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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião COMO UM RIACHO DE FOGO: estudo sobre o fundamento antropológico da crítica à religião a partir de “A essência do cristianismo”, de Ludwig Feuerbach Anderson Geraldo Pinheiro Malta Belo Horizonte 2011

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião

COMO UM RIACHO DE FOGO:

estudo sobre o fundamento antropológico da crítica à religião a partir de

“A essência do cristianismo”, de Ludwig Feuerbach

Anderson Geraldo Pinheiro Malta

Belo Horizonte

2011

Anderson Geraldo Pinheiro Malta

COMO UM RIACHO DE FOGO:

estudo sobre o fundamento antropológico da crítica à religião a partir de

“A essência do cristianismo”, de Ludwig Feuerbach

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Ciências da Religião. Orientador: Flávio Augusto Senra Ribeiro

Belo Horizonte

2011

FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Malta, Anderson Geraldo Pinheiro M261c Como um riacho de fogo: estudo sobre o fundamento antropológico da crítica à

religião a partir de “A essência do cristianismo”, de Ludwig Feuerbach / Anderson Geraldo Pinheiro Malta. Belo Horizonte, 2011.

103f. Orientador: Flávio Augusto Senra Ribeiro

Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião

1. Religião – Filosofia. 2. Feuerbach, Ludwig, 1804-1872. 3. Cristianismo –

Literatura polêmica. I. Ribeiro, Flávio Augusto Senra. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. III. Título.

CDU: 21

Anderson Geraldo Pinheiro Malta

COMO UM RIACHO DE FOGO:

estudo sobre o fundamento antropológico da crítica à religião a partir de “A essência do

cristianismo”, de Ludwig Feuerbach

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do Título de Mestre em Ciências da Religião.

___________________________________________________

Flávio Augusto Senra Ribeiro – PUC Minas

_________________________________________________

José Carlos Aguiar de Souza – PUC Minas

__________________________________________________

Deyve Redyson Melo dos Santos – UFPB

Belo Horizonte, 11 de julho de 2011.

RESUMO

A questão de Deus sempre despertou interesse, estudos, intrigas, disputas e mortes. Na

verdade, as ações e reações oriundas das mais diversas experiências religiosas, ocorridas entre

os mais diversos povos, culturas e épocas, traduzem a questão do homem. Este trabalho

intenta buscar a essência da religião e especificamente do cristianismo servindo-se do

pensamento de Ludwig Feuerbach, que considera as práticas religiosas como mantenedoras de

uma estrutura alienadora, que coloca o mundo como inimigo do homem e o homem separado

de sua essência. Como consequência dessa alienação, o ser humano passa a supervalorizar o

além e a menosprezar o aquém sem ter consciência de que tal atitude apenas traduz a

divinização e objetivação de sua essência. Os capítulos que compõem este trabalho procuram

realçar a tese de que o cristianismo adora as forças que fundamentam o ser humano em

contraste com tudo aquilo que se encontra ao seu redor. Através da crítica de Feuerbach à

religião, a vontade, a inteligência e a consciência serão consideradas não mais como essências

e poderes divinos, mas como forças que traduzem a essência humana. Está colocada como

fundamento desta dissertação a afirmação feuerbachiana de que a religião cristã é a atitude do

homem para consigo mesmo, para com sua essência como se fosse uma essência diferente e

separada de si. Mostrar que a religião é a consciência de si, desprovida de consciência, do

homem, é a intenção primeira e última destas páginas. Em suma, esta dissertação quer ser um

estudo sobre o fundamento antropológico da crítica à religião desenvolvida por Feuerbach no

clássico “A essência do cristianismo”.

Palavras-chave: Ludwig Feuerbach; Crítica religiosa; Filosofia da religião.

ABSTRACT

The question of God has always aroused interest, studies, intrigues, dispute and deaths. In

fact, the actions and reactions originated from the most diverse religious experiences,

occurred among the most diverse nations, cultures and periods explain the concept of man.

This paper aims to seek the essence of religion, specifically the Christianity, through the

thought of Ludwig Feuerbach, which considers the religious practices as supporters of an

alienating structure that set the world as enemy of the man and separate the man from his

essence. As a consequence of this alienation, the human being overvalues the other world and

underestimates this world, without being aware that this attitude demonstrates the deification

and objectification of its essence. The purpose of these work chapters is to reinforce the thesis

in which the Christianity adores the force that the man is consisted in contrast to everything

that surrounds him. According to Feuerbach critique to religion, the will, the intelligence and

the consciousness are considered not essence and divine power but forces that explain the

human essence. This dissertation is based in the feuerbachian assertion that the Christian

religion is the attitude of the man to himself, to his essence, as if it was different and apart

from him. From the beginning to the end, this work intends to show that the religion is its

consciousness, destitute of conscience of the man. In summary, this paper wishes to be a

study about the anthropological foundation of the religious criticism fostered by Feuerbach in

the classic The Essence of Christianity.

Key-Words: Ludwig Feuerbach. Religious criticism. Philosophy of religion.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 6

2 OS SEGREDOS DO HOMEM COMO “MISTÉRIOS DE DEUS”............................... 11

2.1 Análise do processo de abertura ao presumível divino................................................. 12

2.2 Regresso ao homem como encontro com a essência humana ....................................... 23

2.3 A religião no seu acordo com a essência do homem...................................................... 32

3 DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO ARGUMENTATIVO QUE SUS TENTA

SER A TEOLOGIA UMA ANTROPOLOGIA.................... ............................................... 42

3.1 Desenvolvimento da interpretação do fenômeno religioso ........................................... 43

3.2 Teoria da reversibilidade: Deus é o espelho do homem, o homem o espelho de Deus51

3.3 A negação de Deus como negação da negação do homem ............................................ 61

4 EXPERIÊNCIA DO DIVINO OU OBJETIVAÇÃO SENTIMENTAL E

FANTÁSTICA DOS DESEJOS HUMANOS? .................................................................... 70

4.1 Elementos de uma antropologia empírica ...................................................................... 71

4.2 A experiência religiosa como fruto do vazio ou da tensão entre realidade e

idealidade, existência e possibilidade, finitude e superação ............................................... 80

4.3 Ruptura humana com sua estrutura interior como causa da projeção no

transcendente .......................................................................................................................... 88

5 CONCLUSÃO...................................................................................................................... 97

REFERÊNCIAS ...................................................................................................................100

6

1 INTRODUÇÃO

Uma melhor compreensão do homem só é possível a partir de uma análise das

dimensões que o especificam e que fazem dele um ser que age orientando-se por um objetivo.

Assim, como homo sapiens conhece, como homo ludens brinca, como homo loquens fala,

como homo faber trabalha, como homo volens quer.

No decorrer da história, diante de várias situações que causam medo, tristeza, angústia,

desespero, o ser humano passou a procurar explicações numa esfera diferente de seu mundo,

numa esfera além da realidade, no sobrenatural. Passou a acreditar que no além se

encontravam forças infinitamente maiores do que as suas, capazes de mudar os rumos do

mundo do aquém. Assim, o homem passou a ser analisado na sua dimensão religiosa, na sua

relação com o presumível além,com o que passou a denominar divino.

Buscando compreender como se dá o processo de abertura ao presumível divino e

como é administrada a absorção das doutrinas e “verdades” que surgem para reafirmá-lo, será

tomado como apoio para esta análise o pensamento de Ludwig Andréas Feuerbach (1804-

1872) e alguns de seus comentadores e de outros estudiosos e pesquisadores que, em

consonância com seu pensamento, analisam a religião e o perfil dos que se entregam às

experiências religiosas.

Analisar o fenômeno religioso requer uma pesquisa séria, vasta e contínua que só se

processará com o conhecimento da influência das questões de cunho cultural, político,

econômico e social que, por sua vez, exigem um estudo aprofundado dos aspectos histórico,

sociológico, antropológico, filosófico e psicológico desse fenômeno.

São muitos os estudiosos e pensadores que se aprofundaram na busca de explicações e

melhor compreensão das atitudes daqueles que aderem às ideias religiosas e das mais diversas

manifestações que se estendem pelas mais diferentes partes do planeta. A opção por

Feuerbach nasce da necessidade de conhecer as verdadeiras motivações de seus

questionamentos concernentes à religião e, especificamente, ao cristianismo e como seu

pensamento contribuiu para a crítica religiosa de hoje.

É notória a importância e vastidão de sua obra, que começa com a tese de

doutoramento Da razão una, universal e infinita, de 1828, e se estende através de

Pensamentos sobre morte e imortalidade, de 1830; História da filosofia moderna de Bacon de

Verulam a Spinoza, de 1833; Abelardo e Heloisa (1834); Pierre Bayle (1838); Sobre crítica

da filosofia positivista, de 1838; Crítica da filosofia hegeliana, de 1839; Sobre filosofia e

7

cristianismo (1839); Para a crítica da filosofia do futuro (1839); A essência do cristianismo

de 1841; Necessidade de uma reforma da filosofia, de 1843; Teses provisórias para a reforma

da filosofia, de 1843; Princípios da filosofia do futuro, de 1843; A essência da religião, de

1846; Preleções sobre a essência da religião, de 1851; Teogonia, de 1857. Além dessas

obras, outros textos não citados só aparecem nas obras completas.1

No intuito de focar nossa atenção no fundamento antropológico de sua crítica à

religião e ao cristianismo, o presente trabalho visa realçar o pensamento desse pensador

tomando como obras de referência primária os clássicos A essência do cristianismo (1841) e

Preleções sobre a essência da religião (1851).

A obra A essência do cristianismo trata da essência do homem deduzindo que o Ser

Absoluto, o Deus dos homens, é seu próprio ser, sendo o homem o criador e origem de todos

os deuses, incluindo o Deus cristão – o que para muitos equivale a uma defesa explícita do

ateísmo.

Em Preleções sobre a essência da religião, Feuerbach aborda não só a essência da

religião cristã, mas a essência da religião em geral, incluindo as religiões pagãs e pré-cristãs.

Nessa obra também aborda a concepção materialista ao analisar a relação do homem com a

natureza e a relação entre o ser e o pensamento.

Partindo dos questionamentos levantados nessas obras, serão analisadas nesta

dissertação as motivações primeiras que levam o ser humano a buscar fora de si aquilo que se

encontra no seu interior, desencadeando a transferência de sentido do natural e humano para o

sobrenatural e extra-humano.

Servir-se de Feuerbach é reconhecer que seu pensamento trouxe para o cotidiano uma

nova leitura para o que era até então “explicado” pela religião ou pelo idealismo abstrato, ou

seja, buscou o fundamento humano de fatos e ideias no próprio ser humano e na natureza.

Trabalhar seu pensamento é reconhecer e afirmar a importância e necessidade do

protagonismo humano, mostrando que a história é processo de humanização do homem, ao

contrário de sua alienação que se concretiza na experiência religiosa.

A grande contribuição de Feuerbach se traduz por ter colocado a questão de Deus não

como simples questão acadêmica, mas como busca do significado do problema de Deus para

o homem sugerindo ser a compreensão desse Deus a compreensão do próprio homem.

1 Essas obras foram elencadas a partir das seleções feitas por Paulo Hahn e por Deyve Redyson nos livros Consciência e emancipação: uma reflexão a partir de Ludwig Feuerbach. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2003 e Homem e natureza em Ludwig Feuerbach. Fortaleza: Edições UFC, 2009.

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É, portanto, preocupação e interesse deste trabalho também ressaltar que lidar com a

questão da existência ou não de Deus implica lidar com consequências para o

autoconhecimento do homem e para sua maneira de administrar sua vida e de viver em

sociedade. Trata-se, portanto de uma questão que contribui não só para o conhecimento do

ser-homem como também para a realização do homem enquanto tal.

Aprofundar-se no pensamento feuerbachiano é buscar o fundamento antropológico da

religião, descobrindo que o conhecimento de Deus passa a ser o conhecimento do próprio

homem. Assim, a proposta deste trabalho traduz o interesse e a busca de fundamento e

compreensão da redução da religião em antropologia, ou seja, buscar compreender como

Feuerbach reencontrou o homem na estrutura da alienação religiosa, pois essa leitura

feuerbachiana da religião – especificamente do cristianismo – é de grande importância para

devolver ao ser humano sua autonomia diante da história pessoal e coletiva.

Dentro dessa ótica, não se pode negar que a análise da religião operada por Feuerbach

contribui para a alforria do homem que se permite aprisionar pelos grilhões daquelas ideias

que o mantêm na passividade como miserável criatura que sempre deve acatar os supostos

desígnios divinos.

Quando Feuerbach afirma que o próprio Deus é uma entidade sensorial, um objeto da

contemplação da fantasia, passa a considerar como sujeito da divindade a razão e o da razão o

homem, instigando assim a curiosidade e a busca de maior entendimento sobre sua teoria

sensitista do conhecimento, devendo ser entendida não como negação da razão, mas seu

fundamento.

Feuerbach sugere que a razão ordene o que a sensibilidade oferece, pois sem a razão

não há propriamente conhecimento, mas também ressalta que sem a sensibilidade não há

nenhuma possibilidade de alcançar o que há de verdadeiro no saber. Portanto, este trabalho

apresenta o pensamento feuerbachiano como auxílio na compreensão das experiências

religiosas que se fundam nos sentidos.

Se ao pensar que a realidade fundamental e originária seja a natureza, o indivíduo

empírico, então a vida espiritual passa a ser considerada como uma pálida imagem, um

reflexo apagado da natureza que leva o homem a exteriorizar no objeto da religião e a

procurar concretizar no transcendente todos os seus desejos, exigências, ideais que não pode

concretizar na realidade efetiva.

A reflexão feuerbachiana sugere um olhar para a natureza humana, para o

desenvolvimento histórico e pré-histórico, no intuito de compreender a psicologia humana, a

moral, a história, a ciência da arte e das religiões.

9

Na época de Feuerbach – Alemanha dos anos 40 do século XIX – a estrutura sócio-

política encontrava sua fundamentação ideológica na religião. Diante dessa situação, não

havia outro caminho senão desmistificar a estrutura religiosa, pois tal desmistificação

culminaria na desmistificação de outras estruturas que, assim como a religião (cristianismo),

eram tidas como inquestionáveis. A superação de uma estrutura tida como injusta, opressora,

alienante só poderia concretizar-se a partir do questionamento e superação das ideias

religiosas como tradutoras da vontade de Deus.

Curiosamente, a atual conjuntura carrega os traços de uma sociedade que ainda se

mantém refém de uma mentalidade alimentada por ideias religiosas que sustentam uma

estrutura de alienação e de desumanização do ser humano, salvaguardando interesses de uma

pequena minoria que sugere aos demais a busca de explicações, justificativas, respostas e

esperanças num céu imaginário, projeção de seus anseios.

O presente trabalho vem mostrar que a crítica feuerbachiana da religião e do

cristianismo vem de encontro à necessidade de superação de uma ideologia que ainda tenta

justificar o sofrimento e os desafios como parte integrante da pedagogia divina para a

expiação dos erros e pecados da sociedade, sobretudo quando esta insiste em caminhar

sozinha, de maneira autônoma, traçando seu próprio destino, escrevendo sua própria história.

Colocar a questão de Deus a partir do homem é desenvolver a crença na humanidade,

que precisa aprender a se olhar sem preconceito e sem pessimismo, mesmo porque é dela que

brotaram os predicados divinos. Canalizar esse potencial humano transferido para Deus é

despertar o homem como sujeito capaz de mudar os rumos da história que tanto carece de

investimentos e projetos que transformem este mundo no paraíso.

Certamente por acreditar imensamente no homem é que escrevera a seu irmão que fora

da filosofia não há salvação. Feuerbach assim se manifesta após ter abandonado os estudos

teológicos e iniciado os estudos filosóficos em Berlim, no ano de 1825. Não se pode negar

que essa afirmativa feuerbachiana trata-se de um instigante convite para um mergulho em seu

pensamento no intuito de melhor conhecer sua visão de mundo e o que propõe à humanidade.

É importante ressaltar que este trabalho não se ateve à investigação das fontes do

pensamento teológico e filosófico de Ludwig Feuerbach, pois certamente exige um estudo

pormenorizadamente mais aprofundado.

Através dos capítulos que serão discorridos, será realçada a proposta de Feuerbach em

auxiliar o homem a libertar-se das supostas determinações divinas no intuito de fazer com que

assuma sua liberdade para edificar-se e edificar a sociedade a partir dele mesmo.

10

No primeiro capítulo os segredos do homem serão tomados como a chave de leitura

dos “mistérios de Deus”. Através da observação e constatação de que o ser humano é um ser

aberto à experiência religiosa, neste primeiro capítulo será proposta uma análise desse

processo de abertura ao presumível divino, intencionando levar o homem a reencontrar-se

consigo através do encontro com sua essência. Assim, de acordo com o pensamento

feuerbachiano, a religião será apresentada como a manifestação da essência humana, estando

de acordo com aquilo que está escondido no interior do coração e da mente do homem.

No segundo capítulo será apresentado um conjunto de análises e ideias que intentam

buscar compreender o desenvolvimento do processo argumentativo feuerbachiano que

sustenta ser a teologia uma antropologia. Os três itens desse capítulo buscarão apresentar o

desenvolvimento da interpretação do fenômeno religioso servindo-se da teoria da

reversibilidade e da proposta feuerbachiana da negação de Deus como negação da negação do

homem.

Finalmente, no terceiro capítulo, a experiência do divino será apresentada como

objetivação sentimental e fantástica dos desejos humanos. Essa questão será trabalhada a

partir do que se apresenta como elementos de uma antropologia empírica e tomando a

experiência religiosa como fruto do vazio ou tensão entre realidade e idealidade, existência e

possibilidade, finitude e superação. Essa análise será a base de sustentação do pensamento de

Feuerbach, que afirma ser a ruptura humana com sua estrutura interior a causa da projeção no

transcendente.

Assim, através da análise feuerbachiana do cristianismo e da religião, será traduzido o

objetivo desta dissertação, ou seja, mostrar que a constituição da religião se alicerça num

conteúdo humano e que a experiência religiosa nada mais é que a experiência antropológica

que leva o homem a encontra-se consigo mesmo ao buscar a Deus.

11

2 OS SEGREDOS DO HOMEM COMO “MISTÉRIOS DE DEUS”

Como na época de Feuerbach, também hoje a história contemporânea afigura-se

“como um período de ilusão e de falsidade, de mediocridade e de aparências, de indecisão e

de imortalidade.” (SIEGMUND, 1966, p. 237).

Diante desse deprimente quadro, a crença num ser divino – com tudo aquilo que traz

como consequência – ainda é tida como única solução para os problemas, o que evidencia o

desprezo pela busca do conhecimento ou o receio de que este venha a desvendar o que não

deve ser desvendado.

Afirma Feuerbach que “quanto mais limitado é o horizonte do homem, menos

conhecimento tem da história, da Natureza, da Filosofia, e mais intimamente adere à sua

religião. É por isso que o religioso não tem em si qualquer necessidade de cultura.”

(FEUERBACH, 1994, p. 266).

Daí surge a necessidade de uma reflexão fundamentada sobre o que consideramos ser

da esfera divina. Não se pode negar que desde os primórdios da história humana o homem

colocou os efeitos da natureza acima de suas forças, entregando-se à crença de que seriam tais

efeitos uma entidade sobre-humana, ou um ser com propriedades humanas tais como

inteligência, razão, capacidade de executar seus pensamentos, porém num grau

desproporcionalmente mais elevado e que ultrapassa infinitamente a medida das capacidades

humanas.

Ao tomar a religião como um fato humano, Feuerbach sugere que ela esteja a serviço

do homem e não o contrário, pois quando ela passa a colocar o homem a seu serviço,

automaticamente elimina a liberdade e o espaço para o discernimento que o ser humano deve

cultivar para analisá-la.

Quando Feuerbach ressalta a ideia de homem como sua referência última,

independente de uma realidade transcendente, procura colocar o ser humano no centro de sua

história retirando-o da marginalização sustentada pelas ideias religiosas. O pensamento

feuerbachiano é, portanto, um convite convicto para o regresso do homem ao homem de

maneira que este possa instaurar o reino humano em substituição ao reino de Deus.

Nesta primeira parte do trabalho será abordada a questão da consciência de Deus como

sendo a consciência que o homem tem de si mesmo, o que levou Feuerbach a sugerir o

conhecimento mais aprofundado do homem para se ter um conhecimento mais acertado

acerca de seu Deus.

12

Servindo-se da análise que Feuerbach faz da religião, será focada no primeiro capítulo

do trabalho a busca da sua significação, ao mesmo tempo em que se buscará descobrir e

analisar as motivações de seu surgimento.

Com o título Os segredos do homem como “mistérios de Deus”, serão expostas as

motivações que levam o homem a iniciar o processo de abertura para o que considera divino

dentro da perspectiva metodológica que Feuerbach chama de “genético-crítica”. Tal

perspectiva auxiliará na compreensão dos mecanismos que permitem a formação da ideia de

transcendência e como estes são reconduzidos à sua origem.

Dessa maneira se dará o regresso ao homem tomado como lugar de encontro com sua

essência e se colocará a pergunta pelo significado de Deus. Pergunta que coincide com o

esclarecimento de um enigma psicológico, ou seja, com a pergunta pela própria natureza

humana.

A negação de Deus, trabalhada no pensamento de Feuerbach, é indicada como

investimento num processo de redescoberta da dignidade do homem ou, em outras palavras,

como o resgate da essência humana perdida na experiência religiosa que só será possível

através da destruição da religião. Não se pode falar de realização do homem sem negar a Deus

e tal negação se faz necessária em virtude da afirmação do humano no homem.

No final desse capítulo a religião será estudada no seu acordo com a essência do

homem. Diga-se a propósito, título que se encontra na primeira parte de A essência do

cristianismo. Nesse tópico será trabalhada a proposta de Feuerbach em converter os

“mistérios” da transcendência em “segredos” da natureza humana, através da tradução dos

predicados divinos em predicados humanos.

2.1 Análise do processo de abertura ao presumível divino

Este tópico tem como intuito procurar compreender a escolha feita por aqueles que

alimentam a crença em Deus ao invés de procurar valorizar suas potencialidades. A abertura

ao divino traduz a busca por explicações diante de tudo aquilo que não se quer aceitar ou por

consolo diante das necessidades que brotam do interior daquele que faz a experiência

religiosa, mas, ao mesmo tempo, entrava qualquer investimento nas potencialidades latentes

que devem ser melhor conhecidas para serem melhor trabalhadas em benefício da autonomia

e participação ativa do homem na história do mundo.

13

Constata-se que, a cada dia, mais homens e mulheres se entregam à experiência

religiosa sem se darem conta da necessidade de melhor se conhecerem para melhor lidarem

com os problemas cotidianos. Preferem alimentar a crença no divino e a descrença no

humano, contribuindo assim para a desumanização do homem. Daí a pergunta: como entender

“a diversidade de experiências, a complexidade das motivações, a multiplicidade dos grupos

religiosos, a espantosa variedade de crenças, atitudes e reações?” (CATALAN, 1999, p.161).

Como norte deste tópico e dos posteriores será considerado o que é apresentado como

a essência do homem e da religião pela análise feuerbachiana, conforme o comentário de

Paulo Hahn.

A religião é um fato puramente humano, logo de caráter não-absoluto. Tal contribuição convida-nos à liberdade frente à religião, a tê-la como serviço ao ser humano e não ter o ser humano a serviço da religião. E, por ser obra humana, apesar de seu caráter conservador (em certos casos), a religião é passível de transformação em todas as suas dimensões: de organização como de culto. Além da liberdade, somos convidados ao contínuo discernimento para ver se nossa religião é alienação (...) ou se a religião é expressão da natureza humana (HAHN, 2003, p. 142).

Sendo o discernimento e o senso crítico imprescindíveis para a análise da experiência

religiosa na história humana, serão tomados como ferramentas a nos auxiliar nesta empreitada

que tem como estímulo maior a dedicação e o interesse de Feuerbach pela busca e estudo da

essência da religião:

Interessa-me acima de tudo, e sempre me interessou, iluminar a obscura essência da religião com a luz da razão, para que finalmente os homens parem de ser explorados, para que deixem de ser joguetes de todos aqueles poderes inimigos da humanidade que, como sempre, servem-se até hoje da nebulosidade da religião para a opressão do homem (FEUERBACH, 1989, p. 28).

A preocupação de Feuerbach em devolver ao homem sua autonomia e capacidade para

se libertar das estruturas que o impedem de caminhar como protagonista de sua própria

história é evidente, pois considera tais estruturas como obstáculo ao processo de

transformação do ser humano de autômato em autônomo. Por isso, busca colocar o ser

humano como única referência para si mesmo, tirando-o da margem e conduzindo-o para o

centro da história e para a experiência do real.

Feuerbach elege a ideia de homem como sua referência última, sobretudo porque o humano concreto é apenas a totalidade da vida e da essência humana, e não de uma realidade transcendente. Em torno desta homologia se concentra todo um exame crítico de uma tradição cultural e filosófica, lida por Feuerbach como a história de um esquecimento e de uma marginalização do homem real. Nestes termos, a antropologia proposta por Feuerbach, e aí reside seu mérito para a contemporaneidade, é a constante superação das inúmeras formas de desumanização

14

de que se revestiu e se reveste a humanidade: seja a teologia que degrada o homem à condição de súdito de um senhor divino, a metafísica que o reduz a ser abstrato, ou a ciência que o instrumentaliza como objeto, sejam ainda outras formas de alienação ideológica e de repressão política (HAHN, 2003, p. 144).

Alienado de si, pela experiência religiosa, o homem, segundo Feuerbach, deve voltar a

si, pois não deve permanecer numa situação de estranhamento. Assim, para que tal processo

se concretize, torna-se necessária uma pedagogia embasada na perspectiva dialética da

alienação religiosa, ou seja:

É preciso primeiro desdobrar-se num certo sentido, perder-se, alienar-se para encontrar-se. Mas a alienação deve cessar um dia. Depois de alienar-se na religião, o homem deve voltar-se a si mesmo, retomar em seu coração aquilo que ele projetou fora de si. Deve chegar, enfim, o reino do homem, o qual substituirá o reino de Deus. Deus não é senão o conjunto dos atributos que fazem a grandeza do homem, cuja existência é que é o ser supremo. A virada na história se dará no momento em que o homem tomar consciência de que o único Deus dele é ele próprio (HAHN, 2003, p. 14).

A partir da perspectiva feuerbachiana um novo horizonte se abre para aqueles que

ousam romper com as estruturas que os transformam em seres inertes e passivos. A

contribuição do autor reside na capacidade de apontar para o perigo da alienação do homem

que se processa e se solidifica à medida que este não se dispõe a romper com aquilo que o

afasta de si.

Mesmo percebendo que as respostas apresentadas e dogmatizadas pela religião não

respondem, alguns homens preferem permanecer na ilusão, no torpor causado pelas doutrinas

que corrompem o ser humano ao colocá-lo contra o movimento da busca e do

questionamento.

A religião é assim como que uma longa efabulação que nunca tem fim, um imenso sonho contínuo e de olhos abertos (...), uma analogia utilizada com frequência para acentuar o ensinamento de uma subjetividade aprisionada no mundo interior das suas próprias criações, as quais lhe aparecem contudo como se fossem seres reais dotados de existência autônoma (SERRÃO, 1999, p. 64).

O pensamento feuerbachiano procura acordar o homem religioso deste sonho de olhos

abertos. No clássico A Essência do Cristianismo, Feuerbach realça a superioridade do homem

teórico, autônomo, livre e sem carências, diferente do homem religioso, que “na religião, nega

a sua razão [...], nega o seu saber, o seu pensar [...], renuncia à sua pessoa” (FEUERBACH,

1994, p. 33), tornando-se passivo, isolado do mundo e da sociedade. Também evidencia o

primado do conhecimento objetivo e o da transparência intelectiva sobre a dimensão afetiva e

emocional.

15

O conhecimento objetivo provém da mútua cooperação da atividade sensorial, que capta os elementos sensíveis, com a atividade reflexiva que os elabora. Sem a sensorialidade, a reflexão cairia na abstração vazia de um pensar autofundado sem a correspondência na realidade, autônomo e autoprodutor dos seus conhecimentos. Mas sem a seletividade do pensamento, nunca se passaria da particularidade empírica dos fenômenos à universalidade do conhecimento objetivo. A sensorialidade recoletora, que capta o mundo como multiplicidade sensitiva, mas não alcança a unidade do conceito, é insuficiente para fundar sozinha a objetividade do conhecimento (SERRÃO, 1999, p. 99).

Na experiência religiosa o ser humano, paradoxalmente, fala de uma realidade

diferente daquela que lhe dá condições de falar de outra que não existe fora dele. Assim,

imperceptivelmente, o ser humano fala de si mesmo acreditando estar falando de outro ser que

seja de natureza diferente da sua e que não seja ele próprio. Afirma Feuerbach: “a religião (...)

é a atitude do homem para consigo mesmo, ou melhor, para com a sua essência; mas uma

atitude para com a sua essência como se fosse uma essência diferente.” (FEUERBACH, 1994,

p. 24).

Considerar o pensamento de Feuerbach significa adotar uma nova metodologia para

lidar com o real sem transformá-lo numa ilusão que se processa graças à fé, pois: “A fé é o

poder da imaginação que transforma o real em irreal, o irreal em real – a contradição direta

com a verdade dos sentidos, a verdade da razão. A fé nega o que a razão objetiva afirma e

afirma o que ela nega.” (FEUERBACH, 1994, p. 296).

Para a compreensão da escolha daqueles que se desumanizam em nome da crença no

divino e para uma análise de tal atitude, faz-se necessária certa cautela e redobrada atenção

para não incidir-se no erro de apenas inverter o objeto de crença2. Para tanto, recorrer ao

pensamento de Feuerbach para melhor compreender por que o ser humano se entrega à crença

em algo que não se encontra fora dele é de grande importância.

Assim como outrora, o ser humano se sente atraído “por uma outra dimensão, tem

necessidade de acreditar em alguma coisa ou em alguém que possa, seja de que maneira for, e

por pouco que seja, ajudar a suportar o fardo da existência.” (CATALAN, 1999, p. 61). No

entanto, refugiar-se na religião não diminui o peso desse fardo nem traz respostas ou soluções

para os problemas, pois não poderá impedir que a existência continue impondo seus desafios

ao ser humano.

2 Sobre esta questão nos servimos do comentário de Adriana Conceição Guimarães Veríssimo Serrão acerca de um dos questionamentos levantados por Max Stirner em seu livro O único e a sua propriedade sobre A essência do cristianismo de Feuerbach: “O humanismo feuerbachiano não constituiria uma verdadeira aniquilação da ilusão teológica, uma vez que se teria limitado a substituir a figura de Deus pela figura da Humanidade, ou gênero humano, uma nova transcendência que erguendo-se sobre os indivíduos como uma verdadeira essência metafísica se lhes impunha como instância de dominação.” (SERRÃO, 2005, p. 27).

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Feuerbach, ao analisar os limites, faz menção à importância da necessidade, pois

considera a necessidade como portadora de ânimo, força e o que dá fundamento ao ser.

Onde não existe nenhum limite, nenhum tempo, nenhuma necessidade, aí também não existe nenhuma qualidade, nenhuma energia, nenhum spiritus, nenhum fogo, nenhum amor. Só o ser necessitado é o ser necessário. Existência desprovida de necessidade é existência supérflua. O que está livre de necessidades em geral também não tem qualquer necessidade de existência. Se é ou não é, é o mesmo – o mesmo para ele próprio, o mesmo para outro. Um ser sem necessidade é um ser sem fundamento. Só quem é capaz de sofrer merece existir. Só o ser repleto de dor é ser divino. Um ser sem sofrimento é um ser sem ser. Ora, um ser sem sofrimento nada mais é do que um ser sem sensibilidade, sem matéria (FEUERBACH, 2005, p. 92).

Por isso, afirma Feuerbach sobre o homem religioso: “No mais íntimo fundo da tua

alma queres que o mundo não exista, pois onde há mundo, há matéria, e onde há matéria há

pressão e choque, espaço e tempo, limitação e necessidade.” (FEUERBACH, 1994, p. 130).

Estando o ser humano constantemente deparado com situações que lhe causam medo,

angústia, mal-estar, tenderá a insurgir-se contra tais males pela experiência religiosa, apelando

sempre para Deus, reforçando o desprezo por este mundo, pela natureza.

A visão feuerbachiana do mundo3 vem mostrar que a tentativa de fugir dele jamais se

efetivará, pois os sentimentos que brotam no homem, causados pela percepção e pela relação

com a existência, traduzem o movimento existente entre interioridade e exterioridade,

confirmando que o ser humano, por ser e estar no mundo, não pode privar-se da sensibilidade,

mesmo porque “é a sensibilidade que abre os olhos do pensamento4, que lhe pede uma

conversão ao mundo, uma atenção aos seus acontecimentos.” (SERRÃO, 2005, p.16).

“Quanto mais o homem se afasta da natureza, mais subjetiva, quer dizer, mais

sobrenatural ou antinatural se torna a sua visão do mundo.” (FEUERBACH, 1994, p. 163).

