comunicaÇÃo e aÇÕes polÍticas de minorias · entre sesmeiros e grupos indígenas”, que foi...
TRANSCRIPT
1
XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e
PRÉ-ALAS BRASIL
04 a 07 de setembro de 2012
Universidade Federal do Piauí – Teresina/PI
GRUPO TRABALHO: CULTURA, COMUNICAÇÃO E DESENVOLVIMENTO:
PERSPECTIVAS POLÍTICAS E ECONÔMICAS (GT nº. 7)
COMUNICAÇÃO E AÇÕES POLÍTICAS DE MINORIAS
Jocastra Holanda Bezerra
Mestranda em Políticas Públicas e Sociedade
Universidade Estadual do Ceará (UECE)
Fortaleza/CE – 2012
2
COMUNICAÇÃO E AÇÕES POLÍTICAS DE MINORIAS
Jocastra Holanda Bezerra1
Resumo: O artigo analisa as formas de expressão e de comunicação utilizadas
por indígenas para afirmação de suas identidades étnicas a partir do processo
de etnogênese iniciado na década de 1980, no Estado do Ceará. Além da
linguagem estético-corporal, a incorporação de recursos como o audiovisual, a
internet e o rádio surgem como parte de um processo de reelaboração
simbólica, mediada por tradições e inovações. A pesquisa questiona em que
medida a apropriação dessas novas tecnologias são relevantes para o campo
da comunicação desses povos, nesse trabalho representado pelo povo
Tapeba, e como esses meios de comunicação ampliam e fortalecem o
movimento social, cultural e político indígena. Por fim, propõe uma reflexão a
cerca da democratização dos meios de comunicação de massa e a utilização
social e política da comunicação para o apoio de ações políticas de minorias.
Palavras-Chave: Democratização da comunicação. Movimentos sociais e culturais populares. Minorias. Índios Tapeba.
Introdução
O artigo relata o processo histórico dos índios no Ceará, a reorganização
dos seus espaços territorial e simbólico diante do avanço da ocupação
colonizadora na região Nordeste e, sobretudo, o processo de emergência –
etnogênese - desses povos indígenas no território cearense na década de
1980, após um período de contestada afirmação do desaparecimento étnico.
Analisamos ao longo desse processo, as formas de expressão e os meios de
comunicação que os indígenas utilizaram para afirmar suas identidades
étnicas.
1 Mestranda em Políticas Públicas e Sociedade pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), Fortaleza, CE. E-mail: [email protected]
3
Essas formas de expressão são tomadas como práticas de
comunicação, com as quais os povos indígenas usaram para se expressar, se
fazerem visíveis e divulgar suas lutas junto à sociedade (não-indígena) e junto
a seu próprio povo. Além da linguagem estético-corporal, a incorporação de
recursos como o audiovisual, a internet e o rádio surgem como parte de um
processo de reelaboração simbólica, mediada por tradições e inovações, no
qual esse grupo se apropria de novas tecnologias - que são elementos de
aculturação do ponto de vista hegemônico, dentro do processo de mobilização
política, social e de reelaboração de sua cultura, como forma de afirmação das
suas identidades e ampliação das suas lutas.
Dessa forma, analisamos o papel que essas novas tecnologias cumprem
no cotidiano das vivências sociais e culturais dessa comunidade. Em que
medida a apropriação de novas tecnologias é relevante para o campo da
comunicação e cultura desses povos? Como esses meios de comunicação
ampliam e fortalecem o movimento social, cultural e político indígena na
contemporaneidade?
Primeiramente, apresentamos um breve relato da história e luta dos
índios no Ceará pela sua reafirmação identitária e luta política. Em seguida,
analisamos os meios de expressão utilizados pelos indígenas com o
“reaparecimento” desses povos na década de 1980, dentro do movimento de
mobilização dos grupos indígenas do Estado pelo reconhecimento de sua
identidade.
Por fim, discutimos a problemática da democratização dos meios de
comunicação de massa no Brasil, historicamente utilizados para legitimar
interesses dominantes de grandes grupos econômicos e políticos, a partir da
utilização social e política da comunicação utilizada como um espaço de
articulação, organização e conscientização política para o apoio de ações
políticas de minorias.
