compatibilização constitucional da colaboração premiada

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    Revista CEJ, Braslia, Ano XVII, n. 59, p. 84-99, jan./abr. 2013

    COMPATIBILIZAO CONSTITUCIONAL

    DA COLABORAO PREMIADAFrederico Valdez Pereira

    DIREITO PROCESSUAL PENAL

    Hlcio Corra

    CONSTITUTIONAL COMPATIBILITY OF PLEA BARGAINING

    ABSTRACT

    The author assesses the institute of plea bargaining, also

    known as rewarded cooperation, which aims at contributing

    to obtaining investigative elements, given the setback in the

    investigation through traditional methods.

    He discusses how rewarded cooperation may legitimately be

    awarded in courts, upholding its validity and the basic rights

    of those involved in the case.

    KEYWORDS

    Procedural Criminal Law; plea bargaining; rewarded

    cooperation; investigation method; evidence; organized crime.

    RESUMO

    Analisa a colaborao premiada tambm denominada delaopremiada ou colaborao processual, que objetiva contribuirpara a aquisio de elementos investigativos ante o bloqueio naapurao pelos mtodos tradicionais.Aborda o modo como a colaborao premiada poder ser le-gitimamente utilizada pelos tribunais, preservando-se sua razode ser e as garantias fundamentais dos envolvidos na apurao.

    PALAVRAS-CHAVE

    Direito Processual Penal; delao premiada; colaborao premia-da; mtodo de investigao; meio de prova; crime organizado.

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    Revista CEJ, Braslia, Ano XVII, n. 59, p. 84-99, jan./abr. 2013

    1 INTRODUOO incentivo colaborao premiada

    insere-se em um campo de tenso entredois polos tendencialmente opostos quese podem identificar, de um lado, comoa operatividade do sistema penal, a qualo mecanismo parece destinado a forta-lecer, e, de outro, a legitimidade do sis-tema em conformidade com princpiose garantias tpicas do Estado de Direito,tais como relao de proporcionalidadeentre fato delituoso e sano, tratamen-

    to isonmico dos acusados, preservaodos direitos fundamentais de liberdade,entre outros.

    Muito sinteticamente, o objetivodo presente estudo saber se razesde suposta eficincia, portanto poltico--criminais, podem, em conflito com prin-cpios bsicos do sistema penal, permitirmoderaes de tal modo a legitimar orecurso ao instrumento premial, ou seja,at que ponto a tutela penal deve levarem considerao a pretenso de eficin-

    cia do sistema penal.As apreenses expostas por crticos

    acerca dos avanos normativos em ma-tria de apurao e represso de delitosno significam simplesmente que pre-tendam desfazer ou voltar atrs em rela-o a alguns dos novis instrumentos in-vestigativos j concedidos pelo legisladore inseridos nos ordenamentos jurdicoscom a finalidade, ao menos em tese, decontrolar as manifestaes da modernacriminalidade.

    As preocupaes centram-se, pre-cipuamente, em dois aspectos de inteirapertinncia e que deveriam sempre fazerparte das discusses legislativas e doutri-nrias concernentes pretenso de refor-o nas tcnicas investigativas: uma aferioda relao custo-benefcio na adoo dostendentemente autoritrios mecanismospara fazer frente criminalidade atual1; ea discusso a respeito da imposio de li-mites ampliao desse instrumental quepressupe reforo dos poderes estataissobre os direitos de liberdade.

    Parte-se da premissa de que h ne-cessidade de se conjugarem no proces-

    so penal, alm da defesa das garantiase liberdades, outros bens de residnciaconstitucional, tais como a operativida-de instrumental da persecuo penal,oriunda de uma imposio de respostaeficaz criminalidade, inclusive como re-flexo de uma defesa individual projetadaa partir dos deveres de proteo estatal,na perspectiva objetiva dos direitos fun-damentais. Enfim, o sistema judiciriopenal no tem unicamente a finalidadede garantir os direitos fundamentais dos

    acusados, mas tambm se move pelopropsito de fazer valer imposies deinvestigao e acertamento dos fatosdelituosos, bem como de punio doscriminalmente responsveis.

    Grevi reconhece no ser o processopenal o local adequado ao enfrentamen-to da criminalidade organizada, o quedeve ser realizado, eminentemente, an-tes e fora do processo. No entanto, pros-segue referindo a indispensvel noo deque, quando a luta perante a criminalida-de organizada se concretiza no momentoda represso penal, desenvolve-se neces-sariamente pelo processo, caminho obri-gatrio na verificao dos fatos, de modoque o mecanismo processual deve seradequado, idneo a tratar das dificulda-des oriundas dalla elevata complessitdelle indagini(GREVI, 1993, p. 3-42)2.

    Conforme sustenta Pulitan, a ques-to fundamental para o sistema jurdi-co por envolver instrumentos e prticasjudicirias destinadas a obter resultadosna represso de delitos, o que leva aoreconhecimento da insero do pro-blema penal em um campo de tensoentre dois polos contrastantes: de um

    lado, as exigncias de operatividade dosistema penal, ou de efetivo funciona-mento da tutela coercitiva dos direitos e

    interesses dos indivduos e da sociedade

    (PULITAN, 1997); do outro, imposiesrelacionadas ao asseguramento das liber-dades individuais diante do poder coerci-tivo do Estado.

    A experincia histrica e as preten-ses latentes nas searas repressiva e deliberalismo demonstram que garantismoe operatividade repressiva esto con-tnua e estruturalmente em equilbrioprecrio, podendo-se mesmo visualizarum pendolarismo da legislao e daprxis processual ao refletirem historica-

    mente a exigncia de contemplar inte-resses em potencial conflito, combinan-do sucessivamente sucessos e excessosnessa tarefa (PULITAN, 1997, p. 19-20).Constatao que, muitas vezes, passapela perspectiva oposta de anlise: paraos defensores das garantias de defesa doindivduo, h excesso de rigor; na visodo polo oposto, destaca-se uma incapa-cidade da justia penal de funcionar demodo adequado.

    Dessa forma, o que se discute no a harmonizao estvel desses valo-res, mas a moderao possvel em umquadro de constante oscilao, de modoa permitir abordagem crtica quanto sconcretas iniciativas do legislador e daprtica no reforo de um ou outro dospolos, lanando a discusso ao campoprincipiolgico e de propositura de al-

    ternativas ou correes. Nesse norte,insere-se o tema na busca do improvvelequilbrio entre a pretenso de operativi-dade repressiva e o asseguramento dosdireitos de liberdade, como condiolegitimante das normas de incentivo colaborao premiada.

    A par de que seja um debate impreg-

    nado de fortes consideraes polticas, emesmo de valorao tica e ideolgica,impe-se ao menos a tentativa de seguirpara alm, com a insero da questo no

    [...] deve-se questionar se eventual opo normativa de

    acolhimento da colaborao premiada como instrumento de

    reforo das finalidades eficientistas do sistema penal poderiaser compatibilizada com princpios e garantias constitucionais.

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    mbito dos direitos fundamentais, procedendo-se a uma aferi-o quanto legitimidade constitucional do instituto elaboradaa partir da mxima da proporcionalidade, e de outros princpiosconstitucionais que se projetam no tema, buscando equacionarracionalmente os custos e benefcios, como refere Seminara:senza ideologismi o sentimentalismi(SEMINARA, 1992, p. 59).

    2 TENSO CONSTITUCIONAL NO TEMA DA COLABORAO

    PREMIADA

    Para alm da concepo idealista e/ou cientfica que se te-nha dos modelos abstratos de conformao do sistema penal,deve-se questionar se eventual opo normativa de acolhimen-to da colaborao premiada como instrumento de reforo dasfinalidades eficientistas do sistema penal poderia ser compati-bilizada com princpios e garantias constitucionais. A questocentral est em saber se o ordenamento jurdico constitucionalpositivo consente conviver com a figura do arrependido.

    A partir da concepo advinda dos modernos Estados consti-tucionais de direito, os ordenamentos jurdicos passaram a com-preender princpios e valores oriundos do racionalismo iluminista,fazendo com que quase todas as garantias penais e processuaisde liberdade e de certeza estejam consagradas nas constituiescomo princpios jurdicos fundamentais3. A marca dos Estadosconstitucionais de direito, estruturados a partir de uma constitui-o rgida, precisamente o fato de que a norma fundamental dosistema incorpora no apenas requisitos de regularidade formal,mas tambm condies de validade substancial.

    Da decorre que, apesar de se ter feito primeiramente refe-rncia dualidade de concepes ideolgico-dogmticas sobreo tema dos arrependidos, representada pelo pndulo no siste-ma penal, a anlise inicial, ponto de partida quando se discute alegitimidade possvel do prmio a agentes colaboradores, deveser a compatibilidade ou no dessa previso com as normasconstitucionais, de modo a aferir no apenas a injustia, masa existncia de invalidade por oposio norma fundamental.

    Superada a questo da legitimidade jurdica substancial,ingressando o instrumento de reforo investigativo na ordemjurdica constitucional de forma legtima, porquanto em con-formidade formal e materialmente com os princpios penais eprocessuais alojados na Constituio, afirmada estar a validadeda regra, independente de contrariar concepes dogmticasdissonantes. No estaro afastadas as crticas de poltica crimi-nal, muitas delas bem pontuadas e mesmo adequadas, no en-tanto no mais o que se estar discutindo, mesmo porque no

    convenceram o legislador e so insuficientes para se afirmar ainconstitucionalidade da opo feita4.O desenvolvimento proposto, embasado na reflexo consti-

    tucional, privilegia a ideia exposta por Silva Snchez no sentido

    de que, nos sistemas do constitucionalismo moderno, a hipte-se possvel de impugnao de preceitos penais e persecutriosest na concluso pela incompatibilidade constitucional dessasnormas, seja por defeito, ou por excesso; sem a verificao deinconstitucionalidade, diz o autor:nos hallamos en el marco dela poltica criminal defendible(SNCHEZ, 2001, p. 118). Aindaque se considere irrazovel, no ser passvel de substancial im-

    pugnao, ou seja, ao legislador conferido um amplo espaode configurao, o qual no necessariamente coincidente como espao pretendido pela dogmtica penal.

    No se pretender enfrentar esse fundamental problemacom a profundidade necessria a qualquer cogitao de esgo-tamento das suas possibilidades, pretenso sria nesse sentidoexigiria extenso somente compatvel com trabalho especfi-co no tema. Mas, tendo em vista alguma possvel relao deprejudicialidade, antes de se prosseguir na discusso seroabordadas, resumidamente, algumas reflexes mais comuns econsistentes a respeito da compatibilizao material do instru-mento da colaborao premiada com normas constitucionais

    tendentemente ameaadas.Sintetizando o problema de legitimidade constitucional no

    tema da delao premiada, de um dos lados dos polos em la-tente tensionamento tm-se princpios constitucionais direcio-nados exigncia de operatividade do sistema penal compre-endido conjuntamente5, os quais radicariam em um interesseda ordem jurdico-penal de eficincia na investigao e esclare-cimento dos delitos6. No extremo contrrio estariam princpiosoriundos de conformidade justia e garantia, tais como igual-dade, culpabilidade, tratamento isonmico dos acusados, que,em tese, tenderiam a afastar a possibilidade de a ordem jurdicareceber mecanismo de persecuo embasado na atitude coope-rativa de coautores de crime.

