presa ao que os outros pensam ou podem falar

dela, (...) Pela primeira vez eu estou me permitindo ser eu mesma, sem nenhum recurso,

nenhuma máscara para me proteger disso.

Vemos na história de S., o mesmo processo encontrado na história de Severina quando

começa a “reconhecer-se humano... a transformação das determinações exteriores em

autodeterminação” (CIAMPA, 1995, p.144). E S. completa “antes havia várias travas”, seu

pensamento era outro, conforme Ciampa, um “não-pensar”, porque quem pensava era P.

Diante de sua fala é possível observar, ainda, outros princípios que se aproximam do

conceito Marxista de emancipação humana: autodeterminação, desenvolvimento pessoal e

intelectual. S. sente-se livre da coerção dos outros; não está mais “presa” a determinações

sociais. É possível perceber o processo de superação da ordem social de um sistema

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consolidado no mundo presencial. O homem individual real recuperou em si o cidadão

(MARX, 1975).

Porque eu sou mulher, bruxa, feminista, ativista pelas causas que

acredito e também... psicóloga. E veja, eu só tenho a obrigação de ser

"imparcial" no exercício da minha profissão, o que não é o caso em

um perfil pessoal de uma rede social...

Então absolutamente tudo que eu penso e acredito, todas as causas

que me movem, estão estampadas agora em meu perfil, para quem

tem olhos ver... isso me deu uma liberdade incrível, Rael.

É importante lembrar, também, que, no primeiro momento de nossos encontros, S.

inicia seu relato de história de vida dizendo-se “ser só mais uma...”, o que representa o

sistema e o mundo da vida, enquanto reprodução material, regida pela lógica instrumental

(HABERMAS, 1987), que não permitia ser ela mesma. A comunidade virtual permitiu criar

um novo espaço de interação diferente, um espaço desterritorializado que lhe ofereceu um

novo caminho em sua luta por emancipação.

Foi um momento de despertar pra mim. Como disse anteriormente,

nos meus outros relatos, foi como se o mundo fizesse sentido pela

primeira vez, como olhar por uma janela que estava desde sempre

trancada... e era apenas aquela realidade "sem horizontes" que eu

conhecia. Onde as coisas "são assim, porque tem que ser", porque

sempre foram. No caso, eu era uma menina que sequer sabia que

podia existir algo além do Deus Pai Todo Poderoso, que ficava te

vigiando para te punir a qualquer sinal de desobediência às suas

ordens.

Em sua luta para deixar de ser “só mais uma” – para ser alguém – reconhecer sua

identidade, S. encontra na comunidade virtual uma janela, uma possibilidade para romper com

a mesmice, “se sentia trancada” e encontra “outra realidade, sem horizontes”. Agora percebe

que as coisas não têm que ser assim “... porque sempre foram assim”. S. se liberta de uma

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poder maior - do Deus Pai Todo Poderoso, que sempre a vigiava; em termos marxistas

podemos pensar que ela se liberta da coerção do Estado e da Religião.

Para Ciampa (1995), é a possibilidade de romper com a mesmice que pode ser um

impedimento à emancipação. É a possibilidade da alterização das personagens pressupostas.

O termo alterização, trazido por Ciampa expressa a idéia de uma mudança significativa – um

salto qualitativo – que resulta de um acúmulo de mudanças quantitativas, às vezes

insignificantes, invisíveis, mas graduais e não radicais, que podem indicar uma possibilidade

e uma tendência, da conversão das mudanças quantitativas em mudanças qualitativas,

mudanças condicionadas às questões históricas e materiais determinadas (LIMA, A., 2007).

A partir desse livro (BRIDA) e de todo o processo que ele

desencadeou, eu descobri não somente meu caminho espiritual,

nascia ali também um modo de vida e de consciência política: a

feminista.

Ao romper com a mesmice S. supera uma personagem pressuposta, é a expressão do

outro “outro”, que também sou Eu, o que Ciampa (1995) chama de mesmidade “(...) pela

aprendizagem de novos valores, novas normas, produzidas no próprio processo em que a

identidade está sendo produzida, como mesmidade de aprender (pensar) e ser (agir)”

(CIAMPA, 2002: 241). Segundo Lima, A. (2007), isso não é fácil, a criação de novas normas,

novos valores e projetos universais encontram barreiras sociais. Por isso a importância da

dialética nessa categoria para a Psicologia Social, seja na possibilidade de releituras da

realidade, no comprometimento com a emancipação social ou a promoção de identidades

pós-convencionais.

S. demonstra estar feliz, o que nos remete a outro princípio importante quando

conceituamos emancipação. Agora é possível fazer um paralelo com a crítica à razão feita por

Horkheimer. A razão diz que devemos buscar realização e libertação na realidade do sistema

regido pela lógica instrumental, adequando-se ao poder político e econômico. Contudo, S.

contraria essa lógica e busca na realidade virtual um sentido para sua vida e hoje se diz

“mulher-bruxa-feminista-ativista e psicóloga”, sente-se livre “isso me deu uma liberdade

incrível”; aparece o sujeito revitalizado de Horkheimer. S. rompe com o modelo de

sociabilidade a que estava associada e que não permitia ser ela mesma.

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Eu fui uma menina que cresci na chamada família "católica não

praticante", mas que diz coisas pra crianças como "não faz isso

porque papai do céu esta olhando". Eu não me identificava com isso.

Não fazia o menor sentido pra mim um "Papai no céu" que era só

amor, mas também castrador e punitivo. Um papai que via as

mulheres como a origem de todo o mal na face da terra.

Em sua crítica da razão Horkheimer critica a razão sem negá-la. Na verdade é uma

crítica aos moldes iluministas; o que na vida de S. pode ser compreendido como a realidade

do mundo presencial como única realidade (razão). Ela subordina essa razão (realidade

concreta, presencial), “... que não fazia o menor sentido”, a seus interesses encontrados na

realidade virtual. Ela se apropria de um princípio fundamental para a crítica da razão de

Horkheimer, o princípio da orientação para a emancipação. “A teoria crítica que visa a

felicidade de todos os indivíduos, ao contrário dos servidores dos Estados autoritários, não

aceita a continuação da miséria” (HORKHEIMER, 1991, p.72). S. liberta-se da escravização

humana pelos mitos e medos como forma de pressão social na própria construção de si

mesmos (Horkheimer, 1991). Para o autor, a razão só faz sentido quando está comprometida

com a realidade e contribui para a emancipação do indivíduo.