Optar pelo homem é procurar entendê-lo para explicá-lo. É administrar o dilema

colocado por Lima Vaz: “ou o Absoluto existe como ser-em-si e como Criador e, então, o

3 Em relação à visão feuerbachiana do mundo, Adriana Conceição Guimarães Veríssimo Serrão destaca duas principais linhas argumentativas que estruturam os fundamentos deste olhar: “Uma que sublinha o sentido da realidade como existência fora do pensamento, precedendo-o na ordem genética e excedendo-o sempre na ordem gnosiológica. A noção de realidade desloca-se assim da esfera da essência, ou da idealidade, para a existência concreta: real é o modo de ser existindo por si mesmo, independentemente de ser pensado. Em lugar do ser como conceito ou ideia, que se aplica indistintamente a tudo o que é, ergue-se o ser real, desdobrado na multiplicidade dos existentes concretos, cada um dos quais é por sua vez uma singularidade dotada de qualidades intrínsecas que o tornam num ser diferente, único pela sua diferenciação imanente. (...) A outra linha defende que o mundo real, como mundo pleno, encontra a sua expressão filosófica mais genuína no modo sensível ou sensibilidade (Sinnlichkeit) ou, por outras palavras, que o espírito de realismo da nova filosofia se deixa traduzir pelo Sensualismo: o ser real é o ser sensível.” (SERRÃO, 2005, p. 15). 4 É importante deixar claro que Feuerbach não tem intenção de anular ou substituir o pensamento pelos sentidos. Sua intenção evidencia sua preocupação em superar o pensamento abstrato num pensamento sensível que esteja aderido ao ser, promovendo no universo da interioridade um processo de abertura à exterioridade mundana.

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homem é nada; ou o homem é o artífice real de si mesmo e do seu mundo e, então, o

Absoluto transcendente é uma quimera a ser exorcizada.” (VAZ, 1992, p. 121).

Tal compreensão só será possível mediante a consciência de si e de sua essência que o

homem deve ter, sobretudo quando se entrega à experiência religiosa. Não tendo esta

consciência, o homem inicia um processo de transferência daquilo que se encontra dentro de

si que culminará na projeção humana na direção de uma essência divina.

Nesse sentido, Feuerbach nos apresenta uma pedagogia que procura trabalhar com o

homem no intuito de ajudá-lo a perceber que a consciência que tem de Deus é a consciência

que tem de si e da sua essência. Por isso afirma:

Se na religião, a consciência de Deus é referida como a consciência de si do homem, tal não se deve compreender no sentido em que o homem religioso estaria diretamente consciente de que a consciência que tem de Deus é a consciência de si da sua essência, visto que é justamente a falta desta consciência que funda a diferença específica da religião. O homem começa a lançar a sua essência para fora de si, antes de a encontrar em si. A sua própria essência começa por ser para ele objeto como uma essência diferente (FEUERBACH, 1994, p. 23).

A partir da compreensão expressa por Feuerbach, não se pode inferir que a experiência

religiosa seja simplesmente um buscar iludir-se ao acreditar em um poder diferente de si para

superar os obstáculos e dificuldades cotidianas. Considerada como egoísta – no sentido

negativo do termo5 –, o que ela representa é mais uma exponenciação do eu em um outro

divino posto a seu próprio serviço e interesse.

Considerando o raciocínio feuerbachiano, chegamos ao princípio fundamental da

religião e da teologia: o ser humano procura sujeitar o divino às suas vontades, tornando-o

sempre benéfico e útil aos seus interesses. É o homem barganhando consigo mesmo,

divinizando sua própria vontade, ou seja, o seu egoísmo negativo, pois assim o é ao alienar-se

num outro divino ao invés de viver a afirmação de si prescindindo de tal transferência.6 Dado

5 Evidentemente não podemos esquecer que Feuerbach diferencia o egoísmo vil do egoísmo positivo que traduz o anseio do homem em buscar respostas e possíveis soluções para os seus problemas sem prejudicar os semelhantes. Porém, o que aqui queremos realçar é o egoísmo negativo, pois trata-se da força propulsora da sustentação da crença num ser diferente de si mesmo que lhe corresponda como e quando ele quiser. No sentido vulgar da palavra, trata-se do egoísmo do homem para com o homem, do egoísmo moral, “o egoísmo que tudo faz, ainda que aparentemente fazendo para os outros, só faz tendo em vista sua própria vantagem” (FEUERBACH, 1989, p. 50). 6 Cabe ressaltar o sentido positivo que também pode ter o egoísmo na perspectiva feuerbachiana. Nessa ótica, bem distinto desse egoísmo negativo que pode assumir o ser humano que se projeta nos conceitos da teologia e nas religiões, explana Feuerbach na obra Preleções sobre a essência da religião: “Entendo por egoísmo o fazer valer-se a si mesmo conforme a natureza e, consequentemente (porque a razão do homem nada mais é do que a natureza consciente do homem) conforme a razão, o afirmar-se a si mesmo do homem diante de todas as instâncias antinaturais e anti-humanas que a hipocrisia teológica, a fantasia religiosa e especulativa, a brutalidade e o despotismo político impõem ao homem. Entendo por egoísmo o egoísmo sem o qual o homem não pode viver; porque para viver devo apropriar-me constantemente do que me é conveniente e evitar o que me agride e

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que o egoísmo é um componente humano fundamental, não é de se estranhar seu uso

negativo, como acabou de descrever-se.

Quem poderá negar ser o egoísmo humano o princípio fundamental da religião e da teologia? Pois, se a dignidade de ser adorado e implorado, logo, se a divindade de um ser dependente exclusivamente de sua relação com o bem-estar humano, se é divino somente um ser que seja benéfico e útil ao homem, então o motivo da divindade de um ser está somente no egoísmo do homem, que relaciona tudo só consigo e só julga conforme essa relação (FEUERBACH, 1989, p. 59).

Nas obras A essência do cristianismo e Preleções sobre a essência da religião,

percebe-se que, assim como no passado, ainda hoje, diante das mais variadas situações que

desafiam o ser humano, a ânsia de proteger-se o leva a criar para si uma redoma, uma

carapaça supostamente capaz de defendê-lo dos problemas e desafios. Assim, na experiência

religiosa, o ser humano apega-se a estruturas que ele mesmo cria para aliviar suas dores e

sofrimentos transformando essas estruturas em divindades, em fantásticos poderes capazes de

assegurarem sua proteção e livrá-lo dos males.

A projeção humana em seres sobrenaturais parece ter sido muito frequente em culturas

pré-modernas. Ainda hoje pode ser percebida, apesar dos processos decorridos a partir do

século XVI no Ocidente cristão, bem como em outras culturas.

Até o século XVI, em todas as culturas do passado, incluindo o Ocidente cristão, e ainda hoje na grande maioria dos cristãos, existe a ideia de que este nosso mundo dependeria absolutamente de outro mundo, o qual é pensado e representado de acordo com nosso modelo. Na visão cristã, isso significa que seria governado por um Senhor divino, com plenos poderes (...). Este Senhor todo-poderoso dita leis e prescrições, vela por seu exato cumprimento, ameaça, castiga e ocasionalmente perdoa. Espontaneamente pensa-se que este mundo está situado “sobre” o nosso, e por isso ele é chamado sobrenatural e também céu, ainda que num sentido distinto do de firmamento. Nesse mundo de cima se sabe e se conhece tudo, até o mais recôndito. Qualquer conhecimento humano é inferior em comparação com aquele. Felizmente, de vez em quando esse mundo nos comunica o que considera indispensável saber e que não poderíamos descobrir sozinhos. A boa vontade, ao menos latente, daquele mundo de cima fundamenta, por sua vez, a esperança de que – mediante humildes súplicas e oferendas – conseguiremos uma parte das inumeráveis coisas de que precisamos e não podemos alcançar com nossas próprias forças (LENAERS, 2010, p. 21).

me é nocivo, o egoísmo pois que está no organismo, na posse do material assimilável e na recusa do não assimilável. Entendo por egoísmo o amor do homem por si mesmo, ou seja, o amor pela essência humana, o amor que é o impulso para a satisfação e aprimoramento de todos os anseios e talentos, sem os quais ele não será nem poderá ser um homem verdadeiro, completo. Entendo por egoísmo o amor do indivíduo por indivíduos de sua espécie; porque o que sou sem eles? O que sou sem o amor à essência de meu semelhante? – o amor do indivíduo por si mesmo no sentido em que todo amor por um objeto, por uma coisa, é um amor indireto por si mesmo, porque só posso amar o que corresponde a meu ideal, a meu sentimento e a minha essência.” (FEUERBACH, 1989, p. 50).

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O aspecto modelar da projeção religiosa destacado por Lenaers favorece a

compreensão do trânsito religioso, ou seja, das mudanças das crenças nos vários deuses em

distintas culturas ao longo da história. Recorde-se que, na perspectiva feuerbachiana, como

afirmado anteriormente, ao criar estruturas e, a partir delas, crenças, superstições e ritos, o ser

humano evidencia o seu egoísmo, pois sempre pede, invoca, oferece e ritualiza em benefício

próprio, em busca de sua própria satisfação. Assim, “Toda satisfação de um impulso, seja esse

baixo ou elevado, físico ou espiritual, prático ou teórico, é para o homem um prazer divino e

somente por isso adora ele objetos ou seres como majestosos, adoráveis, divinos por depender

deles essa satisfação.” (FEUERBACH, 1989, p. 53).

Portanto, o presumível divino, os poderes fantásticos, as forças extra-humanas devem

estar sempre a serviço dos anseios, sonhos, projetos, e ambições daqueles que o invocam. Se

não atendem ao esperado, perdem a credibilidade, a confiança e deixam de ser venerados,

adorados. Consequentemente são substituídos por outros que nascem das necessidades não

satisfeitas. Feuerbach nos dá como exemplo a atitude dos cristãos quanto às divindades pagãs.

Mas por que os cristãos repudiaram os deuses pagãos, gregos e romanos? Porque seu gosto religioso se transformou, porque os deuses pagãos não mais ofereciam a eles o que desejavam. Por que então só o Deus deles é para eles Deus? Porque é a essência da essência deles, porque é semelhante, correspondente a suas necessidades, desejos e ideias (FEUERBACH, 1989, p. 53).

É bastante improvável que o ser humano deixe de buscar apoio na religião ou deixe de

acreditar no divino, pois a própria existência o leva a investir nesta crença uma vez que exige

explicações e soluções para vários problemas que não consegue solucionar. Já nos lembra

Feuerbach: “somente quando o homem perde o sabor da religião, quando a própria religião se

torna insípida, só então torna-se também a existência de Deus uma existência insípida.”

(FEUERBACH, 2007, p. 47).

As limitações e a incompletude fomentam no ser humano a experiência religiosa.

Assim, percebe-se que: “em Feuerbach a insuficiência humana se compensa num eu pessoal

deificado, que é resposta também às suas dores, misérias, sofrimentos, angústias, pressões da

vida social e política e ao desejo de vida melhor após a morte.” (HAHN, 2003, p. 116).

Nesta experiência, que sugere ou supõe uma abertura ao divino, o homem explicita o

processo inconsciente de sua própria projeção. O ser humano é, portanto e inconscientemente,

aberto para sua própria essência, evidenciando que o divino outra coisa não é senão o

totalmente eu.

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A essência diversa e independente do homem, o objeto da religião, não é somente a natureza exterior, mas também a natureza própria, interior do homem, diversa e independente de seu saber e querer. Com esse princípio chegamos ao ponto mais importante, à genuína origem da religião. O mistério da religião é em última análise somente o mistério da união do consciente com o inconsciente, do arbitrário com o casual em um único ser (FEUERBACH, 1989, p. 258).

Como pode o ser humano falar de Deus sendo que deposita suas forças em seus

interesses egoístas, transformando-os no único deus, na única religião da humanidade? 7 Não

está este mesmo ser humano, na prática, demonstrando acreditar somente em si mesmo, se

colocando como medida de todas as coisas?

Não se pode negar que todas as vezes em que o homem se afirma através de sua

liberdade, colocando-se como fim último de seus projetos, já está concretizando – ainda que

sem consciência clara – o ideal humanista. A crítica feuerbachiana, propõe a libertação

daqueles que ainda procuram justificar a vida e os rumos da história teologicamente,

alienando-se da capacidade de protagonizarem mudanças necessárias para emancipação da

consciência humana. Assim, a pedagogia feuerbachiana procura:

Ajudar o homem a encontrar seu lugar na vida e também nela estimular o desejo de dedicar seus esforços diretamente à humanidade, de sorte que sua vida, plena de riquezas espirituais, se torne uma felicidade terrena, e não um mero preparativo para a recompensa no outro mundo. Feuerbach propõe o amor ativo pelo ser humano e a incompatibilidade com as ilusões, mitos e ideias que o impedem de viver uma vida revestida de significação social. Pois a necessidade de fazer o bem aos outros e de não pensar apenas em seus próprios interesses exige a emancipação da consciência do homem, que impõe a necessidade de libertá-lo de muitas ilusões e superstições acerca da sociedade justificada teologicamente (HAHN, 2003, p. 77).

Enquanto o ser humano não assumir a sua responsabilidade e o seu papel de

protagonista na mudança dos rumos da história, continuará servindo-se da religião para

esquivar-se de seu compromisso para com a transformação do mundo. Por isso Feuerbach

Critica a religião por não dar a devida importância à vida presente pondo toda a esperança de libertação no céu. Por isso o homem religioso, segundo ele, não se compromete com a mudança e transformação, com a justiça, o sofrimento e a miséria deste mundo. A religião leva-nos a aceitar todas essas coisas resignadamente

7 Cabe aqui ressaltar o pensamento de Max Stirner acerca do eu e do mundo, na obra O único e a sua propriedade. Pensamento que, sobre esta questão especificamente, não se distancia da análise feuerbachiana do egoísmo. Assim expõe Stirner como se processa a nossa relação com o mundo: “já não faço por ele nada “por amor a Deus”, nada “por amor aos homens”; o que faço, faço-o “por amor a mim”. Só assim o mundo me satisfaz, enquanto é característico do ponto de vista religioso, no qual incluo também o moral e humanista, tudo nele ser um voto piedoso (pium desiderium), ou seja, um além inacessível. É o caso da bem-aventurança universal dos homens, o mundo moral de um amor universal, a paz perpétua, o fim do egoísmo etc. “Nada é perfeito neste mundo”: com este dito desolador, os bons afastam-se dele e refugiam-se em Deus ou no orgulho da sua “consciência-de-si”. Mas nós ficamos neste “mundo imperfeito” porque nos podemos servir assim mesmo dele para nosso... gozo pessoal.” (STIRNER, 2009, p. 412).

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sem lutar contra elas, projetando nossa felicidade no outro mundo (ZILLES, 2007, p. 102).

A atual conjuntura, na sua complexidade, tornou-se o convite para um repensar a

religião e, especificamente, o cristianismo. A busca pelo sagrado, pelo transcendente, pelo

sobrenatural tem contribuído para a evolução da humanidade? Até quando o ser humano

continuará privando-se de sua condição de sujeito originário que deve escrever sua história?

A crítica feuerbachiana à religião vai nos mostrar que não podemos mais continuar

tomando a história como manifestação do querer divino, pois tal postura impede todo e

qualquer processo de humanização do homem. Por isso sugere a busca do fundamento

antropológico da religião. Interessa-nos, portanto, investigar

Como Feuerbach buscou mostrar ser a religião apenas antropologia, como reencontrou o homem na estrutura da alienação religiosa, porque este foi um passo fundamental, dado por Feuerbach, para tornar o ser humano sujeito ativo de sua história e não mais um simples ser a cumprir os supostos desígnios divinos (SCHUTZ, 2001, p, 19).

O ser humano precisa entender o que fala e se, quando fala, não está falando dele

mesmo ao direcionar o seu pensamento ao que considera ser de outra natureza ou dimensão.

O Deus que o homem distingue de sua essência e que pressupõe esta como causa ou origem nada mais é do que a própria natureza. O Deus humano ou o Deus espiritual ou o Deus ao qual ele atribui predicados humanos como consciência e vontade que ele imagina como um ser semelhante a si, distinto da natureza enquanto entidade destituída de vontade e consciência, nada mais é que o próprio homem (FEUERBACH, 1989, p. 76).

Ludwig Feuerbach analisa a natureza humana na sua compleição, o desenvolvimento

histórico, no intuito de compreender toda a psicologia humana, a moral, a história, a religião.

Sem o estudo de tudo aquilo que faz parte da natureza e da história humana e sem a

compreensão das motivações primeiras da experiência religiosa, não conseguiremos entender

porque o ser humano, sobretudo frente a suas necessidades, alimenta o sentimento de

dependência religiosa. Afirma Feuerbach: “o sentimento de dependência é a base da religião.”

(FEUERBACH, 1989, p. 29).

Enquanto o ser humano estiver projetando sua grandeza e sua infinitude num ser

distinto de si, continuará permitindo que a religião avance neste processo de esvaziamento do

homem, pois dela não se pode esperar senão a alienação e debilitação do ser humano,

apresentando-se como autoestranhamento e autoalienação de cada homem individual. “A

religião, sobretudo o cristianismo, faz com que o homem não se empenhe nas tarefas

temporais, na construção da história e da sociedade, afastando o interesse humano da

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realidade concreta, devido à esfera de um quimérico mundo vindouro.” (SOUZA, 1993, p.

69).

Não se pode negar que na medida em que o homem se torna religioso, vai alienando-se

de sua humanidade, “adornando Deus com tesouros de sua própria interioridade.” (SOUZA,

1993, p. 70).

Investigar o pensamento de Ludwig Feuerbach traduz a busca de fundamentos e de

compreensão de suas críticas à religião no intuito de valorizar no homem o amor por si

mesmo, o amor pela essência humana e pelos indivíduos de sua espécie. Por mais que isso

possa sugerir uma espécie de egoísmo, não se pode associá-lo à busca de vantagem, mas:

O fazer valer-se a si mesmo conforme a natureza e, consequentemente (...) conforme a razão, o afirmar-se a si mesmo do homem diante de todas as instâncias antinaturais e anti-humanas que a hipocrisia teológica, a fantasia religiosa e especulativa, a brutalidade e o despotismo político impõem ao homem. (FEUERBACH, 1989, p. 50).

Como conclusão deste item pode-se afirmar que não haverá ruptura com tudo aquilo

que aprisiona o homem se o próprio homem não tomar consciência daquilo que lhe prende. O

afirmar-se a si mesmo exige necessariamente a coragem e a ousadia para desligar-se do que,

até então, era considerado como parte integrante e normal da vida humana.

Tomar as instâncias antinaturais e anti-humanas como naturais e humanas traduz, tão

somente, a incompreensão do valor e da importância do humano no cumprimento do papel

protagonizador da mudança de rumo da história que tantas vezes deixou de ser assumida e

administrada por muitos que se esquivaram desta humana missão.

Abrir-se ao presumível divino é contribuir para a expansão das ideias religiosas que,

no decorrer da história humana, mantiveram o homem no anonimato, resignado e destituído

de seu poder de questionamento e de transformação.

O pensamento de Feuerbach quer auxiliar o homem no reencontro consigo mesmo de

maneira que, uma vez reencontrado, possa fazer valer suas potencialidades, sua razão, sua

autonomia, sua essência. Potencial sufocado que deve ser libertado e administrado em nome

de uma história que deverá ser escrita e celebrada por ele mesmo ao invés de se entregar à

crença num deus que a escreve à sua maneira.

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2.2 Regresso ao homem como encontro com a essência humana

Conforme trabalhado no item anterior, o homem jamais poderá conhecer sua essência

se não se dispuser a fazer aquela viagem necessária ao seu interior. Para tanto, deverá

percorrer um caminho diferente daquele apresentado pela religião, uma vez que encontrará

como placas indicativas neste novo caminho não as verdades do além, mas o que a realidade

apresenta como conteúdo a ser pesquisado, trabalhado e administrado sem o auxílio das ideias

religiosas.

O caminho que leva ao homem é, portanto, o próprio homem. Seu auxílio será a sua

curiosidade. Sua força a sua perseverança na busca da compreensão de seu interior. Sua

recompensa a sua libertação frente às inverdades apresentadas pela religião.

A proposta de Feuerbach é que o homem procure conhecer melhor sua essência para

que passe a acreditar mais no seu potencial de transformação. A libertação do homem frente

ao que lhe é imposto pelas doutrinas e pelas crenças só será possível a partir do momento em

que aprender a se respeitar como ser autônomo e capaz de decidir pelo seu destino. Daí a

importância de regressar a si para descobrir-se como responsável pelos outros, pois na sua

liberdade e nas suas escolhas não deve furtar-se de seu compromisso para com os demais que

participam e traduzem a essência genérica humana.

No título A essência do homem em geral, da Introdução de A essência do cristianismo,

Feuerbach apresenta a consciência em sentido estrito como a diferença essencial entre o

homem e o animal, entendendo por consciência em sentido estrito a capacidade de um ser

tomar como “objeto o seu gênero8 ou a sua essencialidade.” (FEUERBACH, 1994, p. 9).

A distinção entre a existência finita, que define a individualidade de um indivíduo, e a essência finita, que pertence a todos, apenas pode ser reconhecida pela consciência. Não aquela consciência em sentido amplo, graças à qual se dá a

8 Faz-se necessária uma sistematização mais precisa das diferentes acepções cobertas pela categoria de gênero humano. Tal sistematização é dada por Feuerbach, sendo dividida em quatro acepções conforme nos apresenta Adriana Conceição Guimarães Veríssimo Serrão: “Gênero significa em primeiro lugar, ‘o tu em face do eu singular fixado por si’. Aqui se consagra a noção de indivíduo concreto no seio da estrutura da socialidade, o face a face do existir em comum na dinâmica relacional. Numa segunda acepção, gênero indica ‘o outro em geral’. A ideia de Humanidade é alargada dos “tus” atuais aos outros possíveis, contendo a individualidade genérica de qualquer possível ser humano, ainda que atualmente não presente. Numa terceira acepção, o gênero são ‘os indivíduos humanos que existem fora de mim’. Refere-se ao conjunto numérico, a soma das individualidades discretas passadas e presentes, a reunião presuntiva de todos os indivíduos. Não se tratando da soma estatística e contável, mas de uma adição incontável e aritmeticamente inabarcável, perder esta acepção aditiva seria voltar a cair na nulidade do singular. Por fim, numa quarta acepção, o gênero indica a ‘natureza do homem’, a natureza sociável da essência humana (SERRÃO, 1999, p. 255).

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apreensão perceptiva de um objeto sensível, mas a consciência de si, a relação que um ser mantém com a sua essência interior. A natureza mais genuína do ser humano não se encontra tanto no fato de ser exteriormente um elemento de um gênero, quanto no fato de ser interiormente consciente de ser elemento de um gênero; ou, noutros termos, na capacidade de poder apreender subjetivamente, em si, um poder infinito objetivo. A consciência é assim a estrutura humana mais fundamental. Consciência e essência distinguem-se somente como duas faces, a subjetiva e a objetiva, da vida em relação com o gênero, com a essência humana universal (SERRÃO, 1999, p. 51).

Embora o animal tenha sentimento de si, possua faculdade de diferenciação sensível

conseguindo perceber as coisas que se encontram ao seu redor, ainda lhe falta a capacidade

para a ciência enquanto consciência do gênero. É interessante observar que Feuerbach parte

dessa distinção para mostrar que somente a partir da consciência de sua essencialidade é que

“um ser começa a tomar por objeto outras coisas ou seres segundo a sua natureza essencial.”

(FEUERBACH, 1994, p. 9).

Enquanto o animal possui uma vida simples, pois sua vida interior coincide com a vida

exterior, o homem possui uma vida dupla, ou seja, uma vida interior e uma exterior. É

justamente essa vida interior que vai permitir a relação do homem “com o seu gênero, a

relação do homem com sua essência universal.” (FEUERBACH, 1994, p. 10). O animal, por

não ter consciência do gênero, se encontra impossibilitado de realizar qualquer função

genérica sem que haja um outro indivíduo além dele. O homem, ao contrário, já consegue

realizar as funções genéricas do pensar, do falar sem que haja um outro.

Sabemos que o homem consegue situar-se no lugar de seu semelhante, e isso nos leva

a crer que ele é concomitantemente eu e tu. “O homem é para si ao mesmo tempo eu e tu;

pode colocar-se no lugar do outro, precisamente porque tem como objeto, não apenas a sua

individualidade, mas o seu gênero, a sua essência.” (FEUERBACH, 1994, p. 10).9

Ainda apresentando as diferenças entre o animal e o homem, Feuerbach vai nos falar

da consciência que o homem possui de sua essência infinita, pois se não a possuísse não

poderia pensar sobre a infinitude, muito menos sobre a infinitude de sua consciência. Isso o

difere do animal que, ao contrário, possui instinto.

Precisamente pela consciência do gênero ou essência, que tem a qualidade da infinitude, é que o indivíduo toma consciência de sua limitação e finitude. Nesta tomada de consciência da própria limitação por parte do indivíduo frente ao gênero, consiste sua diferença específica frente ao animal (SOUZA, 1993, p. 53).

9 A sequência das citações deste tópico deve-se à necessidade de atermo-nos às ideias chaves que se encontram na Introdução de A essência do cristianismo. Tomamos propositalmente essa sequência como o alicerce para os passos subsequentes de nossa pesquisa.

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Atentos à maneira como Feuerbach vai desenvolvendo seu raciocínio, percebe-se que

à medida que o homem passa a tomar consciência do infinito é que ele, enquanto ser

consciente, vai tomando como objeto a infinitude da própria essência. Por isso afirma:

A religião em geral, enquanto idêntica à essência do homem, é idêntica à consciência de si do homem, à consciência que o homem tem da sua essência. Mas a religião é, numa expressão geral, consciência do infinito; portanto, não é e não pode ser outra coisa senão a consciência que o homem tem de sua essência, a saber, de uma essência não finita, limitada, mas infinita (FEUERBACH, 1994, p. 10).

Percebe-se, a partir da análise de Feuerbach, que o homem não pode ter consciência da

infinitude se não fosse infinito e se sua essência fosse finita. Sua consciência nada mais é

senão a consciência que toma a essência infinita por seu objeto. Ora, se a religião é a

consciência do infinito e esta consciência é a consciência que o homem tem de sua essência

infinita, então deduz-se que a consciência dessa essência infinita é a religião da humanidade.

Os desdobramentos desse raciocínio vão evidenciando que a essência do homem é a

coluna mestra da religião e que sem ela o sobrenatural, o transcendente, o sobre-humano,

desmoronaria, pois não poderia se sustentar em nada mais além do humano. Portanto o

presumível além não é senão o aquém projetado para fora de si. E o ato de projetar-se para o

suposto além não seria possível se o homem não tivesse consciência de sua essência infinita.

Aqui, faz-se necessário perguntar com Feuerbach: “mas o que é então a essência do

homem, da qual ele tem consciência, ou o que é que constitui o gênero, a humanidade

propriamente dita no homem? A razão, a vontade, o coração” (FEUERBACH, 1994, p. 11).

Analisando o pensamento de Feuerbach, Adriana Veríssimo Serrão afirma que:

Sendo a razão como a unidade mesma dos homens, não poderia ela encontrar-se a não ser na imanência do mundo humano, único terreno onde se concretiza e tem o seu lugar de manifestação. E sendo essa unidade necessariamente também universal e infinita, não limitada por uma entidade superior nem afetada internamente por qualquer clivagem, é a própria totalidade dos homens encarnada no gênero humano que é levada ao estatuto de realidade suprema e de única figura do divino. A rejeição de qualquer posição de transcendência é particularmente patente na introdução do atributo da infinitude. Determinar limites à razão, ou ao gênero que a encarna, significaria introduzir o ponto de vista da comparação com uma entidade superior relativamente à qual a razão se poderia saber como finita, mas também na qual, contraditoriamente, ao ultrapassar-se e sair de si mesma para se ver como limitada, se colocaria imediatamente como razão e não-razão, como sua negação (SERRÃO, 1999, p. 34).

Percebe-se que Feuerbach fala da humanidade como um todo não fugindo para uma

dimensão transcendente, distante da realidade, da natureza, do universo. Assim, o indivíduo

só poderá humanizar-se concretizando o que é comum a todos.

26

A essência não se confunde com uma ideia platônica, uma entidade metafisicamente subsistente ou uma alma substancial. É um complexo dinâmico de faculdades ou forças de coesão universal, cujo único sujeito e protagonista é o todo da Humanidade, o gênero humano, que se desdobra na inesgotável multiplicidade e diversidade de indivíduos reais. O pensamento, a vontade e o sentimento representam, na unidade do seu conjunto, os poderes fundamentais, a “essência absoluta” de que o homem não se pode privar nem ser privado sem gerar a incompletude e o empobrecimento da sua própria identidade (SERRÃO, 1993, p. 12).

Quando o homem se desloca de sua essência para se apoiar na individualidade, na

particularidade, priva-se daquilo que lhe é mais precioso: a humanização que só se dá na

realização do universal comum a si e aos demais semelhantes. Esse movimento que nega a

essência acaba por instalar na humanidade o processo de individualização e de personalização

que, gradativamente, vai deixando o homem vazio, carente da sua verdadeira identidade.

Negando aquilo que Feuerbach coloca como perfeições essenciais absolutas – a razão,

a vontade, o coração –, o homem se ilude de poder não mais participar delas, não aceitando

que é a partir delas que ele se define, pois são forças que o animam e o determinam. São

forças perfeitas porque encontram em si mesmas a finalidade para a sua existência e para o

seu ser.

Mas aquilo que é o fim último de um ser é também o seu verdadeiro fundamento e origem. Mas qual é o fim da razão? A razão. Do amor? O amor. Da vontade? A liberdade da vontade. Pensamos para pensar, amamos para amar, queremos para querer, isto é, para sermos livres. Um verdadeiro ser é um ser que pensa, ama e quer. Verdadeiro, perfeito, divino é apenas o que existe em função de si. E tal é o amor, tal a razão, tal a vontade. A trindade divina no homem, acima do homem individual, é a unidade de razão, amor e vontade (FEUERBACH, 1994, p. 11).

Mas, existiria o verdadeiro fim da razão, do amor, da vontade se não existisse a

consciência do gênero que permite ao homem pensar, amar e querer? O que ele buscaria, o

que amaria sem a razão? De que mundo falaria se não deste mundo, desta realidade, desta

natureza, deste universo? Não existe a mínima condição – por natureza – de pensar, amar,

querer além daquilo que faz parte do gênero, que é permitido por ele, pois, caso contrário,

haveria uma contradição na própria essencialidade.

Assim, tudo aquilo que está ligado ao que o homem ama, quer e pensa só existe

enquanto amado, querido e pensado segundo a sua essencialidade. Portanto, o presumível

transcendente, o sobrenatural, o divino já existe dentro do ser humano, pois quando se busca

na religião o que supostamente está acima da humanidade, da natureza, busca-se – na verdade

– o que sempre esteve no seu interior.

27

Por que devo então ir além da natureza? Só teria uma justificação para isso se fosse eu mesmo um ser que existisse acima da natureza. Mas não sou um ser sobrenatural e nem mesmo supraterrestre, porque a terra é o critério absoluto de minha essência; eu não só estou sobre a terra com as duas pernas, mas também só penso e sinto sob o ponto de vista da terra, só em conformidade com esta situação que a terra ocupa no universo; certamente elevo minhas vistas até o mais distante céu, mas vejo todas as coisas à luz e segundo o critério da terra (FEUERBACH, 1989, p. 83).

Constata-se que realmente “o homem nada é sem objeto” (FEUERBACH, 1994, p. 13)

e que esse objeto não existe nem se encontra fora dele mesmo. Na verdade o homem passa a

ser mais bem conhecido a partir de seu objeto, pois é ele, o objeto, que revela a essência, o

autêntico objetivo do homem.

Quando Feuerbach afirma que “o homem torna-se consciente de si mesmo pelo objeto:

a consciência do objeto é a consciência de si do homem” (FEUERBACH, 1994, p. 13),

demonstra claramente que o homem é o seu próprio deus10 e que a projeção para o

transcendente, sobrenatural, não passa de uma patologia que nega a verdade objetiva e fria, a

verdade da realidade, do mundo e da razão objetivos, uma patologia11 que deve ser curada a

partir do assumir-se totalmente humano e limitado, carente de respostas ou de soluções para

seus problemas. Apresenta-se aqui a diferença fundante entre a consciência de si do homem e

a consciência religiosa:

A consciência religiosa liga imediatamente o mundo a Deus; deduz tudo de Deus, porque não toma nada como objeto na sua particularidade e realidade, nada é para ela objeto como objeto da teoria. Tudo provém de Deus – e isto basta, satisfaz completamente a consciência religiosa (FEUERBACH, 1994, p. 270).

O pensamento feuerbachiano vai delineando com peculiar maestria aquilo que traduz a

sã consciência: autoativação, autoafirmação, amor de si, alegria pela sua perfeição em vista da

superação de estruturas que sempre tentaram desumanizar o humano. Segundo Hahn,

Feuerbach

10 Adriana Conceição Guimarães Veríssimo Serrão salienta que “a interpretação feuerbachiana da religião começa por ser a mostração da origem humana do divino através da redução do divino ao humano: é este o cerne da tese segundo a qual “Deus é o homem”. Mas a intenção que orienta – compreender como e porquê cria o homem os seus deuses – vem a tornar-se, por sua vez, propedêutica de outra interrogação mais profunda – quem é esse criador dos Deuses? – , interrogação condutora de um processo maiêutico bem expresso no “conhece-te a ti mesmo” socrático que Das Wesen des Christentums elege como lema inspirador. Procura acima de tudo a resolução do enigma que envolve todo o fenômeno da transcendência, através da reconstituição da sua gênese psicológica.” (SERRÃO, 1999, p. 62). 11 Em relação ao termo patologia, a professora Adriana Conceição Guimarães Veríssimo Serrão ressalta que “a designação patologia psíquica diagnostica uma situação de quase delírio e o grau de excessividade que esta faculdade pode atingir quando se torna onipotente e se sente capaz de ultrapassar todos os limites.” (SERRÃO, 1999, p. 64). Na experiência religiosa o ser humano procura administrar os desafios e as situações que lhe afligem através da negação da realidade quando, pela religião, imagina estar superando os limites próprios da natureza.