    Assim, na sequncia, pretende-se apresentar, de formacrtica, as linhas argumentativas que se antepem quanto legitimidade constitucional da colaborao premiada, preten-dendo-se, com isso, explicitar o problema de modo objetivo.Nesse caminho, sero resumidos, primeiramente, os princpiosconstitucionais bsicos suscitados pela doutrina que se oporiam tcnica apurativa embasada nas declaraes de coimputado;na sequncia sero expostas as razes que indicariam a impor-tncia do reforo investigativo pela colaborao premiada, aomenos em relao a determinados fenmenos delituais.

    A partir das tenses evidenciadas no tema da legitimidade,e portanto guiando-se pela inteno assumida previamente deno desconsiderar parcela importante da doutrina que se opeao instituto com argumentos de ordem constitucional relativostambm aos custos incidentes na dinmica judicial, recorrer-se- mxima da proporcionalidade como procedimento argumen-tativo destinado a sopesar os valores e princpios contrapostosno tema da colaborao premiada, de modo a apresentar al-gumas consideraes parciais a respeito das circunstncias quepodem levar admisso do reforo no polo da eficincia inves-tigativa no tema em anlise.

    3 PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS SUSCITADOS EM FACE DOSCOLABORADORES

    A doutrina prolfera na meno a princpios e garantiasviolados pelo recurso aos pentiti, podendo referir-se, entre

    A colaborao premiada pressupe distanciar a

    resposta penal do juzo de proporcionalidade

    gravidade objetiva e subjetiva do fato praticado

    pelo pentito, com base em pressuposto de

    finalidade poltico-criminal. H, de certo modo,

    renncia parcial punio de autor de delito.

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    outros: o direito ao silncio, o papel dointerrogatrio como meio de defesa,o nexo retributivo entre pena e delito(FERRAJOLI, 2004, p. 624), o princpio dematerialidade (FERRAJOLI, 2004, p. 624),a moralidade pblica (COUTINHO; CAR-VALHO, 2006), ampla defesa e contradi-

    trio (COUTINHO; CARVALHO, 2006).Como a inteno no de se cur-

    var em cada uma dessas elaboraes,na sequncia sero abordados os prin-cpios mais referidos e consistentes, ajuzo do autor, que poderiam sofrerrestrio em face da colaborao pre-miada, cabendo acrescer ainda quealgumas das alegaes de inconstitu-cionalidade advm do procedimento aser utilizado na coleta das informaes,o que ser objeto de posterior estudo.

    3.1 DIREITO NO AUTOINCRIMINAO

    Entende-se pressuposto da colabo-rao processual que o investigado con-fesse os fatos de que tenha participado7,abrindo mo, de forma expressa, de seudireito constitucional ao silncio8, e com-parecendo no processo na condio detestemunha/informante. A razo de serda colaborao premiada a busca deprovas internas estrutura delituosa, emtese rgida e compartimentada, valendo--se de pessoa com conhecimento privi-legiado exatamente pela condio de teratuado nessa associao, ou em fatosdelituosos por ela cometidos, portantoentende-se desbordar da gnese e razode ser do instituto, admitir sua configura-o sem que o colaborador confesse osfatos nos quais tenha atuado9.

    Disso poderia resultar uma restrio,ainda que de menor ressonncia, relacio-nada eventual violao do direito consti-tucional de o acusado no produzir provacontra si mesmo, pelo fato de o institutopremial embasar-se na confisso plena ecooperao de sujeito investigado pelosmesmos fatos objeto da apurao.

    Na doutrina pode-se citar, a ttuloexemplificativo, a posio de Ferrajoli nosentido de que o benefcio pela confissoe colaborao com a investigao degra-da a relao processual a um tte tteinquisitorio indirizzato alla confessione,

    ove linquirente-confessore, soppresso il

    ruolo antagonista della difesa, estrae leprove dalla collaborazione dellinquisito(FERRAJOLI, 2004).

    Para se argumentar pela inconstitu-

    cionalidade da colaborao por supostaviolao do direito ao silncio, ter-se-iade considerar o direito dos acusados ano confessar como sendo direito irre-nuncivel, ou, apesar de voluntariamenterenuncivel, que o prmio pela colabo-rao eliminaria a voluntariedade. Enten-

    de-se, ao contrrio, que a possibilidadede se atribuir efeito benfico confissovoluntariamente prestada, e ainda queacrescida da colaborao revelativa, noimporta violao do direito a no autoin-criminao, tampouco o prmio eliminaa voluntariedade da renncia garantiade no se declarar culpado.

    Exatamente por ser sujeito pro-cessual, o ru pode, desde que livre econscientemente, dispor de seu direitoconstitucional a no colaborar (CUER-

    DA-ARNAU, 1995, p. 593-594); signifi-ca dizer que o direito em questo ,em todo caso, disponvel, situando-sena esfera de liberdade do titular do di-reito a deciso sobre opor-se, total ouparcialmente, ou mesmo no se opor, imputao. Sendo assim, e acaso nopaire dvidas de que a escolha de co-laborar foi feita livremente, a rennciaao direito insere-se na estratgia pro-cessual adotada pelo acusado.

    Nesse sentido h posicionamentodo Tribunal Constitucional espanhol: li-gar un efecto beneficioso a la confesin

    voluntariamente prestada, no es privar

    del derecho fundamental a no confesar

    si no se quiere (ESPANHA, 1987). Namesma linha a posio da SupremaCorte norte-americana, ao apreciar aconstitucionalidade do plea bargaining,considerando que oprivilege against selfincriminationda 5 emenda garante aoacusado fazer opo por colaborar ouno com a acusao: Waivers of consti-tutional rights not only must be volunta-

    ry but must be knowing, intelligent acts

    done with sufficient awareness of therelevant circumstances and likely conse-

    quences. On neither score was Bradys

    plea of guilty invalid []10.

    Entender a prerrogativa em sentidooposto significaria considerar que o acu-sado tem algum dever fundamental decontrapor-se pretenso punitiva, o que,por certo, inexiste. De qualquer modo, importante mencionar ainda que no seh como refletir com base na confisso

    prpria do processo medieval inquisitivo,a qual impunha ao rgo jurisdicional,independente da sua veracidade, a con-denao do confitente. No atual sistematem-se mero reconhecimento dos fatos,que no importa em alguma eficciavinculativa, no se presta a afastar a pre-suno de inocncia, tampouco pode,isoladamente, determinar o contedo dadeciso sequer frente ao confitente.

    3.2 O PRINCPIO DA CULPABILIDADE:

    PROPORCIONALIDADE DA PENA

    GRAVIDADE DO DELITO

    Prosseguindo, tem-se o problema tambm de adequao constitucio-nal relacionado ao polo do delator,da relao de proporcionalidade entre amedida da pena de um lado, e a gravi-dade objetiva do fato e culpabilidade doautor de outro. A colaborao premiadapressupe distanciar a resposta penal dojuzo de proporcionalidade gravidade

    objetiva e subjetiva do fato praticadopelo pentito, com base em pressupostode finalidade poltico-criminal. H, decerto modo, renncia parcial puniode autor de delito.

    Ferrajoli, por exemplo, levanta a ques-to da subverso do princpio garantistada proporzionalit della pena alla gravit

    del reato e al grado di colpevolezza e di

    responsabilit(FERRAJOLI, 1982, p. 217),pelo fato de a graduao das medidas pe-nais e premiais ser inversamente propor-cional aos graus de responsabilidade dosimputados de crimes associativos.

    A doutrina majoritria atual, formada

    sob inspirao dos Estados liberais de di-reito, concorda em atribuir ao princpioda proporcionalidade da pena gravida-de objetiva e subjetiva do fato delituoso

    [...] importante mencionar novamente que a colaborao

    processual j no reforaria apenas a tarefa estatal de

    esclarecimento de crimes graves, mas teria relevante efeito

    reflexo direcionado a refrear o prosseguimento da atuao

    associativa na prtica desses delitos [...]

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    uma fundamentao constitucional, havendo, aparentemente,alguma dissenso apenas quanto ao embasamento desse re-levo. Inicialmente diga-se que essa preocupao no nova,tampouco teve surgimento com o constitucionalismo; o juzode proporo na reprimenda, ditado pela intensidade do deli-to, aparece tradicionalmente na doutrina penal como uma dasprojees do princpio da culpabilidade, no sentido de que a

    penalizao somente aceitvel nos limites da culpa expressadana conduta delitiva.

    No substrato da acepo do princpio da culpabilidade, por-tanto da exigncia de proporo entre resposta penal e crime,figura a dignidade da pessoa humana e o princpio da liberda-de, pois punir o agente sem ateno culpa manifestada nocomportamento, mas sim a outros interesses poltico-criminais,significaria trat-lo como meio para a obteno de fins que oignoram, violando dessa forma o reconhecimento que lhe devido como cidado. Numa expresso oriunda do legado

    kantiano, significaria trat-lo como um valor de troca e no

    como valor em si(DIAS, 2008, p. 166 e ss.).

    A passagem para o Estado constitucional reforou sobrema-neira o princpio da culpabilidade que, alm de princpio mate-rial de justia, passou tambm a ser visto como projeo de va-lor fundamental do direito positivo, a partir mesmo da inseroda dignidade da pessoa humana nos princpios fundamentais,como um dos fundamentos do Estado democrtico de Direito.

    Ainda na questo introdutria de esboar o substrato cons-titucional da exigncia de proporo entre a sano penal e agravidade objetiva e subjetiva do fato, o que ser importantepara as concluses que seguem, imperioso tomar-se comoreferncia a mxima da proporcionalidade como ferramenta ar-gumentativa de controle de constitucionalidade das restries adireitos fundamentais. Isso porque as normas penais incrimina-doras pressupem sempre a restrio de um direito fundamen-tal, no mais das vezes, o direito liberdade, portanto so resul-tado de uma ponderao na qual a liberdade restringida emprol de outros valores fundamentais (DAVILA, 2009, p. 70-71).

    O postulado da proporcionalidade impede ingernciasexcessivas no mbito dos direitos fundamentais, mediantecontrole conjunto e escalonado pelos seus subprincpios. Daconsiderar-se que o princpio da culpabilidade, na sua vertentede limitar a apenao gravidade objetiva e subjetiva do fatocometido, passou a encontrar respaldo constitucional pela m-xima da proporcionalidade como proibio de excesso de inter-veno punitiva.

    A concluso parcial de que o aspecto limitador da culpa-bilidade destina-se, fundamentalmente, a impedir a aplicaoda pena para alm da responsabilidade pessoal do acusado, de

    modo que exigncias de preveno geral ou especial, que po-deriam ensejar a utilizao de rigor excessivo na pena, visandoalcanar maior eficcia preventiva, estaro sempre limitadas concreta culpabilidade manifestada no fato praticado pelo agente.

