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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS COMPARADOS DE LITETRATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA COMO VOCÊ ESTÁ DIFERENTE, VOVÓ! Aspectos sócio-históricos dos contos populares Nárgyla Maria Lourenção Pimenta Pinheiro VERSÃO CORRIGIDA São Paulo 2012

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS COMPARADOS DE

LITETRATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

COMO VOCÊ ESTÁ DIFERENTE, VOVÓ!

Aspectos sócio-históricos dos contos populares

Nárgyla Maria Lourenção Pimenta Pinheiro

VERSÃO CORRIGIDA

São Paulo

2012

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS COMPARADOS

DE LITETRATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

COMO VOCÊ ESTÁ DIFERENTE, VOVÓ!

Aspectos sócio-históricos dos contos populares

Nárgyla Maria Lourenção Pimenta Pinheiro

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em

Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa

do Departamento de Línguas Clássicas e Vernáculas da

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da

Universidade de São Paulo com vistas à obtenção do título

de Mestre em Letras.

Orientador: Prof. Dr. José Nicolau Gregorin Filho

VERSÃO CORRIGIDA

São Paulo

2012

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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio

convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Catalogação na Publicação

Serviço de Biblioteca e Documentação

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

PP645c Pinheiro, Nárgyla Maria Lourenção Pimenta

Como você está diferente, vovó! Aspectos sócio-históricos dos

contos populares / Nárgyla Maria Lourenção Pimenta Pinheiro ;

orientador José Nicolau Gregorin Filho. - São Paulo, 2012.

124 f.

Dissertação (Mestrado)- Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

Humanas da Universidade de São Paulo. Departamento de Letras

Clássicas e Vernáculas. Área de concentração: Estudos Comparados de

Literaturas de Língua Portuguesa.

1. Literatura Infantil. 2. Literatura Juvenil. 3. Contos de Fada. 4.

Representação. I. Gregorin Filho, José Nicolau, orient. II. Título.

CDD 028.5

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Nárgyla Maria Lourenção Pimenta Pinheiro

COMO VOCÊ ESTÁ DIFERENTE, VOVÓ!

Aspectos sócio-históricos dos contos populares

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de

Literaturas de Língua Portuguesa do Departamento de Línguas Clássicas e

Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade

de São Paulo com vistas à obtenção do título de Mestre em Letras.

Aprovado em: ____ / ____ / ________

Banca Examinadora

Prof. Dr(a). _________________________________________________________________

Instituição ___________________________ Assinatura ____________________________

Prof. Dr(a). _________________________________________________________________

Instituição ___________________________ Assinatura ____________________________

Prof. Dr(a). _________________________________________________________________

Instituição ___________________________ Assinatura ____________________________

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À memória de minha mãe e irmã.

À minha família.

Ao meu orientador tão querido,

e a minha amiga Natália.

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Agradecimentos

Ao professor José Nicolau Gregorin Filho por acreditar, por incentivar, por se

preocupar, por entender. Por ser orientador, mestre e amigo, meu muito obrigada. Não tenho

palavras pra dizer o quão valioso você é para mim.

À professora Maria Zilda Cunha pela amizade e carinho de sempre e que juntamente

com a professora Maria Auxiliadora Fontana Baseio fizeram da minha qualificação uma

experiência muito agradável e repleta de valiosas contribuições. Aprendi muito com vocês.

À minha família por sempre acreditar em mim, em especial ao meu irmão Gil, pelas

longas conversas sobre literatura e pelo apoio de sempre.

À Natália, Dayane, Maria Paula, Yuri; os melhores de todos, que sempre sabem

quando enlouquecer junto ou por os pés no chão.

Aos mais novos e queridíssimos Fabiana, Valter e Adriana, os “novos melhores

amigos de infância”, prontos para encarar tudo.

A todos os amigos que foram atormentados por minhas dúvidas eternas e suportaram

horas me ouvindo falar de contos de fada. E aos que foram compreensivos em entender os

longos períodos de ausência e a falta de paciência nos momentos de escrita.

A todos os amigos que não puderam ser nomeados porque são muitos e a memória as

vezes é falha. Vocês sabem quem são. Amo todos vocês.

À CAPES pelo apoio financeiro.

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“E como encontraram,

Tal qual encontrei;

Assim me contaram,

Assim vos contei!...”

LUÍS DA CÂMARA CASCUDO

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RESUMO

É de conhecimento geral o fato de que os contos de fada transmitem importantes

mensagens carregadas de ideologia que, às vezes, diferem de maneira significativa. Isso

ocorre em razão da época ou localidade em que a produção é contextualizada, como podemos

bem ver nas variações do conto Chapeuzinho Vermelho, seja aqueles da tradição oral

medieval, os adaptados por Perrault ou pelos Irmãos Grimm, ou mesmo as versões da

contemporaneidade.

Traçando um percurso histórico das transformações dos contos de fada de origem

popular – partindo da França, percorrendo Alemanha, Portugal e culminando no Brasil – o

presente estudo busca verificar as transformações ocorridas nessas sociedades, mostrando

como elas foram representadas nos contos e quais mensagens transmitem.

Para o presente estudo, serão utilizados o Comparatismo Literário e elementos de

Teoria Literária por meio de um olhar sociológico e histórico.

Após a definição do quadro teórico-metodológico e da base conceitual, partiremos

para uma breve análise de algumas sociedades e como sua prática social pode, de certo modo,

ser representada nos contos de fada.

Palavras-chave: 1. Literatura Infantil – 2. Literatura Juvenil – 3. Contos de Fada – 4.

Representação.

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ABSTRACT

It is of general knowledge that the fairy tales transmit important messages filled with

ideology that, sometimes, differ significantly from one another. This happens due to the time

or place where the production is contextualized, as it is possible to be seen in the variation of

the Little Red Riding Hood tale, those from the medieval oral tradition, to those adapted by

Perrault or brothers Grimm, and even the contemporary versions.

Tracing a historic profile of the changes in the fairy tales of popular origin – starting in

France, passing through Germany, Portugal and culminating in Brazil – the present study

aims to verify the transformations that happened in these societies, showing how they were

represented in the tales and what messages they pass on.

For the present study, Literary Comparatism and elements of Literary Theory will be

used through a sociological and historical look.

After the definition of a theoretical-methodological picture and a conceptual basis, we

will move on to a brief analysis of the different societies and how their social practice can, in

a certain way, be represented in the fairy tales.

Key words: 1. Children’s Literature – 2. Teen Literature – 3. Fairy Tale – 4. Representation

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SUMÁRIO

Introdução ......................................................................................................................... 11

I. ERA UMA VEZ... A LITERATURA ORAL E OS CONTOS POPULARES ............. 14

1.1. Os Contos de Fada ............................................................................................... 18

II. CLASSIFICAÇÃO DOS CONTOS POPULARES (AaTh) ........................................ 24

III. CULTURA E SOCIEDADE ......................................................................................... 28

IV. PERRAULT E IRMÃOS GRIMM:

OS CONTOS DE FADA NA FRANÇA E ALEMANHA .......................................... 33

V. PORTUGAL:

A DESCOBERTA E ACEITAÇÃO DA FANTASIA POPULAR ........................... 47

VI. BRASIL:

OS CONTOS DE FADA NOS TRÓPICOS .................................................................. 55

VII. OS CONTOS E SUAS DIFERENTES FORMAS .................................................... 64

7.1. O Pequeno Polegar, João e Maria e Chapeuzinho Vermelho ............................ 66

VIII. CONSIDERAÇÕES FINAIS

... e viveram felizes para sempre... ............................................................................ 84

BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................... 88

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ANEXOS

Contos:

Chapeuzinho Vermelho (Perrault) ......................................................................................... 97

Chapeuzinho Vermelho (Nivernais) ...................................................................................... 99

Chapeuzinho Vermelho (Darnton) ....................................................................................... 100

Chapeuzinho Vermelho (Irmãos Grimm) ............................................................................ 101

A menina do chapelinho vermelho (contos portugueses) .................................................... 103

O chapelinho vermelho (contos brasileiros) ........................................................................ 106

O Pequeno Polegar (Perrault) .............................................................................................. 108

O conto do Diabo (Poitou) ................................................................................................... 113

O rapaz das botas de sete-léguas (contos portugueses) ........................................................ 115

O Pequeno Polegar (contos brasileiros) ............................................................................... 117

João e Maria (Irmãos Grimm) .............................................................................................. 119

Os dois pequenos e a bruxa (contos portugueses) ................................................................ 122

Joãozinho e Maria (contos brasileiros) ................................................................................ 123

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INTRODUÇÃO

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A tradição oral vem de tempos muito remotos e fazia parte das trocas culturas

anteriores ao advento da escrita. Assim, a única forma de as sociedades manterem vivas as

suas tradições era com a narração de suas histórias, de maneira oral e isso se fazia de maneira

a envolver todas as gerações.

Com o passar do tempo, essas narrativas orais, também ditas primordiais, passaram a

trazer em sua base motivos que retratavam problemas cotidianos como riqueza, poder,

família, fome, trabalho. Podemos ver que este novo estágio do fazer narrativo (ainda oral

como o anterior), trata de acontecimentos que agora são vivenciados pelos homens, e não

apenas de criações feitas para tentar explicar algo que não compreendiam, como na fase do

pensamento mítico.

Essas narrativas, chamadas de primordiais (narrativas que surgiram anonimamente e

passaram a circular com o intuito de transmitir ensinamentos ou mesmo como forma de

entretenimento) assumiram a forma dos contos populares que hoje conhecemos, e que

acabaram por assumir o lugar de obras clássicas da literatura infantil.

Embora geradas em épocas diferentes, essas obras conservaram sua visão de mundo,

os valores básicos do momento em que surgiram e das ideologias das culturas as quais

pertenciam; conforme veremos posteriormente.

Por meio da literatura, seja ela oral ou escrita, podemos penetrar diversos mundos,

épocas e sentimentos. Os contos populares, ainda hoje, capturam os mais diferentes leitores,

independentemente da época ou objetivos pelos quais foram produzidos. Eles nos mostram

mais que um universo de princesas, dragões e bruxas. Às vezes ocultadas pelas brumas da

fantasia, podemos encontrar reflexos de um mundo muito real: um mundo de costumes e

valores, de desigualdades sociais, enfim, todo um cotidiano de diferentes povos e tempos.

O interesse dos intelectuais pelo conto popular surgiu no século XVII após a

publicação de Charles Perrault de sua obra Contos da Mamãe Gansa com material recolhido

dos contos franceses que transitavam entre os camponeses, num período em que as fadas e o

maravilhoso vinham encantando os nobres salões da França.

A partir do século XVI e até fins do XVII, a “caça às bruxas” recrudesceu em vários

países da Europa, chegando às colônias do Novo Mundo. Apesar disso, as fadas e

duendes continuavam presentes no imaginário europeu, não apenas o popular, mas

também o dos intelectuais, muitos dos quais frequentavam as rodas da alta

burguesia, da aristocracia e até da realeza. Era muito comum nesse período, a crença

na magia e principalmente na astrologia (...) O tema também estava presente na

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literatura da época, circulando em versões impressas às quais, em que pesem as

referências ao conto popular, já se pode atribuir um certo caráter autoral.

(MEREGE, 2010, p. 45)

O que Perrault inaugurava era algo de novo no conhecimento humano: a

surpreendente revelação de uma nova paisagem com dignidade e profundidade, ou

seja, a cultura do povo. Utilizou-a num sentido nobre de compreensão e

generosidade, sem nenhum preconceito. (ARROYO, 1990, p. 30)

No século XIX através do trabalho dos Irmãos Grimm, considerados por muitos os

precursores da ciência do folclore, os contos populares, com toda sua magia e encantamento,

estabeleceram-se como objeto de estudo capaz de apresentar aspectos linguísticos,

psicológicos, históricos, sociais, econômicos, políticos, a maneira de pensar e como viviam os

homens de um passado mais remoto.

Em Portugal, destacaram-se na tarefa de investigadores dos contos populares

estudiosos como Teófilo Braga, Adolfo Coelho, José Leite de Vasconcelos e Consiglieri

Pedroso. O Brasil também teve importantes nomes dedicados a desvendar os mistérios por

trás dessas narrativas; são nomes como Luís da Câmara Cascudo e Sílvio Romero.

Tomando por base os estudos desses grandes nomes das tradições folclóricas,

buscamos traçar um percurso histórico mostrando como os contos populares sofreram

modificações dentro de duas perspectivas: histórica e cultural e procuramos trabalhar apenas

com aqueles confirmados como oriundos da tradição oral.

Para tal, foi traçado um roteiro “diacrônico-geográfico” que divide em quatro

diferentes blocos (França, Alemanha, Portugal, Brasil) as representações mais significativas

dos contos populares; o que permite que contemplemos as duas perspectivas com as quais

trabalhamos (histórica e cultural), pois esse recorte permite que possamos ver mais claramente

as diferentes formas como os contos retratam aspectos variados nas diversas culturas com as

quais trabalhamos.

Nos primeiros capítulos do presente estudo, buscamos definir as bases teóricas sobre

as quais nos debruçaremos para o desenvolvimento das análises. Está dividida em dois

capítulos, no Capítulo I (Era uma vez...) discorremos acerca da tradição oral e dos contos

populares, suas formas e seus aspectos históricos.

O Capítulo II (Classificação dos contos populares de Aarne-Thompson) apresenta uma

proposta de classificação que uniformiza e internacionaliza a experiência de reconhecimento

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dos contos populares. No Capítulo III, intitulado “Cultura e Sociedade”, buscamos definir os

termos cultura e identidade cultural, suas concepções e como se relacionam.

Nos Capítulos de IV a VI, desenvolvemos o que entendemos como um percurso

“diacrônico-geográfico” traçando um roteiro histórico com os acontecimentos que levaram

França, Alemanha, Portugal e Brasil, respectivamente, a se definirem como sociedades

ímpares com particularidades culturais que diferem cada uma dessas sociedades. Fazemos

também algumas considerações acerca dos folcloristas nos quais nos baseamos em cada uma

das quatro sociedades.

No Capítulo IV, comentamos sobre a França (séc. XVII), século do Absolutismo e do

Classicismo. Talvez o período de maior importância para a literatura infantil, pois foi na

França, durante o reinado de Luís XIV que surge a real preocupação com uma literatura que

fosse dirigida a um público infantil e juvenil. Encontram-se nesse período grandes obras

dirigidas às crianças que são baseadas na Antiguidade Clássica ou em narrativas orais

transmitidas entre o povo. São muitos os autores que se dedicaram a este novo gênero

literário, mas ficaremos apenas com Charles Perrault.

Ainda no Capítulo IV, procuramos estabelecemos um diálogo da França com a

Alemanha do século XIX. Período da ascensão da Burguesia ao poder e do Romantismo.

Momento de grande produção artística e mudanças culturais, com Jacob e Wilhelm Grimm,

filólogos, folcloristas, historiadores e pesquisadores que, como resultado de suas pesquisas,

publicaram Contos de Fadas para Crianças e Adultos.

O Capítulo V nos leva a Portugal, desde seu difícil nascimento às grandes navegações,

e acompanhamos a luta do povo por sua hegemonia. Escolhemos tomar por base os trabalhos

de Consiglieri Pedroso pela perspectiva comparatista de seus estudos.

O Capítulo VI termina esse percurso através do tempo e do espaço ao sermos trazidos

pelas naus de Pedro Álvares Cabral ao Brasil; e aqui ficarmos até o momento de sua

independência. Utilizando como objeto o material recolhido por Luís da Câmara Cascudo.

Já no capítulo VII (Os contos e suas diferentes formas) exemplificamos as formas

como os diferentes aspectos culturais aparecem nas narrativas populares. Para tal, escolhemos

utilizar variadas versões de contos bastante conhecidos; são eles: Chapeuzinho Vermelho,

João e Maria e O Pequeno Polegar. No capítulo VIII, apresentamos nossas considerações

finais, terminando esse breve percurso, não tendo a pretensão de esgotar o assunto.

Nos Anexos, acrescentamos a compilação dos contos que foram utilizados no

desenvolvimento das análises, já que a bibliografia é extensa e, ao mesmo tempo em que

procuramos facilitar o trabalho do leitor, para que esse tenha a visão clara dos textos aqui

explorados.

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I. ERA UMA VEZ...

A LITERATURA ORAL E OS

CONTOS POPULARES

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Conforme já anunciamos na introdução, a literatura oral origina-se em tempos

remotos, quando a única maneira de os povos transmitirem suas tradições e conhecimentos

era por meio da narração de algumas histórias. Essas narrativas começaram a ser

desenvolvidas no momento em que os homens se depararam com a necessidade de entender, e

por consequência de explicar o mundo ao seu redor. Eles precisavam explicar, por exemplo,

os fenômenos naturais que tanto os espantavam, como o dia e a noite, ou as estações do ano.

Havia ainda a preocupação em transmitir conhecimento e costumes às futuras gerações. Para

tal os homens começaram a transformar seus conhecimentos em narrativas, e as lacunas que

surgiam eram preenchidas com imaginação e fantasia. Foram-se criando com isso os mitos,

que posteriormente compartilhariam o estatuto de tradição popular com os contos e outras

categorias.

A tradição de contar histórias remonta ao momento em que o homem começou a se

comunicar, tudo era passível de ser narrado, qualquer acontecimento diário ou evento natural;

nesse tempo, as narrativas circulavam por meio da oralidade, sem que se materializassem na

escrita, ou seja, aquilo que um indivíduo ouvia era logo contado a outro indivíduo, e a outro,

sucessivamente.

O tema “literatura oral” (doravante denominado “oratura”) é, de maneira geral, sempre

relacionado à literatura folclórica. Contudo, para Câmara Cascudo, toda a literatura folclórica

é popular, sendo, contudo, que o inverso não procede: nem toda literatura popular é folclórica.

A literatura folclórica é definida como uma produção de origem popular que não podemos

fixar no tempo e cujas características de sua época de criação foram perdidas.

A literatura oral é como se não existisse (...) outra literatura, sem nome em sua

antiguidade, viva e sonora, alimentada pelas fontes perpétuas da imaginação,

colaboradora da criação primitiva, com seus gêneros, espécies, finalidades, vibração

e movimento, continua, rumorosa e eterna, ignorada e teimosa, como rio na solidão,

e cachoeira no meio do mato. (CASCUDO, 1984, p.27)

A oratura apresenta três características fundamentais que a definem como tal: a

oralidade, a falta de autoria e o ritual de transmissão; o próprio ato de contar histórias. Ela

expressa toda uma vasta tradição popular. Ainda hoje, em comunidades mais isoladas dos

grandes centros urbanos, histórias são lidas em voz alta expressando crenças, tradições e

costumes do povo, pois ainda se podem encontrar culturas cuja identidade vive sob a guarda

de contadores de história, que na prática são os verdadeiros portadores da memória do povo;

como é o caso dos chamados “griôs” na África Ocidental.

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No conjunto de saberes transmitidos podem ser considerados os usos, costumes e

valores da comunidade transmitidos nos contos populares. Também impregnados desses

conhecimentos sociais estão os mito, lendas, fábulas, contos de fada, e muitas outras formas

que o povo guarda na memória. Estas narrativas ficaram conhecidas como patrimônio oral.

Através deste patrimônio cada povo molda a sua identidade cultural encontrando suas raízes e

reconhecendo diferenças.

O conto popular é uma narrativa breve cuja sobrevivência se deve fundamentalmente à

transmissão e circulação oral, sendo por isso, muitas vezes denominada “conto de tradição

oral”. Divide-se em vários tipos, tendo cada tipo características próprias, com motivos

variados e seus diferentes usos sociais possíveis. As principais categorias narrativas populares

difundidas pela Europa são o mito, a lenda, a gesta, o conto (de fadas e maravilhoso), e a

anedota.

No sentido estrito da palavra, um conto popular é um conto que se diz e se transmite

oralmente. (...) O conto popular, assim definido por sua transmissão oral, faz parte,

portanto, do folclore verbal. (SIMONSEN, 1987, p. 05)

Conforme já foi mencionado, tais narrativas foram criadas pela imaginação popular e

buscavam entreter, deleitar e/ou ensinar. Sua origem se perdeu no tempo. Começou na

tradição oral dos povos, não tendo uma autoria determinada; constitui na verdade uma criação

coletiva, visto que cada narrador vai introduzindo na narrativa algumas marcas específicas

(pessoais ou da comunidade). Temos que cada povo, ou mesmo cada geração de um mesmo

povo vai contando as histórias a seu modo, “corrigindo-as” algumas vezes ou acrescentando

um ou outro detalhe no enredo.

São muitas as teorias acerca da origem dos contos populares: indo-europeia ou mítica,

ritualista, marxista. “Ávidos por encontrar origens absolutas, os folcloristas do século passado

emitiram várias teorias convergentes, atualmente todas abandonadas, sobre a questão da

origem dos contos.” (SIMONSEN, 1987, p.35) Algumas consideraram que os contos teriam

um único ponto de origem de onde foram se espalhando pelo mundo; outras dizem que os

contos teriam nascido em vários lugares de maneira independente uns dos outros; algumas

ainda os interpretam como a lembrança de costumes locais antigos e que, portanto, devem ser

entendidos literalmente; e outras veem nos contos uma série de simbolismos que devem ser

decifrados.

Os contos populares baseiam-se em quatro características fundamentais: antiguidade,

autoria indeterminada, sobrevivência temporal, e forma de transmissão. “É preciso que o

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conto seja velho na memória do povo, anônimo em sua autoria, divulgado em seu

conhecimento e persistente nos repertórios orais.” (CÂMARA CASCUDO, 2000, p.13)

Fruto genuíno dessa tradição oral, o conto popular possui uma estrutura muito simples,

como as próprias fórmulas “Era uma vez... / ...e viveram felizes para sempre!” bem o

demonstram. Talvez seu ponto mais marcante diga respeito as marcas de oralidade que

caracterizam toda essa literatura (vai nisto, aí, lá vinha ele, aí ele...).

A fórmula inicial “Era uma vez...” nos remete diretamente a um passado mítico;

funcionando como uma indicação de que vamos atravessar os portais do tempo e espaço,

deixando o mundo real. É um ingresso que nos leva a um mundo repleto de fantasias,

mistérios e aventuras, encantamentos, realização de sonhos, ritos de passagem, heróis que

derrotam dragões e resgatam belas princesas; um mundo onde tudo é possível, tudo pode

acontecer... e acontece, além de transportar seu receptor a um passado longínquo. A fórmula

final “...e viveram felizes para sempre” nos resgata deste mergulho nas sendas da imaginação;

muitas vezes renovados, ao mesmo tempo em que demonstra a volta à estabilidade, alcançada

por meio de todas as realizações da personagem protagonista, grande parte por meio do

auxílio do sobrenatural..

Quanto à temporalidade no conto popular, as vagas indicações de tempo e espaço

surgem apenas por uma exigência narrativa, visto que nada acontece fora de um contexto

espaço-temporal. Ao longo da narrativa, as indicações temporais são sempre limitadas (era

uma vez, há muito tempo, em um tempo muito distante, etc.) e não permitem determinar uma

localização histórica precisa. Essa mesma dinâmica ocorre com as indicações de referência

espacial (um castelo distante, uma fonte, uma casa muito simples, uma floresta, um povoado,

etc.) que não nos permitem localizar a história geograficamente. Isto porque não é o onde nem

o quando que interessa, e sim o que acontece; a ação de fato. As próprias personagens são

mero suporte para a ação, disso sua caracterização tão estereotipada.

As personagens representam o binômio universal bem x mal. Os heróis são sempre

carregados dos aspectos positivos que se espera encontrar na personalidade humana (bondade,

beleza, lealdade, generosidade, etc.), e os vilões, em contrapartida estão repletos dos aspectos

negativos da alma humana (ganância, egoísmo, inveja, etc.). Essas características são

construídas de maneira indireta, sendo expressas mais pelas ações do que por uma construção

da personagem propriamente dita.

É esta conjunção de fatores (espaço e tempo indeterminados + personagens-tipo) que

instituem o caráter atemporal e universal aos contos populares, fazendo com que possam ser

revisitados permanentemente; trata-se sempre de algo que poderia acontecer em qualquer

tempo ou em qualquer lugar.

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1.1. Os Contos de Fada

Os contos de fada fazem parte desses livros eternos que os séculos não conseguem

destruir e que, a cada geração, são redescobertos e voltam a encantar leitores ou

ouvintes de todas as cidades. (COELHO, 2008, p.27)

Contos de fada são narrativas fabulosas de origem celta que surgiram como poemas

que cantavam histórias de amores eternos e fatais, com ou sem a presença de fadas, mas

impregnadas da presença de elementos do maravilhoso. São narrativas curtas inicialmente

transmitidas oralmente e que tem como eixo condutor uma problemática existencial, “via de

regra, está visceralmente ligada a união homem-mulher”. (COELHO, 1987, p.13)

Os contos de fada podem ser encontrados em quase todas culturas, em cada um tendo

uma roupagem diferente que procura somar características culturais de cada povo, daí o

motivo de não terem sido concebidos originalmente para a infância, isso se deu gradualmente,

inseridos que foram, posteriormente, nos domínios da literatura infantil dadas as suas

características; processo que estudaremos mais adiante.

No momento, o importante a ser registrado é que, a partir do século XVII, os contos de

fada saem da categoria de mero entretenimento e conhecem sua legitimidade como veículos

de transmissão de valores morais e códigos de conduta elaborados especialmente para o

aprendizado das crianças, como bem podemos ver nos Contos da mamãe Gansa de Charles

Perrault.

A importância de Perrault não é apenas de criador, mas também a de escritor que

rompeu com o preconceito mantido em torno da cultura popular e em torno da

criança. Graças ao seu livro possibilitou o florescimento de uma série de autores

importantes para a literatura infantil, tanto em seu país como em outras nações da

Europa. (...) Como vimos, em rápido debuxo, o século XVII foi rico de obras

importantes para a literatura infantil, mas a Idade de Ouro foi, sem dúvida, o século

XVIII. Pretendeu-se dar o balizamento mais significativo. O mesmo ocorrendo em

relação ao século XIX...” (ARROYO, 1990, p.30)

Muitos aspectos acerca dos contos de fada têm sido estudados através do tempo e uma

dentre as importantes descobertas feitas diz respeito à importância da cultura celta no

processo de fusão do pensamento mágico pagão com o espírito racionalista cristão.

Os celtas formavam um conjunto de povos organizados em tribos, pertencentes à

corrente indo-europeia. Grande parte da população europeia ocidental pertencia a alguma

etnia celta. Os bretões (kimrys) viviam na Bretanha francesa e no País de Gales; os gálatas na

Ásia Menor; os gauleses em grande parte do território que hoje é a França, para citar apenas

alguns.

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Era um povo formado por homens e mulheres fortes e altos que se dedicavam muito à

guerra, embora também tivessem alcançado grande desenvolvimento da sua arte. Muito

avançados, conheciam técnicas agrícolas bastante desenvolvidas para a época. São

considerados os introdutores da metalurgia do ferro na Europa – muitos acreditam que as

habilidades características dos anões na tradição popular eram uma alegoria feita aos celtas

uma vez que eram exímios fabricantes de joias, armaduras, espadas e outros tipos de armas

manufaturadas com metal.

Compartilhavam a língua, cultura, costumes religiosos e sociais. Cada tribo era

governada por chefes militares empenhados em contínuas lutas internas. As grandes

distâncias existentes entre as tribos dificultavam a comunicação e favoreciam a desintegração.

Em fins do século III a.C. a influência dos celtas na Europa declinava. O que

favoreceu para que fossem ameaçados em várias frentes por germânicos, dácios e romanos.

No século seguinte, apenas uma pequena parte dos vastos domínios que um dia configuraram

os territórios celtas permanecia sob seu controle – Gália e Ilhas Britânicas. No século I a.C., a

Gália foi invadida pelo imperador Júlio César e incorporada ao Império Romano. A Grã-

Bretanha foi rebatizada com o nome de Britania.

Além de ótimos guerreiros, os celtas foram excelentes camponeses baseando sua

economia numa ampla atividade comercial.

Durante todo esse período de confrontos, a Irlanda celta conseguiu permanecer isolada

desfrutando de uma paz e independência quase absolutas. Como resultado, sua cultura,

tradições e língua (gaélico) puderam sobreviver por muito mais tempo que em qualquer outro

território celta. A ordem social da Irlanda permaneceu a mesma até muito depois de a ilha ter

se convertido oficialmente ao cristianismo. Por esta razão, os irlandeses conseguiram

conservar sua cultura e, consequentemente, sua mitologia.

Quando pensamos em qualquer aspecto da cultura celta, o que primeiro nos vem à

mente é a imagem do druida, um homem velho e sábio de longas barbas grisalhas ou brancas,

com poderes mágicos que realizava sacrifícios e podia prever o futuro. Esta imagem está

apenas em parte correta.

Os druidas eram os sacerdotes e magos, mestres e juízes. Desde o início da história

celta, os druidas formavam uma casta educada e respeitada por sua sabedoria e como

conhecedores de seus próprios poderes atuavam muitas vezes como intermediários entre as

tribos e os deuses.

O termo “druida” significa “o conhecimento do cedro” ou “profundos

conhecimentos”.

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Formavam uma classe privilegiada, isentos de impostos e do serviço militar. Havia

três categorias de druidas: os bardos que eram responsáveis por imortalizar a história e as

tradições da tribo; os auguristas, responsáveis por fazer os sacrifícios (não necessariamente

humanos) e predizer o futuro; e os druidas propriamente ditos que, conhecedores das leis e da

filosofia, eram responsáveis por conservar a tradição e cultura.

Transmitida por narradores ligados à tradição sacerdotal dos druidas – a designação

genérica mais aceita é o de “bardos”, mas esses narradores podiam ser chamados de

filidh, ollaw e vários outros termos, conforme o local -, a literatura oral celta estava

impregnada de elementos sobrenaturais, refletindo um sistema de crenças que

admitia a existência de uma alma em todos os seres, a transmigração de espíritos

para diferentes corpos e as transformações do corpo físico. Os temas podiam ser de

natureza metafísica, como Os cantos de Taliesin, ou, frequentemente, poemas

amorosos, ou ainda odes de exaltação a reis e heróis. (MEREGE, 2010, p.28)

Os bardos (que mais nos interessam) adquiriam seu conhecimento pela tradição oral e

reconstruindo as genealogias de seu povo compunham versos para seus chefes e aristocratas.

Muitos desses versos, com o tempo, integraram muitas narrativas medievais (o chamado

maravilhoso bretão), em especial as pertencentes ao chamado ciclo arturiano.

As atividades jurídicas dos druidas eram de vital importância para a sociedade celta.

Suas decisões eram indiscutíveis, não havia pedidos de apelação, intermediavam disputas

individuais e de interesse da coletividade, homicídios e pleitos sobre limites territoriais e

heranças.

Eram os filósofos da sociedade. Estudavam os movimentos dos grandes corpos

celestes, astronomia, alquimia, os poderes e as habilidades dos deuses. Também se dedicavam

aos estudos sobre a vida após a morte. Acreditavam na imortalidade da alma e em uma forma

de reencarnação, julgando que após a morte do corpo a alma passava de um corpo a outro. Tal

crença teve muita influência na grande valentia vista nos celtas em combate.

A sabedoria, a literatura e a religião estavam resguardadas por um sistema organizado

baseado em três classes principais: os druidas, os bardos e entre essas duas classes ficavam os

vates ordem de adivinhos (filidhs na tradição irlandesa). O posto mais alto era ocupado pelos

druidas, considerados seres semidivinos. Eles dirigiam o sistema educacional, faziam

cumprir as decisões legais e oficiavam as cerimônias religiosas.

Os celtas foram um povo profundamente religioso que adorava uma numerosa

corte de deuses e deusas. Seus rituais religiosos eram fundamentais para a consolidação do

poder dos druidas e manutenção da hierarquia social entre os diferentes chefes e tribos. Os

vates desempenhavam muitas das funções dos druidas e chegavam a constituir uma espécie

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de subordem dentro do primeiro escalão hierárquico. A literatura era competência dos

bardos, que até onde sabemos eram tão respeitados quanto os próprios druidas.

Mais do que politeístas os celtas primitivos eram animistas; dedicavam sua adoração

aos espíritos da natureza, do mar, dos rios, montanhas, etc. A adoração desses espíritos

perdurou ainda muito tempo depois de haver se desenvolvido o culto de divindades pessoais

e, de uma forma ou de outra, continuou em cena, mesmo depois do advento do cristianismo.

Com relação aos pagi celtas, em virtude da força de sua cultura e coesão espiritual,

houve um intercâmbio pacífico com os cristãos, a partir do qual se deu um

verdadeiro sincretismo entre o espírito mágico céltico e o espírito racional cristão;

sincretismo que está latente nas novelas de cavalaria e nos romances corteses (...)

por sua natureza espiritual, ligada aos mistérios, a religiosidade celta preparou

terreno para a entrada do Cristianismo em parte da Europa”. (COELHO, 2008, p.76-

77)

Contudo, com a expansão do cristianismo na Idade Média, a Igreja inicia uma era de

terror ao combater os povos denominados “pagãos”.