28

Elege a ideia de homem como sua referência última, sobretudo porque o humano concreto é apenas a totalidade da vida e da essência humana, e não de uma realidade transcendente. Em torno desta homologia se concentra todo um exame crítico de uma tradição cultural e filosófica, lida por Feuerbach como a história de um esquecimento e de uma marginalização do homem real. Nestes termos, a antropologia proposta por Feuerbach, e aí reside seu mérito para a contemporaneidade, é a constante superação das inúmeras formas de desumanização de que se revestiu e se reveste a humanidade: seja a teologia que degrada o homem à condição de súdito de um senhor divino, a metafísica que o reduz a ser abstrato, ou a ciência que o instrumentaliza como objeto, sejam ainda outras formas de alienação ideológica e de repressão política (HAHN, 2003, p. 144).

Feuerbach também mostra que, imperceptivelmente, a grande maioria não se deu

conta de que negar-se a si mesmo é negar o deus gerado pela negação do gênero. Se negam a

si mesmos, como podem sustentar um deus perfeito que outra coisa não é senão eles mesmos?

Como podem negar aquilo que não é distinto nem separado deles mesmos? Precisamos,

portanto, ter clareza sobre o que estamos tratando. Temos que compreender de que maneira o

homem toma consciência de si mesmo. “É, pois, impossível ter consciência de uma perfeição

como sendo imperfeição, impossível sentir o sentimento como limitado, impossível pensar o

pensar como limitado.” (FEUERBACH, 1994, p. 15).

Evidentemente Feuerbach não está sugerindo que o indivíduo humano deixe de sentir-

se ou de reconhecer-se como limitado. Ao contrário, até admite que o indivíduo humano

procure tomar consciência disso. O que quer mostrar é que a consciência das limitações e da

finitude só se torna possível pelo fato de ele ter como objeto a perfeição, a infinitude do

gênero.

Diante de suas limitações, o indivíduo humano, na maioria das vezes, serve-se delas

para transformá-las em limitações do gênero, sustentando a ilusão de que se identifica assim

com o gênero. Na verdade, tal fato demonstra a dificuldade do indivíduo em lidar com aquilo

que ele toma para si como vergonhoso, como humilhante. Para libertar-se desse sentimento,

investe no processo de transformação das limitações individuais em limitações da essência

humana. “O que é para mim incompreensível, é também incompreensível para os outros;

porque é que me hei de preocupar mais? Não é culpa minha, não está no meu entendimento,

está no entendimento do próprio gênero.” (FEUERBACH, 1994, p. 16).

Entender esta dinâmica de transferência de uma limitação individual para a esfera do

geral só é possível se levarmos em consideração que tal procedimento reflete tão somente

uma imperfeita consciência de si. “É no momento em que uma deficiência individual se

estende à totalidade dos homens, quando um defeito particular não é reconhecido como tal

mas considerado como defeito de todos, que se instala a ilusão religiosa.” (SERRÃO, 1999, p.

53).

29

Considerando essa linha de raciocínio percebemos que da mesma maneira que o

indivíduo transfere para a esfera do geral aquilo que lhe é peculiar, podendo ser uma

limitação, uma deficiência, uma incapacidade, também o faz ao projetar para o presumível

transcendente, sobrenatural, divino aquilo que se encontra na sua essência, a saber: o

ilimitado, a perfeição, a infinitude do gênero.

Afirmar o transcendente, o sobrenatural, o divino como entidades totalmente diversas

e externas ao ser humano é negar inconscientemente a própria essencialidade, pois a essência

absoluta do homem é a sua própria essência. Como poderá o homem ir além de sua essência

sendo que quando imagina que isso esteja acontecendo está alimentando uma transcendência

ilusória, uma ilusão, sem sair de si mesmo? Essa ilusão tornou-se o conteúdo da religião,

resultado de uma consciência iludida.

E se o conteúdo da religião é tão só o de uma consciência iludida e deficientemente dirigida, então é algo de provisório e que poderá a qualquer momento ser suspenso, convertendo-se definitivamente em atitude consciente uma atitude desprovida de consciência, somente ainda desconhecida e cujos mecanismos ainda não foram compreendidos como tal (SERRÃO, 1999, p. 54).

Se “o que faz da essência aquilo que ela é, é justamente o seu talento, a sua

capacidade” (FEUERBACH, 1993, p. 17), então se torna impossível querer explicar o

transcendente, o divino como não sendo oriundo da essência humana, pois como poderia o ser

humano pensar o infinito sem a infinitude da faculdade de pensar e como poderia sentir o

infinito sem a infinitude da faculdade de sentir? “O objeto da razão é a razão que se toma a si

mesma como objeto, o objeto do sentimento é o sentimento que se toma a si mesmo como

objeto.” (FEUERBACH, 1994, p. 18).

Encontramo-nos conosco na experiência da projeção no transcendente, pois na

tentativa de encontrarmo-nos com Deus encontramo-nos com nossa essência, que deixa de

afirmar-se para afirmar um além que não passa de um aquém que não quer assumir-se.

Como poderias perceber o divino através do sentimento, se o sentimento não fosse ele mesmo de natureza divina? O divino só é reconhecido pelo divino, Deus apenas por ele mesmo. A essência divina que o sentimento percebe nada é, de fato, senão a essência do sentimento enfeitiçada e encantada consigo mesma – o sentimento extasiado, feliz consigo mesmo (FEUERBACH, 1994, p. 19).

O encontro fundamental do homem-homem com o homem-deus evidencia a questão

da cisão originada pelo próprio e único responsável por ela, o homem, que, alienado de sua

essência, busca embriagar-se no etéreo que nunca existiu fora de si, mas que desde a origem

30

da religião passou a ser considerado existente externo, separado, diferente, alheio, contrário à

essência humana.

É importante observar que, mesmo alienado de sua essência, o homem nunca deixou

de ter consciência de si. A questão que nos chama a atenção é justamente a separação, a

distinção que ele faz entre ele e um possível outro distinto de si. Um outro que se difere de si

por ser infinito e superar todas as limitações. Um outro que não é senão ele mesmo. Um outro

que recebe as características da essência do gênero sendo considerado transcendente, distinto

do homem, distante da natureza humana, com qualidades e poder para decidir sobre o homem,

sendo que tais qualidades e tal poder são delegados pelo próprio homem.

É consequência de minha doutrina que não existe nenhum Deus, ou seja, nenhum ente abstrato, suprassensível, diverso da natureza e do homem, que decide sobre o destino do universo e da humanidade a seu bel-prazer; mas essa negação é apenas uma consequência do conhecimento da essência de Deus, do conhecimento de que esse ser nada mais expressa do que, por um lado, a essência da natureza, do outro lado, a essência do homem (FEUERBACH, 1989, p. 29).

O regresso ao homem como encontro com sua essência torna-se o processo autêntico

para a compreensão da religião, uma vez que analisando a essência humana analisa-se o

próprio conteúdo da religião. Como afirmado acima, não existe outro caminho a ser

percorrido senão aquele que nos leva ao homem, pois o objeto religioso se encontra dentro

dele, não devendo ser procurado fora, distante de si. É o homem quem elege o objeto da

religião: “é o ser preferido, primeiro, supremo; pressupõe essencialmente um juízo crítico, a

diferença entre o divino e o não divino, entre o que é e o que não é digno de adoração.”

(FEUERBACH, 1994, p. 22).

Como poderia se dar a diferenciação entre o divino e o não-divino senão a partir do

homem? Acaso poderia uma entidade, uma força extra-humana, sobrenatural apossar-se do

homem para fazer essa diferenciação? E, caso isso fosse possível, que recursos tal entidade ou

força utilizaria para se comunicar com o ser humano senão com o que se encontra à

disposição do homem, a saber: o sentimento, a vontade, a razão? Estamos diante daquilo que

Feuerbach considera:

O núcleo fundamental e originário do cristianismo, a simultânea divindade e humanidade de Cristo, que são utilizadas por ele para fundamentar a um tempo suas próprias ideias e para realizar sua crítica ao cristianismo. A figura de Cristo é assim interpretada como uma maneira de expressar que “o homem e Deus são uma mesma coisa.” (II 387). Portanto, Deus não tem de ser buscado mais além do homem.

31

Crença em Cristo, não é senão crença no homem, na humanidade (CASTRO, 2002, p. 8, tradução nossa).12

Fica assim evidenciado como se processa a revelação do presumível divino para com o

humano. O homem, incapaz ou inseguro consigo mesmo, não querendo assumir nem revelar

aquilo que nele se encontra mais escondido, protegido, projeta em Deus o seu interior, os seus

segredos. “Deus é o interior revelado, o si-mesmo do homem expresso, a religião é o

desvendamento festivo dos tesouros escondidos do homem, a confissão dos seus pensamentos

mais íntimos, a proclamação pública dos seus segredos de amor.” (FEUERBACH, 1994, p.

23).

No entanto, observa-se um dado interessante. O fato de o homem religioso projetar-se

em Deus não quer dizer que tenha consciência de que esteja se projetando, ou seja, não está

consciente de que a consciência que tem de Deus é a consciência que tem de sua própria

essência. A falta dessa consciência é que se torna característica fundante da religião.

É evidente que se o homem religioso tivesse essa consciência não procederia como

homem religioso, pois certamente iria trabalhar consigo mesmo para reverter o processo de

projeção.

Se ao invés de projetar-se em Deus o homem procurasse lidar com as questões de

gênero sem apelar para a individualidade, para a particularidade, certamente estaria entrando

em acordo com sua essência.

A religião, pelo menos a cristã, é a atitude do homem para consigo mesmo, ou melhor, para com a sua essência (a saber subjetiva), mas uma atitude para com a sua essência como se fosse uma essência diferente. A essência divina nada é senão a essência humana, ou melhor, a essência do homem purificada, liberta das limitações do homem individual, objetivada, isto é, intuída e adorada como uma essência própria, diferente, distinta dele – todas as determinações da essência divina são, por isso, determinações humanas (FEUERBACH, 1994, p. 24).

É importante também observar que quando o homem cai na ilusão de ter conseguido a

força necessária para a superação de seus problemas – ao apelar para a esfera do

transcendente – acaba idolatrando os predicados humanos como se fossem característicos e

dignos de um deus. Se Deus ama o ser humano porque é amor, se compadece da dor e do

sofrimento porque é compassivo, se perdoa suas faltas e alivia seu coração porque é

misericordioso, deve, por isso, ser buscado e adorado.

12 “El núcleo fundamental y originario del cristianismo, la simultánea divinidad y humanidad de Cristo, que son utilizadas por él para fundamentar a un tiempo sus propias ideas y para realizar su crítica al cristianismo. La figura de Cristo es así interpretada como una manera de expresar que “el hombre y Dios son una misma cosa” (II 387). Por lo tanto, Dios no ha de ser buscado más allá del hombre. Creencia en Cristo no es sino creencia en el hombre, en la humanidad.” (CASTRO, 2002, p. 8).

32

Porque é justamente nesses predicados nos quais ele é para mim que reside, para mim, o seu ser-em-si-mesmo, a sua própria essência; ele é para mim tal como poderá ser sempre para mim. O homem religioso está inteiramente satisfeito com o que Deus é em relação a ele – como homem, não conhece outra relação – pois Deus é para ele o que pode ser para o homem em geral (FEUERBACH, 1994, p. 27).

Como conclusão deste item uma questão pode ser levantada: de que outra maneira

poderia Deus existir se não existisse a cooperação inconsciente do homem para a sua

presumível existência? Conforme explanado acima, Deus existe porque existe para o homem

religioso. Então, se não existisse o homem religioso Deus nada seria em relação a ele, pois

não existiria. O homem, portanto, seria para si mesmo dispensando toda e qualquer

possibilidade de um ser acima e diferente dele.

O regresso ao homem outra coisa não é senão a negação da religião justificada

teologicamente enquanto ordenamento contrário ao que se apresenta na realidade, ou seja,

negação da sobreposição do que fora gerado pelo humano ao ser humano. Contrapor-se ao

que é justificado teologicamente é fazer jus ao ser humano enquanto único responsável pela

criação de Deus.

Levar o homem a conhecer sua essência é ajudá-lo a libertar-se da submissão e

passividade sustentada pela religião. Trata-se de devolver ao homem a religião autêntica

caracterizada como expressão da natureza humana. Uma religião que estará além das religiões

existentes e se constituirá como a superação de todas elas, pois não aceitará hipostasiação de

deuses separados do homem e recusará a realidade objetiva do além.

2.3 A religião no seu acordo com a essência do homem

Neste item, a análise de Feuerbach vem reforçar a ideia da religião como expressão da

natureza humana. A partir dessa ideia de religião, abre-se o caminho para que o homem

melhor conheça e trabalhe suas potencialidades, sua liberdade e sua identidade.

O pensamento de Feuerbach quer buscar e desvendar o fundamento humano da

religião. Para tanto, serve-se da religião para ajudar o homem a se dar conta de sua essência.

Assim, procurando desenvolver no homem uma reflexão conscientizadora, vai conduzindo-o

à libertação da ilusão religiosa alienante.

Uma vez libertado da ilusão alienante da religião, através do uso da razão, o homem

novo conceberá a realidade como constituída da essência humana e eliminará o divino.

33

Na obra A humanidade da razão, Adriana Veríssimo Serrão ressalta a grande

preocupação do jovem Feuerbach, que, já nos seus primeiros textos, defendia a tese de que a

unidade da razão é expressão da unidade dos homens.

A tese segundo a qual “a unidade dos homens nada mais exprime ou significa do que a unidade da própria razão” – unitas hominum nihil aliud exprimat significetque, quam unitatem rationis ipsius –, que sintetiza o núcleo forte da Dissertação de 1828, não representa apenas a reivindicação da autonomia da razão humana face a todas as formas, teológicas ou filosóficas, dogmáticas ou apenas reguladoras, de transcendência. Ela marca sobretudo a formulação mais remota daquela que constitui a matriz fundamental do pensamento de Feuerbach: a procura de uma reversibilidade entre a ordem da razão e a ordem do humano (SERRÃO, 1999, p. 33).

Assim, verifica-se que “os primeiros escritos de Feuerbach orientam-se coerentemente

na direção de uma recomposição conceitual do humano e na defesa de uma racionalidade

terrena exclusivamente fundada em categorias da imanência.” (SERRÃO, 1999, p. 33).

Como poderia o homem ao falar da religião não falar de si mesmo? Como poderia ao

referir-se a Deus não referir-se a si mesmo? Como chegaria às qualidades de Deus se não

conhecesse suas próprias qualidades? Como chegaria aos predicados se não tivesse

consciência do que lhe falta, do que lhe preenche, do que afeta seus sentimentos? Como

pensaria Deus senão através da razão? “A razão é, pois, a essência da Natureza e do homem

na sua identidade, depurada das barreiras da finitude, do espaço e do tempo, a essência

universal, o Deus universal.” (FEUERBACH, 1994, p. 343).

Sendo a razão a unidade mesma dos homens, não poderia ela encontrar-se a não ser na imanência do mundo humano, único terreno onde se concretiza e tem o seu lugar de manifestação. E sendo essa unidade necessariamente também universal e infinita, não limitada por uma entidade superior nem afetada internamente por qualquer clivagem, é a própria totalidade dos homens encarnada no gênero humano que é elevada ao estatuto de realidade suprema e de única figura do divino (SERRÃO, 1999, p. 33).

As tentativas feitas pelo homem no intuito de afirmar a existência de um deus fora de

si, extra-humano, sobrenatural, transcendente, autônomo e capaz de intervir na história

humana, mesmo não sendo humano, não podem se sustentar dispensando as categorias

humanas. Tal deus, hipoteticamente existindo, deveria eximir-se da razão, dos sentidos e dos

sentimentos humanos para afirmar sua existência e não poderia privar-se de sua essência

divina para servir-se da essência humana para se fazer sentido, experimentado.

Deus enquanto Deus, enquanto ser espiritual ou abstrato, isto é, não humano, não sensível, acessível e objetivo só para a razão ou para a inteligência, nada mais é do que a essência da própria razão, a qual, porém, é representada pela teologia comum

34

ou pelo teísmo mediante a imaginação como um ser autônomo, diferente, distinto da razão. É pois uma necessidade interna, sagrada, que se identifique finalmente com a razão a essência da razão distinta da razão, por conseguinte, que se reconheça, realize e atualize o ser divino como a essência da razão (FEUERBACH, 2002, p. 39).

Dentro dessa linha de raciocínio fica claro que da mesma maneira que o presumível

ser divino não pode servir-se do humano sem servir-se de sua essência – e isso seria uma

contradição, pois para algo ser o que é não pode ser o que não é ao mesmo tempo –, também o

ser humano não pode, para sentir e falar de Deus, eximir-se de sua essência. Portanto, quando

o homem fala ou imagina sentir Deus está sentindo e falando de si mesmo, considerando e

realçando a sua essência.

Deus é o ser independente, autônomo, que não precisa de nenhum outro ser para a sua existência e, por conseguinte, existe a partir de si e por si mesmo. Mas também esta determinação metafísica abstrata só tem sentido e realidade como uma definição da essência do entendimento e enuncia apenas que Deus é um ser pensante e inteligente ou, inversamente, só o ser pensante é divino. Com efeito, só um ser sensível precisa de outras coisas fora dele para a sua existência (FEUERBACH, 2002, p. 41).

Percebe-se, portanto, que a religião adota os atributos humanos e os transfere para

Deus. Assim o faz para imediatamente negar estes mesmos atributos ao homem como se

pertencessem à esfera divina, diferente e oposta à esfera humana. Ao atribuir o que lhe

pertence a Deus, o homem inicia um processo de autotraição inconsciente, deixando de

assumir sua própria essência, deixando de viver sua própria humanidade para entregar-se à

ilusória experiência da divindade.

Pode-se imaginar que Feuerbach esteja sugerindo um culto ou adoração à

humanidade13 quando apresenta a essência divina como sendo humana, mas sua preocupação

se limita a demonstrar a necessidade do homem voltar a si sem incorrer no erro da projeção

num ser divino, pois esta o aliena da percepção de si mesmo e estabelece a inimizade do

homem consigo mesmo.

O objetivo principal de A essência do cristianismo é demonstrar que a essência da religião (do cristianismo), a sua essência divina, é a essência do homem, que a teologia é, na verdade, antropologia, que a suposta unidade entre a essência divina e a humana é a unidade da essência humana consigo mesma, ou que a suposta diferença entre a essência divina e humana é apenas a diferença entre indivíduo e gênero (SOUZA, 1993, p. 33).

13 Conforme nos sugere a análise de Henrique Cláudio de Lima Vaz, no livro Antropologia Filosófica I, São Paulo: Loyola, 1991, p. 126, quando afirma que o antropocentrismo de Feuerbach é um antropoteísmo.

35

A primazia da humanidade não induz ao culto ou à adoração à humanidade, pois isso

se tornaria uma idolatria e criaria um paradoxo no próprio pensamento feuerbachiano que

questiona o fato de transformarmos o que buscamos e o que imaginamos em deus. “Qualquer

religião, qualquer forma religiosa que coloca no alto e faz de objeto de sua adoração um Deus,

isto é, um ser irreal, diverso da natureza real, abstraído e diverso da essência humana, é um

culto a imagens, é uma idolatria” (FEUERBACH, 1989, p. 159).

No entanto, não se pode deixar de considerar que a atenção voltada ao ser humano

traduz a “crença” numa humanidade nova que concentre toda sua força e “fé” em homens

que, uma vez conscientes de seu papel protagonizador de mudanças dos rumos da história,

realmente se reafirmem como os únicos capazes de administrar os desafios através de busca

de soluções possíveis sem deixar de levar em consideração suas reais limitações.

Está evidenciada a contribuição de Feuerbach para a mudança da sociedade de sua

época e para a nossa quando sugere aos homens tomarem o controle da situação ao invés de

apelarem para o sobrenatural. “Neste contexto Feuerbach dirigirá uma crítica ampla e sem

reservas a determinados modos de comportamento de um cristianismo descomprometido com

as atividades terrenas, tanto de cunho político como científico ou social.” (CASTRO, 2002, p.

13, tradução nossa).14

Assim, o pensamento feuerbachiano instiga o espírito contestador naqueles que não se

conformam com a leitura ou com a condução puramente religiosa da história. Por isso, nos

alerta para o perigo de transformarmos a realidade em nada e de desvalorizarmos a vida

terrena em função de uma vida celeste.

Onde a vida celeste é uma verdade, a vida terrena é uma mentira – onde tudo é fantasia, a realidade é nada. Para quem acredita numa vida celeste e eterna, esta vida perde o seu valor. Ou melhor ainda, já perdeu o seu valor: a fé na vida celeste é precisamente a fé na nulidade e insignificância desta vida (FEUERBACH, 1994, p. 195).

Feuerbach “lutou pela fundação de uma nova ‘religião da ação’, por uma concentração

total no mundo de cá, pela formação de homens que podem e querem encarregar-se de

revolucionar a vida.” (SIEGMUND, 1966, p. 237).

A humanidade realmente não pode privar-se de sua missão frente aos desafios e

obstáculos que surgem no decorrer dos tempos. Uma vez que a religião, dentro do

14 “En este contexto Feuerbach dirigirá una crítica amplia y sin contemplaciones a determinados modos de comportamiento de un cristianismo descomprometido con las actividades terrenales, tanto de signo político como científico o social.” (CASTRO, 2002, p. 13).

36

pensamento feuerbachiano, vai de encontro à essência do ser humano, deve ser

conscientemente recolocada no seu devido lugar, se é que de seu lugar algum dia ela saiu.

Na verdade, Feuerbach pretende devolver ao ser humano aquilo que lhe pertence por

natureza e que deste mundo real nunca deveria ter sido teoricamente separada, pois na prática

a religião simplesmente traduz os anseios mais latentes do humano. “Se a essência do homem

é a essência suprema do homem, também, na prática, a lei suprema e primeira tem de ser o

amor do homem pelo homem. Homo homini Deus est – eis o supremo princípio prático.”

(FEUERBACH, 1994, p. 328).

Eis aqui uma questão um tanto complexa, pois quando Feuerbach afirma ser a essência

do homem sua própria essência suprema, acaba por apontar um outro problema ainda maior

que é o desafio de investigar as causas da projeção para o transcendente, sobrenatural. Parece

não ser suficiente apenas recolocar o ser humano no seu lugar, mas considerar a questão do

ser humano como contraditório consigo mesmo e que, por esse motivo, requer uma solução

prática.

Em outras palavras: se o ser humano é o próprio autor da projeção para o sobrenatural,

não deveria então ser eliminado? É possível resolver o problema da alienação, da busca pelo

divino, pelo transcendente, pelo sobrenatural sem extinguir o ser humano?15

Buscar os meios adequados e necessários que favoreçam o encontro do homem

consigo mesmo torna-se o único caminho para a compreensão daquilo que há muito nos

intriga: a busca de soluções e respostas fora de si. Se a questão do transcendente, do

sobrenatural nasce do desencontro do homem consigo mesmo, então devemos procurar

conhecer melhor o humano, o natural, o terreno.

Anular a humanidade, o terreno, o natural é o mesmo que admitir o discurso religioso

que desconsidera a importância e a autonomia do mundo. É alienar ainda mais o que tende à

alienação. É sustentar a ideia de que nada somos, nada podemos, nada faremos de positivo por

nós mesmos ou que sempre incorreremos no erro de simplesmente buscar acertar.

Percebe-se que Feuerbach sugere sim um aniquilamento, mas não do ser humano.

Quando fala de aniquilamento, refere-se à destruição de uma ilusão com a qual todas as

demais desapareceriam.

Uma ilusão com a qual caem, mesmo que não no primeiro instante, todas as ilusões, todos os preconceitos, todas as limitações – antinaturais – do homem; a ilusão

15 Aqui nos deparamos com uma das críticas feitas por Marx ao pensamento de Feuerbach em Teses sobre Feuerbach, especificamente a de número quatro.

37

fundamental, o preconceito fundamental, a limitação fundamental do homem é, com efeito, Deus como sujeito (SERRÃO, 2005, p. 172).

Não se trata, portanto, de furtar-se da exigência de trabalhar o ser humano ou de

considerar o que dele brota como algo totalmente desprezível e que, por conseguinte, exigiria

seu aniquilamento como se não houvesse alternativa.

Feuerbach revela sua preocupação em resgatar a consciência do homem, seu

verdadeiro conteúdo sem subordinar o que é característico do humano a um ser superior

simplesmente ilusório.

Esta ilusão é a razão pela qual a religião é a falsa consciência do homem, e Deus a objetivação da verdadeira consciência, seu verdadeiro conteúdo, mas negado no homem. Quanto mais o homem vai recuperando sua consciência, quanto mais o homem vai-se reapropriando da essência divina, afirmando a identidade, tanto mais se verá a religião obrigada a afirmar a diferença (SOUZA, 1993, p. 68).

O pensamento feuerbachiano vai desvelando o que fora consagrado como divino,

transcendente, sobrenatural ao mostrar que o homem quando busca a Deus traduz a fé em si

mesmo, “mostra, portanto, que o divino não é divino, que Deus não é Deus, mas é apenas o

ser humano que se ama a si mesmo, se afirma e reconhece a si mesmo, e o faz em grau

superlativo; com efeito, o homem só reconhece um Deus que reconhece o homem.”

(SERRÃO, 2005, p. 172).

Na visão de Cabada Castro, estamos lidando com uma significativa contribuição de

Feuerbach para o pensamento moderno, pois com sua firmeza e radicalidade analítica se

destaca ao assumir sem reservas e de maneira explícita a antropologização da religião.

Dada a radicalidade da antropologização da religião levada a cabo por Feuerbach, não é nada estranho que tenha sido considerado como o verdadeiro iniciador do pensamento ateu da modernidade. De toda maneira, seu ateísmo tem umas características peculiares, às que o próprio Feuerbach não desejou aludir. Trata-se do sentido antropológico de seu ateísmo e da concepção, por assim dizê-lo, “grandiosa”, que do homem tem Feuerbach (CASTRO, 2002, p. 17, tradução nossa).16

É curioso observar que aqueles que se entregam à experiência religiosa muito se

esforçam para não aceitar a realidade da projeção no transcendente, sobrenatural, divino. No

entanto, paradoxalmente, pouco esforço fazem para aceitar o que é projetado como realidade.

16 “Dada la radicalidad de la antropologización de la religión llevada a cabo por Feuerbach, no es nada extraño que haja sido considerado como el verdadero iniciador del pensamiento ateo de la modernidad. De todos modos, su ateísmo tiene unas características peculiares, a lãs que el próprio Feuerbach no há dejado de aludir. Se trata del sentido antropológico de su ateísmo y de la concepción, por decirlo así, “grandiosa”, que del hombre tiene Feuerbach.” (CASTRO, 2002, p. 17).

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É possível, então, pensar num processo consciente (ou inconsciente?) de divinização

do humano e de desumanização do presumível divino. O homem negando a si mesmo ao

buscar fora de si o que sempre esteve consigo. “Aquilo que o não-religioso apenas conserva

na cabeça, o religioso coloca como objeto fora dele e ao mesmo tempo acima dele, aceitando

por isso a relação de subordinação, de sujeição.” (FEUERBACH, 1994, p. 69).

Para que o homem trilhe o caminho do encontro consigo mesmo, é necessário o

mínimo de consciência de sua autonomia e de sua importância na sociedade como um todo,

pois, caso contrário, estaria aqui como resultado de uma determinação externa, sobrenatural

que, paradoxalmente serve-se do que é diferente de si para sua própria satisfação. Ora, como

pode o ser humano entregar-se a esta crença senão deixando de acreditar em si mesmo para –

de maneira contraditória – divinizar a leitura que faz da constatação de suas limitações e

carências projetando-se numa irrealidade que para ele se torna real?

Feuerbach vai mostrar que é justamente a partir da constatação das limitações e dos

desejos do ânimo que se chega à resposta, à essência da fé.

A essência da fé, que se pode confirmar através de todos os seus objetos até ao mais especial, é a seguinte: o que o homem deseja, existe – ele deseja ser imortal, logo, é imortal; deseja que exista um ser que é capaz de tudo o que é impossível à Natureza e à razão, logo, um tal ser existe; deseja que exista um mundo que corresponda aos desejos do ânimo, um mundo da subjetividade ilimitada, isto é, do sentimento não perturbado e da felicidade não interrompida; mas apesar de tudo, porque existe um mundo que é a antítese deste mundo subjetivo, então esse mundo tem de desaparecer – e desaparecer tão necessariamente quanto permanece necessariamente um Deus, a essência absoluta da subjetividade (FEUERBACH, 1994, p. 153).

Não se pode negar que a religião empobrece o homem usurpando a sua própria

humanidade, servindo-se de sua grandeza e infinitude ao projetá-las num ser distinto de si.

Está iniciado o processo de autoalienação, pois o homem se coloca como negador de si

mesmo para estranhar-se e familiarizar-se com o que de fato é estranho a si. Trata-se de um

procedimento artificial uma vez que requer a negação da própria essência humana e a

aceitação caótica daquilo que invalida a sensibilidade17, pois onde começa o sentido acaba a

religião. O homem vira as costas para si para buscar o si mesmo num ser conjeturado.

A religião, portanto, leva à reduplicação e à multiplicação, consistindo num processo de alienação e depauperamento do ser humano. Apresenta-se claramente como autoestranhamento e autoalienação, não de Deus, mas de cada homem individual. Na medida em que o homem se torna religioso, aliena-se também de sua

17 Na apresentação da obra Ludwig Feuerbach Filosofia da sensibilidade. Escritos (1839-1846), Adriana Veríssimo Serrão afirma ser a sensibilidade responsável por abrir “os olhos do pensamento, que lhe pede uma conversão ao mundo, uma atenção aos seus acontecimentos.” (FEURBACH, 2005, p. 16).

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humanidade, adornando Deus com tesouros de sua própria interioridade. E pelo fato de Deus e o homem não serem vistos numa unidade, a religião gera um homem cindido, empobrecido interiormente (SOUZA, 1993, p.70).

É, no mínimo, curioso constatar que o homem não precisa sair de si para voltar a si,

para encontrar-se consigo mesmo, pois, na verdade, nunca saíra de si quando pensou estar em

contato com algo supostamente diferente e além dele mesmo. “Feuerbach não se cansa de

insistir uma e outra vez, de uma ou de outra forma, nesta identidade básica entre o divino e o

humano, que reduz o primeiro ao segundo” (CASTRO, 2002, p. 6, tradução nossa).18

A religião, no seu acordo com a essência do homem, confirma sobremaneira que

somente o homem é capaz de se colocar como Deus ainda que negando tal façanha, pois ao

projetar-se para o transcendente não o faz com plena consciência da escolha que faz de negar-

se a si mesmo para, automaticamente, colocar sua projeção num patamar que não existe fora

de si. “O homem começa por lançar a sua essência para fora de si, antes de a encontrar em si.

A sua própria essência começa por ser para ele objeto como uma essência diferente”

(FEUERBACH, 1994, p. 23).

Portanto, há sentido quando se afirma que Deus escuta, compreende, se compadece e

atende a humanidade e não poderia ser diferente, pois este Deus que escuta, compreende, se

compadece e atende é o próprio homem que se volta para sua natureza, sentindo-se limitado e

desafiado pelo mundo. É a manifestação do amor do homem para consigo mesmo, mas que

ele considera amor de Deus. O homem é o coração do homem, por isso é o coração de Deus.

Se o amor se constitue, pois, no núcleo e centro do pensamento a-teológico, mas de raiz teológica, de Feuerbach, resulta obvio que não se pode falar de amor a Deus, senão unicamente de amor ao homem. O Deus cristão mesmo não é, por outra parte, senão o Deus que ama os homens e que – na formulação de Feuerbach – “o homem é o coração de Deus”. Esta é, pois, a exigência ética feuerbachiana fundamental, que se deriva da absolutez e divindade do amor: uma ética do amor, que se constitue em verdadeira religião. Feuerbach considera esta a ideia básica de sua obra A essência do cristianismo (CASTRO, 2002, p. 11, tradução nossa).19

A profundidade e clareza da análise feuerbachiana vão realizando a maiêutica

necessária no processo de [re]humanização do homem e, ao mesmo tempo, vão nos

18 “Feuerbach no se cansa de insistir una y outra vez, de una o de outra forma, en esta identidad básica entre lo divino y lo humano, que reduce lo primero a lo segundo.” (CASTRO, 2002, p. 6). 19 “Si el amor se constituye, pues, em núcleo y centro del pensamiento a-teológico, pero de raiz teológica, de Feuerbach, resulta obvio que no se puede hablar ya de amor a Dios, sino únicamente de amor al hombre. El Dios cristiano mismo no es, por outra aprte, sino el Dios que ama a los hombres, ya que – emn formulación de Feuerbach – “el hombre es el corazón de Dios”. Esta es, pues, la exigência ética feuerbachiana fundamental, que se deriva de la absolutez y divinidad del amor: uma ética del amor, que se constituye em verdadera religión. Feuerbach considera ésta de hecho la idea básica de su obra La essência del cristianismo.” (CASTRO, 2002, p. 11).

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mostrando o quanto o homem ainda teme se conhecer, sobretudo quando começa a perceber

que as respostas buscadas ou depositadas no além se encontram nas tantas outras perguntas

que ele condena e sufoca no aquém.

O encontro essencial do homem consigo mesmo não se dará fora da experiência

existencial que só é possível a partir da aceitação de seu ser que é influenciado pela natureza

e, ao mesmo tempo, capaz de tomar consciência de sua infinitude. A religião no seu acordo

com a essência do homem assim o confirma, pois:

Em geral, enquanto idêntica à essência do homem é idêntica à consciência de si do homem, à consciência que o homem tem de sua essência. Mas a religião é, numa expressão geral, consciência do infinito; portanto, não é e não pode ser outra coisa senão a consciência que o homem tem de sua essência, a saber, de uma essência não finita, limitada, mas infinita. Uma essência realmente finita não tem sequer a mínima ideia, quanto mais a consciência, de uma essência infinita, pois as limitações da essência são também as limitações da consciência.(...) Consciência limitada não é consciência: a consciência é, por essência, de natureza infinita. A consciência do infinito não é senão a consciência da infinitude da consciência. Ou melhor: só na consciência do infinito é que o ser consciente tem como objeto a infinitude da própria essência (FEUERBACH, 1994, p. 10-11).