    Por outro lado, no se pode desconsiderar enfoque rela-tivamente diverso do referido postulado, e que se sustenta naideia de examinar a questo com referimento s funes depreveno geral e de preveno especial da pena. Nesta ver-tente, a pena adequada, entendida como aquela proporcional gravidade objetiva e subjetiva do fato cometido, garante osmelhores resultados sob o enfoque da preveno geral, mais

    do que uma penalidade excessivamente severa.Esses efeitos proveitosos poderiam ser prejudicados caso

    a reprimenda descesse a nveis mais baixos do que o mnimonecessrio para representar uma reao adequada gravidadedo fato cometido, comprometendo os ideais de dissuaso e re-foro da conscincia jurdico-moral da comunidade social, aomesmo tempo em que seria inidnea a fazer com que o ru,pela admoestao, recepcionasse a relevncia dos valores viola-dos (FLORA, 1984, p. 173). Neste segundo sentido, o princpioda culpabilidade ou da proporcionalidade da pena gravidadedo fato figuraria como limite tambm reduo da penalidade.

    Ao contrrio dessa ltima linha de raciocnio, entende-se

    que o princpio da culpabilidade, e, por consequncia, a suaprojeo na exigncia de proporcionalidade na aplicao dapena se apresentam como relevantes aspectos de tutela do inte-resse do particular sua liberdade pessoal no confronto com ospoderes de interveno do Estado (ROXIN, 1984). Ao contrriodisso, somente se admitindo uma concepo eminentementeretributiva da pena que se poderia chegar concluso de queos princpios da proporcionalidade ou da culpabilidade impe-dem a norma favorvel aospentiti(PULITAN, 1985).

    O que se quer dizer que as preocupaes de compatibili-zao principiolgica ao postulado da culpabilidade na matriaresultam dispersas a partir da considerao de que tal princpioaparece mais como funo de garantia individual do autor docrime11, como limitao ao excesso de punio, e menos comoprojeo oposta de exigncia de limites mnimos punio(ROXIN, 1980)12. Assim que, se razes de poltica criminal, oumesmo ideais de preveno geral e especial, no podem im-portar em majoraes da pena para alm da culpabilidade ma-nifestada no fato cometido, o raciocnio oposto no se sustenta:o princpio garantista da culpabilidade no pode ser invocadopara impedir ou deslegitimar a reduo da pena aplicada emconcreto ao ru.

    Da concluir-se pelo paradoxo da posio, ao menos da parteda doutrina dita garantista, que sustenta, em alguma medida, autilizao dos princpios da culpabilidade ou da proporcionalida-de na aplicao da pena para censurar o tratamento sancionatriomais benfico ao ru decorrente da colaborao premiada13.

    Ainda que se concorde com a noo de que a intensidadedas penas vislumbradas como resposta do ordenamento jur-dico ao fenmeno criminal no deva ser de tal modo insigni-ficante que comprometa a prpria seriedade da reao estatalao fato cometido, parece haver certa confuso ao se inserir taldiscusso no bojo do princpio da culpabilidade, ou da garantiaconstitucional da proporcionalidade da pena em concreto gra-vidade objetiva e subjetiva do delito. Esses postulados figuram

    constitucionalmente como verdadeiras garantias fundamentaisdo indivduo, como limites, anteparo mxima reao estatal.A premissa dos referidos princpios constitucionais classi-

    camente garantistas (PULITAN, 1986, p. 1014), at mesmo

    [...]pode-se dizer que as normas premiais,

    no geral, no importam violao sria a

    direitos e garantias dos colaboradores ou

    dos sujeitos delatados.

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    pela sua tradio histrica, individua-lstica, servindo de barreira contra a ins-trumentalizao do homem a finalidadesrepressivas ou de poltica criminal. Nos a ratioda previso constitucional doprincpio da proporcionalidade da pena culpabilidade manifestada no fato, mas a

    origem e razo de ser de sua elaboraoimpedem que se amplie sua projeo aponto de se questionar a constitucionali-dade de limites mnimos de punio.

    No que no se possa, tambm noplano constitucional, questionar a valida-de de respostas penais insignificantes oumuito aqum do mnimo razovel comoreao ao fenmeno criminal. No entan-to tal perspectiva refoge aos princpiosindividuais de refreamento da interven-o punitiva estatal, como o caso do

    princpio em anlise.H duas linhas de argumentos pos-

    sveis a sustentar posio contrria penalizao inadequada quanto aoslimites mnimos. A primeira e mais pro-fcua reporta-se ao que ser abordado nasequncia a respeito de uma defesa indi-vidual projetada a partir dos deveres deproteo estatal, e a consequente exign-cia de operatividade do sistema penal,ou de efetivo funcionamento da tutelacoercitiva dos direitos e interesses dos

    indivduos e da sociedade (PULITAN,1997, p. 9 e ss.).

    nessa conjuntura dos direitos desegurana, ou da pretenso a uma res-posta penal adequada como forma detutela de direitos fundamentais, que seinsere a questo sobre os critrios derazoabilidade, mesmo do ponto de vistada preveno geral e especial, sobre os li-mites da reduo da penalidade aplicada.Lanar a discusso ao plano da legitimi-dade constitucional de normas de favorsignifica aceitar a presena de obrigaesconstitucionais de tutela penal que ve-dam a proteo deficiente dos bens jur-dicos pelo direito penal substantivo.

    importante essa contextualizao,uma vez que no se questiona isolada-mente a possibilidade de reduo oumesmo iseno de pena abstratamentecominada na legislao, e os possveisefeitos reflexos de comprometimento deuma resposta penal adequada proteo

    dos bens jurdicos atingidos. O quadrotraado mais amplo. A razo de ser daconsequente reduo da sano criminalpela incidncia de norma de favor resi-

    de exatamente na finalidade de refororepressivo, ante a constatao prvia deum bloqueio na investigao de delitosgraves praticados no seio da criminalida-de associativa.

    Por esse motivo, a opo que se co-loca no est entre afastar o recurso ao

    instrumento do prmio pela colaborao,de modo a permitir a aplicao de umapena minimamente adequada gravida-de do fato. A alternativa ao no uso dodispositivo premial ser, muito prova-velmente, a prevalncia da situao re-presentada pela obstruo investigativa,portanto estar-se-ia argumentando como princpio da proibio de insuficinciana proteo penal para, em ltima anli-se, manter a situao de impasse na apu-rao de crimes que se buscou superar

    pelo recurso colaborao premiada: acontradio parece insupervel.

    Outra vertente argumentativa aquelade fazer atuar o princpio da igualdade parainvalidar normas de benefcio destitudasde embasamento constitucional, de modoa afastar possveis formas odiosas de privi-lgio concretizadas na legislao de favor.A questo fundamental estar nos parme-tros sobre os quais valorar, quais diferenasso admitidas e quais no so no quadrolegal protetivo (PULITAN, 1986, p. 1017);havendo grave desproporo entre a opor-tunidade poltico-criminal utilizada comoembasamento para a norma benfica e asignificao criminal dos tipos de compor-tamento compreendidos no favor que seconcluiria pelo prejuzo de isonomia.

    Esta linha ser abordada no itemseguinte, mas pode-se adiantar no serirrazovel concordar com a existnciade diferena importante entre criminosoarrependido ou colaborador, e criminosoirredutvel, ao menos a ponto de ver nadiversidade de tratamento sancionatrio,dentre limites e condicionamentos, uma

    tendencial correspondncia com postula-dos de individualizao da resposta esta-tal com base em um critrio de justia(PULITAN, 1985, p. 136).

    4 PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS

    SUSCITADOS EM FACE DOS DELATADOS

    Igualmente encontram-se refernciasdoutrinrias de diversos direitos e garan-tias que seriam desatendidos na adoodo prmio, podendo referir-se, entreoutros: o princpio da igualdade (FLO-

    RA, 1984, p. 163), de estreita legalidade(FERRAJOLI, 2004, p. 624), nus da prova(FERRAJOLI, 2004, p. 624), a publicidadee o contraditrio (ARANHA, 2006, p. 136).Deste modo, reitera-se aqui a ressalvafeita no item 3, acrescentando ainda quealgumas possveis distores sentidas nadinmica do processo judicial, e que po-dem ter algum reflexo tanto diante doscolaboradores como dos delatados, serotratadas na rubrica subsequente.

    4.1 A QUEBRA DE ISONOMIA

    Ainda dentre os princpios de con-

    formidade justia e garantia referidos

    anteriormente, e que costumam ser in-cludos no polo oposto ao do valor daeficincia do sistema penal em matriade arrependidos, tem-se o postulado daigualdade, sob o aspecto da razoabilidadena previso legal de uma disparidade detratamento. Pode-se cogitar uma quebrada isonomia na previso de prmio aoscolaboradores, no s ante uma desigual-dade externa pela previso do prmio, porexemplo, a delito de homicdio cometidono seio de organizao criminal, e nopara homicdio comum; mas tambmdesigualdade interna, ante o tratamentoinclemente ao cmplice no colaboranteem contrapartida condescendncia emrelao ao cmplice colaborante.

    A justificativa racional que est nabase do tratamento no isonmicocomo motivo real e plausvel a justificara desigualdade sustenta-se na emergn-cia investigativa identificada, sem maioresforo argumentativo, nos delitos co-metidos no mbito de associao crimi-nosa estruturada e orientada prtica dedelitos graves. Presentes, nessas hipte-ses, as caractersticas de periculosidade

    A questo se o preo cobrado pela tcnica premial, em

    termos de prxis judiciria, e de todo o aparato de

    administrao da justia penal justifica-se ante as imposies

    decorrentes de exigncias advindas dos novos fenmenos

    delituais associativos.

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    e impenetrabilidade a indicarem concretamente impasse napersecuo dos demais membros e graves riscos decorrentesda disfuno repressiva minimamente eficiente (RIVA, 2002,p. 430)14. Ou seja, a situao justificadora do tratamento penaldiferenciado reconduz situao do estado de necessidade dainvestigao, o qual se pode manifestar apenas quando presen-te, alm do bloqueio investigativo pela natureza organizada ou

    associativa do fenmeno criminal, uma singular imposio depreveno e represso pela gravidade de crimes que atinjambens e valores fundamentais.

    A esse respeito, importante mencionar novamente que acolaborao processual j no reforaria apenas a tarefa estatalde esclarecimento de crimes graves, mas teria relevante efeitoreflexo direcionado a refrear o prosseguimento da atuao as-sociativa na prtica desses delitos, elemento de discriminaoimportante na comparao com situaes nas quais no semanifesta o papel de fragmentar estrutura orientada ao cometi-mento de crimes, por consequncia evitando-os15.

    Em relao ao tratamento distinto entre sujeitos colaboran-tes e no colaborantes, possvel perceber, j na simples cons-tatao do fenmeno, as razes pelas quais no h identificaosubstancial na situao daquele que direciona a contracondutaps-delitiva em oposio aos interesses da organizao crimi-nosa da qual fazia parte, agregando na busca de esclarecimen-to dos crimes e de resguardo de novas potenciais agressesao bem jurdico tutelado, alm de manifestar comportamentotendente a amenizar o juzo de periculosidade e indicar melho-res possibilidades de reinsero social, e o agente com posiooposta de constncia aopactum scelleris. Consente-se tradicio-nalmente com a ideia de que o processado confesso ou cola-borante receber tratamento penal mais benvolo, pelo que sechega mesmo a considerar a postura cooperativa pela confissocomo umindice di resipiscenza, ou a colaborao com a justiacomoparticolare significato di merito alla personalit del col-pevole(PULITAN, 1986, p. 1009).