Em que pese a substituição, pela doutrina cristã, dos deuses e crenças da civilização

celta, a literatura medieval incorporou boa parte dos elementos presentes em sua

tradição, tanto os sobrenaturais – como a crença no mundo das fadas – quanto os

ideais, que seriam transmitidos aos heróis (e heroínas) das novelas de cavalaria.

(MEREGE, 2010, p. 29-30)

Ainda assim, a magia já havia fincado raízes e o imaginário de sua mítica cultura, com

suas fadas, bruxas, poções, seres encantados, etc. seria passada às futuras gerações através dos

contos de fada e perduraria até os dias de hoje.

Agora que falamos sobre os celtas, é fundamental que tratemos também das outras

duas fontes aceitas pelos estudiosos para os contos de fada.

Os contos de fada não tiveram uma única fonte, mas se formaram a partir de várias

fontes, podemos contar pelo menos três: as fontes céltico-bretãs, as fontes europeias e as

fontes orientais.

O cruzamento das várias pesquisas acabou revelando, nas raízes daqueles textos

populares, uma grande fonte narrativa, de expansão popular: a fonte oriental

(procedente da Índia, séculos antes de Cristo), que vai se fundir, através dos séculos

com a fonte latina (greco-romana) e com a fonte céltico-bretã (na qual nasceram as

fadas). (COELHO, 2008, p.36)

Na cultura celta nasceram as fadas, “ou melhor, foi na criação cético-bretã que

surgiram as primeiras mulheres sobrenaturais a darem origem à linhagem das fadas”.

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(COELHO, 1987, p.31) Também tiveram grande influência na formação dessa literatura

popular as coletâneas de narrativas de criação novelesca como os livros exemplares e as

novelas de cavalaria; narrativas que “resultam de um trabalho de compilação, onde a

criatividade e o talento do autor assumem importância decisiva. Não são obras populares,

anônimas, mas textos de origem popular recriados por uma elaboração erudita.” (COELHO,

1987, p.61)

Hoje também se admite que a fonte mais antiga de toda a literatura popular

maravilhosa vem da cultura oriental; mais especificamente de obras como Calila e Dimna,

Sendebar, As Mil e uma Noites.

Calila e Dimna é tida como a coletânea mais antiga dentre as que estão na origem da

literatura popular europeia, deve ter surgido na Índia por volta do século V aC., tendo

ultrapassado os limites de sua fronteira por volta do século VI dC., através de uma tradução

persa. É composta em estrutura labiríntica, com um eixo condutor de onde partem e para onde

voltam todas as narrativas que vão saindo umas de dentro das outras. Por meio de situações

vividas por animais e homens essas narrativas mostram a vida como uma luta contínua.

Considerado por muitos como um tratado político, a leitura das fábulas que compõem

Calila e Dimna tem sido considerada, ao longo do tempo, de elevada importância para se

alcançar o êxito. Em seu enredo não são determinados pontualmente tempo ou ditador, mas

são representadas situações onde o poder e tudo aquilo que a ele se refere são fatores

motrizes, não há momento histórico em que não seja possível um espelhamento dessas

situações e delas tirar lições e aprendizado.

Embora a origem e feitura do livro estejam envoltas em uma névoa de lendas e

possibilidades, é grande a probabilidade de que se trata de um aglutinamento de determinadas

obras indianas como o Panchatantra, o Mahabarata Gita e o Vischno Sarna. Todas essas

obras trazem fábulas com temas semelhantes, e em todas elas prevalecem situações onde a

política é apresentada como pano de fundo. Acrescente-se a isso o caráter do fabulário que é,

desde suas origens, de cunho fortemente moralizante, no qual ocorre o desenrolar de uma

situação, geralmente vivida por animais, cujas tramas resultam em um final que nos traz

algum ensinamento moral.

Devido a este caráter moralizante, as ações se sobrepõem as personagens, e por isso

não há neste gênero literário a necessidade de criação de personagens complexos com traços

característicos específicos. Para a narrativa basta a existência de determinados tipos que

possam ser adequados a elas, como, por exemplo, o leão, que é um tipo representativo de

poder. Cada tipo pode ser inserido em um determinado número de situações de forma que esta

inserção mantenha o efeito de verossimilhança da fábula; temos, por exemplo, a figura do

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leão que ocupa papéis específicos nas fábulas que não poderiam ser ocupados por outros

animais, como o rato ou o chacal, pois a mudança resultaria no comprometimento da

mensagem transmitida.

Como na maioria dos contos que se originaram dessa literatura oriental, esta é uma

característica muito marcante nos contos de fada, onde temos as chamadas “personagens-tipo”

como rei, rainha, bruxa, princesa, plebeu, etc. desempenhando cada um seu respectivo papel

social ao invés de representarem a complexidade de personalidades, comportamento ético ou

padrões espirituais: mentiroso, generoso, traidor.

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II. CLASSIFICAÇÃO DOS

CONTOS POPULARES (AaTh)

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Antti Aarne, folclorista finlandês, publicou em 1910 um índice de classificação para os

contos populares. Após ser traduzido e revisado por Stith Thompson, folclorista americano,

esse índice define uma catalogação tipológica de raiz filológica e histórico-geográfica para os

contos.

A criação de uma catalogação internacional dos contos populares nos moldes

propostos permitiu a uniformização dos critérios, conceitos e metodologias a partir das quais

os contos seriam analisados.

A classificação de comparação folclórica elaborada por Antii Aarne ficou conhecida

como o Sistema de classificação Aarne-Thompson, também conhecido como o Sistema AaTh

é utilizado até hoje. Para desenvolver seu sistema, Aarne baseou-se em contos finlandeses,

dinamarqueses e noruegueses, coletados por Grundtvig, e nos contos alemães coletados pelos

Irmãos Grimm.

Quanto à classificação Aarne-Thompson, a seriação dos tipos e subtipos apresenta-se,

como extraído da obra de 1987 (The types of the Folktale – A classification and bibliografy):

I. Animal Tales (Contos de Animais)

1 – 99 Wild Animals (Animais Selvagens)

100 – 149 Wild Animals and Domestic Animals (Animais Selvagens e Domésticos)

150 – 199 Man and Wild Animals (Homem e Animais Selvagens)

200 – 219 Domestic Animals (Animais Domésticos)

220 – 249 Birds (Aves)

250 – 274 Fish (Peixes)

275 – 299 Other Animals and Objects (Outros Animais e Objetos)

II. Ordinary Folk-Tales (Contos «propriamente ditos» ou «comuns»)

300 – 399 Supernatural Adversaries (Adversários Sobrenaturais)

400 – 459 Supernatural or Enchanted Husband (Wife) or Other Relatives

(Marido, esposa ou outros parentes sobrenaturais ou encantados)

460 – 499 Supernatural Tasks (Tarefas sobrenaturais)

500 – 559 Supernatural Helpers (Ajudantes sobrenaturais)

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560 – 649 Magic Objects (Objetos mágicos ou maravilhosos)

650 – 699 Supernatural Power or Knowledge (Poder ou sabedoria sobrenatural)

700 – 749 Other Tales of the Supernatural (Outros contos sobrenaturais)

750 – 849 B. Religious Tales (Contos Religiosos)

850 – 999 C. Novelle (Romantic Tales) (Contos Sentimentais)

1000 – 1199 D. Tales of the Stupid Ogre (Contos do Ogro Estúpido)

III. Jokes and Anecdotes (Piadas e Anedotas)

1200 – 1349 Numskull Stories (Histórias Patéticas)

1350 – 1439 Stories about Married Couples (Histórias sobre Marido e Mulher)

1440 – 1524 Stories about a Woman (Girl) (Histórias sobre uma mulher ou rapariga)

1525 – 1874 Stories about a Man (Boy) (Histórias sobre um homem ou rapaz)

1525 – 1639 The Clever Man (Homem Esperto ou o Espertalhão)

1640 – 1674 Lucky Accidents (Incidentes Engraçados)

1675 – 1724 The Stupid Man (Homem Estúpido)

1725 – 1849 Jokes about Parsons and Religious Orders

(Anedotas sobre Religiosos e Ordens Eclesiásticas)

1850 – 1874 Anecdotes about Other Groups of People

(Anedotas sobre outros grupos de pessoas)

1875 – 1999 Tales of Lying (Contos de Mentiras)

IV. Formula Tales (Contos Enumerativos)

2000 – 2199 Cumulative Tales (Contos Acumulativos)

2200 – 2249 Catch Tales (Farsas)

2300 – 2399 Other Formula Tales (Outros Contos Enumerativos)

V. Unclassified Tales (Contos sem classificação)

2400 – 2499 Unclassified Tales (Contos sem classificação)

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Este sistema divide os contos em unidades temáticas, ou seja, a classificação

dependerá do tipo de enredo e tipo de personagem apresentado pela narrativa. Cada conto é

classificado com as iniciais AT seguido do número da categoria determinada. Contudo, um

conto pode ser classificado em mais de uma categoria, neste caso ele pode ser considerado

como uma variante de tipos mais básicos.

A parte mais interessante do sistema refere-se a categoria dos contos de fada que são

identificados com os números de 300 a 1199; aqui encontramos de fato todos os contos de

fadas clássicos recolhidos por Perrault, pelos Irmãos Grimm, etc.

Apesar da rigidez do sistema, ele é útil para pesquisadores de folclore que procuram

mapear semelhanças entre contos de diferentes proveniências. (MEREGE, 2010, p.

12)

Mesmo tendo recebido críticas por parte de vários estudiosos dos diferentes aspectos

dos contos populares, o Sistema AaTh traz a vantagem de permitir um mapeamento das

semelhanças entre contos do mundo todo, englobando as mais diversas culturas. Dessa forma,

não precisamos necessariamente ter acesso ao conto em si para podermos reconhecer aspectos

de seu enredo e poder relacioná-lo com outros. Por exemplo, se um pesquisador na China

classifica determinado conto como sendo AT451, nós somos capazes de saber que se trata de

um conto no qual um protagonista precisa resgatar um parente transformado em animal ou

algo do tipo, e com isso poderemos encontrar outro conto que possua a mesma temática

dentre os contos das mais variadas culturas.

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III. CULTURA E SOCIEDADE

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De acordo com Terry Eagleton “cultura é considerada uma das duas ou três palavras

mais complexas de nossa língua, e ao termo que é por vezes considerado seu oposto –

natureza – é conferida a honra de ser o termo mais complexo de todos.” (EAGLETON, 2005,

p. 09)

Para Raymond Williams, tal dificuldade em se poder conceituar de maneira específica

o termo “cultura” advém do desenvolvimento histórico do próprio idioma inglês, que segundo

ele resultou “em diversas línguas europeias, mas principalmente porque passou a ser usada

para referir-se a conceitos importantes em diversas disciplinas intelectuais distintas e em

diversos sistemas de pensamento distintos e incompatíveis.”(WILLIAMS, 2007, p.117)

Acrescente a isso a mudança sofrida em um de seus sentidos na virada século XVIII para o

XIX que permitia que se delineasse um sistema capaz de acompanhar as mudanças ocorridas

na vida e pensamentos que resultaram da Revolução Francesa.

A Cultura, assim concebida, referia-se a um estado mental; sendo que e a atividade

física, intelectual ou moral passa a referir-se a todo um modo de vida. Em sua análise, a

cultura se apresenta como uma reação direta, em nível mental e sentimental, às profundas

mudanças nas condições humanas. Cultura passa a se relacionar a um grupo de novas

atividades e práticas que formam uma sociedade.

Williams diz ainda: “Diante dessa complexa e ainda ativa história da palavra, é fácil

reagir com a escolha de um sentido ‘verdadeiro’, ‘adequado’ ou ‘científico’ e descartar outros

sentidos por serem vagos ou confusos. (...) É claro que, em uma disciplina, é preciso

esclarecer o uso conceitual.”(WILLIAMS, 2007, p.122)

Pensando nisso, no intuito de diminuir a incidência de possíveis erros ou confusões

analíticas achamos pertinente dedicar algumas linhas para conceituar o que entendemos da

relação “cultura-sociedade”.

Em nosso trabalho, entenderemos “cultura” como sendo uma criação coletiva de

significados e ideologias com visões de mundo e de maneiras de sentir e agir com

peculiaridades que são exclusivas de cada povo ou grupo social. Cada grupo social possui

uma cultura própria com características específicas que representam o comportamento dos

membros de uma sociedade e diferem dos aspectos do comportamento de outras.

Cultura é, portanto, a somatória das características de comportamento aprendido que

são compartilhadas pelos membros de uma mesma sociedade. Cultura é o resultado da

invenção social, podendo ser considerada como herança social uma vez que é transmitida por

ensinamento a cada nova geração. É fundamental que a questão dos instintos inatos e

quaisquer outras formas de hereditariedade biológicas de comportamento sejam excluídas.

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Talvez a característica mais fundamental da cultura seja sua natureza mutável com

relação à temporalidade e aos diferentes povos. Uma mudança ocorrida no comportamento

social, e consequentemente na cultura, pode ter origem em alguma alteração significativa nas

condições de vida de uma sociedade. Qualquer acontecimento que resulte na alteração das

situações sob as quais o comportamento coletivo se baseia de modo a desacostumar ações

habituais dando margem a novas respostas pode conduzir a inovações culturais.

Muitos são os fatores capazes de dar início ao processo de inovação cultural:

alterações populacionais ou do ambiente geográfico, contato com a cultura de outros povos,

descobertas, catástrofes naturais, crises sociais ou econômicas, são alguns deles. Todas as

mudanças são invariavelmente de origem histórica, ou seja, são específicas em relação ao

tempo e espaço. Acontecimentos que ocorrem em locais e épocas distintas podem se

assemelhar e exercer influências paralelas em diferentes culturas. Em outras palavras, é

possível considerar as modificações culturais sob diversos aspectos, não importando quando

ou onde eles tenham ocorrido, importando na verdade o impacto causado nas referidas

sociedades.

Outro conceito muito importante sob o qual basearemos nossas análises diz respeito ao

conceito de “identidade cultural”. Consideramos o termo “identidade” sob uma perspectiva

sociológica, na qual o sujeito se constrói a partir de sua interação com a sociedade, num

processo dinâmico, inconstante, repleto de idas e vindas; um processo contínuo baseado

principalmente em uma relação de trocas.

Deve-se considerar que a identidade se constrói e se reconstrói constantemente no

interior das trocas sociais (…) A identidade existe sempre em relação a uma outra.

Ou seja, identidade e alteridade são ligadas e estão em uma relação dialética.

(CUCHE, 2002, p.183).

Segundo Stuart Hall, uma identidade cultural se baseia em aspectos relacionados ao

nosso pertencimento a uma cultura, seja ela étnica, racial, linguística, religiosa etc. Hall se

detém particularmente nas identidades culturais relacionadas às questões de nacionalidade.

Para ele, a nação é mais do que uma entidade política, trata-se de um “sistema de

representação cultural”. Ou seja, a nação é composta de representações simbólicas que

corroboram para a constituição de uma determinada identidade nacional. Sendo assim, as

culturas nacionais produzem sentidos com os quais podemos nos identificar e dessa forma

acabam por construir suas identidades.

Ainda segundo Hall, estamos vivendo atualmente uma grande “crise de identidade”

devido às mudanças ocorridas nas sociedades modernas. Com o advento da modernidade, a

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noção do sujeito que se constrói socialmente vem sendo questionada por ocasião da intensa

fragmentação em que vive o sujeito por fatores como o processo de globalização, a crise das

identidades culturais, etc. O sujeito chamado de pós-moderno não é mais compreendido como

possuidor de uma

(...) identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma celebração

móvel (…) definida historicamente e não biologicamente. O sujeito assume

identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas

ao redor de um EU coerente (…) A identidade plenamente unificada, completa,

segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de

significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma

multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma

das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente. (HALL, 2001, p.

13).

Essa identidade construída e reconstruída através de um processo contínuo é feita por

meio da linguagem, da ficção, pelas “narrativas do eu”, através dos diferentes discursos

(históricos, institucionais, etc.).

Temos, portanto, que a linguagem é um ponto primordial na construção das

identidades, que são geradas através dos diferentes discursos. É através da linguagem, por

meio da representação de suas personagens e seus referidos discursos que a fantasia se realiza.

E a literatura (oral ou escrita), como todas as formas de arte, sendo resultado da imaginação

dos homens, trará em seu bojo toda uma gama de informações e características do universo

cultural (temporal-geográfico-social) do mundo a que pertence ou a que deseje representar.

E dentro das narrativas dos contos populares, compiladas em universos culturais, por

vezes tão ímpares por vezes tão semelhantes, buscamos encontrar as representações dos

costumes dos povos, seus hábitos, suas ideologias, seus acontecimentos históricos, entre

outros, para poder identificar as intersecções e as diferenças entre as culturas estudadas.

Vemos casos em que os mesmos valores regem diferentes sociedades, como por

exemplo, a máxima que diz “não faça a outro o que não queres para ti” ou “quem com ferro

fere com ferro será ferido” que podemos reconhecer na maioria das culturas; ainda que ditas

de outras formas e podem ser facilmente encontradas em inúmeras narrativas populares. Ou

como o conteúdo da cesta que Chapeuzinho Vermelho leva para a vovó, que varia de acordo

com a época e local da transmissão do conto, indo de carne e vinho nas versões medievais

francesas para bolo e vinho na versão germânica dos Irmãos Grimm, revelando com isso,

hábitos alimentares dos diferentes períodos.

Em outras palavras, deparamo-nos com o fato de que algumas das diferenças mais

significativas dentre as diversas culturas surgem, não do fato de que seus valores ou costumes

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sejam diferentes, mas do fato de que há sim modos diferentes de desenvolvê-los, de acordo é

claro, com as condições variáveis em vigor em cada sociedade. E essas diferenças e

semelhanças podem ser encontradas representadas em seus contos tradicionais que atuam

desse modo, como uma espécie de registro histórico.

E são essas variáveis representadas nos contos como uma espécie de registro das

diferentes culturas que buscamos identificar nos contos selecionados para as análises.

Usaremos para tal, contos que dialogam entre si dado seu tema central semelhante ou

características como mesmo tipo de protagonistas, perigos enfrentados, etc.

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IV. PERRAULT E IRMÃOS GRIMM:

OS CONTOS DE FADA

NA FRANÇA E ALEMANHA

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Durante a Idade Média, as diversas formas de produção cultural tiveram diferentes

manifestações que variaram no tempo e espaço. Com relação à Europa Ocidental, por

exemplo, é possível distinguir a existência de uma cultura popular ligada às tradições rurais e

de forte conteúdo laico, em oposição a uma cultura erudita, cristã e eminentemente clerical,

ou seja, produzida e difundida pelos religiosos. Com o avanço do universo medieval

vinculado aos aspectos religiosos, a cultura popular retraiu-se ou adquiriu outras formas.

A literatura medieval laica surge e se prolifera na Europa oriunda de duas fontes: uma

popular e outra culta. A de fonte popular assume a forma das prosas narrativas exemplares e

são oriundas do Oriente; a de fonte culta assume a forma das novelas de cavalaria, de

inspiração ocidental, muitas vezes com forte influência das culturas escandinavas e celtas (os

ditos povos bárbaros).

Na novelística medieval, veremos representados os problemas da vida cotidiana, os

valores ético-sociais que caracterizam a sociedade da época e as lições oriundas da cultura

popular, tudo cercado pela representação de um mundo de fantasias. Os contos de fada, por

exemplo, retratam as violências contra mulheres e crianças, crimes, práticas de canibalismo, a

fome e a miséria que muitas vezes levam os pais a abandonarem seus filhos na floresta;

algumas vezes esses retratos de outra época se mostram por intermédio de simbolismos e por

vezes de maneira bastante explícita. Já as novelas de cavalaria tratam de grandes feitos

heroicos; alguns também imersos num mundo de fantasia com fadas, magos, duendes, etc.,

mas sem a mesma carga simbólica encontrada nos contos de fada.

(...) foi entre os séculos IX e X que, em terras europeias, começa a circular

oralmente uma literatura popular que séculos mais tarde, iria transformar-se na

literatura hoje conhecida como folclórica e também como literatura infantil.

(COELHO, 1991, p.30)

Diferentemente do que ocorria na era Clássica, na qual se buscava a verossimilhança

como atributo de beleza e verdade na arte, o simbolismo característico de toda a arte medieval

buscava representar o mundo além da simples realidade cotidiana. Era um período de grandes

transformações culturais, políticas e sociais com o nascimento de novas nações, a consagração

da hegemonia do cristianismo e o surgimento de novas classes. Todos esses acontecimentos

vieram preparar o mundo para uma nova era – a era burguesa-cristã da Idade Moderna.

Nesses dez séculos “medievais” realiza-se, pois, o longo e complexo processo

histórico-cultural que prepara a Idade Moderna, durante o qual, como num cadinho

de alquimia, se foram fundindo (aquecidos pelo fogo espiritualista cristão): a

vaidade rude, a violência instintiva e o sangue novo-primitivo dos bárbaros com os

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valores civilizadores da Antiguidade Clássica Greco-Romana que (registrados pela

palavra escrita em numerosos manuscritos) haviam permanecido nos conventos, sob

a guarda dos primitivos padres da Igreja. (COELHO, 1991, p.32-33)

Após a Idade Média, contestando-a em seus aspectos econômicos e políticos e

religiosos, segue a chamada Idade Moderna, um período bastante polêmico segundo os

historiadores por estar situado entre a decadência do feudalismo e a emergência do

capitalismo.

A Idade Moderna pode ser vista como um período de transição que ocorre devido a

uma revolução espiritual, pois nele estão presentes elementos do universo medieval

“decadente” e do capitalismo em formação, polos opostos em permanente conflito de

convivência.

O feudalismo encontra seu fim, as cidades emergem e prosperam, a burguesia se

consolida como classe social dominante, juntamente com as principais nações que se

fortificam estimuladas pelo mercantilismo e colonialismo. Ocorrem os descobrimentos

marítimos, a Reforma e Contra-Reforma religiosas, a fundação da Companhia de Jesus e,

acima de tudo, a Renascença.

Durante a modernidade, a literatura Ocidental adquire seu contorno e atinge o apogeu

da civilização “cristã-burguesa-humanista”. Corresponde aos movimentos literários do

Classicismo (séculos XVI-XVIII) e Romantismo (séculos XIX - início do XX).

É importante ressaltar que toda a estrutura e temática do conto, seja de fadas ou

maravilhoso, de origem popular (compilados) ou de autoria (criados por um autor), assim

como a mensagem a ele vinculada, estão diretamente ligadas ao período histórico vigente, à

realidade social cotidiana e à biografia de seus narradores/compiladores/autores.

A história da literatura mostra que foi Charles Perrault o responsável pela primeira

publicação de uma coletânea de contos infantis no século XVII, durante o reinado de Luís

XIV (o Rei-Sol).

Foi neste período na França que começa a surgir a concepção de “infância” e com isso

surge a preocupação de se criar uma literatura feita especialmente para crianças e jovens.

Pode parecer hoje algo difícil de visualizar: a inexistência da infância. Não confunda aqui

“infância” com “criança”. Crianças, é claro, sempre existiram, mas a infância pensada como

uma fase da vida em que o homem necessita de maiores cuidados por parte dos adultos era

um acontecimento inédito que nascia com o advento da modernidade.

As crianças na Idade Média e início da Era Moderna eram tratadas como “adultos em

miniatura”, elas se vestiam como os adultos e participavam ativamente dos acontecimentos

sociais ou familiares, como reuniões e festas.

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Não havia discriminação ou cuidados nos relacionamentos entre adultos e crianças:

falavam-se vulgaridades, faziam-se brincadeiras grosseiras e não havia pudores quanto a

quaisquer assuntos; tudo era discutido na frente das crianças. Segundo Ariès, isto ocorria

porque nessa época não se acreditava numa diferença significativa entre adultos e crianças,

visto que “até o fim do século XIII, não existem crianças caracterizadas por uma expressão

particular, e sim homens de tamanho reduzido” (ARIÈS, 1981, p.51). Com isso as crianças

eram preparadas desde cedo para suas funções dentro da organização social através de sua

interação com os adultos.

O século XVI surgiu como um marco de grandes transformações no curso das

sociedades. Uma nova classe social surgida nos últimos séculos da Idade Média, juntamente

com o renascimento comercial e urbano ascende ao poder. Esta nova classe almeja interesses

diferentes daqueles do clero e da nobreza, e por isso mesmo torna-se uma ameaça direta a

interesses que já não cabem nesses novos moldes de organização mundial.

Juntamente à ascensão da burguesia, temos outros fatores que influenciaram muito

nesta nova forma de “enxergar” o mundo. Entre eles está o avanço científico que resultou em

grandes mudanças no seio da sociedade. Mudanças estas que puderam ser vistas, em grande

parte, no que se refere a tratamentos medicinais, que também transformaram a relação adulto-

criança.

Por um longo período as taxas de mortalidade infantil foram extremamente altas,

juntamente com as práticas de infanticídio (que podemos encontrar em inúmeros contos

populares), duas ocorrências aceitas com bastante naturalidade. Não havia sentimento com

relação às crianças; elas eram apenas força de trabalho, e por isso mesmo, substituídas por

outras mais fortes e saudáveis, que poderiam corresponder às expectativas de uma sociedade

organizada em torno de uma perspectiva utilitária da criança.

Ariès demonstra bem essa relação com a criança do período através da seguinte

passagem: “Antes que eles te possam causar muitos problemas tu terás perdido metade, e

quem sabe todos” (ARIÈS, 1981, p.56).

Todo o processo de transformação do período fez com que os homens passassem a ter

uma nova percepção do mundo ao seu redor; o que incluiu uma nova percepção (ou talvez a

descoberta) das necessidades da criança. Surge daí a noção de “infância”, como a

conhecemos.

No final do século XIV, sinais de uma nova relação com a criança surgem nos meios

abastados das cidades. Trata-se menos de novas demonstrações de afetividade que

de uma vontade cada vez mais reafirmada de preservar a vida da criança. (...) Essa

vontade de salvar a criança só aumenta ao longo do século XVII. Arrancar uma

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criança da doença e da morte prematura, recusar a desgraça tentando curá-la: esse

passa a ser o objetivo de pais angustiados. Evidentemente, antes os pais tampouco

aceitavam a perda de um ente querido, porém a consciência da vida, do ciclo vital,

era diferente, e não lhes restava outro recurso senão ter mais um filho. Porque a vida

era dura e porque era preciso perpetuar a linhagem... (GÉLIS, 2009, p.315)

Essa nova preocupação com a preservação da vida da criança como citado acima, vem

apenas demonstrar o novo olhar que o indivíduo lança sobre si e sobre sua relação com o

tempo, espaço e o outro. Prolongar a própria vida, abreviando os sofrimentos manifesta-se de

maneira tão intensa entre as pessoas deste “mundo moderno” que no final do século XVII a

sociedade descobre-se totalmente incapaz de atender à demanda de cuidados que surge de

todos os lados. Molière bem mostra esses acontecimentos em suas peças teatrais, bem

conhecidas e estudadas por muitos por suas críticas sociais mordazes que nos apresentam

retratos bastante precisos da realidade social da França.

A França do período é uma nação marcada pelo absolutismo e pelas transformações

que levaram o século XVII a se caracterizar “acima de tudo, por um enorme esforço para

estabelecer uma ordem racional, não só no pensamento, como na Sociedade, nos costumes e

na Vida em geral” (COELHO, 1991, p.76).

A vitória do absolutismo foi, em certa medida, uma consequência das guerras de

religião. No final do século XVI, a França encontrava-se tão debilitada pelo

interminável morticínio, pelas eternas fomes e epidemias, que o povo queria paz e

sossego a qualquer preço e ansiava por um regime forte que tomasse as rédeas do

poder, ou pelo menos, estava preparado para suportar um. (HAUSER, 1998, p.458)

Como nos mostra Hauser, após anos de lutas internas e externas, decorridas na

primeira metade do século XVI, com um povo cansado de tantos reveses e sofrimentos, o

absolutismo e a monarquia de direito divino se consolidaram definitivamente na França.

O absolutismo, sistema que durou aproximadamente três séculos, não constituiu um

simples momento de transição entre as formas de organização política do período medieval e

o Estado Burguês que emergiria com a Revolução Francesa no final do século XVIII. Foi, de

fato, um Estado duradouro, centralizado, e forte.

Durante a dinastia dos Valois, todo o território francês foi unificado e mantido

guardado pelo exército. Através de uma política mercantilista, os comércios interno e externo,

foram igualmente estimulados, em especial a indústria manufatureira, o que beneficiou

largamente a burguesia. Até a Igreja Católica se viu submetida ao poder monárquico pela

Concordata de Bolonha, que concedia ao rei o direito de nomear padres e bispos, e o colocava

como defensor da fé.

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A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defende-los das invasões

dos estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança

suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam

alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda a sua força e poder a um homem, ou a

uma assembleia d homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade

de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar um homem ou uma

assembleia de homens como representante de suas pessoas, considerando-se e

reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua

pessoa praticar ou levar a praticar. Em tudo o que disser respeito à paz e segurança

comuns; todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas

decisões a sua decisão. Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma

verdadeira unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto

de cada homem com todos os homens: “Cedo e transfiro meu direito de governar-me

a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição de

transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas

ações”. Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em

latim civitas. (HOBBES, 1988, p.200)

Ainda que inicialmente tenha sido “assinado” o “contrato” povo-soberano explicado

por Hobbes, em meados do século XVI, a estrutura absolutista francesa se viu abalada pela

decorrência das guerras religiosas e das disputas internas de poder – de um lado os católicos

liderados pelo rei e pela família Guise, de outro os huguenotes (protestantes calvinistas)

liderados pelos Bourbons (dinastia a qual pertencerá Luís XIV).

As disputas religiosas na França chegaram a tal ponto que Catarina de Médici

determinou o massacre de milhares de protestantes – fato que ficou conhecido como a Noite

de São Bartolomeu.

Com a morte prematura de Carlos IX, Henrique III assume o trono em meio a

violentos conflitos políticos e religiosos ainda envolvendo Guise e Bourbon. Em 1589 o rei

Henrique III é morto por um fanático religioso, levando ao trono o primeiro Bourbon –

Henrique IV, rei de Navarra.

Henrique IV se converte ao catolicismo1 na tentativa de chegar à paz e centralizar

todos os poderes da nação. Ainda assim, assinou o Edito de Nantes que concedia liberdade de

culto aos protestantes. Dessa forma, ele tentava resgatar a paz interna e principalmente a

autoridade real absoluta; o que não conseguiu, tendo sido também assassinado por um

fanático religioso.

Assume então o trono seu filho, Luís XIII que ao atingir a maioridade nomeia para o

cargo de primeiro-ministro o cardeal Richelieu, que se torna a figura mais poderosa do reino.

1 No episódio que daria início a famosa expressão popular: “Paris vale uma missa”, inaugurando o significado

que carregaria de que vale qualquer sacrifício quando o objetivo é essencial.

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A política de Richelieu tinha como diretrizes básicas a consolidação do poder absoluto do rei

e o fortalecimento politico da França no quadro europeu.

A morte de Richelieu (1642), seguida pela de Luís XIII (1643), leva ao trono Luís

XIV (maior expoente da história monárquica francesa). Durante seu reinado, o absolutismo

francês conheceu seu apogeu e sua decadência.

O cargo do soberano (seja ele um monarca ou uma assembleia) consiste no objetivo

para o qual lhe foi confiado o soberano poder, nomeadamente da obtenção da

segurança do povo, ao qual está obrigado pela lei de natureza e do qual tem de

prestar contas a Deus, o autor dessa lei, e a mais ninguém além dele. (...) Deus é rei,

que a terra se alegre. (HOBBES, 1988, p.211)

É somente na minha pessoa que reside o poder soberano (...), é somente de mim que

os meus tribunais recebem a sua existência e a sua autoridade; a plenitude dessa

autoridade, que eles não exercem senão em seu nome, permanece sempre em mim, e

o seu uso nunca pode ser contra mim voltado; é unicamente a mim que pertence o

poder legislativo, sem dependência e sem partilha; é somente por minha autoridade

que os funcionários dos meus tribunais procedem, não à formação, mas ao registro, à

publicação, à execução da lei, e que lhes é permitido advertir-me o que é do dever de

todos os conselheiros; toda a ordem pública emana de mim, e os direitos e interesses

da nação, de que se pretende ousar fazer um corpo separado do Monarca, estão

necessariamente unidos com os meus e repousam inteiramente em minhas mãos.

(MARQUES, 1994, p.58)

O texto de Hobbes, e o fragmento de um discurso do rei Luís XIV, revelam claramente

a concepção absolutista do poder real, segundo a qual os poderes de governo deveriam estar

concentrados nas mãos de uma única pessoa: o soberano.

Luís XIV governou pessoalmente exercendo todos os poderes e tornando-se referência

para as monarquias absolutistas2. O rei era o representante de Deus na terra e a obediência do

clero legitimou teologicamente o seu direito divino. Seu reinado foi uma época de glória

militar, literária e artística.