4
Índios no Ceará: presença histórica, emergência étnica e afirmação
identitária na atualidade
A história do Brasil é marcada pelo processo migratório/colonizador
iniciado há 500 anos e que se estende até o início do século XX, o qual
provocou a extinção de muitos povos indígenas - por meio de doenças, guerras
ou mesmo pelo processo de aculturação - e a contínua ocupação das suas
terras2.
O processo de expulsão e extermínio dos povos indígenas no Nordeste
e, mais especificamente, no Ceará não difere muito do processo ocorrido no
território nacional. No entanto, na capitania do Ceará essas práticas
aconteceram mais tardiamente devido à própria ocupação histórica da
capitania que aconteceu somente em meados do século XVII, com o
desenvolvimento da pecuária.
Para a efetiva ocupação das terras, as autoridades coloniais apontavam
que era necessário promover a “desinfestação” dos índios “bárbaros”, cuja
hostilidade representava, na visão dos colonizadores, impedimento para a
efetiva economia nascente na província (MAIA, 2009). Essa construção do
discurso de “barbárie” sobre os indígenas demonstra o violento processo que
se seguiria nos anos seguintes.
Nesse período, particularmente entre as últimas décadas do século XVII
e as duas primeiras décadas do século XVIII, ocorre “o mais agudo conflito
entre sesmeiros e grupos indígenas”, que foi denominado de “Guerra dos
Bárbaros” (RATTS, 2009). Esse conflito durou mais de trinta anos e exterminou
grande parte dos índios da capitania do Ceará.
Durante o século XVIII, os grupos indígenas sofreram outro processo de
extermínio, agora simbólico. Foram catequizados e aldeados. Um ponto
importante que merece ser explicado é da dupla posição da Coroa Portuguesa
frente aos índios do Brasil nesse momento. Existiam dois grandes grupos de
2 A população original de índios foi estimada em torno de um a dez milhões. Atualmente, existem cerca de 460 mil índios no Brasil, distribuídos entre 225 sociedades indígenas, que representam cerca de 0,25% da população brasileira.
5
povos indígenas na Colônia a quem Portugal se dirigia: os índios aldeados
(aliados) e o “gentio bravo” (inimigos). Por um lado, os índios que são tidos
como bravios passam a ser capturados e exterminados, por outro lado os
índios considerados aliados, aqueles que habitam as vilas e aldeamentos,
passam a ser amparados e protegidos, sendo que esses mesmos aliados ora
são coagidos à disciplina e usados como força de trabalho, ora são mantidos
com “bons tratos”.
É importante destacar também que “os índios agiram buscando seus
próprios interesses, construindo por suas ações um outro sentido da
colonização, ainda que continuassem em condição de dominação” (MAIA,
2009, p.62). Assim, passaram a solicitar datas de sesmarias, ainda que na
obediência do sistema de vassalagem como forma de garantir as suas
solicitações.
Os índios também utilizaram táticas no recrutamento, que ocorreu no
período de formação de tropas de índios no Ceará que eram enviados para
combater os rebeldes da Revolução Pernambucana de 18173. Na condição de
tropa a serviço da Coroa, os índios se diferenciavam por utilizar seus
equipamentos ancestrais, arcos e flechas. Assim, mesmo que o objetivo da
política indigenista fosse integrar os povos nativos à sociedade e destruir sua
cultura antiga, eles continuavam existindo como grupo social distinto.
Apesar da pouca documentação relativa ao tema, não se encontra
qualquer registro de resistência ao recrutamento por parte dos índios. Costa
(2009, p. 100) explica esse fato diante das “diversas vantagens que os índios
provavelmente enxergaram como motivações, não somente para participarem
da guerra, mas também para se declararem fiéis súditos do rei de Portugal”:
Primeiramente, o óbvio: se resistissem, correriam o risco de ser presos ou mortos, ou seja, não havia muitas escolhas (...). Segundo lugar, é preciso entender a situação de miséria na
3 Os nativos passam a ser visados como potencial reserva de força de trabalho. Com isso, passaram a ser utilizados como força de trabalho a serviço da Coroa através da formação de tropas de índios, recrutados de vilas próximas de Fortaleza, e enviados para combater os rebeldes da Revolução Pernambucana de 1817. Os índios recrutados eram então submetidos a uma das diversas formas de controle social postas em práticas no mundo colonial desde o século XVIII: coerção à disciplina e captação de força de trabalho (COSTA, 2009, p. 89).