    De qualquer modo, a concluso pela legitimidade do trata-mento diferenciado, na situao exposta, merece ser comple-mentada a partir da aferio com base na mxima da propor-cionalidade, no sentido de verificar se o prmio ao colaboradorest justificado, nos seus efeitos de parcial renncia punibili-dade e consequente diferena de regime punitivo, ante o cotejodesses efeitos com fins propostos pela adoo da colaborao.

    4.2 A TUTELA DOS INOCENTES: EFICCIA PROBATRIA DA

    DECLARAO DOS PENTITINa necessria busca do justo equilbrio entre a manuten-o da segurana e a defesa das liberdades, mesmo estando--se diante de medidas diferenciadas destinadas a fazer frente

    criminalidade associativa, Stella destaca a indispensabilidadeda preservao da proteo dos inocentes, ou da distino quea ordem jurdica deve preservar entre culpados e inocentes,garantida pela regra delloltre ragionevole dubbio e que per-tence ao cerne do princpio democrtico (STELLA, 2003, p. 8-9).Segundo o autor, o livre convencimento do julgador deve es-tar orientado por critrios jurdicos e objetivos na valorao da

    prova, e a sociedade democrtica, sustentada na moral e nosprincpios constitucionais, no pode abandonar esses critrios,exemplificando:neppure di fronte al fenmeno del terrorismo(STELLA, 2003, p. 61 e ss.)16.

    Decorre do postulado uma exigncia de qualificao noselementos advindos da atividade probatria de incriminao eque precisam ficar destacados. Dizer-se apenas que a prova daculpabilidade do denunciado est a cargo da acusao podeno ser suficiente para embasar a concluso de que a colabo-rao premiada no tem a fora de, isoladamente, permitir aojulgador a formao de um juzo condenatrio; e precisa ficarassentado como premissa, na tentativa de anlise de problemas

    e censuras ao instituto, o fato de que a colaborao por si sno tem essa qualidade.

    Tendo em vista o cerne do estudo e o fato de que o temados efeitos advindos da colaborao premiada foi objeto deabordagem em outro texto (PEREIRA, 2009), no se aprofunda-r no tema. De qualquer forma, pela relevncia da questo, epelo fato de ter ligao tambm com as condies legitimantesda colaborao premiada na esfera constitucional, impe-se al-guma referncia, ainda que muito breve.

    5 OS CUSTOS A ASSUMIR NA DINMICA PROCESSUAL: A SUAVE

    INQUISIO

    A partir da anlise at ento feita, pode-se dizer que as nor-mas premiais, no geral, no importam violao sria a direitose garantias dos colaboradores ou dos sujeitos delatados. Apesardisso, ainda que se leve em considerao apenas a pessoa docolaborador, embora se relacione mais amplamente com o con-junto da dinmica processual, h inconvenientes referidos peladoutrina e que no podem ser desconsiderados.

    Essa linha argumentativa sustenta-se nos riscos advindos defazer prevalecer, sobre as exigncias garantistas, razes utilitaris-tas de reforo no enfrentamento da grave criminalidade com ouso dospentiti, diante da situao de bloqueio na investigao.Trata-se de elaboraes de vertente mais ideolgica, decorren-tes do modelo ideal de processo acusatrio e dos significadose implicaes do instituto no conjunto do sistema penal, masque no perdem, por isso, importncia, e podem mesmo re-presentar algum concreto risco a princpios assentados na atualconcepo processual penalista.

    Tais ameaas decorrem primordialmente da prpria estru-tura do instrumento dospentiti, uma vez que sua racionalidadese assenta, em alguma medida, na persuaso sobre os acusa-dos, direcionada a incentivar a colaborao com os rgos derepresso em troca de um prmio no mbito da punio. A lgi-ca do prmio, por isso, no deixa de estar embasada em um ins-

    trumento de presso sobre o acusado, no caso, diferena datortura: uma presso de natureza premial e no agressiva, querefora os instrumentos a disposio do acusador (BERNASCO-NI, 1995, p. 9-11), possibilitando-lhe estimular um indiciado a

    [...] que caminho o Estado deve seguir diante

    da constatao de necessidades investigativas,

    ainda mais quando se conclui que tal situao,

    mais do que de direito material, um

    problema do processo penal e dos

    instrumentos de apurao[...]

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    renunciar ao direito ao silncio e a deporcontra os cmplices, em troca da garantiade reduo ou iseno penal.

    vista disso, advm a expressoutilizada por Padovani referindo-se tc-nica dos arrependidos como umasuaveinquisio; o autor cita uma passagem

    de Carmignani que explicita a ideia deassimilao da colaborao processual tortura, embora com sentido diametral-mente oposto: non la minaccia, ma lasperanza, non la violenza, ma la mitezza

    costituiscono il veicolo di penetrazione(CARMIGNANI apud PADOVANI, 1981,p. 541), transformando o imputado emcooperante no esclarecimento judicialdos fatos e, portanto, em meio de prova.

    Estudo correlato no direito norte--americano, e que certamente serviu

    tambm de inspirao para a crticaformulada pelos autores italianos men-cionados, j havia traado paralelo entreo sistema jurdico penal estadunidenseatual, amplamente sustentado no pleabargaining, e o sistema medieval euro-peu, embasado na tortura; partindo daconstatao dos altssimos custo e riscode o acusado submeter-se ao Trial. Lang-bein acaba por afirmar:plea bargaining,like torture, is coercive(LANGBEIN, 2001,p. 370).

    Tais distores podem mesmo seprojetar dinmica processual, a partirde reflexos concretos no plano da dia-ltica entre acusao e defesa, fazendocom que o imputado, alm de definir suaatuao sob a dualidade culpado/inocen-te, tenha tambm de incluir entre suasopes o dilema consistente em exercer,de forma plena, o direito ao silncio e arebater a acusao, confronto que podeser interpretado como justificativa paraum tratamento sancionatrio exacerba-do; ou ento efetuar a opo colaborati-va, ante a perspectiva de ampliar as pos-sibilidades no campo de benevolncia17.

    No mbito dessas preocupaes,h tambm de se mencionar a quaseinseparvel subjetivao da fattispeciepremial, pela presena, nas normas emquesto, de elementos com elevado graude incerteza, o que leva tambm a umtendencial descumprimento da exign-cia de determinao das normas penais

    (FLORA, 1984, p. 174-176). relativaimpreciso na disciplina normativa dosrequisitos para a concesso do benefcioagrega-se um consequente aumento dos

    poderes discricionais, tanto do MP, comodo juiz, ao valorarem a contracondutaprocessual, principalmente o resultadodesse comportamento (RIVA, 2002, p.455-456)18.

    Essas dificuldades em compatibili-zar a ratio do juzo penal com matria

    e lgica atinentes ao campo da investi-gao podem ter reflexos tambm sobrea atuao do MP, ao intensificar sua pos-tura quanto aos delatados recalcitrantes,ao mesmo tempo em que se afastariada condio de acusador em relaoao colaborador. O agente da acusaoostentaria, no mesmo procedimento, acondio ambivalente de perseguidordos acusados no colaborantes, e de ar-rimo da concesso do prmio aopentito,em relao ao qual a comprovao dos

    fatos perseguidos acaba por ser tributria(DOMINIONI, 1983, p. 170-178).

    Tais preocupaes possuem ine-gvel sentido19, e recaem em parteno que ser mencionado em seguida,acerca da necessidade de se institu-rem alguns instrumentos que, a par docarter no garantista, tm razo de sercomo indispensveis ao enfrentamen-to de uma nova criminalidade marcadapela noo de emergncia investiga-tiva. A questo se o preo cobradopela tcnica premial, em termos deprxis judiciria, e de todo o aparato deadministrao da justia penal justifica--se ante as imposies decorrentes deexigncias advindas dos novos fen-menos delituais associativos.

    6 BASE ARGUMENTATIVA FAVORVEL

    COLABORAO: AS EMERGNCIAS

    INVESTIGATIVAS

    Conforme aludido, a doutrinaalem costuma designar o fenme-no da complexidade na investigao,quando h falha no esclarecimento dedeterminados delitos, pela expressoErmi ttlungsnotstand, que pode ser

    traduzida por estado de necessida-de de investigao ou emergnciainvestigativa, locuo indicativa deuma situao de impasse ou bloqueio

    na apurao persecutria de deter-minados delitos e de seus autores20.Configurar-se-ia verdadeira impossibi-lidade de prosseguimento judicial comvistas ao esclarecimento, em regra, dacriminalidade mais grave, o que, porisso, identificaria tambm uma disfun-

    o do sistema penal, uma falncia oulacuna quanto sua funcionalidade:crimes de maior lesividade restariamsem esclarecimento pelos tradicionaismeios de prova, o que exigiria a buscade instrumentos idneos para melho-rar ou aperfeioar a eficcia das inves-tigaes (RIVA, 2002, p. 415 e ss.).

    A situao da emergncia investi-gativa manifesta-se atualmente de for-ma mais provvel na criminalidade or-ganizada, associativa ou difusa, tendo

    em vista as reconhecidas dificuldadesprobatrias dos tradicionais meios de

    investigao em alcanar algum efeitodiante desses fenmenos criminais21.Principalmente por terem sido os ins-trumentos apuratrios moldados soba perspectiva do ilcito penal clssico,caracterizado pela estrutura individualda leso, cometida por sujeito ativoindividual a sujeito passivo tambmindividualizado (MILITELLO, 2000, p.3-62). Isso leva autoridades respon-sveis pela investigao e represso acondicionar a obteno de resultadospositivos no enfrentamento do crimeorganizado adoo de mtodos es-peciais de investigao e inteligncia(GASPAR, 2004, p. 43-53).

    Aps referir algumas das causas dainoperncia dos meios tradicionais deaveriguao do delito, dentre os quaisa complexidade das organizaes, aestrutura e diviso de tarefas, os meiostcnicos e materiais disponveis, oscdigos de hierarquia e disciplina, aausncia, em geral, de vtimas indivi-dualizadas, os mecanismos de coer-o e ameaa22, Garca de Paz refere a

    premncia de se legalizarem mtodosnovos de esclarecimento de delitosoriundos da criminalidade organizada(PAZ, 2005, p. 219)23.

    A constatao do tensionamento do instrumento dos

    arrependidos com alguns princpios constitucionais [...]no

    induz necessariamente ao reconhecimento da ilegitimidade

    das normas reguladoras do benefcio.

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    Essa a questo: ante a constatao de obstculo no es-clarecimento e, por consequncia, evitao de uma faixa dedelitos com duradoura e intensa potencialidade lesiva nomais das vezes inseridos na atuao contnua de associaescriminosas, tais como as destinadas ao trfico de drogas, dearmas, terrorismo, crimes financeiros, e ainda corrupo doaparelho estatal deve-se indagar sobre a postura do Esta-

    do diante do impasse na persecuo penal de uma faixa dacriminalidade pelos meios tradicionais.