Percebe-se que o suposto além se encontra muito próximo do ser humano. Aliás,

dentro dele mesmo. O fascínio, o anseio, o apego, a busca pelo além traduzem a infinitude da

consciência humana. E não poderia ser diferente, pois de outra maneira não proporcionaria a

consciência do infinito. “Por consequência, se pensas o infinito, pensas e confirmas a

infinitude da faculdade de pensar; se sentes o infinito, sentes e confirmas a infinitude da

faculdade de sentir.” (FEUERBACH, 1994, p. 18).

Conclui-se, portanto, que levar o homem a se perceber como o grande e único criador

do transcendente trata-se de tarefa honesta, pois outra missão não existe para o ser humano

senão essa, uma vez que explicita e reconhece a necessidade de fazer jus à racionalidade.

Se existe um Deus criador do ser humano, que o presenteia com a razão e lhe permite

o uso correto para chegar até Ele, então na verdade cai em contradição consigo mesmo, pois

fazendo jus à sua essência não pode servir-se de outra natureza para se manifestar.

Em Preleções sobre a essência da religião, Feuerbach explana sobre essa contradição

a partir da afirmação corriqueira de que o mundo é inexplicável sem Deus e afirma que o

oposto dessa afirmação é justamente o verdadeiro, ou seja, se – de fato – Deus existe, a

existência do mundo torna-se desnecessária, supérflua, sem explicação.

Ao invés, então, de o mundo ter seu fundamento num Deus, como diziam os antigos deístas, é antes o fundamento do mundo anulado se existir um Deus. De um Deus nada se segue, tudo além dele é supérfluo, vão, nulo; como posso então pretender

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derivar dele o mundo ou explicá-lo por ele? Mas o mesmo se dá com o raciocínio oposto. Se existe um mundo, e esse mundo é uma verdade, e essa verdade garante sua existência, então é um Deus apenas um sonho, apenas um ser imaginado pelo homem, existente em sua imaginação (FEUERBACH, 1989, p.123).

Assim, da mesma maneira, “o ser criado” só pode traduzir aquilo que faz parte de sua

essência. Ou somos o próprio Deus que se percebe ou nos percebemos como criadores de

Deus que sendo assim outra coisa não é senão a manifestação de nossa essência.

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3 DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO ARGUMENTATIVO QUE SUS TENTA

SER A TEOLOGIA UMA ANTROPOLOGIA

Uma das preocupações de Ludwig Feuerbach foi a de evidenciar a força propulsora da

adesão do ser humano à crença em Deus. Para tanto precisava servir-se de um método que

fosse capaz de reconduzir a transcendência à interioridade humana e que analisasse as

representações religiosas visando encontrar as faculdades subjetivas que as desencadeiam.

Feuerbach se serve do método genético-crítico procurando esclarecer o que e o como

da religião e o motivo pelo qual a subjetividade se desliga dos vínculos à realidade para

estabelecer-se no seu mundo interior.

Como será explanado neste capítulo, o argumento feuerbachiano se sustenta a partir do

que se observa no cotidiano da vida do ser humano, ou seja, que há um sentimento de

profunda dependência tomado como única explicação e considerado como único conceito

para designar e explicar o que Feuerbach coloca como fundamento psicológico e subjetivo da

religião.

No primeiro item Feuerbach desenvolve a interpretação do fenômeno religioso a partir

da relação do homem com o que se encontra ao seu redor e argumenta que, desde os

primórdios, o ser humano lidou com elementos externos a ele como seres ou coisas que se

tornaram objetos da religião enquanto foram causa do medo da morte e da alegria de viver, ou

seja, tornaram-se objeto do sentimento de dependência.

O argumento feuerbachiano se desenvolve a partir de exemplos que foram analisados e

considerados como tradução de sentimentos de dependência que justificam a origem da

religião e que também evidenciam que a religião é a característica de um ser que se relaciona

necessariamente com outro ser, ou seja, nenhum Deus, nenhum ser autossuficiente,

independente ou infinito.

Fica, portanto, ressaltada a importância e a necessidade do aprofundamento de dois

pontos ou duplo movimento, conforme análise de Adriana Veríssimo Serrão, presentes no

pensamento feuerbachiano. O primeiro, que vai da transcendência à subjetividade, considera a

atitude religiosa nascida na profundidade da intimidade, revelando o dinamismo dos seus

próprios sentimentos e desejos. E o segundo ponto, ou movimento, trata da relação do homem

com a existência, marcada pelo conflito entre o sofrimento experimentado no decorrer da vida

e o desejo de felicidade que, segundo Feuerbach, se encontra na raiz de todas as religiões.

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Especificamente no segundo item a religião será estudada como manifestação de uma

antropologia invertida que espelha indiretamente em Deus a tensão entre aquilo que o homem

é e aquilo que ele deseja ser. Buscar-se-á compreender com Feuerbach a interpretação do

divino como espelho ou semelhança, o que permite a comparação entre essência divina e

essência humana e, consequentemente, a passagem do conhecimento de Deus para o

conhecimento do homem, demonstrando, portanto, que Deus é o espelho do homem e o

homem é o espelho de Deus.

O último item do capítulo será trabalhado com a conclusão feuerbachiana que

questiona a contradição existente na negação do homem, afirmando ser tal negação

inadmissível e, por isso, sugerindo a negação de Deus como alternativa para o resgate,

afirmação e valorização do homem, ou seja, colocando a negação de Deus como negação da

negação do homem.

Assim, o ateísmo aparece como caminho para a afirmação da verdadeira essência do

homem e restituição de sua divindade, pois não pode ser mais considerado apenas como

negação, mas como negação da negação que nega o homem.

Tomando a religião como a confissão dos desejos, projetos e aspirações humanas,

Feuerbach vai desenvolvendo sua argumentação mostrando que a divindade do homem é a

finalidade última de toda religião, desembocando, portanto, na antropologia. Assim, procura

desmascarar e desmistificar a Deus e os deuses, auxiliando o homem a reencontrar-se em si

mesmo através da superação de qualquer tipo de dependência, medo, ignorância.

3.1 Desenvolvimento da interpretação do fenômeno religioso

No intuito de melhor compreender o fenômeno religioso, este item terá como linha

condutora a intenção de realçar uma antropologia latente, timidamente considerada ou

ofuscada pela ideias religiosas que conseguem desviar a atenção daqueles que se dão à

experiência religiosa para a ordem do além. Para tal empreitada não se pode dispensar a busca

de conhecimento da natureza sensível das faculdades humanas tão menosprezadas ou

relegadas a segundo plano pela religião.

A fundamentação do aspecto antropológico desenvolvida por Feuerbach devolveu ao

mundo sensível o que até então estava sob o domínio da religião, ou seja, o fundamento

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humano do divino, contribuindo assim para transformar a questão de Deus em questão

humana.

À medida que a análise da religião vai sendo desenvolvida, automaticamente se

processa uma transcrição das ideias teológicas em verdades antropológicas. Assim, o discurso

sobre o divino, sobre o além, sobre o eterno se transforma na linguagem da natureza, do real,

do humano, do aquém, do tempo, da terra.

A partir do que se observa como resultado da crença no divino, das mais variadas

experiências religiosas e da alienação do homem que se processou pela influência do discurso

teológico, a análise feuerbachiana da religião afirma que Deus é um momento da consciência

humana, o resultado de uma projeção subjetiva que traz como consequência negativa a

perversão do sujeito cognitivo, quando “o homem cria uma imagem de Deus, isto é,

transforma a essência abstrata da razão, a essência da faculdade de pensar num ser da

fantasia.” (FEUERBACH, 1994, p. 86).

O desenvolvimento da análise e crítica feuerbachiana da religião se processa à medida

que intenta demonstrar que o segredo da teologia é a antropologia, ao tomar Deus como uma

abstração fantasmagórica que se encontra fora da realidade sensorial20 humana, considerando

a imanência humana e a consciência, intencional e projetiva, como a origem da religião.

Percebe-se que o pensamento de Feuerbach sugere uma revisão ou uma reproposta do sentido

do argumento ontológico.

A ideia de Deus no homem é somente isso, ideia sem conteúdo real algum. Não se trata de que a essência representada por Deus seja uma construção humana, isso já era afirmado pela tradição anterior desde a teologia negativa, mas que, ao contrário, o que não tem realidade é a existência de Deus, enquanto o conceito da essência de Deus é válido: expressa os atributos da essência humana, as qualidades e determinações da espécie. Feuerbach mantém a infinitude potencial do sujeito humano a partir do narcisismo idealizado da espécie. As qualidades que o indivíduo tem de forma finita e limitada acontecem em Deus de maneira infinita, e estes predicados têm como sujeito a humanidade (DIAZ, 2003, p. 154).

Desde o início da obra A essência do cristianismo, Feuerbach busca colher a essência

do fenômeno religioso, procurando a sua natureza comum, ou seja, aquilo que lhe é específico

e que se encontra por detrás de suas diferentes manifestações no percurso da história. “A

busca de uma essência do fenômeno religioso mostra, como diversamente da perspectiva

racionalizante, se trata de uma descida do filósofo ao fundo do homem religioso para

20 Em Preleções sobre a essência da religião, Feuerbach afirma que: “a religião, assim como a poesia, concebe como real, sensorial aquilo que só existe na imaginação, transforma desejos, pensamentos, estados de espírito em seres reais diversos do homem.” (FEUERBACH, 1989, p. 210).

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descobrir e interpretar a fonte dessa força que se encontra nele e dele emana.” (SERRÃO,

1999, p. 63).

No decorrer da obra, Feuerbach vai confirmando que o traço característico da religião

reside na criação, operada pelo homem, de uma ordem sobrenatural, diferente da realidade

que é oferecida pelos sentidos e confirmada pela ciência. Esse homem religioso desmerece a

realidade e elege como superior, em dignidade e valor, aquele fantástico mundo sobrenatural

e, paradoxalmente, se coloca como inferior diante de tal mundo, passando a acreditar na

nulidade de suas potencialidades.

O homem religioso volta a desmentir a nulidade da atividade humana quando converte as suas intenções e ações num objeto de Deus, quando faz do homem o fim de Deus – pois o que no espírito é objeto, é fim no agir – e da atividade divina um meio da salvação humana. Deus atua sobre o homem, é ativo para que o homem se torne bom e feliz. Assim, o homem é, aparentemente, profundamente rebaixado, mas, na verdade, sumamente elevado. O homem visa-se a si mesmo em Deus e através de Deus (FEUERBACH, 1994, p. 36-37).

Desenvolvendo sua argumentação contra as ideias religiosas, Feuerbach procura

mostrar que ao procurar a Deus o homem procura a si mesmo, pois visando Deus está visando

sua salvação. Se Deus visa somente a salvação moral e eterna do homem logo confirma que o

homem só se visa a si mesmo. Essa constatação desencadeia uma busca pela atitude

psicológica específica que se encontra na origem da experiência religiosa.

Uma análise dessa experiência é de vital importância para trazer à luz uma

“antropologia plena, reveladora de segredos que não vêm de outro mundo, que não são

mistérios estrangeiros (ausländische), mas “indígenas” (einheimische) e se encontram selados

em faculdades e traços da natureza humana.” (SERRÃO, 1999, p. 73).

No intuito de esclarecer o que e o como da religião para melhor estudá-la e

compreendê-la, Feuerbach serve-se do método genético, procurando reconduzir a

transcendência à interioridade.

É interessante observar que Feuerbach desenvolve seu pensamento aliando descrição e

análise genética, juntamente com a compreensão do processo que alimenta a formação da

ideia de transcendência e como se dá a recondução desse processo à sua origem, denominando

esta perspectiva metodológica de “genético-crítica”.

O método genético reconduziu a transcendência à interioridade desiderativa. Seguindo o princípio da correspondência entre cada uma das diversas faculdades e a natureza própria de seus objetos, partiu da análise das representações religiosas até encontrar as faculdades subjetivas que as originam. Esta sua vertente subjetiva permite entender como, para além da adesão a um qualquer culto, conteúdo dogmático ou manifestação histórico-cultural, a religião seja, antes do mais,

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religiosidade e tenha por base uma atitude (Verhalten) psicológica específica (SERRÃO, 1999, p. 68).

Procurando melhor conhecer e compreender essa atitude psicológica específica,

tomada como motivação primeira da experiência religiosa, a análise feuerbachiana da religião

vai à procura do que pode ser considerado “a gênese da gênese da religião” (SERRÃO, 1999,

p. 69). Segundo Feuerbach, tal origem se encontra no sofrimento, traduzido e acentuado pelos

termos infelicidade e carência, indigência e miséria.

Feuerbach, através da análise genética, evidencia a força do emocional, do irracional

na origem e sustentação da crença religiosa. É o emocional que leva o homem a colocar como

fim da religião a sua felicidade, a sua salvação, uma vez que deixa de acreditar na força e na

capacidade da razão.

Não se pode negar que o relacionamento do ser humano com a vida traduz profunda

infelicidade, tornando-o cada vez mais subjetivo. Essa atitude revela o quanto tem se fechado

em si para fugir de todos e de tudo, negando sua própria natureza enquanto ser de relação com

o real para investir numa contínua produção do divino, irreal. Assim, num processo de

autocompensação imaginária e de ininterrupta produção do divino, o homem contribui cada

vez mais para o seu empobrecimento e alienação e para o engrandecimento de Deus, do qual

se torna dependente.

Está evidenciado no pensamento feuerbachiano que o sentimento de dependência21 é o

fator subjetivo para esclarecer a religião, sendo o fator objetivo a natureza. Feuerbach afirma

que tal sentimento é duradouro, já experimentado pelos primeiros povos e considerado como

explicação para a origem das religiões.

A projeção sobre as forças e elementos naturais de capacidades e propriedades pessoais é a faceta correlativa da situação de dependência vivida pelos povos primitivos; sem a consciência da distinção do homem relativamente às forças e elementos naturais, e também sem o sentimento da dependência perante eles, nenhum culto do mundo natural teria surgido (SERRÃO, 1999, p. 264).

Para Feuerbach, “um ser ou uma coisa só é objeto da religião enquanto for um objeto,

uma causa do medo da morte e da alegria de viver, portanto um objeto do sentimento de

dependência.” (FEUERBACH, 1989, p. 35). Assim, onde e quando tudo se processa na mais

perfeita ordem e harmonia a atenção do homem não é exercitada, nem cativada.

21 Feuerbach aceita com Schleiermacher que a origem da transcendência está fundada no sentimento de dependência e contrapõe-se a este sentimento teológico, tomado como fundamento do sentimento religioso, a dependência individual e concreta.

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Mas, a partir dos acontecimentos que abalam a harmonia, a paz, o maravilhoso, a

felicidade do ser humano, aí sua atenção é ativada e daí se fortalece aquele sentimento de

dependência não só do que fora ameaçado, mas de uma força, de uma divindade, de um ser

sobrenatural, que possa novamente tudo organizar e dar sentido. Deus, portanto, é tomado

como aquilo de que depende a existência do homem.

O sentimento de dependência é o único nome e conceito universalmente certo para designação e explicação do fundamento psicológico e subjetivo da religião. Na realidade, entretanto, não existe nenhum sentimento de dependência como tal, mas sempre sentimentos determinados e especiais, como por exemplo, (para tomar exemplos à religião natural) o sentimento da fome, do mal-estar, o medo da morte, a tristeza em tempo escuro, a alegria no bom tempo, a dor em consequência do esforço inútil e de esperanças fracassadas diante de acontecimentos naturais desastrosos, casos em que o homem se sente dependente (FEUERBACH, 1989, p. 35).

A partir do que Feuerbach analisa como sentimento de dependência se observa um

esquema interpretativo que trabalha a questão do intercâmbio entre receptividade e atividade,

movimentos contínuos em todos os níveis da vida do ser humano.

A análise de Feuerbach, quando coloca a origem da religião baseada nesse sentimento

de dependência, sustenta ser a religião apenas a característica ou a qualidade de um ser que se

relaciona necessariamente com um outro ser real, deste mundo, finito. “Sim!, o homem não é

somente um ser espacial em geral, mas também um ser essencialmente terreno, inseparável da

terra.” (FEUERBACH, 1989, p. 22).

Considerando a religião como o lugar da expressão do emocional, passamos a

entender melhor a preocupação de Feuerbach em criticar o cristianismo moderno e sugerir sua

redução à antropologia, voltando sua atenção ao cristianismo clássico ou primitivo, o que

pode parecer contraditório num primeiro momento.

Sobre esta questão – a atenção de Feuerbach ao cristianismo clássico ou primitivo –

nos ajudará a compreender com maior clareza o comentário de Draiton Gonzaga de Souza, na

obra O ateísmo antropológico de Ludwig Feuerbach.

Feuerbach quer fazer uma filosofia da religião distinta das demais, pelo fato de tomar o cristianismo naquilo que originariamente é religião; e não como um conjunto de proposições dogmáticas ou história bíblica ou especulação filosófico-teológica. Propõe-lhe uma volta ao estado religioso, já que, então, ainda não estava misturado com especulação. A consideração do cristianismo como religião mostra que seu sujeito é o homem, que a religião é resposta a necessidades humanas, uma vez que é o lugar da expressão dos sentimentos e do coração humano. Neste sentido, A essência do cristianismo será uma investigação sobre a religião em geral, ainda que tratando principalmente do cristianismo, pois é neste que mais claramente se mostra a essência da religião. Por religião se entenderá o comportamento humano que é a resposta a determinadas necessidades; portanto, para compreender a religião, é necessário seguir o seu processo genético até chegar ao sujeito humano: o

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sentimento, o coração, a vontade. Não se trata de restaurar o verdadeiro cristianismo, o dos tempos clássicos, mas de explicá-lo por sua determinação antropológica (SOUZA, 1993, p. 36).

Feuerbach se mantém convicto da necessidade de trazer o homem de volta para si,

para este único mundo, não permitindo que a crença religiosa o aliene de sua essência e o

impeça de progredir na busca da compreensão de sua própria natureza. A alienação religiosa

traduz-se pela conversão que realiza do que é natural em sobrenatural, do que é conhecido em

desconhecido. Assim afirma Feuerbach em A essência do cristianismo:

A característica da religião é a intuição imediata, involuntária e inconsciente da essência humana como uma essência diferente. Esta essência, intuída objetivamente, mas transformada em objeto da reflexão, da teologia, torna-se numa mina inesgotável de mentiras, ilusões, fantasmagorias, contradições e sofismas (FEUERBACH, 1994 p. 264).

Diante das limitações que desafiam o ser humano e das tantas necessidades que

nascem de seu relacionamento com o mundo, o caminho da crença no além não é o mais

viável, pois o aprisiona no mundo da fantasia22 sustentando a ilusão de que a felicidade só

será alcançada fora deste mundo. “A religião, que nasce de uma insatisfação, de um conflito,

abandona a terra natal, vai para longe, mas apenas para sentir mais vivamente nesse

afastamento a felicidade da terra natal.” (FEUERBACH, 1994, p. 218).

Desenvolver essa percepção conduzirá o homem ao reencontro consigo mesmo, com

sua essência e, dessa forma, o libertará da inverdade religiosa. A partir do raciocínio

feuerbachiano, a religião passa a ser percebida de outra maneira, ou seja, como “Atitude do

homem para com sua própria essência – nisto reside a sua verdade – mas com a sua essência,

não como a sua, mas como uma outra, especial, distinta e mesmo oposta a ele – nisto reside a

inverdade, as limitações, a má essência da religião.” (FEUERBACH, 1994, p. 225).

A libertação do homem, portanto, requer transformar a questão religiosa “numa

questão do homem, traduzir a teologia para a antropologia, buscar a felicidade do céu na

terra.” (ZILLES, 1991, p. 108).

Em A essência do cristianismo Feuerbach insiste em mostrar a necessidade de

superação da oposição sustentada pelos que elegeram o divino como totalmente diferente e

oposto ao humano e que a busca da compreensão do humano torna-se a chave para o

desvelamento do sobrenatural e para a dissolução de todas as doutrinas e dogmas de fé que

sustentam fantasias.

22 Na perspectiva feuerbachiana, “a fantasia é ela própria conduzida por uma outra instância mais funda e apenas obedece a esse poder diferente e mais forte, o poder do desejo e do coração.” (SERRÃO, 1999, p. 65).

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Para uma compreensão mais clara da tese feuerbachiana que afirma ser a teologia uma

antropologia, é importante recorrer à analise que desenvolve acerca dos atributos

fundamentais – religiosos ou dogmáticos – do Deus cristão, pois através dela fica evidenciado

uma pluralidade de dimensões da essência humana.

A partir de uma sucinta recapitulação de A essência do cristianismo, desenvolvida por

Serrão, fica evidenciada uma gama de dimensões da essência humana que Feuerbach analisa

e, a partir dessa análise, o que cada uma delas significa e traduz enquanto parte integrante

desse complexo maior que é o ser humano.

A encarnação desvenda o segredo da pessoalidade e do amor; a paixão, a presença do corpo e da sensibilidade; a trindade encerra o poder da relação interpessoal e a fecundidade do princípio feminino; o verbo divino afirma a força da linguagem e da palavra, assim como a oração simboliza o diálogo. O princípio cosmogônico significa a alteridade e a diferença; a criação, o valor da matéria; a providência, o valor absoluto do homem; a ressurreição revela o desejo de não morrer e o amor à vida; o céu, a qualidade e a determinidade desta vida (SERRÃO, 1999, p. 73-74).

Como já mencionado acima, a preocupação de Feuerbach não se restringe à discussão

sobre a legitimidade ou a razão de ser da religião. O que realmente lhe interessa – na visão de

Adriana Veríssimo Serrão – é captar a significação da religião, “explicando e descrevendo o

processo e as motivações do seu surgimento” (FEUERBACH, 1994, p. XV).

Sendo o ser humano um ser de relação e em relação, logo participa de experiências de

encontro com a realidade. Podemos compreender melhor como se processa tais experiências

através da relação estabelecida entre as funções vitais consideradas mais básicas como

alimentação e respiração com os elementos físicos tais como água, alimentos, ar. Esta mesma

relação das funções vitais com os elementos físicos é extensível às sensações e ao

pensamento.

Ver é comer com os olhos, ouvir comer com os ouvidos; a linguagem e pensamento saciam, como os alimentos, a fome e a sede da alma. Transitando imperceptivelmente da vida física à espiritual, e associando-os, a ponto de não se distinguirem, o sentido literal e o sentido metafórico, através da estrutura alimentar Feuerbach generaliza a todos os níveis da existência a idêntica necessidade da alteridade, racionalizando a constitutiva dependência humana de outro (SERRÃO, 1999, p. 197-198).

É importante observar que, ao admitir a origem da transcendência fundada no

sentimento de dependência, Feuerbach acaba colocando a dependência individual e concreta

contra o sentimento teológico, entendido como fundamento do sentimento religioso, o qual

considera nebuloso, indeterminado e abstrato. Para Serrão,

50

O sentimento religioso abarca tanto a essência subjetiva, geradora de toda religiosidade, como a essência objetiva, as propriedades constitutivas do objeto. A religião é de natureza subjetiva, é afeto e emoção, e objetiva, na medida em que cada crente cria e configura pessoalmente as qualidades do seu Deus (SERRÃO, 1999, p. 70).

O pensamento feuerbachiano torna-se um convite à reflexão sobre como se processa a

articulação entre o mundo do homem e o mundo natural e como, a partir dessa articulação,

produz a religião. Essa reflexão contribui para uma melhor compreensão da essência humana

e a ela confere nova consolidação, configurando uma complementação à análise das estruturas

transcendentais.

Feuerbach tenta nova hermenêutica da religião. Pergunta: por que o homem produz a religião? Que é que ela significa? (...) Diz que os símbolos religiosos não são vazios, nem se referem a Deus, mas ao próprio homem. Religião é antropologia. Tudo o que o homem fala acerca de Deus, através da linguagem religiosa, nada mais é do que confissão de seus desejos, projetos e aspirações. Por isso precisamos amar não a Deus, mas ao homem: crer não em Deus, mas no homem (ZILLES, 1991, p. 112).

Nas palavras de Urbano Zilles, é possível perceber que o pensamento de Feuerbach

tornou-se uma grande contribuição para a desmitificação de Deus e dos deuses, auxiliando a

homem a reencontrar-se a si e em si mesmo. É através desse reencontro consigo que se dará a

superação da dependência, do temor e da ignorância.

Na obra A humanidade da razão: Ludwig Feuerbach e o projeto de uma antropologia

integral, Adriana Veríssimo Serrão chama a atenção para o que podemos apontar como um

caminho que possibilite o reencontro do homem consigo mesmo ao afirmar que:

Retirar esta origem emocional, e não intelectual, que faz da transcendência uma realização irreal de desejos reais, seria extrair ao sentimento religioso o seu cerne: aquela dimensão de excessividade que o leva a ultrapassar as fronteiras da realidade e do conhecimento (SERRÃO, 1999, p. 70).

Fazer com que o ser humano se conscientize da necessidade de conviver com a sua

essência é proporcionar o encontro do homem consigo mesmo, especialmente quando se

entrega à ilusória experiência com o divino. Dessa maneira, o caráter humano da religião

propicia a verificabilidade da experiência religiosa.

Uma vez analisando e interpretando a experiência religiosa e o que ela traz como

consequência para a vida do ser humano e da sociedade, Feuerbach considera a destruição da

religião “como um momento de transformação histórica, como o passo decisivo para a

emancipação da Humanidade.” (SIEGMUND, 1966, p. 238).

Nesse sentido não há como negar a repercussão do pensamento feuerbachiano e sua

influência sobre outros pensadores de sua e de nossa época.

51

A interpretação da religião exposta por Feuerbach, principalmente na obra A essência do cristianismo, se converte no ponto crucial de toda a crítica moderna da religião, tendo essa obra suscitado um enorme eco entre os intelectuais europeus. A história da repercussão pode seguramente ser rastreada, através do marxismo e do existencialismo (HAHN, 2003, p. 76).

A leitura antropológica que Feuerbach faz da religião reforça a descrença num Deus

absoluto e pessoal do universo, convidando o ser humano a colocar-se contra o Deus

onipotente, verdadeiro e onipresente que por si mesmo fala, castiga, interfere à sua maneira na

vida dos homens e na natureza. Sugere, portanto, que: “o lugar da antiga ilusão deve ser

ocupado, em sobriedade realística, pelo homem como verdadeiro valor supremo, atraindo para

si a significação do religioso.” (SIEGMUND, 1996, p. 241).

É possível constatar que o pensamento feuerbachiano repercute insistindo no projeto

que deve ser assumido por cada homem em prol de sua liberdade, autonomia e identidade. Tal

projeto requer ousadia para a luta constante que o ser humano deve empreender contra a

ilusão que se desencadeia a partir do momento que passa a transferir para o presumível

transcendente aquilo que se encontra na esfera do real.

Assim, a supressão de toda e qualquer ideia religiosa, que se apresenta neste mundo

real falando de um mundo irreal, se desponta como o caminho a ser trilhado pelo ser humano.

Analisar o fenômeno religioso a partir da ótica feuerbachiana desencadeia um

processo irreversível de combate a todo discurso que tente tirar o homem daqui da terra para

levá-lo para o céu da ilusão, da fantasia. É preciso assumir como tarefa o resgate daqueles que

para essa irrealidade foram levados. É preciso transformar tal céu em terra para que o homem

não volte a ficar sem “chão”, para que o homem volte a ter onde pisar. Para que o homem

volte a sentir a realidade e a partir dessa experiência possa redescobrir a humanidade.

3.2 Teoria da reversibilidade (Deus é o espelho do homem, o homem o espelho de Deus)

A ideia central deste item se alicerça na proposta filosófica de Feuerbach que sugere a

re-inversão da realidade religiosa que transforma o homem num ser inautêntico, separado de

sua essência e distanciado de seu potencial de verdade que se encontra contido nos seus

desejos e aspirações.

Uma melhor compreensão da proposta de Feuerbach será possível a partir da análise

de sua tese antropológica sobre a religião, desenvolvida na obra A Essência do Cristianismo,

52

quando inverte o trecho bíblico de Gênesis que afirma ter sido o homem criado à imagem de

Deus. Contrapõe Feuerbach: “primeiro, o homem criou Deus à sua imagem, e só depois este

Deus criou por sua vez o homem à sua imagem.” (FEUERBACH, 1994, p. 141).

Evidentemente não se trata apenas de inversão de um trecho bíblico, mas de um processo de

recondução do homem ao seu lugar de origem como tenta demonstrar este item.

A teoria da reversibilidade evidencia a intenção do pensamento feuerbachiano de

resgatar o humano sufocado pelas ideias religiosas e através da inversão desse trecho bíblico

questiona o que é considerado tradução do teísmo cristão ao colocar Deus como reflexo do ser

humano, o espelho do homem.

Deus é um momento da consciência humana, resultado de uma projeção subjetiva que, além disso, leva consigo a perversão do sujeito cognitivo. Não é o homem que é imagem e semelhança de Deus, afirmação fundamental do teísmo cristão, mas Deus é a imagem do homem que se projeta em uma entelequia. Trata-se da hispostatização de uma projeção, à qual concede-se existência real quando seu único conteúdo é o do pensamento (DIAZ, 2003, p. 154).

Feuerbach, mais uma vez, usa de uma metodologia que se contrapõe à teologia, pois,

através do procedimento denominado inversão, procura resgatar os predicados que traduzem a

essência humana e que foram depositados em Deus para devolvê-los ao homem.

Enquanto na projeção acontece um mecanismo vivencial e inconsciente no qual o sujeito adere totalmente aos seus conteúdos sem os conseguir distinguir de si e reconhecer como criações suas, a inversão (Umkehrung) é um procedimento metodológico conduzido pelo filósofo como explicitação e esclarecimento, o ato interpretativo que permite separar o sujeito dos predicados, conservar os predicados e restituí-los ao seu verdadeiro sujeito criador. Em cada ato de tradução do divino, enriquece-se o conhecimento humano, que assim se vê desdobrado em inúmeras qualidades (SERRÃO, 1999, p. 73).

Assim procedendo, Feuerbach muda de lugar o sujeito, colocando-o no lugar do

predicado e o predicado no lugar do sujeito, enfatizando que o homem se encontra num lugar

de destaque, ou seja, acima dele só se encontra ele mesmo e nada mais. O homem é, portanto,

colocado como fim e verdadeiro fundamento da criação.

Se o homem é o fim da criação, é também o seu verdadeiro fundamento, porque o fim é o princípio da atividade. A diferença entre o homem como fim da criação e o homem como seu fundamento é apenas a de que o fundamento é o homem oculto, interior, a essência do homem, mas o fim é o homem que se revela, o homem empírico individual, o homem que se sabe certamente como o fim da criação mas não como o seu fundamento, porque distingue de si o fundamento, a essência, como uma essência pessoal diferente (FEUERBACH, 1994, p.125-126).

53

Essa análise evidencia uma nova compreensão que Feuerbach provoca acerca da

religião e do homem. Não se trata de simples questionamento às ideias teológicas, mas de

uma visão acerca do homem e do mundo que sugere total independência e autonomia dessas

duas realidades em relação ao que é sustentado pela religião.

Ao apoiar-se sobre a fecundidade do realismo e do sensualismo, a Antropologia afirma desde logo o homem como um ser sensível, concretamente existente e dotado de intrínseca realidade. A unidade e indivisibilidade do mundo certificam a unidade e indivisibilidade do ser humano; a realidade da existência garante-o como um existente e não como uma ideia (SERRÃO, 1999, p. 132).

Fazer com que o homem se perceba como parte integrante do mundo é justamente

devolver a ele aquela verdade ofuscada pelas inverdades da religião, ou seja, é auxiliá-lo na

compreensão de que é um ser inserido no mundo e na natureza. Sendo toda a existência real e

por isso existência no mundo e sendo o mundo natural, o homem por ser, pertencer e

participar deste mundo não pode ser, pertencer ou participar de um mundo diferente deste.

Por isso Feuerbach propõe total rompimento com o Deus transcendente no intuito de

levar o homem a fazer uma nova experiência de abertura à totalidade do gênero humano ao

invés de continuar projetando seus atributos em Deus.

Feuerbach define a religião como a consciência própria do homem. Tanto a antropologia como a fisiologia (estudo da natureza) apresentam-se, assim, como herança e crítica da teologia em sua explicação do homem e do mundo. A filosofia é, portanto, na visão de Feuerbach, a dissolução da teologia na antropologia. De um lado essa dissolução tem como resultado uma antropologia materialista: o homem como “ser sensível”, define-se inteiramente por suas carências (Bedurfnisse) e, consequentemente, por sua relação com o mundo objetivo; essa relação permite caracterizar o homem como um “ser genérico” (Gattungswesen), ou seja, aberto aos outros homens ou à totalidade do gênero humano que, na verdade, é o sujeito real dos atributos que o homem individual projeta em Deus. O dissipar-se na ilusão do Deus transcendente é a descoberta da relação essencial Eu-Tu e, nela, do caráter radical e fundante da experiência do Outro, primeiro dogma da “religião do homem” que Feuerbach, a partir da Essência do cristianismo, propunha como meta para uma nova idade (VAZ, 1991, p. 126-127).

Após reduzir a teologia à antropologia, como visto anteriormente, Feuerbach questiona

a religião enquanto cúmplice de certa organização social que atrofia o humano, esconde o real

e se opõe a qualquer tipo de novidade. Além disso, impede que o homem melhor se conheça

uma vez que o mantém alienado através das ideias religiosas.