6
qual se encontravam os nativos: o período era de seca e as vilas de onde foram recrutados eram extremamente pobres (...). Além disso, por ordem do próprio governador Sampaio, todos os habitantes do Ceará foram obrigados a prestarem auxílio aos índios de acordo com esta portaria escrita em maio de 1817, quando iniciarem sua marcha (COSTA, 2009, p. 100 – 101).
Desse modo, é possível evidenciar que os índios encontraram
vantagens nos recrutamentos e passaram a utilizá-las como táticas para sua
própria sobrevivência diante da expansão colonialista.
Entretanto, o século seguinte (século XIX) é marcado pelo que se
convencionou chamar de “extinção” da presença indígena no Ceará. Em 1826,
o Governo da província do Ceará propôs o fechamento e dispersão dos índios
de muitos aldeamentos e, assim, as terras das vilas deveriam ser repassadas
ao controle efetivo das câmaras locais.
Com a aprovação da Lei n° 601, a Lei de Terras, que se propunha a
regularizar a posse de terras, que predominava de modo descontrolado no
Brasil, as terras que não estivessem mais ocupadas por índios, a Lei
assegurava a incorporação como sendo dos “próprios nacionais”, ou seja,
propriedade do governo imperial.
Dessa forma, os resultados da Lei de Terras foram outros. De acordo
com Valle (2009, p. 126), o que realmente ocorreu com a Lei de Terras “foi a
idéia de ‘extinção’ dos antigos aldeamentos”. Pelo que se observa a questão
da “extinção” dos índios era mais uma opção das autoridades reconhecerem ou
não a presença indígena no Ceará.
Por conseguinte, em 1861, o governo provincial já declarava a extinção
de índios na província, afirmando que esses estavam confundidos com a
população civilizada: “Já não existem aqui índios aldeados ou bravios” (VALLE,
2009, p. 142).
Dessa forma, no século XIX firma-se um novo processo de assimilação
contínua das populações indígenas como “nacionais”, onde o índio passa a
fazer parte da “massa da população”, passando a ser associado “à mistura e,
portanto, à desubstancialização étnica (VALLE, 2009, p. 145). Segundo Alex
7
Ratts (2009, p. 18), “há um silêncio de cem anos e mais a respeito da trajetória
de grupos indígenas (...) no Estado. Por todo esse tempo, falava-se, no
máximo, na existência de ‘caboclos’, denominação atribuída aos mestiços de
origem indígena”.
Diante dessa ideia que se cristalizou da não existência de índios no
Estado, a socióloga Ana Lúcia Tófoli (2009, p. 214) fala que “os grupos
indígenas, neste contexto, vivem um contínuo jogo de luta simbólica em torno
de sua afirmação étnica”. Tófoli (2009, p. 215) fala que esses grupos eram
“invisíveis” para a sociedade e o Estado, seus diferenciais eram percebidos e
exaltados apenas como estigma, com certo preconceito e discriminação.
Na década de 1980 “reaparecem” no cenário regional os grupos étnicos
Tapeba e Tremembé, reivindicando sua indianidade e o direito às terras que
ocupam (RATTS, 2009, p. 18).
Ciarlini (2009) fala que uma maneira de compreender o “aparecimento”
indígena nesse cenário político é estudá-los a partir de um conceito de
etnogênese, ou seja, “o processo de emergência histórica de um povo que se
autodefine em relação a uma herança sociocultural” (SILVIA, 2001 apud
CIARLINI, 2009, P. 252).
Assim, o “reaparecimento” dos povos indígenas no cenário regional
remete a uma crença de uma ancestralidade comum. A partir disso, esses
povos passaram a intensificar a coesão dos grupos e a mobilizarem-se pela
afirmação de sua identidade.
Esses grupos iniciam o processo de regularização fundiária através das
“retomadas de terras”, que passou a ser um mecanismo de luta e resistência
dos grupos indígenas para assegurarem a posse do espaço que lhes pertence,
e ao mesmo tempo é uma mobilização mais ampla pelo reconhecimento das
suas identidades étnicas (TÓFOLI, 2009, p. 214).
O “reconhecimento” dos grupos indígenas no Ceará apresentou
oposições e problemas complexos, sobretudo por pressões de natureza
política, exercidas por grupos econômicos que insistem em negar a
legitimidade dos direitos indígenas, questionando a autenticidade das suas
8
identidades, a fim de defender interesses particulares. Esse foi, e continua
sendo, o principal entrave para o “reconhecimento” da identidade étnica no
contexto local (OLIVEIRA JUNIOR, 1998).