    Admitir a existncia de uma dinmica delitual em re-lao qual os instrumentos usuais de apurao noconseguem, na maior parte das vezes, alcanar xitos pro-batrios, impe seguir-se adiante e questionar qual a res-posta possvel, no mbito jurdico-constitucional, em faceda insuficincia repressiva estatal. Em outras palavras: quecaminho o Estado deve seguir diante da constatao denecessidades investigativas, ainda mais quando se concluique tal situao, mais do que de direito material, um pro-blema do processo penal e dos instrumentos de apurao

    (BACIGALUPO, 2005, p. 210-211).

    6.1 ALGUMAS BALIZAS S OPES ESTATAIS NO REFORO

    INVESTIGATIVO

    Ao introduzir a questo, apontam-se algumas conside-raes de premissa, delimitando o mbito possvel de dis-cusso do tema de modo a reduzir as possibilidades de mcompreenso. H inegavelmente garantias inafastveis deque, em nenhuma hiptese, podem ser cogitadas relativi-zao, mesmo que se esteja diante de consentimento do im-putado, como so os casos de vedao de tortura ou outrasformas e tcnicas que possam importar em coao fsica oumoral sobre o indivduo.

    Tambm h uma faixa de criminalidade de menor inten-sidade lesiva que deve ser tolerada, ficando alheia a qualquertipo de justificao de reforo investigativo, exatamente por noimportar em maior repercusso social, e cuja ausncia de escla-recimento decorre menos da inidoneidade dos meios tradicio-nais de investigao a exigir reforo nessa seara, do que de umareal impossibilidade de o Estado esclarecer e reprimir todos osdelitos. H inclusive relevantes posicionamentos doutrinriosafirmando que uma ampla eficcia repressiva, direcionando-sea pr fim chamada cifra negra, a par de tratar-se de objetivoinatingvel, acabaria por provocar a absoluta paralisia do sistemapenal ante a bvia e invencvel carga de trabalho que da redun-daria ao sistema repressivo judicirio24.

    Outra distino tem grande relevncia no estabelecimentode uma poltica criminal racional e adequada ao enfrentamentodo problema que se prope, basicamente por influenciar deci-sivamente nos instrumentos a se recorrer. Atualmente, h umagrande parcela da manifestao crimingena, o que acaba re-sultando em afetao direta da sociedade levando ao reclamepor mais controle estatal na tarefa de investigao e represso,que a criminalidade de massa, a qual se relaciona mais pro-ximamente com roubos, furtos e agresses retratadas no dia a

    dia das comunidades e que se catalisam em reivindicao aosresponsveis pela segurana pblica por mais eficincia na pre-veno e represso (HASSEMER, 1995, p. 91 e ss.).

    Os dispositivos de reforo investigativo, reclamados como

    aparentemente necessrios ante o fenmeno da Ermittlungs-notstand, foram concebidos e tm razo de ser quando destina-dos ao enfrentamento das novas manifestaes da criminalida-de que trazem consigo exatamente essa noo de emergnciainvestigativa. No se cogita de diminuio dos direitos e garan-tias fundamentais de defesa dos rus em processos dessa natu-reza, mas sim de limitar o recurso s novas tcnicas apuratrias

    apenas s necessidades em razo das quais quais elas foramconcebidas, ou seja, quando se verifique bloqueio investigativopelos mtodos tradicionais.

    Abordagem adequada de enfrentamento do conjunto deinfraes penais verificadas no dia a dia e que compreendema chamada criminalidade de massa, mediante estratgias desegurana pblica inseridas em estudos de poltica criminal,portanto exigindo preferencialmente combate pela preveno,policiamento ostensivo e implemento de trabalho social e deinsero econmica dos desfavorecidos25, permitir que se colo-que a importncia ou as exigncias de controle criminalidadeassociativa no padro mais consentneo com a sua necessidade

    (HASSEMER,1995, p. 92).

    6.2 A NECESSIDADE DE TUTELA SUFICIENTE

    A resposta ao questionamento introduzido anteriormentequanto postura do Estado ante o bloqueio na investigaoseria ainda mais custosa caso se permanecesse diante da ideiade que as agresses aos direitos e liberdades individuais advm,fundamentalmente, dos poderes pblicos, estabelecendo, por-tanto, como nica relao possvel entre direito constitucional epoderes persecutrios estatais a de limitao, de conteno es-tatal, de modo a preservar os direitos do homem da potestadepunitiva do Estado. Isso foi considerado por Mantovani, em tomde crtica, como uma relao unidimensional da constituciona-lstica tradicional com o direito penal, cujo corolrio refletiu-seno garantismo penal unilateral (MANTOVANI, 2003).

    Desenvolve-se j reviso crtica ampliando a convivncia en-tre direitos individuais e direito penal a partir da constatao deque nem sempre provm do Estado o risco s liberdades huma-nas, havendo um campo da criminalidade atual, qualificada peladimenso difusa da leso, para a qual no exagero exigir-seatuao estatal de represso em defesa de direitos e liberdadesfundamentais dos indivduos26.

    De qualquer modo, parece no haver nessa constataonenhuma novidade, bastando mencionar as bases do contra-tualismo dos tempos da Ilustrao27, assentadas na ideia de sero homem livre por natureza, o qual, no entanto, para no sesubmeter aos riscos inerentes ao estado de natureza selvagem,consente abrir mo de parcela da sua liberdade plena medianteacordo originrio da sociedade poltica, delegando ao governocivil a atribuio de proteger sua vida, segurana e liberdade,devendo o Estado garantir o exerccio das liberdades individuaisat o limite da preservao dos direitos dos demais. (LOCKE,1994, p. 132-133).

    6.2.1 DEVERES ESTATAIS DE PROTEO

    Est entre as mais relevantes elaboraes nos Estados sociaise democrticos de Direito do ps-guerra a noo de que, paraalm de sua dimenso subjetiva, os direitos fundamentais cons-tituem um sistema objetivo de valores que legitima a ordem ju-

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    rdico-constitucional do Estado (NOVAIS,2003, p. 57); no se limitando funode defesa do indivduo ante medidas in-terventivas do poder pblico, os direitosfundamentais constituem decises valo-rativas bsicas com repercusso em todoo ordenamento jurdico como diretrizes

    objetivas essenciais atuao dos poderesestatais (SARLET, 1998, p. 140).

    Reconhecida e afirmada a dimensoobjetiva dos direitos fundamentais, no queparece haver algum consenso, pode-se,ao menos nos limites restritos do presenteestudo, passar ao largo das controvrsias arespeito do contedo e desdobramentosespecficos da perspectiva objetiva parafocalizar uma linha de concretizao geral-mente aceita como traduo jurdica ad-vinda da concepo objetiva dos direitos

    fundamentais: o dever estatal de proteo(NOVAIS, 2003, p. 79).

    Os deveres de proteo se tradu-zem em dever de o Estado assegurar aproteo de bens jurdicos por meio demedidas legislativas e operacionais, por-tanto exigindo uma ao positiva estatal(BALTAZAR JUNIOR, 2010, p. 49 e ss.)28.Essa concepo trasladada ao processode forma mais elaborada a partir da ideiade que a realizao e asseguramento dosdireitos fundamentais dependem das re-gras de organizao e procedimento, eestas, por sua vez, so influenciadas pe-los direitos fundamentais, de modo que,se as disposies processuais no foremadequadas, pode ser afetada a prpriavalidez efetiva dos direitos fundamentais29.

    Os chamados deveres de proteodo Estado adquiriram maior consistnciadogmtica a partir da concepo do princ-pio da proporcionalidade com uma duplaface ou dupla perspectiva. Para alm depostulado de controle da ilegitimidade de-corrente do excesso estatal (proibio deexcesso), o princpio destina-se tambma aferir a inconstitucionalidade quandoesta advier de proteo insuficiente deum direito fundamental (STRECK, 2004),falando-se ento em uma proibio deinsuficincia, que, segundo Bernal Pulido,refere-se estrutura que o princpio deproporcionalidade adquire na aplicaodos direitos fundamentais de proteo(PULIDO, 2007, p. 807).

    Deve ficar claro que no se pretendeconcluir que o instrumento da colabora-o premiada possa ser exigido, imposto,a partir da noo advinda da relao das

    normas constitucionais tambm comofundamento do direito penal. No hmesmo nexo imediato entre os deveresestatais de proteo adequada de bensjurdicos, ou mesmo de preveno e re-presso de crimes, e a imposio de seestabelecerem as novas tcnicas de in-

    vestigao, dentre as quais se destacamospentiti. Tampouco se pode pretenderque advenha da segunda verso do prin-cpio da proporcionalidade, como proibi-o de insuficincia, qualquer possibili-dade de controle de absteno legislativaem vista da no adoo da colaboraopremiada para fazer frente criminalida-de associativa.

    H, por certo, uma reconhecidamargem discricionria de conformaodo legislador ordinrio na realizao dafuno dos direitos fundamentais comoimperativos de tutela30. Conforme ad-verte Canaris, mesmo reconhecendo-seque um dever estatal de tomar medidasineficazes no tenha sentido, existe dis-tino entre o dever de proteo, quetrata do se da proteo, ou seja, seela existe constitucionalmente; e a proi-bio de insuficincia, que diz respeitoao como se deve proceder proteo,pois a constituio impe (apenas) aproteco como resultado, mas no a

    sua conformao especfica (CANARIS,2009, p. 122-123).

    Faz-se a referncia como pretensoargumentativa dos ndices normativosconcebveis ante uma situao de im-passe na investigao, ao menos parasuperar uma tendncia a ver no contro-le pelo princpio da proporcionalidade,portanto filtro constitucional, um norterestrito vedao de excesso de inter-veno, limitao do direito penal.Admitir a existncia da imposio cons-titucional da tutela jurdico-penal dedireitos fundamentais, ou seja, de que

    a Norma Fundamental estatui deveresde proteo estatal, a qual muitas vezespassa pelo indispensvel recurso a tute-la penal, importar ter em considerao,

    na resposta ao problema apresentado,uma linha interpretativa que recebainfluncia igualmente desse contextovalorativo dos direitos fundamentais re-presentado pela proibio de proteojurdico-penal deficiente.

    A compreenso dos direitos funda-

    mentais como determinantes do esta-belecimento de uma ordem objetiva devalores que, como tal, se estende portodos os campos do Direito, leva a queo raciocnio jurdico a respeito dos pro-blemas suscitados deva ser influenciadopor este contexto valorativo, pelo seucontedo axiolgico. As normas confor-madoras de deveres de proteo jurdi-

    co-penal projetam-se sobre o conjuntodo ordenamento judicial e abarcam todaa legislao infraconstitucional, de modoque tal interpretao conforme a Consti-tuio atua sobre a completude da rela-o jurdica envolvida pelo Direito Penal,abrangendo, por consequncia, o plano

    processual(FELDENS, 2008, p. 53)31.Retomando o ponto de partida da

    anlise, a questo colocou-se a partir daconstatao da existncia de emergnciasinvestigativas decorrentes de impasse napersecuo penal, fazendo com que sedeva refletir, com base no conjunto doordenamento jurdico, e nos princpiosconstitucionais, a respeito das alternativaspossveis ao Estado diante de tal situa-o32. A assuno da existncia de deve-res estatais de preveno de crimes comsubstrato constitucional deve ser acolhida,ao menos, como um indicativo importan-te apontando para resposta que no pa-rece passar pela indiferena do aparelhorepressivo estatal ante o fenmeno daemergncia investigativa quando envolverdelitos de especial gravidade.