Ao concluir essa parte é importante ressaltar que não estamos falando em emancipação

como algo a ser concretizado em sua plenitude, a socialização é uma forma de emancipação e

essa emancipação vai adquirindo novas exigências emancipatórias. Por isso falamos

inicialmente em saltos qualitativos ou na linguagem Habermasiana, fragmentos de

emancipação.

S. demonstra de forma inequívoca a possibilidade de fragmentos emancipatórios por

meio das comunidades de relacionamento virtual quando diz: “Eu sou eu, independente do

ambiente em que transito agora”. As metamorfoses sempre acontecem, seja em que realidade

for, e é assim que podemos entender Identidade; nosso destaque é para as novas

possibilidades de Identidade e Metamorfose.

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PARTE III – Análise Crítica

“Onde está esse mundo que nos permita ser humanos, no qual as condições necessárias para a incessante concretização da identidade humana existam?”

Ciampa (1995, p. 237).

Visando deixar claro que não estamos alheios às diferentes posições sobre a potência

do virtual, a terceira e última parte deste trabalho apresenta uma análise crítica sobre a

influencia dos relacionamentos em comunidades virtuais. Em um primeiro momento vamos

apresentar a crítica e contra-crítica, que é também, neste momento, o posicionamento do

pesquisador, ainda que, o melhor seja manter uma posição analítica quanto aos dois pontos de

vista, o futuro dirá se um está mais certo que outro. Em seguida uma crítica à realidade

contemporânea.

3. Crítica e Contra crítica

A crítica sempre será imprescindível, por meio dela se constrói algo sólido. A própria

ideia deste trabalho surgiu de uma crítica que se fazia dos novos formatos de relacionamentos

adotados por muitos jovens. Foi a partir da crítica que fomos surpreendidos com o potencial

otimista que vem sendo descrito até aqui. Contudo, ainda que a maior parte da pesquisa tenha

apresentado um viés positivo e otimista sobre as relações em comunidades virtuais não

podemos ser ingênuos e achar que “descobrimos a pólvora”, não é essa a intenção. Não vamos

cair num romantismo acerca das possibilidades emancipadoras das comunidades de

relacionamento virtual. Existem críticas importantes às relações no ciberespaço que não

podemos deixar de reconhecer. A intensificação do virtual no “mundo da vida” produz

ambigüidades, individuais e coletivas, na modernidade. Assim não seria correto ignorar

alguns posicionamentos contrários ao que encontramos na pesquisa; não seríamos sérios se

assim fizéssemos. Vamos destacar algumas críticas e quando possível fazer a contra-crítica.

Ainda que a pesquisa não seja sobre mídias, não podemos negar o aspecto midiático

das comunidades de relacionamentos virtuais. Assim, a primeira crítica refere-se às mídias de

modo geral e diz respeito à sua origem e propósito. É importante pontuar que as mídias de

modo geral surgem ao longo de um pensamento político sobre a participação do povo. Em

termos democráticos pressuponha a garantia de liberdade de imprensa e do discurso. O espaço

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público democrático projeta um ideal: todos têm direitos iguais ao acesso à palavra, a ser

membro do público. É com esse discurso que as mídias surgem associadas à ideia de

democracia (CASTELLS, 2003).

A crítica, na verdade, está na viabilidade deste ideal e a importância da crítica na

constatação de que a suposta integração entre as mídias e a política constitui-se uma relação

de forças desiguais, o indivíduo está, em grande parte, à mercê do poder das mídias. É nesse

embate entre princípio ideal e realidade que a comunicação mediada por computador revela-

se, aparentemente, como uma nova oportunidade (na medida em que as anteriores se teriam

perdido) de retomar o princípio democrático das mídias. A internet surge como uma nova

oportunidade para reconstituir os direitos à igualdade e acesso à palavra.

Neste caso, mais do que crítica, talvez haja divergências entre os críticos e defensores

das novas mídias. O que eles discutem e discordam é se as novas mídias do ciberespaço

atendem aos princípios democráticos e emancipatórios, ou se, é outra forma de poder e

dominação. As relações e possibilidades do mundo virtual aproximam e potencializam o

mundo da vida ou afastam e excluem ainda mais. Para alguns as novas mídias surgem como a

superação de formas ultrapassadas, uma modalidade mais eficaz que permite novas

socializações que promovem maior autonomia.

Muitas são, pois, as promessas de emancipação. Parece haver todo um discurso que difunde que o crescente impacto das novas tecnologias não só está a determinar o surgimento de novos paradigmas de organização da vida social, como, ao mesmo tempo, a favorecer a secundarização do papel do Estado. O potencial libertador das redes globais de informação, em ligação com as novas formas de organização da vida social promovidas pela incorporação maciça das novas tecnologias aos processos produtivos, anima alguns a sonhar com sistemas sociais e políticos senão inteiramente baseados, pelo menos estruturados, por interações eletrônicas entre os indivíduos. (SILVERINHA – online – s/d.).

Essa é uma visão mais otimista, uma forma de romper com a comunicação das mídias

tradicionais, ou seja, romper com uma comunicação unilateral em que os receptores pouco ou

nenhuma capacidade têm de interagir.

Do outro lado, estão aqueles que criticam o acesso às novas mídias dizendo que essa é

uma realidade das classes mais favorecidas e que, portanto, não atendem aos ideais

democráticos alegados. Para esses trata-se de um aumento das desigualdades, em vez de

superá-las. As novas formas da espacialidade do mundo globalizado e desterritorializado

favorecem apenas às elites, seja pela facilitação de deslocamento ou como poder político e

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econômico, dizem os mais críticos. Alguns falam em uma nova casta de excluídos composta

por aqueles que não têm acesso ao ciberespaço e suas potencialidades.

A desterritorialização própria da globalização emancipa as elites e exclui os desfavorecidos da cultura da mobilidade física e virtual deixando-os desamparados também pelo fato dos espaços locais terem sido desfeitos. (VENTURELLI, 2010, online).

Está posta a divergência, cada qual com sua posição que dificilmente entra em acordo.