Com relação às lutas religiosas, Luís XIV revogou o Edito de Nantes, proibindo o

protestantismo na França, fazendo com que uma grande massa de huguenotes fugisse para

outros países – o que contribuiu para a disseminação dos contos de fada franceses pela

Europa. Como grande parte da burguesia era constituída por huguenotes, a França acabou

perdendo uma grande soma em capital, o que veio enfraquecer e abalar a economia francesa.

Luís XIV mantinha uma corte extremamente luxuosa no palácio de Versailles com

uma infinidade de protocolos. Todo o luxo a que os protocolos obrigavam, fizeram com que a

nobreza fosse se endividando com a Coroa a fim de manter seu status quo, o que os colocava

2 Essa concentração de poder pode ser medida pela famosa frase de Luís XIV: “O Estado sou eu”.

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cada vez mais subjugados ao poder real. Luís XIV também patrocinava constantemente

realizações culturais das mais diversas áreas. Essas duas práticas colaboraram enormemente

para aumentar as despesas da Coroa.

Além da desastrosa política religiosa e do enfraquecimento dos cofres públicos, o rei

Luís XIV levou a França a muitas guerras para ampliar seu território. Dessa forma, a

administração do seu reino se tornou caótica, enfraquecendo e levando-o ao declínio que

abriria as portas para a Revolução.

Todo cotidiano dessa França de grandes extremos, de luxos e riquezas, misérias e

pobrezas, desavenças religiosas pode ser encontrado nos enredos dos contos populares que

retratam o cotidiano, muitas vezes de maneira bastante evidente e não escondido atrás de

simbologias.

Neste panorama, surge Charles Perrault, poeta da Academia Francesa e membro da

alta burguesia, fato que teria facilitado seu acesso aos salões da nobreza. Não se dedicou

exclusivamente às artes, tendo seguido paralelamente uma longa carreira pública. Mas aos

poucos seus interesses foram se voltando cada vez mais para a literatura. Publicou poemas

como “Retrato de Íris” e “Retrato da voz de Íris”, que lhe abriram as portas para uma nova

carreira como poeta oficial da corte de Luís XIV.

Em 1671 Perrault é eleito para a Academia Francesa, permitindo que o público

assistisse sua nomeação (protocolo ainda praticado). Participou da chamada “Querela dos

Antigos e Modernos”, que teve início com a leitura pública feita pelo abade Lavaulê do

poema de Perrault intitulado “O século de Luís, o Grande”.

No poema, Perrault propõe a tese de que o século de Luís, o Grande é superior ao

século de Augusto, mostrando os defeitos e erros dos antigos e as virtudes e acertos

dos modernos. Para ele a natureza produz em todos os séculos homens geniais, mas

os modernos são mais sábios que os antigos. (MENDES, 2000, p.66)

Opondo-se diretamente por meio de sua tese aos escritores que defendiam a soberania

das formas clássicas bem como da língua e cultura grega e latina, como Boileau, Racine e La

Fontaine, juntamente com alguns de seus conterrâneos e com o apoio das “preciosas” 3

,

Perrault defendia a importância da língua e da cultura francesa recheando suas criações com

exemplos culturais e ideológicos franceses.

Abandonou a carreira pública por volta dos 50 anos para se dedicar à educação dos

filhos. Movido por esse interesse ele começou a registrar as histórias da tradição popular que

3 Mulheres cultas da nobreza que reuniam em seus salões a elite intelectual da época, são em parte as

responsáveis pela disseminação do gosto pelos contos de fada.

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eram contadas (alguns afirmam que por sua mãe, outros que pela babá para seu filho). E foi

imortalizado por criar uma literatura de inspiração popular que conquistou crianças e adultos.

Contemporâneo de La Fontaine e seu opositor na “Querela dos Antigos e

Modernos”, Charles Perrault (tal como aconteceu com o genial fabulista) entra para

a História Literária Universal não como poeta clássico (eleito para a Academia

Francesa em 1671), mas como o autor de uma literatura popular, desvalorizada pela

estética de seu tempo e que, apesar disso, se transforma em um dos maiores sucessos

da literatura para a infância. (COELHO, 1991, p.84)

Com quase 70 anos, Perrault publicou uma coletânea de contos de fada intitulada

Histórias ou contos do tempo passado com moralidades (1697) - o que remete à “moral da

história” presente ao final de cada conto - e que foi posteriormente chamado de Histórias da

Mamãe Gansa, título com o qual ficou conhecido em todo o mundo.

De acordo com Nelly Novaes Coelho, a Mamãe Ganso era uma personagem dos

velhos contos populares, muito familiar entre os franceses. Sua função era contar histórias

para os seus “filhotes fascinados”. Com o passar do tempo, o nome da Mamãe Ganso passou a

designar não a personagem dos contos populares, mas uma velha contadora de histórias.

Narradas de forma simples, porém elegante, eram adaptações literárias de narrativas

orais que traziam ao final alguns conceitos morais em forma de verso. Essa é uma prática e

uma preocupação que acompanham a literatura infantil desde seu surgimento inserindo um

teor pedagógico ao seu caráter lúdico.

Embora tenhamos visto que neste período começou a ser delineada uma concepção de

infância, Perrault ao passar as histórias para o papel retocou-as para satisfazer ao gosto dos

frequentadores dos salões da corte francesa acrescentando detalhes descritivos e diminuindo

trechos que revertessem a práticas rituais da cultura pagã ou mesmo que tivessem uma

referência muito direta à sexualidade humana. Perrault retocou os contos, deixando algumas

críticas de maneira velada. Devemos lembrar que os camponeses não precisavam de códigos

para falar de tabus, pelo contrário, “do estupro e da sodomia ao incesto e ao canibalismo.

Longe de ocultar sua mensagem com símbolos, (...) retratavam um mundo de brutalidade nua

e crua”. (DARNTON, 1986, p.29)

Os Contos da Mamãe Gansa traçam, por um lado, uma representação da violência

contra a mulher, pela submissão ao pai, ao marido, ou mesmo à sociedade tudo isso ladeado

por um cenário dos costumes da época transportados para um tempo “além do tempo”. Por

outro lado, mostra a possibilidade de subversão de uma estrutura injusta ao desenvolver

personagens que anseiam traçar o próprio destino, capazes de realizar planos e ações, às vezes

de maneira independente, às vezes com a mediação de entes mágicos.

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Esses contos serão difundidos por toda Europa, em especial na Alemanha, onde

servirão como uma das bases da compilação feita pelos Irmãos Grimm que colocarão de vez

os contos de fada no gosto do público, apresentando uma nova concepção de sociedade

(romântica, burguesa, cristã, e acima de tudo, germânica).

A história da Alemanha mostra um país que esteve desde sempre envolto em grandes

turbulências e guerras. As numerosas transformações no mundo capitalista ocidental que

tiveram início no século XVII atingirão seu ápice no século XIX e serão culminantes na

construção de uma nação alemã de fato.

A partir da segunda metade do século XVII, como visto, houve uma grande

transformação na forma do homem ver e interagir com o mundo a sua volta. No campo

econômico e social as mudanças se deram de modo gradual, acentuando-se no século XVIII.

A consolidação da burguesia, a mecanização da produção e o renascimento urbano, a

Revolução Industrial, juntamente com a Independência dos Estados Unidos e a Revolução

Francesa vieram dar um novo rumo ao mundo ocidental.

A própria palavra “revolução” adquiriu um novo sentido. O que antes designava um

processo evolutivo muitas vezes associado à política, dando uma ideia de retorno, de

restauração a uma condição melhor, com a Revolução Francesa ganhou o status e ruptura,

passando a referir-se a um processo de transformações sociais, políticas e econômicas que

rompe com o passado e cria uma nova ordem.

Esse impacto revolucionário que se deu no mundo ocidental impulsionou a construção

de novas sociedades, novas formas de relações sociais e culturais, instituições, modos de vida,

etc., que de certo modo vivenciamos até os dias de hoje quando estamos passando por novas

revoluções.

Os elementos teóricos para a construção desse novo conceito, que despontou com a

(segundo Hobsbawm) “era das evoluções”, estavam presentes nas obras de alguns pensadores

iluministas. Eles proclamavam a criação de uma nova ordem e de instituições que

assegurassem justiça, liberdade e felicidade. Se o rompimento com o passado enfrentasse

resistência, então o uso da violência seria um caminho legítimo.

Parece que a ideia de uma revolução armada nos países industrializados para se chegar

a uma nova ordem político-econômico-social, perdeu força desde meados do século passado.

A expansão das ideias revolucionárias, de inspiração iluminista, com a proposta de um

estado-nação constituído pela soberania popular em oposição aos reinos dos príncipes

absolutistas, fez com que começassem a surgir novos movimentos políticos organizados pelos

setores urbanos e operários da população.

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A expansão do Império Napoleônico representou para toda a Europa o perigo de

disseminação das ideias iluministas presentes na Revolução Francesa. Mesmo com a aliança

de todos os países absolutistas contra o Império, a Europa se viu num quadro bastante

conturbado durante todo o século XIX, repleto de revoltas e revoluções que só contribuíram

para a difusão e a consolidação do liberalismo.

A monarquia francesa tinha sido derrubada por uma insurreição, a república

proclamada e a revolução europeia tinham iniciado. Tem havido um bom número de

grandes revoluções na história do mundo moderno, e certamente a maioria bem-

sucedidas. Mas nunca houve uma que tivesse se espalhado tão rápida e amplamente,

se alastrado como fogo na palha por sobre fronteiras, países e mesmo oceanos. Na

França, o centro natural e detonador das revoluções europeias, a república foi

proclamada em 24 de fevereiro. Por volta de 2 de março, a revolução havia ganho o

sudoeste alemão; em 6 de março a Bavária, 11 de março Berlim, 13 de março Viena

e quase imediatamente a Hungria; em 18 de março Milão e, em seguida, a Itália (...)

Em poucas semanas nenhum governo ficou de pé numa área da Europa que hoje é

ocupada completa ou parcialmente por dez Estados, sem contar as repercussões em

um bom número de outros. (HOBSBAWM, 1998, p.30)

Como nos mostra Hobsbawm, a Revolução Francesa, ao destruir o Antigo Regime,

serviu de catalisador para as mudanças que atingiriam toda a Europa. Juntamente com os

movimentos liberais, as propostas e ideais do nacionalismo também se expandiram e se

fortaleceram em diversos países europeus. Esse forte sentimento de nacionalidade se

expressou de maneira determinante, sobretudo nos processos de unificação da Itália e

Alemanha, países constituídos por vários Estados independentes.

As manifestações mais importantes verificaram-se em Itália e Alemanha. Em Itália,

onde o “Risorgimento” estava ligado, simultaneamente, ao iluminismo do século

XVIII e à influência da Revolução e do Império, os primeiros movimentos - jogadas

de força rapidamente reprimidas – deveram-se entre 1820 e 1830, às organizações

secretas dos carbonari. A segunda fase ficou marcada pela personalidade romântica

de Giuseppe Mazzini (...) Mazzini procurava levar adiante uma Itália unitária e

republicana. (...) O movimento nacionalista alemão era mais complexo. Uma das

correntes mantinha a tradição liberal oriunda da Revolução Francesa; mas no

próprio meio dos patriotas alemães – reunidos na associação estudantil

“Burschenschaft” - as correntes liberais se misturavam a uma aspiração mais

especificamente alemã: a liberdade, não do indivíduo mas do Volkstum, entidade

coletiva revelada por um Estado forte. (CARPENTIER & LEBRUN, 1993, p.295)

Na Itália e na Alemanha, o provincianismo e a apatia das primeiras décadas do século

XIX foram substituídos pela vontade de construir uma nação forte e una para seus respectivos

povos. Já em inícios da segunda metade do século, os estadistas europeus deixam de defender

a antiga ordem e adotam os ideais nacionalistas.

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Em meados do século XIX, a Confederação Germânica criada pelo Congresso de

Viena para tomar o lugar do antigo Sacro Império Romano-Germânico era formada por mais

de trinta estados liderados pela Áustria que viria a ter sua liderança ameaçada pela Prússia,

que se tornou um estado organizado e forte que se beneficiava do desenvolvimento do Vale

do Ruhr4.

Apesar da fragmentação, os estados germânicos tiveram um rápido desenvolvimento

econômico graças à chamada Zollverein (liga aduaneira criada em 1834 e liderada pela

Prússia – que deliberadamente deixou de fora a participação austríaca, seu maior adversário).

Entre 1860 e 1870 surgiram inúmeros distritos industriais e centros urbanos. As minas de

ferro e carvão permitiram o crescimento da indústria siderúrgica, metalúrgica e mecânica. Ia-

se construindo um poderoso complexo industrial.

Desde a década de 1830 havia um movimento liberal que buscava unificar alguns

Estados alemães. Em março de 1848, com as notícias da Revolução Francesa, explodiu em

Berlim um levante contra a Coroa. Em 1861, o rei Guilherme I da Prússia convidou para seu

primeiro ministro Otto von Bismarck; um político antiliberal e monarquista declaradamente

favorável a unificação dos povos germânicos e que pretendeu usar a força para realizá-la.

A Confederação da Alemanha do Norte reuniu então 21 Estados em redor da

Prússia. Faltava abater o particularismo dos reinos católicos do Sul, em particular da

Baviera de Luís II. Bismark provocou então deliberadamente a França a fim de

suscitar um movimento patriótico na Alemanha. Napoleão III caiu na armadilha. A

vitória da Confederação sobre a França conduziu à proclamação do Império Alemão,

a 18 de janeiro de 1871, na Galeria dos Espelhos do Palácio de Versailles.

(CARPENTIER & LEBRUN, 1993, p.297)

Bismarck achava que a unidade dos Estados Germânicos deveria estar sob liderança

prussiana, o que significava entrar em enfrentamento direto com a Áustria. E após explorar os

conflitos internacionais conquistaria seu intuito vencendo sucessivamente Dinamarca, Áustria

e, como citado por Carpentier e Lebrun, a França.

Esses ideais nacionalistas que inspiraram o povo a pegar em armas na busca de

condições de vida mais justas econômica e socialmente, e da construção de nações, também

inspiraram inúmeros eruditos e literatos como no caso dos Irmãos Grimm (parte a nos

interessar) que “buscando encontrar as origens da realidade histórica nacional, os

pesquisadores encontraram a fantasia, o fantástico, o mítico... E uma grande Literatura Infantil

surge para encantar crianças do mundo todo”. (COELHO, 1991, p.140)

4 Região que com a Revolução Industrial teve grande desenvolvimento mas minas de carvão gerando muita

riqueza.

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Jacob lecionava literatura alemã na Universidade de Göttingen. Wilhelm foi sub-

bibliotecário nessa mesma universidade, assumindo mais tarde também o cargo de professor

de literatura alemã. Mas, por motivos políticos, Jacob é demitido do cargo de professor após

protestar contra o fim da Constituição de Hanover e Wilhelm em solidariedade ao irmão

também abandona a Universidade. Jacob sempre teve sua atenção dirigida a tudo que pudesse

traduzir o chamado “espírito do povo”, com um olhar especial para as tradições populares.

Passa, então, juntamente com o irmão a dedicar-se às publicações e estudos de história,

literatura e linguística. Juntos realizam importantes pesquisas no campo da tradição popular

tornando-se precursores dos estudos sobre cultura popular.

A proposta dos Irmãos Grimm, guardadas as distâncias de tempo e lugar, foi

seguida por especialistas e escritores no mundo todo: reconheceu-se a importância

da cultura e das tradições populares, recolheram-se contos populares de tribos

indígenas e dos mais variados grupos e países de todos os continentes, reunindo-se o

vasto acervo de tradições das diferentes culturas do mundo. (GRIMM, 2002, p.08)

Os Irmãos Grimm tiveram conhecimento dos contos de fada por várias frentes. Alguns

eram as versões já adaptadas por Perrault, portanto versões afrancesadas, que lhes foram

passadas através de Jeannette Hassenpflug (amiga íntima da família Grimm).

Os huguenotes trouxeram seu próprio repertório de contos para a Alemanha, quando

fugiram da perseguição de Luís XIV. Mas não os recolheram diretamente da

tradição popular oral. Leram-nos em livros escritos por Charles Perrault, Marie

Cathérine d’Aulnoy e outros, durante a voga dos contos de fadas nos círculos

elegantes de Paris, no fim do século XVII (...) não eram nem um pouco alemães nem

muito representativos da tradição popular. (DARNTON, 1986, p.24)

Outros contos foram retirados de casos ocorridos no passado local e que tiveram seu

enredo completamente reinventado por eles, a fim de transformar estas histórias em contos

passíveis de serem transmitidos às crianças; como é o caso de Hänsel und Gretel (João e

Maria) que foi contado a eles por Dortchen Wild (noiva de Wilhelm) que trata de um

horripilante caso policial que foi vastamente noticiado.

Sempre existiu entre os alemães uma grande preocupação com sua identidade nacional

e a visível busca por uma unidade cultural que vemos ao longo da história dos povos

germânicos desde o período de suas lutas com o Império Romano e atravessou todos os

períodos de sua história. Temos, por exemplo, Richard Wagner, compositor alemão, que na

falta de um grande épico que declarasse a grandeza de seu povo, a exemplo da Eneida de

Virgílio para os romanos, compôs o libreto e a ópera Canção dos Nibelungos (baseado em um

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Edda escandinavo) a fim de preencher esta lacuna na nobreza da identidade de seu povo. Com

os Irmãos Grimm não seria diferente.

Fato é que eles não poderiam publicar os contos afrancesados como foram trazidos

pelos huguenotes citados anteriormente; “Jackob e Wilhelm empenharam-se na elaboração de

uma obra patriótica” (GRIMM, 2002, p.08). Então readaptaram as histórias para que fossem

revestidas de uma roupagem mais alemã e transmitissem os ideais burgueses em voga na

época. Afora isto, essas alterações também foram motivadas em parte pelas inclinações

puritanas de Wilhelm, em parte por razões comerciais, pois as crianças começavam a ser

vistas como um público em potencial.

Influenciados pelo ideário cristão que se consolidava na época romântica e cedendo

à polêmica levantada por alguns intelectuais, contra a crueldade de certos contos, os

Grimm, na segunda edição da coletânea, retiraram certos episódios de demasiada

violência ou maldade, principalmente aqueles que eram praticados contra crianças.

(COELHO, 2008, p.29)

Os Irmãos Grimm publicaram dois volumes da coletânea Kinder und Hausmärchen

(Histórias da Criança e do Lar), em 1812 e 1815 respectivamente. Foi depois da publicação de

seus trabalhos que surgiu uma literatura infantil de fato, com autores do mundo todo

escrevendo para crianças. E atualmente, traduzido para mais de 160 idiomas, os Contos de

fada figuram na posição de obra da literatura alemã mais conhecida no mundo.

Os Irmãos Grimm são vistos pelo povo alemão como dois importantes “heróis

culturais” da pátria. Ainda hoje dizem que em toda casa genuinamente alemã há pelo menos

dois livros: uma Bíblia e uma edição dos Contos de fada dos Irmãos Grimm.

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V. PORTUGAL:

A DESCOBERTA E ACEITAÇÃO

DOS CONTOS POPULARES

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A Península Ibérica, em sua era pré-cristã, teve grande importância econômica e

cultural em razão do encontro de vários povos, dentre eles os iberos, celtas, fenícios, gregos e

cartagineses que estabeleceram colônias comerciais em diversos portos de seu território.

Graças à intenção dos cartagineses de tomarem posse da península, os celtibéros (legítimo

povo da península) buscaram auxílio dos romanos para defender seu território, que por fim

acabou anexado ao Império Romano.

No século V, vários povos bárbaros invadiram a península, destruindo a organização

política e administrativa dos romanos; contudo, esses povos bárbaros, embora tenham

assumido o controle político, foram abarcados pela força cultural romana. Antes de se

“civilizarem”, muitos dos povos que circundavam o Império Romano viviam organizados por

tribos e tinham um grau de civilização bastante rudimentar. Os romanos trouxeram o cultivo

da vinha, da oliveira, do trigo e de vários frutos. Surgiram processos industriais como as

olarias, as minas e as forjas. Além de ter-se disseminado a língua. Os povos conquistadores da

península acabaram por abraçar todo o escopo da cultura romana sofrendo um processo de

romanização.

No século VIII quase toda a península ibérica passou para o domínio dos árabes

muçulmanos, com exceção apenas de uma região das serras asturianas, onde se refugiou

Pelágio, príncipe godo que iniciou as lutas de reconquista que só iriam se concluir no século

XV.

O processo de reconquista resultou no nascimento de vários pequenos reinos que iam

crescendo a medida que a reconquista era bem sucedida. No decorrer da Guerra de

Reconquista surgiram os reinos cristãos de Leão, Castela, Navarra e Aragão, que

posteriormente dariam origem aos Estados nacionais de Portugal e Espanha.

Nas terras onde se ia desagregando o domínio sarraceno ou naquelas que os cristãos

conquistavam não se “restaurou” propriamente uma estrutura política anteriormente

existente. Em vez disso, nasciam poderes representados por chefes locais entre os

quais se estabelecia uma hierarquia nem sempre bem definida, intercalada de

episódios de submissão e de rebeldia. (SARAIVA, 1987, p.41)

Foram a partir de três núcleos distintos que se formaram os novos países da península:

o asturiano que deu origem ao reino de Oviedo, posteriormente chamado de Leão e o condado

de Castela; o pirenaico de onde se originaram os reinos de Navarra, Aragão e alguns condados

mais ou menos independentes; e o de Barcelona.

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Em 1072, Afonso VI, rei de Leão, a quem pertencia o Condado Portucalense (faixa de

terra que ia do rio Lima ao norte até a região de Coimbra ao sul), tornou-se também rei de

Castela. Sob seu comando foram retomados novos territórios até então sob domínio mouro.

Para tal o rei contou com o apoio de Henrique de Borgonha, valente cruzado, nobre do ducado

de Borgonha, a quem foi oferecido o governo do Condado Portucalense como dote por seu

casamento com Teresa.

Após a morte de Henrique de Borgonha, e depois de derrotar sua mãe D. Teresa na

Batalha de Mamede, seu filho Afonso Henriques assume o poder que é facilmente aceito por

Afonso VII de Leão, seu primo. Mesmo que no princípio de seu reinado, tenha se submetido a

Afonso VII, Afonso Henriques começou a usar o título de rei depois de sua vitória sobre os

mouros em Ourique, em 1139.

Em 1140 começa o caudilho português a intitular-se rei (existe um documento de

1139 com este título, mas há dúvida fundada quanto à exatidão da data). (...) O título

de rei era uma dignidade pessoal que não implicava por si a independência do reino.

(SARAIVA, 1987, p.47)

Foi apenas em 1143, após um período de intensas batalhas, na Conferência de Zamora

que a independência do condado é reconhecida, passando a ser um reino autônomo chamado

Portugal, tendo Afonso Henriques recebido o título de rei de Portugal.

A reconquista só foi devidamente completada em fins do século XV com a libertação

de Granada em 1492. Contudo, com relação aos territórios pertencentes a Portugal, Algarve

(último reduto sob dominação moura ao extremo sul de Portugal) foi reconquistado em 1249,

quando os sucessores de Afonso Henriques persistiram na luta contra os mouros,

consolidando, além da conquista do território, a primeira dinastia portuguesa: a dinastia de

Borgonha.

No século XIV a Europa vive uma nova realidade econômica, passando por uma crise

econômica e social de enormes proporções, marcadas por guerras, rebeliões, fome e

epidemias. A expansão comercial e urbana que teve seu início no século XI havia criado uma

nova perspectiva dentro da sociedade feudal. As cidades tornaram-se mais importantes e as

pessoas já não viviam isoladas nos feudos ou nas florestas. Era crescente o número de

trabalhadores assalariados, a circulação de mercadorias era mais rápida e a moeda vinha se

firmando como instrumento de troca, deixando o escambo de lado.

É neste cenário que surgem as grandes navegações, que vieram como resposta à

necessidade de resolver as crises existentes, sem comprometer o avanço do mercantilismo

capitalista em desenvolvimento.

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... a propósito do movimento social, protagonizado pelos europeus, iniciado no

século XV pelos portugueses, seguidos pelos outros ibéricos, e voltado para a

exploração dos vários continentes. Este movimento tem recebido diferentes

designações. Assim, enquanto o rei D. Manuel de Portugal, como é sabido, se

intitulava “rei de Portugal e dos Algarves daquém e dalém mar em África, senhor da

Guiné, da navegação, comércio e conquista de Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia”.

(TENGARRINHA, 2000, p.57)

Portugal foi o pioneiro da expansão marítima europeia em meados do século XVI. Os

portugueses haviam construído um grande império; o primeiro na verdade a assumir

proporções globais, com terras na América, África e Ásia. Neste período Portugal

transformou-se em uma nação empreendedora, baseada no comércio. Uma nação que se

mostrou moderna desde seu nascimento e que se colocava como constante aliada do papado,

reconhecendo a matriz cristã e latina da sua tradição histórica, formada a partir das várias

culturas que enriqueceram seu convívio no período medieval.

As navegações marítimas e a ocupação de novas terras deram início a um novo

momento histórico que coloca todos os cantos do mundo em contato. A colonização na

América fez surgirem sociedades com novas bases culturais. Na América portuguesa (Brasil),

a colonização lançou as bases de uma nova sociedade, mestiça e repleta de relações

contraditórias nas quais brancos, índios, negros, senhores, escravos e libertos construíram

diferentes situações sociais durante o período colonial de nossa história.

Portugal, no século XVI, passa por transformações de ordem econômica, política e

religiosa. Já em seu início, o período áureo construído ao longo do século anterior deu lugar

ao que muitos consideram como o período mais negro de sua história, com crises econômicas,

o desaparecimento de D. Sebastião e a união da península sob bandeira espanhola.

O primeiro rebate da crise deu-se ainda no reinado de D. Manuel, em 1515. Depois

da conquista de Azamor, o rei quis ampliar as bases portuguesas no litoral

marroquino, talvez como preparativo para a conquista de fez. (...) As dificuldades

continuam nos anos seguintes. A pressão moura sobre as fortalezas portuguesas

aumentava e o emprego da artilharia tornava inútil a bravura dos defensores. (...) As

dificuldades econômicas acentuam-se progressivamente desde os fins do reinado de

D. Manuel até à perda da independência, em 1580. (SARAIVA, 1987, p.165)

A expansão marítima e a intensificação do comércio do século passado trouxeram uma

imagem de grandeza a Portugal. Enquanto Lisboa se tornava uma das capitais de importância

comercial, a agricultura ia sendo abandonada. As colônias não davam um retorno imediato do

investimento da Coroa, e com o declínio do comércio de especiarias da Ásia, a economia

portuguesa entra em franca decadência.

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O ponto culminante da crise que se instauraria em Portugal levando a perda de sua

independência se dá com o desaparecimento de D. Sebastião em Alcácer-Quibir (África) em

1578.

O pretexto para uma grande expedição guerreira surgiu em 1576, com a conquista

do trono de Marrocos por um mouro apoiado pelos turcos. Segundo o rei, isso

significava que o sultão da Turquia ia dominar todo o Norte de África, o que seria

fatal para a Península e para toda Europa cristã. Em 1578, om vinte e quatro anos,

embarcou para a África com todas as forças que conseguiu reunir: cerca de

dezessete mil combatentes, dos quais cinco mil eram mercenários estrangeiros.

Recusando-se a ouvir os conselhos dos capitães experimentados nas guerras de

África, afastou-se da costa e dirigiu-se ao encontro do exército do rei de Marrocos,

que encontrou nas proximidades de Alcácer-Quibir. A batalha terminou por um

enorme desastre. Metade dos soldados foi morta, a outra metade aprisionada. O

próprio rei morreu. (SARAIVA, 1987, p.169)

D. Sebastião, dotado de um temperamento profundamente religioso, conduziu seus

exércitos a uma aventura que terminou com a derrota em Alcácer-Quibir e seu

desaparecimento. Não havendo herdeiros para o trono português, Filipe II, então rei de

Espanha, reclamou o trono para si, unificando a península em um único reino. Tal situação se

manteve ate 1640, quando Portugal recuperou sua autonomia no processo conhecido como

Restauração.

O Estado português sempre recebeu forte influência da Igreja Católica em sua política

e cultura. Razões que levaram no século XVIII o Marquês de Pombal a iniciar o processo de

modernização do país, impondo limites ao poder e influência da Igreja. Foi no período de

dominação espanhola que esta influência pode ser vista de maneira mais explícita. A

Companhia de Jesus assumiu o monopólio do ensino e a censura eclesiástica tornou-se mais

marcante impedindo qualquer avanço científico ou cultural na península.

Era um momento histórico em que a Europa se dividia em dois blocos ideológicos. De

um lado temos uma Europa católica, conservadora e subserviente ao Papa. De outro lado, uma

Europa reformista, revoltada contra o domínio de Roma e voltada às evoluções científicas e

culturais. Enquanto em Portugal e Espanha temos um solo fértil à dominação da Santa

Inquisição, que em nenhum outro país teve a mesma força de manipulação e controle do povo

como na península, mantendo-a um reduto da cultura medieval, em países como Inglaterra

registrava-se um momento de efervescência científica com as pesquisas de Galileu, Francis

Bacon e Newton.

Portugal continua a ser um dos pedaços atrasados de uma Europa capitalista

altamente desenvolvida. Sua própria localização, na periferia geográfica do

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continente, parece sinalizar de há muito um insuperável distanciamento dos centros

da prosperidade europeia. (TEIXEIRA, 2000, p.35)

A partir daí, Portugal sempre seria um país culturalmente “à parte” do restante da

Europa, considerado por alguns um país culturalmente atrasado, por outros, apenas

conservador em seus valores culturais, demonstrando resistência às mudanças e revoluções

que vinham ocorrendo no restante da Europa.

Esse período de grandes transformações políticas, sócias e econômicas porque passou

Portugal também teve sua reverberação cultural. As grandes navegações e os descobrimentos

estão na origem de diversas narrativas que tiveram grande circulação ao longo dos séculos

XVII e XVIII. Temos épicos e narrativas em prosa e verso que encantaram nobres e plebeus,

mas que tiveram que dividir espaço com contos de origem italiana e francesa que

estimulavam o consumo popular e que levariam à popularização e recolha dos contos orais

portugueses no século XIX.

Teófilo Braga e Adolfo Coelho são os dois maiores responsáveis pela compilação do

conto popular português. Outros nomes como Consiglieri Pedroso e José Leite de

Vasconcelos também devem ser considerados entre os que buscaram, de maneira direta ou

indireta, encontrar as narrativas populares.

Teófilo Braga foi poeta, filósofo, folclorista, crítico e historiador literário. Teve grande

influência e atuação na sociedade de seu tempo. Graças a uma forte paixão pela oratória,

ingressou no curso de Direito na Universidade de Coimbra. Em 1972 assumiu o cargo de

professor de Literaturas Modernas do Curso Superior de Letras. Teófilo tinha grande interesse

na modernização social e política, crendo ser esse o melhor caminho, renunciou ao

catolicismo e entregou-se ao espírito renovador de um livre-pensador. Fortemente

influenciado pelo germanismo, dedicou-se a investigação das origens do povo baseando-se na

análise dos elementos tradicionais: contos, mitos, lendas, costumes e, entre eles, as narrativas

orais.

Suas pesquisas levaram à publicação de Contos Tradicionais do Povo Português

(1883). Ele defendia a importância cultural do conto popular português como registro cultural,

a exemplo dos Irmãos Grimm, a quem seguiu os passos.

(...) quis trazer à luz a antiga cultura e literatura nacional e, na defesa de alguns dos

conceitos fundamentais da sua teoria literária – os conceitos de tradição, gênio,

nação, raça e ciência -, o exemplo de Jacob Grimm é repetidamente lembrado.

(CORTEZ-MESQUITA, 2001-2002, p.81)

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Teófilo Braga era bastante sensível ao trabalho dos Irmãos Grimm a quem considerava

que o trabalho soube reconstruir o “sistema religioso da antiga raça germânica obliterado sob

a cultura romana e pela assimilação católica”. (CORTEZ-MESQUITA, 2002, p.26)

Empenhou-se, pois, em fazer o mesmo. Estudou as origens, permanência e transmissão dos

contos populares, acreditando que são narrativas espontâneas, documentos muito importantes

de uma realidade étnica, social e psicológica que provém de um fundo primitivo comum ao

homem.

Seu trabalho com a compilação dos contos populares obteve reconhecimento em

Portugal e no exterior, atravessando as fronteiras europeias.

Adolfo Coelho também foi professor do Curso Superior de Letras e é considerado o

precursor dos estudos antropológicos em Portugal. Adolfo Coelho e a maioria dos intelectuais

de sua época defendiam a ideia de que Portugal embarcasse no “trem do desenvolvimento

cultural” que atravessava a Europa. Para isso era importante que se inteirassem do que ocorria

fora de suas fronteiras. Para tal, ele estudou vários idiomas, e seu rápido desenvolvimento no

idioma alemão, acrescido da influência germanista que se vinha apresentando de modo cada

vez mais intenso, levou-o a inteirar-se das questões relacionadas às tradições do povo e seus

costumes, defendendo a necessidade de pesquisas de campo e dos estudos relacionados às

tradições em diversas publicações.