A FUNAI, por sua vez, reconheceu oficialmente os grupos Tapeba e
Tremembé, os primeiros a serem reconhecidos, em 1985. As terras indígenas,
no entanto, só foram identificadas e delimitadas em 1993, sendo que a
demarcação, só foi feita quatro anos depois. Apesar disso, a homologação e o
registro cartorial das terras, que são as últimas etapas do processo
demarcatório, ainda não foram concluídas. Diversos grupos indígenas ainda
aguardam o remanejamento da população não-indígena das terras
demarcadas e o fim das contestações judiciais.
Atualmente, o movimento indígena no Ceará está organizado em 11
povos, localizados em 16 municípios do Estado, e com uma população
estimada em 23 mil indígenas (FUNASA – Fundação Nacional de Saúde –
2009).
O recente “reaparecimento” de indígenas no cenário do Estado
representa um novo marco na história desses povos, que ao longo de vários
séculos lutaram pelos seus direitos e ainda continuam lutando pela
demarcação de suas terras e pelo reconhecimento de sua etnicidade.
Meios de expressão utilizados pelos indígenas como forma de afirmação
da etnicidade
Ao longo do processo de “reaparecimento” étnico na década de 1980,
dentro do movimento de mobilização dos grupos indígenas do Estado pelo
reconhecimento de sua identidade, os indígenas começaram a utilizar meios de
expressão para atender a imagem que a sociedade formou sobre os índios,
acreditando-se que ser índio é ser diferente culturalmente e que “aquele povo
que não se apresenta à sociedade em geral ‘vestido de índio’, ventura-se a ter
sua identidade negada socialmente” (SOUSA, 2001, p. 06).
9
Dessa forma, esses grupos passaram a utilizar-se de uma “linguagem
estético-corporal que os descreve como indígenas através de pinturas,
adornos, danças e cantos” (ibid, 2001, p. 02).
O antropólogo e professor na Universidade Estadual do Ceará Gerson
Augusto de Oliveira Junior (1998, p. 13 - 14) através de seus estudos constatou
que o Torém4 (e o Toré para outros povos indígenas) passou a ser utilizado, a
partir da década de 1980, “como elemento central da representação da
identidade, na demarcação das fronteiras entre o nós e os outros”. O Torém
passou a ser representado “como expressão política da diferença e fator de
unidade e coesão” entre os povos indígenas.
De acordo com as reflexões do antropólogo a ideia de “identidade étnica
é processada de forma política e simbólica, sendo por meio da ‘cultura de
contraste’ que os grupos se tornam visíveis como coletividades etnicamente
diferenciadas” (OLIVEIRA JUNIOR, 1998, p. 33).
Dessa forma, o modo de se vestir, a pintura corporal, a dança ou um
ritual poderá ser utilizado como forma referencial da identidade diante da
sociedade não-indígena e, assim, podem ser entendidas como formas de
expressão comunicativas para afirmação da diferença cultural.
A utilização do Torém como meio de expressão da identidade indígena
fica mais evidente quando se contrasta duas situações de manifestação da
dança: destinada a um público externo e realizada no interior do próprio grupo.
Nas apresentações externas, seja para o governo ou para a sociedade,
o Torém é caracterizado pela utilização dos adereços de pena, cocares, pintura
e uma postura formal no ato de dançar. Conforme Gerson Junior (1998, p.
109), “o uso de elementos que se identificam com o suposto mundo indígena
deve ser visto essencialmente como estratégia do grupo para atender à
imagem estereotipada sobre o índio, presente no imaginário da sociedade
4 A dança do Torém constitui-se uma peculiaridade cultural dos Tremembé, diferenciando-se do ritual do Toré. O Toré caracteriza-se como um ritual de possessão e, desse modo, possui uma dimensão sagrada, estando vinculado às práticas religiosas dos grupos indígenas, o que não acontece com a dança dos Tremembé, vivenciada sobretudo como uma “brincadeira”, uma dança lúdica (OLIVEIRA JUNIOR, 1998, P. 23).
10
nacional”. Nessa situação, o Torém, as pinturas e os ornamentos poderiam ser
vistos como “ações simbólicas por meio das quais ‘mensagens’ são veiculadas”
(OLIVEIRA JUNIOR, 1998, p. 33).
