como pode ser entendida a sustentabilidade (veiga)

33
Capítulo 3 Como pode ser entendida a sustentabilidade O que é sustentável? Esta indagação também provoca três pa- drões básicos de resposta. Contudo, o que as diferencia não é seu grau de complexidade, como no caso do desenvolvimento. Aqui duas teses extremas, que criam um impasse e um anátema no âmbito da retórica científica. Já a terceira, que também procura abrir o tal "caminho do meio", por enquanto só faz parte da retórica político- ideológica. Outra vez, os três tipos de respostas serão brevemente apresentados antes de serem examinados com mais atenção. Em primeiro lugar, estão os que simplesmente acreditam que não exista dilema entre conservação ambiental e crescimento eco- nómico. Crêem, ao contrário, que seja factível combinar essa du- pla exigência. Todavia, não há qualquer evidência científica sobre as condições em que poderia ocorrer tal conciliação. E as posições dos economistas podem variar de "A" a "Z" justamente porque ainda não é possível demonstrar uma das duas possibilidades ex- tremas da polémica. O debate científico internacional passou recentemente a ser pautado pela hipótese ultra-otimista de que o crescimento económico só prejudiaria o meio ambiente até um determinado 109

Upload: marcelo-khan

Post on 27-Dec-2015

59 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

Capítulo 3

Como pode ser entendida a sustentabilidade

O que é sustentável? Esta indagação também provoca três pa­

drões básicos de resposta. Contudo, o que as diferencia não é seu

grau de complexidade, como no caso do desenvolvimento. Aqui há

duas teses extremas, que criam um impasse e um anátema no âmbito

da retórica científica. Já a terceira, que também procura abrir o tal

"caminho do meio", por enquanto só faz parte da retórica político-

ideológica. Outra vez, os três tipos de respostas serão brevemente

apresentados antes de serem examinados com mais atenção.

Em primeiro lugar, estão os que simplesmente acreditam que

não exista dilema entre conservação ambiental e crescimento eco­

nómico. Crêem, ao contrário, que seja factível combinar essa du­

pla exigência. Todavia, não há qualquer evidência científica sobre

as condições em que poderia ocorrer tal conciliação. E as posições

dos economistas podem variar de "A" a " Z " justamente porque

ainda não é possível demonstrar uma das duas possibilidades ex­

tremas da polémica.

O debate científico internacional passou recentemente a

ser pautado pela hipótese ultra-otimista de que o crescimento

económico só prejudiaria o meio ambiente até um determinado

109

Page 2: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

patamar de riqueza aferida pela renda per capita. A partir dele, a

tendência seria inversa, fazendo com que o crescimento passasse

a melhorar a qualidade ambiental. Raciocínio idêntico à velha

parábola sobre a necessidade de primeiro fazer o bolo crescer

para depois distribuí-lo melhor. Tanto é, que essa hipótese tem

sido chamada de "curva ambiental de Kuznets", por analogia à

famosa curva em " U " invertido proposta em meados dos anos

1950 pelo terceiro ganhador do prémio Nobel de Economia,

em 1971.

Como já foi visto na primeira parte deste livro, os precários

dados estatísticos disponíveis no pós-Segunda Guerra Mundial,

além de serem apenas sobre um punhado de casos, levaram Simon

Kuznets a achar que pudesse existir uma lei que regeria a relação

entre o crescimento do PIB e a desigualdade de renda. Piorava na

arrancada, mas melhorava depois de ultrapassar certo patamar de

riqueza. Para o desgosto dos que acham que o capitalismo é o fim

da história, tal hipótese foi descartada quando estatísticas sobre

um grande número de países revelaram que, nos úl t imos cin­

quenta anos, as relações entre crescimento e desigualdade foram

das mais heterogéneas. Há tudo quanto é tipo de curva, até em

" U " invertido.

Idêntica conjectura sobre a relação entre crescimento e meio

ambiente foi lançada nas páginas de um dos mais respeitados

periódicos científicos de economia: o "QJE" {The QtiarterlyJournal

of Economics, maio 1995, pp. 353-77). Ao examinar a relação

entre o comportamento da renda per capita e quatro tipos de

indicadores de deterioração ambiental - poluição atmosférica

urbana, oxigenação de bacias hidrográficas, e duas de suas conta­

minações (fecal e por metais pesados) — Gene M . Grossman e

Alan B. Krueger concluíram que as fases de desgraça e recupera -

110

ção ambiental estariam separadas por um ponto de mutação que

se situaria em torno de 8 mil dólares de renda per capita.