Em 1879 publica Contos Portugueses, primeira coletânea de contos tradicionais

portugueses seguindo o modelo dos Irmãos Grimm. De fato, ele nunca negou a influência

germânica de seu trabalho, e dedicando-se a discorrer sobre as origens, as transmissões e

principalmente, sobre a existência de várias versões de uma mesma narrativa. O

reconhecimento da existência de contos que traziam arraigados aspectos fundamentais da

cultura portuguesa, não impediu que Adolfo Coelho reconhecesse a existência de uma relação

com os contos de outros povos. Disto decorre a importância de se verificar a fundo a

transmissão desses contos, verificando a intersecção entre eles, a forma como foram sendo

adaptados e as variantes que foram se desdobrando a partir dos “originais”.

Consiglieri Pedroso, outro importante nome do processo de compilação dos contos

populares, formou-se no Curso Superior de Letras, assumindo posteriormente o cargo de

professor de História Geral, tendo sido o primeiro diplomado no curso a conseguir tal

estatuto. Era fluente em quase uma dezena de idiomas, dentre eles italiano, francês, alemão,

russo, sueco e dinamarquês.

Sua formação em história está profundamente arraigada em suas obras, contudo, o

aspecto mais técnico de sua formação não o impediu de enveredar pelo universo maravilhoso

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dos contos populares e da mitografia, presente em suas obras Contos Populares Portugueses e

Estudos de mitografia portuguesa.

Consiglieri defendia a importância de que a mitografia portuguesa valorizasse o conto

popular como aquilo que era: uma manifestação genuína da alma do homem popular

desprovida de artifícios, em linguagem puramente espontânea. Era preciso estabelecer linhas

de análise comparativa com o maravilhoso de outros povos.

As recolhas de textos a partir dos quais as teorias seriam elaboradas foram feitas ao

nível mais primitivo, mais próximo das origens. A par de valores linguísticos, iriam

revelar valores culturais básicos, crenças e costumes que em muitos casos iam

enraizar-se em mitos universais. Esta conclusão, de um alcance que na altura talvez

não fosse possível prever, só poderia ser tirada a partir de um estudo comparativo de

coleções semelhantes em vários países. (CONSIGLIERI, 2006, p.10)

A análise comparativa desses contos mostra a importância das diferentes versões dos

contos, que mostram as diferenças e semelhanças entre os diversos povos. Este aspecto foi

pouco estudado por Teófilo Braga e Adolfo Coelho, que se dedicaram mais a compilação e

análises do contexto cultural dentro das fronteiras do reino.

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VI. BRASIL:

OS CONTOS DE FADAS NOS TRÓPICOS

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A já mencionada crise econômica seguida das mudanças sociais e culturais ocorridas

na Europa, como a consolidação do processo de urbanização, a instauração da moeda como

meio universal de troca, a ampliação e consolidação do comércio, o aumento na taxa de

natalidade por ocasião da conscientização do homem quanto às condições de saúde, levaram

as nações a se aventurarem na busca de novas terras e novos mercados e mercadorias. E da

expansão marítima e consecutivo processo de colonização surgiram as nações americanas,

originárias de povos como portugueses, espanhóis, franceses, ingleses, holandeses. Dentre

elas o Brasil com todo seu processo de miscigenação cultural.

Em finais do século XV, Vasco da Gama contorna o continente africano chegando à

cidade de Calicute e concretizando o sonho português de estabelecer uma rota marítima para

as Índias. Foi então organizada uma nova expedição com objetivo de consolidar a conquista.

Comandada por Pedro Álvares Cabral, a expedição partiu dos portos de Lisboa em 9 de março

de 1500 com treze navios e aproximadamente 1500 homens. Ao chegar à costa africana, a

esquadra desviou-se de sua rota em direção ao ocidente vindo alcançar a costa brasileira.

Ao desembarcar no Brasil, os portugueses se depararam com uma sociedade muito

distinta da que conheciam. A língua, hábitos, nudez e o modelo de organização social

causaram muito estranhamento naqueles europeus civilizados à moda romana em sua

formação, o que levou os portugueses a identificarem as sociedades locais como “primitivas”.

Pensaram os portugueses que os costumes desses povos mostravam a forma como o homem

viveu nos primórdios.

Também para os povos indígenas o encontro com os povos portugueses foi um

impacto bastante forte. Era difícil para eles compreenderem aqueles homens que chegaram

falando uma língua estranha, com vestimentas dos pés à cabeça, seguindo uma organização

social e hábitos que nunca tinham sido vistos por eles.

Já quanto aos nativos, vendo-se diante daquela multidão de homens saídos do mar

com todo aquele aparato técnico-militar e religioso, seu estranhamento,

provavelmente, foi bem maior. Não a ponto de perturbá-los demais. Levados à

presença de Cabral, os dois tupiniquins do sul da Bahia não se inibiram com o

cenário montado para a audiência, mostraram-se curiosos e receptivos e ainda

tiraram um bom sono a bordo, aproveitando o tapete estendido no chão... Essa

cordialidade inocente, porém, durou pouco. Também os indígenas à sua maneira

começariam a entender mais claramente tudo aquilo, a perceber que logo seriam

tratados como intrusos em sua própria terra. A cordialidade inicial, então, daria lugar

a uma resistência feroz. (TEIXEIRA, 2000, p.24)

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Inicialmente as sociedades indígenas locais foram classificadas como sociedades

incompletas pelos europeus que as viam como um povo na “infância social”. Logo, havia uma

recusa àquela sociedade diferente e estranha, e por isso uma grande dificuldade em aceitar o

“homem primitivo”. Por outro lado, o entendimento do europeu acerca da realidade indígena

proporcionou a imagem de Éden que vinha muitas vezes agregada a ideia da vida cotidiana do

indígena, com uma imagem de pureza. Eram grandes a atração e a fascinação do europeu em

relação aos índios, vistos então como “bons selvagens”. Foram essas concepções do europeu

acerca das sociedades indígenas que determinaram uma política de proteção ou de extermínio

do índio naquele período.

O deslumbramento com o espetáculo dos trópicos e o exotismo dos seus habitantes

não impediu, portanto, que os visitantes passassem imediatamente a enquadrar os

fatos na sua lógica natural: na condição de descobridores e novos senhores

começaram logo a idealizar formas práticas de aproveitamento da terra e de suas

riquezas. Ocupação, exploração, salvação... da terra e sua gente. Eram as palavras-

chave definidoras de um movimento que apenas seguira a trilha da expansão

territorial, econômica e política europeia dos séculos XV e XVI. (TEIXEIRA, 2000,

p.24)

A posição adotada pelos portugueses para a ocupação e exploração do Brasil nos

primeiros tempos da conquista se deu de acordo com as práticas econômicas dominantes na

Europa – o mercantilismo. Os portugueses basearam-se nessa orientação para decidir a melhor

forma de tirar proveito da terra recém-conquistada. Os povos nativos, sem conhecimento

comercial prévio, não tinham muito a oferecer em comparação ao comércio de especiarias

orientais. E os portugueses optaram por dar prioridade ao comércio com o Oriente que já era

certo e garantido do que lançarem-se a uma aventura incerta e sem garantias em terras

desconhecidas; o que explica o pouco interesse dado pelos portugueses às terras americanas

nas três primeiras décadas do descobrimento.

O descobrimento do Brasil não provocou, nem de longe, o entusiasmo despertado

pela chegada de Vasco da Gama à Índia. O Brasil aparece como uma terra cujas

possibilidades de exploração e contornos geográficos eram desconhecidos. Por

vários anos, pensou-se que não passava de uma grande ilha. (FAUSTO, 2009, p.41)

Nos primeiros tempos, o governo português se limitou a enviar ao Brasil expedições

para investigar o litoral, coletar as possíveis especiarias e combater os traficantes de outros

países. O produto de maior valor comercial que puderam encontrar foi o pau-brasil, madeira

da qual se extraía uma tinta vermelha utilizada para tingir tecidos.

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O pau-brasil não gerou atividade econômica sistemática nem colaborou para uma

ocupação efetiva do território, ainda que alguns franceses estivessem extraindo ilegalmente a

madeira. O valor adquirido com a comercialização do pau-brasil era bastante inferior ao valor

adquirido com o comércio das especiarias orientais, ainda assim, o governo português

estabeleceu o monopólio de sua exploração. Qualquer um que quisesse se dedicar a sua

extração deveria obter uma concessão da Coroa pagando uma taxa substancial.

Sua extração consistia na derrubada de árvores, feitas pelos índios que eram pagos por

escambo, com quinquilharias. Os exploradores limitavam-se a construir feitorias em trechos

do litoral, onde as árvores eram mais abundantes. Eram construções que serviam igualmente

de depósito e fortaleza contra os concorrentes, eram habitadas por um pequeno grupo de

pessoas que dependia inteiramente dos índios para sobreviver; terminada a extração essas

construções eram abandonadas.

O fornecimento do pau-brasil decorreu até o início do século XIX, contudo o comércio

diminuiu à medida que as matas se esgotavam e outras atividades econômicas iam sendo

instauradas.

O comércio das especiarias do oriente já não vinha dando os mesmos lucros, as

constantes invasões dos franceses que contrabandeavam o pau-brasil e os elevados ganhos dos

espanhóis com a exploração de metais na América, levaram o governo português a mudar sua

política com relação à colônia americana.

Até quando valeria a pena gastar centenas de milhares de cruzados de ouro em

esquadras e homens para trazer a noz-moscada, a pimenta e o açafrão “com mais

risco que proveito?” (TEIXEIRA, 2000, p.39)

Para resolver essa crise, o Brasil apresentava-se como uma opção bastante favorável.

Era bem localizada com relação às rotas marítimas, demorava menos tempo de viagem que

levava para chegar ao oriente, e havia potencial de lucros com as riquezas da terra, fatores

considerados pelo crescente interesse dos estrangeiros pela terra.

A ocupação das terras brasileiras lançou um novo desafio para o colonizador: tornar

rentável um território cujos habitantes não produziam nenhum excedente que pudesse ser

comercializado. Os povos que ocupavam o território eram nômades ou seminômades, não

praticavam nenhuma forma de comércio, obtendo tudo que precisavam da caça, pesca e

cultivo de alguns produtos agrícolas.

Era necessário criar uma forma de economia que produzisse bens passíveis de serem

comercializados na Europa com boa margem de lucro. O produto escolhido para fixar os

colonizadores portugueses na América foi a cana-de-açúcar. Adaptável ao solo e ao clima

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tropical e de alto preço nos mercados europeus, no século XVI o açúcar ainda era um produto

raro e bastante procurado pelos europeus, portanto, havia um bom mercado e altas

possibilidades de lucro. Portugal já tinha a experiência do cultivo da cana-de-açúcar, tendo

plantado com relativo sucesso na Ilha da Madeira e Cabo Verde.

O cultivo da cana-de-açúcar só atravessava um empecilho, a falta de mão-de-obra.

Primeiro tentaram usar o trabalho indígena, mas os índios não se submeteram facilmente às

condições exigidas pela nova atividade comercial. A extração do pau-brasil era feita de

maneira esporádica e livre, mas o cultivo da cana exigia dedicação mais rigorosa e ia de

encontro aos hábitos livres com os quais estavam acostumados. Dada a falta de colaboração

voluntária dos índios, os portugueses passaram a escravizá-los. Mas a escravidão indígena não

era aceita pela Igreja que pressionou o governo a fim de que tais práticas fossem extintas.

Atrás dos canaviais veio crescendo a escravaria. De início, os índios, escravos

nativos de obtenção barata, mas quase sempre arredios e hostis, suscetíveis a

doenças e difíceis de treinar. Depois, os cativos africanos, bem mais caros, mas a

quem os portugueses já conheciam, sabiam como obter e com quem tinham

aprendido a lidar com relativo êxito nas ilhas atlânticas e no próprio reino.

(TEIXEIRA, 2000. p.43)

Diante das dificuldades com o aprisionamento dos indígenas por sua declarada

hostilidade e interferência da Igreja, a mão-de-obra necessária foi substituída pelos cativos

vindos da África que geravam lucro adicional através do tráfico negreiro. Na década de 1550

chegaram os primeiros escravos africanos trazidos pelo próprio estado. Nas décadas seguintes

a entrada de escravos no Brasil cresceu de maneira vertiginosa. A utilização do negro não se

restringiu ao universo econômico, o ingresso incessante de negros como escravos no Brasil

até o século XIX marcou o cotidiano e o modo de vida da colônia, marcando de modo

permanente a história do país.

Durante quase todo o período colonial a organização política portuguesa se baseava

nas regras do Pacto Colonial, ou seja, o Brasil não possuía nenhuma autonomia política ou

administrativa. Todas as decisões eram tomadas pela e na metrópole; de Portugal vinham leis,

juízes, administradores, polícia, moeda, etc. Ainda assim na colônia surgiam interesses

políticos e econômicos internos diferentes dos de Portugal. Começou a se manifestar um

incessante conflito interno entre os grandes proprietários e a metrópole. Os proprietários

queriam assegurar uma autonomia ainda que relativa e liberdade para poder reforçar os

poderes locais em suas mãos.

A resposta para este conflito entre os grandes proprietários e a metrópole foi a

instauração do chamado Governo-Geral, como maneira de centralizar política e

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administrativamente o poder nas mãos da Coroa. Após ter permitido espaço para um relativo

fortalecimento político, o governo português achou por bem restringir seus poderes para que

não viessem a se tornar uma ameaça ao seu domínio.

Como os sucessivos governos-gerais não atingiram os resultados esperados, a

metrópole buscou novas alternativas e acabou por subdividir o governo-geral sob a

justificativa de que as dificuldades administrativas e grandes distâncias territoriais impediam

a possibilidade de sucesso de um único responsável pela administração geral. O Brasil passou

então a ter dois polos governamentais, um ao norte com sede em Salvador e outro ao sul com

sede no Rio de janeiro.

Ao mesmo tempo que a Coroa lusa mantinha uma política de reforma do

absolutismo, surgiram na Colônia várias conspirações contra Portugal e tentativas de

independência. Elas tinham a ver com as novas ideias e os fatos ocorridos na esfera

internacional, mas refletiam também a realidade local. Podemos mesmo dizer que

foram de revolta regional e não revoluções nacionais. Esse foi o traço comum de

episódios diversos como a Inconfidência Mineira (1789), a Conjuração dos Alfaiates

(1798) e a Revolução de 1817 em Pernambuco. (FAUSTO, 2009, p.113)

Durante e após o período do domínio espanhol, os séculos XVI, XVII e XVIII,

pipocaram no Brasil uma série de conflitos e revoltas que foram assumindo cada vez maior

importância até culminarem na Independência do Brasil. Uma consciência nacional ia

surgindo à medida que os interesses da sociedade local e da Metrópole se distanciavam.

Faziam parte desta nova consciência todas as esferas da sociedade, desde grandes

proprietários de terra até pequenos artesãos, intelectuais, soldados, todos desejando mudanças.

Na segunda metade do século XVIII, Europa e Estados Unidos difundiam os ideais

republicanos de liberdade e as mudanças econômicas e sociais resultantes da revolução

Industrial. No Brasil a realidade era de uma política retrógrada que mantinha a colônia

submetida ao absolutismo da Coroa. O contraste entre o imobilismo do sistema colonial e as

mudanças que ocorriam na Europa e Estados Unidos acabou por leva-lo à crise e

consequentemente ao fim.

Na raiz da problemática que levaria ao fim do sistema colonial, estavam a Revolução

Industrial que fez crescer a necessidade de novos mercados consumidores para seus produtos

manufaturados. Para que surgissem novos mercados era preciso que o pacto colonial fosse

quebrado para que as colônias pudessem comercializar diretamente com os mercados

europeus. A Independência dos Estados Unidos também teve forte influência, estimulando

outras colônias americanas a lutar por sua liberdade e adotar a república como forma de

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governo. Por último, a Revolução Francesa teve grande influência no processo que levaria à

Independência ao destruir a forma do Antigo Regime.

O governo português, como era de se esperar, resistiu ao fim do monopólio comercial

o máximo que pôde. Mas no início do século XIX, com a vinda da família real para o Brasil,

instauraram-se muitas transformações que levando o país a um processo evolutivo iniciou um

caminho de mão única que resultaria na Independência. Dentre as mudanças temos a abertura

dos portos, o Tratado de Navegação e Comércio, o novo formato administrativo constituído

por três ministérios (Guerra e Estrangeiros, Marinha, Fazenda e Interior), a Casa da Moeda e a

criação do Banco do Brasil.

Era a descolonização em marcha. Com essas medidas político-econômicas e

administrativas, Portugal perdia definitivamente o exclusivo comercial no Brasil. E

com a abolição do regime de monopólio, Portugal perdia também a base essencial

do controle político sobre sua colônia, passando a dividi-lo com a Inglaterra. (...) A

abertura dos portos, associada à presença inglesa, impulsionou a toda a atividade

produtiva, comercial e financeira. Da mesma forma que a presença da Corte

portuguesa garantia à colônia maior liberdade de movimentos. Em 1815, essa

crescente autonomia política e econômica ganhou um símbolo: o Brasil é declarado

“reino Unido” a Portugal. Embora tenha sido uma formalidade necessária para a

legitimação da participação portuguesa no Congresso de Viena (...) Na sua realidade

econômica e na sua nova identidade institucional, o Brasil já não era mais uma

colônia. (TEIXEIRA, 2000, p.119)

Após o término da guerra contra a França, a economia portuguesa estava arruinada.

Com o fim do pacto colonial e a abertura dos portos, Portugal perdia sua principal fonte de

renda. As pressões internas do governo português e o cenário político internacional exigiam o

retorno de D. João e da Corte para Portugal. Mas regressar a um país em franca decadência e

grave crise, definitivamente não estava nos planos no monarca. Para solucionar o impasse da

permanência do núcleo político-administrativo da metrópole na colônia, D. João eleva o

Brasil à condição de Reino Unido de Portugal e Algarves. Os desdobramentos políticos desse

ato puderam ser sentidos imediatamente. O Brasil adquiria maior autonomia política ao deixar

de ser colônia, dando mais um passo na direção da emancipação.

O regresso de D. João VI (agora rei de Portugal) à Europa e a intensão das Cortes

Portuguesas de instaurar um processo de recolonização do Brasil só fizeram aumentar o

desejo de independência por parte de segmentos da elite brasileiras pertencentes ao Partido

Brasileiro. A pressão sobre D. Pedro cresciam de ambos os lados: Portugal exigindo seu

retorno e os brasileiros pregando sua permanência no Brasil. E após as inúmeras pressões do

governo português, D. Pedro declara a Independência do Brasil em 7 de setembro de 1822,

tornando-se D. Pedro I.

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Terminava o longo processo de autonomia política e administrativa do país iniciado

com a vinda da Família Real e transferência da Corte para o Brasil em 1808 e comandado

pelas elites brasileiras e portuguesas que compunham parte da sociedade brasileira.

É em fins do século XIX, num Brasil independente, e com grande interesse pelo

folclore, que nasce Luís da Câmara Cascudo, um dos nossos maiores estudiosos das tradições

populares do Brasil. Iniciou sua carreira literária no jornal de seu pai, escrevendo críticas,

artigos e crônicas Formou-se no curso de direito, mas dedicou-se particularmente aos estudos

do folclore. Considerava que todas as manifestações tradicionais da vida coletiva do povo

deveriam ser estudadas com profundidade e a isso se dedicou, publicando vários livros que

hoje servem de base para qualquer estudo sobre as tradições populares do povo brasileiro.

Considerado um dos grandes mestres da pesquisa do folclore e da etnografia do

nordeste do país e também levando o título de descobridor moderno do Brasil, seu grande

mérito foi o de fazer um vasto trabalho de documentação das diferentes realidades do nosso

país. Seu trabalho representa uma importante compilação das narrativas populares que serve

de material essencial para os estudos folclóricos, literários, históricos, linguísticos,

antropológicos e sociológicos, no qual todo cientista social pode encontrar elementos úteis

para uma ampla variante de objetos de estudo.

Para Câmara Cascudo, o folclore é tradição e a tradição é a “ciência do povo”. Numa

das definições de folclore que formula, sintetiza a importância de seu estudo:

Todos os países do Mundo, raças, grupos humanos, famílias, classes profissionais,

possuem um patrimônio de tradições que se transmite oralmente e é defendido e

conservado pelo costume. Esse patrimônio é milenar e contemporâneo. Cresce com

os conhecimentos diários desde que se integrem nos hábitos grupais, domésticos ou

nacionais. Esse patrimônio é o FOLCLORE. Folk, povo, nação, família, parentalha.

Lore, instrução, conhecimento na acepção da consciência individual do saber. Saber

que sabe. (CASCUDO, 1967, p.09)

Sua obra Contos Tradicionais do Brasil representa um grande avanço no processo de

compilação observados no Brasil anteriormente. Câmara Cascudo coletou relatos orais

buscando sempre contextualizá-los cientificamente nas notas que vemos após cada conto com

dados sobre a aproximação com outras culturas, apresentando toda uma nova perspectiva para

o (re)conhecimento e entendimento das narrativas dentro de uma realidade cultural

globalizada.

Os 100 contos que compõem os Contos Tradicionais do Brasil são divididos em 12

categorias divididas da seguinte forma: Contos de encantamento (27), Contos de exemplo

(16), Contos de animais (15), Facécias (14), Contos religiosos (8), Contos etiológicos (7),

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Demônio logrado (4), Contos de adivinhação (3), Natureza denunciante (2), Contos

acumulativos (2), Ciclo da morte (1) e de Tradição (1).

Essa classificação segue a mesma linha do Sistema de Classificação Aarne-Thompson

(Capítulo II) que divide as narrativas populares em cinco grandes categorias com várias

subdivisões: Contos de animais (1-299), Contos comuns (300-1199), Facécias e Anedotas

(1200-1999), Contos de fórmula (2000-2399), Contos sem classificação (2400-2499).

Câmara Cascudo utiliza os motivos como base para sua sistematização, constituindo a

primeira classificação baseada em elementos formais, uma vez que a classificação de Sílvio

Romero, outro grande nome dos estudiosos folcloristas brasileiros, toma por base o caráter

étnico formador do povo brasileiro (contos de origem europeia, contos de origem indígena,

contos de origem africana e mestiça), a classificação apresentada por Cascudo assume a

posição de um importantíssimo referente para o estudo do conto popular brasileiro, uma vez

que “organizou segundo a temática, mais ou menos como no esquema Aarne-Thompson, com

isso tornando mais fácil aproximá-los das narrativas de outras procedências”. (MEREGE,

2010, p. 64)

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VII. OS CONTOS E SUAS

DIFERENTES FORMAS

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França, Alemanha, Portugal e Brasil apresentam diferenças bastante significativas

quanto à representação do ambiente, enredo, e mesmo na mensagem que tenciona passar

através dos contos; diferenças essas que se devem a aspectos, em muitos casos, mais culturais

que históricos, propriamente ditos.

Os contos franceses tendem a ser mais realistas que seus correspondentes germânicos.

Os enredos se passam num ambiente menos fantasioso, com traços que nos trazem a um

mundo mais real de um universo “intensamente humano, onde peidar, catar piolhos, rolar pelo

feno e jogar esterco um no outro são manifestações das paixões, valores, interesses e atitudes

de uma sociedade camponesa hoje extinta”. (DARNTON, 1986, p.77).

Também podemos encontrar essa perspectiva mais realista nos contos portugueses e

brasileiros que tentam traduzir uma realidade bastante cruel, mas que acima de tudo punem o

mal e premiam àqueles que trilham o caminho correto. Já as versões germânicas tendem mais

para o sobrenatural, são igualmente carregadas de violência, mas uma violência filtrada pelo

véu do impossível, do sobrenatural.

As narrativas germânicas possuem aspecto em geral muito trágicos e uma atmosfera

sombria, carregados de passagens perturbadoras em seus enredos. Trazem a visão das terras

devastadas num período pós-guerras e cheias de povoados pobres remanescentes da Idade

Média, carregadas dos medos e superstições medievais com todos os perigos de seres mágicos

prontos a interferir na vida dos homens (para o bem ou para o mal).

As narrativas portuguesas possuem em seus enredos, a miscigenação e o processo de

constantes aculturações porque passou na formação do povo português. Participaram desse

processo povos de diferentes culturas já citadas (iberos, celtas, fenícios, gregos, romanos,

bárbaros germânicos, mouros). Essa miscelânea cultural pode ser encontrada distribuída em

vários aspectos dos contos populares portugueses, como em As três cidras e A moura

encantada, carregadas de aspectos referentes às culturas muçulmana e espanhola, ou mesmo

em contos mais tradicionais como Chapeuzinho Vermelho que traz em seu enredo a mistura

de outros contos germânicos como Os sete cabritinhos e Mãe Holle.

Os contos brasileiros, por sua vez, não sofrem uma única influência, mas assimilam as

várias vertentes das versões europeias, ora dando maior relevância aos detalhes franceses, ora

aos detalhes alemães, ora as versões portuguesas, mas buscando dar pinceladas de “cores

locais” como veremos ao analisarmos os contos.5

5 No que tange aos contos brasileiros, nossa tradição popular pode ser baseada em três linhas de influência: europeia,

indígena e africana. Contudo, as narrativas orais originárias da cultura indígena se direcionaram para as lendas, e por

estarmos estudado as narrativas populares comumente chamadas de contos de fada, não trataremos da linha

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A maioria das narrativas descreve a realidade da vida dos camponeses se

desenvolvendo através de cenários como a aldeia, a floresta com seus perigos iminentes, as

estradas por onde se transitava e o trabalho interminável do dia-a-dia do camponês. Os contos

apresentam cenas de canibalismo, incesto, estupro, etc. Os contadores de história não

amenizavam a crueldade das narrativas ocultando-as através de símbolos. As narrativas

retratavam um mundo de brutalidade nua e crua.

7.1. O Pequeno Polegar, João e Maria e Chapeuzinho Vermelho

O Pequeno Polegar (AT700) trata de uma narrativa que descreve bem o dia-a-dia, a

violência contra a criança, a fome e a astúcia de uma personagem que salva a si e aos seus

companheiros.

O abandono das crianças pelos pais era uma prática bastante comum no período em

que vigoravam essas narrativas.

Era uma vez um lenhador e uma lenhadora que tinham sete filhos, e todos meninos.

O mais velho tinha só dez anos, e o caçula, sete. (...) Eles eram paupérrimos, e os

seus sete filhos os incomodavam muito, porque nenhum deles podia ainda ganhar a

vida. (...) Num ano deplorável e de grande escassez e fome, os pais resolveram

livrar-se dos filhos.

Certo dia, estando os meninos deitados, e o lenhador e a lenhadora ao pé do fogo,

aquele disse a esta de coração partido.

- Já deve ter percebido que não podemos mais alimentar os nossos filhos. Eu não

conseguiria vê-los morrer de fome diante de meus olhos, e, por isso, resolvi levá-los

ao bosque amanhã para que se percam, o que será muito fácil, pois enquanto eles

estiverem divertindo-se a empilhar galhos, só nos bastará irmos embora, sem que

nos vejam. (VERSÃO DE PERRAULT, segundo consta nos anexos, p.108)

Devemos considerar aqui que a Idade Média e principalmente o século XVII (época

em que Perrault compilou seus contos) foi um período terrível para os pobres. A Europa era

assolada pela peste e pela fome que dizimavam a população. Era um mundo rude de se viver.

A sobrevivência imperava. As famílias tinham muitos filhos e as crianças eram vistas por uma

perspectiva utilitária de força de trabalho. Morria uma criança, outra a substituía como força

produtiva. Por isso as crianças precisavam desde cedo serem capazes de colaborar com a

indígena. A presença africana na nossa cultura é substancialmente marcada, contudo, mesmo com toda sua força em

matéria de “maravilhoso”, não está presente no caminho que traçamos verificar.

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obtenção do sustento da família. E era uma prática bastante comum que as crianças fossem

abandonadas por seus pais quando estes não podiam mais arcar com seu sustento.

A versão de Perrault traz algumas particularidades, não encontradas nas outras versões

por nós selecionadas, como a imagem de um possível retardamento por parte do protagonista

que vai se mostrando infundado ao longo de todo o texto, já que ele dispõe de muita astúcia

para resolver os problemas que vão se apresentando.

O que os entristecia ainda mais era o fato de o caçula ser muito delicado e de não

dizer palavra: tomavam por retardamento mental o que era bondade da alma. Tinha

estatura muito pequenina, e quando veio ao mundo, não era maior do que um

polegar, por isso o chamaram de Pequeno Polegar. Essa pobre menino logo se

tornou o saco de pancadas da casa, e punham a culpa nele por tudo. No entanto, era

o mais inteligente e mais sagaz de todos os irmãos, e se falava pouco, em

compensação escutava muito. (VERSÃO DE PERRAULT, segundo consta nos

anexos, p.108)

São inúmeras as passagens nas quais o Polegar precisa se valer de sua inteligência para

salvar seus irmãos e a si mesmo, mostrando-se não só o mais esperto, bem como o mais

corajoso dentre os irmãos.

O Pequeno Polegar, que percebera que as filhas do ogro tinham coroas de ouro na

cabeça, e que temia que o ogro sentisse remorso por não ter degolado naquela noite

mesmo, levantou-se no meio da noite, e pegando os gorros dos irmãos e o seu, foi, a

passos de veludo os pôr na cabeça das sete filhas do ogro, depois de lhes tirar as suas

coroas de ouro, que pôs na cabeça dos irmãos e na sua, para que o ogro os tomasse

pelas suas filhas, e as suas filhas pelos meninos que ele queria degolar. A coisa deu

certo como ele havia pensado, pois o ogro tende despertado à meia-noite, se

arrependeu de ter deixado para o dia seguinte o que podia fazer na véspera.

(VERSÃO DE PERRAULT, segundo consta nos anexos, p.110)

Outra particularidade da narrativa de Perrault diz respeito à maneira como as mulheres

são retratadas. Ele descreve tanto a mãe das crianças como a mulher do terrível ogro como

possuidoras de bons sentimentos em relação às crianças, diferentemente da madrasta má e

insensível que costumamos encontrar tanto nas versões de O Pequeno Polegar como nas

versões de João e Maria (AT327A).

- Ai, meu Deus! Onde estarão os nossos pobres filhos? Eles teriam uma boa refeição

com o que restou. Mas foi você, Guilherme, quem quis que eles se perdessem. Bem

que eu falei que nos arrependeríamos. O que fazem eles agora naquela floresta? Ai,

meu Deus, talvez os lobos já os tenham comido! Você é mesmo muito desumano

por ter feito os seus próprios filhos se perderem dessa maneira. (...)

A lenhadora se desfazia em lágrimas:

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- Ai, meu Deus! Onde estarão agora os meus filhos, os meus pobres filhos?

(VERSÃO DE PERRAULT, segundo consta nos anexos, p.108)

A mulher, ao vê-los tão bonitinhos, pôs-se a chorar, e disse-lhes:

- Ai! Meus pobres meninos, onde vieram parar! Sabem que esta é a casa de um ogro

que come criancinhas? (VERSÃO DE PERRAULT, segundo consta nos anexos,

p.109)

Nos contos de Perrault é muito marcante a questão do feminino: o papel da mulher na

sociedade, a forma de se portar, o uso de artimanhas para se libertar e acima de tudo a questão

da violência contra a mulher que pode ser encontrada em todos os contos apresentados na

obra Contos da Mamãe Gansa. Em Cinderela temos uma pobre órfã que é maltratada por sua

madrasta e suas irmãs, em Pele de Asno uma filha que precisa fugir de um pai que a deseja.

No Pequeno Polegar também podem ser encontradas marcas da violência sofrida

pelas mulheres, na mãe que, como já vimos, é obrigada a abandonar seus filhos na floresta

(“era pobre, mas era mãe (...) e foi deitar-se aos prantos”); e na mulher do ogro que apesar de

bondosa, se submete a um marido forte, rude e cruel (como no conto Barba Azul)

A mulher do ogro, que acreditou que os poderia esconder do marido até a manhã do

dia seguinte, os deixou entrar e os levou para junto da lareira a fim de que se

aquecessem, pois havia um carneiro inteirinho no espeto para alimentar o ogro.

Quando começaram a se aquecer, ouviram bater fortemente três ou quatro vezes na

porta: era o ogro que estava de volta. Na hora, a sua mulher os escondeu debaixo da

cama e foi abri-la. (...)

Ah! – disse ele – Então queria enganar-me, maldita mulher! Não sei o que me

impede de comê-la também. Quem sabe você não se torne um animal velho. (...)

A boa mulher, muito assustada, logo lhe deu tudo o que tinha, pois aquele ogro era,

apesar de tudo, um bom marido, embora comesse criancinhas. (VERSÃO DE

PERRAULT, segundo consta nos anexos, p.109-110))

Podemos dizer ainda que o conto de Perrault apresenta dois finais, além da moral dada

como espécie de epílogo em forma de poema que é colocada depois do final de cada narrativa.