    7 O RECURSO MXIMA DA

    PROPORCIONALIDADE

    A descrio feita das bases argumen-tativas em contradio no tema da cola-borao premiada, ainda que guiada pelarefutabilidade das hipteses de inconstitu-

    A colaborao premiada inclui-se no preo a pagar, nos

    custos da evoluo dos fenmenos sociais, da a importnciade se estabelecerem os lindes possveis do recurso aos

    instrumentos de reforo na investigao, em intento mais

    balizador e menos apologtico.

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    cionalidade, busca evidenciar a tenso subjacente utilizao decoautor como fonte de prova no interesse da investigao.

    A constatao do tensionamento do instrumento dos ar-rependidos com alguns princpios constitucionais, mormentepela possvel distoro da dinmica processual e dos papis daacusao e defesa, no induz necessariamente ao reconheci-mento da ilegitimidade das normas reguladoras do benefcio.

    Ela leva ao imperioso juzo de concordncia prtica com vistas aapreciar a compatibilizao possvel do instrumento, tendo emconta a assuno prvia da ideia de que a dogmtica constitu-cional deve ser como o lquido em que os conceitos mantmsua individualidade e coexistem sem choques destrutivos, sinque jams un solo componente pueda imponerse o eliminar a

    los dems(ZAGREBELSKY, op. cit., p. 17)33.Acolhe-se a ideia do princpio da proporcionalidade como

    um procedimento argumentativo norteador, um guia instru-mental destinado a esboar os lindes constitucionais dentro dosquais o legislador se pode mover no exerccio de seu desideratode reforar a tarefa de esclarecimentos de delitos, mediante a

    insero legislativa de novos meios investigativos. A questo se a previso legal de reforo na persecuo penal de crimesmediante o instrumento embasado em colaborao premiadaatende ou no as trs mximas parciais da proporcionalidade.

    7.1 ADEQUAO DO RECURSO COLABORAO PREMIADA

    A questo a ser abordada se a colaborao premiada medida idnea a produzir resultados concretos na resposta es-tatal, no mbito das atuais manifestaes criminosas caracteriza-das exatamente pelas dificuldades probatrias. A resposta deveser afirmativa, mormente pela considerao da no exigncia deintensa causalidade positiva entre a medida e a sua finalidade,bastando o juzo positivo quanto a presumvel causalidade damedida a promover seu escopo.

    Parece no haver maiores dvidas de que o meio se apre-senta idneo, a priori, ao atingimento do objetivo de reforonas tcnicas investigativas e na coleta de provas. Aps destacara imperatividade de a legislao prever intervenes distintase amoldadas, sobretudo a complexos fenmenos criminais demaior gravidade e dificuldade apurativa, indo alm da simplesmajorao de penas, Stella enfatiza a adequao do instrumen-to dos arrependidos, destacando no tanto seus efeitos no pla-no investigativo comprobatrio, mas dando nfase ao estmuloa posturas individuais contrrias aos interesses da associaocriminal, possibilitando surjam importantes motivos de descon-fiana e fraturas internas na coeso da organizao, pelo querisponde ad una saggia poltica criminalea promessa de bene-fcio no plano da apenao, de modo a favorecer a colaboraodospentiti(STELLA, 1985, p. 81 e ss.).

    Ruga Riva considera igualmente no existir maiores con-testaes quanto idoneidade do instrumento, ao menos abs-tratamente falando, a contribuir na promoo da finalidade desuperar ou atenuar o fenmeno daErmittlungsnotstand(RIVA,2002, p. 519)34; no que Flora parece assentir ao destacar as ra-zes de poltica criminal e a premncia de maior eficcia no

    enfrentamento das organizaes criminais como justificativa dacolaborao premiada (FLORA, 1984, p. 225). Ademais, chega--se a dizer que a potencialidade do instituto em servir comoveculo de desagregao dos fenmenos delituosos de caracte-

    rstica associativa, agregaria no enfrentamento como elementono estranho prpria leso correlata ao crime associativo (BRI-COLA, 1983, p. 132-133)35.

    Nesse ponto, Fassone vai um pouco mais alm ao proporum inventrio, muito resumido, dos meios de prova tradicio-nais com vistas a sustentar a ideia de que a refutao de talinstrumento de investigao importaria abandono das chances

    de alguma resposta eficaz s modernas associaes delituosas.Parte da considerao de que, inexistindo flagrante, os

    meios de prova empregados so essencialmente quatro: do-cumentos, os quais, de regra, no so deixados ou produzidospelas organizaes criminais; interceptaes telefnicas, quetendem a se esgotar, pelos perigos constatados nessa for-ma de comunicao; os dados bancrios e patrimoniais, queigualmente se vo convertendo em circuitos paralelos de difcilrastreamento e ligao com os titulares; e as declaraes de tes-temunhas, em face das quais se veem dissuases, corrupes,ameaas expressas ou veladas, decorrentes da prpria estrutu-ra delituosa, tornando quase impotente essa fonte probatria

    (FASSONE, 1992, p. 104).Parece no haver, substancialmente, maior controvrsia

    quanto ao fato de que tal elemento de apurao ostenta funda-mental relevncia, por advir de pessoa em posio privilegiadae com condies de saber quem faz o qu na organizao, emparticular permitindo identificar os homens-chave na hierarquiainterna das operaes delituosas in such a way as to enablethem to be convicted of crimes for which they would otherwise

    escape justice(BONNER, 1988, p. 32).Algumas dessas consideraes conclusivas a respeito da

    mxima da adequao, pela expressividade no tema e signifi-cncia na equao do princpio da proporcionalidade, poderiamser retomadas posteriormente, sobretudo no item seguinte. Dequalquer modo, feita essa advertncia, tentar-se-, dentro dopossvel, evitar a repetio, sem descurar de sua projeo maisabrangente ora sinalada.

    7.2 A NECESSIDADE DO RECURSO COLABORAO PREMIADA

    A referncia inaugural do raciocnio empreendido na mxi-ma da necessidade ser o meio escolhido para satisfazer a fina-lidade oriunda do princpio cuja promoo o Estado priorizou;no que pertine ao objeto do presente estudo, o meio eleito acolaborao premiada, a finalidade o reforo na investigaoe esclarecimento judicial de uma parcela da criminalidade; e oprincpio valorizado relaciona-se com a segurana e o interessena eficcia estatal na represso de crimes graves. Nessa primeiraetapa da anlise do subprincpio da necessidade, o instrumentodospentitipoderia ser reputado inconstitucional acaso se con-clusse pela existncia de outra tcnica de investigao segura-mente mais apta, mais idnea, sob todas as perspectivas, aoalcance do fim proposto.

    Superada essa questo, a reflexo prossegue e passa aenfocar o princpio restringido pela medida estatal adotada, eento se deve averiguar se eventual outro meio disponvel eigualmente adequado no menos agressor aos interesses lo-

    calizados no plano da liberdade individual; caso a resposta sejapositiva, a concluso pela desnecessidade ou dispensabilidadeda colaborao premiada.

    possvel constatar que a avaliao, muitas vezes, no ser

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    to linear, mas muito mais complexa doque a simples comparao entre doismeios igualmente idneos e dois prin-cpios em tenso. Tm-se, na prtica,muitas situaes em que se verifica umcomplexo de relaes meio/fim, ou cons-telaes complexas, nas quais h alter-

    nncia na eficcia dos meios e variaesna agressividade, quando, por exemplo,a medida eleita seja mais eficaz, pormmais restritiva, ou quando h mais in-teresses em jogo nos polos da relao,ou ento quando seja impossvel definira priorie abstratamente qual dos meioshipoteticamente disponveis o maisadequado promoo do fim.

    o que ocorre na situao em an-lise, o Estado visa promover o fim dereforo investigativo gradualmente e

    mediante o recurso a um conjunto demedidas que, consideradas isoladamen-te, muito provavelmente no lograriamo objetivo almejado, mas que podemcolaborar de fato para o avano progres-sivo na direo pretendida. O fenmenoque a colaborao premiada pretendeenfrentar, embora com algumas ca-ractersticas constantes, ao menos emuma abordagem dogmtica, apresentaenorme variao quando abordadas narealidade ftica, pela dinmica altamentevarivel das manifestaes concretas deorganismos criminais mais ou menos es-tveis, tanto na ordenao interna, quan-to na estrutura e mtodos de atuao.

    Nesse raciocnio de comparao en-tre meios adequados consecuo dofim pretendido, pode-se, por exemplo,referir a figura do agente infiltrado, tc-nica investigativa destinada tambm obteno de maior eficcia na luta con-tra a criminalidade associativa, em faceda infiltrao de agentes de polcia naprpria estrutura criminosa. Tal medidaconfigura-se, ao menos em tese, comomeio tendentemente mais eficaz na in-vestigao e coleta de provas da atuaode associaes criminais. No entanto,parece, igualmente, no restar dvidasde que se trata de meio mais agressorno s aos direitos individuais dos inves-tigados (MARTN, 2001, p. 91-132), masao prprio conjunto do ordenamentojurdico, a partir da autorizao para que

    agente do poder pblico possa cometerdelitos em prol da investigao.V-se que a medida embasada no

    agente infiltrado mais lesiva ao com-

    plexo da constelao referente aos di-reitos de liberdade36, mas tambm ter,hipoteticamente, maior eficcia do quea colaborao processual no resultadoconcreto almejado de fornecer amplodiagnstico da forma de atuar da associa-o criminosa, identificao de crimes e

    coautores ao longo do tempo37, sem quetais informaes advenham de pessoa in-teressada em obter benefcio no mbitoda apenao. No entanto, a dinmica daatuao criminosa, pelo reduzido nme-ro de participantes, pelos vnculos maisarraigados, ou mesmo pelo longo tempoque o agente de inteligncia levaria paraconquistar a confiana dos investigados,pode fazer com que o recurso ao agenteencoberto seja incuo ou inadequadoaos objetivos propostos.

    Pretende-se explicitar que no hcomo definir antecipadamente qualdos instrumentos investigativos hipo-teticamente disponveis para o reforoinvestigativo ser mais eficaz na buscade provas. Somente a detalhada e pro-gressiva avaliao do fenmeno criminalespecfico que permitir algum tipo deconcluso ou indicao acerca da tcnicainvestigativa concretamente mais idneaao fim pretendido.