Minha intenção era mostrar que os poderes diante dos quais o homem se curva e os quais teme na religião, diante dos quais ele não se intimida nem mesmo de praticar sangrentos sacrifícios humanos a fim de aplacá-los são apenas criações de sua própria afetividade servil e medrosa, assim como de sua razão ignorante e inculta; mostrar que o ente diante do qual o homem se coloca na religião e na teologia, como

54

um ser distinto dele próprio, é sua própria essência, para que o homem, uma vez que é sempre dominado inconscientemente só por sua própria essência, faça no futuro, conscientemente, de sua própria essência, isto é, da essência humana, a lei e o fundamento, a meta e o critério de sua moral e de sua política. E assim será, assim deverá acontecer. Se até agora foi a religião desconhecida, a nebulosidade da religião o princípio supremo da política e da moral, irá de agora em diante, ou um dia ao menos, a religião conhecida no homem, determinar o destino dele (FEUERBACH, 1989, p. 28).

A proposta de Feuerbach certamente pode ser considerada como projeto de

emancipação humana, pois procura devolver ao homem tudo aquilo que até então depositara

em Deus, sobretudo suas potencialidades. Procura despertar no homem a consciência de que

Deus simplesmente expressa a essência do homem, é o homem espelhado, refletido e não

outra coisa.

Algumas perguntas, no entanto, emergem desta análise: podemos afirmar, a partir do

pensamento feuerbachiano, que Deus é determinado pelo sentido que o ser humano lhe

confere? Como posso saber se Deus em si é diferente de mim e se o que ele é para ele é

diferente do que é para mim? A tais perguntas Feuerbach responde da seguinte maneira:

Não posso de modo algum saber se Deus em si ou para si é algo de diferente do que é para mim; tal como é para mim, assim é tudo para mim. Porque é justamente nesses predicados nos quais ele é para mim que reside, para mim, o seu ser-em-si-mesmo, a sua própria essência; ele é para mim tal como poderá ser sempre para mim. O homem religioso está inteiramente satisfeito com o que Deus é em relação a ele – como homem, não conhece outra relação – pois Deus é para ele o que pode ser para o homem em geral. Com aquela distinção, o homem eleva-se acima de si mesmo, isto é, da sua essência, da sua medida absoluta; mas esta elevação não passa de uma ilusão. Pois só posso estabelecer a diferença entre o objeto como é em si e o objeto como é para mim, quando um objeto me puder aparecer de um modo realmente diferente daquele no qual me aparece, mas não quando ele me aparece tal como me aparece e como tem de me aparecer segundo a minha medida absoluta (FEUERBACH, 1994, p. 27).

O pensamento feuerbachiano analisa a razão de se atribuir a um deus abstrato e

ilusório aquilo que se encontra no humano. Pergunta sobre a atitude do homem que se entrega

à experiência religiosa de não querer olhar para si mesmo diretamente, mas através de sua

criação. Assim, Feuerbach propõe um resgate da realidade alienada, a saber, a realidade

humana, no intuito de trazer de volta à realidade o homem que se perdera na religião.

Feuerbach propõe-se destruir a ilusão religiosa, reduzi-la inteiramente a realidade humana. Reduzir é demolir, mas é também recuperar uma realidade alienada, a realidade humana. Para recuperar o homem, perdido na religião, é preciso começar por desmitificar a própria religião, mostrando que tudo quanto se afirma de Deus, é realmente dito do homem. Por isso a crítica da religião não é um fim em si mesmo. É apenas o desvio necessário para que o homem possa aceder ao conhecimento de si mesmo. Assim se explica o título primitivo – Conhece-te a ti mesmo – que Feuerbach pensou dar a esta obra A Essência do Cristianismo, de resto, mais

55

consentâneo com o programa que se propusera: chegar ao conhecimento do homem através da crítica religiosa (BARATA-MOURA; MARQUES, 1993, p. 38).

Sendo o ser humano aquele que deposita em Deus suas qualidades, seus predicados,

sua essência, é por isso considerado o criador de Deus. Daí o uso do termo espelho, ou seja,

Deus é a imagem do homem, seu reflexo. Assim, através da teoria da reversibilidade, ao invés

de recorrer às ideias religiosas que afirmam falar de Deus, o ser humano é convidado a

investigar e a conhecer o seu próprio interior, que se revela como o autêntico e único

conteúdo divino. Conteúdo que ainda não é reconhecido como tradução das qualidades

humanas.

A interpretação do divino como “espelho” (Spiegel), “espelhamento” (Spiegelung) ou semelhança – criação de Deus à imagem do homem – garante o paralelismo entre essência divina e essência humana e permite a correlativa passagem do conhecimento de Deus para o conhecimento do homem, segundo a conversão dos predicados divinos em predicados humanos. O processo hermenêutico de tradução ou inversão do sujeito divino em sujeito humano é apenas o correlato do processo real da projeção. Enquanto na projeção acontece um mecanismo vivencial e inconsciente no qual o sujeito adere totalmente aos seus conteúdos sem os conseguir distinguir de si e reconhecer como criações suas, a inversão (Umkehrung) é um procedimento metodológico conduzido pelo filósofo como explicitação e esclarecimento, o ato interpretativo que permite separar o sujeito dos predicados, conservar os predicados e restituí-los ao seu verdadeiro sujeito criador. Em cada ato de tradução do divino, enriquece-se o conhecimento do humano que assim se vê desdobrado em inúmeras qualidades (SERRÃO, 1999, p. 72-73).

O processo da inversão utilizado por Feuerbach vem justamente realçar a necessidade

de se diluir a teologia em antropologia uma vez que Deus é uma abstração fantasmagórica.

Tal procedimento vem trabalhar a origem da religião, ou seja, a imanência humana e a

consciência. Para que o resultado desse empreendimento seja positivo é preciso que o ser

humano passe a enxergar o que a religião não permite ver, ou seja, que sua proposta

desencadeia e sustenta uma visão invertida da realidade.

O pensamento feuerbachiano aponta a ilusão que sustenta a oposição entre indivíduo e

divindade como a oposição existente entre indivíduo humano e a essência humana

objetivada23. Percebe-se, portanto, que o Deus imaginado pelo homem não pode ser o Deus

verdadeiro em si mesmo, pois é fruto da imaginação e, sendo fruto da imaginação, traduz o

que o homem deseja que seja de acordo com suas necessidades, de acordo com seus desejos.

23 No livro Filosofia da religião, no capítulo intitulado: Feuerbach: sua crítica da religião e seu ateísmo, Urbano Zilles comenta: “O cristianismo é a velha religião que deve morrer para nascer a nova religião do humanismo [...]. Feuerbach destrona Deus e diviniza o homem. Segundo ele, os amigos de Deus devem tornar-se amigos do homem neste mundo. Deus é apenas a personificação da espécie humana: o homem vê sua essência fora de si, objetivando-a, ou seja, Deus é a manifestação do interior do homem [...]. Para Feuerbach, negar o sujeito Deus não é eliminar os predicados que dele se afirmam. Esses conservam sua dignidade sem o sujeito Deus, pois devem ser aplicados ao próprio homem.” (ZILLES, 1991, p. 108-109).

56

A crença do homem em Deus, entenda-se, em Deus enquanto não expressa a essência da natureza, é portanto, como já afirmei em A essência do cristianismo, apenas a crença do homem em sua própria essência. Um Deus é apenas um ser que realiza os desejos do homem, mas como posso crer num ser que realiza meus desejos, se eu não acreditar antes ou ao mesmo tempo na sacralidade, na essencialidade, na autenticidade e na validade incondicional de meus desejos? Mas como posso eu acreditar na necessidade da realização de meus desejos, que é o fundamento da necessidade de um realizador de vontades, de um Deus, sem acreditar em mim, na verdade e na sacralidade de minha essência? Aquilo que eu desejo é meu coração, minha essência. Como posso distinguir minha essência de meus desejos? Portanto é a crença em Deus dependente só da crença do homem na alteza sobrenatural de sua essência. Ou, na essência divina objetiva ele somente sua própria essência, na onisciência divina realiza ele apenas seu desejo de saber tudo ou objetiva apenas a capacidade do espírito humano de não ficar restrito a este ou aquele objeto em seu conhecimento, mas de compreender tudo; na onipresença divina realiza ele apenas o desejo de não ficar preso em algum lugar ou objetiva apenas a capacidade que tem o espírito humano de estar em toda parte; na eternidade divina realiza ele apenas o desejo de não ficar preso a nenhum tempo, de não acabar, ou objetiva apenas a infinitude e (pelo menos, se pensa coerentemente) o não-ter-início (Anfangslosigkeit) da essência humana, da alma humana, porque se a alma humana não pode morrer, acabar, não pode também surgir, começar, como muitos acreditam muito coerentemente; na onipotência divina realiza ele apenas o desejo de tudo poder, um desejo que está intimamente relacionado com o de tudo saber ou que é apenas uma consequência dele (FEUERBACH, 1989, p. 227-228).

Por isso Feuerbach procura transformar o objeto da fantasia no objeto da realidade.

Sua análise evidencia, a todo o momento, a dicotomia instaurada pela religião entre

essência humana e essência divina. É por isso que sugere a substituição do cristianismo pela

antropologia como proposta alternativa para esse processo dicotômico, no intuito de resgatar o

ser humano da alienação e reentroduzi-lo como sujeito único e verdadeiro de sua própria

história e como centro das preocupações humanas, livre das especulações teológicas que

impedem a investigação e a compreensão do comportamento humano diante das mais

variadas necessidades.

A proposta filosófica de Feuerbach gira em torno do projeto crítico-positivo da religião, ou seja, tem como finalidade libertar o ser humano das ilusões da teologia, que é o fundamento último da falta de liberdade espiritual e política. Contudo, Feuerbach reconhece que a religião tem uma significação histórica, no sentido de que o homem, projetando as suas possibilidades num ser fantástico/Deus, tomou consciência de sua grandeza. Mas é preciso pôr fim a este sonho, e a grande revolução da história vai dar-se quando o homem tomar consciência de que o único Deus do homem é o homem (HAHN, 2003, p. 24).

Ao buscar o fundamento humano da religião, sobretudo da religião cristã, Feuerbach

manifesta seu interesse em demonstrar a imagem do homem refletida em Deus e,

consequentemente, mostrar esse Deus que se encontra no homem. Não porque quis fazer

morada no humano, mas porque o humano é sua morada, é seu início, é sua origem. Chegar a

57

essa raiz, a esse início torna-se indispensável, pois trata-se da base antropológica da

experiência religiosa.

A partir do contato com essa base, desencadeia-se o processo de percepção do grande

potencial humano que precisa ser valorizado e trabalhado como meio de libertação do ser

humano em relação às ideias religiosas. Daí percebe-se claramente o perigo das especulações

teológicas, pois estas procuram afastar o ser humano de sua essência, como se ela existisse

independente, separada enquanto Deus.

Feuerbach procura mostrar que a religião não pode servir-se de outro conteúdo a não

ser das potencialidades humanas. Nesse aspecto a religião pode ser utilizada como convite à

reflexão sobre a essência humana ainda não objetivada.

A religião é negativa para Feuerbach apenas no sentido teológico, ou seja, quando a essência humana se torna objetiva e independente na forma de um Deus. Mas não, enquanto é uma primeira forma, embora indireta, de o homem se dar conta de sua essência. O potencial da manifestação religiosa é desvendado quando a diferença entre teologia e antropologia é eliminada, pois, em verdade, Deus pode apenas ser identificado com o homem (SCHUTZ, 2001, p. 27).

Assim, no decorrer da obra A essência do cristianismo, Feuerbach discorre sobre os

mistérios religiosos e sobre os dogmas do cristianismo, expondo o que verdadeiramente se

encontra por detrás deles: “Os dogmas fundamentais do cristianismo são desejos do coração

realizados.” (FEUERBACH, 1994, p. 169).

Na religião é só o homem que está em causa, de que o segredo da teologia é a antropologia, de que o conteúdo, o elemento constitutivo do ser infinito é o ser finito. Deus vê o homem significa que o homem apenas se vê a si mesmo em Deus; Deus cuida do homem significa que o cuidado do homem por si mesmo é a sua essência suprema (FEUERBACH, 1994, p. 366).

Feuerbach procura demonstrar que aquilo que o ser humano considera existir fora

dele, ou seja, o objeto religioso, nada mais é do que a sua essência objetivada. Daí conclui que

o homem pode ser conhecido pelo Deus que tem e o Deus pelo homem que o fabrica.

Pelo seu Deus conheces o homem e, vice-versa, pelo homem conheces o seu Deus; é a mesma coisa. O que para o homem é Deus, isso é o seu espírito, a sua alma, e o que para o homem é o seu espírito, a sua alma, o seu coração, isso é o seu Deus: Deus é o interior revelado, o si-mesmo do homem expresso, a religião é o desvelamento festivo dos tesouros escondidos do homem, a confissão dos seus pensamentos mais íntimos, a proclamação pública dos seus segredos de amor (FEUERBACH, 1994, p. 23).

No entanto, a conclusão de Feuerbach não quer afirmar que o homem religioso tenha

consciência de que a consciência que tem de Deus é a consciência de si da sua essência,

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mesmo que, na religião, a consciência de Deus seja referida como a consciência de si do

homem. “É justamente a falta desta consciência que funda a diferença específica da religião.

Para eliminar esta incompreensão, é preferível dizer: a religião é o primeiro, mas indireto,

conhecimento de si do homem.” (FEUERBACH, 1994, p. 23).

À medida que Feuerbach vai discorrendo a respeito da negação de si que o homem

opera quando apela para Deus, vai evidenciando automaticamente a ilusão característica da

consciência religiosa. Uma vez descrente de sua capacidade de saber algo acerca de Deus e,

em consequência do menosprezo, banalização e minimização da sabedoria humana, o homem

religioso passa a buscar o que não quer entender a partir de si fora dele e além dele.

No cristianismo, especificamente, esta crença no que presumivelmente se situa além

do humano encontra respaldo na revelação. Sobre essa questão, Feuerbach ressalta:

A crença na revelação desvenda da forma mais clara a ilusão característica da consciência religiosa. A premissa universal desta crença é a seguinte: por si mesmo, o homem não pode saber nada acerca de Deus; todo o seu saber é apenas vão, terreno, humano. Mas Deus é um ser sobre-humano: Deus só se reconhece a si mesmo. Não sabemos, portanto, nada de Deus para além daquilo que ele nos revela. Só o conteúdo comunicado por Deus é conteúdo divino, sobre-humano, sobrenatural. Portanto, graças à revelação, conhecemos Deus por ele mesmo, porque a revelação é a palavra de Deus, o Deus que se exprimiu por si mesmo. Por isso, na crença na revelação, o homem nega-se, sai fora de si e para além de si, opõe a revelação ao saber e à opinião humana; nela se desvenda um saber oculto, a plenitude de todos os segredos suprassensíveis; e aqui a razão tem de se calar, aqui o homem tem de se comportar apenas como crente, apenas passivamente (FEUERBACH, 1994, p. 254).

Mas, é inegável que tudo aquilo que o homem religioso afirma ser revelado está

fortemente determinado pela natureza humana, pois se trata de linguagem humana com

representações também humanas.

O homem é o objeto de Deus antes de ele comunicar exteriormente com o homem, ele pensa no homem, é determinado pela sua natureza, pelas suas necessidades. Deus é certamente livre na vontade, pode revelar-se ou não, mas não é livre no entendimento; se se quiser revelar, não pode revelar ao homem tudo o que bem quiser, mas só o que convém ao homem, o que é conforme à sua natureza, seja ela qual for; revela o que tem de revelar, se é que a sua revelação deve ser uma revelação para os homens e não para outro ser qualquer. O que Deus pensa para o homem, pensa-o enquanto determinado pela ideia do homem, proveio da reflexão sobre a natureza humana. Deus coloca-se no lugar do homem e pensa a respeito de si mesmo tal como este outro ser pode e deve pensar a respeito dele; não se pensa com a sua faculdade de pensar, mas com a faculdade de pensar humana. No projeto da sua revelação, Deus não está dependente de si, mas do poder de compreensão do homem. O que de Deus chega ao homem apenas passa do homem em Deus ao homem, isto é, da essência do homem ao homem fenomênico, do gênero ao indivíduo (FEUERBACH, 1994, p. 254-255).

59

Partindo do pensamento de Feuerbach, fica evidenciado que entre a revelação divina e

a chamada razão ou natureza humana existe uma diferença apenas ilusória, pois o conteúdo da

revelação divina não pode ser de outra natureza senão a humana, isto é, proveio da

necessidade humana.

O pensador para quem a religião é objeto, o que a religião não pode ser para si mesma, descobre a essência da religião que para ela está oculta. A nossa tarefa é justamente mostrar que a oposição do divino e do humano é inteiramente ilusória e, por consequência, que também o objeto e conteúdo da religião cristã são inteiramente humanos (FEUERBACH, 1994, p. 24).

A crença na revelação torna-se, portanto, um perigo, pois contribui para a descrença

no homem, sustentando a tese de que o homem nada pode alcançar por si mesmo. Feuerbach

quer realçar o paradoxo existente nessa crença, mostrando que naquilo que é tomado como

revelado se opera o desvendamento da natureza oculta do homem, que torna-se para ele

objeto. Mesmo sendo afetado e determinado pela sua essência, o homem ainda continua a

acreditar que é determinado e afetado por uma outra essência.

Afirmar que a teologia é antropologia é justamente compreender que “a essência da

religião, a sua essência divina é a essência do homem (...), que a suposta unidade entre a

essência divina e humana é a unidade da essência humana consigo mesma.” (SOUZA, 1993,

p. 34).

Sobre esta questão da essência da religião e a essência do homem, tomamos a análise

de Paulo Hahn como auxílio para nossa compreensão. Na obra Consciência e emancipação,

uma reflexão a partir de Ludwig Feuerbach, assim afirma:

O aspecto religioso, a essência da religião coincide com a consciência de si mesmo, sendo que o objeto religioso está intimamente presente no homem. Por isso, a religião é caracterizada como a consciência do infinito enquanto essência divina mesma. Reconhecida a identidade entre consciência e própria essência, torna-se claro que a essência denominada divina nada mais é do que a essência humana. A religião, nesta circunstância, é entendida como a manifestação das aspirações íntimas do homem; isto é, a exteriorização da própria essência humana, mas de forma não consciente ainda. É nessa perspectiva que Feuerbach nos leva a concluir que o homem, e é aí que reside o mistério da religião, objetiva a sua essência, em seguida constitui-se a si próprio como objeto desse ser objetivado, transformado num sujeito e numa pessoa; ele pensa-se, é o seu próprio objeto, mas como objeto de um objeto, de um ser diferente de si. O homem é um objeto de Deus (HAHN, 2003, p. 104).

60

Na ótica feuerbachiana a religião acaba por desviar o homem de sua essência24,

impedindo-o de se ver na sua criação, ou seja, de se ver em Deus e de ver Deus nele mesmo,

pois ele mesmo é o próprio e o único Deus, tomado como sendo distinto do ser humano, com

uma essência diferente e fora dele. Assim afirma Paulo Hahn:

Assim, a essência da religião é a relação do homem consigo mesmo, com sua essência, mas a sua essência como um outro ser distinto. O ser divino nada mais é do que a essência humana separada dos limites do homem individual. Pode-se dizer que é de maneira indireta que a religião é autoconsciência humana, uma vez que o homem primeiro exterioriza o que depois traz de volta para si. Diante disso, Feuerbach entende que quanto mais o homem tenta se igualar a Deus, tanto mais se distancia, pois se tantas são as semelhanças que o homem pensa ter com Deus, infinitamente mais numerosas e maiores são as diferenças que ele deve pensar; ou ainda: quanto mais o homem tenta se igualar a Deus, tanto maior a diferença entre eles (HAHN, 2003, p. 109).

O homem precisa aprender a conhecer-se e a valorizar-se mais, não se submetendo ao

fantástico, ao imaginário. Na experiência religiosa, ao adorar as qualidades humanas

substancializadas em Deus, o homem acaba por negá-las a si mesmo, pois quanto mais as

sustenta e as valoriza num Deus concebido como absolutamente perfeito, forte, rico,

poderoso, mais passa a considerar-se imperfeito, fraco, pobre e impotente. Por isso precisa

“dar-se conta de que é ele quem confere significado à religião, dar-se conta de que a razão,

vontade e amor – componentes da essência humana – são absolutos, são ‘poderes divinos’.”

(HAHN, 2003, p. 111-112).

Conclui-se, portanto, que a proposta feuerbachiana de fazer com que o homem se veja

quando “olha” para Deus tem como intenção a humanização do deus abstrato em favor de um

projeto que leve à emancipação humana. Assim, uma vez redescobrindo as riquezas e os

atributos genéricos atribuídos ao deus ilusório, procura resgatá-los com e para o homem.

A teoria da reversibilidade quer justamente recuperar no homem a sua consciência de

maneira que possa ir se reapropriando da essência humana genérica que tem de ser encontrada

na existência.

24 No livro O ateísmo antropológico de Feuerbach, Draiton Gonzaga de Souza afirma: “se a essência humana é não apenas o fundamento, mas também o objeto da religião e esta é considerada como a consciência do infinito, então, da infinitude que se afirma da religião, deduz-se a infinitude da essência humana, se o homem não fosse infinito, se sua essência não fosse infinita, não poderia ter consciência do infinito, pois sua essência é o objeto específico e determinante de sua consciência. Dá-se, pois, uma identidade entre consciência e essência (consciência em sentido estrito; no sentido especificamente humano é ter consciência da própria essência; a essência humana constitui-se da reflexão sobre si mesma, pela consciência da essência).” (SOUZA, 1993, p. 46).

61

3.3 A negação de Deus como negação da negação do homem

Com este título, será tratada neste item a preocupação de Feuerbach em esclarecer e

demonstrar a necessidade da negação de Deus para se perceber que tal negação trata-se da

afirmação do ser humano que é negado quando se afirma o divino. Portanto, a negação de

Deus representa a negação de um conjunto de ideias e doutrinas que negam o homem, daí a

negação da negação do homem.

Conforme trabalhado anteriormente, pela experiência religiosa opera-se a separação do

homem de si mesmo quando este transfere para fora de si suas potencialidades, seus

predicados. Essa transferência evidencia uma descrença na realidade e negação deste mundo,

o que acarreta negação de si mesmo uma vez que, enquanto homem, é e participa desta

realidade como parte integrante da natureza.

Feuerbach questiona essa negação do real e a separação do homem de si, pois como

consequência desse processo nasce a crença e o culto ao eu glorificado, divinizado, o que

evidencia um movimento cíclico, porém inconsciente. “Na religião, o homem separa-se de si

mesmo, mas apenas para voltar sempre ao mesmo ponto donde partiu. O homem nega-se, mas

apenas para se pôr de novo, bem entendido, numa forma agora glorificada” (FEUERBACH,

1994, p. 218).

Na segunda parte de A essência do cristianismo, Feuerbach discorre sobre a religião na

sua contradição com a essência do homem. Assim, a análise que Feuerbach faz do

cristianismo o leva a condená-lo por estimular a separação entre o homem e seu meio sendo

por isso considerado como religião que mantém o homem em sua interioridade, excluindo-o

da relação com o mundo e do diálogo com os outros, tornado-se a expressão do egoísmo, da

abstração, do irreal e da alienação.

Uma vez centrando tudo em Deus, o cristianismo deixa de oferecer e de trabalhar uma

visão integral do mundo. Estabelecendo uma experiência totalmente reduzida – Deus e eu –,

arrasta tudo o mais para o descrédito apresentando o mundo como sendo sem valor

desnecessário e prejudicial ao homem.

Como consequência desta visão redutora e negativista do mundo, intensifica-se o

comprometimento do convívio humano, pois leva o homem a negar-se, e uma vez negando-se

nega também o outro e ao negar o outro passa a perder a consciência da humanidade, pois:

62

O outro é o meu tu – embora isto seja recíproco – o meu alter ego, o homem objetivado para mim, o meu interior desvendado – o olho que se vê a si mesmo. É no outro que começo por ter consciência da Humanidade. Através dele começo a experienciar, a sentir que sou homem; só no amor por ele se torna para mim claro que ele me pertence e que eu lhe pertenço, que não poderíamos existir um sem o outro, que só a comunidade constitui a Humanidade (FEUERBACH, 1994, p. 191).

No livro Consciência e emancipação: uma reflexão a partir de Ludwig Feuerbach,

Paulo Hahn ressalta a análise que Feuerbach faz da religião ao considerá-la como responsável

pela cisão que opera naquele que a ela se sujeita.

A religião é a divisão do homem consigo mesmo porque considera a Deus como sendo um ser oposto a si, exterior e superior. Assim, Deus e homem são dois extremos: Deus é absolutamente positivo, o homem é o negativo. Então, para libertar o homem é preciso transformar a questão de Deus numa questão do homem, transformar a teologia em antropologia, a ciência de Deus em ciência do homem e buscar a felicidade do céu na terra (HAHN, 2003, p. 71-72).

Torna-se necessário observar que a negação do humano na experiência religiosa é a

negação do próprio Deus tomado como um ser transcendente, poderoso, soberano, pois

quando se nega o homem automaticamente se negam os predicados de Deus porque os

predicados de Deus são predicados humanos.25 Existirá um Deus sem predicados humanos? O

que seria se é que poderia ser alguma coisa? Afirma Feuerbach:

A negação do sujeito é considerada como irreligiosidade, até como ateísmo, mas não a negação dos predicados. Mas o que não tem determinações também não tem quaisquer efeitos sobre mim, e o que não tem efeitos também não tem existência para mim. Negar todas as determinações é o mesmo que negar a própria essência. Uma essência sem determinações é uma essência não-objetiva, e uma essência não-objetiva é uma essência nula (FEUERBACH, 1994, p. 24-25).

É importante ressaltar outro aspecto que resulta desta negação do homem que se opera

de maneira inconsciente: a cisão que a religião opera quando contribui com a ideia de que

existe uma divisão entre dois seres essencialmente distintos, ou seja, Deus e o homem.

25 Sobre esta questão, Rosalvo Schutz faz o seguinte comentário no livro Religião e capitalismo: uma reflexão a partir de Feuerbach e Marx: Feuerbach “busca mostrar que todos os predicados de Deus são predicados humanos e que um suposto Deus sem predicados não existe, assim como nenhum sujeito sem predicados existe, não passa de um vazio, uma não existência. Por isso, embora no sentido vulgar um ateu seja aquele para o qual os predicados de Deus nada significam, ser ateu no sentido feuerbachiano significa, apenas, não aceitar o sujeito como sendo algo diferente da essência humana, ou seja, atribuir os predicados a quem eles realmente pertencem: ao homem. Ser ateu torna-se, assim, condição essencial, para que as características, que aparecem na religião como atributos divinos, possam ser humanamente vividas. (...) Predicados sem sujeito podem subsistir, mas sujeito sem predicado, não. Como todos os predicados divinos são humanos, não há como deduzir daí a existência de um sujeito não humano. Restaria então ao crente dizer que Deus possui predicados que nós não conhecemos e que, portanto, não seriam humanos. Porém, o que seria do sujeito Deus sem predicados, o que seria ele além de um não-ser? Não há, pois, outra solução senão admitir que tudo que é, supostamente, atribuído a Deus é do próprio homem.” (SCHUTZ, 2001, p. 26).

63

Na verdade, essa cisão sugere e mantém um processo de alienação que nega o humano

e o coloca como estranho em relação a ele mesmo, pois sustenta a divisão no seu interior. Em

consonância com a análise feuerbachiana, nos afirma Draiton Gonzaga de Souza:

A religião é, em primeiro lugar, identidade, pois este é o seu princípio, objeto e conteúdo. Somente em sua realização e desenvolvimento chega à diferença, cria uma cisão nesta identidade original e imediata; e, nesta cisão, encontra sua diferença específica, sua maneira peculiar de ser. Este duplo traço é de tal maneira característico da religião, que ela mesma pode ser definida como dupla e sua dinâmica consiste em criar divisão, pois na religião o homem tem consciência de sua essência como se lhe fosse alheia e contraposta, como um ser estranho [...]. O trágico da cisão criada pela religião é que não se trata de uma divisão entre dois seres que nada tenham essencialmente em comum, mas, ao contrário, esta contraposição entre Deus e o homem é uma divisão no homem mesmo. Na ruptura desta identidade original consiste a cisão da religião; a razão de a religião ser percebida como desarraigamento e divisão está precisamente na unidade e identidade destes supostamente diferentes dois seres: Deus e o homem; por causa da identidade original, é que se dá a divisão, levando Feuerbach a afirmar que ‘a religião é a cisão do homem consigo mesmo: ele estabelece Deus como um ser anteposto a ele’.” (SOUZA, 1993, p. 64-65).

A análise feuerbachiana da religião quer mostrar que a religião deve ser entendida

como manifestação dos desejos que se encontram no âmago do ser humano ou exteriorização

da própria essência humana, ainda que de forma inconsciente. Sobre essa questão, Feuerbach

amplia sua análise em Preleções sobre a essência da religião afirmando:

A essência diversa e independente do homem, o objeto da religião, não é somente a natureza exterior, mas também a natureza própria, interior do homem, diversa e independente de seu saber e querer. Com esse princípio chegamos ao ponto mais importante, à genuína origem da religião. O mistério da religião é em última análise somente o mistério da união do consciente com o inconsciente, do arbitrário com o casual em um único ser. O homem deseja e, no entanto tem ele desejo sem seu desejo (frequentemente ele inveja os seres destituídos de desejo!), ele é consciente e, no entanto, atinge a consciência sem ter consciência (quantas vezes ele se destrói por causa de sua consciência! E como, no fim de um pesado dia de trabalho, ele se volta com prazer à inconsciência do sono!), ele vive, mas não tem em seu poder nem o início, nem o fim de sua vida; ele surgiu e, no entanto, depois de pronto, imagina ter sido criado por uma geração primitiva, como se tivesse desabrochado repentinamente como um cogumelo da noite para o dia; ele possui um corpo; ele o sente em todo prazer e em toda dor como sendo seu e, no entanto é ele um estranho na própria casa; recebe com todo prazer uma recompensa que não merece, mas também em todo sofrimento um castigo de que não é culpado; ele sente a vida nos bons momentos como uma dádiva que não pediu, mas nos maus como um fardo que lhe foi imposto sem a sua vontade; ele sente a fonte das necessidades e as satisfaz sem saber se o faz por um impulso próprio ou estranho, sem saber se com isso satisfaz a si mesmo ou a um ser estranho. O homem está com seu Eu ou sua consciência à beira de um abismo insondável que nada mais é que sua própria essência inconsciente que lhe aparece como um ser estranho. O sentimento que ataca o homem diante desse abismo e que se irrompe nas exclamações: “Que sou eu?” “De onde?” “Para onde?” é o sentimento religioso, o sentimento de que eu nada sou sem o não-eu que é de fato diverso de mim, mas que é intimamente ligado a mim, que é uma outra essência e, no entanto é a minha própria (FEUERBACH, 1989, p. 258).

64

Voltar nossa atenção para o homem é voltar a atenção para o fundamento da religião,

pois quando este toma consciência do infinito, toca na essência divina. Na afirmação da

divindade na autoconsciência humana, se dá a autoafirmação da divindade da consciência

humana. Assim: “Nesse processo em que Feuerbach faz a transição da divindade ao ser

humano, a religião não mais se ocupará de Deus, mas exclusivamente do homem e sua

essência. O fator religioso não pode ser estranho à essência humana, uma vez que o homem é

o fundamento da religião.” (HAHN, 2003, p. 108).

Fica claro, portanto, que a fé em Deus é a fé no homem, não podendo ser outra coisa.

É a fé na infinitude e verdade do próprio ser. É o ser humano em sua liberdade e ilimitação

absolutas, entendido como tradução e revelação única do presumível divino.26 O que se

apresenta ao homem ou o que ele permite que a ele se apresente como sendo manifestação

divina nada mais é que sua capacidade humana exteriorizada. “Na religião, o homem separa-

se de si mesmo, mas apenas para voltar sempre ao mesmo ponto donde partiu. O homem

nega-se, mas apenas para se pôr de novo, bem entendido, numa forma agora glorificada.”

(FEUERBACH, 1994, p. 218).

Segundo Feuerbach, há uma identidade entre sujeito e objeto, ou seja, o objeto da

religião é o mesmo da consciência. Isso quer dizer que os objetos espirituais e os objetos

sensíveis são a essência objetivada. Essa análise traz como consequência a necessidade de

uma revisão e transformação da concepção acerca da religião para mostrar que a relação até

então entendida como consciência de Deus sempre fora a autoconsciência.

Feuerbach tentou demonstrar esta identidade, afirmando-a de sujeito e objeto, ou seja, de consciência e objeto, e a identidade do objeto da religião com o da consciência. Por isso, a transformação da definição da religião é consequência lógica: a religião não é consciência de Deus, mas autoconsciência [...]. O homem, portanto, através deste processo, assume o lugar de Deus. A religião não mais se ocupará de Deus, mas do próprio homem (SOUZA, 1993, p. 62-63).

26 Juan Antonio Estrada Diaz afirma que esse Deus desejado, projetado, “é construção humana, sempre ameaçado pela arbitrariedade e pela suspeita que introduz a consciência que duvida. Passamos do Deus postulado (...) ao Deus projeção (que canaliza a subjetividade humana). O problema de uma transcendência gerada desde a imanência humana coloca em descoberto as implicações da correlação entre Deus e os homens: a afinidade de Deus-homem deve-se à própria estrutura do ser ou é mera projeção subjetiva? Feuerbach revela o caráter projetivo que Nietzsche chamará perspectivismo do conhecimento humano. Com isso, cancela-se definitivamente a possibilidade de um conhecimento objetivo e absoluto da essência de Deus, já que este está sempre impregnado da subjetividade de quem afirma. O problema está em se a projeção está somente na conceitualização da essência divina (a imagem de Deus) ou estende-se à própria existência. Deformamos a realidade ao conhecê-la ou chegamos até a criar a realidade? Somos meros demiurgos que damos forma ao existente ou criadores de entidades fantasmagóricas?” (DIAZ, 2003, p. 156-157).

65

O intuito de Feuerbach é fazer com que o homem descubra que as potencialidades que

ele atribui a um ser objetivo exterior é a alienação da qual deve libertar-se, pois transfere para

este outro ser suas próprias potencialidades.