Contudo, uma posição intermediária talvez exista e seja mais sensata. Devemos evitar

tendências ingênuas ou catastrofistas, embora seja verdade que uma parte da sociedade tem

maior acesso e usufrui melhor da realidade virtual, não podemos negar a capacidade das

mídias virtuais de chegar a locais longínquos e de difícil acesso. Ainda que não haja uma

igualdade, localizações remotas do mundo têm maior possibilidade de expressar-se e lutar por

direitos universais. Não há como negar que temos uma ferramenta importante e potente por

sua capacidade de retroação, mas que pode ser melhor democratizada.

Ainda pensando nas divergências em torno das novas mídias do ciberespaço, hoje se

discute muito os direitos de cópias (copyright) e o “copyleft” (trocadilho do termo copyright).

Trata-se de uma controvérsia quanto à natureza jurídica dos direitos autorais. Para uns, o

conteúdo da internet é direito de propriedade. O direito autoral seria parte do conceito de

propriedade intelectual de natureza “sui generis”, tendo em vista a lei brasileira, que salvo

raras exceções, o autor deve ser pessoa física.

Do outro lado, o “copyleft” têm criticado este conceito dizendo que associar os direitos

autorais à ideia de propriedade é justificar o monopólio privado de distribuição de obras

intelectuais. Copyleft é uma forma de usar a legislação de proteção dos direitos com o

objetivo de romper barreiras no que se refere à utilização, difusão e modificação de uma obra

devido à aplicação das leis de propriedade intelectual, exigindo que as mesmas liberdades

sejam preservadas em versões modificadas.

Não vamos nos estender na questão, a ideia é apenas mostrar como são amplas e

complexas as consequências da realidade virtual em nossa sociedade; neste caso manter uma

posição analítica talvez seja o mais adequado. Feita essas considerações prévias sobre a

crítica e contra crítica, em termos gerais, apresentamos agora críticas e contra-críticas,

específicas, sobre o potencial emancipador das comunidades de relacionamentos virtuais.

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3.1. As comunidades Estéticas (Bauman) e Comunidades Potencializadoras (Castells)

Qualquer que seja o foco, a característica comum das comunidades estéticas é a natureza superficial, perfunctória e transitória dos laços que surgem entre seus participantes. Os laços são descartáveis e pouco duradouros. [...] esses laços podem ser desmanchados, eles provocam poucas inconveniências e não são temidos. (BAUMAN, 2003a, p. 67)

Alguns críticos das comunidades virtuais têm usado os escritos de Zigmunt Bauman,

quando se refere às “comunidades estéticas”, que segundo eles seria fruto da indústria do

entretenimento, dizendo que ela “atua pela sedução” e envolve os indivíduos por meio da

criação de ídolos (BAUMAN, 2003a). Os integrantes destas comunidades estariam sempre

prontos para o consumo imediato e para o descarte em seguida, estes se sentem

temporariamente satisfeitos pelo fato de poderem se integrar sem o risco de perderem a

liberdade. Assim têm vida útil reduzida, são efêmeras e, portanto, não facilitam processos

emancipatórios.

Eles não acreditam que haja, por exemplo, pertencimento e solidariedade nas

comunidades virtuais. Entendem que essa é só mais uma forma de camuflar aflições,

angústias, ansiedades e preocupações experimentadas individualmente no mundo presencial.

A transitoriedade e instabilidade, características das “comunidades estéticas”, não oferecem

laços humanos estreitos e duradouros. Wilson (1997, p.649-650), diz:

...interrogo-me se nós estamos a tornar viciados sensoriais perpetuamente à procura de novas experiências; isto é, se esta busca de estímulo constante e aparentemente superficial está a conduzir à promoção de uma gratificação instantânea à custa de uma compreensão e investigação mais envolvida, mais complexa e mais significativa. (...) ainda que as comunidades virtuais possam ser interativas, elas não exigem compromisso físico (para além do teclado) ou uma extensão moral, política ou social para além da rede. Dos que usam a internet e as comunidades virtuais só uma percentagem participa ativamente. O resto funciona a partir de uma posição 'voyeurista' semelhante ao ver televisão. (in SILVEIRINHA, online, s/d).

Para esses autores, de modo geral, a identidade desaparece atrás da mídia e a utilização

de comunidades virtuais aumenta e dificulta, ainda mais, a luta por emancipação.

A contra crítica pode vir do próprio Bauman, se é verdadeira a característica transitória

e instável das comunidades estéticas – virtuais – por que não dizer que essa é também uma

característica da sociedade contemporânea? Quantas pessoas moram no mesmo prédio,

utilizam espaços comuns, cumprimentam-se nos elevadores e corredores sem desenvolver

vínculos, solidariedade ou qualquer nível de acolhimento? O próprio Bauman, referindo-se às

relações presenciais diz:

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Tornamo-nos conscientes de que o ‘pertencimento’ e a ‘identidade’ não tem a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o ‘pertencimento’ quanto para a ‘identidade’. (BAUMAN, 2003b, p. 17)

É verdade que as comunidades virtuais nem sempre são fundamentadas em vínculos

duradouros e que, com isto, abre-se a possibilidade de se excluir facilmente um dos seus

membros. É reconhecida, também, a importância do outro para a construção da identidade,

contudo, podemos pensar que a opção por relacionamentos virtuais acontece justamente pela

falta do outro nas comunidades territoriais, nas relações presenciais.

Mais uma vez podemos adotar uma posição intermediária. Como vimos no relato de

vida apresentado, o pertencimento a estas comunidades virtuais tende a evoluir para as

relações presenciais. Seu diferencial está na capacidade de suavizar as relações, diminuir

tendências preconceituosas. Uma realidade não exclui ou diminui a outra. Não existe

comunidade perfeita, seja ela virtual ou presencial, o próprio Bauman (2003b), diz:

Paraíso perdido ou paraíso ainda esperado; de uma maneira ou de outra, não se trata de um paraíso que habitemos e nem de um paraíso que conheçamos a partir de nossa própria existência (p.9).

Pensar em comunidades “sólidas como uma rocha” referindo às comunidades

presenciais é ser ingênuo; essa não é uma característica da sociedade contemporânea e como

diz Castells (2006), tais comunidades só existiram no imaginário.

...muitos críticos sociais se referem implicitamente a um conceito idílico de comunidade, uma cultura muito unida, espacialmente definida, de apoio e aconchego, que provavelmente não exista nas sociedades rurais, e que decerto desapareceu nos países industrializados. (...) Tanto nas comunidades de grupo quanto nas comunidades pessoais funcionam tanto online quanto offline (p.444).