O Pequeno Polegar, uma vez de posse de todas as riquezas do ogro, voltou para a

casa do seu pai, onde foi recebido com muita alegria.

Há quem não concorde com essa última circunstância, e que pretenda que o Pequeno

Polegar nunca roubou o ogro; que na verdade ele nunca teve remorsos por tomar as

botas sete-léguas, pois o ogro as usava só para correr atrás de criancinhas.

Tais pessoas garantem que o sabem de fonte segura, e até mesmo por terem comido

e bebido na casa do lenhador. Garantem que o Pequeno Polegar calçou as botas do

ogro, e foi para a Corte, onde sabia que estavam preocupados com um exército que

estava a duzentas léguas de distância e com o resultado de uma batalha ocorrida. Ele

foi, dizem, procurar o rei, e disse-lhe que se desejasse, traria notícias do exército

antes do fim do dia.

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O rei lhe prometeu uma grande soma em dinheiro se ele conseguisse fazer isso.

(VERSÃO DE PERRAULT, segundo consta nos anexos, p.111)

O “primeiro” final, como podemos perceber, daria conta apenas de que o Polegar

retorna à casa de seu pai e lá passa a viver “feliz para sempre”. Já o “segundo” final, se

assemelha a versão britânica (Tom Thumb) que narra as façanhas do Pequeno Polegar na corte

do rei Arthur após roubar as botas de sete léguas do gigante, onde fica por muitos anos

servindo como mensageiro.

Antes de finalizarmos a análise da versão de Perrault de O Pequeno Polegar, há um

trecho que traduz uma prática bastante arraigada no período em que o conto foi copilado.

Depois de ter exercido, durante algum tempo, o ofício de mensageiro, e de ter,

mediante isso, acumulado muito dinheiro, voltou para a casa dopai, onde é

impossível imaginar a alegria que todos sentiram ao revê-lo. Deixou toda a família

em boa situação. Comprou cargos recém-criados para o pai e para os irmãos e,

assim, estabeleceu todos, ao mesmo tempo que criou para si uma excelente posição

na Corte. (VERSÃO DE PERRAULT, segundo consta nos anexos, p.111)

Prática muito comum nos tempos do rei-Sol, a compra de títulos, tanto profissionais

como de nobreza, era uma fonte de renda bastante lucrativa para os cofres reais, e levou a

acentuar e acelerar cada vez mais a crescente decadência da aristocracia que já não possuía

nenhum direito adquirido por sangue ou o que quer que o valesse, colocando a burguesia cada

vez mais em posição superior, o que como já vimos, culminaria na Revolução Francesa. O

próprio Perrault comprou títulos para familiares e para si.

A versão camponesa de Poitou é mais rude, mais direta, bem como os camponeses a

contavam na idade média, sem fazer grandes rodeios e sem maiores simbolismos escondidos

por trás da narrativa. Certamente não apresentando o mesmo refinamento ou o aprimoramento

artístico dado aos contos por Perrault.

Seu início nos faz pensar mais em João e Maria do que em O Pequeno Polegar.

Era uma vez um homem que teve a infelicidade de perder sua primeira mulher e

ficar viúvo com dois filhos: um garoto e uma menina; e teve a infelicidade de se

casar de novo, somente para pegar uma mulher má, que não podia de jeito nenhum

suportar essas pobres crianças!

Um dia, ela disse ao marido:

- E então, escuta! Deves levar essas duas crianças para o mais longe que puderes!

Faz com que elas se percam, que eu não as veja mais! (VERSÃO DE POITOU,

segundo consta nos anexos, p.113)

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A maioria as versões do conto O Pequeno Polegar ou fazem menção a várias crianças

ou a um garoto pequenino do tamanho de um polegar (por isso o nome). Isso se dá porque

inúmeros contos populares possuem o mesmo eixo temático central e acabam por se

assemelhar também em pequenos detalhes

Duas coisas são marcantes nessa versão compilada por Poitou: a forte presença

religiosa no enredo e um dado que se mostra presente em diversos contos populares que

demonstram mais uma prática que parecia comum a diferentes culturas.

- Ah! disse a mulher malvada, se nossos pequenos estivessem aqui, eles bem que

comeriam os nossos restos! (VERSÃO DE POITOU, segundo consta nos anexos,

p.113)

- Ai, meu Deus! Onde estarão os nossos pobres filhos? Eles teriam uma boa refeição

com o que restou. (VERSÃO DE PERRAULT, segundo consta nos anexos, p.108)

Muitos contos trazem registrada a prática de os filhos comerem os restos dos pais, bem

como o costume de que o primogênito receba mais alimento do que os irmãos (nas famílias

aristocráticas), pois sendo ele o herdeiro deve ser tratado de modo a constituir melhor saúde.

Podemos imaginar que essa prática de alimentar as crianças com os restos deva-se ao fato de

que devem ser melhor alimentados aqueles que provém o sustento da casa, pois necessitam de

mais força para o trabalho, e as crianças bem o sabemos precisavam logo ser capazes de

prover o seu sustento.

A presença religiosa se faz notar já no próprio título do conto: O conto do Diabo.

Temos, portanto, o Diabo representando o mal e o auxílio mágico dado às crianças,

diferentemente das versões mais conhecidas, não será a bota de sete-léguas, mas a própria

Virgem Maria (que no caso é madrinha da garota).

Chegam a um rio, para atravessar o rio. E a santa Virgem, que era madrinha da

menina, estava lavando roupa. E aquelas duas crianças lhe disseram que o Diabo as

perseguia. E então a santa Virgem estendeu depressa seu lençol sobre o rio, e fez as

duas crianças passarem. Pouco depois, chega o Diabo. (VERSÃO DE POITOU,

segundo consta nos anexos, p.114)

Não é surpresa encontrarmos marcas do cristianismo nos contos populares,

principalmente dentre os camponeses e supondo versões da Idade Média, que foi um período

pautado pela presença avassaladora da religião como dogma cultural absoluto do período.

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Há inúmeros contos do período em que o Diabo é ludibriado, para citar apenas alguns,

temos A morte e o Diabo (folclore português e espanhol) e O homem que enganou a morte

(folclore celta).

Mais interessante que tratar da versão germânica do Pequeno Polegar será tratar de

seu primo germânico João e Maria, que traz em seu tema central a fome, o abandono de

crianças e astúcia para poder se salvar.

Enquanto na versão francesa do Pequeno Polegar, o ambiente retratado é um espaço

muito real (as crianças se deparam com um ogro ou com o Diabo), mas sob um pano de fundo

muito concreto. Em João e Maria é mais enfatizado o aspecto ingênuo das crianças e os

detalhes fantasiosos como os pássaros “mágicos” que os ajudam e a casa de doces.

No conto dos Irmãos Grimm, podemos perceber um cuidado estilístico e uma certa

depuração no desenvolvimento narrativo diferentemente do dado por Perrault a seus contos.

Neste caso já temos contos narrados tendo em vista a publicação e as crianças como alvo

consumidor dessas narrativas.

Às margens de uma extensa floresta existia, há muito tempo, uma cabana pobre,

feita de troncos de árvore, na qual morava um lenhador com sua segunda esposa e

seus dois filhinhos, nascidos do primeiro casamento. O garoto chamava-se João e a

menina, Maria.

A vida sempre fora difícil na casa do lenhador, mas naquela época as coisas haviam

piorado ainda mais: não havia pão para todos. (VERSÃO DOS IRMÃOS GRIMM,

segundo consta nos anexos, p.119)

Era uma vez um lenhador e uma lenhadora que tinham sete filhos, e todos meninos.

O mais velho tinha só dez anos, e o caçula, sete. (...) Eles eram paupérrimos, e os

seus sete filhos os incomodavam muito, porque nenhum deles podia ainda ganhar a

vida. (...) Num ano deplorável e de grande escassez e fome, os pais resolveram

livrar-se dos filhos. (VERSÃO DE PERRAULT, segundo consta nos anexos, p.108)

Era uma vez uma doce menininha que conquistava o amor de todos que a

conheciam, mesmo de quem só a havia visto uma vez. Ela tinha uma velha avozinha

que lhe desejava tudo de bom, de tanto que a amava. Certa vez, a avó lhe mandou

um pequeno manto com um capuz de veludo vermelho que lhe caiu tão bem que ela

ganhou o apelido de Chapeuzinho Vermelho. (VERSÃO DOS IRMÃOS GRIMM,

segundo consta nos anexos, p.101)

Era uma vez uma menina aldeã, a mais linda que já se viu. A sua mãe era louca por

ela, e a sua avó, mais louca ainda. A boa mulher, sua avó, lhe fizera um chapeuzinho

vermelho que lhe caía tão bem, que, por onde quer que ela passasse, era chamada de

Chapeuzinho Vermelho. (VERSÃO DE PERRAULT, segundo consta nos anexos,

p.97)

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A narrativa dos Irmãos Grimm apresenta-se mais “lírica” mais suave e bastante

descritiva se comparada com suas antecessoras francesas. Que mesmo tendo um refinamento

em sua construção narrativa, possuía outra intensão visto que era direcionada a ser

apresentada à corte francesa. Por isso não só sua mensagem, bem como a forma como eram

descritos e narrados os eventos tomava outra forma, outro tom.

O lenhador não queria nem ouvir falar de um plano tão cruel, mas a mulher, esperta

e insistente, conseguiu convencê-lo. No aposento ao lado, as duas crianças tinham

escutado tudo, e Maria começou a chorar. (...)

Ao vê-los, os pais ficaram espantados. Em seu íntimo, o lenhador estava até

contente; mas a mulher, assim que foram deitar, disse que precisavam tentar

novamente, com o mesmo plano. (...)

Quanto remorso sentira desde que abandonara os filhos na mata! Quantos sonhos

horríveis tinham perturbado suas noites! Cada porção de pão que comia ficava

atravessada na garganta. Por grande sorte, a madrasta ruim, que o obrigara a se livrar

dos filhos, já tinha morrido. (VERSÃO DOS IRMÃOS GRIMM, segundo consta

nos anexos, p.119)

Outro ponto significante a ser assinalado é sobre os sentimentos dos pais das crianças.

Enquanto na versão do Pequeno Polegar de Perrault nos é apresentada uma mãe com

sentimentos reais de cuidados com as crianças, nessa versão dos Irmãos Grimm temos um pai

amoroso e a tão tradicional “madrasta má”. E não poderia ser diferente, dado que esse

momento histórico volta-se para a imagem do homem como provedor e acima de tudo, como

protetor da família. O homem já nos tempos de Perrault possuía posição de superioridade e de

provedor e protetor da família, mas sob outra perspectiva; antes, mulheres e filhos eram

posses de seus senhores (pais, irmãos mais velhos, maridos). Agora tratamos de outra

perspectiva, sob influência dos ideais românticos, burgueses e cristãos que tornam mais

explícitas as exigências de uma conduta aceita por esse novo perfil de sociedade.

Nas versões francesas, toda uma gama de seres mágicos como elfos, bruxas,

demônios, espíritos das florestas, trolls, etc se reduzem a duas espécies: fadas e ogros,

representando respectivamente o bem e o mal. Já nas versões alemãs, toda a gama de seres

encantados é mantida e ampliada, temos várias categorias e até subcategorias de seres

encantados representando a eterna luta do bem contra o mal,

E seres que tem a função de guiar ou auxiliar os heróis dos contos.

João e Maria, no conto alemão, encontram uma bruxa, apresentada de acordo com seu

estereótipo mais fiel: uma velha feia, manca, que num primeiro momento assusta as crianças,

mas que finge ser inofensiva para ganhar sua confiança e poder realizar seu intento.

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Subitamente, abriu-se a porta da casinha e saiu uma velha muito feia, mancando,

apoiada em uma muleta. João e Maria assustaram-se, mas a velha lhes deu um largo

sorriso, com a boca desdentada.

— Não tenham medo, crianças. Vejo que têm fome, a ponto de quase destruir a casa.

Entrem! Vou preparar um gostoso jantar. (VERSÃO DOS IRMÃOS GRIMM,

segundo consta nos anexos, p.120)

Enquanto isso o Pequeno Polegar e seus irmãos acabam indo parar nas mãos de um

ogro que come carne humana. O ogro é uma criatura que pode ser mais comumente

encontrada nas mitologias do norte e leste europeu. Muitas vezes é confundido com o troll

(criatura maravilhosa do folclore escandinavo), trata-se de um gigante de aspecto terrível e

aparência brutal. Apesar de seu tamanho e força descomunal, possui pouca inteligência sendo

muito fácil ludibriá-los. Como podemos bem ver pelas façanhas do Pequeno Polegar.

O ogro tinha sete filhas, que ainda eram crianças. Essas ograzinhas tinham todas a

tez muito bonita, pois comiam carne fresca como o pai. Porém, tinham os olhinhos

cinzentos e redondos, o nariz adunco e uma bocarra com longos e afiadíssimos

dentes muito separados uns dos outros. Não eram tão más, mas prometiam muito,

pois já mordiam as criancinhas para lhes chupar o sangue.

Puseram-nas para dormir cedo, e as sete estavam numa grande cama, tendo cada

qual, uma coroa de ouro na cabeça. Havia, no mesmo quarto, uma outra cama do

mesmo tamanho. Foi nesta última cama que a mulher do ogro pôs o sete meninos

para dormir, depois do quê, foi deitar-se ao lado do marido.

O Pequeno Polegar, que percebera que as filhas do ogro tinham coroas de ouro na

cabeça, e que temia que o ogro sentisse remorso por não ter degolado naquela noite

mesmo, levantou-se no meio da noite, e pegando os gorros dos irmãos e o seu, foi, a

passos de veludo os pôr na cabeça das sete filhas do ogro, depois de lhes tirar as suas

coroas de ouro, que pôs na cabeça dos irmãos e na sua, para que o ogro os tomassem

pelas suas filhas, e as suas filhas pelos meninos que ele queria degolar. A coisa deu

certo como ele havia pensado. (VERSÃO DE PERRAULT, segundo consta nos

anexos, p.110)

As aves também tem grande importância na narrativa, pois levam as crianças a

empreender a aventura que as levam a casa da bruxa e apesar dos dissabores porque passam, é

lá que são recompensadas com riquezas jamais sonhadas.

Mas, desta vez, não conseguiram encontrar o caminho: os pássaros da floresta

tinham comido todas as migalhas. (...) O piar de um passarinho branco que voava

sobre suas cabeças, como querendo convidá-los, acordou-os. Seguiram o passarinho

e, de repente, se viram diante de uma casinha muito mimosa. (...)

— Senhor marreco, bom nadador, somos filhos do lenhador, nos leve para a outra margem, temos

que seguir viagem. O marreco aproximou-se docilmente. João subiu em suas costas

e acenou para a irmã fazer o mesmo. (VERSÃO DOS IRMÃOS GRIMM, segundo

consta nos anexos, p.119-120)

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Ao mesmo tempo em que as aves impedem que as crianças sejam capazes de voltar

para casa, guiam-nas para que combatam e vençam a provação (bruxa) que as levará a

conquista do prêmio (riqueza).

Um ponto importante esse que se refere às riquezas adquiridas pelas crianças, vemos

que na maioria das versões do conto O Pequeno Polegar e João e Maria, as crianças passam

por grandes provações e retornam à casa da família levando riquezas. Todas elas são então

recebidas com alegria. Mas teriam sido aceitas se não trouxessem riquezas?

O Pequeno Polegar, uma vez de posse de todas as riquezas do ogro, voltou para a

casa do seu pai, onde foi recebido com muita alegria. (VERSÃO DE PERRAULT,

segundo consta nos anexos, p.111)

João esvaziou os bolsos, retirando as pérolas que havia guardado; Maria desamarrou

o aventalzinho e deixou cair ao chão uma chuva de pedras preciosas. Agora já não

deveriam mais temer nem miséria, nem carestia. E assim, desde aquele dia o

lenhador e seus filhos viveram na fartura, sem mais nenhuma preocupação.

(VERSÃO DOS IRMÃOS GRIMM, segundo consta nos anexos, p.121)

Joãozinho e Maria correram a casa toda, vendo os quartos cheios de riqueza, roupa,

pedras preciosas e muita comida e bebida.

Encheram uma porção de cargas e tocaram-se para a casa dos pais onde chegaram,

depois de muitos dias. O lenhador, muito arrependido, ficou quase doido de

contenteza, e abraçou s filhos chorando. A mãe e os irmãos, nem se fala na alegria

deles. Ficaram todos ricos e felizes. (VERSÃO BRASILEIRA, segundo consta nos

anexos, p.124)

Devemos lembrar que as crianças eram vistas sob uma perspectiva utilitarista, na qual

atuavam como força de trabalho. Diante de uma realidade de pobreza e fome, deveriam desde

muito cedo mostrarem-se capazes de auxiliar nas obrigações a fim de prover o seu sustento.

Se num primeiro momento elas são abandonadas por representarem um peso para aqueles que

trabalhavam, num segundo momento, são aceitas com alegria e felicidade, pois trazem

recursos para o sustento da família. Passam a ser capazes de “pagar” por aquilo que

consomem (alimento, roupa, remédios, etc.)

Uma característica bastante comum nos contos portugueses diz respeitos às marcas

regionais que se apresentam, com forte registro da fala do povo e de descrição dos locais e

costumes.

O pai como não tinha que lhes dar de comer, intentou deixa-los no monte e levou-os

para o monte, deu-lhes tremoços para eles irem a comer, que era para os intentar e

para lá ficarem. (VERSÃO PORTUGUESA, segundo consta nos anexos, p.115)

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Era uma vez uma mulher que tinha um filho e uma filha. Um dia a mãe mandou o

filho buscar cinco réis de tremoços e depois disse para os dois:

- Meus filhinhos, até onde acharem as casquinhas de tremoços, vão andando pelo

caminho fora, e em chegando ao mato lá me hão-de me encontrar a apanhar lenha.

(VERSÃO PORTUGUESA, segundo consta nos anexos, p.122)

Enquanto ele foi chamar os outros lobisomens, o mais novo que estava a fingir que

dormia, tirou os barretes que ele e os irmãos tinham na cabeça e pô-los na cabeça

das filhas do lobisomem. (VERSÃO PORTUGUESA, segundo consta nos anexos,

p.115)

O Pequeno Polegar português, aqui chamado O rapaz das botas de sete léguas,

apresenta-se muito semelhante à versão inglesa (Tom Thumb), na qual a personagem rouba as

botas de sete léguas do gigante e ingressa na corte do rei Arthur como mensageiro. Esse é um

conto dos mais fantasiosos dentre os contos portugueses, repleto de acontecimentos

maravilhosos.

Foram andando, andando, até que foram dar a casa de um lobisomem, onde estava a

mulher com cinco filhas do mesmo lobisomem. (VERSÃO PORTUGUESA,

segundo consta nos anexos, p.115)

Nessa versão, o ogro é substituído por um lobisomem, criatura sobrenatural bastante

recorrente no imaginário mítico português, ao contrário do ogro, mais comum entre os povos

escandinavos. Excluídas as diferenças básicas, o lobisomem do conto português não deixa

nada a dever à crueldade do ogro das versões mais tradicionais do conto.

Polegar com suas botas, ainda faz uma viagem ao inferno para adquirir um anel, como

se fosse João a adentrar o castelo do gigante para roubar-lhe a gansa mágica, ou as crianças

que fogem do Diabo na narrativa de Poitou, retomando uma temática bastante comum na

Idade Média dos homens que adentravam o Inferno como Dante Alighieri que adentra o

inferno e é guiado pelo poeta Virgílio.

O rapaz foi nas botas e chegou ao Inferno. Passou uma serra de carvão e depois

encontrou uns portões, onde viu uma sentinela, a quem perguntou que portões eram

aqueles.

Respondeu-lhe a sentinela que eram os portões do Inferno.

Ele disse: - Homem! Isto mesmo é que eu pretendia encontrar, que tenho de cá vir

buscar um anel que o Diabo traz entre o couro e a pele.

A sentinela guiou-o pelo Inferno dentro. (VERSÃO PORTUGUESA, segundo

consta nos anexos, p.115-116)

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Nos contos brasileiros, por sua vez, o que marca a identidade local é a tentativa de

adequação dos contos tradicionais ao nosso substrato cultural que pode ser vista em O

Pequeno Polegar.

Chegou a uma casa grande e bonita e bateu, pedindo agasalho. A mulher que os

recebeu era uma Papona, pegou-os e prendeu-os. O Papão, quando chegou, soube de

tudo, mandou que guardassem os meninos para depois. (VERSÃO BRASILEIRA,

segundo consta nos anexos, p.117)

Quando as crianças buscam abrigo da floresta, elas não encontram o ogro francês, nem

tão pouco o lobisomem português (embora este pudesse estar bem de acordo com nosso

imaginário cultural), ao invés disso ele deverá enfrentar o bicho papão, “Quando o Papão, a

Papona e todos adormeceram...”, criatura essa bastante conhecida por nossas criancinhas.

Outro fato a ser assinalado trata de que a Papona é a única esposa de “ogro” que assume uma

postura de mal ativo. Em todas as outras versões apresentadas até agora as esposas iam de

boas mulheres submetidas ao marido, a mulheres que escolhem a omissão como atitude

definidora. Esta é a primeira versão em que a esposa (Papona) escolhe prender as crianças

independentemente do desejo declarado do marido (Papão).

O restante do conto decorre da mesma maneira que a narrativa de Perrault na qual

Polegar é um garoto “baixinho”, mas uma criança normal, e não um ser maravilhoso de

tamanho diminuto como na versão dos Irmãos Grimm.

João e Maria, como não podia deixar de ser, segue o padrão alemão da narrativa em

seus mínimos detalhes, apenas diferindo de maneira significativa quanto ao fato de que Maria,

na versão alemã, é posta para trabalhar de maneira incessante apesar de sua tenra idade, algo

bastante natural, como já vimos no histórico do modo de vida europeu. Já a Maria brasileira, é

colocada em “período de engorda” juntamente com seu irmão, vivendo um período de

absoluta ociosidade.

E os tratava muito bem. Meses depois Joãozinho e Maria estavam gordos, corados e

fortes, mas sempre mostrando o rabinho da lagartixa. Infelizmente, numa vez, Maria

perdeu o rabo da lagartixa e quando a velha pediu que passassem o dedinho, Maria

que era muito sem juízo, mostrou o mindinho. A velha apalpou, lambeu os beiços.

- Estão no ponto. Vão saindo, meus netinhos...

Deixou os dois saírem e deu um jantar de gente rica. (VERSÃO BRASILEIRA,

segundo consta nos anexos, p.124)

Na manhã seguinte, enquanto ainda estavam dormindo, a bruxa agarrou João e o

prendeu em um porão escuro; depois, com uma sacudida, acordou Maria.

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- De pé, preguiçosa! Vá tirar água do poço, acenda o fogo e apronte uma boa

refeição para o seu irmão. (VERSÃO DOS IRMÃOS GRIMM, segundo consta nos

anexos, p.120)

Chapeuzinho Vermelho, como O Pequeno Polegar, retrata bem o universo francês

descrevendo o dia-a-dia do camponês, a violência contra a criança e a astúcia da protagonista

que consegue se salvar de ser devorada em algumas versões do conto.

São descritos aspectos bastante específicos dos hábitos do período, como o vestuário

descrito nas versões camponesas compiladas por Darnton (Chapeuzinho Vermelho) e

Nivernais (Conto da Vovozinha): “E quanto às roupas, o espartilho, o vestido, a anágua, os

sapatos, ela perguntava onde era para colocá-los.” (VERSÃO DE NIVERNAIS, segundo

consta nos anexos, p.99) ou “Para cada peça de roupa – corpete, saia, anágua e meias – a

menina fazia a mesma pergunta.” (VERSÃO DE DARNTON, segundo consta nos anexos,

p.100). Aspectos que dizem respeito à alimentação também podem ser encontrados nos

contos. Nas diferentes versões Chapeuzinho leva diferentes alimentos para sua avó,

mostrando, o que acreditamos, serem os costumes alimentares nos respectivos momentos

históricos e culturais de cada sociedade no período de vigência de cada versão dos contos

analisada. Assim, encontram-se: bolo e manteiga (PERRAULT), pão e leite (CAMPONESAS

FRANCESAS), bolo e vinho (IRMÃO GRIMM), bolo (PORTUGUESA), bolo

(BRASILEIRA).

Perrault, como sabemos, deu um tratamento estilístico às suas narrativas. Seus enredos

foram desenvolvidos com requinte e sofisticação a fim de agradar ao “apurado” gosto dos

frequentadores dos salões franceses. O mesmo não podemos ver nas versões camponesas. A

versão de Nivernais é mais rude, mais direta, não tem o refinamento ou o aprimoramento

artístico dado aos contos por Perrault.

Era uma vez uma menina aldeã, a mais linda que já se viu. A sua mãe era louca por

ela, e a sua avó, mais louca ainda. A boa mulher, sua avó, lhe fizera um chapeuzinho

vermelho que lhe caía tão bem, que, por onde quer que ela passasse, era chamada de

Chapeuzinho Vermelho.

Certo dia, tendo feito bolos, a sua mãe lhe disse:

- Vá ver como sua avó está passando, pois me disseram que ela está doente, e lhe

leve esse bolo e esse potinho de manteiga. (VERSÃO DE PERRAULT, segundo

consta nos anexos, p.97)

Certo dia, a mãe de uma menina mandou que ela levasse um pouco de pão e de leite

para sua avó. (VERSÃO DE NIVERNAIS, segundo consta nos anexos, p.99)

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Na versão camponesa o conto é mais direto, mais seco, não há nenhuma preparação

para os acontecimentos, nenhum adiamento como na narrativa feita por Perrault.

E, ao dizer tais palavras, o lobo mau se atirou sobre Chapeuzinho Vermelho e a

comeu. (VERSÃO DE PERRAULT, segundo consta nos anexos, p.98)

E ele a devorou. (VERSÃO DE NIVERNAIS, segundo consta nos anexos, p.99)

A versão de Darnton apresenta-se ainda mais compacta, parecendo um resumo do

conto de Nivernais. Das três versões francesas de Chapeuzinho Vermelho, o Conto da

Vovozinha é o que apresenta mais macas culturais em seu enredo.

No cruzamento de dois caminhos, ela encontrou o bzou e disse (VERSÃO DE

NIVERNAIS, segundo consta nos anexos, p.99)

Bzou é uma forma arcaica pela qual os franceses chamavam os lobisomens (loup-

garou) na Idade Média.

- Oh! Vovó, que ombros grandes você tem!

- É para carregar melhor o meu feixe de lenha, minha filha!

(...)

- Oh! Vovó, que narinas grandes você tem!

- É para cheirar melhor meu rapé, minha filha!

(VERSÃO DE NIVERNAIS, segundo consta nos anexos, p.99)

Aqui temos a indicação de duas práticas comuns a seu período: carregar um feixe de

lenha era atividade cotidiana na Europa dos tempos antigos, onde se usava uma lareira ou

fogueira para aquecer. E cheirar rapé era um costume muito difundido durante um longo

período de tempo não só na Europa, mas também em várias localidades do mundo. Trata-se

de um tipo de tabaco para inalar cujo hábito de consumo podemos encontrar representado em

diversos filmes e livros chamados “de época”.

Na Chapeuzinho Vermelho dos Irmãos Grimm, como já havia a ideia de desenvolver o

enredo direcionando-o às crianças como possível público alvo, vemos apresentada a intensão

de educar, de passar ensinamentos de conduta à essas crianças através da narrativa.

Um dia, sua mãe a chamou e disse: “Venha cá, Chapeuzinho. Quero que vá visitar a

sua avó e leve um pedaço de bolo e uma garrafa de vinho para ela, pois está muito

fraca e isso vai lhe fazer bem. Mexa-se e apronte-se antes que o tempo fique quente

demais, e vá direto pelo seu caminho, comporte-se bem e com discrição; e não corra

para não cair e quebrar a garrafa, senão a sua avó vai ficar sem vinho. E quando

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passar pela vila, não se esqueça de fazer uma mesura e dizer ‘bom dia’ para todos os

conhecidos.”

“Vou fazer tudo que está me dizendo, mamãe”, disse a criança, ao se despedir e sair

para sua longa jornada. (VERSÃO DOS IRMÃOS GRIMM, segundo consta nos

anexos, p.101)

Nos três contos, Chapeuzinho Vermelho, O Pequeno Polegar e João e Maria, a

floresta tem uma função bastante significativa. Sendo local de habitação dos banidos, lugar do

bestial ou da transgressão, onde viviam aqueles que não podiam ter um convívio contínuo

com outras pessoas. É a personificação do desconhecido, local onde moram os perigos.

Em muitos contos de fada, o desconhecido é simbolizado por uma floresta, ou

simplesmente “o bosque”. O bosque é onde moram os animais perigosos, e onde as

feiticeiras e as bruxas têm suas casas. Baba Yaga, a grande feiticeira do folclore

russo, mora no bosque, assim como o lobo de Chapeuzinho Vermelho. O bosque é

também onde se escondem a bruxa de João e Maria e o ogro de O Pequeno Polegar.

(CASHDAN, 2000, p.50)

A valorização da estabilidade social, com o fim do feudalismo, apressava a

necessidade do fortalecimento das cidades. A floresta passou então a ser descrita como um

lugar perigoso com muitos predadores. Criou-se todo um mito sobre os perigos da floresta

com o intuito de se manter a comunidade unida, alertando para os perigos do isolamento

social.

Nas versões de Chapeuzinho Vermelho a casa da avó fica em locais diferentes, dentro

da floresta nas versões camponesas, do outro lado da floresta (“a primeira casa da aldeia”) na

versão de Perrault e novamente dentro da floresta num lugar bastante específico (“debaixo de

três carvalhos”) na versão dos Irmãos Grimm.

Nas três narrativas as crianças encontram o sobrenatural. Chapeuzinho Vermelho

encontra um lobo, que na verdade carrega indícios de ser um lobisomem, sendo mesmo

denominado como tal, como o bzou da narrativa de Nivernais, ou através de dados específicos

presentes na narrativa que remetem ao seu mito.

No cruzamento de dois caminhos, ela encontrou o bzou e disse: (VERSÃO DE

NIVERNAIS, segundo consta nos anexos, p.99)

um lobo aproximou-se e perguntou-lhe para onde se dirigia. (VERSÃO DE

DARNTON, segundo consta nos anexos, p.100)

“Bom dia, Chapeuzinho Vermelho”, disse o lobo. (VERSÃO DOS IRMÃOS

GRIMM, segundo consta nos anexos, p.101)

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A própria habilidade de fala do lobo e a encruzilhada nos trazem os dados de que

precisamos para relacionar a fera, que num primeiro momento parece um simples animal, ao

aspecto maravilhoso.

João e Maria, por sua vez, encontram uma bruxa em seu aspecto mais tradicional.

Subitamente, abriu-se a porta da casinha e saiu uma velha muito feia, mancando,

apoiada em uma muleta. João e Maria assustaram-se, mas a velha lhes deu um largo

sorriso, com a boca desdentada. (VERSÃO DOS IRMÃOS GRIMM, segundo

consta nos anexos, p.120)

Enquanto isso o Pequeno Polegar e seus irmãos acabam indo parar nas mãos de um

ogro que come carne humana. O ogro é uma criatura que pode ser mais comumente

encontrada nas mitologias do norte e leste europeu. Muitas vezes é confundido com o troll

(criatura maravilhosa do folclore escandinavo), trata-se de um gigante de aspecto terrível e

aparência brutal. Apesar de seu tamanho e força descomunal, possui pouca inteligência sendo

muito fácil ludibriá-los. Como podemos bem ver pelas façanhas do Pequeno Polegar.

O ogro tinha sete filhas, que ainda eram crianças. Essas ograzinhas tinham todas a

tez muito bonita, pois comiam carne fresca como o pai. Porém, tinham os olhinhos

cinzentos e redondos, o nariz adunco e uma bocarra com longos e afiadíssimos

dentes muito separados uns dos outros. Não eram tão más, mas prometiam muito,

pois já mordiam as criancinhas para lhes chupar o sangue.

Puseram-nas para dormir cedo, e as sete estavam numa grande cama, tendo cada

qual, uma coroa de ouro na cabeça. Havia, no mesmo quarto, uma outra cama do

mesmo tamanho. Foi nesta última cama que a mulher do ogro pôs o sete meninos

para dormir, depois do quê, foi deitar-se ao lado do marido.

O Pequeno Polegar, que percebera que as filhas do ogro tinham coroas de ouro na

cabeça, e que temia que o ogro sentisse remorso por não ter degolado naquela noite

mesmo, levantou-se no meio da noite, e pegando os gorros dos irmãos e o seu, foi, a

passos de veludo os pôr na cabeça das sete filhas do ogro, depois de lhes tirar as suas

coroas de ouro, que pôs na cabeça dos irmãos e na sua, para que o ogro os tomassem

pelas suas filhas, e as suas filhas pelos meninos que ele queria degolar. A coisa deu

certo como ele havia pensado. (VERSÃO DE PERRAULT, segundo consta nos

anexos, p.110)

Se tomarmos agora a versão portuguesa de Chapeuzinho Vermelho, poderemos

identificar a presença de vários contos dentro da mesma narrativa; o que se mostrou uma

característica marcante nos contos populares portugueses. Aqui, por exemplo, podemos

identificar trechos dos contos: Chapeuzinho Vermelho, Os sete cabritinhos e Mãe Holle,

contos dos Irmãos Grimm.