Fora do contexto da mobilização política, quando são realizados dentro
do próprio grupo, há uma quebra radical com a formalidade, onde a dispensa
dos ornamentos de penas é significativa e são presentes os risos e a
descontração, o que revela outra perspectiva para a dança, tida nessa situação
muito mais como uma brincadeira (ibid, 1998, Pp. 109 – 110).
Também de acordo com esse sentido, o sociólogo Kleber Saraiva de
Sousa (2001, p. 09) fala sobre a linguagem que os grupos indígenas fazem uso
para uma comunicação com outras pessoas não-indígenas, que releva uma
“propaganda corporal” para mostrarem sua indianidade:
Nos eventos desenvolvidos para comemorar o dia do índio ou nas assembleias anuais entre esses povos, por exemplo, a linguagem que os grupos fazem uso para uma comunicação entre pares, ou ainda, com outras pessoas não-indígenas que participam dos eventos, remete a princípios que revelam um índio colonial ou de uma Amazônia quase em isolamento. Quero dizer que os nativos do nosso estado vestem seus corpos com colares e pulseiras feitas de sementes nativas, usam cocar de penas de aves locais, cobrem-se com vestes de cipó encontrado no seu lugar de morada, cantam a própria realidade ajuntada em danças ritualísticas que formam um circulo humano num movimento recorrente que evidencia as ideias caricaturadas e resumidas da cultura indígena. Uma divulgação de concepções feita pelo corpo, uma propaganda corporal para expressar elementos culturais que lembram muito mais a realidade vivida pelos seus antepassados ou contemporâneos de um norte brasileiro, do que o cotidiano atual e presente em suas vidas. Tudo organizado para mostrar a quem interessar o óbvio: eles são índios (SOUSA, 2001, p. 09).
Além do uso de uma linguagem estético-corporal, os índios também
apresentam outros mecanismos de expressão e afirmação das suas
identidades étnicas.
11
As escolas diferenciadas5 também podem ser citadas como formas de
expressão da diferenciação étnica desses povos. Além de esses espaços
indígenas representarem a produção de saberes diferenciados com objetivos
educacionais, eles também ganham uma dimensão simbólica de afirmação do
“ser diferente”.
Essa palavra “diferenciada” tem acompanhado o nome das escolas indígenas, ou seja, não basta ser indígena, tem que ser “diferenciada”. (...) Isso expressa uma necessidade de deixar claro que a escola é indígena e que está ali com a intenção de se diferenciar das demais, explicitando aos outros uma dimensão simbólica significativa – “somos diferentes”. É uma maneira de publicizar a diferença. A palavra diferença em relação aos grupos étnicos é mobilizada com a intenção de afirmar uma identidade (SOUSA, 2009, p. 355).
Os museus de índios também surgem como “construção de
representações sobre si mesmos e seu processo de organização” (GOMES;
VIEIRA NETO, 2009, p. 388) e podem ser entendidos, por sua vez, como
elementos de afirmação de sua etnicidade, uma vez que são uma forma da
história ser contada pelos próprios protagonistas, ou seja, pelos próprios índios.
Neste processo de luta, no qual as comunidades indígenas descobriram a importância e o papel da memória, algumas se apropriam de uma criação ocidental, os museus, e já perceberam o quanto este pode ser importante no processo de auto-reconhecimento e de construção/escrita de suas próprias interpretações acerca do seu passado coletivo. Interpretações que justifiquem suas escolhas e condutas políticas no presente (ibid, 2009, p. 388).
Posteriormente, os grupos indígenas também se apropriaram de meios
de comunicação e novas tecnologias para visibilizar suas lutas e identidades.
Conforme destaca Tófoli (2009, p. 218), os grupos indígenas “apropriam-se de
mecanismos como listas de discussões virtuais e recursos audiovisuais. O que
permite articular informações, compartilhar experiências de resistência, fazer
5 As escolas representam um espaço heterogêneo, onde são ensinados vários saberes concernentes ao currículo de uma escola com modelo ocidental de ensino (Matemática, Português, História, Geografia e Ciências). Além disso, são acrescentadas as atividades de “Arte e Cultura” indígena (SOUSA, 2009, p. 355).