Ainda que exista o desejo inconsciente de habitar no “paraíso”, tal lugar ainda não foi

encontrado, nem no mundo presencial nem no mundo virtual. O argumento crítico das

“comunidades estéticas” a que Baumann faz referencia e que segundo ele são efêmeras,

voltadas para o consumo imediato e descartáveis, encontra respaldos em algumas

comunidades virtuais como o Twiter, Facebook, Orkut, contudo, conforme mostrou a

pesquisa, existem as comunidades virtuais que são fruto de relacionamentos duradouros e com

potencial emancipatório.

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3.2. Controvérsias entre o real (Baudrillard) e o virtual (Lévy)

Com relação ao que chamamos de controvérsias entre real e virtual, já fizemos

referência na primeira parte do trabalho, portanto, vamos aqui, nos concentrar na crítica e

contra-crítica envolvendo a questão. Destacamos esses dois autores por serem referência e por

representarem posições antagônicas sobre o assunto.

Lévy entende a produção no ciberespaço como um elemento importante de uma

sociedade em transformação onde o virtual articula com toda a vida social, marcada pela

ruptura dos limites espaço-temporais e desterritorialização (LÉVY, 2007). Já Baudrillard

(1997) compreende o virtual como sendo o esvaziamento do real e o fim da comunicação. Se

Baudrillard é o profeta do fim, Lévy é o profeta do futuro envolvendo o ciberespaço.

A controvérsia é importante e provavelmente se estenderá por muito tempo porque –

real e virtual – constituem o ponto central das divergências.

Alguns críticos contemporâneos fazem oposição à realidade virtual baseados em

pesquisas anteriores, que apontaram aspectos negativos da intensificação do virtual na vida

das pessoas. Estudos Norte-americanos como os realizados por Nie e Erdring (2000),

observaram um padrão de interação pessoa a pessoa diminuído e apontaram para uma perda

do envolvimento social entre os participantes de comunidades virtuais. Ou ainda estudos de

Kraut (1998), que pesquisou uma amostra de 169 famílias durante os dois primeiros anos com

comunicação mediada por computador e verificou que o maior uso da internet estava

associado a uma diminuição na comunicação face a face dos membros da família em casa, ao

ponto de acentuar nível de depressão e solidão (CASTELLS, 2003).

Nestes casos a contra-crítica diz que pesquisas mais recentes indicam que isso

aconteceu devido à inabilidade e novidade da internet. Barry Wellman e Steve Jones mostram

que essas críticas são infundadas. Naquela época, alguns participantes teriam recebido

computadores para participar da pesquisa mostrando que não estavam preparados para seu

uso. Estudos a partir do ano 2000 têm mostrado que as relações virtuais têm levado a maior

satisfação e interação social. As pessoas estão aprendendo a usar as novas tecnologias. As

primeiras pesquisas eram simplistas e baseadas num conceito de comunidade ideologizado

(CASTELLS, 2003).

Hoje é possível observar padrões de sociabilidade bastante desenvolvidos como

demonstram as pesquisas mais recentes. Segundo Castells (2003),

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“...não há indícios, a partir destes dados, de que indivíduos que têm agora acesso à internet em casa e o utilizam gastando menos tempo assistindo televisão, lendo livros, ouvindo rádio ou envolvidos em atividades sociais na casa se comparados a indivíduos que não têm (ou não têm mais) acesso à internet em casa. As únicas mudanças que podem ser associadas ao ganho de acesso à internet são: um aumento do tempo dedicado ao e-mail e ao surfe na web – um resultado espantosamente óbvio. As únicas mudanças que podem ser associadas à perda do acesso à internet são: o menor tempo gasto no preparo da comida, mudanças em circunstâncias educacionais e no emprego remunerado baseado em casa (p.101).

Outro aspecto bastante criticado nas relações virtuais é seu caráter fluido. Alguns

críticos argumentam que no mundo virtual um homem pode “ser” uma mulher, um velho

“ser” um jovem, o que afasta da realidade. E, neste caso, encontra um teórico importante em

sua crítica. Habermas (2003), acredita que os espaços concretos de um público presente nas

esferas públicas sejam mais consistentes:

Quanto mais elas se desligam de sua presença física, integrando também, por exemplo, a presença virtual de leitores situados em lugares distantes, de ouvintes ou espectadores, o que é possível através da mídia, tanto mais clara se torna a abstração que acompanha a passagem da estrutura espacial das interações simples para a generalização da esfera pública. (p. 93)

Para o autor, a ausência de espaços concretos pode levar a uma abstração generalizada

e desconectada das interações humanas. A inclusão do “anonimato”, característico dos

relacionamentos em comunidades virtuais, passam a comprometer o entendimento

comunicacional.

A contra-crítica discorda e diz que estes novos espaços não subvertem a argumentação

e nem a discussão política. A esfera pública midiática, através da internet, corresponde a um

espaço de troca, de produção e de estocagem de informações. Ao canalizar e entrelaçar

múltiplos fluxos, quando bem utilizados, torna-se um instrumento de poder, abrindo também

a possibilidade de um trabalho cooperativo no ciberespaço que escapa da manipulação e do

controle pelo fato da acessibilidade universal na rede favorecer uma condição para que as

vozes minoritárias e opositoras garantam seu lugar neste meio (CASTELLS, 2003).

Afastar ou aproximar da realidade baseando-se em “concreto” (realidade) “abstrato”

(virtual) é difícil, pois dependemos dos signos para viver em sociedade. “A realidade é

constituída socialmente” (BERGER & LUCKMANN, 1997, p. 11). Ou ainda, pensar que o

“mundo virtual” não representa a realidade é negar o simbólico, não é possível experimentar o

real sem codificá-lo. “De certo modo, toda realidade é percebida de maneira virtual”

(CASTELLS, 2006: p.459).

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Em termos mais práticos podemos apresentar como contra-crítica aos defensores de

uma realidade presencial como sendo superior à realidade virtual, a seguinte questão: Quando

uma pessoa identifica-se diferentemente de sua aparência, com uma “nova identidade”, essa é

uma identidade (realidade) falsa e que não existe ou são mecanismos que a pessoa encontra

para expressar como se sente naquele momento, livre de papéis ou de predicados indesejados?