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A seguir, inserimos um trecho que pode ser identificado com as versões tradicionais de

Chapeuzinho Vermelho:

A menina foi andando muito contente e, chegando a um caminho, encontrou um

homem-lobo (tem parte homem e parte lobo, mas não é o mesmo que lobisomem).

Andava a menina comendo amoras de um valado e perguntou-lhe o lobo-homem:

- Que fazeis aí, menina?

Ela respondeu:

- Estou comendo amorinhas.

O homem-lobo tornou a perguntar-lhe:

- Tu que levas aí

Ela disse:

- Levo aqui um bolinho para minha avozinha. (VERSÃO PORTUGUESA, segundo

consta nos anexos, p.103)

O próximo pode ser identificado com Os sete Cabritinhos:

Depois a avó encheu-o todo de foguetes e girassóis amarrados ao lobo, deitaram-lhe

o fogo, e assim que sentiu o pelo a arder, deitou a fugir, que era o que a velha queria

e mais a menina, e depois o lobo foi-se deitar ao poço do moinho, onde morreu

afogado. (VERSÃO PORTUGUESA, segundo consta nos anexos, p.104)

A seguir, um que pode associar com Mãe Holle:

Estava na fonte enchendo o cântaro, passou uma velhinha, que era a mesma que lhe

havia dado o chapelinho vermelho, mas que ela não conheceu porque ia de outra

maneira.

A velhinha pediu água à menina do chapelinho vermelho, e esta deu-lha com muito

bom modo. (...)

A irmã mais velha, que estava com muita inveja, quis ir à água também.

E foi.

Apareceu-lhe a mesma velhinha e disse-lhe:

- Ó! Menina, dás-me uma pinguinha de água?

Ela respondeu-lhe:

- Ora! Eu dou-lhe agora água! Vá bebê-la à fonte!

A velha disse-lhe:

- Mal fadada sejas tu, que laves as mãos e nunca elas se lavem, e quando falares

deitares chanquinos (sapos pequenos) pela boca. (VERSÃO PORTUGUESA,

segundo consta nos anexos, p.104)

Outra característica bastante marcada nos contos portugueses, diz respeitos às marcas

regionais que se apresentam, com forte registro da fala do povo e de descrição dos locais e

costumes.

Era uma vez uma mulher que estava numa serra, e teve duas filhas.

A primeira chamava-se Maria.

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Um dia a avó as meninas foi à serra e encontrou a menina mais velha.

A menina foi dirigida à avó e beijou-lhe a mão, e a avó disse:

- Deixai estar, minha menina, que te hei-de dar um chapelinho vermelho; vai a

minha casa busca-lo.

A menina foi para a casa da mãe, chorando que lhe fizesse um bolinho para levar à

sua avozinha, e a outra irmã fiou em casa cheia de raiva.

A mãe perguntou-lhe:

- Então como conheces tu a tua avozinha?

A menina respondeu:

- Sei, porque estive agora com ela, e ela disse que me há-de dar um chapelinho

vermelho. (VERSÃO PORTUGUESA, segundo consta nos anexos, p.103)

O pai como não tinha que lhes dar de comer, intentou deixa-los no monte e levou-os

para o monte, deu-lhes tremoços para eles irem a comer, que era para os intentar e

para lá ficarem. (VERSÃO PORTUGUESA, segundo consta nos anexos, p.115)

Era uma vez uma mulher que tinha um filho e uma filha. Um dia a mãe mandou o

filho buscar cinco réis de tremoços e depois disse para os dois:

- Meus filhinhos, até onde acharem as casquinhas de tremoços, vão andando pelo

caminho fora, e em chegando ao mato lá me hão-de me encontrar a apanhar lenha.

(VERSÃO PORTUGUESA, segundo consta nos anexos, p.122)

Na narrativa de Chapeuzinho Vermelho na versão brasileira compilada por Câmara

Cascudo¸ poderemos depreender com maior clareza as intersecções encontradas dentre as

várias narrativas.

Nos arredores da vivenda da pobre velha morava um caçador cujas ovelhas de vez

em vez eram dizimadas por esse mesmo lobo e o caçador andava-lhe no encalço.

Passando por perto daquela habitação, quase sempre via a avó da menina à janela e

com ela conversava; mas, na tarde de que se trata e em que ocorreram tão graves

acontecimentos, olhou e não a viu. Intrigou-o a circunstância de se achar aberta a

porta da rua. Caminhou para o lugar indicado e entrou na sala; silêncio absoluto!

Pé ante pé foi até o quarto e, desde logo vendo o lobo, imaginou o que teria

sucedido.

Tomou da faca e sangrou-o. examinando o animal de perto, verificou que estava

com o ventre entumecido; abriu-o e eis que saltam as duas vítimas que lhe relataram

quanto haviam sofrido do feroz animal. (VERSÃO BRASILEIRA, segundo consta

nos anexos, p.106)

Aqui temos o mesmo final escolhido pelos Irmãos Grimm, mais de acordo com o

espírito do povo, ao contrário do que narra Perrault que termina seu conto de maneira trágica,

ou de algumas versões camponesas nas quais a menina tem que ser astuta o suficiente para

poder salvar-se do perigo iminente. Em nossa versão, é fundamental que a menina seja salva

por uma figura masculina. É importante considerar que estamos tratando de uma sociedade

cuja maior característica remete ao patriarcalismo como forma de realidade social.

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Outra particularidade interessante nessa versão brasileira de Chapeuzinho Vermelho,

diz respeito justamente ao chapéu, que aqui é trocado por uma “sombrinha de cor vermelha”,

mais adequada aos padrões tropicais. Afinal, não havendo o frio intenso como o europeu, o

uso de uma capa de lã vermelha foge totalmente a nossa realidade, e devemos lembrar que

essas narrativas retratam as tradições, hábitos, e aspectos culturais dos respectivos povos.

Adequação cultural vista também em O Pequeno Polegar brasileiro, quando verificamos que

as crianças enfrentam um Bicho Papão e não um Ogro, “Quando o Papão, a Papona e todos

adormeceram...” (VERSÃO BRASILEIRA, segundo consta nos anexos, p.117).

Talvez seja esse o ponto mais significante da particularidade do conto popular

brasileiro, a tentativa de descrever um mundo que na verdade não é nosso; fato bem rotineiro

no cotidiano de um país que buscava em diversos aspectos recriar uma versão tropical

europeia.

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VIII. CONSIDERAÇÕES FINAIS

... e viveram felizes para sempre...

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As narrativas de cunho literário sejam elas orais ou escritas, assim como todas as

formas de arte, são o resultado da imaginação dos homens, e trarão em seu bojo toda uma

gama de informações e características do universo cultural (temporal-social) do mundo a que

pertence ou que deseja representar.

O conto popular é um registro histórico vivo que nos revela todo tipo de informação:

cultural, política, histórica, econômica, etnográfica. Por meio dele podemos observar

costumes e formas de pensar, podemos tomar conhecimento dos aspectos culturais de

determinado povo ou período, bem como identificar peculiaridades encontradas em

determinadas sociedades. Olhar para esses contos de maneira comparativa nos dá a

consciência da importância das versões ou variantes e do que elas nos transmitem.

Buscamos, no desenrolar desse estudo, exemplificar algumas diferenças e semelhanças

quando duas ou mais sociedades eram postas em comparação, ou mesmo as transformações

sofridas por uma mesma sociedade em seus valores, costumes, etc. Para isso fizemos uma

ponte entre os acontecimentos históricos e como eles podem aparecer dentro das narrativas

populares, de modo a representar suas respectivas sociedades.

Não é uma tarefa fácil esse tipo de comparação, pois diferentemente da literatura

escrita, a tradição oral fornece um incontável número de relatos que apresentam semelhanças

e diferenças algumas vezes não muito facilmente perceptíveis.

Essas narrativas, funcionando como uma forma de registro histórico, retratavam o

povo e seus costumes, descrevendo roupas, hábitos alimentares, lugares, a relação entre as

pessoas, suas crenças, seus valores.

Esses contos procuravam mostrar ao povo que o mundo era um lugar perigoso no qual

era preciso ter cuidado para sobreviver às adversidades que se apresentavam. Mas não são,

por isso, especificamente negativos. Muitos traziam mensagem positivas que mostravam que

a generosidade, a honestidade e a coragem podiam trazer bons resultados – o bem se

recompensa com o bem.

Contudo, demonstravam que desconfiança e cautela também são virtudes, pois não

devemos confiar em todos aqueles que encontramos pelo caminho. “Alguns estranhos talvez

até se transformem em príncipes e fadas bondosas; mas outros podem ser lobos ou feiticeiras,

e não há maneira de distinguir uns dos outros”. (DARNTON, 1986:78)

Com relação a aspectos culturais específicos a cada uma das sociedades por nós

estudadas (francesa, alemã, brasileira e portuguesa) podemos depreender, por meio dos

contos, que embora existam sim diferenças significativas no tocante às suas crenças, a forma

como se veem diante do mundo, o modo como suas respectivas histórias se desenvolveram e

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como isso influenciou na formação de sua identidade nacional, também são várias as

semelhanças entre as sociedades nos mostrando que há valores, preocupações e necessidades

que são intrínsecas ao ser humano e, portanto, universais, independente de a qual sociedade

pertença o indivíduo.

Ao mesmo tempo em que se tenta assegurar uma identidade cultural e muitas vezes

nacional, buscando individualidades e peculiaridades que sejam exclusivas de uma

determinada cultura, não negando que elas existam ou não encontraríamos diferenças dentro

dos enredos dos contos populares, vemos, através de seus temas que possuem uma validade

universal.

Vemos casos em que as mesmas ideologias ou valores rege m diferentes sociedades,

como por exemplo, a máxima que diz “não faça a outro o que não queres para ti” ou “quem

com ferro fere com ferro será ferido” que podemos reconhecer na maioria das culturas, ainda

que ditas de outras formas.

Em outras palavras, deparamo-nos com o fato de que algumas das diferenças mais

significativas dentre as diversas culturas surgem, não do fato de que seus valores

fundamentais ou necessidades sejam diferentes, mas do fato de que há sim modos diferentes

de se desenvolver esses valores, de acordo é claro, com as condições variáveis em vigor em

cada sociedade. Diferenças essas que podem ser encontradas nas pequenas variações vistas

dentre as inúmeras versões de um mesmo conto popular. Isso porque as intersecções são

encontradas em números muito maiores que as “exclusividades” existentes no enredo.

No século XVIII, por exemplo, Montesquieu afirma que as necessidades comuns dos

seres humanos dão origem a valores comuns, como os ligados à procriação e à proteção dos

filhos, mas que essas necessidades e valores comuns são de uma natureza suficientemente

compatível com um amplo leque de valores.

No que tange às diferenças culturais apresentadas através das narrativas podemos

considerar que os franceses apresentam-se como um povo racional que mesmo pelo uso da

fantasia e do maravilhoso descreve necessidades reais de um mundo cotidiano bastante

concreto no qual podemos “sentir” o cheiro da terra. Devida a marcante diferença de classes

existentes na cultura francesa e que levava o pobre a estar distanciado da aristocracia como

eram os mortais em relação ao Olimpo nas culturas greco-romanas da Antiguidade, vemos o

apreço e a marcada presença da vítima astuta que depende apenas de sua esperteza para se

“dar bem”. Característica essa bastante apreciada pelos franceses que valorizavam a esperteza

e sagacidade do cidadão pobre ao enfrentar as intempéries que a difícil vida cotidiana lhe

impingia.

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Mais do que uma batalha entre o bem x o mal, podemos dizer que os contos franceses

retratam a constante luta entre a esperteza (sobrevivência) x a injustiça.

Na cultura alemã já vemos um grande oposto; enquanto a cultura francesa nos mostra

uma perspectiva mais racional, as versões alemãs, por sua vez, vêm recheadas de misticismo,

superstição e com forte carga de sobrenatural. Não podemos esquecer que tratamos aqui do

período romântico e da busca pelo resgate do mundo medieval por um lado com toda sua

mística e dos preceitos cavalheirescos e das questões nacionalistas de outro.

Os contos portugueses resgatam muitos dos temas universais, contudo, esses contos

apresentam-se de maneira um pouco caótica com várias narrativas se misturando para formar

uma única narrativa. O que fica bastante claro ao pensarmos na formação de seu povo que é

resultado da aculturação de várias etnias. Sendo o povo o resultado de uma miscelânea de

culturas que se fundiram em apenas uma, também os contos populares portugueses são uma

miscelânea de variadas narrativas e influências que se fundiram para formar versões

particulares dos contos tradicionais.

Eles também apresentam de forma mais marcante os aspectos de sua cultura como,

registros do modo de falar e hábitos alimentares como comer tremoço, por exemplo, que

aparece em inúmeras narrativas da mesma maneira que o vinho é constante nas versões

francesas. Também apresentam de forma mais direta os aspectos geográficos, sem grandes

descrições apenas indicando tratar-se de uma vila, uma montanha, ou um vale. Não deixando

margem para dúvidas de estar sendo especificado um lugar em terras portuguesas. São

também, se comparados às outras versões, narrativas mais curtas, simples, diretas, e de rápida

leitura.

O que nos chama muita atenção nas variantes brasileiras dessas narrativas é que eles

ainda mostram a representação de um mundo que não é o nosso, como diria Roberto Schwartz

acerca de aspectos da obra Machadiana, “as ideias parecem estar fora do lugar” tenta-se dar

uma “cor local”, como o uso da sombrinha, ou do Bicho Papão, mas essas se perdem e

passam despercebidas por estarem cercadas de representações de um mundo, de uma

realidade que não condiz com nossa cultura.

Como se pode perceber, a fórmula, E viveram felizes para sempre, que geralmente

finaliza os contos populares, indica um retorno à estabilidade anterior, significa vencer as

intempéries que se colocaram no caminho do protagonista, sejam essas dificuldades

subjetivas, individuais ou coletivas. Não aponta para uma eternidade sem obstáculos, mas

simplesmente aponta o final de um percurso, de uma etapa da vida, ao mesmo tempo em que

prepara o ouvinte/leitor para a luta constante da aventura do homem na vida social.

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BIBLIOGRAFIA

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ANEXOS

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(Chapeuzinho Vermelho. Ilustração de Gustave Doré)

Versões do conto

Chapeuzinho Vermelho

_____________________________________________

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CHAPEUZINHO VERMELHO

(PERRAULT)

Era uma vez uma menina aldeã, a mais linda que já se viu. A sua mãe era louca por ela, e a sua avó,

mais louca ainda. A boa mulher, sua avó, lhe fizera um chapeuzinho vermelho que lhe caía tão bem, que, por

onde quer que ela passasse, era chamada de Chapeuzinho Vermelho.

Certo dia, tendo feito bolos, a sua mãe lhe disse:

- Vá ver como sua avó está passando, pois me disseram que ela está doente, e lhe leve esse bolo e esse

potinho de manteiga.

Chapeuzinho Vermelho foi logo à casa da avó, que morava numa aldeia.

Quando passava por um bosque, encontrou o compadre lobo, que teve muita vontade de comê-la, mas

não ousou, porque havia alguns lenhadores na floresta. Perguntou-lhe aonde ia ela. A pobre criança, que não

sabia que era perigoso deter-se para escutar um lobo, disse-lhe:

- Vou ver a minha avó, e levar-lhe um bolo com um potinho de manteiga que a minha mãe lhe manda.

- Ela mora muito longe? – perguntou-lhe o lobo.

- Oh, sim! – disse Chapeuzinho Vermelho. – Mora depois daquele moinho que se avista lá ao longe,

bem longe, na primeira casa da aldeia.

- Então, eu também vou vê-la – disse o lobo. – Vou por este caminho e você vai pelo outro, e veremos

quem chega primeiro.

O lobo começou a correr atrás das borboletas, e em fazer ramalhetes com as florzinhas que encontrava.

O lobo não tardou a chegar à casa da avó, e bateu à porta: toc, toc.

- Quem é?

- É a sua netinha, Chapeuzinho Vermelho – disse o lobo, disfarçando a voz – e lhe trago um bolo e um

potinho de manteiga que mamãe lhe manda.

A ingênua avó, que estava de cama porque se sentia adoentada, gritou-lhe:

- Puxe a tranca e a porta se abrirá.

O lobo puxou a tranca e a porta se abriu. Atirou-se sobre a velhinha e a devorou num átimo, pois há

mais de três dias ele não punha nada na boca.

Em seguida, fechou a porta, e foi deitar-se na cama da avó, aguardando Chapeuzinho Vermelho, que,

algum tempo depois veio bater à porta: toc, toc.

- Quem é?

Chapeuzinho Vermelho, num primeiro momento, teve medo ao ouvir a voz grossa do lobo, mas depois

achou que era só um resfriado, e respondeu:

- É a sua netinha, Chapeuzinho Vermelho, que lhe traz um bolo e um potinho de manteiga que mamãe

lhe manda.

O lobo lhe gritou, suavizando um pouco a voz:

- Puxe a tranca e a porta se abrirá.

Chapeuzinho Vermelho puxou a tranca e a porta se abriu.

O lobo, ao vê-la entrar, disse-lhe, escondendo-se na cama debaixo do cobertor:

- Ponha o bolo e o potinho de manteiga em cima do armário e venha deitar-se comigo.

Chapeuzinho Vermelho tirou a roupa, deitou-se na cama, e ficou muito surpresa ao ver como a sua avó

era quando estava só com roupa de baixo. Disse-lhe:

- Que braços compridos tem, vovó!

- São para abraçá-la melhor, minha netinha.

- Que pernas compridas tem, vovó!

- São para correr melhor, minha menina.

- Que orelhas grandes tem, vovó!

- São para escutar melhor, minha menina.

- Que olhos grandes tem, vovó!

- São para vê-la melhor, mina menina.

- Que dentes grandes tem, vovó!

- São para comê-la.

E, ao dizer tais palavras, o lobo mau se atirou sobre Chapeuzinho Vermelho e a comeu.

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MORALIDADE

Percebemos aqui que as criancinhas,

Principalmente as menininhas

Lindas, boas, engraçadinhas,

Fazem mal de escutar a todos que se acercam,

E que de modo algum estranha alguém,

Se um lobo mau então as coma, e bem.

Digo lobo, lobo em geral,

Pois há lobo que é cordial,

Mansinho, familiar e até civilizado,

Que, gentil, bom, bem educado,

Persegue as donzelas mais puras,

Até à sua casa, até à alcova escura;

Quem não sabe, infeliz, que esses lobos melosos,

Dos lobos todos são os bem mais perigosos?

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CONTO DA VOVOZINHA6 7

(NIVERNAIS)

Era uma vez uma mulher que tinha feito pão. Ela diz à sua filha:

- Vais levar um pãozinho bem quentinho e uma garrafa de leite para tua avó.

E lá se foi a menininha. No cruzamento de dois caminhos, ela encontrou o bzou e disse:

- Para onde vais?

- Estou levando um pãozinho quentinho e uma garrafa de leite para minha avó.

- Qual é o teu caminho? Disse o bzou, o das Agulhas, ou o dos Alfinetes?

- O das Agulhas, disse a pequena.

- Bom, então eu vou pelo dos Alfinetes.

A menina se divertiu apanhando agulhas; o bzou chegou à casa da avó, matou-a, pôs sua carne na arca e

uma garrafa de sangue em cima da pia. A menina chegou, bateu à porta.

- Empurra a porta, disse o bzou. Ela está fechada com uma palha molhada.

- Bom dia, vovó, estou lhe trazendo um pãozinho bem quentinho e uma garrafa de leite.

- Põe na arca, minha filha. Pega a carne que está dentro e uma garrafinha de vinho que está em cima da

pia.

Enquanto ela comia, havia uma gatinha que dizia:

- Chi!... Porca!... que come a carne e bebe o sangue da avó.

- Tira a roupa, minha filha, disse o bzou, e vem deitar aqui comigo.

- Onde eu ponho o meu avental?

- Põe no fogo, minha filha, não vais mais precisar dele.

E quanto às roupas, o espartilho, o vestido, a anágua, os sapatos, ela perguntava onde era para coloca-

los. E o lobo respondia: “joga no fogo, minha filha, não vais precisar disso.”

Quando ela se deitou, disse:

- Oh! Vovó, como você está peluda!

- É para te aquecer melhor, minha filha!

- Oh! Vovó, que unhas grandes você tem!

- É para me coçar melhor, minha filha!

- Oh! Vovó, que ombros grandes você tem!

- É para carregar melhor o meu feixe de lenha, minha filha!

- Oh! Vovó, que orelhas grandes você tem!

- É para escutar melhor, minha filha!

- Oh! Vovó, que narinas grandes você tem!

- É para cheirar melhor meu rapé, minha filha!

- Oh! Vovó, que boca grande você tem!

- É para te comer melhor, minha filha!

- Oh! Vovó, como estou com fome de ir lá fora!

- Faça na cama, minha filha!

- Oh! Não, vovó, eu quero ir lá fora.

- Bem, mas não demore.

O bzou amarrou um fio de lã no pé dela e a deixou sair.

Quando a pequena saiu, ela amarrou a ponta do fio em uma ameixeira do quintal. O bzou dizia

impaciente: “Estás então fazendo cordas? Estás fazendo cordas?”

Quando se deu conta de que ninguém lhe respondia, pulou da cama e viu que a garota tinha fugido. Ele

a perseguiu, mas chegou à casa dela justamente no momento em que ela entrava.

6 Conto extraído da obra SIMONSEN, M. - O conto popular (tradução: Luis Claudio de Castro e Costa).

São Paulo: Martins Fontes, 1987.

7 Contado por Louis e François Briffault, de Montigny-aux-Amognes, Nièvre, por volta de 1885.

Compilado por Achille Millien.

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CHAPEUZINHO VERMELHO8

(DARNTON)

Certo dia, a mãe de uma menina mandou que ela levasse um pouco de pão e de leite para sua avó.

Quando a menina ia caminhando pela floresta, um lobo aproximou-se e perguntou-lhe para onde se dirigia.

- Para a casa de vovó – ela respondeu.

- Por que caminho você vai, o dos alfinetes ou o das agulhas?

- O das agulhas.

Então o lobo seguiu pelo caminho dos alfinetes e chegou primeiro à casa. Matou a avó, despejou seu

sangue numa garrafa e cortou sua carne em fatias, colocando tudo numa travessa. Depois vestiu sua roupa de

dormir e ficou deitado na cama, à espera.

Pam, pam

- Entre, querida.

- Olá, vovó. Trouxe para a senhora um pouco de pão e de leite.

- Sirva-se também de alguma coisa, minha querida. Há carne e vinho na copa.

- A menina comeu o que lhe era oferecido e, enquanto o fazia, um gatinho disse: “menina perdida!

Comer a carne e beber o sangue de sua avó!”

Então, o lobo disse:

- Tire a roupa e deite-se na cama comigo.

- Onde ponho meu avental?

- Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dele.

Para cada peça de roupa – corpete, saia, anágua e meias – a menina fazia a mesma pergunta. E, a cada

vez, o lobo respondia:

- Jogue no fogo. Você não vai precisar mais dela.

Quando a menina se deitou na cama, disse:

- A vovó! Como você é peluda!

- É para me manter mais aquecida, querida.

- Ah, vovó! Que ombros largos você tem!

- É para carregar melhor a lenha, querida!

- Ah, vovó! Como são compridas as suas unhas!

- É para me coçar melhor, querida!

- Ah, vovó! Que dentes grandes você tem?

- É para comer melhor você, querida!

E ele a devorou.

8 Conto extraído da obra DARNTON, R. - O grande massacre dos gatos e outros episódios da cultura

francesa (tradução: Sonia Coutinho). Rio de Janeiro: Graal, 1986.

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CHAPEUZINHO VERMELHO

(IRMÃOS GRIMM)

Era uma vez uma doce menininha que conquistava o amor de todos que a conheciam, mesmo de quem

só a havia visto uma vez. Ela tinha uma velha avozinha que lhe desejava tudo de bom, de tanto que a amava.

Certa vez, a avó lhe mandou um pequeno manto com um capuz de veludo vermelho que lhe caiu tão bem que ela

ganhou o apelido de Chapeuzinho Vermelho.

Um dia, sua mãe a chamou e disse: “Venha cá, Chapeuzinho. Quero que vá visitar a sua avó e leve um

pedaço de bolo e uma garrafa de vinho para ela, pois está muito fraca e isso vai lhe fazer bem. Mexa-se e

apronte-se antes que o tempo fique quente demais, e vá direto pelo seu caminho, comporte-se bem e com

discrição; e não corra para não cair e quebrar a garrafa, senão a sua avó vai ficar sem vinho. E quando passar

pela vila, não se esqueça de fazer uma mesura e dizer ‘bom dia’ para todos os conhecidos.”

“Vou fazer tudo que está me dizendo, mamãe”, disse a criança, ao se despedir e sair para sua longa

jornada.

Da vila até a casa da avó, era uma boa meia hora de caminhada pelo mato, e mal Chapeuzinho

Vermelho havia entrado no bosque, encontrou um lobo.

Chapeuzinho Vermelho não sabia o animal perverso que ele era, e não lhe teve o menor medo.

“Bom dia, Chapeuzinho Vermelho”, disse o lobo.

“Bom dia, senhor”, replicou a menininha, fazendo uma mesura.

“Onde está indo tão cedo, Chapeuzinho Vermelho?”, ele perguntou.

“Visitar minha avozinha, senhor”, ela respondeu. “Ontem mamãe assou e me mandou levar um pedaço

de bolo e uma garrafa de vinho para ela porque está doente, e isso vai deixa-la mais forte e fazer-lhe bem.”

“Onde mora a sua avozinha, Chapeuzinho Vermelho?”

“A cerca de meia milha daqui, pela mata. Sua casa fica debaixo de três carvalhos grandes, perto das

sebes de nozes; é bem fácil de reconhecer”, disse Chapeuzinho Vermelho.

Ao ouvir isso, o lobo pensou: “esta coisinha delicada seria um doce petisco para mim afinal, e seria

mais saborosa do que sua velha avó, mas não mataria minha fome. Vou ter de comer as duas’’.

Então ele caminhou calmamente ao lado de Chapeuzinho Vermelho até chegarem num trecho da mata

onde cresciam muitas flores.

“Olha, Chapeuzinho Vermelho”, disse ele, “que lindas flores brotam por aqui. Não gostaria de

descansar e colher algumas? Não ouve com que doçura os passarinhos cantam? Você está andando com tanta

pressa como se estivesse indo para a escola, e aqui no bosque é muito mais agradável”.

Chapeuzinho olhou então em volta e viu os raios brilhantes do sol dançando por entre as árvores e

iluminando as lindas flores que cresciam ao seu redor, e pensou: “Se eu levar um ramalhete de flores frescas para

minha avozinha, ela vai ficar muito contente. Ainda é cedo e tenho tempo de sobra”.

Assim, ela saiu de seu caminho e entrou no bosque para colher algumas, viu outras ainda mais bonitas

mais adiante, e assim foi andando mais e mais longe penetrando nas profundezas da mata.

Enquanto isso, o lobo foi direto para a casa da avó e bateu à porta.

“Quem é?”

“Chapeuzinho Vermelho”, respondeu lobo, imitando a voz da menina. “Mamãe me mandou me trazer

um pedaço de bolo e uma garrafa de vinho para a senhora. Abra a porta.”

“Levante o trinco e entre”, ela replicou. “estou fraca demais para me levantar.”

Aí o lobo levantou o trinco, abriu a porta e depois entrou correndo, saltou sobre a pobre e velha

avozinha e a devorou. Em seguida ele fechou a porta, vestiu a camisola e a touca da velha, e deitou-se na cama à

espera de Chapeuzinho Vermelho.

Depois de Chapeuzinho Vermelho colher todas as flores que podia carregar, achou rapidamente o

caminho de volta e caminhou apressada até a casa da avó, e bateu à porta.

“Quem é?”, perguntou o lobo, tentando imitar a avó. Sua voz era tão áspera, porém, que Chapeuzinho

Vermelho teria ficado assustada se não soubesse que sua avó estava resfriada.

Ela então respondeu:

“É Chapeuzinho Vermelho. Mamãe mandou um pedaço de bolo e uma garrafa de vinho para a

senhora.”

“Levante o trinco e entre”, disse o lobo.

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Aí Chapeuzinho Vermelho levantou o trinco e entrou.

Quando viu a avó, como pensava, deitada na cama, foi até ela e abriu as cortinas, mas só pôde ver a

cabeça porque o lobo havia puxado a touca o mais que podia por cima do roso.

“Bom dia”, disse ela, sem receber resposta. Então se aproximou da cama e gritou: “Puxa, vovó, que

orelhas tão grandes a senhora tem!”

“São para melhor te ouvir, minha querida”, disse o lobo.

“E que olhos tão grandes a senhora tem!”

“São para melhor te ver, minha querida.”

“Mas vovó, que mãos grandes a senhora tem!”

“São para melhor te abraçar, minha querida.”

“Mas vovó, que dentes grandes a senhora tem!” exclamou Chapeuzinho Vermelho, que estava

começando a ficar assustada.

“São para melhor te devorar!”, exclamou o lobo, e saltando da cama, agarrou a pobre Chapeuzinho

Vermelho e a engoliu de uma só bocada.

Tendo saciado a fome, o lobo deitou-se na cama e pôs-se a roncar tão alto que podia ser ouvido lá fora.

Um caçador que havia saído para caçar com a sua espingarda, estava passando por ali e pensou: “Como

ronca essa velha! Vou entrar e ver o que está acontecendo.”

Então ele entrou no quarto e quando se aproximou da cama, viu o lobo deitado.

“Ora, ‘seu’ velho pecador”, disse o caçador, “não é que finalmente te encontrei? Estou te procurando há

muito tempo, Senhor Lobo.”

Ele já ia erguendo a espingarda quando deu pela falta da velha e imaginando que o lobo a poderia ter

engolido, lembrou-se de que ainda era possível salvá-la. Resolveu então não atirar e, pegando uma tesoura, abriu

o estômago do lobo adormecido.

Qual não foi a sua surpresa quando ele viu o rosto sorridente de Chapeuzinho Vermelho espiar para fora

ao primeiro corte, e quando o abriu mais, ela saltou para fora exclamando:

“Puxa, fiquei tão assustada. Estava terrivelmente escuro no estômago do lobo!”

Depois eles ajudaram a velha avozinha, que estava viva e inata, a sair, mas ela mal conseguia respirar.

Quando o lobo acordou, era tarde demais para salvar a própria vida. Ele caiu de novo na cama e morreu, e o

caçador arrancou a sua pele. Depois disto, todos se sentaram, muito contentes, beberam o vinho e comeram o

bolo que Chapeuzinho Vermelho havia trazido, e depois o caçador levou a menininha sã e salva para casa.

“Puxa”, pensou ela, “nunca mais sairei de meu caminho para andar pelo mato quando minha mãe me

proibir”.

*********************

Conta-se que certa vez depois disso, quando Chapeuzinho Vermelho estava mais uma vez a caminho da

casa de sua avó com alguns petiscos que sua mãe havia preparado, outro lobo conversou com ela e tentou

convencê-la a afastar-se de seu caminho.

Mas Chapeuzinho Vermelho estava prevenida, e seguiu em frente sem parar, até a casa da avó.

“Puxa, vovó”, disse ela, “encontrei um lobo que me desejou ‘bom dia’, mas ele me olhou com olhos tão

malvados que se eu não estivesse na estrada estou certa de que me teria devorado.”

“É possível que ele venha até aqui”, disse a avó. “Vamos trancar a porta e deixa-lo do lado de fora.”

E de fato, logo depois o lobo chegou à porta e bateu, gritando: “Abra a porta, vovó. Sou Chapeuzinho

Vermelho trazendo bolo e vinho para a senhora.” Mas as duas ficaram em silêncio e a porta não foi aberta.

O velho e astuto patife ficou rondando então a casa até que saltou para cima do telhado para esperar que

Chapeuzinho Vermelho saísse para voltar para casa, ao anoitecer. Aí ele poderia agarrá-la no escuro e devorá-la.

Mas a avó adivinhou o que ia pela sua cabeça. Ora, havia, perto da casa, um grande cocho de pedra, e

ela disse para a menina:

“Chapeuzinho, cozinhei uma grande linguiça ontem. Despeje a água onde ela foi cozida no cocho de

pedra.”

Chapeuzinho Vermelho despejou a água da panela de cobre no cocho até ficar bem cheio e o cheiro a

linguiça chegar até o focinho do lobo. Ele cheirou, cheirou, e olhou para baixo, esticando de tal forma o pescoço

que perdeu o equilíbrio e caiu do telhado dentro do grande cocho cheio de água, e se afogou. Chapeuzinho

Vermelho voltou salva e contente para casa, naquela noite, e ninguém, tentou magoá-la no caminho.