Feuerbach estabeleceu o caráter relacional de Deus com respeito ao homem e ao mesmo tempo estabeleceu o caráter projetivo de nossas imagens sobre Deus, para, desde aí, dar lugar à ordem lógica à afirmação ontológica: Deus é uma projeção humana carente de entidade real. Deve-se recuperar essa essência e devolvê-la à espécie (DIAZ, 2003, p. 162-163).

O pensamento feuerbachiano contrapõe-se ao cristianismo não admitindo a mínima

possibilidade de transcendência. Reduz a sua mensagem, entendida como mensagem divina, a

fato essencialmente humano, através do qual temos a possibilidade de descobrir muitas coisas

sobre o próprio homem, seus desejos mais profundos, seus projetos, seus segredos, sua

história, suas qualidades, mas jamais sobre Deus.

Como as qualidades humanas são infinitas, ao objetivarmos Deus (ilusão!), percebemos que não podemos conhecer todas as suas qualidades. Imaginamos, então, poder conhecê-las num outro mundo. Ora, tudo que delegamos a Deus, ou a um outro mundo, subtraímos de nosso mundo. Por isto, quanto mais se atribui a Deus, menos se atribui ao ser humano. O homem deixa-se objetivar por algo que ele próprio objetivou: Deus. Desta forma, a aparência de um Deus objetificado e abstraído de toda realidade concreta e real é o ponto culminante da religião. Feuerbach quer buscar o fundamento humano da religião, e, na obra em causa, de modo especial, da religião cristã. Por isto, volta à origem, ao conteúdo autenticamente religioso, a fim de contrapô-lo ao conteúdo meramente teológico e especulativo, com a intenção de perceber os verdadeiros fundamentos antropológicos que o geraram, ainda não mesclados com as especulações teológicas. A exposição desta intenção nos revela que para Feuerbach, portanto, a religião não deve ser vista como sendo apenas negação do homem, mas também, enquanto portadora de potencialidades humanas (...). É uma primeira forma, embora indireta, de o homem se dar conta de sua essência (SCHUTZ, 2001, p. 26-27).

No intuito de confirmar o fundamento humano da religião, Feuerbach se serve da

contradição que afirma existir na revelação de Deus, traduzindo o conteúdo desta revelação

em manifestação daquilo que o ser humano objetivou: Deus. Assim, revela a mais genuína

manifestação dos anseios do homem.

A crença na revelação é a certeza imediata do ânimo religioso de que o que ele crê, o que ele deseja, o que ele representa, existe. A religião é um sonho no qual as nossas próprias representações aparecem como seres fora de nós. O ânimo religioso não distingue entre subjetivo e objetivo – não duvida; não possui os sentidos para ver outras coisas, mas só para ver as suas representações como seres fora dele. Para o

66

ânimo religioso, uma coisa em si teórica é uma coisa prática, uma coisa da consciência é um fato27 (FEUERBACH, 1994, p. 251-252).

É interessante observar que Feuerbach evidencia sua preocupação e interesse na

valorização do ser humano, sobretudo no enfrentamento dos problemas e dificuldades que a

ele se apresentam durante a vida. Assim compreende-se porque sugere que os homens sejam

amigos dos homens ao invéz de serem amigos de Deus. É preciso que o ser humano se atente

para a necessidade de protagonizar as mudanças necessárias na história, libertando-se da

crença na existência de um Espírito onisciente e todo-poderoso pelo qual os problemas e

dificuldades sejam resolvidos e todos os dramas desvanecidos.28 Em consonância com o

pensamento feuerbachiano, afirma Francis Jeanson:

Negação dos valores divinos em favor de uma exigência de “valorização” concreta do mundo humano; negação da vida eterna em favor de uma verdadeira aceitação de nossa finitude; negação da culpabilidade e da salvação segundo Deus, em favor de uma consciência que se quer mais e mais responsável perante as outras consciências, em favor do sentido que ela se esforça por dar a seus empreendimentos: eis o caminho novo que aparece dialeticamente exigido a partir do momento em que o homem se tornou capaz de conceber a necessidade da Encarnação. A paz não está nos céus, e não haverá paz em nós, não haverá reconciliação de cada um consigo mesmo e com os outros, enquanto não tivermos aprendido a encarregar-nos de Deus, a assumir finalmente nossa exigência de humanidade (JEANSON, 1969, p. 138).

É necessário desenvolver no ser humano a consciência emancipadora de maneira que

ele possa perceber e querer assumir a tarefa diária de transformar sua história sem auxílio ou

garantia exterior, criando, paulatinamente, as verdades e valores através da convivência com a

natureza, com os demais homens, transformando o próprio conhecimento.

27 Na ótica feuerbachiana fato é “uma representação de cuja verdade não se duvida, porque o seu objeto não é um objeto da teoria, mas do ânimo que deseja que aquilo que ele deseja e crê exista; fato é o que é proibido negar, senão exteriormente, pelo menos interiormente; fato é toda a possibilidade que vale como realidade, toda a representação que durante o tempo em que é fato exprime uma necessidade e, com isso, uma barreira que o espírito não pode transpor; fato é cada desejo realizado; em suma, fato é tudo o que não se pode pôr em dúvida, pela simples razão de que não se põe nem se deve pôr em dúvida.” (FEUERBACH, 1994, p. 253). 28 Sobre esta questão, muito nos ajudará o comentário sobre o pensamento de Francis Jeanson, feito por Jean Lacroix, no livro Posições do ateísmo contemporâneo: “como diz Francis Jeanson, eu não devo contar senão comigo e com os outros homens para enfrentar nossas dificuldades humanas; e a moral de que eu tenho precisão é a minha própria existência que a forma, arriscando-se toda inteira, e quase a toda hora. Que eu me sinta ajudado nesta obra de reconstrução da humanidade, é bem certo. A graça se experimenta sem cessar. Outra coisa não é, porém, senão esta ajuda preciosa que me emprestam o amor dos homens e sua cooperação. O ateísmo se apresenta, então, como uma afirmação de liberdade e uma reivindicação de responsabilidade. Atirado numa situação e numa condição que não escolheu, o indivíduo deve ser julgado apenas do ponto de vista de como aí se comporta, quer dizer, por critérios puramente humanos. ‘Eu decido ser livre, escreve Jeanson, quer dizer, existir não mais em relação a Deus, mas, em relação àqueles que são meus irmãos porque partilham de minha condição, mesmo que sua condição seja muitas vezes pior do que a minha. E para não me arriscar a uma traição deste dever de solidariedade, recusarei a qualquer outro dever, a qualquer outra obrigação, a qualquer outra justiça, enfim, e a qualquer outro amor além destes, que me esforçarei para progressivamente e cada vez melhor estabelecer com eles, nesta vida e nesta terra.” (LACROIX, 1965, p. 41-42).

67

É importante aqui ressaltar o comentário de Viriato Soromenho Marques, no capítulo

Religião e Historicidade em a Essência do Cristianismo: contributo para um diálogo entre

Feuerbach e Lessing, da obra Pensar Feuerbach: Colóquio comemorativo dos 150 anos da

publicação de A essência do cristianismo:

O humanismo de Feuerbach não parece, portanto, prestar-se a uma fácil redução a mais um exemplo de inconsciente laicização de uma escatologia da salvação, como ocorre com tantas outras aventuras intelectuais do século XIX. Mesmo as suas esperanças, talvez excessivas, nas capacidades demiúrgicas do nosso gênero não deixam de conter, nas palavras que se revelam sob outras, uma declaração da impossibilidade do credo salvífico. Nem mesmo a memória que as gerações guardarão das grandes obras poderá servir sequer de Erzsat à irremediável perdição da consciência singular nos abismos do tempo e da morte. Talvez por isso a profunda mensagem de amor, altruísmo e generosidade contida na filosofia de Feuerbach seja apenas uma outra maneira de dizer: amemo-nos, então, pois já não existem céus eternos pelos quais valha a pena matar e morrer (MARQUES, 1993, p. 118).

A crença nos céus eternos, tradução da objetivação da essência humana, torna-se

obstáculo a qualquer iniciativa emancipatória, pois leva o homem a dirigir-se para Deus

negando a si mesmo, colocando-o como inferior, subordinado ou incapaz de levar a cabo

projetos de sua autoria. Por isso, afirma Feuerbach:

Interessa-me acima de tudo, e sempre me interessou, iluminar a obscura essência da religião com a luz da razão, para que finalmente os homens parem de ser explorados, para que deixem de ser joguetes de todos aqueles poderes inimigos da humanidade que, como sempre, servem-se até hoje da nebulosidade da religião para a opressão do homem (FEUERBACH, 1989, p. 28).

Ao invés de buscar e deixar-se guiar por um fim último puramente humano, o homem

religioso se permite guiar pela ilusão de que a vida se torna sem sentido e desprovida de fim

sem a religião. Portanto, coloca a religião como seu único fim.

Aquilo que o não-religioso apenas conserva na cabeça, o religioso coloca como objeto fora dele e ao mesmo tempo acima dele, aceitando por isso a relação de subordinação, de sujeição. Em suma, o religioso, porque é uma coletânea, tem um ponto de concentração, tem um fim. Sem religião, a vida parece ao homem desprovida de fim (FEUERBACH, 1994, p. 69).

Um dilema se apresenta: tomar a humanidade fundada sobre o reconhecimento

recíproco entre os homens ou submeter-se aos efeitos alienantes da crença num ser supremo

que impede os homens de investirem nos seus esforços, desviando-os de seus objetivos

humanistas. A proposta feuerbachiana é justamente de alertar ao homem quanto ao perigo de

continuar sustentando a ilusão religiosa que se apoia na objetivação da essência humana.

68

Esta ilusão religiosa é perniciosa pela diferença que estabelece entre Deus e o homem, convertendo-se em contraposição e, então, em domínio de Deus sobre o homem, em subordinação dos objetivos humanistas a um ser superior puramente ilusório. Esta ilusão é a razão pela qual a religião é a falsa consciência do homem, e Deus a objetivação da verdadeira consciência, seu verdadeiro conteúdo, mas negado no homem. Quanto mais o homem vai recuperando sua consciência, quanto mais o homem vai-se reapropriando da essência divina, afirmando a identidade, tanto mais se verá a religião obrigada a afirmar a diferença. Esta inversão ilusória da religião pode chegar a constituir uma imagem tão desairragada do homem, que este não chegue à realização de sua essência, a não ser de uma maneira ilusória. (...) Sobre esta ilusão, pois, fundamenta-se não só a ideia de Deus, mas também a configuração da vida, seu sentido, a crença na vida eterna, na ressurreição e no além. Este caráter ilusório, fantasioso, mostra-se também na atitude frente às necessidades humanas, que são a origem da religião (SOUZA, 1993, p. 68-69).

O pensamento feuerbachiano contrapõe-se à negação do homem que se dá na

experiência religiosa. Sua intenção é justamente a de inverter este processo, ou seja, procurar

ajudar o homem a tomar consciência de sua importância, de seus valores, de seu potencial

transformador e direcionador da história, assumindo-se como único protagonista das

mudanças necessárias para o bem-estar da humanidade.

Essa missão só poderá ser efetivada se, de fato, o homem deixar de buscar em Deus o

que se encontra nele para assim proclamar e experimentar algo de diferente: a emancipação da

consciência de si. Assim, “nesse processo em que Feuerbach faz a transição da divindade ao

ser humano, a religião não mais se ocupará de Deus, mas exclusivamente do homem e sua

essência.” (HAHN, 2003, p. 108).

Finalizando este item, percebe-se que o intuito da crítica feuerbachiana à religião e ao

cristianismo é o de contribuir para a descoberta e reconhecimento das potencialidades

humanas, propiciando uma desmistificação religiosa para demonstrar que o ser humano é o

grande e único construtor do ente divino.

O pensamento de Feuerbach também serve de alerta para o perigo da construção ou

manutenção de estruturas que possam dominar as pessoas, sobretudo quando essas pessoas

passam a considerar as estruturas não mais como suas criaturas, mas como criações de um

presumível criador que tem morada no além.

A negação de Deus como negação da negação do homem deve ser constante na vida

do ser humano, pois traduz a compreensão de uma ideologia que não pode ser mais assumida

nem mantida como proposta de felicidade ou de realização do homem.

Negar Deus, na ótica feuerbachiana, é assumir a crença no real para impedir que o ser

humano continue se negando na experiência religiosa que alimenta sua crença no irreal.

Não negar o homem é perceber, assumir e lidar com o aquém como morada única do

ser humano. Aceitar o aquém é descobrir que aqui é o espaço, o momento, a circunstância

69

propícia para a criação do divino. Negar a Deus, portanto, é não negar o humano como único

criador do Criador, como deus de Deus.

70

4 EXPERIÊNCIA DO DIVINO OU OBJETIVAÇÃO SENTIMENTAL E

FANTÁSTICA DOS DESEJOS HUMANOS?

Toda e qualquer análise comportamental do homem religioso não pode dispensar a

compreensão da influência do meio sobre este, pois as experiências religiosas não acontecem

numa esfera sobrenatural, num mundo supraterreno. Assim, a experiência do presumível

divino só pode efetivar-se a partir da experiência humana com o mundo ao qual o homem

pertence, o que se torna pré-requisito para qualquer atitude ou prática religiosa.

Na ótica feuerbachiana pode-se afirmar, portanto, que a natureza é a origem da crença

no divino, pois as ideias religiosas nascem da experiência humana com a realidade e com as

situações que se processam a partir dessa relação nem sempre pacífica ou menos conflituosa.

No primeiro item deste capítulo é ressaltada a atenção feuerbachiana para com a

existência do mundo colocado como responsável pela existência do ser humano. A reflexão

que se processa a partir dessa consideração vai justamente analisar e questionar o discurso

religioso que se funda no pensamento dualista que separa os mundos terreno e celeste,

desvalorizando tudo o que se encontra ao nosso redor, desconsiderando a realidade que sobre

nós mantém sua primazia para colocar como real tudo aquilo que se encontra fora dela ou

pelo menos estranho a ela.

Prosseguindo nessa linha de análise, especificamente no segundo item, a experiência

religiosa será trabalhada como consequência do vazio e das insatisfações daqueles que a ela se

entregam, traduzindo o tenso conflito em que vivem por não saberem separar o ideal do real,

existência e possibilidade, finitude e superação.

É importante observar que o pensamento feuerbachiano alerta para o perigo do

fechamento do homem em si quando se sente desafiado pela realidade. Por isso a religião, na

ótica feuerbachiana, é considerada um perigo ainda maior, pois apresenta este mundo como

inimigo do homem e de Deus e não dá o devido valor a esta vida, colocando toda a esperança

de uma vida melhor no paraíso celeste.

A incapacidade de lidar com tais questões ou a indiferença quanto à necessidade de se

buscar conhecer cada vez mais o seu interior leva o homem a mergulhar cada vez mais

profundo no mar da fantasia. A cada mergulho no fantástico mais se especializa em criar

mundos imaginários sem se dar conta de que na criação desses mundos está manifestando o

desejo de um mundo real diferente deste, tal como se nos apresenta.

71

No último item será colocada como proposta de análise a ruptura humana com sua

estrutura interior que surge como consequência da projeção no divino. Essa ruptura que se

processa de maneira gradativa e imperceptível sacrifica a condição do homem como sujeito

originário e verdadeiro que deve escrever sua história a partir de seus sonhos e projetos sem

atribuir a eles um estatuto de sobrenaturalidade.

A análise feuerbachiana da religião vem contribuir para a percepção do ser humano

como ser dotado de potencialidades ainda não desenvolvidas ou assumidas por aqueles que se

entregam às experiências tidas como religiosas. Tais potencialidades, uma vez trabalhadas e

desenvolvidas, são a contribuição necessária para religar o homem com sua estrutura interior

e para a ruptura deste com o processo que desencadeia a ruptura com ele mesmo.

O conteúdo deste capítulo e, especificamente, o do último item quer trabalhar

justamente essa contribuição de Feuerbach para o processo que deve ser desencadeado a partir

da própria experiência religiosa, ou seja, procurando servir-se daquela ruptura inicial que se

deu quando o sujeito religioso rompeu consigo mesmo para entregar-se às ideias religiosas,

alienando-se de sua interioridade para buscá-la num imaginário mundo além deste.

Inconscientemente imaginou poder sair de si para buscar-se a si mesmo fora de si.

O que a análise feuerbachiana quer mostrar é que tal procedimento pode ser

desestruturado desde que o homem passe a fazer as pazes com ele mesmo através do re-

encontro com sua estrutura interior.

Este último capítulo, com a abordagem acerca da experiência do divino, vem reforçar

o conteúdo trabalhado nos capítulos anteriores e confirmar a conclusão feuerbachiana a

respeito do que realmente traduz a experiência dita religiosa feita por aqueles que ainda não

tomaram consciência de sua essência e, por isso, continuam objetivando seus desejos.

No intuito de melhor entender como se opera esse processo de objetivação, que

dispensa o uso da razão e evidencia a primazia do sensível sobre o intelectual, o capítulo ficou

dividido obedecendo uma ordem de análise que procura estar o mais próximo possível da

sequência de raciocínio de Feuerbach.

4.1 Elementos de uma antropologia empírica

Procurando aprofundar no pensamento de Feuerbach para melhor compreender como

enxergava e analisava o mundo e qual o alcance de seu conceito de realidade, este item se

72

aterá à critica feita a toda tentativa de separar o homem de sua essência e da realidade

existente, pois somente neste mundo o ser é real e por isso existe.

O conhecimento acerca do mundo é que possibilita uma análise mais ampla acerca do

homem como peça de uma engrenagem mais complexa. Como ser exposto ao inesperado,

como extensão da natureza que se encontra em contínua metamorfose, o ser humano não pode

furtar-se do enfrentamento que deve administrar frente ao que se lhe apresenta como desafio

ou limite.

No decorrer desse item o ser humano será apresentado como ser sensível finito, mas

dotado de potencialidades e capacidade para superar seu limite neste mundo real que, na ótica

feuerbachiana, é tomado como espaço e oportunidade para a experiência do exercício de

infinitização do ser finito.

Certamente torna-se estranho procurar discorrer sobre uma possível experiência do

divino dispensando a compreensão acerca da realidade, pois tal compreensão auxilia na

experiência daquilo que não ultrapassa a Natureza, reconduzindo todo o ser ao ser sensível,

isto é, “ao ser existente sempre provido de determinação e qualidades intrínsecas: o ser é por

isso real somente como existência, realidade, mas a existência determinada é qualidade e só

graças à sua determinidade e na sua determinidade ele é algo.” (SERRÃO, 1999, p. 97).

Como o jovem Feuerbach lançava os alicerces de uma concepção de realidade que

instituía a independência do ser, torna-se necessário, portanto, compreender esta concepção

feuerbachiana de realidade, pois trata-se de um tema cuja evolução se processa numa linha

crescente de continuidade.

As raízes da ontologia feuerbachiana mergulham no período juvenil, configurando-se aí na paralela demarcação da supra-humanidade e do supranaturalismo e sob a contestação conjunta ao criacionismo e à concepção especulativa de realidade. A primeira filosofia da Natureza, de cariz organicista e instituindo a precedência da Natureza sobre o Espírito, cruza-se com uma ontologia que estabelece a independência do ser relativamente ao pensamento, seja o pensamento criador ou o pensamento lógico (SERRÃO, 1999, p. 95-96).

A análise feuerbachiana quer mostrar que a Natureza é reduzida a coisa segunda e

derivada quando se toma a criação de Deus a partir do nada. Seu surgimento “se encontra

suspenso da arbitrariedade de um ato inaugural que lhe é exterior e que, por ser aleatório,

torna a sua existência posterior inteiramente contingente.” (SERRÃO, 1999, p. 96). Feuerbach

evidencia o caráter vazio desse nada cristão, do qual, segundo ele, nenhum conteúdo pode ser

extraído.

73

Se este mundo for nada, também a existência que nele se processa nada é; a vida humana será um curso transitório que decorre na passagem entre um começo e um fim que a transcendem, sendo o aqui e agora somente o frágil interregno entre ambos. Se este mundo for desvanecido, porque só uma zona dele corresponde à sua essência, então também só será racional e verdadeira no homem aquela disposição que o capta como verdadeira essência: o pensamento reflexivo, categorial ou lógico. No seguimento da tradição religiosa fundada na separação de dois mundos, também a velha filosofia desvalorizou “este mundo”, a realidade existente à nossa volta, e colocava a verdadeira realidade num fundamento invisível situado para além dela ou oculto nela (SERRÃO, 1999, p. 101).

No clássico A essência do cristianismo, Feuerbach apresenta a dúvida humana acerca

da criação – enquanto ato divino – como tradução do ateísmo. A simples curiosidade a

respeito de como Deus criou o mundo parece confirmar que o homem sempre o considerou

objeto da ciência. Assim afirma Feuerbach:

A questão de saber como Deus criou constitui indiretamente uma dúvida de que Deus tenha criado o mundo. E foi com esta questão que o homem chegou ao ateísmo, ao materialismo, ao naturalismo. Quem coloca tal pergunta já considera o mundo como objeto da teoria, da física, isto é, na sua realidade, na determinidade do seu conteúdo. Mas este conteúdo contradiz a representação da atividade indeterminada, imaterial, desprovida de matéria. E esta contradição conduz à negação da representação fundamental (FEUERBACH, 1994, p. 270).

Segundo Feuerbach, uma lógica especulativa – pois é o pensamento do pensamento –

jamais conseguirá explicar como que de um conceito de ser pode originar o ser determinado

ou se existe a possibilidade de o ser puramente pensado produzir a partir de si o movimento e

o devir.

O fragmento Zweifel, datado de 1827-1828, formulava em termos interrogativos a dúvida sobre a possibilidade de estabelecer a passagem do pensar ao ser, ou do ser pensado ao ser real no interior da categoria de ser puro: ‘como se relaciona o pensar com o ser, como se relaciona a Lógica com a Natureza? [...] Estará fundamentada a transição daquela a esta? Onde se encontra a necessidade, onde se encontra o princípio desta transição? [...] Mas de onde sabes então que ainda há um outro elemento? A partir da lógica? De modo algum.’ E adiantava como resposta o imperativo de aceitar como primeiro o ponto de vista imediato e natural: Portanto, o outro da Lógica não é deduzido da Lógica logicamente, mas ilogicamente, ou seja, a Lógica só passa para a Natureza porque o sujeito pensante encontra previamente, fora da Lógica, uma existência imediata, uma Natureza, e é impelido a reconhecê-la graças ao seu ponto de vista, ou seja, natural (SERRÃO, 1999, p. 96).

A antropologia feuerbachiana pode ser caracterizada por uma desmitologização da

teologia, pois reduz a ideia de Deus e de todas as representações da dogmática cristã

almejando a promoção consciente de autoconhecimento do homem.

O programa que em Das Wesen des Christentums se materializa é, por conseguinte e desde o fundo, um desígnio de esclarecimento, uma intenção de Aufklärung. Feuerbach chega mesmo a qualificar o Grundgedanke, seu pensamento fundamental,

74

de “purer, radikaler Rationalismus”, de racionalismo puro, radical. Pela crítica da “impureza” da razão teológica e pela promoção consciente de autoconhecimento do homem, trata-se, no fundo, de proceder à revelação do segredo que permite dissipar as trevas que peiam a abordagem da problemática religiosa: “das innerste Geheimns der Religion und Theologie die Anthropologie ist”, “o segredo mais íntimo da religião e da teologia é a antropologia” (BARATA-MOURA: MARQUES, 1993, p.54).

Por negar a existência de um Deus transcendente e pessoal e por opor-se à concepção

cristã de divindade, o pensamento de Feuerbach é também denominado de ateísmo

antropológico.

O antropocentrismo de Feuerbach será, pois, um antropoteísmo: o homem é o único deus para o homem e os atributos de Deus, que estão presentes no discurso teológico cristão, deverão constituir a estrutura e a sequência do discurso antropológico. Por isso, pode-se dizer que a crítica da religião é apenas o aspecto negativo de um propósito positivo: a antropologia (SOUZA, 1993, p. 78).

Percebe-se que o homem religioso associa o Divino com o infinito e o ser humano

com o finito. Tal associação provém da aceitação daquilo que se configurou como negativo

proveniente do finito e como positivo vindo do infinito. Ora, se o homem religioso mantém

associada a ideia de negativo ao finito e, sendo o finito entendido como tradução da realidade

humana, consequentemente irá associar a ideia de positivo ao infinito. E, se o finito traduz a

realidade humana, sendo por isso negativo, não poderá, então, ser considerado Divino. Este

passa a ocupar lugar de destaque, ou seja, pertencente a uma outra esfera, a uma outra

dimensão, distante e diferente do mundo do ser limitado e finito.

Mas, na ótica feuerbachiana, uma nova compreensão surge e questiona a tradicional

maneira de lidar com o limitado, com o finito:

Porque a qualidade é o limite (Grenze) internamente constitutivo das coisas individuais, o ser sensível finito é intrinsecamente dotado da capacidade para a superação do seu limite, processando-se deste modo todo o desdobramento e crescimento do real, não como a finitização de um sujeito infinito, mas, inversamente, como o movimento de infinitização de cada ser finito: ‘Algo (Etwas) é um determinado, as suas determinações ou a sua determinidade são o seu limite, a sua negação [...], mas esta limitação, a finitude é, pois, negada, suprimida, e daí cada algo é já infinito’ (SERRÃO, 1999, p. 97).

Como já fora ressaltado no capítulo anterior, na compreensão de Feuerbach, a religião

deve ser entendida enquanto processo pelo qual o homem objetiva sua essência interior,

transferindo-se para Deus. Assim, Feuerbach apresenta Deus e o homem como um único ser e

como um ser único em essência, porém uma essência alienada do ser humano. É o finito

projetando em Deus sua infinitude, sendo esta entendida como a capacidade de superação de

seu limite.

75

As qualidades de Deus são as qualidades humanas. Por isso afirma: “O homem

religioso está inteiramente satisfeito com o que Deus é em relação a ele – como homem, não

conhece outra relação – pois Deus é para ele o que pode ser para o homem em geral.”

(FEUERBACH, 1994, p. 27).

Na objetivação dos sentimentos e desejos, o ser humano deixa evidente sua busca

ininterrupta pela felicidade, pois a coloca como bem supremo, como valor absoluto29, como o

único e verdadeiro Deus de sua vida. “Deus deve sua existência somente ao instinto de ser

feliz que o homem possui, e que a religião não satisfaz a esse instinto a não ser na

imaginação.” (FEUERBACH, 1989, p. 169). Ainda afirma:

A religião é, portanto não só um objeto da imaginação, da fantasia, mas também um objeto da faculdade apetitiva, do desejo e da ânsia do homem de evitar sentimentos desagradáveis e proporcionar a si sentimentos agradáveis, de conseguir o que não tem, mas que gostaria de ter e se livrar do que tem, mas que gostaria de não ter, como por exemplo, esse mal, essa deficiência, em síntese, ela é um objeto do desejo do homem de se livrar dos males que ele tem ou teme e conseguir o bem que ele deseja, que sua fantasia lhe mostra – ela é objeto do chamado instinto de busca da felicidade (FEUERBACH, 1989, p. 168).

É importante observar que Feuerbach trabalha a questão da felicidade como valor

absoluto sem dissociá-la da sensibilidade que, dentro de sua ótica, traduz a exigência da vida.

O ser humano deve participar do dinamismo da vida, procurando se realizar através da

concretização de suas necessidades sem perder de vista a importância e necessidade de tudo

realizar de maneira equilibrada.

A felicidade é uma realidade, e daí uma noção inabarcável, não se encerrando na acepção restritiva de um conjunto de bens empíricos e privados, e inquantificável, pois excede todo e qualquer critério matemático de avaliação. Apenas pode referir uma qualidade, aquela qualidade que assinala a equivalência entre ser e ser bem, entre estar e estar bem, e de que o equilíbrio natural pode ser tomado como longínquo paradigma, mas que não pode ser atribuída a um qualquer fim da natureza, pois esta só protege a vida no plano mais global da conservação da espécie, sem cuidar dos indivíduos. Em sentido humano, a felicidade aproxima-se de um estado dinâmico em que diversos impulsos, individualizados e diferenciados em cada indivíduo, se encontrariam, cada um deles, no movimento expansivo que tende para a realização e, no seu conjunto, reciprocamente harmonizados. Trata-se, em todo o caso, de um equilíbrio ativo e não estático, manifestando uma tendência expansiva e progressiva, e no qual o próprio todo se renova momento a momento (SERRÃO, 1994, p. 321).

29 Sobre a felicidade como valor absoluto, afirma Adriana Conceição Guimarães Veríssimo Serrão: “o objetivo primeiro da argumentação de Feuerbach consiste em mostrar que nenhum outro valor além da felicidade pode ser assumido como absoluto e incondicionado, pois só ela traduz a exigência da sensibilidade como totalidade e respeita a plenitude e potenciação de ser contidas na noção englobante de Vida.” (SERRÃO, 1994, p. 320).

76

O comportamento do homem religioso revela a distinção que realiza entre aquilo que

considera divino e não divino, o que pode e deve ser adorado30 e o que não pode nem deve ser

adorado. “Assim, o objeto do homem não é outro que sua essência objetiva. Tal como é o

pensamento do homem, tais serão seus sentimentos, tal será seu Deus.” (HAHN, 2003, p. 99).

Na linha da análise feuerbachiana da religião e, especificamente, do cristianismo, fica

evidenciado o uso da religião como instrumento destinado a preencher os vazios, acalmar e

exorcizar os medos, escutar os clamores, saciar os desejos. “Deus é a ânsia de felicidade do

homem satisfeita na fantasia. Se o homem não tivesse desejos, não teria religião nem deuses,

apesar da fantasia e do sentimento.” (FEUERBACH, 1989, p. 168).

Torna-se necessário ressaltar a análise feuerbachiana do desejo, mostrando como se

processa e qual sua importância para a análise da religião a partir dessa ótica. Mais do que

simplesmente psicologizar a análise do ser humano ou a crítica da religião, o pensamento de

Feuerbach acerca do desejo quer justamente realçar o poder e a força propulsora que se

encontra no íntimo do homem, capaz de alavancar todo e qualquer investimento ou mudança.

A análise feuerbachiana do desejo não se processa apenas na mostração de uma estrutura humana fundamental, isolada e distinta das outras. Traz à luz a importância de um mecanismo profundo que confirma o primado do sensível sobre o intelectual: ‘Assim os olhos dos homens não alcançam mais longe do que os seus desejos.’ São necessidades e desejos que fazem mudar as verdades racionais, assim como a própria vontade é, na origem, desejo e possibilidade, motivo pelo qual ‘os homens sem desejos são mortos, cadáveres, quando muito, como entre os Gregos, colunas belas, mas frias como o gelo.’ Se prevalecesse apenas o querer previamente assegurado da vontade, não haveria tempo, nada se alteraria, apenas se confirmaria o que já há e o que já se é. Nada mais haveria do que a atualidade reiterada; o futuro seria um constante presente, a cada momento confirmado e repetido (SERRÃO, 1999, p. 370 - 372).

Em relação à história da humanidade, Feuerbach a analisa a partir da história das

religiões como um processo desencadeado e sustentado pelas emoções, projetada pelas mais

diferentes carências e desejos. Assim, Feuerbach afirma serem os desejos os verdadeiros

condutores da história e que os rumos da história só mudam em consequência da mudança dos

desejos, sejam eles explícitos ou não.

30 Na obra Preleções sobre a essência da religião, Feuerbach afirma o seguinte, quanto à questão do que pode ou não ser adorado: “A palavra deus, divindade, é originariamente apenas um nome genérico, mas nenhum nome próprio, que a palavra deus não é originariamente um sujeito, mas um predicado, isto é, não um ser mas expressa uma qualidade que é usada e cabe em qualquer objeto que surja diante do homem como um ser divino, à luz da fantasia, que cause no homem, por assim dizer, uma impressão divina. Por isso qualquer coisa pode ser um deus ou, o que dá na mesma, um objeto da adoração religiosa. Digo que dá na mesma um deus ou um objeto da adoração religiosa porque não existe outra característica da divindade a não ser a adoração religiosa: um deus é o que é adorado. Mas um objeto só é adorado quando e enquanto for uma entidade, um objeto da fantasia ou da imaginação.” (FEUERBACH, 1989, p. 151).

77

Também a história, entende-a Feuerbach não como processo transparente e lógico, mas movido por dimensões sensíveis, emocionais, perspectivada e projetada pelos desejos e carências. A força dos desejos muda na história e muda a história, e a diversidade das religiões mais não é do que a mutabilidade dos desejos e das necessidades. Ao abordar privilegiadamente a história da Humanidade através da história das religiões, Feuerbach confirma a revelação positiva da dimensão profundamente enraizada de um querer-ser da fantasia criadora de mundos possíveis, que se exprime no mundo do sonho acordado e nas representações do destino e do fim, do sentido da vida e da morte. Se todos os desejos possuem orientação antecipadora e futurizante, os mais pregnantes são aqueles que respondem à expectativa do destino e que preenchem o conteúdo do próprio futuro: ‘o homem não se preocupa com aquilo que foi antes do seu nascimento, mas apenas com o fato de viver no futuro, e de viver com felicidade.’ Aqui se situa o imenso campo simbólico, que cristaliza e fixa o objeto desejado e onde o desejo reina como senhor absoluto, nas representações religiosas, nas narrativas dos Deuses e relatos nos céus, símbolos concretizados e personificados como realidades. A inventariação conduzida na Theogonie mostra como, apesar da diversidade das religiões históricas se mantêm, enquanto manifestações culturais persistentes, alguns desejos típicos. Os mitos da criação primordial, do começo e da origem, o desejo da juventude e vida duradoura, do amor, da justiça e da felicidade desvendam através de uma expressão simbólica constantes antropológicas (SERRÃO, 1999, p. 370 - 372).