Essa “nova identidade” não seria a melhor resposta para identificar e dizer quem é? O jovem e

o velho são definidos unicamente com dados cronológicos? O masculino e feminino é

definido exclusivamente pelo órgão genital?

Essa é uma discussão sem fim e, talvez, infrutífera, seus motivos são compreensíveis

uma vez que mudanças significativas implicam em conflitos, temores e sentimentos de

ambivalência. O que parece mais provável é que aspectos positivos e negativos da internet e

sua realidade virtual dependem da forma que se usa.

(...) as potencialidades positivas da cibercultura, ainda que conduzam a novas potências do humano, em nada garantem a paz ou a felicidade. Para que nos tornemos mais humanos é preciso suscitar a vigilância, pois o homem sozinho é inumano, na mesma medida de sua humanidade (LÉVY, 2007, p.234).

A reflexão crítica mostra que nem tudo são flores estaria faltando com a verdade se

atribuíssemos somente aspectos positivos à intensificação do virtual na nossa realidade. Ainda

que o ambiente virtual seja um lugar seguro, isso não é o bastante para possibilitar saltos

qualitativos na busca de emancipação. Alguns não têm suportado essa realidade e partido para

a realidade virtual, onde “pode-se tudo”. O que não deixa de ser um risco porque “a loucura,

neste sentido, é o esforço de criação de um novo universo – louco porque singular, não

compartilhado – consequentemente fuga de uma realidade: a realidade quotidiana”

(CIAMPA, 1995, p.157). Devemos lembrar que não estamos falando de duas pessoas

diferentes – uma online e outra offline – estamos falando de personagens que se

complementam e, portanto, existe a possibilidade de que uma personagem anule a outra, neste

sentido, loucura.

“... a Internet é um modelo sócio-técnico é uma rede que pode ser utilizada de modo positivo ou negativo. Portanto, torna-se crucial superar a dualidade utópicadistópica a respeito dos efeitos da utilização Internet, desvalorizando-se uma perspectiva maniqueísta e reconhecendo simultaneamente os seus aspectos bons e maus”. (CASTELLS, 2001).

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Alguns podem usar o espaço das comunidades para reencenar as mesmas dificuldades

da vida presencial. As comunidades proporcionam espaços fecundos tanto para a passagem ao

ato como a “perlaboração” (TURKLE, 1997). Há neles genuínas possibilidades de mudança, e

há lugar também para a repetição improdutiva. É uma possibilidade e uma realidade que se

aproxima do que Ciampa (1995, chama de mundo da mesmice8 (...) a mesmice de mim é

pressuposta como dada permanentemente e não como re-posição de uma identidade que uma

vez foi posta (p.164). Ou seja, é impossível manter a identidade inalterada, mas pode-se, à

custa de muito trabalho (p.165), manter alguma aparência de inalterabilidade, manter a

mesmice.

A realidade virtual, nesse sentido, pode ser vista como uma forma de romper com a

mesmice, de uma forma radical o indivíduo “deixa” o mundo presencial para co-habitar no

mundo virtual e quebrar o ciclo de reposição da identidade pressuposta. Isso leva-nos a um

segundo conceito importante de Ciampa, a “mesmidade”, que é a superação da identidade

pressuposta, ou seja, a oposição à mesmice. “Essa expressão do outro que também sou eu

consiste na metamorfose da minha identidade, na superação de minha identidade

pressuposta” (1995, p. 180). A mesmidade permite ao indivíduo se representar sempre como

diferente de si mesmo e desenvolver uma identidade posta como metamorfose constante, foi o

que observamos ao falar sobre o uso do nickname nas comunidades virtuais.

Isso posto, cabe retomar o que foi dito – real e virtual – não se opõem. Para dicionário

inglês virtual é o que existe na prática, embora não estrita ou nominalmente, e real é o que

existe de fato (Oxford Dictionary of Current English, 1992).

...a realidade, como é vivida, sempre foi virtual porque sempre é percebida por intermédio de símbolos formadores da prática com algum sentido que escapa á sua rigorosa definição semântica. É exatamente esta capacidade que todas as formas de linguagem têm de codificar a ambigüidade e dar abertura a uma diversidade de interpretações que torna as expressões culturais distintas do raciocínio formal/lógico/matemático. É por meio do caráter polissêmico de nossos discursos que a complexidade e até mesmo a qualidade contraditória das mensagens do cérebro humano se manifesta. Essa gama de variações culturais do significado das mensagens é o que possibilita nossa interação mútua em uma multiplicidade de dimensões, alguns explícitas, outras implícitas (CASTELLS, 2006, p.459).

O que podemos concluir é que, de modo geral, o corpo de dados não sustenta a tese de

que o uso da internet leva a menor interação social e maior isolamento social. E encerramos

essa parte da pesquisa ressaltando que não estamos defendendo o rompimento ou fazendo

8 Mesmice, segundo Ciampa, é a aparência de inalterabilidade; a aparência da não-metamorfose.

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oposição às relações presenciais. É preciso deixar claro que a hipótese defendida é a de que as

comunidades de relacionamento virtual apresentam-se como outra forma de se relacionar,

uma realidade potencializadora que emerge da própria dinâmica social.

É claro que não podemos descartar a crítica e os usos desviantes da internet. As

comunidades de relacionamento virtual são formas potencializadoras, para o bem ou para o

mal, mas isso acontece também nas comunidades face a face. Algumas comunidades

religiosas em que pessoas cometem suicídio coletivo ou realizam atos terroristas, exploram

seu potencial de forma negativa. Toda potência pode ser usada para o bem ou para o mal; se o

indivíduo possui uma personalidade desviante, como uma timidez mórbida, poderá usar a

realidade virtual para romper essa barreira ou se afundar ainda mais em seu isolamento social

offline, as realidades – presencial e virtual – não determinam, por si só, seu potencial para o

bem ou para o mal.

O debate é importante porque há certa ambivalência nas novas formas de

relacionamentos. As comunidades virtuais são vistas por alguns como excitantes formas de

comunidade, que liberta o indivíduo dos constrangimentos sociais da identidade estigmatizada

e das restrições espaciais, dando um sentido de pertencimento e solidariedade, mas que

precisam de uma dimensão ética que nem sempre aparece nas relações virtuais.

O ciberespaço facilita novas formas de participação na vida política e social. Contudo,

a contribuição da comunicação por computador e os novos tipos de comunidades com seu

potencial democrático baseado em princípios de discursividade está longe de ser uma

unanimidade quanto a seu caráter: libertador ou opressor.