12
denúncias com rapidez e grande alcance de repercussão, fortalecendo assim a
luta comum”. Um dos mecanismos que a autora cita é o uso da internet, onde
existem sites de grupos indígenas do Ceará, como é o caso dos Tapeba
(www.tapeba.com.br), criado em 2005, e recursos audiovisuais produzidos
pelos próprios indígenas, como os registros audiovisuais da tradicional Festa
da Carnaúba, disponibilizados no Youtube.
Outro importante meio de comunicação que os Tapeba também utilizam
é o rádio. No caso da rádio comunitária se tem um processo de mobilização
mais amplo e ativo dos indígenas, por conta da conquista da concessão do
canal ter sido resultado da mobilização de diversos grupos indígenas do Ceará,
ao longo de quase dez anos de luta, para a autorização e funcionamento da
emissora comunitária.
Na medida em que está inserida num movimento social de vivência e
luta de indígenas, uma luta política de minorias, a conquista da rádio
comunitária assume um outro uso, opondo-se ao caráter político-hegemônico e
comercial ao qual foi amplamente usado na história do Brasil. Assim, a
utilização da rádio comunitária pelo movimento indígena, de forma mais ampla
e significativa, representa um passo importante no processo e nas discussões
acerca da democratização da comunicação no Brasil.
Minorias Sociais e Comunicação
No contexto dos movimentos sociais populares se desenvolvem
experiências de comunicação que podem ser denominadas de “populares” ou
“comunitárias”. Tais experiências evidenciam características próprias, entre
elas, o exercício da participação direta, “onde se faz possível que os receptores
das mensagens dos meios de comunicação se tornem também produtores das
mesmas, se tornem emissores do processo de comunicação” (PERUZZO,
2008, p.139).
John Downing (2002) caracteriza esse processo de produção de
conteúdo e de mídias pelos próprios receptores a partir do conceito de mídia
radical alternativa. O autor explica que a mídia radical poderia ser entendida
13
como uma expressão de culturas excluídas, que exprimem suas prioridades e
aspirações com “uma visão alternativa às políticas, prioridades e perspectivas
hegemônicas” (DOWNING, 2002, p. 21).
Voltando ao exemplo da rádio comunitária, ela é definida,
fundamentalmente, a partir de sua organização vinculada a movimentos
sociais. Segundo Peruzzo (2008, p. 132), quando se fala de movimentos
sociais, refere-se “ao conjunto de organizações das classes subalternas que
são constituídas com objetivos explícitos de tentarem obter um melhor nível de
vida através do acesso a bens de consumo individual e coletivo”. Além disso,
também se busca a garantia da satisfação dos direitos básicos de
sobrevivência e dos direitos de participação política na sociedade. No entanto,
vale ressaltar que os movimentos sociais passam por transformações em
consonância com o contexto onde estão inseridos, sendo ampliadas ou
reduzidas suas propostas de mudança social.
Como escreveu Canclini, por Peruzzo (1987 apud PERUZZO, 1998, p.
119):
Trata-se de uma nova maneira de pensar o popular, ligando comunicação e cultura. Ela ocupa-se da comunicação no contexto de organizações e movimentos sociais vinculados às classes subalternas ou, como dizem enfaticamente, da comunicação “ligada à luta do povo” por melhores condições de existência e pela sua emancipação, mediante movimentos de base organizados.
Assim, a comunicação popular relaciona-se, em um nível mais amplo,
com a comunicação e cultura no contexto dos movimentos populares, podendo
contribuir para inferir modificações no cenário de atuação dos movimentos,
como por exemplo, na cultura e na própria estruturação dos meios de
comunicação e da sociedade.
Portanto, no movimento indígena, como movimento de minorias étnicas
ou sociais, o processo pelo qual os índios tornam-se porta-vozes da
comunidade, de receptores da mídia de massa a produtores de suas próprias
14
mensagens e mídias, não se limita ao campo da comunicação, ele inclui a
dinâmica da cultura desses povos.
Nesse sentido, pode-se afirmar que a comunicação popular se
contrapõe também à comunicação de massa. Esta última privilegia os objetivos
e a ideologia das classes dominantes, despolitiza o receptor, impede a
participação popular na produção das mensagens e, de forma geral, oculta ou
desvirtua a realidade. A primeira, por sua vez, estaria ligada à cultura popular e
desempenharia um papel de “cultura de resistência” ao sistema reprodutor da
ideologia dominante (PERUZZO, 1998, p. 134).