No decorrer da história humana, Deus sempre fora idealizado como Aquele único

capaz de responder a todas as necessidades, de dar sentido a tudo aquilo que sem o seu auxílio

e interferência seria absurdo e impossível. Percebe-se, portanto, que o homem religioso, a

partir de suas necessidades, cria o Deus de seus desejos e toma essa criação como tradução e

sustentação da necessidade de Deus – entendido como sobre-humano –, não admitindo que

seja a busca de sua própria satisfação. “Deus é então representado como um ser que realiza os

desejos e ouve os pedidos.” (FEUERBACH, 1989, p. 169).

Em consonância com a análise feuerbachiana da religião, afirma Jean-François

Catalan:

Quando se fala ‘necessidade de Deus’ surgem algumas dificuldades, como a de transformar Deus em objeto, até mesmo em objeto de consumo, unicamente destinado a satisfazer necessidades, desejos, e vontades – para não dizer caprichos – dos pobres seres humanos que somos. Ao definir a religião como “ópio do povo”, Marx se referia a esse tipo de Deus desmobilizador, que despoja o homem daquilo que faz a sua grandeza de homem, retirando-lhe a possibilidade de assumir a sua finitude, de aceitar a sua morte, como também de combater pelo advento de um mundo mais justo e mais humano. “Como quem é consolado por sua mãe”, dizia o profeta Isaías (capítulo 66): um “Deus-mamãe”, não teria outra função, senão de adormecer o homem infante aliviando os seus temores. Mas esse sono tem um gosto de morte. O homem que concebe um Deus assim, o concebe apenas em função de seus próprios desejos, de seus próprios temores e de suas próprias necessidades. Ao invés de abrir-se à presença, ao apelo, ao encontro de um outro, ele se fecha, apesar das aparências, numa atitude puramente egocêntrica, narcisista, onde o que conta é só ele, sem referência aos desejos do outro (CATALAN, 1999, p. 70).

Diante das dificuldades e desafios com os quais se depara no seu dia-a-dia, o ser

humano percebe-se frágil para lidar com tais situações que se tornam ameaças aos seus

desejos, sonhos e ao seu instinto de ser feliz.

78

Devendo assumir os desafios como ser capaz de administrá-los com sua força e

sabedoria, nega-se a si mesmo para buscar auxílio na sua essência objetivada31 – tomada

como uma força exterior – num deus imaginário, fantástico, ilusoriamente fora dele, mas que

se encontra no seu interior.

Assim como o sentimento faz parte da essência subjetiva da religião, assim outras forças, atividades e potências também o fazem. Deus é estas qualidades em sua pureza. A existência delas em nosso ser individual surpreende tanto que chegamos a pensar que são uma natureza fora de nós. Atribuímo-las a um Deus objetivo e exterior. Esta é, pois, a alienação religiosa: atribuir os atributos próprios da essência humana a uma existência imaginária e estranha. Um engano! Porque é a nossa própria essência humana que temos por objeto nestes momentos. É a partir deste engano que se constitui a religião (SCHUTZ, 2001, p. 24).

A análise feuerbachiana vem mostrar que, nessa perspectiva, Deus recebe a missão de

acolher e satisfazer os desejos humanos reforçando, automaticamente, a crença de que só ele

é, de fato, capaz de realizar tamanha façanha. Paradoxalmente, tal mentalidade apenas

evidencia a soberania dos desejos humanos que no cristianismo assim como em outras

religiões sustentam a crença no divino como garantia suprema da concretização da felicidade.

Não se pode negar, portanto, que o fim da religião é fundamentalmente o ser humano.

Embora não assuma as suas necessidades em sua imediatez, procura administrá-las via

mediação ascética, através de Deus. Mas este não é o caminho, pois Feuerbach esclarece que:

A transcendência não é mais do que a fixação de um desejo hiperbólico; o divino, a máxima condensação do desejo-limite. Os deuses são os ‘pleonasmos do coração humano’, formados e fixados pelos mecanismos de reduplicação (Reduplikation, Verdoppelung) e de incremento (Augmentation, Vermebrung). Por esta razão não poderia encontrar-se em Feuerbach qualquer pensamento ou promoção da “morte de Deus”, o qual é a soma de ideais humanos, o motor coletivo de esperanças e sonhos. Esta identidade reiteram-na algumas das principais definições explicativas do divino, seja como ‘futuro antecipado’ (antizipierte Zukunft) ou como a compensação de ‘esse algo que falta’ (dieses fehlende Etwas). Em suma, como o ideal que preenche o espaço entre o não ser e o ser, acompanhado do esforço para se ser: ‘Deus é somente o ideal, a ideia, que o homem deve e quer realizar. [...] Aquilo que impulsiona os homens, os anima, os determina, os enlaça entre si, o que os torna dignos de valor e lhes dá preço por eles mesmos, é o seu princípio, o seu Deus’ (SERRÃO, 1999, p. 373).

31 Segundo Paulo Hahn, no livro Consciência e emancipação: uma reflexão a partir de Ludwig Feuerbach, o pensamento feuerbachiano “tenta demonstrar efetivamente que há uma identidade entre sujeito e objeto, isto é, que o objeto da religião é idêntico ao da consciência, ou seja, tanto os objetos espirituais como os sensíveis não são mais que a essência objetivada. Em função disso, a concepção acerca da religião deve passar necessariamente por uma transformação, ou seja, a relação que fora entendida como consciência de Deus passa a ser nada mais e nada menos que autoconsciência. Deste modo, a oposição entre indivíduo e divindade, na verdade, é uma ilusão, que não passa de oposição que existe entre o indivíduo humano e a essência humana objetivada. Assim, o Deus que o homem imagina não é o Deus verdadeiro em si mesmo, mas é um Deus que o homem pensa ser assim, porque está nas possibilidades de sua imaginação.” (HAHN, 2003, p. 101).

79

A partir do pensamento de Feuerbach, fica realçado o significado de relação32 que

existe na religião: “primeiro, como relação entre o homem e Deus; depois, como relação entre

o homem e sua essência, o gênero, o outro, até chegar a encontrar seu verdadeiro núcleo e

realização nas relações humanas.” (SOUZA, 1993, p.74).

Coincidindo a essência da religião com a consciência que o homem tem de si mesmo,

fica evidenciado que o objeto religioso está intrinsecamente presente no ser humano. Portanto,

a religião pode ser caracterizada como a consciência do infinito enquanto essência divina

mesma. Assim, vamos percebendo que a essência humana nada mais é que a essência

considerada divina, uma vez evidenciada a identidade entre consciência e própria essência.

É nessa perspectiva que Feuerbach nos leva a concluir que o homem, e é aí que reside o mistério da religião, objetiva a sua essência, em seguida constitui-se a si próprio como objeto desse ser objetivado, transformado num sujeito e numa pessoa; ele pensa-se, é o seu próprio objeto, mas como objeto de um objeto, de um ser diferente de si (HAHN, 2003, p. 104).

A antropologia feuerbachiana trabalha os aspectos constitutivos do ser e devolve ao

ser humano tudo aquilo que por ele fora transferido para a esfera do divino. Analisando o ser

na sua natureza e “reconduzindo-o ao ser sensível (sinnliches Sein) provido de determinação e

qualidades intrínsecas” (SERRÃO, 1999, p. 97), Feuerbach propõe a sensibilidade como uma

atividade fundamental em todo o processo de conhecimento e a ela atribui a força corretiva de

todo pensamento puramente especulativo.

Conclui-se, a partir desse item trabalhado, que a sugestão da negação de Deus ao invés

da negação do homem mostra que a negação do divino nada mais é senão a negação da

negação do homem, a negação de tudo aquilo que o desumaniza e o distancia de sua essência.

Daí percebe-se a importância da contribuição de Feuerbach para levar adiante a luta por uma

geração que coloque como prioridade da filosofia o ser humano.

Sua luta foi travada não somente contra a filosofia especulativa, mas também contra a

religião moderna que, como já fora pontuado, sustentava toda uma estrutura voltada para os

interesses de uma pequena classe dominante.

32 Sobre o significado de relação na religião, servimo-nos da análise do pensamento feuerbachiano feita por Draiton Gonzaga de Souza, no livro O ateísmo antropológico de Ludwig Feuerbach: “a atitude ou maneira da relação religiosa não é definida explicitamente por Feuerbach, mas, pelo contexto e valoração que lhe dá, se entende que se trata de algo sagrado, essencial ao homem, que, de uma maneira radical, realiza e expressa a essência humana, pois assim como a consciência que o homem tem de Deus é autoconsciência de Deus, assim também a consciência da essência é a autoconsciência; ou, assim como a relação com Deus era considerada constitutiva da essência humana, assim é agora considerada essencialmente constitutiva da essência do homem e de sua autoconsciência a relação com o outro, com o gênero” (SOUZA, 1993, p. 74).

80

A negação de Deus é, portanto, também a negação de uma ideologia política e social

que usufruía e ainda usufrui da alienação desenvolvida e sustentada pelas ideias religiosas que

procuram desviar a atenção do homem para as “coisas do céu”, para o gozo no paraíso celeste.

4.2 A experiência religiosa como fruto do vazio ou da tensão entre realidade e

idealidade, existência e possibilidade, finitude e superação

Será observado neste item que qualquer análise sobre a experiência religiosa requer o

estudo das motivações que brotam do íntimo do ser humano. É praticamente impossível

analisar a experiência religiosa sem procurar conhecer o universo interior e até mesmo

exterior daqueles que se refugiam nas suas crenças.

No decorrer da história humana, o homem vem procurando, de várias maneiras,

respostas para suas dúvidas e soluções para seus problemas, mas, muitas vezes, deixa de

conduzir essa busca no único caminho capaz de levá-lo ao encontro consigo mesmo.

A análise feuerbachiana sugere como pedagogia o olhar para si e para o mundo

confirmando assim a influência deste mundo sobre o universo interior de cada homem e de

todos como humanidade. Certamente tal olhar não pode negar o exercício da sensibilidade,

pois se trata de uma experiência por excelência sensível.

Na experiência religiosa percebe-se o movimento de duas forças que se atraem:

daquela que é afetada e da outra que afeta. Dá-se, portanto, a efetivação de um processo que

só pode existir graças a um impulso necessário que traduz a própria dinâmica da natureza.

Como ser de relação, o ser humano não pode ancorar-se num mundo outro que

dispensa essa dinâmica do encontro. E todo e qualquer encontro só e possível graças à

experiência sensível. Por isso, na experiência religiosa, deve-se buscar conhecer as forças

motivadoras de tal experiência para, a partir desse conhecimento, analisarmos seu poder de

influência no coração e na mente daqueles que a ela se entregam.

Para tanto, torna-se necessária a busca de compreensão daquilo que faz parte da

intimidade do ser e tal busca só é possível através da experiência sensível.

Diversamente das outras estruturas, patentes e reconhecidas por cada um em si e em todos os outros, a intimidade apenas pode ser reconhecida por cada sujeito em si mesmo. Sentida na experiência do seu próprio interior, como o sentimento do que lhe é mais próprio e exclusivamente seu, é vivenciada no movimento de introversão, na direção intencional para dentro de si. Trata-se de uma experiência eminentemente

81

sensível, pois apenas o ser sensível possui a capacidade de um acesso tão íntimo, sentindo no seu interior o emergir do seu próprio fundo como o mais profundo de si mesmo (SERRÃO, 1999, p. 294).

O que se observa a partir do pensamento de Feuerbach é que o homem, no seu íntimo,

anseia por uma vida diferente daquela que se lhe apresenta e, tomando esta vida como desafio

que lhe provoca angústia e vazio, pois se sente incapaz e sem recursos capazes de lhe tirar

dessa situação, idealiza uma vida melhor que lhe dê condições de viver na mais completa

felicidade mediante a realização de seus desejos. Assim, na experiência religiosa, o homem

busca amparo em Deus como aquele único capaz de solucionar os problemas, de dissolver as

dificuldades e de lhe dar condições para superar os desafios.

O homem não tem o sucesso de seu empreendimento em sua mão. Entre o desejo e sua realização, entre a meta e sua execução está um abismo de dificuldades e possibilidades que podem frustrar o intento. Por mais excelente que seja meu plano de batalha, vários acidentes, tanto naturais quanto humanos, uma tempestade, uma perna quebrada, a chegada casualmente tardia de um esforço e acidentes semelhantes podem frustrar meu plano. Por isso o homem, através da fantasia, preenche esse abismo entre a meta e a sua execução, entre o desejo e a realidade, com um ser de cuja vontade ele julga dependerem todas essas circunstâncias e cujo favor basta que ele implore para se certificar, em sua imaginação, de um desenlace feliz para seu intento, da realização de seus desejos. O homem não tem sua vida em suas mãos, pelo menos incondicionalmente; qualquer causa externa ou interna, ainda que seja apenas o rebentar de uma veiazinha em minha cabeça, pode acabar de repente com minha vida, pode me separar da mulher e dos filhos, dos amigos e parentes sem eu querer nem saber. Mas o homem quer viver; a vida é pois o cerne de todos os bens! Por isso transforma o homem (por causa de seu instinto de conservação ou por causa de seu amor à vida) espontaneamente esse desejo num ser que tem olhos, como o homem, para ver suas lágrimas, e ouvidos, como o homem, para ouvir seus lamentos (...) (FEUERBACH, 1989, p. 170).

Fazendo a experiência do seu próprio interior, descobrindo e sentindo o que lhe é

exclusivamente seu, o ser humano acaba por descobrir que sua presença neste mundo é

marcada por situações extremamente inesperadas e desafiadoras que lhe cobram ações e

reações à altura de sua capacidade de lidar com o complexo e assustador. Mas, enquanto

estiver se protegendo das intempéries da vida, servindo-se da religião para esquivar-se da

missão de protagonizar humanamente sua história, o homem religioso estará desumanizando-

se ao colocar como modelo de homem, de vida e de mundo aquilo que não existe a não ser na

idealização.

Quando assim idealiza, o homem religioso revela o que ainda não é ou o que ainda não

possui e, por isso, entrega-se ao culto de um ideal tomado como superior e oposto à sua

própria natureza. Assim afirma Feuerbach:

82

O ideal tal como é objeto da religião, assim como o da cristã, não pode ser nosso modelo. O Deus, o ideal religioso, é sempre uma entidade humana, mas de maneira a se filtrar dela uma série de atributos do homem real; não é a essência humana total, é apenas alguma coisa do homem, algo arrancado ao todo, um aforismo da natureza humana (FEUERBACH, 1999, p. 213).

Na ótica feuerbachiana o termo ideal revela todo um universo de desejos considerados

como tradução fidedigna do anseio por um mundo que ainda não existe, mas que pode existir.

Até aqui nada de mais. O problema surge quando o homem passa a acreditar que esse outro

mundo possível seja real, mesmo fora da realidade.

Tudo o que o homem ainda não é realmente mas um dia acredita e espera ser, tudo o que é portanto apenas objeto de desejo, do anseio e, exatamente por isso, que não é objeto da contemplação sensorial mas apenas da fantasia, da imaginação, tudo isso chama ele de ideal, em alemão um Ur-, Vor- e Musterbild, isto é, uma imagem original, imagem primitiva e um modelo. O Deus de um homem ou de um povo (pelo menos de um povo que não permanece sempre, como o rude, num mesmo lugar, no solo da rudeza) que quer progredir e que tem por isso uma história (porque a história só tem sua origem no instinto e no anseio que o homem tem de se aperfeiçoar, de conseguir para si uma existência razoável), o Deus de um tal povo nada mais é que o seu ideal. “Deveis ser perfeitos como vosso Pai no céu é perfeito”, lemos no Novo Testamento. E no Antigo Testamento lemos: “Eu sou o Senhor vosso Deus, por isso deveis vos santificar para que vos torneis santos, porque eu sou santo”. Quando sob religião nada mais se entende do que o culto de um ideal em geral, tem-se total razão quando de desumana a supressão da religião, porque é necessário que o homem estabeleça uma meta, um modelo para seu anseio (FEUERBACH, 1989, p. 213).

A análise feuerbachiana do ideal aponta para o potencial humano ainda não conhecido

e, por isso, não administrado como força motriz para todo e qualquer investimento na

construção de um futuro melhor a partir do protagonismo consciente que coloca como meta a

transformação deste mundo.

Em Preleções sobre a essência da religião, Feuerbach afirma que toda crença ou

concepção só se mantém ou é tida por verdadeira se, de fato, tornar-se consolo, corresponder

ao amor próprio do ser humano. Assim, quando o homem se vê desafiado pelas forças da

natureza, pelas circunstâncias diversas que nele desencadeiam qualquer tipo de tensão seja

entre realidade e idealidade, entre existência e possibilidade ou entre finitude e superação,

busca – na experiência religiosa – a proteção do transcendente, sendo procurado e adorado

como “ser antropomórfico, que ama o homem, um ser com vontade e razão, que dirige e rege

a natureza de uma maneira conveniente para o homem, que toma o homem em sua especial

proteção, protege-o dos perigos que o ameaçam a todo instante.” (FEUERBACH, 1989, p.

173).

A experiência do real, da existência e da finitude, podendo ser tomada como

experiência contrária à religiosa, é apontada por Feuerbach como o caminho para a superação

83

dos medos do homem religioso e como reação ao esvaziamento do ser humano que se dá com

a projeção num ser transcendente. Por isso afirma:

Quando o homem abre os olhos e encara a realidade como ela é, sem se ofuscar com concepções religiosas, então o coração se revolta contra a ideia de providência, por causa do partidarismo com o qual ela salva uns e deixa sucumbirem os outros, determina uns à felicidade e à fortuna e outros à infelicidade e à miséria, por causa de sua crueldade ou pelo menos inação com a qual submete milhões de homens aos mais terríveis sofrimentos e martírios. Quem pode conciliar os terrores do despotismo, da hierarquia, da crença e da superstição religiosa, da justiça criminal pagã e cristã, os terrores da natureza, assim como a peste ou a cólera, com a providência divina? Os teólogos e filósofos crentes empenharam de fato toda sua inteligência para conciliar essas contradições evidentes da realidade com a ficção religiosa de uma providência divina; mas é muito mais condizente com a dignidade de Deus ou de um Deus, negar categoricamente sua existência do que tentar garantir penosamente sua existência através de vergonhosos e tolos sofismas e truques que tramaram os teólogos e filósofos deístas para justificar a providência divina. É preferível sucumbir honradamente do que continuar a viver na desonra (FEUERBACH, 1989, p. 173).

A relevância da contribuição de Feuerbach traduz-se pela sua preocupação e interesse

em conscientizar o ser humano da sua força e importância na mudança dos rumos da história

da humanidade, pois ao evidenciar a potencialidade humana para execução de projetos

totalmente independentes da crença num ser divino que tudo comanda segundo seus critérios,

coloca nas mãos do homem os instrumentos para a construção de novos caminhos, tendo

agora como critérios o bem-estar da sociedade.

As consequências da escolha feita pelos que se deixam guiar pelo sentimento religioso

podem ser sentidas e detectadas no dia-a-dia da sociedade. Prisioneiros de um mundo

idealizado, deixam de honrar seus compromissos como cidadãos deste mundo. “A convicção

de que exista fora do homem um Ser onipotente e onisciente induz o homem a considerar já

realizada em Deus toda perfeição, e, portanto, o leva a desistir de tentar realizá-la no mundo

humano com a cultura, as artes e as ciências.” (ROVIGHI, 1999, p.73).

Na tensão entre realidade e idealidade o pensamento religioso comete um “pecado”

contra a humanidade ao sugerir refúgio no obscurantismo da religião33, transformando os

33 No colóquio comemorativo dos 150 anos da publicação de “A essência do cristianismo”, intitulado Pensar Feuerbach, José Barata-Moura escreve no capítulo Esclarecer significa fundamentar. Alienação e alteridade em Das wesen des christentums de Ludwig Feuerbach: “E Feuerbach tira mesmo, num texto de 1842, a consequência política que decorre da imolação – não esclarecida – nos altares da obscuridade: ‘Quem é servo dos seus sentimentos religiosos não merece também politicamente senão ser tratado como servo. Quem não tem poder sobre si próprio também não tem a força, não tem o direito, de se libertar da pressão material e política. Quem em si próprio se deixa dominar por seres obscuros, estranhos, permanece também exteriormente na obscuridade da dependência de poderes estranhos. E quem, portanto, fala a favor do sentimento religioso – em oposição à liberdade do pensar – é um inimigo das “luzes” e da liberdade, fala a favor do obscurantismo’.” (BARATA-MOURA, 1993, p. 50-51).

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homens em inimigos deles mesmos, forçando-os a deixarem de lado ou a condenarem a

liberdade de pensar e de agir, pois tal liberdade contraria as determinações divinas.

Feuerbach vai justamente mostrar que “a religião é um artifício humano que joga as

aspirações de felicidade do ser genérico humano para o além, fazendo com que o aquém

permaneça tal e qual está.” (SCHUTZ, 2001, p. 57).

Observa-se a importância da análise feuerbachiana da religião para a transformação da

sociedade, pois mostra que aquilo que o homem religioso procura alcançar através da

experiência religiosa – considerada como caminho para a superação de suas incapacidades – é

apenas e simplesmente reflexo de suas capacidades próprias como ser genérico e que o

sentimento do homem perdido de si na verdade realça as potencialidades do ser humano

entendidas como autoconsciência. Assim, Deus passa a ser considerado como um erro

didático que auxilia o ser humano a perceber suas qualidades, verdade e virtude.

Deus, nada mais é do que a essência humana, ou seja, a espécie humana, a humanidade intrínseca dos homens particulares abstraída deles e apresentada como se existisse em si, fora de todos, como se fosse a verdade transcendente. Deus é então um erro psicológico; erro este que, contudo, tem seu valor didático, pois serve para expor aos olhos dos homens a verdade e a virtude gerais deles mesmos, porque não é mais do que o conjunto das boas qualidades humanas reunidas num objeto aparentemente real que passa por ser a imagem da perfeição de que carecemos. A Imitação de Cristo, nessa ordem de ideias, ao pregar a renúncia do homem, em verdade ensina e prega a imitação do Homem. Cristo, quando se fizer a nova revolução de Copérnico, há de ser cultuado como o Homem Verdadeiro feito Deus e não como o Deus Verdadeiro feito Homem. A “redenção dos homens” não significa, por conseguinte, o reatamento da aliança com Deus, mas antes o reatamento da aliança entre os homens, aquela que deve ter vigorado no Éden antes da “queda”. O pecado original deve ser reinterpretado, a partir dessas razões como a “alienação” dos homens pela “abstração” do homem enquanto espécie, do homem universal na figura de Deus. A essência do cristianismo, o enigma revelado de Cristo, é o homem, não é Deus. Esta seria a verdadeira mensagem da religião universal cristã, já oculta nas profecias do Messias, que a faz superior às demais religiões, pois não se prende a povos particulares nem a deuses nacionais, mas ao homem universal, à espécie humana vista como Deus (ARTHUR, 2006, p. 73-74).

O homem, portanto, é sua própria religião, seu próprio Deus. O único responsável pela

transformação de sua história e da história de seu meio. Esta consciência trava, portanto, uma

luta contra o caráter ilusório, fantasioso da religião que sempre surge a partir das necessidades

humanas. A religião, como bem nos mostra Feuerbach, “deixa de assumir as necessidades

humanas na sua imediatez e crueza, mas responde-lhes com a mediação ascética, de Deus, o

rodeio objetivador descrito antes, isto é, soluciona-as ilusoriamente.” (SOUZA, 1993, p. 69).

Percebe-se a partir das análises de Feuerbach que, na experiência religiosa, o homem

desvia o seu olhar das necessidades deste mundo para focá-lo num mundo idealizado,

entendido como superação da realidade concreta. A tensão entre realidade e idealidade vivida

85

por quem participa da religião parece ser superada mediante a crença de um poder

infinitamente superior daquele que comanda o imaginado além e que promete um mundo

vindouro quimérico. Assim, para Feuerbach:

A única e máxima mudança possível a um ser real é o seu autoesclarecimento. Este se dá seja por meio da conscientização de seu conteúdo essencial (pela educação, por exemplo), seja através da desalienação recuperadora desse mesmo conteúdo humano (pela crítica da religião ou da filosofia); qualquer outra transformação que o leve para fora de si mesmo, a uma experiência nova, só pode ser alcançada ilusoriamente como resultado de um processo de abstração, que é tarefa urgente da filosofia desmentir. Toda modificação enriquecedora se dá, pois, exclusivamente no nível da consciência do homem, no lado subjetivo de sua realidade, em virtude da razão, do amor e da vontade (ARTHUR, 2006, p. 77-78)34.

A consideração deste tópico, que toma a experiência do transcendente como resultado

do vazio ou da tensão entre existência e possibilidade, realidade e idealidade, finitude e

superação, leva em consideração o tipo de relação que o indivíduo mantém com a vida.

Relação esta que traduz pura infelicidade, brotada do sofrimento35 que, por sua vez, leva este

ser infeliz a buscar o divino e, neste divino, a buscar uma compensação psicológica de

satisfação e meio de consolação.

Termos como infelicidade (Ungluck) e carência (Bedurfnis), como indigência (Not) e miséria (Elend) acentuam a passividade e o sofrimento como raiz e a origem ou, o que é equivalente, como a gênese da gênese da religião. O sujeito fecha-se em si, aparta-se do mundo e dos outros, não devido ao desconhecimento teorético do gênero humano ou uma relação inadequada e não consciente com a sua essência, mas em virtude de uma relação infeliz com a vida. Apenas o sofrimento, que desponta numa subjetividade profundamente vulnerável e implantada na vida, e não indiferente a ela, pode, em última instância, provocar uma situação de hiper-subjetivismo. Porque sofre, o homem mais infeliz é também o mais subjetivo. Não que sua consciência reflita diretamente e de modo transparente a existência, mas precisamente por refletir o modo como ela foi já subjetivamente vivenciada e experimentada no coração (Herz) e no ânimo (Gemut) (SERRÃO, 1999, p. 69).

A crítica feuerbachiana da religião se dá em decorrência do que considera uma ameaça

à autonomia humana. O homem não pode simplesmente resignar-se frente aos desarranjos da

34 Sobre o processo de abstração exposto nesta citação, o mesmo comentador de Feuerbach assim esclarece: “abstrair implica, pois, situar a natureza fora dos seres naturais, a espécie fora dos espécimes individuais, a essência fora da existência, a humanidade fora do ser humano. Fora de cada um e entre todos não há, portanto, nada: a totalidade se encontra no ser individual.” (ARTHUR, 2006, p. 74). 35 Sobre a questão do sofrimento e sua relação com a religião, temos o seguinte comentário de Adriana Conceição Guimarães Veríssimo Serrão: “A associação entre religião e sofrimento remonta à Introdução à Lógica e Metafísica, ressalvando a diferença de que, para Feuerbach, espiritualista dos anos 30, a filosofia não tinha que se preocupar com o vale de lágrimas e a miséria dos homens: ‘os homens infelizes são, como se sabe, habitualmente os mais subjetivos; a infelicidade, a pressão e a opressão do exterior conduzem o homem que só fixa o negativo da consciência eleva-se diretamente à intuição do negativo, como um absoluto.’ Einl. Logik, 102-103.” (SERRÃO, 1999, p. 68-69).

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vida, pois assim procedendo deixará de descobrir cada vez mais sua força e seu potencial

transformador. E, assim, continuará desacreditado de si e sem “fé” na humanidade.

Feuerbach critica a religião por não dar a devida importância à vida presente pondo toda a esperança de libertação no céu. Por isso o homem religioso, segundo ele, não se compromete com a mudança e transformação, com a justiça, o sofrimento e a miséria deste mundo. A religião leva-nos a aceitar todas essas coisas resignadamente sem lutar contra elas, projetando nossa felicidade no outro mundo (ZILLES, 1991, p. 102-103).

O pensamento de Feuerbach se desenvolve dentro do que se pode considerar filosofia

materialista, pois reconhece e ressalta a autoridade da verdade contrapondo o conceito

materialista deste mundo e a realidade desta vida à experiência religiosa – tomada como

ilusão –, reforçando assim a ideia de que só a verdade da vida deve constituir a base da

humanidade e da moralidade.

O humanismo feuerbachiano consiste em ajudar o homem a encontrar seu lugar na vida e também nela estimular o desejo de dedicar seus esforços diretamente à humanidade, de sorte que sua vida, plena de riquezas espirituais, se torne uma felicidade terrena, e não um mero preparativo para a recompensa no outro mundo. Feuerbach propõe o amor ativo pelo ser humano e a incompatibilidade com as ilusões, mitos e ideias que o impedem de viver uma vida revestida de significação social. Pois a necessidade de fazer o bem aos outros e de não pensar apenas em seus próprios interesses exige a emancipação da consciência do homem, que impõe a necessidade de libertá-lo de muitas ilusões e superstições acerca da sociedade justificada teologicamente (HAHN, 2003, p. 77).

Não se pode negar que a experiência religiosa propicia certas satisfações àqueles que a

fazem. Feuerbach não nega tal verdade facilmente constatada no cotidiano daqueles que

acreditam na oferta de alívio nas angústias e aflições, consolo diante das provações,

minoração do sentimento de culpa, perdão das faltas, existência do mundo celestial, promessa

de vida eterna.

O que a crítica feuerbachiana contesta é a maneira utilizada pela religião ao lidar com

este mundo, quando esta o descarta. As promessas religiosas não podem tomar o lugar da

realidade por mais dura que seja, mesmo porque negar a realidade é negar a condição humana

enquanto parte integrante deste mundo. Feuerbach evidencia a ótica religiosa acerca do

mundo.

O mundo é nada para a religião – só a teoria revela o mundo na sua magnificência, o mundo que é a totalidade do real; as alegrias teóricas são as mais belas alegrias intelectuais da vida, mas a religião nada sabe das alegrias do pensador, das alegrias do investigador da Natureza. Falta-lhe a intuição do universo, a consciência do infinito real, a consciência do gênero. Só em Deus ela supre a falta da vida, a falta de um conteúdo substancial que na plenitude infinita da vida real se oferece aos olhos

87

do curioso homem de teoria. Deus é para ela o substituto do mundo perdido – Deus é para ela a intuição pura, a vida da teoria (FEUERBACH, 1994, p. 238).

A proposta feuerbachiana intenta trabalhar com o ser humano a partir de uma

perspectiva libertadora, ou seja, procurando fazer com ele descubra sua capacidade de tornar-

se solidário com os demais, visando à libertação da humanidade de toda e qualquer estrutura

ou crença no presumível mundo do além. Considerando apenas o que pertence ao outro

mundo como sendo de Deus, a consciência religiosa induz o homem a deixar de acreditar

neste mundo, tomado como empecilho para a satisfação humana.

A consciência religiosa liga imediatamente o mundo a Deus; deduz tudo de Deus, porque não toma nada como objeto na sua particularidade e realidade, nada é para ela objeto como objeto da teoria. Tudo provém de Deus – e isto basta, satisfaz completamente a consciência religiosa (FEUERBACH, 1994, p. 270).

Feuerbach procura incentivar o empenho do ser humano num projeto verdadeiramente

humano, que tenha como interesse maior aquilo que, de fato, possa renovar a condição

humana sem apelar para o divino. Quer que o ser humano se redescubra a partir dele mesmo,

da realidade, para que – uma vez redescoberto – se liberte de toda crença que o afaste de sua

natureza. É importante observar que Feuerbach, no prefácio à segunda edição (1843), assim

afirmava: “É certo que o meu livro é negativo, negador, mas – note-se bem – apenas contra a

essência não humana, não contra a essência humana da religião.” (FEUERBACH, 1994, p.

428).

Conclui-se, a partir do que fora trabalhado neste item, que tratar da experiência

religiosa é tratar da experiência humana, pois “na religião, ao referir-se a Deus, o homem

volta a referir-se às suas necessidades, tanto em sentido superior como inferior.”

(FEUERBACH, 1994, p. 239).

O mundo como se nos apresenta com suas mazelas, desafios, infortúnios tornou-se a

motivação primeira daquela experiência que descredita a crença do ser humano nele mesmo e

no aquém. Assim, “a insuficiência humana se compensa num eu pessoal deificado, que é

resposta também às dores, misérias, sofrimentos, angústias, pressões da vida social e política e

ao desejo de vida melhor após a morte.” (HAHN, 2003, p. 116).

Mas, conforme já ressaltado, ao referir-se ao divino como resposta, proteção e amparo

frente às circunstâncias que ameaçam e impedem a felicidade, o homem acaba por revelar

seus sentimentos, suas carências, evidenciando a experiência do divino como objetivação

sentimental e fantástica de seus ideais.

88

4.3 Ruptura humana com sua estrutura interior como causa da projeção no

transcendente

Neste último item da dissertação já se evidencia a conclusão do pensamento de

Feuerbach ao procurar compreender a religião a partir dos sentimentos, da experiência

sensível e do conflito existente na dinâmica relacional homem-mundo.

A antropologia feuerbachiana nada mais procurou fazer senão devolver ao homem as

suas potencialidades, procurando arrancá-las de um deus que só pode existir graças aos

atributos humanos que lhe são ingenuamente atribuídos e, por isso, considerados como

distintos e separados da própria essência humana.

Este item quer realçar o grande perigo da desumanização que se efetiva naqueles que

projetam no transcendente aquilo que pertence somente a eles, a este mundo, a esta realidade.

É nessa projeção que o homem aliena-se de si mesmo, desencadeando o processo de ruptura

com sua estrutura interior, alimentando assim a projeção num ser divino.

Não é possível iniciar este item sem fazer menção ao estranhamento que a religião

provoca no ser humano, uma vez que o impede de descobrir-se como protagonista de sua

história e da história da sociedade. Isso se deve ao caráter dual da religião que, ao mesmo

tempo em que expressa os desejos e potencialidades humanas – conforme trabalhado no item

anterior –, também aliena o ser humano.