3.3. Crítica social à realidade contemporânea

Estou sozinho, a maioria das pessoas voltaram para seus lares, está lendo o jornal da tarde e ouvindo rádio. O domingo que termina deixou-lhes um gosto de cinzas e seu pensamento se volta para a segunda-feira. Mas para mim não existe segunda-feira nem domingo: existem dias que se atropelam desordenadamente... Não sei se o mundo se estreitou de repente ou se sou eu que ponho uma unidade tão forte entre os sons e as formas: nem sequer posso conceber que algo do que me rodeia seja diferente do que é... (SARTE. 1938, P. 87).

Há algo no coração humano que não é novo, filósofos de todos os tempos falam sobre

isso, alguns chamam de vazio existencial, talvez seja, algo que mantém o Homem “em busca

de...”. Nossa personagem, S., “encontrou” na bruxaria, em uma comunidade virtual, algo que

lhe deu sentido para a vida.

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A história procura “dividir o tempo” na intenção de classificar os diferentes momentos

da luta humana. Um dos motivos para fazer uma crítica à realidade contemporânea ao se

aproximar das considerações finais é para apontar criticamente algumas características desta

realidade que contribui e impulsiona as pessoas a buscar uma realidade diferente – virtual -

que, acredito, seja parte da luta humana, luta em busca de emancipação humana ou de sentido

para sua existência.

Vivemos um período de rupturas, chamado por alguns, e criticado por outros, de “pós-

moderno”. Segundo SANTOS (1991, p. 8), pós-moderno “é o nome aplicado à mudança

ocorrida nas ciências, nas artes e nas sociedades avançadas desde 1950, quando, por

convenção se encerra o modernismo”. Para ele, esse fenômeno nasce com a arquitetura nos

anos1950; toma corpo com a arte Pop nos anos de 1960, entra na filosofia dos anos de 1970,

como crítica da cultura ocidental e hoje se alastra na moda, no cinema, na música e no

cotidiano invadido pelos microcomputadores.

Para outros, o prefixo pós tem muito mais o sentido de exorcizar o velho (a

modernidade - racionalista) do que de articular o novo (o pós-moderno), ou seja, o que há é

uma consciência de ruptura. O modernismo já racionalista era tomado por máquinas, pela

industrialização e o pós-moderno também é tomado por máquinas, mas agora de imagens da

televisão, do virtual, da velocidade da internet. A modernidade era marcada pela excessiva

confiança na razão, nas grandes narrativas utópicas de transformação social e pelo desejo de

aplicação mecânica de teorias abstratas à realidade. Lipovetsky (2004) diz que na verdade

nunca saímos da modernidade, que o pós no sentido de depois é um conceito falso e fala em

hipermodernidade como um desdobramento ou continuação da modernidade.

Para Lemos (2002) a pós-modernidade é o terreno de desenvolvimento da cibercultura

em que o espaço e o tempo não podem mais ser percebidos como seus correlatos modernos,

uma vez que os conceitos, possibilidades e valores são outros. Ele argumenta que na

modernidade, o tempo era linear (progresso e história) e o espaço era naturalizado e explorado

enquanto lugar de coisas (direção, distância, volume). E, nesse período, o tempo é um modo

de esculpir o espaço, pois o progresso, compreendido como encarnação do tempo linear,

implica diretamente a conquista do espaço físico. Na pós-modernidade, o sentimento

predominante é o de compressão do espaço e do tempo real, onde o tempo real (presencial) e

as redes telemáticas desterritorializam a cultura, tendo um impacto nas estruturas econômicas,

sociais, políticas e culturais. O tempo é agora um modo de aniquilar o espaço como uma

realidade territorialmente delimitada.

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Para evitar polemicas, durante a pesquisa, adotamos o termo contemporâneo para

referir-se à realidade de hoje. Se estamos vivendo a pós-modernidade, a hipermodernidade ou

se estamos apenas exorcizando o velho, essa é uma questão que a História, intérprete do

tempo, irá mostrar. Para nós, independente da terminologia utilizada para os dias atuais,

importa dizer que vivemos dias diferentes, isso é difícil negar ou divergir.

Algumas mudanças na sociedade não têm mais volta e muitas delas são positivas. Hoje

não podemos imaginar a sociedade sem a praticidade do computador, a velocidade da

internet, sem os confortos que a tecnologia oferece em nossos lares, etc. Contudo, não

podemos negar um lado negativo da modernidade do mundo contemporâneo. É justamente

nas relações humanas que mais se perdeu com a nova realidade social. O mundo globalizado

marcado pelo estresse do aqui e agora, a ausência de valores comunitários e a ausência de

absolutos que dificultam o processo de humanizar o humano.

Em alguns casos o Homem tornou-se sub-humano, um produto, um número de cartão

de crédito e um prisioneiro da pior escravidão: a solidão. O mundo contemporâneo diz que

ser forte é aprender a viver só, a não depender de ninguém, não demonstrar fraquezas

emocionais, não expor afetividade. A virtualização das relações, talvez, demonstre e denuncie

isso: o cidadão contemporâneo é solitário, caótico, órfão, sua ética é a sobrevivência.

Contudo, esse Homem não se resigna. As pessoas resistem a seu contraditório social,

mostrar-se como é sem se expor. Procuram alguém para falar livremente, falar tudo a seu

próprio respeito, mas sem correr riscos de não ser aceito integralmente. A realidade virtual

pode ser compreendida como a busca de um setting ideal para dizer quem sou; para revelar

sua identidade de forma mais assertiva.

Um grande problema do mundo convencional é que está difícil desenvolver-se, nesse

mundo presencial, sem encontrar auto-realização, sem sentir-se compreendido por uma

pessoa, pelo menos. O mundo virtual oferece uma alternativa, uma possibilidade a mais na

luta pela humanização do humano. As comunidades virtuais funcionam como uma opção para

quem não quer permanecer refugiado em máscaras sociais ou limitados a papéis pré-

determinados.