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A MENINA DO CHAPELINHO VERMELHO9

(CONTOS PORTUGUESES)

Era uma vez uma mulher que estava numa serra, e teve duas filhas.

A primeira chamava-se Maria.

Um dia a avó as meninas foi à serra e encontrou a menina mais velha.

A menina foi dirigida à avó e beijou-lhe a mão, e a avó disse:

- Deixai estar, minha menina, que te hei-de dar um chapelinho vermelho; vai a minha casa busca-lo.

A menina foi para a casa da mãe, chorando que lhe fizesse um bolinho para levar à sua avozinha, e a

outra irmã fiou em casa cheia de raiva.

A mãe perguntou-lhe:

- Então como conheces tu a tua avozinha?

A menina respondeu:

- Sei, porque estive agora com ela, e ela disse que me há-de dar um chapelinho vermelho.

A mãe fez-lhe o bolo e mandou-a leva-lo à avó.

A menina foi andando muito contente e, chegando a um caminho, encontrou um homem-lobo (tem parte

homem e parte lobo, mas não é o mesmo que lobisomem).

Andava a menina comendo amoras de um valado e perguntou-lhe o lobo-homem:

- Que fazeis aí, menina?

Ela respondeu:

- Estou comendo amorinhas.

O homem-lobo tornou a perguntar-lhe:

- Tu que levas aí

Ela disse:

- Levo aqui um bolinho para minha avozinha.

O lobo assim que ouviu falar nisso disse-lhe:

- Pois vais tu por aqui, que eu vou por ali, a ver quem chega lá primeiro.

Chegou ele primeiro e bateu à porta.

A velha veio e abriu a porta e disse-lhe:

- Entra , minha netinha, que hás-de estar gelada.

Nisto a avó adormeceu.

Daí a pouco chegou a menina, e bateu à porta.

O lobo-homem falou em lugar da avó que estava a dormir:

- Entra menina, que a porta está aberta.

A menina entrou e foi deitar-se com o lobo, julgando que era como a avó.

Depois, quando estava deitada, começou a correr-lhe a mão pelo corpo, e a dizer-lhe:

- Ó minha avozinha, para que tem você tanto cabelo pelo corpo?

O lobo respondeu:

- É para não ter frio de dia, minha netinha.

A menina tornou a perguntar:

- E para que tem você pernas tão compridas?

O lobo disse:

- É para correr muito, para andar muita terra em pouco tempo.

Quando estava com esta conversa, a avó que era uma fada acordou e tratou de se preparar para encantar

o lobo.

A menina tornou a perguntar:

- Ó minha avozinha, para que tem você uns braços tão compridos?

O lobo respondeu:

- É para te abraçar bem, minha netinha.

9 Todos os contos portugueses foram retirados da obra CONSIGLIERI, P. (org) - Contos populares

portugueses. Lisboa: Veja, 1985.

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A menina tornou a perguntar:

- E para que tem você uma boca tão escachada?

- É pra te comer bem, respondeu o lobo, e mais à tua avó; e ia para comer a menina.

Nisto a avó levantou-se muito depressa e deu-lhe uma troçada (pancada) com a varinha de condão, e

ficou o lobo encantado.

Depois a avó encheu-o todo de foguetes e girassóis amarrados ao lobo, deitaram-lhe o fogo, e assim que

sentiu o pelo a arder, deitou a fugir, que era o que a velha queria e mais a menina, e depois o lobo foi-se deitar ao

poço do moinho, onde morreu afogado.

Depois a avó começou a repreender a menina por ela dar atenção ao lobo no caminho.

A menina disse que ela a queria comer, mas ela disse-lhe que vinha de volta.

A avó disse-lhe que não tornasse a fazer aquilo.

Depois disse-lhe:

- Agora toma lá o chapelinho vermelho que te prometi e tu fala sempre muito bem a toda gente, faz a

vontadinha a todos, e se alguém te pedir água, dá-lhe com boa vontade, que tu hás-de ser feliz.

Nisto foi a menina para a serra para casa da mãe.

Não levava nada senão o chapelinho vermelho.

A outra irmã estava toda raivosa por não ter um chapelinho também.

A mãe depois mandou um dia a mais velha buscar água mas ela não quis.

A mais nova ofereceu-se logo e disse:

- Ó minha mãezinha, dê cá que eu vou.

E assim foi.

Estava na fonte enchendo o cântaro, passou uma velhinha, que era a mesma que lhe havia dado o

chapelinho vermelho, mas que ela não conheceu porque ia de outra maneira.

A velhinha pediu água à menina do chapelinho vermelho, e esta deu-lha com muito bom modo.

Depois a velha disse-lhe:

- Olha, tu és a menina do chapelinho vermelho?

A menina respondeu:

Sou sim, minha senhora.

A velha disse-lhe:

- pois olha, faz tudo sempre bem e trata bem a todos, que eu hei-de dar-te uma prenda de botares flores

pela boca, quando falares para algum.

Depois a velha foi-se embora.

Foi a menina para casa coma água.

A mãe ralhou com ela por ela tardar, e ela disse:

- Minha mãe, eu venho agora, porque estive a dar água e a conversar com a velhinha e ela disse-me que

me havia de dar uma prenda; e começou deitar flores pela boca.

Nisto perguntou-lhe a mãe o que fizera ela à velhinha para ela lhe dar aquela prenda.

A menina disse:

- ela pediu-me água e eu disse-lhe que a fosse beber à fonte.

E ela disse-me:

- Mal fadada sejas tu, que o prémio que recebas seja deitares flores pela boca.

A irmã mais velha, que estava com muita inveja, quis ir à água também.

E foi.

Apareceu-lhe a mesma velhinha e disse-lhe:

- Ó! Menina, dás-me uma pinguinha de água?

Ela respondeu-lhe:

- Ora! Eu dou-lhe agora água! Vá bebê-la à fonte!

A velha disse-lhe:

- Fadada sejas tu, que laves as mãos e nunca elas se lavem, e quando falares deitares chanquinos (sapos

pequenos) pela boca.

Foi ela para o pé da mãe e ela perguntou-lhe o que ela tinha feito que se tinha demorado tanto.

Ela disse:

- Ora, passou lá uma velha, pediu-me água e eu ralei com ela e disse-lhe que fosse bebê-la à fonte.

E nisto começou a deitar chanquinos pela boca.

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A mãe ganhou raiva á mais nova e começou a bater-lhe por ela ter ensinado a irmã errado.

A menina do chapelinho vermelho fugiu para o mente.

Andou por ali muito tempo morta com fome, toda rota e esfarrapada.

Foi depois ser moça de servir.

Um dia apareceu ali um príncipe que ia á caça e perguntou-lhe, vendo-a tão linda, o que fazia por ali.

A menina contou-lhe tudo.

E nisto começou a deitar flores pela boca.

O príncipe quando viu isto, disse-lhe que ficasse ali, que a mandava buscar para casar com ela.

Depois o príncipe preparou uma carruagem e veio busca-la à serra.

E assim fez.

Depois recebeu-a como sua esposa, e a outra irmã ficou sempre deitando chanquinos pela boca.

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O CHAPELINHO VERMELHO

(CONTOS BRASILEIROS)

Uma senhora viúva tinha uma filha de dez anos, que era o seu enlevo. Sempre que se aproximava o dia

do aniversário de Laura, a mãe a levava à cidade e escolhia um presente ao gosto da pequena. No seu décimo

aniversário, ela desejou possuir uma sombrinha cor vermelha, que a mamãe comprou. Desde então não saía a

passeio sem a sombrinha, as meninas vizinhas puseram-lhe a alcunha de “Chapelinho vermelho”.

Certa vez a mãe de Laura preparou um bolo para a filha levar à casa de sua avó, à beira de uma floresta.

Recomendou-lhe que fosse pelo caminho sem dele se desviar, porque no mato havia bichos maus.

Laura tomou o bolo e a principio observou a recomendação; mas em dado ponto do itinerário, viu uma

borboleta azul que era uma beleza e quis segurá-la. A borboleta voou para a mata; Chapelinho Vermelho seguiu-

lhe a pista até um recanto onde se lhe deparou um vulto de olhos de fogo, que a fitou demoradamente: era um

lobo que logo se aproximou, perguntando o que viera fazer ali.

Respondeu a menina que levava um bolo à sua avó e, vendo uma borboleta, seguiu-a até a paragem

onde se achava.

A isso respondeu o interlocutor.

- Você é que está um bolo bom de comer. – E prosseguiu:

- Diga-me uma cousa, menina: sua avó mora só?

- Sim, senhor;

- E você quando lá chegar como faz para ela lhe abrir a porta?

- Eu bato e ela pergunta: “- Quem está a´?”

Respondo:

“- É Chapelinho Vermelho, sua neta, que lhe vem trazer um bolo.”

Vovó diz, então: “- a chave está por baixo da porta, preso ao cordão cuja ponta se vê de fora.” Eu abro a

porta e entro, porque minha vovó já custa a se levantar da cama.

Informado o lobo, concluiu a ingênua criança:

- Agora, peço que o senhor me indique a direção que devo seguir para achar com presteza o caminho e

me perdoe ter entrado em seus domínios sem lhe pedir licença. Não foi por mal e só por causa da borboleta.

O lobo apontou-lhe um rumo errado e partiu pela floresta como uma flecha, até descobrir a casa da avó

de Laura, onde, imitando a voz desta e pondo em prática as informações colhidas, entrou e chegando ao quarto

engoliu a pobre da velha, tendo antes fechado a porta de entrada e posto a chave no lugar de costume.

Assim satisfeito, deitou-se na cama da vítima e cobriu-se o melhor que pôde. Decorrido um certo

espaço de tempo, chega Chapelinho Vermelho e, depois das perguntas e respostas costumeiras, entra, ignorando

tudo que se havia passado com a velha, não tendo, entretanto, fechado, por esquecimento, a porta da rua.

Ao penetrar no quarto, depôs o bolo em um móvel e notando que a suposta avó estava toda enrolada na

cama, inquiriu:

- Vovó, você parece que está com muito frio?

Teve em resposta:

- Muito frio, minha neta.

- Vovó, por que é que você está com as orelhas tão compridas?

- É para ouvir bem, minha neta.

- E por que vovó está com a boca tão grande?

- É para devorar-te. – E segurando Laura, engoliu-a, como antes o fizera à velha avó.

Nos arredores da vivenda da pobre velha morava um caçador cujas ovelhas de vez em vez eram

dizimadas por esse mesmo lobo e o caçado andava-lhe no encalço. Passando por perto daquela habitação, quase

sempre via a avó da menina à janela e com ela conversava; mas, na tarde de que se trata e em que ocorreram tão

graves acontecimentos, olhou e não a viu. Intrigou-o a circunstância de se achar aberta a porta da rua. Caminhou

para o lugar indicado e entrou na sala; silêncio absoluto!

Pé ante pé foi até o quarto e, desde logo vendo o lobo, imaginou o que teria sucedido.

Tomou da faca e sangrou-o. examinando o animal de perto, verificou que estava com o ventre

entumecido; abriu-o e eis que saltam as duas vítimas que lhe relataram quanto haviam sofrido do feroz animal.

Chapelinho Vermelho e o caçador transportaram a velha, que ficou desde então morando com a filha e a

neta. Desde esse dia Laura nunca mais se esqueceu das recomendações e conselhos maternos.

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(O Pequeno Polegar. Ilustração de Gustave Doré)

Versões do conto

O Pequeno Polegar

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O PEQUENO POLEGAR

(PERRAULT)

Era uma vez um lenhador e uma lenhadora que tinham sete filhos, e todos meninos. O mais velho tinha

só dez anos, e o caçula, sete. Pode causar surpresa que o lenhador tenha tido tantos filhos em tão pouco tempo,

mas isso ocorria porque a sua esposa era apressada e costumava ter dois por vez.

Eles eram paupérrimos, e os seus sete filhos os incomodavam muito, porque nenhum deles podia ainda

ganhar a vida. O que os entristecia ainda mais era o fato de o caçula ser muito delicado e de não dizer palavra:

tomavam por retardamento mental o que era bondade da alma. Tinha estatura muito pequenina, e quando veio ao

mundo, não era maior do que um polegar, por isso o chamaram de Pequeno Polegar. Essa pobre menino logo se

tornou o saco de pancadas da casa, e punham a culpa nele por tudo. No entanto, era o mais inteligente e mais

sagaz de todos os irmãos, e se falava pouco, em compensação escutava muito.

Num ano deplorável e de grande escassez e fome, os pais resolveram livrar-se dos filhos. Certo dia,

estando os meninos deitados, e o lenhador e a lenhadora ao pé do fogo, aquele disse a esta de coração partido.

- Já deve ter percebido que não podemos mais alimentar os nossos filhos. Eu não conseguiria vê-los

morrer de fome diante de meus olhos, e, por isso, resolvi levá-los ao bosque amanhã para que se percam, o que

será muito fácil, pois enquanto eles estiverem divertindo-se a empilhar galhos, só nos bastará irmos embora, sem

que nos vejam.

- Ah! – exclamou a lenhadora – conseguirá mesmo deixar que os seus filhos se percam?

Por mais que o marido lhe ressaltasse a sua pobreza, ela não podia permitir semelhante coisa: era pobre,

mas era mãe. Entretanto, depois de pensar como seria doloroso vê-los morrer de fome, concordou, e foi deitar-se

aos prantos.

O Pequeno Polegar ouviu tudo o que eles disseram, pois, tendo ouvido lá de dentro que eles falavam de

um plano, levantou-se silenciosamente, esgueirou-se e foi pôr-se debaixo do tamborete em que estava o pai para

escutá-los sem ser visto. Voltou a se deitar e não dormiu o resto da noite, pensando no que deveria fazer.

Levantou-se cedinho e foi ao bosque, _a margem de um regato, onde encheu os bolsos de pequenos pedregulhos

brancos, e, em seguida, voltou para casa.

Todos saíram, e o Pequeno Polegar não revelou nada do que sabia aos irmãos. Foram para uma floresta

muito densa, onde a dez passos de distância um não via o outro. O lenhador se pôs a cortar madeira e os seus

filhos a colher galhinhos para fazer pilhas. O pai e a mãe, vendo-os ocupados a trabalhar, foram embora de

imediato por um pequeno atalho.

Quando os meninos perceberam que estavam sozinhos começaram a gritar e a chorar o mais alto que

podiam. O Pequeno Polegar os deixava gritar, sabendo muito bem por onde voltaria para casa, pois enquanto

andara, lançara, ao longo do caminho, os pequenos pedregulhos brancos que tinha nos bolsos. Então, disse-lhes:

- Não tenham medo, meus irmãos. Os nossos pais nos deixaram aqui, mas eu os levarei de volta para

casa, basta que me sigam.

Seguiram-no, e ele os levou para casa pelo mesmo caminho que tinham ido para a floresta. No início,

não ousaram entrar, mas se puseram todos à porta para escutar o que o pai e a mãe diziam.

No exato instante em que o lenhador e a lenhadora chegaram à casa, o senhor da aldeia lhes enviou dez

escudos que lhes devia há muito tempo, e cujo retorno já não esperavam. Isso lhes voltou a dar vida, pois aquela

pobre gente morria de fome. O lenhador mandou na hora a mulher ao açougue. Como há muito tempo não se

comia, ela comprou três vezes mais carne do que seria necessário para alimentar duas pessoas. Depois de

empanturrados a lenhadora disse:

- Ai, meu Deus! Onde estarão os nossos pobres filhos? Eles teriam uma boa refeição com o que restou.

Mas foi você, Guilherme, quem quis que eles se perdessem. Bem que eu falei que nos arrependeríamos. O que

fazem eles agora naquela floresta? Ai, meu Deus, talvez os lobos já os tenham comido! Você é mesmo muito

desumano por ter feito os seus próprios filhos se perderem dessa maneira.

O lenhador acabou por perder a paciência, pois ela repetiu mais de vinte vezes que eles se

arrependeriam e ela em que tinha dito. Ele a ameaçou, caso ela não se calasse. Talvez o lenhador estivesse até

mais aborrecido do que a sua esposa, porém ela o enfadava, e ele era igual aos outros, que gostam muito das

mulheres que falam bem, mas julgam maçantes as que bem falam.

A lenhadora se desfazia em lágrimas:

- Ai, meu Deus! Onde estarão agora os meus filhos, os meus pobres filhos?

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E uma vez disse isso tão alto que os meninos que estavam à porta, ao escutá-la, se puseram a gritar

todos juntos:

- Estamos aqui, estamos aqui.

Ela correu depressa para abrir a porta, e disse-lhes, beijando-os:

- Como estou feliz em revê-los, meus queridos filhos! Estão muito cansados e com muita fome, e você,

Pedrinho, como está enlameado, venha que eu vou limpá-lo.

O Pedrinho era o filho mais velho e também aquele a quem ela mais amava, porque era um pouco ruivo

como ela.

Eles se puseram à mesa, e comeram com um apetite que dava gosto ao pai e a mãe, a quem contavam o

medo que haviam tido na floresta, e falavam quase sempre juntos. Os bons pais estavam radiantes por rever os

filhos com eles, mas essa alegria durou enquanto duraram os dez escudos.

No entanto, quando o dinheiro acabou, ficaram tristes de novo, e resolveram fazer com que os filhos se

perdessem novamente, para que isso desse certo, os levariam para bem mais longe do que da primeira vez.

Porém, não conseguiram falar tão em segredo para não serem ouvidos pelo Pequeno Polegar, que contou

resolver a coisa como já havia feito. Mas, embora se tivesse levantado cedinho de manhã para juntar pequenos

pedregulhos, não o conseguiu, pois encontrou a porta da casa fechada com duas voltas de chave. Ele não sabia o

que fazer, quando a lenhadora, depois de dar a cada qual um pedaço de pão como café da manhã, lhe deu a ideia

de se servir do pão no lugar dos pedregulhos, lançando-os em migalhas ao longo dos caminhos por onde

passassem. Então, o pôs no bolso.

O pai e a mãe os levaram ao local mais denso e escuro da floresta, e assim que chegaram, pegaram um

desvio, da floresta, e assim que chegaram, pegaram um desvio, deixando-os lá. O Pequeno Polegar não ficou

muito triste, pois achava que encontraria facilmente o caminho pelas migalhas de pão que havia lançado por toda

parte por onde eles tinham passado. Porém, ficou muito surpreso quando não conseguiu encontrar uma só

migalha, pois os pássaros haviam comido tudo. Assim, ficaram todos muito aflitos, porque quanto mais

andavam, mais se perdiam e mais penetravam na floresta.

Chegou a noite, e subiu uma ventania que os deixava exageradamente apavorados. Achavam que só

ouviam, de todos os lados, uivos de lobos que vinham até eles para comê-los. Quase não tinham coragem de

conversar entre si, nem de virar a cabeça. Despencou uma chuva forte que os enregelou até os ossos;

escorregavam a cada passo e caíam na lama, de onde se levantavam todos sujos, não sabendo o que fazer com as

mãos.

O Pequeno Polegar trepou no alto de uma árvore para ver se descobria algo, e após virar a cabeça para

todos os lados, viu uma fraca luz como de uma vela, mas que estava muito longe, para além da floresta. Desceu

da árvore, e quando pisou no chão, não viu mais nada, o que o desanimou. No entanto, após andar com os irmãos

pelo lado em que avistava a luz. Ele a reviu quando saía do bosque. Por fim, chegaram a uma casa onde estava a

dita vela, não sem temor, pois muitas vezes a perdiam de vista, o que lhes acontecia sempre que eles desciam em

alguns vales. Bateram à porta, e uma simpática mulher foi abri-la. Perguntou-lhes o que desejavam. O Pequeno

Polegar lhe disse que eles eram pobres meninos que se haviam perdido na floresta, e que pediam, por caridade,

para dormir lá.

A mulher, ao vê-los tão bonitinhos, pôs-se a chorar, e disse-lhes:

- Ai! Meus pobres meninos, onde vieram parar! Sabem que esta é a casa de um ogro que come

criancinhas?

- Ai, senhora! – respondeu-lhe o Pequeno Polegar, que tremia muito, como os irmãos -, que faremos?

Com toda a certeza os lobos da floresta nos comerão esta noite, se não quiser abrigar-nos na sua casa. E, se for

assim, preferimos que o senhor nos coma. Talvez ele se apiede de nós, se a senhora tiver a bondade de pedir-lhe.

A mulher do ogro, que acreditou que os poderia esconder do marido até a manhã do dia seguinte, os

deixou entrar e os levou para junto da lareira a fim de que se aquecessem, pois havia um carneiro inteirinho no

espeto para alimentar o ogro. Quando começaram a se aquecer, ouviram bater fortemente três ou quatro vezes na

porta: era o ogro que estava de volta. Na hora, a sua mulher os escondeu debaixo da cama e foi abri-la.

O ogro perguntou primeiro se a ceia estava pronta, e se ela havia buscado o vinho, e em seguida, pôs-se

à mesa. O carneiro ainda estava sangrando, mas ele o achou melhor ainda assim. Ele farejava à direita e à

esquerda, dizendo que sentia cheiro de carne fresca.

- Deve ser – disse-lhe a mulher – o cheiro esse veado que preparei.

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- Sinto cheiro de carne fresca, digo-lhe mais uma vez – retomou o ogro – olhando para a mulher de

soslaio -, e há aqui algo que eu não compreendo. Dizendo essas palavras, deixou a mesa, e foi diretamente para a

cama.

Ah! – disse ele – Então queria enganar-me, maldita mulher! Não sei o que me impede de comê-la

também. Quem sabe você não se torne um animal velho. Eis a carne que me vem a calhar para receber três ogros

amigos meus que virão visitar-me um dia desses.

E tirou, um por um, os meninos que estavam debaixo da cama. As pobres crianças se puseram de

joelhos, pedindo-lhe perdão. Porém, eles estavam lidando com o mais cruel de todos os ogros que, muito longe

de ter pena deles, já os devorava com os olhos, e dizia à mulher que eles seriam saborosos bocados quando ela

preparasse um bom molho. Foi pegar um facão, e aproximando-se dos pobres meninos, começou a afiá-lo numa

grande pedra que tinha na mão esquerda. Já havia agarrado um, quando a esposa disse:

- O que quer fazer a esta hora? Não terá tempo suficiente até amanhã de manhã?

- Cale-se – retomou o ogro -, eles ficarão mais macios.

- mas você ainda tem muita carne aqui – retomou a mulher – Temos um veado, dois carneiros e metade

de um porco!

- Tem razão – disse o ogro. – Alimente-os bem para que não emagreçam e os ponha para dormir.

A boa mulher ficou radiante de alegria, e lhes deu uma farta ceia, mas eles não conseguiram comer de

tanto medo que sentiam. Já o ogro voltou a beber, satisfeito por ter com o que regalar muitos amigos. Bebeu uma

dúzia d copos a mais do que costumava, o que lhe subiu um pouco à cabeça, e o obrigou a ir deitar-se.

O ogro tinha sete filhas, que ainda eram crianças. Essas ograzinhas tinham todas a tez muito bonita, pois

comiam carne fresca como o pai. Porém, tinham os olhinhos cinzentos e redondos, o nariz adunco e uma bocarra

com longos e afiadíssimos dentes muito separados uns dos outros. Não eram tão más, mas prometiam muito,

pois já mordiam as criancinhas para lhes chupar o sangue.

Puseram-nas para dormir cedo, e as sete estavam numa grande cama, tendo cada qual, uma coroa de

ouro na cabeça. Havia, no mesmo quarto, uma outra cama do mesmo tamanho. Foi nesta última cama que a

mulher do ogro pôs o sete meninos para dormir, depois do quê, foi deitar-se ao lado do marido.

O Pequeno Polegar, que percebera que as filhas do ogro tinham coroas de ouro na cabeça, e que temia

que o ogro sentisse remorso por não ter degolado naquela noite mesmo, levantou-se no meio da noite, e pegando

os gorros dos irmãos e o seu, foi, a passos de veludo os pôr na cabeça das sete filhas do ogro, depois de lhes tirar

as suas coroas de ouro, que pôs na cabeça dos irmãos e na sua, para que o ogro os tomassem pelas suas filhas, e

as suas filhas pelos meninos que ele queria degolar. A coisa deu certo como ele havia pensado, pois o ogro, tende

despertado à meia-noite, se arrependeu de ter deixado para o dia seguinte o que podia fazer na véspera. Então,

saiu bruscamente da cama, e pegando o facão, disse:

- Vamos ver como se comportam os engraçadinhos. Não pensaremos duas vezes.

Em seguida, subiu, tateando, ao quarto das filhas e aproximou-se da cama em que estavam os

menininhos, que dormiam todos, exceto o Pequeno Polegar, que teve muito medo quando sentiu a mão do ogro

que lhe apalpava a cabeça, como já havia apalpado a de todos os seus irmãos. O ogro, ao sentir as coroas de

ouro, disse:

- Realmente, eu ia fazer um belo trabalho. Acho que bebi demais ontem à note.

Foi, depois, à cama das filhas, onde, ao sentir os gorrinhos das meninos, disse:

- Ah, eis os nossos manhosos! Trabalhemos ousadamente!

Dizendo essas palavras, degolou, sem titubear, as sete filhas. Muito contente com essa expedição,

voltou a se deitar ao lado da esposa.

Logo que o Pequeno Polegar ouviu o ronco do ogro, despertou os irmãos, e lhes disse que se vestissem

imediatamente e o seguissem. Desceram a passos de veludo ao jardim, e pularam as muralhas. Correram quase a

noite toda, sempre a tremer, e sem saber para onde iam.

Ao despertar, o ogro disse à esposa:

- Vá lá em cima preparar aqueles engraçadinhos de ontem à noite.

A ogra ficou muito surpresa com a bondade do marido, e não duvidando de modo algum que ele não

queria que os preparasse para cozer, e achando que lhe ordenava que os vestisse, subiu, e uma vez lá em cima,

ficou muito assustada ao ver as suas sete filhas degoladas a nadar no sangue.

Começou por desmaiar (pois é o primeiro expediente de que se valem as mulheres em tais situações). O

ogro, achando que a esposa estava demorando muito para cumprir a tarefa que lhe fora incumbida, subiu para

ajuda-la. Não ficou menos assustado do que a sua mulher quando viu aquele terrível espetáculo.

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- Ah! O que fiz eu? – exclamava. – Eles me pagarão, aqueles malvados, e já.

Na hora, lançou água no nariz da mulher para que ela recobrasse os sentidos, e disse-lhe:

Dê-me, agora, as minhas botas sete-léguas, para que eu vá pegá-los.

Saiu para o campo, e depois de ter corrido bem longe e por todos os lados, acabou por entrar no

caminho pelo qual andavam os pobres meninos que não estavam a cem passos da casa do pai. Viram o ogro que

ia de montanha em montanha, e que atravessava rios tão facilmente como se entrasse do menor regato. O

Pequeno Polegar, que viu um rochedo oco perto do lugar onde eles estavam, lá se escondeu com os seis irmãos,

sem deixar de ver o que acontecia com o ogro.

O ogro, muito cansado devido ao longo caminho que havia percorrido inutilmente (pois as botas sete-

léguas cansam muito um homem), quis repousar, e, por acaso, foi sentar-se na rocha em que os menininhos

estavam escondidos. Como não suportava mais a fadiga, adormeceu depois de repousar por algum tempo, e

começou a roncar tão terrivelmente que as pobres crianças tiveram tanto medo quanto haviam tido quando ele

segurava o facão para degolá-los. O Pequeno Polegar teve menos medo, e disse aos irmãos que corressem

depressa para casa, enquanto o ogro dormia profundamente, e que não tivessem pena dele. Seguiram o seu

conselho e logo chegaram à casa.

Depois de se aproximar do ogro, o Pequeno Polegar lhe tirou as botas bem devagar, e as calçou na hora.

As botas eram muito grandes e largas, mas como eram mágicas tinham o dom de aumentar ou diminuir, de

acordo com a perna daquele que as calçasse, de modo que ficaram tão ajustadas nos seus pés, como se tivessem

sido feitas para ele.

Foi diretamente para a casa do ogro onde encontrou a mulher dele aos prantos, junto às filhas degoladas.

- O seu esposo – disse-lhe o Pequeno Polegar – corre grande perigo, porque foi pego por um bando de

ladrões que o juraram de morte, se ele não lhes der todo o seu ouro e toa a sua prata. No momento em que

estavam com o punhal na sua garganta, ele me viu e rogou que viesse pô-la a par do que ocorria, e que lhe

dissesse para dar-me tudo o que tem de valioso, sem nada reter, caso contrário eles o matarão sem misericórdia.

E como a coisa urge, quis que eu pegasse as suas botas de sete-léguas, que cá estão, para que viesse apressada e

caridosamente, e também para que a senhora não pensasse que sou um mentiroso deslavado.

A boa mulher, muito assustada, logo lhe deu tudo o que tinha, pois aquele ogro era, apesar de tudo, um

bom marido, embora comesse criancinhas. O Pequeno Polegar, uma vez de posse de todas as riquezas do ogro,

voltou para a casa do seu pai, onde foi recebido com muita alegria.

Há quem não concorde com essa última circunstância, e que pretenda que o Pequeno Polegar nunca

roubou o ogro; que na verdade ele nunca teve remorsos por tomar as botas sete-léguas, pois o ogro as usava só

para correr atrás de criancinhas.

Tais pessoas garantem que o sabem de fonte segura, e até mesmo por terem comido e bebido na casa do

lenhador. Garantem que o Pequeno Polegar calçou as botas do ogro, e foi para a Corte, onde sabia que estavam

preocupados com um exército que estava a duzentas léguas de distância e com o resultado de uma batalha

ocorrida. Ele foi, dizem, procurar o rei, e disse-lhe que se desejasse, traria notícias do exército antes do fim do

dia. O rei lhe prometeu uma grande soma em dinheiro se ele conseguisse fazer isso. O Pequeno Polegar trouxe as

notícias naquela tarde mesmo, e tornando-se conhecido por essa primeira façanha, ganhou tudo o que queria,

pois o rei o pagava muitíssimo bem por levar as suas ordens ao exército, e uma infinidade de damas lhe davam

tudo o que ganhava com esse expediente.

Depois de ter exercido, durante algum tempo, o ofício de mensageiro, e de ter, mediante isso,

acumulado muito dinheiro, voltou para a casa dopai, onde é impossível imaginar a alegria que todos sentiram ao

revê-lo. Deixou toa a família em boa situação. Comprou cargos recém-criados para o pai e para os irmãos e,

assim, estabeleceu todos, ao mesmo tempo que criou para si uma excelente posição na Corte.

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MORALIDADE

Ninguém sói afligir-se imensamente

De que venham os filhos irmanados,

Se todos saem belos, caprichados

E com um exterior resplandecente;

Mas se um deles é débil

E nenhuma palavra diz, é flébil,

E também desprezado e escarnecido;

Entretanto, já tem acontecido

De a pobre criatura

Dar à família a mais ala ventura.

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O CONTO DO DIABO10

11

(POITOU)

Era uma vez um homem que teve a infelicidade de perder sua primeira mulher e ficar viúvo com dois

filhos: um garoto e uma menina; e teve a infelicidade de se casar de novo, somente para pegar uma mulher má,

que não podia de jeito nenhum suportar essas pobres crianças!

Um dia, ela disse ao marido:

- E então, escuta! Deves levar essas duas crianças para o mais longe que puderes! Faz com que elas se

percam, que eu não as veja mais!

E então esses dois coitadinhos ficaram muito desesperados, minha gente! Para marcar seu caminho,

encheram os bolsos de cinza. E o pai infeliz os leva para o fundo da floresta e diz:

- Fiquem aqui! Vou cortar lenha, fazer meus feixes, mais longe: quando eu acabar, chamarei vocês.

E lá ficaram as duas pobres crianças esperando um bom tempo; mas o pai não chamava de jeito

nenhum. Então elas se puseram a caminho para voltar pela mesma trilha que conheciam, por terem jogado as

cinzas; e chegaram, começava a ficar tarde, à porta, quando seu pai e a malvada tia já tinham jantado. Tinha

sobrado alguma coisa (não posso dizer o que era, não me lembro mais).

- Ah! disse a mulher malvada, se nossos pequenos estivessem aqui, eles bem que comeriam os nossos

restos!

Ah! lá estão os pequenos, e respondem:

- Ei! Nós tamos (nós estamos) bem aqui, tia!

Então a tia malvada se levanta com ódio:

- Ah! tu levaste teus filhos bem longe! Estás vendo como os levaste para bem longe! Eles voltaram!

E eles mandaram as crianças entrar, mesmo assim, para passar a noite em casa.

E no dia seguinte de manhã, ela disse:

- Vais leva-las para muito, muito longe! Vê se não faz como ontem, vê lá se elas vão voltar novamente!

Então as pobres crianças enchem seus bolsos de grãos, e em seguida os soltam por todo o caminho; mas

os passarinhos que vieram atrás comeram os grãos.

Então o papai os leva bem longe, para o fundo da floresta, e depois diz:

- Fiquem aqui! Vou fazer meu feixe de lenha; enquanto vocês ouvirem o machado bater, não se mexam!