É expressão das potencialidades humanas porque só é possível no ser humano. O fato de os próprios atributos divinos serem apenas atributos humanos revela, em parte, esta potencialidade fantástica contida na religião. A religião aparece, pois, como sendo um momento essencial para que o homem dê-se conta de suas potencialidades. Mas é também expressão de alienação e estranhamento (Entfremdung) humano, pelo fato de o ser humano não ser ainda consciente de que, ao se relacionar com Deus, está apenas relacionando-se consigo mesmo. Desta forma, o próprio ser humano se ilude e constrói um ser objetivo que parece estar independentemente constituído. E, uma vez independente, passa a determinar o próprio homem, ou seja, uma vez considerados como independentes e atribuídos a um ser objetivo, os atributos humanos tomam formas sobre as quais a humanidade não parece mais ter poder. Por isto, os homens submetem-se a estas estruturas e deixam de perceber-se como protagonistas, passando a agir por mera submissão e passividade (SCHUTZ, 2001, p. 176-177).

À medida que o ser humano vai se estranhando, ou seja, deixando de descobrir, de

valorizar e de administrar suas potencialidades, consequentemente vai se desumanizando, pois

vai se distanciando de sua essência. A consequência imediata desse estranhamento é a ruptura

que opera com seu interior uma vez que coloca acima dele e de suas relações um ser

89

transcendente, deixando de ir até os fundamentos e possibilidades da vida. A contribuição de

Feuerbach vem justamente colocar o fenômeno religioso como expressão das possibilidades,

dos desejos e necessidades do ser humano neste mundo, nesta vida.

O homem projeta a idealização de suas qualidades próprias em um ser transcendente. Feuerbach nega, pois, o correlato metafísico da fé, não a projeção. Ao projetar a si mesmo, o homem aliena-se de si mesmo, gerando a divisão em si mesmo. A alienação religiosa, segundo ele, é tomar como Deus algo que, na verdade, é apenas expressão do próprio homem, ilusão, ídolo (ZILLES, 1991, p. 103).

A antropologia apresentada por Feuerbach busca a unidade entre o eu, o tu e nós, entre

indivíduos e espécie, entre história universal e história individual. Sobre o pensamento está o

primado do amor. Segundo Feuerbach, essa unidade se encontra no próprio homem, que,

tendo consciência de si mesmo, coloca sua própria essência como objeto de sua consciência.

“A religião nasce onde o homem considera essa sua essência como separada de si como Deus.

Neste caso, Deus é a projeção daquilo que o homem deseja ser. Nada mais.” (ZILLES, 1991,

p. 106).

A ruptura humana com sua estrutura interior, que desencadeia o processo de

esvaziamento36 de si, revela o que é Deus, ou seja, Deus é o que o homem nega em si e no

mundo para afirmar Nele. Assim, segundo a análise feuerbachiana, a questão do ser ou não

ser de Deus é na verdade a questão do ser ou não ser do homem. Assim:

Desde a perspectiva de que toda visão religiosa leva implícita uma projeção humana coloca-se um limite aos fundamentalismos e dogmatismos religiosos, que não assumem a relatividade do conhecimento humano e que identificam as representações de Deus como próprio Deus. Ao mesmo tempo, a partir de sua metafísica da subjetividade, esclarece a inevitabilidade da mediação humana e seu papel em toda proposta religiosa, como sujeito finito que fala do infinito e que inevitavelmente o torna finito e humaniza (DIAZ, 2003, p. 160)37.

36 Sobre esta questão, afirma Adriana Veríssimo Serrão na obra A humanidade da razão: “No termo deste processo de gradual esvaziamento, dá-se a inversão final do ser com o nada; e nesse momento final: ‘o sujeito só conhece as sombras, as ilusões exteriores superficiais do mundo real, porque em si mesmo é superficial e oco; toma as sombras do mundo pelo próprio mundo; daí que o mundo verdadeiro e real seja necessariamente para ele apenas uma sombra, a imagem onírica e a peça de fantasia do futuro’.” (SERRÃO, 1999, p. 29). 37 É interessante ressaltar o comentário de Juan Antonio Estrada Dias quanto à reação teológica e eclesiástica cristã ante o pensamento feuerbachiano, no livro Deus nas tradições filosóficas, volume 2: “Não se deve cair, no entanto, na armadilha de superar a crítica feuerbachiana postulando uma revelação “pura” de Deus, que se contraporia ao conhecimento humano como mediação inevitável, como defendia a teologia dialética para impedir a projeção feuerbachiana. A heterogenidade absoluta entre fé e razão não é um recurso para escapar da impugnação feuerbachiana. Mas, ao contrário, implica aceitar a acusação de irracionalismo fideísta que só salva a fé religiosa à custa de separá-la radicalmente da razão e que não supera as armadilhas da subjetividade, até ao separá-la dessa presumível revelação pura, mas que simplesmente a ignora. Boa parte da reação teológica e eclesiástica cristã ante a proposta de Feuerbach segue a linha de uma separação clara entre o âmbito da revelação e a fé, dentro da qual inscrevia-se um magistério autoritário, sem necessidade da argumentar e convencer, que interpretaria e atualizaria corretamente a presumível revelação pura. O fideísmo se contrapõe à crítica

90

A crença em Deus reforça a preocupação de Feuerbach em relação ao esvaziamento do

homem, pois uma vez voltando sua atenção e direcionando o seu ser para o divino, fica

incapacitado de lidar com sua essência ao projetá-la num além inexistente que deforma a sua

humanidade e o mundo no qual vive e o transforma em inimigo dele mesmo e do aquém.

Na religião, o homem separa-se de si mesmo, mas apenas para voltar sempre ao mesmo ponto donde partiu. O homem nega-se, mas apenas para se pôr de novo, bem entendido, numa forma agora glorificada: quanto mais se rebaixa aos seus olhos, tanto mais se eleva aos olhos de Deus. E nega-se, porque o homem positivo, o positivo da Humanidade é Deus; rebaixa-se porque Deus é o homem elevado. Deus é homem, por isso o homem tem de ter de si mesmo uma ideia tão depreciativa quanto possível. Não precisa de ser nada para si, porque o seu Deus já é aquilo que ele é. Deus é o seu eu, por isso, ele tem de se negar. Deste modo o homem nega também o aquém, mas apenas para voltar a pô-lo, no fim, como além (FEUERBACH, 1994, p. 218-219).

A religião, portanto, gera um homem cindido38, interiormente empobrecido, levando

“à reduplicação e à multiplicação, consistindo num processo de alienação e depauperamento

do ser humano. Apresenta-se claramente como autoestranhamento e autoalienação, não de

Deus, mas de cada homem individual.” (SOUZA, 1993, p. 70).

Percebendo que na experiência religiosa o homem vai rompendo com sua estrutura

interior e, em decorrência, projetando-se no divino, Feuerbach sugere um processo de

desalienação, ou seja, procura reduzir a essência sobre-humana e racional de Deus, fruto dessa

projeção, à essência natural e imanente do homem. Considerando que Deus – o ideal religioso

do cristão – é o espírito, Feuerbach afirma o seguinte:

O cristão combate sua essência sensorial; ele nada quer saber do instinto “animal” vulgar do comer e do beber, do instinto “animal” vulgar do amor sexual e filial; ele considera o corpo como uma mácula e uma ignomínia que está agarrada desde seu

racionalista moderna, a quem se nega competência para entrar no âmbito incomensurável da revelação e da fé. Esta postura, que hoje inspira boa parte dos fundamentalismos e tradicionalismos cristãos, paga-se com o preço da desautorização da fé, da religião e da teologia, que ficam confinados ao campo dos sentimentos e emoções, carentes de valor cognitivo, ou ao âmbito do irracional patológico que entra em contradição com a maioridade proposta pela Ilustração. O fideísmo e o pietismo protestantes, e o tradicionalismo e a potenciação autoritária e antimodernista do magistério hierárquico católico, foram duas das reações cristãs à proposta epocal de Feuerbach.” (DIAZ, 2003, p. 160-161). 38 Sobre a questão da cisão existente naquele que se entrega à crença no mundo celestial ou que deposita sua esperança no além e como tal crença reflete negativamente no ser humano, servimo-nos do comentário de Adriana Veríssimo Serrão: “confrontado com o absoluto da sua intimidade, cindido num eu essencial e puro, que é tudo, e num eu corpóreo e empírico, que é nada, também o indivíduo se torna um nada e opõe-se a si-mesmo como o seu contrário, como o nada de si-mesmo. Sobre a irrealidade deste “dúplice nada”, do mundo e do indivíduo, teria inevitavelmente de se impor a ideia de uma realidade diferente, a ficção compensatória de um mundo melhor. A representação da imortalidade pessoal, em cuja origem parece encontrar-se a declaração orgulhosa da indestrutibilidade e da sobrevivência ilimitada do indivíduo, acabará, no fundo, por conduzir à sua desintegração, uma vez que concede apenas à alma, uma forma vazia e indeterminada, a esperança de poder vir a perdurar eternamente no espaço impreciso de um além e no tempo indefinido de uma segunda vida.” (SERRÃO, 1999, p. 29).

91

nascimento a sua dignidade, a sua honra de ser em si um ser espiritual, como uma decadência e uma negação, necessária apenas temporariamente, de sua essência verdadeira, como uma roupa suja de viagem, como um incógnito vulgar de seu estado celestial (FEUERBACH, 1989, p. 216).

A proposta de Feuerbach almeja, como resultado do processo de desalienação, que o

homem passe a perceber-se como único Deus para ele mesmo, pois Deus – conforme proposto

na religião – é a negação do homem. Dessa maneira, Feuerbach propõe, “com seu ateísmo,

negar a negação do homem. Afirma: ‘Eu nego Deus. Isto para mim significa: nego a negação

do homem’.” (SOUZA, 1993, p. 71).

Torna-se importante ressaltar que Feuerbach, ao combater a ruptura do homem com

sua estrutura interior, acaba por demonstrar outra contradição na religião, ou na crença no

divino:

Na religião, o homem objetiva a sua própria essência secreta. É preciso, portanto, demonstrar que também esta oposição, este desacordo com o qual a religião começa, é um desacordo do homem com sua própria essência. Aliás, a necessidade interna desta demonstração resulta já do seguinte fato: se a essência divina que é objeto da religião fosse efetivamente uma essência diferente da humana, não poderia dar-se qualquer cisão, qualquer desacordo. Se Deus for de fato outro ser, que me importa a sua perfeição? A cisão só se dá entre seres que estão desunidos, mas que devem ser um só, que podem ser um só e que, por consequência, na essência, na verdade, são um só. Partindo desse princípio geral, aquela essência da qual o homem se sente cindido tem de ser uma essência que lhe é inata, embora tenha de ser ao mesmo tempo de uma natureza diferente da essência ou da força que lhe confere o sentimento, a consciência da unidade e da reconciliação com Deus ou, o que é o mesmo, com ele próprio (FEUERBACH, 1994, p. 41-42).

Outra questão que se apresenta e que coloca outra contradição é a seguinte: apesar de

Deus ser considerado todo poderoso, absoluto, de imperar sobre a criação, não se pode negar

que existe uma autonomia para as coisas fora dele. Mesmo procurando romper consigo

mesmo, o homem – na projeção do divino – não consegue abandonar a humanidade e a razão,

pois o próprio “Deus pensado como extremo do homem, é a essência objetiva do

entendimento.” (FEUERBACH, 1994, p. 42).

Como trabalhar essa questão senão reconhecendo a autonomia de uma das esferas?

Feuerbach quer mostrar que uma escolha deve ser feita e esta não pode ser outra senão a do

reconhecimento da autonomia do mundo, pois caso seja admitida a autonomia divina o mundo

torna-se então desnecessário, nulo. Por isso afirma:

Certamente está essa contradição na própria essência da teologia; porque, se existe um Deus, o mundo é desnecessário, e vice-versa. Como podem, pois essas entidades que se excluem mutuamente se conciliarem e se unirem em suas atividades? A atividade de Deus anula a atividade do mundo, e vice-versa. Se eu fiz algo, não foi Deus que o fez e, se foi Deus que o fez, não fui eu que fiz. Um exclui o outro. Como

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cabe aqui a concepção do intermediário? A concepção de que Deus realizou isto através de mim? Uma autonomia não admite intermediário. Em síntese, pretender deixar que Deus e o mundo existam e ajam ao mesmo tempo leva às mais absurdas contradições, aos mais ridículos sofismas e artimanhas, como a história da teologia o provou de sobra na doutrina do chamado Concursus Dei, a colaboração de Deus nas ações humanas livres. (FEUERBACH, 1989, p. 137).

A leitura feuerbachiana do divino quer nos mostrar o perigo da façanha realizada por

aqueles que nele acreditam ao tentarem romper com sua essência – na experiência religiosa –

distinguindo entre o espírito criador, perfeito e infinito e seu espírito humano como sendo

imperfeito e limitado39. Assim, “mediante o caráter alienante da religião, o ser humano

considera-se um nada, ignorância, fraqueza, submissão e privação. Assim, o homem tende a

levar ao extremo seu espírito de renúncia.” (HAHN, 2003, p. 70).

Ao tomar o espírito humano como limitado, o ser humano se percebe numa posição

aquém do que deseja e, por isso, procura desligar-se dessa limitação pressupondo e

idealizando um espírito ilimitado, infinito e perfeito fora dele. Assim analisa Feuerbach:

Por ser então para o cristão o espírito, o ser sensível, pensante, voluntário, seu ser supremo, seu ideal, transforma ele esse ser no ser primeiro, na causa do mundo, isto é, ele transforma seu espírito num ser objetivo, existente fora dele. Deus, diz o cristão, Deus, o espírito objetivado, concebido como existente fora do homem, criou o mundo por sua vontade e razão. Mas o cristão distingue entre esse espírito criador, perfeito e infinito e seu espírito humano em geral como sendo o espírito imperfeito, limitado, finito. Esse processo da distinção, essa conclusão que leva do espírito “finito” para um espírito infinito, essa prova da existência de um Deus, isto é, aqui de um espírito perfeito, é a psicológica. Enquanto a chamada prova cosmológica parte do universo em geral, a prova fisiológica ou teleológica parte da ordem e da conexão ou finalismo da natureza, parte a prova psicológica, que é a que caracteriza a essência do cristianismo, da Psyché ou da alma, do espírito do homem (FEUERBACH, 1989, p, 217-218).

Percebe-se, portanto, que o que é considerado experiência do divino na verdade trata-

se de uma objetivação sentimental e fantástica dos ideais humanos, do homem ideal. A

tentativa do homem em romper com sua estrutura interior é contraditória, pois tal estrutura é a

causa primeira, criadora de Deus, só que de maneira objetivada. Fica mais clara a análise de

Feuerbach quando apresenta Deus, esse espírito, como o desejo realizado que o homem possui

de ser um espírito infinito.

39 Em Preleções sobre a essência da religião, Feuerbach faz a seguinte consideração sobre esta questão do espírito humano: “O deus pagão é abstraído da natureza, surgido da natureza; o Deus cristão é um Deus que surge da alma do espírito, é abstraído do espírito. A conclusão é esta: o espírito humano existe, não podemos duvidar de sua existência; existe algo invisível incorpóreo em nós que pensa, quer e sente; mas o saber, querer e poder do espírito humano é falho, limitado pelos sentidos, dependente do corpo; o que é limitado, finito, imperfeito, dependente pressupõe algo ilimitado, infinito e perfeito; então pressupõe o espírito finito um espírito infinito como sua base; existe um tal e esse é Deus.” (FEUERBACH, 1989, p. 218).

93

Esse espírito infinito não é exatamente o espírito do homem querendo ser infinitamente perfeito? Os desejos do homem não são levados em consideração durante o surgimento desse Deus? Não deseja o homem ser livre das limitações do corpo, não deseja ele ser onisciente, onipotente, onipresente? Não é, pois esse Deus, esse espírito, o desejo realizado que o homem tem de ser um espírito infinito? Não temos refletida nesse Deus a essência do homem? Os cristãos não concluem (mesmo os cristãos racionalistas atuais) desse tudo-querer-saber, dessa infinita sede de saber do homem (que aqui não será e não poderá ser satisfeita), da vontade infinita de ser feliz não-satisfeita por nenhum bem, nenhuma felicidade da terra, desse anseio por uma moralidade perfeita, não-maculada por nenhum instinto, não concluem, digo, a necessidade e a realidade de uma vida ou existência do homem infinita, não limitada pelo tempo desta vida e o lugar desta terra, não ataca ao corpo, à morte? Não expressam eles com isso, mesmo que indiretamente, a divindade da essência humana? (FEUERBACH, 1989, p. 218).

O que Feuerbach evidencia em suas análises é a contradição existente dentro da

própria experiência religiosa que não questiona a atitude do homem religioso que, ao buscar

romper consigo mesmo, não consegue perceber-se como ser de relação com seu interior e com

o gênero.

Não é possível afirmar haver experiência do divino quando não se aceita o humano e

não é possível viver verdadeiramente como humano quando se procura experimentar o divino

enquanto conteúdo diferente daquele que se encontra no meu íntimo. Assim pergunta

Feuerbach:

O que amo eu então em Deus e junto a Deus? O amor, o amor pelo homem. Mas quando eu amo e venero o amor com o qual Deus ama o homem, não amo eu o homem, não é o meu amor por Deus, embora indiretamente, amor pelo homem? Não é então o homem o conteúdo de Deus, quando Deus o ama? Não é o meu íntimo que eu amo? (FEUERBACH, 1994, p. 60).

O que caracteriza aquele que acredita num ser divino é a cisão que inicia e sustenta

consigo mesmo quando deixa de aceitar-se incompleto, insatisfeito, não realizado em suas

vontades e anseios. Sustentando uma situação de repulsa com seu eu incompleto e insatisfeito,

procura afastar-se de si mesmo e passa a viver de maneira irreal ao entregar-se à experiência

religiosa. “A irrealidade religiosa tem o seu começo fora da consciência, pois brota de uma

relação sofrida do homem com a existência.” (HAHN, 2003, p. 115).

A análise feuerbachiana da religião quer deixar evidenciado que a causa que

desestrutura o vínculo harmonioso entre o indivíduo e sua própria essência é a inconsciência

deste fator originário da religião, a fé – entendida como força propulsora que separa o homem

do homem.

A fé separa Deus do homem e, por isso, o homem do homem; Deus não é senão o místico conceito genérico da Humanidade, por isso a separação entre Deus e o homem é a separação entre o homem e o homem, a dissolução do vínculo

94

comunitário. Pela fé, a religião entra em contradição com a eticidade, com a razão, com o sentido simples e humano da verdade [...]. A fé isola Deus, faz dele um ser particular diferente, o amor universaliza, faz de Deus um ser comum, cujo amor coincide com o amor pelo homem. A fé cinde o homem no interior, consigo mesmo, e, por consequência, também no exterior [...]. A fé transforma a fé no seu Deus numa lei [...]. A fé acaba por ser fato exterior, fé histórica. Reside, pois, na essência da própria fé o fato de ela poder vir a ser um credo totalmente exterior, de se poderem ligar à simples fé, enquanto tal, efeitos supersticiosos e mágicos [...]. A fé separa: isto é verdadeiro, aquilo é falso. E reivindica a verdade apenas para si mesma. A fé tem como seu conteúdo uma verdade determinada, particular, que por isso está necessariamente ligada à negação. A fé é por natureza exclusiva [...]. A fé particulariza e limita o homem [...]. A fé é orgulhosa, mas distingue-se do orgulho natural pelo fato de deslocar para outra pessoa que a privilegia, o sentimento da sua superioridade, da sua soberba, mas para uma outra pessoa que é o seu próprio si-mesmo oculto, o seu instinto de felicidade personificado e satisfeito [...]. A fé é imperativa. Por isso é necessário, pertence à essência da fé ser fixada como dogma (FEUERBACH, 1994, p. 301-305).

Aquele que se entrega às ideias religiosas não procura administrar sua incompletude a

partir da compreensão do gênero40 e isso vai contra a essência do “ser genérico”

(Gattungswesen), ou seja, o homem como um ser “aberto aos outros homens ou à totalidade

do gênero humano que, na verdade, é o sujeito real dos atributos que o homem individual

projeta em Deus.” (VAZ, 1991, p. 127).

Deixa de buscar a superação dos desafios através do engajamento nas questões que

dizem respeito ao bem da sociedade e alimenta a ilusão de poder caminhar de maneira

solitária, impenetrável, desprovido de relação, a não ser aquela relação com Deus.41

Feuerbach analisa a contradição dessa relação da seguinte maneira:

Quem ama um Deus, não pode mais amar nenhum homem; esse perdeu a sensibilidade para o que é humano; mas também vice-versa: quem ama o homem verdadeiramente e de coração não consegue mais amar nenhum Deus, esse não consegue mais deixar seu sangue humano quente se evaporar no espaço vazio, em vão, na infinitude de um nada e de uma irrealidade (FEUERBACH, 1994, p. 248).

Mas como se efetiva tal relação sendo que o homem religioso toma Deus como sendo

seu extremo oposto? É diante dessa questão que Feuerbach sustenta ser a religião a

responsável pela ruptura, cisão do homem com ele mesmo.

A religião é a cisão do homem consigo: ele põe Deus face a si como um ser que lhe é oposto. Deus não é o que o homem é – o homem não é o que Deus é. Deus é o ser infinito, o homem o ser finito, Deus é perfeito, o homem imperfeito, Deus eterno, o homem temporal, Deus todo-poderoso, o homem impotente, Deus santo, o homem pecador. Deus e homem são extremos: Deus é o absolutamente positivo, a soma de

41 Trata-se aqui de um paradoxo, pois ao dirigir-se a Deus demonstra precisar do tu e assim se revela como ser que só pode realizar-se com.

95

todas as realidades, o homem o absolutamente negativo, a soma de todas as nulidades (FEUERBACH, 1994, p. 41).

Uma vez demonstrado que “o conteúdo da religião teológica é uma consciência

iludida, deficiente e provisória que poderá vir a ser desfeita” (HAHN, 2003, p. 113), devemos

então perguntar por que o homem ainda procura alhear-se e por que ainda insiste em construir

a divindade sem nela reconhecer-se. Respondendo a essa questão, Feuerbach afirma que o

homem não toma consciência de sua essência de forma direta, ele precisa se alienar, se

objetivar, se projetar. “O homem – eis o segredo da religião – objetiva-se e torna a fazer de si

objeto desta essência objetivada, transformada num sujeito; ele pensa-se, é objeto para si, mas

como objeto de um objeto, de um outro ser.” (FEUERBACH, 1994, p. 36).

O pensamento feuerbachiano alerta para o perigo do conteúdo alienante das doutrinas

teológicas, sobretudo quando cristalizado em visão exclusiva e acrítica. Dentro desse

processo, a crença se autonomiza ganhando a consistência de uma ordem própria na qual o

objeto do desejo se transforma num ente personificado.

Ao romper com sua estrutura interior, pela experiência religiosa, o ser humano passa a

considerar a existência humana como dependente desta outra ordem própria. Dessa maneira,

aquele que se entrega a essa experiência se entrega ao acaso ou ao destino, pois não se sente

responsável pela administração de sua liberdade e inteligência, nem pela condução de sua

vida ou da vida da sociedade.

A alienação na transcendência torna-se, por isso, a mais perigosa e a mais visível, dado o poder que exerce sobre o íntimo e por arrastar uma inteira concepção da vida. É típica do abandono total ao arbítrio, ao destino e ao acaso, de uma existência adiada, irresponsável e infantil, que se entrega cegamente a um poder outro (SERRÃO, 1999, p. 376).

A análise feuerbachiana busca, portanto, servir-se da psique humana individual para

procurar a raiz da ideia especificamente religiosa, pois considera o Deus dos homens

conforme seu pensamento e atitude.

Feuerbach reduz o fato de imaginar um Deus em geral à força do pensamento, porque o indivíduo encontra em si qualidades, características que facilmente podem ser elevadas a um grau infinito. Mas, ao mesmo tempo, tem consciência da impossibilidade de atingir este grau de perfeição. Então, como atribuir à espécie, ao gênero humano, fora dos limites do individual a perfeição absoluta do Saber, do Sentir e do Querer? A incapacidade de fazê-lo leva o homem religioso a projetá-la num ser fictício, a quem suplica participação nos dons que lhe atribui, Onisciência, Amor, Onipotência (HAHN, 2003, p. 113).

Feuerbach procurou com sua análise da religião e, especificamente, do cristianismo, ajudar o

ser humano a perceber que através do dissipar-se na ilusão do Deus transcendente ele pode

96

descobrir a relação essencial Eu-Tu e, nela, descobrir o caráter fundante da experiência

antropológica proposta como meta para uma nova idade do homem. Assim, buscou contribuir

para a conciliação do homem com a humanidade.

Concluindo, Feuerbach lançou o convite para o discernimento contínuo sobre a

religião, no intuito de analisar se ela está a serviço do ser humano ou se coloca o ser humano a

seu serviço, através da alienação – entendida como anulação, cegueira, ruptura, passividade,

submissão, inconsciência e não-identidade.

Tomar consciência da ruptura humana com sua estrutura interior não é tarefa fácil nem

é possível de se processar da noite para o dia. Exige um constante e perseverante exercício de

análise de nossa maneira de olhar o mundo, de olhar para si e de lidar com as situações.

Neste item procurou-se analisar a razão de o homem não querer se aceitar como é e de

não se perceber como a única origem do divino. Essa postura, característica explícita daqueles

que se entregam às experiências religiosas, evidencia a contradição que existe no interior da

própria experiência que não trabalha a consciência de si que o ser humano deve tomar para

viver de maneira mais harmoniosa com sua essência e com o mundo.

Sendo a religião um fato puramente humano, conforme nos sugere Feuerbach, não

pode continuar a serviço do que não pertence à realidade humana. Estando o homem neste

mundo, pois é filho deste mundo, não pode se entregar à ilusão de ter que servir a um Deus

que é de outro mundo. Esta seria a maior das contradições dentro da religião, pois não há

sentido em buscar satisfazer as vontades de um Deus que não tem vontade humana, porque

não é humano.

Não há razão em procurar investir numa vida além dessa, pois outra vida não seria

neste mundo e do outro mundo o homem não tem a mínima noção de como é e como nele se

adaptaria, uma vez que necessita dos sentidos para avaliar o que a ele se apresenta e o que se

apresenta só pode ser apresentável a partir do real. Mas, no presumível outro mundo, não

existirá a natureza que gerou o ser humano e sem ela não haverá condições de o ser humano

continuar existindo, pois só existe porque ela existe.

A estrutura interior do ser humano existe porque existe o mundo real. Sem este mundo

não haverá ruptura humana com esta estrutura interior, pois não haverá ser humano. Portanto,

torna-se urgentemente necessário investir na desalienação do ser humano para que ele possa

regressar ao seu mundo e ao seu ser e deixar de se destruir e de se desumanizar através da

crença no presumível ser divino.

97

5 CONCLUSÃO

Aprofundar-se no pensamento de um autor requer bastante respeito, disciplina,

perseverança e coragem para assumir o quanto ainda não se sabe e o quanto ainda é preciso

saber.

Tomar o pensamento de Ludwig Feuerbach como referência para análise do

comportamento humano frente à religião é, acima de tudo, dispor-se a caminhar por um

caminho extremamente desafiador, pois suas ideias carregam a força de uma correnteza

avassaladora que consegue arrastar até mesmo o que se considerava firme e seguro. O seu

nome certamente bem traduz essa força. Afinal, além de arrastar o que se apresentava

inabalável, consegue incendiar o que se constituía indestrutível.

Numa sociedade fortemente marcada por ideias provenientes de uma gama de

experiências religiosas, o pensamento de Feuerbach vem colocar em questão a validade e a

honestidade das doutrinas que se sustentam graças à necessidade do ser humano de buscar

consolo e alívio para as acrimônias oriundas de seu relacionamento com a existência.

Através dos capítulos deste trabalho buscou-se apresentar e realçar a crítica

contundente de um pensador instigado pela história de uma sociedade marcada por tensões e

pela ideologia dominante que conduzia o destino dos pobres mortais com as bênçãos do

cristianismo.

As críticas endereçadas àqueles que zelavam pela doutrina sagrada não deixavam de

traduzir tamanha insatisfação de quem pretendia se libertar do jugo alienante e desumanizante

do que se escondia por detrás dos véus sagrados.

Considerando a religião, especificamente o cristianismo, como entrave ao progresso

humano e baluarte dos interesses de quem dele usufruiu para se manter no poder, Feuerbach

propõe uma ruptura com o cristianismo moderno como alternativa para a emancipação da

história humana. Emancipação que só poderá efetivar-se através da luta pelo resgate da

dignidade, da moral, dos direitos, da relação harmoniosa com a natureza e do amor próprio do

homem.

A partir dessa proposta de ruptura com o cristianismo, Feuerbach trouxe à tona

questões relevantes que, posteriormente, passariam a dominar as discussões de tantos outros

pensadores modernos e contemporâneos. Questões como: o relacionamento do homem com

Deus e com o mundo, o relacionamento do indivíduo com a sociedade, o relacionamento do

98

homem consigo mesmo, as consequências das experiências religiosas na vida do indivíduo e

na vida da sociedade.

A proposta deste trabalho consistiu em analisar o que Feuerbach apresenta como

questionamento à religião e à teologia e se seu pensamento consegue nortear o pensamento do

homem contemporâneo, sobretudo no que diz respeito à crítica à religião e ao cristianismo.

Ao propor a negação que nega o homem, Feuerbach aponta o caminho da superação

da religião e do cristianismo ao afirmar o mundo e o homem. Na verdade, contrapõe-se ao

caminho que dizia levar ao transcendente hipostasiado.

A proposta de Feuerbach, apresentada nesta dissertação, pode ser entendida como

proposta de emancipação da consciência e essência genérica humana, visando colocar o

homem como único senhor de sua história. Daí sua crítica à religião teológica que, na sua

visão, além de provocar uma cisão interna no homem, desencadeia um sentimento de

indiferença e frieza para com a sociedade ao priorizar um relacionamento exclusivamente

vertical e intimista, ou seja, eu e Deus.

A análise feuerbachiana procura devolver à humanidade todas as qualidades que lhe

foram arrancadas e transferidas para Deus através da religião, mas pelo próprio homem. No

entanto, a emancipação do homem religioso só poderá efetivar-se através de um processo de

conscientização e de desalienação capaz de mostrar-lhe a necessidade de requerer aquilo que

possui de mais valioso e que fora projetado em Deus, a saber, sua essência. Para tanto, o

despertar da consciência deverá ser assumido como missão da humanidade que deverá

combater a falsidade que escraviza a tantos através das ideias teológicas que outra coisa não

traduzem senão a intenção de racionalizar o irracional, desumanizar o humano e de colocar o

divino como diferente, oposto e acima da essência humana.

Um ponto que certamente chama a atenção no pensamento de Feuerbach é a sua

crença na humanidade, uma vez que concebe o homem e a história como ainda-não, como

meta, como projeto. A partir dessa concepção, abre-se o caminho para as considerações da

transcendência não hipostasiada.

O que pode parecer uma contradição no pensamento feuerbachiano na verdade

confirma seu interesse em investir no ser humano como ser totalmente aberto para o que ainda

não é, ou, em outras palavras, Feuerbach conseguiu enxergar na incompletude do ser humano

o desejo de viver num mundo diferente, numa sociedade que lhe traga felicidade através da

concretização de seus desejos e projetos.

Assim se abre o espaço necessário para o trabalho de resgate do homem enquanto ser

que espera. Feuerbach vai justamente procurar trabalhar este ser que espera mostrando a ele

99

que o esperado não existe nem virá do além, mas poderá e só poderá ser encontrado e

experimentado aqui no aquém. Daí sua contribuição para a transformação da sociedade, pois

através da transformação da mentalidade e das atitudes daquele que até então se deixava

escravizar pelas ideias religiosas, automaticamente se efetivará a transformação do que se

encontra ao seu redor.

É importante também ressaltar que o esforço de Feuerbach por superar a filosofia

teológica tradicional não deixou de confluir para o rompimento da alienação religiosa,

desenvolvendo a crítica da falsa essência do homem concentrada na religião. Por isso,

repudiada como instrumento de dominação.

Apesar de não expostas, as críticas a Feuerbach foram levadas em consideração,

porém não foram aqui focadas uma vez que a preocupação primeira e única foi a de realçar o

pensamento feuerbachiano sem desviar o olhar para questões que emergem de sua análise e

crítica da religião e do cristianismo, mas que carecem de um estudo mais aprofundado e

específico, o que fugiria da proposta desta dissertação.

Enfim, a proposta deste trabalho é de contribuir para a expansão do pensamento

feuerbachiano, uma vez que, em meio a tantas e diversas linhas de estudo do fenômeno

religioso e do cristianismo, pouco se tem recorrido a ele.

Evidentemente não se pode dispensar a contribuição de Feuerbach para o

aprofundamento do estudo e análise da religião cristã. Sua crítica certamente encontra eco no

trabalho de outros pensadores de seu tempo e dos dias atuais, instigando a continuidade da

pesquisa sobre um tema que tanto tem despertado interesse de estudiosos do mundo inteiro.

Esta dissertação pretendeu fomentar o interesse pelo conhecimento e aprofundamento

dos estudos sobre o fundamento antropológico da crítica à religião e ao cristianismo

desenvolvida por Feuerbach.

Os capítulos desenvolvidos procuraram realçar questões que apenas indicam um

caminho a ser percorrido. A vastidão das obras de Feuerbach e a complexidade de seu

pensamento certamente exigem uma atenção maior por parte daqueles que querem melhor

conhecer sua crítica à religião e ao cristianismo.

Espera-se que esta dissertação desperte a reflexão e reações naqueles que dela se

servirem para simples leitura ou para vindouras pesquisas sobre o seu pensamento. Fica assim

traduzida a intenção de contribuir para a análise e aprofundamento da crítica religiosa

tomando como motivação a crítica feuerbachiana.

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