Diante das dificuldades do mundo presencial as pessoas buscam, na realidade virtual,

certo relaxamento da vigilância e exigências do mundo presencial. Buscam no mundo online,

não um afastamento de si, mas dos atributos e características representacionais geralmente

associados á identidade vivenciada no mundo offline. As pessoas lutam para soltar de si

mesmo e passam de uma percepção do tipo “eu sou o que os outros dizem que sou” para “eu

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sou o que quero ser”. É a emancipação daquilo que lhe disseram que deveria ser para a

autonomia do que realmente quer ser.

Ninguém deseja ser uma fraude e nisto consiste parte das neuroses humanas. A fuga

de um mundo presencial caótico, impessoal e inibidor de afetos, para o mundo da realidade

virtual é parte da luta humana.Todos têm necessidade de falar o que pensa, sente, valoriza,

honra, estima, ama, teme, espera, acredita, enfim mostrar-se quem é. Acredito que a falta de

gente para ouvir sem criticar e coragem para se expor sem sentir medo de que o outro não

goste de “quem sou” estão levando a intensificação do virtual em nossa realidade.

Muitas pessoas que passam horas em comunidades virtuais estão em busca de

encontro existencial. Para a psicologia existencial o encontro descreve uma relação especial

entre duas pessoas e ocorre quando elas atingem uma verdadeira comunhão ou comunicação;

quando uma existência se comunica com a outra. É através do encontro que o outro não é

mais um indivíduo impessoal, ele passa a sentir-se humano, ou seja, fazer parte da

humanidade. Há uma espécie de fusão, apesar de cada um preservar o seu próprio eu distinto.

Como escreve e.e. Cummings: (in POWELL, 1991) “Um não é metade de dois. Os dois é que

são metades de um”.

As pessoas deveriam aproximar-se umas das outras com um senso de descoberta,

estudar a face, a voz, os gestos, o olhar, naquele momento e não carregar e atribuir conceitos e

preconceitos do “dia” anterior. É preciso “descobrir” que ninguém é, hoje, o mesmo que foi

ontem. Conceitos de identidades estáticas aprisionam as pessoas.

O filósofo alemão Martin Heidegger (in POWELL, 1991), discute as uniões de amor e

menciona duas armadilhas que podem abafar o crescimento humano: a satisfação complacente

que mantém uma situação já estabelecida e, no outro extremo, a atividade inquieta, que pula

de uma atração para outra, à procura de algo mais. O resultado, diz Heidegger, é sempre a

auto-alienação.

Ao longo da pesquisa foi possível mostrar que a saída para essas armadilhas do mundo

contemporâneo têm sido os relacionamentos em comunidades de relacionamento virtual; em

seu discurso S. diz: “o mundo virtual não é alienação...”. Ela encontra pertencimento e

solidariedade em uma comunidade menos preconceituosa e estigmatizadora, ainda que suas

relações acontecessem à distância.

Para Turkle (1997), estando com um grande leque de opções de experimentação de

outras formas de construção de seus contatos sociais em uma “cultura de simulação”, as

pessoas têm a faculdade de poder criar de forma fragmentada vários sujeitos imaginários,

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potencializando a expressão “descentrada” de configuração identitária, tornando-se ainda

mais distantes das referências que os sustentavam anteriormente, tais como a mesmice, o

caráter contínuo e evolutivo da identidade única e a construção gradativa desta, baseada na

história pregressa do sujeito a partir de uma perspectiva linear.

Ainda segundo a autora, a partir das considerações expostas, podemos constatar que a

ambiência online, de certa forma, potencializa as possibilidades de expressão, ou melhor, de

adoção, de desempenho e de controle de papéis por parte dos usuários nas “várias vidas”

representadas pelas diversas “janelas” disponíveis. Tal situação, a rigor, não se revela

deslocada da realidade do mundo offline, uma vez que a possibilidade de vivenciar papéis

virtuais múltiplos mostra-se inserida na prática da multiplicidade de papéis presentes em

diversos aspectos da vida cotidiana.

Nesse sentido - considerando mundo virtual e mundo presencial – como mundos

complementares é possível pensar como o processo de construção da identidade é

metamorfose em busca de emancipação, também, no mundo virtual. O que se passa no mundo

virtual não acontece separado do mundo presencial; o virtual (potencia) não se opõe ao

presencial. São aspectos diferentes da experiência humana (TURKLE, 1997).

Essa possibilidade de transpor o mundo presencial é uma forma de romper com o

isolamento tão comum no mundo contemporâneo e esse é um ponto importante para a

Psicologia Social, conforme teoriza Ciampa (1995, p.133) é uma valorização do contexto

social em sua formação visto que “é necessário vermos o indivíduo não mais isolado, como

coisa imediata, mas sim como relação”. Como ele se apresenta ao mundo, como se percebe e é

percebido, uma vez que “cada indivíduo encarna as relações sociais, configurando uma

identidade pessoal. Uma história de vida. Um projeto de vida” (p.127).

Essa é uma obra inacabada e o que podemos dizer, ainda que pareça senso comum, é

que: a intensificação do virtual na realidade de todos nós tem um tremendo potencial

emancipatório, contudo, dependo da forma como fazemos uso do ciberespaço.

“(...) as potencialidades positivas da cibercultura, ainda que conduzam a novas potências do humano, em nada garantem a paz ou a felicidade. Para que nos tornemos mais humanos é preciso suscitar a vigilância, pois o homem sozinho é inumano, na mesma medida de sua humanidade” (LÉVY, 1999, p.234).

O mundo virtual nos desafia a aprender a estar nele, a habitá-lo e a explorá-lo, sem nos

perdermos nas suas possibilidades quase ilimitadas. Somos instados, principalmente, a

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aprender a lidar com tanta informação para não ficar desinformado – muita informação

distrai.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

"O importante e o bonito do mundo é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam".

Guimarães Rosa

A história de vida de S. permitiu observar e compreender melhor como uma jovem

que se diz “só mais uma”, não reconhece sua identidade, porque segundo ela, “estava em

construção”, parte para outra realidade, “um universo sem fronteiras... em busca de seus

sonhos... vencer seus medos” e alcança saltos qualitativos em busca de emancipação. S.,

conclui seu relato dizendo: “Porque eu sou mulher, bruxa, feminista, ativista pelas causas que

acredito e também psicóloga”. De forma emblemática S. responde a questão inicial sobre o

processo de construção da identidade, “quem sou?”. É o reconhecimento do outro outro, que

Ciampa (1995) chama de superação da identidade pressuposta, ou seja, quando o indivíduo

supera uma condição pela qual é identificado previamente,

“(...) essa expressão do outro outro que também sou eu consiste na metamorfose da

minha identidade, na superação de minha identidade pressuposta. (...) é pressuposta

uma identidade que é re-posta a cada momento, sob pena de esses objetivos sociais,

filhos, pais, família, etc., deixarem de existir objetivamente”. (p.180 e 163).