    Deste modo, tratando-se da inser-o de medidas de reforo investigativo,apenas nas situaes em que se possaconstatar antecipadamente a manifestaexcessividade que os efeitos concretosdo meio escolhido tero sobre outrosprincpios e interesses em jogo quese poderia afirmar, a princpio, a desne-cessidade da medida. Est-se, nesse mo-mento da anlise, no mbito da genera-lizao inerente s leis, tendo em vista aimpossibilidade de se alcanarem todosos matizes da variada gama de situaesempricas a que o legislador pretendeatingir, logo o controle em abstrato danecessidade da medida tambm devesituar-se no mesmo nvel de generalida-

    de, observando se, na mdia dos casospossveis, a medida viola a exigncia danecessidade (MESA, 2006, p. 442).

    Ao exame comparativo abstrato da

    necessidade da medida, todavia, deveseguir-se o controle em concreto, anteuma estrita observncia das circunstn-cias especficas do caso, de modo a ve-rificar se a medida legislativa de reforona investigao era, de fato, entre osmeios adequados ao enfrentamento do

    problema, o de menor afetao negativaaos direitos fundamentais. A aplicao dosubprincpio da necessidade em dois n-veis colabora no sentido de evitar o des-merecimento desta etapa da valoraode proporcionalidade.

    Est-se, provavelmente, projetandoum raciocnio de lege ferenda, uma vezque as sucessivas legislaes admitindoo recurso colaborao premiada nopreviram o controle da necessidade damedida, ao contrrio do que ocorre, por

    exemplo, em relao interceptao te-lefnica, cuja necessidade deve ser aferi-da caso a caso pelo juiz competente, nosendo admitida quando a prova possaser feita por outros meios38.

    Ainda que o raciocnio em desenvol-vimento no captulo se refira legitimi-dade em abstrato da previso normativado prmio, parece no ser difcil concluirque a legislao deveria confiar a anliseda imprescindibilidade em concreto damedida ao juiz competente, o que reme-te a uma possvel interpretao constitu-cional restritiva do mbito de aplicaodas hipteses legais de uso do pentitino s ao fenmeno da criminalidadeassociativa, mas manifestao, em con-creto, de uma situao de emergnciainvestigativa que indique a necessidadeda medida39.

    7.3 PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO

    ESTRITO DA COLABORAO PREMIADA

    Ao se questionar se h ou no pro-porcionalidade na medida adotada, oprimeiro esclarecimento saber se estamxima parcelar exige a escolha do meiomais proporcional, ou apenas que o

    meio no seja desproporcionado. Novaisrefere a prevalncia da posio que exigesomente no ser admissvel a adoo demeio desproporcional, sem que se im-

    A questo a ser abordada se a colaborao premiada

    medida idnea a produzir resultados concretos na resposta

    estatal, no mbito das atuais manifestaes criminosas

    caracterizadas exatamente pelas dificuldades probatrias.

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    ponha ao legislador a escolha da medida mais adequada ouproporcional entre as possveis (NOVAIS, 2003, p. 759).

    Para complementar a anlise com base na mxima daproporcionalidade, depende-se ainda de aferir quais os bensjurdicos que estaro sendo cotejados pela adoo da medidainvestigativa, isso porque pode-se, por exemplo, estar diante demembro de suposta associao criminosa com indcios de atua-

    o destacada, inclusive de liderana no bojo da organizao, aoqual se cogite a concesso do prmio apenas por colaboraofornecida em relao a resultados investigativos obtidos quantoa crimes de menor gravidade. Assim, se os crimes objeto dainvestigao so, por exemplo, contra o patrimnio, no caso deorganizao voltada a lesar o patrimnio pblico, no se pode-r pretender, ante um juzo de ponderao, atribuir prmio aagente colaborador com possvel envolvimento em atividadesde extermnio que tenha cometido crimes graves contra a vida.

    A proporcionalidade exige que a medida estatal persecut-ria no pode ser desproporcional gravidade dos motivos quea justifiquem. Os bens jurdicos a serem salvaguardados pelatcnica premial devem ser de valor ao menos igual aos bensjurdicos tutelados: o que no se verifica quando, para permitiro esclarecimento de crimes de furto ou roubo, concedam-sebenefcios penais em relao a sujeitos de atividades criminosasque tenham cometido delitos de homicdio, pela evidente des-proporo entre os bens jurdicos em jogo.

    A comparao entre a relevncia da interveno e a im-portncia da realizao do fim perseguido pela norma legal re-sultar em uma regra de precedncia condicionada, tendo emvista que o elemento normativo ao qual se dar prioridade nopassa, em razo disso, a ocupar posio hierrquica superiorna ordem jurdica, somente determina a soluo para o casoconcreto e para outros supervenientes que sejam idnticos ou,ao menos, anlogos (PULIDO, 2007, p. 793). Da resulta que,estando alteradas as peculiaridades fticas das quais decorre-ram a regra de precedncia condicionada, a soluo assentadano princpio da proporcionalidade provavelmente ser outra,pelo menos dever-se- proceder novamente com o juzo deponderao, desta vez tendo em conta a situao especfica queenseja a necessidade de sopesamento.

    Deste modo, os princpios da necessidade e adequaocondicionam a legitimidade do recurso aos arrependidos comoinstrumento investigativo restrito apenas ao enfrentamento decrimes graves cometidos no bojo de criminalidade associativaestvel e estruturada, em relao qual se agregue a conclu-

    so da existncia de emergncia investigativa. O princpio daproporcionalidade em sentido estrito estabelece a imposio deum juzo de proporo entre os bens jurdicos tutelados pelostipos penais investigados e os crimes cometidos pelo arrepen-

    dido, no sentido de que os delitos que se deixam de punir, ousofram reduo de apenao, no podem ser de maior gravida-de do que os crimes que se pretendem esclarecer a partir dorecurso colaborao.

    8 CONCLUSES PARCIAIS A RESPEITO DA COMPATIBILIZAO

    CONSTITUCIONAL DA COLABORAO PREMIADA

    Levando-se em conta a questo mencionada acerca daincorporao de instrumentos de represso no ordenamentojurdico, como decorrncia de novos desafios das sociedadesps-industriais, h de se tomar uma posio consciente e ra-cional considerando-se o contexto no qual os dispositivos dereforo investigativo, em alguma medida autoritrios, por ten-sionarem direitos e liberdades fundamentais, foram concebidose tm razo de ser, uma vez que destinados ao enfrentamentodas novas manifestaes da criminalidade que trazem consigo anoo de emergncia investigativa.

    Perpassa essa discusso uma questo de maior amplitude,e no apenas contempornea, de se definir, at como premis-

    sa, se o sistema penal globalmente considerado deve ou noavanar de modo a conseguir enfrentar desafios decorrentes denovas manifestaes da criminalidade. Acaso se sustente que osistema penal no poderia sofrer influxos das transformaessociais e econmicas, da alterao nas relaes interpessoais,dever-se-ia, por coerncia, concordar com a afirmao de quese estaria ainda hoje lidando com o aparelho penal concebidona fase pr-industrial, da poca anterior urbanizao provoca-da pela revoluo industrial.

    Ao longo do sculo dezenove, foi possvel verificar, prin-cipalmente recorrendo a estudos desenvolvidos pelos norte--americanos40, o que representou, em termos numricos e qua-litativos nas manifestaes delituosas, as radicais alteraes naestrutura socioeconmica. A passagem de uma sociedade pra-ticamente assentada em bases rurcolas, com reduzidos aglo-merados urbanos, para uma organizao social ps-revoluoindustrial, ao que se somou o macio aumento da imigrao,levou em algumas dcadas a se conviver com os desafios de-correntes dos grandes centros urbanos.

    intensificao das manifestaes crimingenas seguiu-se,sobretudo, a alterao na natureza dos delitos cometidos, fazen-do com que os tradicionais mecanismos de controle social, quetinham grande influncia sobre a organizao e manuteno daordem, inclusive coercitivamente, como eram o caso dos trspilares da velha tradio camponesa e protestante consistentesna igreja, famlia patriarcal eneighborhood, no mais represen-tassem nada em termos de regulao dos conflitos da recentesociedade industrial urbanizada (FANCHIOTTI, 1984, p. 71).

    Os resultados desse fenmeno e das transformaes sociaise econmicas dele decorrentes so muito ntidos no sistema pe-nal e em toda a organizao judiciria. Verificaram-se profundasalteraes na concepo do sistema penal, a par da multiplica-o na existncia de novas figuras delituosas, a estrutura ameri-cana passou de um modelo tradicional de common law crimepara um de statute-crime, no qual o poder de definir figuras

    delitivas migrou do juiz para o legislador, mediante a tipificaodos crimes em normas penais41.Atualmente convive-se em uma sociedade ps-industrial,

    de ampla produo econmica empresarial e financeira, com

    No se pode cogitar atribuir ao prmio pela

    colaborao premiada a dignidade ou extensode princpio geral; a relao de tendencial

    contraposio entre os valores em jogo exige

    que o instrumento esteja limitado a um campo

    de manifestao delituosa.

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    tcnicas avanadas de comunicao ede informatizao, que, de algum modo,trouxe tambm repercusso sobre os fe-nmenos delituosos, seu aperfeioamen-to, e a forma de enfrent-los. Trata-se dereconhecer as consequncias de novo fe-nmeno, assentindo com a existncia de

    prejuzos no mbito das relaes priva-das e pblicas, dentre os quais a necessi-dade de lidar com recentes instrumentosapuratrios como resposta a modernasmanifestaes da criminalidade.

    A colaborao premiada inclui-se nopreo a pagar, nos custos da evoluodos fenmenos sociais, da a importnciade se estabelecerem os lindes possveisdo recurso aos instrumentos de reforona investigao, em intento mais baliza-dor e menos apologtico. A exposio

    feita leva a que se conclua pela exclusoda tcnica investigativa dos arrependidoscomo instrumento ordinrio de polticacriminal, o que no significa elimin-lapor completo em todas as hipteses,mas sim conceb-la como instrumentoadequado, em situaes excepcionaisnas quais, emergncia investigativa,agregue-se constatao de especial gra-vidade, de risco ao meio social a pontode que no se possa admitir renncia reao estatal.

    A situao de exigncia na concre-tizao de um dever de proteo mini-mamente eficaz por parte do Estado semaximiza na criminalidade associativa,em relao qual j foi reconhecida qua-se que uma impossibilidade prtica de oEstado superar o bloqueio na respostajudiciria42, o que leva a que a alterna-tiva de estmulo colaborao com ajustia seja uma das nicas medidas efi-cazes (FERRACUTI, 1986, p. 305). Essasnoes so fundamentais na anlise dacompatibilidade possvel do prmio comprincpios constitucionais, por isso pode--se afirmar que a limitao do recursocomo instrumento investigativo apenasa uma faixa restrita de criminalidade nosignifica apenas exigncia de naturezapoltico-criminal, mas sim imposio con-dicionante da legitimidade da utilizaodos arrependidos ante um juzo de pon-derao e balanceamento constitucionaldos princpios em latente coliso43.

    A necessidade de intervenes es-tatais diferenciadas pressuposto inclu-sive da eficcia na preveno geral dosdelitos: no se pode pretender enfrentar

    toda e qualquer manifestao criminge-na com os mesmos instrumentos dissua-srios, recorrendo apenas a simplistasmajoraes de pena ante as dificulda-des mais extremadas (STELLA, 1985, p.81). Parece j difcil contestar que, emalguns fenmenos delituosos, a ativi-

    dade investigativa tenha, mais do que aconvenincia, a concreta necessidade decontributos oriundos de pessoas inter-nas prpria atividade delituosa; e seriaigualmente irrealstico supor que apor-tes preciosos nesse mbito poderiamser adquiridos sem o oferecimento, ouao menos a expectativa do colaborante,de contrapartida no plano da apenao(DOMINIONI, 1983, p. 174).