Peruzzo (2008, p. 143) destaca essa atuação das classes populares,
que também estão inclusas as mobilizações de minorias étnicas/sociais
(juventude, mulheres, afrodescendentes, indígenas, entre outros), na busca de
uma comunicação alternativa:
As classes populares foram criando seus próprios canais de expressão, como também conquistando espaço nos canais tradicionais de informação para divulgar suas mensagens. Contribuem, assim, para o debate sobre os problemas nacionais e participam da re-elaboração das ideologias, valores e modos de ver o mundo, contribuindo na educação para a cidadania.
Dessa forma, a comunicação popular significa um processo muito mais
amplo. As classes populares e minorias sociais, além do campo da
comunicação e cultura, se utilizam dos meios de comunicação, ampliam sua
proposta enquanto meio de comunicação, incorporando o incentivo à atuação,
mobilização, conscientização e educação política da população. Assim, a
comunicação também assume uma utilização social e política para o apoio de
ações políticas de minorias e de movimentos sociais.
O exemplo da Rádio Comunitária dos índios Tapeba é fundamental
nesta compreensão, pois ela surge como instrumento de
mobilização/conscientização dentro do movimento social, político e de
reelaboração cultural dos índios no Ceará.
15
No cotidiano, minorias vivenciam situações de exclusão, marginalidade e
discriminação que as colocam em uma posição de constante luta por
visibilidade, reconhecimento e direitos, desempenhando um papel de “cultura
de resistência”, por excelência, ao sistema reprodutor da ideologia dominante.
A utilização social e política da comunicação para publicizar a
reinvidicação/afirmação da diferença, bem como ser utilizada como espaço de
articulação, organização e conscientização política para o apoio de ações
políticas de minorias tem uma relevância fundamental para esses segmentos
minoritários.
Considerações finais
Diante dessas reflexões, podemos apontar algumas considerações
importantes sobre a relevância que as novas tecnologias e meios de
comunicação possuem para o campo da comunicação e cultura dos grupos
indígenas, nesse trabalho representado pelo povo Tapeba, como referência
para se pensar a apropriação desses meios por outros grupos minoritários e
movimentos sociais. E, com isso, se pensar a utilização social e política da
comunicação para o apoio de ações políticas de minorias como parte do
processo da democratização dos meios de comunicação no Brasil.
Percebemos que, inseridos no processo de articulação e mobilização
social dos índios, a rádio comunitária e os demais meios de expressão e
comunicação mencionados anteriormente, são utilizados como instrumentos de
reafirmação étnica, uma vez que são utilizados para publicizar a existência
desses povos, sua cultura e luta pela demarcação de suas terras.
Esses recursos também assumem um papel importante no processo
reelaboração simbólica, mediada por tradições e inovações, na qual esses
sujeitos tornam-se receptores-produtores de mídia e reelaboram sua cultura
através de pertencimentos ancestrais, de uma origem comum, e apelos
16
contemporâneos, como por exemplo, apropriações tecnológicas para
publicização e afirmação das suas identidades.
Esses meios de comunicação também ampliam e contribuem para
fortalecimento do movimento social, cultural e político indígena. Como foi visto
anteriormente, quando não tinham acesso aos meios de comunicação
convencionais, os indígenas elaboraram uma linguagem estético-corporal como
prática de expressão. Essas expressões, por sua vez, ampliam-se quando
esses grupos em geral passam a ter acesso a novas tecnologias, o que permite
articular as comunidades, trocar informações, visibilizar experiências de
resistência, fazer denúncias com rapidez e grande alcance de repercussão.
Esses recursos tornam-se mecanismos capazes de integrar e organizar
as comunidades indígenas, facilitando a troca de informações entre si e
ampliando a visibilidade para o outro, ampliando e fortalecendo assim a luta
comum.
17
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARRETTO FILHO, Henyo Trindade. Tapebas, Tapebanos e Pernas-De-Pau de Caucaia, Ceará: Da Etnogênese como processo social e luta simbólica. Mestrado em Antropologia Social do Museu Nacional, UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1993 - 30 p. Disponível em: <http://www.unb.br/ics/dan/Serie165empdf.pdf> Acesso em: 21 mar. 2009.