Em sua busca pela identidade ou em busca da superação da identidade pressuposta, S.

parte para o mundo virtual onde “encontra” P. (seu nickname), o que segundo ela, permite ser

ela mesma e dar assim um sentido emancipatório para suas experiências no mundo virtual.

As reflexões em torno de seu relato da história de vida permitiram compreender como

a realidade virtual, um marco da contemporaneidade, pode influenciar positivamente na

realidade objetiva da pessoa. Ela estava como que desenvolvendo suas determinações;

enquanto permanecesse na representação de “P.”, de metamorfose em metamorfose surge o

outro outro, a “S.-mulher-bruxa-feminista-ativista-psicóloga”. Não estamos dizendo que a

metamorfose se completou; conforme Ciampa (1995, p. 181) isso seria não considerar o

processo. Estamos falando de alterização9 da identidade, na superação da identidade

pressuposta e no desenvolvimento de uma identidade posta como metamorfose constante, em

que toda humanidade contida em si mesmo se concretiza.

9 Tornar-se outro.

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Encontramos na história de vida de S. um relato de resistência, uma pessoa que não se

resigna a uma realidade que não atende a seus anseios. Quando ela vai buscar realização nas

comunidades virtuais, num mundo atemporal, desterritorizalizado e com menos estigmas, esta

buscando uma forma de dizer aberta e honestamente “quem é” e “quem gostaria de ser”, está

em busca da concretização de sua pretensão identitária. “A Metamorfose, ainda quando

impedida, ainda quando oculta, expressa a invencibilidade da substância humana, como

produção histórica e material” (CIAMPA, 1995, p.182). Foi movida por essa “invencibilidade

da substância humana” que S. não aceitou “ser só mais uma”, partindo para outra realidade –

virtual – onde encontra realização em seu processo identitário.

Turkle (1997) ao falar em um de seus entrevistados (Gordon) diz que seu desempenho

em comunidades virtuais permitiu analisar a possibilidade de atuar sob diferentes identidades

e quando uma identidade em particular vê esgotar-se a sua utilidade psicológica, Gordon põe-

na de parte e cria uma nova. Segundo Turkle (1997)

“...possibilitou um processo contínuo de criação e recriação permitindo a percepção que ele tem do seu eu como um trabalho em curso... ao criar diversas identidades fictícias, ele pode, duma forma mais controlada, realizar experiências com diversos conjuntos de características e ver onde é que estas conduzem... cada uma das suas múltiplas identidades virtuais possui a sua própria independência e integridade, mas Gordon relaciona-as também todas com a sua própria pessoa. Desta forma, estabelece-se uma relação entre as diferentes personagens por ele interpretadas; cada uma delas é uma faceta de si próprio” (p.281).

A autora vê nos ambientes virtuais uma possibilidade de ambiente terapêutico, em que

os servidores desses espaços podem desenvolver maior capacidade para confiar no outro e

estabelecer relações de confiança. A identidade, por ser inerente à condição humana, é

buscada por todos os indivíduos com o intuito de encontrar segurança, transformar

comportamentos, formar convicções e garantir ao indivíduo um lugar no mundo. É o que foi

possível perceber no relato de S., a interferência do sistema, na sua vida, fez com que a

concretude do mundo presencial colonizasse seu mundo pela ordem sistêmica. Foi no mundo

virtual que encontrou sentido para o mundo da vida.

Ainda que a pesquisa pareça carregada de “paixão” pelo assunto quero retomar minha

lucidez e dizer que não podemos generalizar e pensar que o virtual é mais importante ou

sobressaia ao presencial, isso seria contraditório. O melhor insight de S. foi não separar

mundo virtual e mundo presencial. Um fator importante para que a comunidade virtual de S.

tenha facilitado movimentos emancipatórios na sua vida é que ela não permitiu que a

comunidade aprisionasse sua identidade; a comunidade permitiu o desenvolvimento de uma

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identidade política, sem que ficasse prisioneira da política de identidade (CIAMPA, 2002). O

virtual que, aqui, se apresentou como emancipador pode não ser quando a pessoa se faz

prisioneira de uma realidade, virtual ou presencial. Essa é uma questão importante a que

Ciampa faz referencia, não podemos deixar que nosso processo identitário, ou seja, a busca

por identidade se torne, depois, apenas uma “política de identidade”.

Segundo Ciampa (2002), falar em política de identidade e em identidade política é

mais do que um trocadilho, pode ser o diferencial entre os aspectos reguladores e

emancipatórios. S. encontrou solidariedade, afirmação e autonomia na comunidade virtual,

mas não permitiu ser controlada por estigmas ou pela realidade virtual; no final de seu

discurso ela diz: “Eu sou eu, independente do ambiente (realidade) em que transito agora”.

Ao dizer: “Pela primeira vez eu não sinto mais essa fusão dentro de mim, eu não fico

mais invejando meu outro lado, tão consciente, tão ativista...(rs). Porque eu consegui

conciliar...”, S. deixa claro que não é prisioneira de quaisquer que sejam as realidades;

presencial ou virtual. Ela faz questão de dizer que agora seu perfil “está lá para quem quiser

ver...”, não precisa mais usar “máscaras”, como disse anteriormente.

S. nos ajudou a entender que em nossa busca pela emancipação não podemos desistir,

que devemos lutar – inclusive em outra realidade, se preciso for – contudo, sem perder de

vista a realidade concreta. A metamorfose não deve se subordinar a uma razão interesseira,

mas sim ao interesse da razão. Isso é busca de significado, é invenção de sentido, é vida.

(CIAMPA, 1995). A vida que deve ser vivida não está presa à realidade concreta, nem

escondida na realidade virtual. Se este mundo, às vezes, nos aprisiona somos capazes que

buscar realizações de outras formas e dimensões. Nunca devemos deixar de perguntar: “Onde

está esse mundo que nos permita ser humanos, no qual as condições necessárias para a incessante

concretização da identidade humana existam? (...) Precisamos inventar nosso futuro”. (Ciampa, 1995 p.237).

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