    No se pode cogitar atribuir ao pr-mio pela colaborao premiada a dig-

    nidade ou extenso de princpio geral;a relao de tendencial contraposioentre os valores em jogo exige que o ins-trumento esteja limitado a um campo demanifestao delituosa. Generalizar ouampliar em demasiado o recurso ao pr-mio, alm de desequilibrar os interessescontrapostos, desmerecendo despropor-cionalmente as garantias defensivas, oca-sionaria impacto sobre a prpria dinmi-ca processual, passando de um modelodialtico de confronto entre acusao edefesa para um modelo genericamentecolaborativo; da porque afirmar-se queas normas premiais devem estar delimi-tadas a situaes especficas.

    Acresa-se a necessria reduo dasmargens de discricionariedade judiciriana aferio dos benefcios aos imputadoscomo condio indispensvel a evitar umatransformao na cultura judicial que levea busca de colaborao de corrus comoobjetivo primeiro da investigao (FERRA-JOLI, 1982, p. 211)44. A maior completu-de possvel na regulao normativa doinstituto, incluindo o procedimento a serseguido na coleta das informaes, a cor-relao entre as revelaes dopentitoe agraduao do prmio, so elementos queno poderiam ser desconsiderados nomomento de o legislador inserir o institutona ordem jurdica.

    Somente deste modo ser possvelagregar nas garantias ao colaboradorquanto expectativa concreta de prmio,

    reduzindo os efeitos de eventual pressosobre suas opes processuais, alm dediminuir os riscos de delaes caluniosase com outras finalidades muito distantes

    da razo de ser do prmio que a dereforar o esclarecimento dos fatos gra-ves cometidos no mbito da modernacriminalidade associativa.

    NOTAS

    1 Preocupao tambm externada por impor-tante setor da magistratura italiana ao afirmarque a exigncia de anlise e verificao emp-rica das condies de operatividade e eficciapositiva ou negativa dos instrumentos existen-tes deveria constituir premissa para conduzirracionalmente as discusses no mbito depoltica criminal. (MAGISTRATURA DEMOCRA-TICA, 1980).

    2 Bacigalupo chega a mencionar que, na reali-dade,La criminalidad organizada es bsica-

    mente um problema Del processo penal y delas medidas requeridas para su investigacin(BACIGALUPO, 2005, p. 211).

    3 Conforme Ferrajoli, que se refere ao fenme-no como um processo de positivao do di-reito natural (FERRAJOLI, 2004, p. 348-349).No mesmo sentido: Pic I Junoy (1997, p.17) referindo-se a un fenmeno de constitu-cionalizacin de los derechos fundamenta-

    les de la persona.4 O legislador ordinrio no pode ficar limitado

    a esferas muito reduzidas de conformao,pelo contrrio, deve ser preservado um espa-o amplo entre o constitucionalmente proibi-do e o constitucionalmente necessrio, mbitono qual o legislador pode fazer suas opespolticas. Cf. Pulido (2007, p. 588).

    5 Alexy (2002, p. 90) traz exemplificao na qualo Tribunal Constitucional Federal alemo afir-ma o dever estatal de garantir uma aplicao

    adequada do direito penal.6 Os alemes referem o termo Ermittlungsnots-tand como a necessidade de esclarecimentodos fatos, indicando uma situao de impasse,bloqueio da investigao, com a consequen-te impossibilidade de elucidar judicialmenteos delitos e os autores, o que sinalizaria umfenmeno emprico de disfuno do sistemapenal, reclamando de algum modo a utiliza-o de instrumentos idneos para melhorar aeficcia no esclarecimento de delitos graves.(RIVA, 2002, p. 415-416).

    7 comum os autores inclurem a admissode responsabilidade na prpria definioda colaborao processual. Cf., p. ex., Dio-d (1985).

    8 Projeto de Lei n. 6.578, atualmente em trami-tao na Cmara dos Deputados, originado doPLS 150/2006, j aprovado no Senado Fede-ral, que dispe sobre organizaes criminosase meios de obteno de prova, prev, no 14 do art. 4, a necessidade de renncia, pelocolaborador, do direito ao silncio.

    9 Nesse sentido: Aranha (2006, p. 132); Pente-ado (2006); Bittar (2011, p. 168 e ss.); Sanctis(2009, p. 180). Contra, entendendo pela des-necessidade da confisso: Gazzola (2009, p.147-183).

    10 As Brady indicates, a guilty p lea, to be valid,must be product of a knowing and intelligentchoice, and it must be voluntary, in the sensethat it does not result from threats or pro-

    mises other than those involved in any pleaagreement. (UNITED STATES OF AMERICAapud KADISH; SCHULHOFER; STEIKER, 2007,p. 1025-1029).

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    11 Na premissa de Dolcini della colpevolezzacome limite massimo rispetto ad una penaorientata verso la rieducazione del condan-

    nato, portanto idnea a desenvolver somentefuno limitativa. Cf. Dolcini (1979, p. 299).

    12 O autor expe no texto a ideia de que oconceito de culpabilidade inidneo a fun-damentar a retribuio, devendo permanecerapenas como princpio de delimitao da

    pena, em favor do agente.13 Ruga Riva faz referncia ao paradoxo (RIVA,

    2002, p. 452).14 O autor refere que a Ermittlungsnotstand,

    como real e plausvel motivo para a legiti-midade da discriminao entre delitos queadmitem a colaborao, pode ser mutvel notempo, e deve estar sujeita ao crivo da prxisquanto anlise das consequncias na efi-ccia e em relao aos avanos das tcnicasinvestigativas.

    15 Lembre-se que o elemento de preveno deulteriores delitos ser finalidade secundria,oblqua e meramente eventual das normaspremiais; cf. Flora (1984, p. 154 e SS.).

    16 O autor destaca que la protezionedellinnocente e il rispetto dei fondamenticostituzionali dello Stato sono garantiti solo

    se nel proceso penale viene adottato, comeregola probatoria e come regola di giudi-zio, il criterio delloltre il ragionevole dubbio.(STELLA, 2003)

    17 Giarda expe o que seria uma preocupaode involuo inquisitria verificada na prtica.(GIARDA, 1984).

    18 Segundo o autor no advm da conclusopela ilegitimidade constitucional, sob a consi-derao de que o princpio de preciso impor-ta exigncia de garantia do cidado, mais doque de certeza do direito, motivo pelo qualas normas de favor toleram maior grau de

    impreciso em comparao com as normasincriminadoras; alm do que, na aplicao dapena:il principio di legalit deve convivere col

    principio di discrezionalit. Cf. Pulitan (1986,p. 1012).

    19 Inclusive autores amplamente favorveis aoinstituto, como Bernardi, que afirma tratar-sede uma reduo de pena proporcional e jus-tificada aos fins pretendidos, admitem os fun-damentos da preocupao terica, conferindodestaque ao dever do juiz de controlar minu-ciosamente a veracidade das declaraes. Cf.Bernardi (1982, p. 7).

    20 Pulitan (1986, p. 1038) refere que possveis ra-zes justificadoras do recurso colaborao paraalm do mbito de reintegrao da prpria leso

    seria una situazione di Ermittlungsnotstand:unblocco nelle indagini non altrimenti superabilecon gli strumenti ordinari.

    21 Baltazar Jr (2010, p. 70). Luiz Flvio Gomesreferindo-se impunidade como caractersticacriminolgica, constata que, na realidade bra-sileira, o crime organizado est fora do contro-le penal. (GOMES; CERVINI, 1995, p. 64).

    22 Grevi menciona a frequncia com que se ve-rifica, nos processos envolvendo organizaescriminosas, o silncio, a retratao ou a impro-visao na reconstruo dos fatos com baseem provas testemunhais, por condicionamen-tos externos de vrios tipos, dentre os quaisdestaca o uso de violncia, ameaa, ofertas oupromessas de recompensa em dinheiro ou deoutra ordem. (GREVI, 1993, p. 28).

    23 No mesmo sentido, entre outros: Silva (2003,p. 40-41).

    24 Forti (1985, p. 53-54). Em sentido anlogo:

    Paliero (1990).25 Pode incluir-se tambm o processo de ero-

    so das normas sociais, que leva o estado areagir com vistas a substituir ou sustentar asnormas desaparecidas ou enfraquecidas. Cf.Hassemer (2007).

    26 Nesse sentido, Vieira de Andrade refere quemui-tas das normas de direito penal, bem como asque regulam a interveno policial passaram a

    ser vistas com outros olhos, da perspectiva documprimento de um dever de proteo, no con-texto de um processo de efetivao das normasconstitucionais relativas aos direitos fundamen-tais.(ANDRADE, 2004, p. 147).

    27 Em sentido anlogo, Feldens (2009, p. 230).28 Concorda-se com o autor na considerao de

    que a existncia de um dever geral de prote-o aplicvel a todos os direitos fundamentaisafigura-se como obviedade jurdico-constitu-cional, podendo-se citar, p. ex., o art. 144 daCRFB ao disciplinar que a segurana pblica um dever do Estado.

    29 Conferir: Hesse (2008, p. 270 e 288).30 Na proibio de insuficincia o que est em

    questo a imprescindibilidade da lei, ou seu

    aprimoramento pela introduo de novas medi-das; deste modo h um amplo espao de con-formao ao legislador no mbito dos deveresde proteo. (BALTAZAR JUNIOR, 2010, p. 65).

    31 A respeito da relao entre o carter objetivodos direitos fundamentais, os deveres de pro-teo e a conformao adequada do processopenal, conferir Baltazar Jr. (2010, p. 162 e ss.).

    32 Preocupao manifestada, por exemplo, peloConselho Europeu em 11/12/2009, j na vi-gncia do Tratado de Lisboa, tendo por baseo Programa de Estocolmo: occorre sviluppareuna strategia di sicurezza interna che miglio-

    ri la sicurezza nellUnione e protegga in talmodo la vita e lincolumit dei cittadini euro-

    pei e che affronti la criminalit organizzata,il terrorismo e altre minacce. (CONSIGLIOEUROPEO, 2011).

    33 O autor expe que, neste espao de oscilaofluido, as tentativas de prevalncia de uma dasvises destinadas a imprimir ao Estado orien-tao em um ou outro sentido no maisproblema da cincia constitucional, mas simda poltica constitucional.

    34 Na anlise restrita ao ordenamento italiano,o autor considera largamente superadas asdvidas quanto eficcia do prmio pela cola-borao processual no alcance de seu escopo,constatao que tambm estende ao sistemade common law; embora reconhea que omesmo no possa ser afirmado em relao a

    outros ordenamentos, nos quais no lograramestimular, quantitativamente, condutas cola-borativas. Cf. Riva (2002, p. 529-532).

    35 Seminara (1992, p. 57) chega a considerarser imprescindve