BEZERRA, Jocastra H. Rádio comunitária FM Central de Capuan: a voz dos índios Tapeba. Fortaleza: Monografia apresentada ao curso de Comunicação Social na Faculdade Evolutivo - FACE. 2009.
CIARLINI, Alyne Almeida. Territorialidade, saudade, ressignificação: índios Tabajara do Olho D’água dos Canutos.In: PALITOT, Estevão Martins (org.). Na mata do Sabiá: contribuições sobre a presença indígena no Ceará. Fortaleza: Secult / Museu do Ceará / IMOPEC, 2009. (vários autores)
DOWNING, John D. H. Mídia Radical: rebeldia nas comunicações e movimentos sociais. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002. Tradução: Silvana Vieira.
GOMES, Alexandre Oliveira; VIEIRA NETO, João Paulo. Museus e Memória indígena no Ceará: a emergência étnica entre lembranças e esquecimentos. In: PALITOT, Estevão Martins (org.). Na mata do Sabiá: contribuições sobre a presença indígena no Ceará. Fortaleza: Secult / Museu do Ceará / IMOPEC, 2009. (vários autores)
GONDIM, Juliana Monteiro. Corpo e Ritual: práticas de Cura e afirmação identitária nos Tremembé de Almofala. In: PALITOT, Estevão Martins (org.). Na mata do Sabiá: contribuições sobre a presença indígena no Ceará. Fortaleza: Secult / Museu do Ceará / IMOPEC, 2009. (vários autores)
HÁ 500 ANOS. FUNAI. Disponível em: <http://www.funai.gov.br/index.html> Acesso em: 30 ago. 2009.
NOSSA HISTÓRIA. TAPEBA. Disponível em: <http://www.tapeba.com.br/nossa-historia.php> Acesso em: 26 mar. 09.
OLIVEIRA JUNIOR, Gerson Augusto de. Torém: brincadeira dos índios velhos. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desportos, 1998.
OLIVEIRA, Catarina Tereza Farias de. Escuta Sonora: educação não-formal, recepção e cultura popular nas ondas das rádios comunitárias. Campinas-SP: [s.n], 2002.
PALITOT, Estevão Martins. Na mata do Sabiá: contribuições sobre a presença indígena no Ceará. Fortaleza: Secult / Museu do Ceará / IMOPEC, 2009. (vários autores)
PERUZZO, Cicília M. Krohling. Comunicação comunitária e educação para a cidadania. In: ROLIM, Renata Ribeiro (org.). Rádio, movimentos sociais e
18
direito à comunicação. Recife: Oito de Março Gráfica e Editora, 2008. (Vários autores)
________________________. Comunicação dos movimentos populares: a participação na construção da cidadania. Petrópoles - RJ: Vozes, 1998.
RATTS, Alex. Traços Étnicos: espacialidades e culturas negras e indígenas. Fortaleza: Museu do Ceará / Secult, 2009.
SOUSA, Carlos Kleber Saraiva de. Propaganda ideológica, mídia e cultura indígena no ceará. In: Tese de Pós graduação em Sociologia apresentada a UFC – Universidade Federal do Ceará – 2001, 15 p. Disponível em: <http://www.fic.br/v4/revista/pensarcom/02/textos/KleberSaraiva.doc> Acesso em: 17 set. 2009
SOUSA, Flávia Alves de. As políticas de educação escolar “diferenciada”: a experiência de organização dos Pitaguary. In: PALITOT, Estevão Martins (org.). Na mata do Sabiá: contribuições sobre a presença indígena no Ceará. Fortaleza: Secult / Museu do Ceará / IMOPEC, 2009. (vários autores)
TÓFOLI, Ana Lúcia Farah. Retomadas de terras Tapeba: Entre a afirmação étnica, os descaminhos da demarcação territorial e o controle dos espaços. In: PALITOT, Estevão Martins (org.). Na mata do Sabiá: contribuições sobre a presença indígena no Ceará. Fortaleza: Secult / Museu do Ceará / IMOPEC, 2009. (vários autores)
VALLE, Carlos Guilherme Octaviano do. Aldeamentos indígenas no Ceará do século XIX: revendo argumentos históricos sobre desaparecimento étnico. In: PALITOT, Estevão Martins (org.). Na mata do Sabiá: contribuições sobre a presença indígena no Ceará. Fortaleza: Secult / Museu do Ceará / IMOPEC, 2009. (vários autores)