Então ele pendurou um tamanco a um pé de carvalho, e o vento balançava esse tamanco, e ele ficava

fazendo pof! pof! pof! pof!

As pobres crianças lá ficaram até que anoiteceu e ficou bem escuro. Então lá estavam elas desoladas por

ficarem naquela floresta à noite. Então o garoto sobe a um carvalho, bem no alto de um carvalho, bem no alto de

um carvalho, para ver se via alguma luz. E viu uma.

- Ah, irmãzinha! Estou vendo uma longe, bem longe!

- Muito bem! É preciso r direto (no rumo), até a encontrarmos.

E eles chegaram bem à casa por meio da luz.

Era justamente a casa do Diabo.

E lá as crianças chegam à porta; pedem pousada. A mulher do Diabo diz:

-Ah! minhas pobres criancinhas! Não posso alojar vocês, não, porque é a casa do Diabo, e depois,

quando ele chegar, vai comer vocês.

A essa altura, os coitadinhos não sabiam mais para onde ir; suplicaram à mulher para ficar com eles. A

mulher os fez entra e os fez jantar com os dela, porque a mulher também tinha dois. E seus filhos tinham anéis

de ouro, e os outros pequenos, minha gente, tinham feito anéis de giesta que tinham colocado em seus dedos.

- Ora vamos, diz a mulher, vocês vão dormir com os nossos, na mesma cama; vocês ficam nos pés.

E vai daí que as crianças, no meio da noite, começam a dizer:

- Vamos trocar de anéis e de lugares! Vamos trocar de anéis e de lugares!

E como ficou combinado, eles trocaram de anéis e de lugares.

O Diabo chegou. Logo ao entrar, ele começou a cheirar:

10 Conto extraído da obra SIMONSEN, M. - O conto popular (tradução: Luis Claudio de Castro e Costa).

São Paulo: Martins Fontes, 1987.

11 Coligido em Lussac-Les-Châteaux, 1887.

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- Hum! Que cheiro de cachorrinho novo aqui!

- Há! Meu pobre homem! É a vaca que deu cria!

- Não é nada disso. Ah! É cheiro de cachorro novo!

- é a porca que deu cria!

- Hum! Hum! Não é nada disso!

- Pois bem, meu pobre homem! São dois pequenos que estavam perdidos, e que me pediram pousada

por esta noite.

- Bom, bom, bom! Será bom para o um dejejum.

E de noite ele começa a comer seus filhos.

- Ei, papai! Estás me comendo! Ei, papai! Estás me comendo!

- Não sou teu pai não! Não sou teu pai não!

De manhã, os dois outros pequenos se levantam bem depressa, e então fogem. Chegam a um rio, para

atravessar o rio. E a santa Virgem, que era madrinha da menina, estava lavando roupa. E aquelas duas crianças

lhe disseram que o Diabo as perseguia. E então a santa Virgem estendeu depressa seu lençol sobre o rio, e fez as

duas crianças passarem.

Pouco depois, chega o Diabo. Ele a chamou por um nome, um nome engraçado mesmo, mas eu esqueci.

Ele pergunta à santa Virgem:

- Não viste passar por aqui um menino e uma menina?

- Ah! Diz ela, vi sim. Eu os fiz atravessar o rio; estendi meu lençol, e depois eles passaram por cima.

- Pois muito bem! Estende-o então para eu passar também.

Ela estende seu lençol. Manda o Diabo subir nele para passar. E aí, ela puxa o lençol; e o faz cair na

água; sim, é isso mesmo, e lá ficou ele dentro da água, bebendo!

E as crianças sempre fugindo. Então elas passaram novamente por um lavrador que semeava aveia; que

foi que as crianças disseram?

- Meu bom homem, o senhor terá que vir amanhã; traga ceifeiros; com foice para ceifar sua aveia.

- Mas, meus filhos, estou semeando minha aveia hoje; ela ficará talvez uns cinco ou seis meses na terra;

não posso ceifá-la amanhã.

- Claro que pode! Venha amanhã! E não falte! Sua aveia estará bonita e bem madura!

O homem não faltou. Veio no da seguinte com gente para ceifar sua aveia. Lá vem o Diabo que passa,

pergunta aos ceifeiros se tinham visto passar duas crianças, um menino e uma menina.

- Ah! Diz o lavrador, sim; eu os vi passar; mas já faz muito tempo. Eles passaram no dia em que eu

semeava minha aveia.

Ah! Não vale a pena eu correr atrás deles; não os pegarei nunca.

E assim as criancinhas estavam salvas!

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O RAPAZ DAS BOTAS DE SETE LÉGUAS

(CONTOS PORTUGUESES)

ra uma vez um rapaz que tinha cinco irmãos.

O pai como não tinha que lhes dar de comer, intentou deixa-los no monte e levou-os para o monte, deu-lhes

tremoços para eles irem a comer, que era para os intentar e para lá ficarem.

O mais novo foi comendo os tremoços e deitando as cascas pelo caminho.

Pela manhã o pai foi com eles, encheu as cordas de lenha e deixou-os ficar; mas o mais novo, como

tinha deixado ficar as cascas, foi indo pelo caminho e foi dar a casa.

O pai admirou-se muito de eles encontrarem o caminho.

E deu-lhes milho cru.

Os outros irmãos comeram-no, mas o mais novo foi-o deixando pelo caminho.

Quando os meninos viram que o pai os tinha deixado sós no monte, e queriam vir para casa, não

atinaram com o caminho.

Foram andando, andando, até que foram dar a casa de um lobisomem, onde estava a mulher com cinco

filhas do mesmo lobisomem.

Os meninos pediram agasalho à mulher sem saberem onde estavam.

A mulher lá os agasalhou com as filhas.

Daí a pouco chegou o lobisomem, de onde disse para a mulher:

- Mulher cheira-me aqui a carne fresca.

A mulher disse:

Cala-te, homem, que temos ali cinco rapazinhos deitados com nossas filhas, coitadinhos, não lhes faça

mal!

O lobisomem disse-lhe:

- Traga-me a ceia.

Depois ceou e foi-os ver de onde os achou muito lustridos de gordos; eles estavam dormindo.

Disse ele para a mulher:

- Eu vou chamar os meus companheiros.

Enquanto ele foi chamar os outros lobisomens, o mais novo que estava a fingir que dormia, tirou os

barretes que ele e os irmãos tinham na cabeça e pô-los na cabeça das filhas do lobisomem.

O lobisomem chegou de fora daí a pouco, depois de convidar os companheiros para comerem os

meninos, e foi ter com eles à cama para os matarem.

Como eles tinham tirado os barretes, ele não os conheceu, e pensando que matava os meninos, matou as

filhas.

Nisto estavam os meninos debaixo da cama e fugiram.

Neste momento, o lobisomem foi preparar a caldeiras para os cozer, mas quando foi procurar não os

encontrou e viu as filhas mortas.

O lobisomem calçou umas botas que, de cada passada, davam sete léguas.

Os meninos estavam metidos numas brechas (pedras).

O lobisomem, poisou em cima das pedreiras, e os meninos estavam dormindo, mas o mais novo estava

acordado.

Depois o lobisomem ia enfadado (cansado) e adormeceu; o menino foi e tirou-lhe as botas, chamou

pelos irmãos e mandou-os fugir dali depressa. E enquanto o lobisomem estava dormindo, trataram eles de fugir e

o mais novo calçou as botas das sete léguas.

O lobisomem acordou, e o que procurava eram as botas como as não achava, não podia andar.

O menino foi com as botas ter ao palácio de um rei, contando-lhe que havia ali um lobisomem naquela

serra.

O rei mandou fazer um cerco àquele sítio.

Depois o menino disse ao ei que com aquelas botas era capaz de ir fazer um recado nem que fosse ao

Inferno, e o rei ficou-lhe chamando O Correio do Inferno.

O rei disse-lhe que havia de ir buscar ao Inferno um anel que o Diabo trazia entre o couro e a pele.

O rapaz foi nas botas e chegou ao Inferno.

E

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Passou uma serra de carvão e depois encontrou uns portões, onde viu uma sentinela, a quem perguntou

que portões eram aqueles.

Respondeu-lhe a sentinela que eram os portões do Inferno.

Ele disse:

- Homem! Isto mesmo é que eu pretendia encontrar, que tenho de cá vir buscar um anel que o Diabo

traz entre o couro e a pele.

A sentinela guiou-o pelo Inferno dentro.

O rapaz encontrou depois uma velha, e disse-lhe:

- Velha, eu venho aqui para buscar um anel que o Diabo traz entre o couro e a pele.

A velha era a mãe do Diabo e disse-lhe:

- Pois, cala-te, que eu te vou arranjar isso, mas hás-de lá sair para fora para a serra do carvão.

O rapaz saiu, mas disse à velha que lhe desse resposta no espaço de três dias.

Ele foi-se embora, e a mãe do Diabo foi catar o filho; depois com a maniça de um fuso, meteu-lha entre

o couro e a pele e tirou-lhe o anel sem o demónio sentir.

Depois entregou-o ao rapaz, que foi leva-lo ao rei.

Depois o menino pediu ao rei se lhe dava posses para saber onde paravam seus irmãos.

O rei perguntou-lhe de onde ele era.

O rapaz como saiu de casa do pai em pequeno não sabia dizer de onde era.

O rei então mandou-o outra vez para a serra onde andava o lobisomem.

O rapaz disse que não queria ir, porque andavam lá os lobisomens e comiam-no.

O rei disse-lhe que não tinha dúvida porque se visse algum que pudesse as botas das sete léguas.

O rapaz foi-se pôr em cima das brechas onde tinha roubado as botas ao lobisomem.

Dormiu ali aquela noite e, pela manhã, assim que deu com os olhos no sol, virou-se para o nascente deu

uma passada nas botas e encontrou a casa do pai.

O pai tinha morrido, e ele viu só os irmãos.

Perguntaram eles onde é que ele tinha ficado.

Ele disse que tinha ficado na brecha a tirar as botas ao lobisomem.

O rapaz então perguntou aos irmãos como tinham eles vindo a casa direitos.

Eles responderam que só há três dias tinham chegado a casa, que tinham corrido montes e vales, etc. e

já não tinham visto nem pai nem a mãe.

O rapaz contou-lhe por onde tinha andado, e que lhe chamavam O Correio do Inferno.

Depois os quatro irmãos foram fazer-se carvoeiros para a serra, e o mais novo foi outra vez para o

palácio do rei, onde ficou.

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O PEQUENO POLEGAR

(CONTOS BRASILEIROS)

avia um casal que tinha doze filhos. Um deles era do tamanho de um dedo polegar e por isso o

chamavam Pequeno Polegar. Essa família, que era muito pobre, e às vezes não tinha o que comer, resolveu

abandonar seus filhos na floresta. O Pequeno Polegar, ouvindo a conversa, foi buscar umas pedrinhas nas areias

das margens do rio. Pela manhã, o pai levou-os para a floresta e disse:

- ´Fiquem aqui que eu vou cortar lenha.

Os meninos ficaram, e o mau pai foi para casa, deixando-os perdidos. Os meninos choraram com medo

das feras, mas o Pequeno Polegar sossegou-os, e os levou para casa, guiando-se pelas pedrinhas que na vinda

havia deixado cair para marcar o caminho. O pai tinha recebido algum dinheiro, e tendo comprado comida,

lastimava-se:

- Ai! Meus filhinhos! Se eles estivessem aqui!

O Pequeno Polegar, que estava com seus irmãos atrás da porta, apareceu e foi abraçado pelos pais.

Novamente, tempos depois, voltou a fome, e os pais pensaram em deixar os filhos na floresta. O

Pequeno Polegar, ouvindo a conversa, correu para fora, mas encontrou a porta fechada. Foi à despensa e trouxe

alguns grãos de arroz. De manhã, aconteceu a mesma cousa, mas, quando o Pequeno Polegar quis voltar, notou

que os passarinhos tinham comido todos os grãos. Ficaram desta vez perdidos, pois não sabiam a estrada para a

casa. Vindo a noite, Polegar trepou-se numa árvore e lá de cima avistou uma luzinha. Desceu, e, reunindo os

irmãos, dirigiu-se nessa direção.

Chegou a uma casa grande e bonita e bateu, pedindo agasalho. A mulher que os recebeu era uma

Papona, pegou-os e prendeu-os. O papão, quando chegou, soube de tudo, mandou que guardassem os meninos

para depois.

A Papona deitou-os todos numa cama, perto de outra em que estavam dormindo as filhas do papão, cada

uma com uma coroa de ouro na cabeça. Quando o Papão, a Papona e todos adormeceram, o Pequeno Polegar

tirou os gorrinhos das cabeças dos irmãos e da sua e trocou-os pelas coroas das filhas do Papão. Este, acordando

alta noite, teve vontade de matar as crianças e, pegando na espada, dirigiu-se para quarto. Lá chegando, no

escuro da noite, foi apalpando as cabeças e, encontrando as coroas nas cabeças dos meninos, disse, baixinho:

- Arre! Que eu ia matando minhas filhinhas!...

Passou a mão pelas cabeças das filhas e achou os gorrinhos:

- Aqui estão eles! E passou a espada, degolando todas.

Assim que o Papão foi dormir, Polegar acordou os irmãos e fugiram bem depressa. De manhã, a Papona

foi ao quarto das filhas e desmaiou! O Papão, vendo-se enganado, calçou as botas de sete léguas e foi à procura

dos fujões.

Polegar, percebendo o perigo, escondeu-se numa gruta. O Papão estava muito cansado e, parando perto

deles, deitou-se e pegou no sono. Polegar, bem devagarinho, tirou as botas do Papão e desembainhando a espada

cortou-lhe o pescoço. Depois calçou as botas de sete léguas e partiu na direção da casa do Papão. Chegando lá,

chamou a Papona e falou assim:

- Seu marido está prisioneiro, e manda buscar seu tesouro!

A Papona entregou tudo, Polegar carregou o que pôde, voltou a seu pai e mais tarde foi nomeado

correio real por causa das botas de sete léguas.

H

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(João e Maria. Ilustração de Gustave Doré)

Versões do conto

João e Maria

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JOÃO E MARIA

(IRMÃOS GRIMM)

Às margens de uma extensa floresta existia, há muito tempo, uma cabana pobre, feita de troncos de

árvore, na qual morava um lenhador com sua segunda esposa e seus dois filhinhos, nascidos do primeiro

casamento. O garoto chamava-se João e a menina, Maria.

A vida sempre fora difícil na casa do lenhador, mas naquela época as coisas haviam piorado ainda mais:

não havia pão para todos.

— Minha mulher, o que será de nós? Acabaremos todos por morrer de necessidade. E as crianças serão

as primeiras…

— Há uma solução…— disse a madrasta, que era muito malvada

— Amanhã daremos a João e Maria um pedaço de pão, depois os levaremos à floresta e lá os

abandonaremos.

O lenhador não queria nem ouvir falar de um plano tão cruel, mas a mulher, esperta e insistente,

conseguiu convencê-lo. No aposento ao lado, as duas crianças tinham escutado tudo, e Maria começou a chorar.

— João, e agora? Sozinhos na floresta, estaremos perdidos e morreremos.

— Não chore, tranquilizou-a o irmão — Tenho uma ideia.

Esperou que os pais estivessem dormindo, saiu da cabana, catou um punhado de pedrinhas brancas que

brilhavam ao clarão da lua e as escondeu no bolso. Depois voltou para a cama. No dia seguinte, ao amanhecer, a

madrasta acordou as crianças.

— Vamos cortar lenha na floresta. Este pão é para vocês.

Partiram os quatro. O lenhador e a mulher na frente, as crianças, atrás. A cada dez passos, João deixava

cair no chão uma pedrinha branca, sem que ninguém percebesse. Quando chegaram bem no meio da floresta,

a madrasta disse:

— João e Maria, descansem enquanto nós vamos rachar lenha para a lareira. Mais tarde passaremos

para pegar vocês.

Após longa espera, os dois irmãos comeram o pão e, cansados e fracos como estavam, adormeceram.

Quando acordaram, era noite alta e, dos pais, nem sinal.

— Estamos perdidos! Nunca mais encontraremos o caminho de casa!, soluçou Maria.

— Esperemos que apareça a lua no céu, e acharemos o caminho de casa— consolou-a o irmão.

Quando a lua apareceu, as pedrinhas que João tinha deixado cair pelo atalho começaram a brilhar;

seguindo-as, os irmãos conseguiram voltar até a cabana.

Ao vê-los, os pais ficaram espantados. Em seu íntimo, o lenhador estava até contente; mas a mulher,

assim que foram deitar, disse que precisavam tentar novamente, com o mesmo plano. João, que tudo escutara,

quis sair a procura de outras pedrinhas, mas não pôde, pois a madrasta trancara a porta. Mariazinha estava

desesperada:

— Como poderemos nos salvar desta vez?

— Daremos um jeito, você vai ver — respondeu o irmão.

Na madrugada do dia seguinte, a madrasta acordou as crianças e foram novamente para a floresta.

Enquanto caminhavam, Joãozinho esfarelou todo o seu pão e o da irmã, fazendo uma trilha. Dessa vez se

afastaram ainda mais de casa e, chegando a uma clareira, os pais deixaram as crianças com a desculpa de cortar

lenha, abandonando-as. João e Maria adormeceram, por fome e cansaço e, quando acordaram, estava muito

escuro.

Maria começou a chorar. Mas, desta vez, não conseguiram encontrar o caminho: os pássaros da floresta

tinham comido todas as migalhas. Andaram por muito tempo, durante a noite, e, após um breve descanso,

caminharam o dia seguinte inteirinho, sem conseguir sair daquela mata imensa. Estavam com tanta fome que

comeram frutinhas azedas e retomaram o caminho.

Quando o sol se pôs, deitaram-se sob uma árvore e adormeceram. O piar de um passarinho branco que

voava sobre suas cabeças, como querendo convidá-los, acordou-os. Seguiram o passarinho e, de repente, se

viram diante de uma casinha muito mimosa. Aproximaram-se, curiosos, e admiraram-se ao ver que o telhado

era feito de chocolate, as paredes de bolo e as janelas de jujuba.

— Viva! — gritou João.

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E correu para morder uma parte do telhado, enquanto Mariazinha enchia a boca de bolo, rindo. Ouviu-

se então uma vozinha aguda, gritando no interior da casinha:

— Quem está o teto mordiscando e as paredes roendo?

Subitamente, abriu-se a porta da casinha e saiu uma velha muito feia, mancando, apoiada em uma

muleta. João e Maria assustaram-se, mas a velha lhes deu um largo sorriso, com a boca desdentada.

— Não tenham medo, crianças. Vejo que têm fome, a ponto de quase destruir a casa. Entrem! Vou

preparar uma jantinha.

O jantar foi delicioso e gostosas também foram as caminhas macias aprontadas pela velha para João e

Maria, que adormeceram felizes. Não sabiam os coitadinhos, que a velha era uma bruxa que comia crianças e,

para atraí-las, tinha construído a casinha de doces. E agora ela esfregava as mãos, satisfeita.

— Estão em meu poder, não podem me escapar. Porém, estão um pouco magros. É preciso fazer alguma coisa.

Na manhã seguinte, enquanto ainda estavam dormindo, a bruxa agarrou João e o prendeu em um porão

escuro; depois, com uma sacudida, acordou Maria.

— De pé, preguiçosa! Vá tirar água do poço, acenda o fogo e apronte uma boa refeição para seu irmão.

Ele está fechado no porão e tem de engordar bastante. Quando estiver no ponto, vou comê-lo.

Mariazinha chorou e desesperou-se, mas foi obrigada a obedecer. Cada dia cozinhava para o irmão os

melhores quitutes. E também, a cada manhã, a bruxa ia ao porão e, por ter vista fraca e não enxergar a um palmo

do nariz, mandava:

— João dê-me seu dedo, quero sentir se já engordou!

Mas, o esperto João, em vez de mostrar seu dedo, estendia-lhe um ossinho de frango. A bruxa ficava

zangada porque, apesar do que comia, o moleque estava cada vez mais magro!

Um dia perdeu a paciência.

— Maria, amanhã acenda o fogo logo cedo e coloque água pare ferver. Magro ou gordo, pretendo

comer seu irmão. Venho esperando há muito tempo!

A menina chorou, suplicou, implorou, em vão. Na manhã seguinte, Mariazinha tratou logo de colocar

no fogo o caldeirão cheio de água, enquanto a bruxa estava ocupada em acender o forno, dizendo que ia preparar

o pão — mas, na verdade, queria assar a pobre Mariazinha. E do João, faria um cozido. Quando o forno estava

bem quente, a bruxa disse a Maria:

— Entre ali e veja se está na temperatura certa para assar o pão. Mas Maria, que já compreendera, não

caiu na armadilha.

— Como se entra no forno? — perguntou ingenuamente.

— Você é mesmo uma boba! Olhe para mim! E enfiou a cabeça dentro do forno.

Mariazinha, então, mais que depressa deu-lhe um empurrão, enfiando-a no forno, e fechou a portinhola

com a corrente. E a bruxa malvada queimou até o último osso. Maria correu ao porão e libertou o irmão.

Abraçaram-se, chorando lágrimas de alegria; depois, nada mais tendo a temer, exploraram a casa da bruxa. E

quantas coisas acharam! Cofres e mais cofres, cheios de pedras preciosas e de pérolas.

— Reluzem mais que as minhas pedrinhas — disse João — Vou levar algumas para casa. — E encheu

os bolsos de pérolas.

Com seu aventalzinho, Maria fez uma trouxinha com diamantes, rubis e esmeraldas. Deixaram a casa da

feiticeira e avançaram pela mata, mas não sabiam para que lado deveriam ir. Andaram bastante, até chegar perto

de um rio.

— Como vamos atravessar o rio? — disse Maria, pensativa — Não vejo ponte em nenhum lado.

— Também não há barcos — acrescentou João.— Mas, lá adiante, estou vendo um marreco. Quem sabe

nos ajudará?

Gritou na direção, mas o marreco estava longe e pareceu não escutá-lo. Então João começou a entoar:

— Senhor marreco, bom nadador, somos filhos do lenhador, nos leve para a outra margem, temos que seguir viagem.

O marreco aproximou-se docilmente. João subiu em suas costas e acenou para a irmã fazer o mesmo.

— Não, disse Maria.— Um de cada vez, para não cansar demais o bichinho.

E assim fizeram. Um de cada vez, eles atravessaram o rio na garupa do marreco e, após

agradecer carinhosamente, continuaram seu caminho.

Depois de algum tempo, perceberam que conheciam aquele lugar. Certa vez tinham apanhado lenha

naquela clareira, de outra vez tinham ido colher mel naquelas árvores. Finalmente, avistaram a cabana de um

lenhador. Começaram a correr naquela direção, escancararam a porta e caíram nos braços do pai que, assustado,

não sabia se ria ou chorava.

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Quanto remorso sentira desde que abandonara os filhos na mata! Quantos sonhos horríveis tinham

perturbado suas noites! Cada porção de pão que comia ficava atravessada na garganta. Por grande sorte, a

madrasta ruim, que o obrigara a se livrar dos filhos, já tinha morrido.

João esvaziou os bolsos, retirando as pérolas que havia guardado; Maria desamarrou o aventalzinho e

deixou cair ao chão uma chuva de pedras preciosas. Agora já não deveriam mais temer nem miséria,

nem carestia. E assim, desde aquele dia o lenhador e seus filhos viveram na fartura, sem mais nenhuma

preocupação.

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OS DOIS PEQUENOS E A BRUXA

(CONTOS PORTUGUESES)

ra uma vez uma mulher que tinha um filho e uma filha. Um dia a mãe mandou o filho buscar cinco

réis de tremoços e depois disse para os dois:

- Meus filhinhos, até onde acharem as casquinhas de tremoços, vão andando pelo caminho fora, e em

chegando ao mato lá me hão-de me encontrar a apanhar lenha.

Os pequenos assim fizeram.

Depois de a mãe sair, foram andando pelas cascas de tremoços que ela ia deitando para o chão, mas não

a encontraram.

Como já era noite, viram ao longe uma luz acesa. Foram caminhando para lá e viram uma velha a frigir

bolos.

A velha era cega de um olho, e o pequeno foi pela banda do olho cego e furtou-lhe um bolo, porque

estava com muita fome.

Ela, julgando que era o gato, disse:

- Sape, gato! Bula que não bula, que te importa a ti?

O pequeno disse para a irmã:

- Agora i lá tu!

A pequena respondeu:

- Não vou lá que eu pego-me a rir!

O pequeno disse que ela havia de ir, e a irmã não teve mais remédio, e foi. Foi pelo lado do olho cego e

tirou outro bolo.

A velha, que julgava outra vez que era o gato, disse:

- Sape, gato! Bula que não bula, que te importa a ti?

A pequena largou-se a rir.

A velha voltou-se, viu os dois pequenos e disse para eles:

- Ai sois vós, meus netinhos! Comei, comei, para engordar.

Depois agarrou neles e meteu-os num caixão cheio de castanhas.

No outro dia chegou ao caixão e disse para eles:

- Deitai os vossos dedinhos, meus netinhos, que é para ver se estais gordinhos.

Os pequenos deixaram o rabo de um gato, que acharam dentro do caixão.

A velha disse então:

- Saí, meus netinhos, que já estão gordinhos.

Tirou-os para fora do caixão e disse-lhes para irem à lenha com ela.

Os pequenos foram para o mato por uma banda, e a velha foi por outra.

Quando chegaram a um certo sítio, encontraram uma fada.

A fada disse-lhes:

- Andais à lenha, meninos, para aquecer o forno, mas a velha quer assar-vos nele!

Depois contou que a velha havia de dizer para eles: Sentai-vos, meus netinhos, nesta pazinha, para vos

ver balhar dentro do forno! E que eles lhe haviam de dizer que se sentasse ela primeiro, para eles verem como

era.

A fada foi-se embora.

Daí a um bocado encontraram-se os pequenos com a velha no mato.

Apanharam a lenha toda que tinham cortado e foram para casa acender o forno.

Depois de ascenderem o forno, a velha varreu-o muito bem varrido e depois disse para eles:

- Sentai-vos, meus netinhos, nesta pazinha, para vos ver balhar dentro do forno!

Os pequenos responderam como a fada os havia ensinado.

- Sentai-vos aqui primeiro, avozinha, nesta pazinha, para nós vos vermos balhar dentro do forno!

A velha, como queria assá-los, sentou-se na pá e eles mal a viram sentada, empurraram a pá para dentro

do forno.

A bruxa deu um grande estoiro e morreu queimada, e os pequenos ficaram senhores da casa e de tudo

quanto ela tinha.

E

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JOÃOZINHO E MARIA

(CONTOS BRASILEIROS)

iz que era uma vez um lenhador muito pobre e carregado de família, vivendo numa casinha no meio

das matas. Apesar de muito trabalhador passava fome. Numa noite, depois da ceia, a mulher disse que não havia

cousa alguma que comer na manhã do outro dia. O homem começou a imaginar e acabou dizendo:

- Não vale a pena eu estar com meus filhos juntos comigo para que morram de fome. É melhor deixar

uns dois na mata. Pode ser que encontrem uma alma caridosa e Deus tenha pena deles, que são inocentes.

A mulher não dizia sim nem não e rezava.

Entre os filhos havia um casal, gêmeo, chamado João e Maria. Eram muito pegados um com o outro.

Joãozinho ouviu a conversa do pai e compreendeu tudo. Pela manhã o lenhador mandou-os vestir e acompanha-

los para fazer lenha. Joãozinho levou o bolso cheio de pedrinhas brancas do terreiro da casa. Iam andando,

andando, e aqui e acolá o menino punha uma pedrinha de sinal. Perto do pino do meio-dia o lenhador parou e

disse:

- Fiquem aqui descansando que eu vou procurar umas abelhas de mel. Quando ouvirem um assobio

grosso, sou eu. Vão no rumo...

E sumiu-se na mata escura. Joãozinho e Maria esperaram um horror de tempo e nada de ouvir o assobio

grosso. Finalmente o menino disse que estava ouvindo qualquer cousa parecida com o que o pai dissera. Foram

procurar e encontraram um cabaço, de boca virada para o vento, fazendo aquela zoada grossa.

- Estamos perdidos, valha-me Deus – chorou Maria.

- Vamos voltar para casa – respondeu Joãozinho.

Botaram o pé no caminho, olhando as pedrinhas e lá para tantas da noite riscaram em casa. Estavam

todos ceando porque um devedor pagara a conta e havia dinheiro para vários dias. Fizeram muita festa e foram

dormir.

Quando o dinheiro acabou e a fome apareceu, o lenhador começou remoendo a ideia de deixar os dois

filhos no meio da mata. Joãozinho não pôde ir apanhar as pedrinhas brancas porque a porta estava fechada e a

chave tirada. Guardou o pão que recebera para a marcha e, quando amanheceu, os três seguiram viagem.

Joãozinho ia ficando para trás e espalhava pedacinhos de pão. Os passarinhos comiam.

Sucedeu a mesma cousa da vez passada. O lenhador foi caçar abelhas e quando os filhos o procuraram

só viram o cabacinho. O menino quis voltar mas não viu mais os sinais que deixara. Ficou triste mas não perdeu

a coragem.

Andaram, andaram. Quando ia escurecendo de tudo, Joãozinho subiu num pé de pau que era um

despotismo de grande. Lá de cima enxergou, ao longe, uma fumacinha. Desceu mais que depressa, e foi na

direção levando a irmã.

Encontraram uma casa muito bonita, toda clara por dentro e uma pessoa cantando. Chegando para mais

perto as duas crianças viram que a casinha era feita de bolos e as telas açucaradas. Joãozinho quebrou um pedaço

e entregou a Maria e se apoderou de outro. Uma voz perguntou:

- Quem está bulindo aí?

Esconderam-se depressa mas voltaram para comer.

E de novo a voz perguntou. Na terceira vez ouviram a voz bem descansada, bem nas costas deles.

- Ah! São vocês, meus netinhos? Tão bonitinhos e magrinhos! Entrem.

Era uma velha muito feia, seca como um pau de vassoura, cega de um olho. Dera a volta por detrás e

pegara s dois comendo à vontade.

Entraram e a velha, que era uma feiticeira, deu um jantar gostoso e depois levou-os para um quarto onde

havia de um tudo. Fechou a porta e deixou-os dormir. No outro dia passou comida e água, e assim sucedeu nos

dias todos. Joãozinho conheceu que a velha comia gente e estava engordando os dois para manjá-los caçou uma

lagartixa, cortou-lhe o rabo e toda vez que a velha trazia a comida e perguntava como eles estavam, respondia:

- Vamos bem.

- Mostre o dedinho!

Joãozinho passava a cauda da lagartixa. A velha, quase cega, palpava e dizia:

- Tão magrinhos! Vamos comer, meus netinhos!

E os tratava muito bem. Meses depois Joãozinho e Maria estavam gordos, corados e fortes, mas sempre

mostrando o rabinho da lagartixa. Infelizmente, numa vez, Maria perdeu o rabo da lagartixa e quando a velha

D

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pediu que passassem o dedinho, Maria que era muito sem juízo, mostrou o mindinho. A velha apalpou, lambeu

os beiços.

- Estão no ponto. Vão saindo, meus netinhos...

Deixou os dois saírem e deu um jantar de gente rica. Passou a noite fazendo arranjos e amassando pão.

Pela madrugada acordou Joãozinho e disse que fosse buscar lenha, que estava cortada lá fora. O menino saiu,

ainda escuro, e viu um monte de lenha cortada em toros. Ficou olhando para um lado e para o outro pensando no

que devia fazer quando ouviu umas vozes dizendo:

- Joãozinho?

- Oi?

- Leva a lenha para dentro e, quando a velha acender a coivara e pedir que você e sua irmã atravessem a

tábua que ela botou no meio, digam que é melhor ela fazer primeiro para ensinar. Empurrem a velha no fogo e

não tenham pena.

Assim mesmo foi. A velha acendeu uma coivara que dava para assar dois bois. Atravessou uma tábua

no meio e pediu que as crianças passassem para o lado de lá. Joãozinho disse que era perigoso porque não sabia

fazer. Melhor era a velha ensinar a feiticeira subiu para a tábua e, quando estava justamente na metade, os dois

puxaram bem depressa. A velha perdeu o compasso e pulou no coivarão, batendo as brasas e labaredas,

queimando-se toda. E começou a gritar como uma desesperada.

- Água, meus netinhos!

- Azeite, senhora avó! – respondiam eles. E a velha ficou esturricada, dando um estouro como se fosse

uma bomba.

Joãozinho e Maria correram a casa toda, vendo os quartos cheios de riqueza, roupa, pedras preciosas e

muita comida e bebida.

Encheram uma porção de cargas e tocaram-se para a casa dos pais onde chegaram, depois de muitos

dias. O lenhador, muito arrependido, ficou quase doido de contenteza, e abraçou s filhos chorando. A mãe e os

irmãos, nem se fala na alegria deles. Ficaram todos ricos e felizes. E entrou por uma perna de pato e saiu por

uma perna de pinto, mandou El-Rei Meu Senhor, que me contassem cinco...