O destino dessa hipótese certamente será idêntico. Quando

um grande número de países tiver indicadores confiáveis sobre

um leque mais amplo de variáveis ecológicas, constatar-se-á que

são tão diversos os estilos de crescimento e as circunstâncias em

que ele ocorre, que deve ser rejeitada a ideia de tão linear relação

entre qualidade ambiental e renda per capita. Aliás, já existem

bons indicadores que revelam as tragédias ambientais de países

riquíssimos, como será exposto no próximo capítulo. E ela já foi

desmentida por experimento com variáveis ambientais globais

(Jha & Murthy, 2003). Todavia, até que a comunidade científica

se convença do contrário, a panglossiana proposição de Grossman

& Krueger c o n t i n u a r á a pautar o debate. Centenas de

sofisticadíssimos testes serão relatados em periódicos do calibre

do QJE até que ela possa cair em descrédito.

Fatalidade

As pesquisas do extremo oposto exigirão ainda mais paciên­

cia. Desde 1971, o saudoso Nicholas Georgescu-Roegen lançou

o alerta sobre o inexorável aumento da entropia. Baseado na se­

gunda lei da termodinâmica, ele assinalou que as atividades eco­

nómicas gradualmente transformam energia em formas de calor

tão difusas que são inutilizáveis. A energia está sempre passando,

de forma irreversível e irrevogável, da condição de disponível para

não disponível. Quando utilizada, uma parte da energia de bai-

xa-entropia (livre) se torna de alta entropia (presa). Para poder

manter seu próprio equilíbrio, a humanidade tira da natureza os

elementos de baixa entropia que permitem compensar a alta

entropia que ela causa. O crescimento económico moderno exi-

111

Page 3: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

giu a extração da baixa entropia contida no carvão e no petróleo.

Um dia certamente voltará a explorar de maneira mais direta a

energia solar. Nem por isso poderá contrariar o segundo princí­

pio da termodinâmica, o que um dia exigirá a superação do cres­

cimento económico. Para Georgescu, em algum momento do fu­

turo, a humanidade deverá apoiar a continuidade de seu desen­

volvimento na retração, isto é, com o decréscimo do produto. O

oposto do sucedido nos últimos dez mil anos.

É bom frisar que tão incómoda hipótese permanece simples­

mente esquecida pela esmagadora maioria dos economistas. Até

referências a Georgescu passaram a ser evitadas a partir de 1976,

quando o paradigmático manual pedagógico de Paul Samuelson,

Economia, dedicou meia dúzia de linhas para avisar que o autor

do célebre Analytical Economics (Harvard University Press, 1967)

se embrenhara pela obscura ecologia, uma disciplina que, naque­

la conjuntura, ainda era tão suspeita para os economistas quanto

a quiromancia. Mesmo assim, são as ideias do genial romeno fale­

cido, no ostracismo em 1994, que orientam os mais heréticos

programas de pesquisa.

Para a corrente cética, cujo principal expoente é Herman E.

Daly, só haverá alternativa à decadência ecológica na chamada

"condição estacionária" — que não corresponde, como muitos pen­

sam, a crescimento zero. Para efeito pedagógico, Daly costuma

usar uma analogia entre economias de ponta - como a dos EUA

ou do Japão - e uma biblioteca que já esteja repleta de livros, sem

espaço para absorver novas aquisições. A melhor solução é estabe­

lecer o princípio de que um novo livro só poderá entrar no acervo

quando outro for retirado, em uma troca que só seria aceita se o

novo livro fosse melhor que o substituído. O u seja, na "condição

estacionária", a economia continuaria a melhorar em termos qua-

112

litativos, substituindo, por exemplo, energia fóssil por energia

limpa. Mas nessas sociedades mais avançadas seria abolida a ob­

sessão pelo crescimento do produto, que Herman E. Daly consi­

dera uma mania ("growthmania").

Seja qual for o futuro resultado dessa colossal polemica, o

que já está claro é que a hipotética conciliação entre o crescimen­

to económico moderno e a conservação da natureza não é algo

que possa ocorrer no curto prazo, e muito menos de forma isola­

da, em certas atividades, ou em locais específicos. Por isso, nada

pode ser mais bisonho do que chamar de "sustentável" esta ou

aquela proeza. Para que a utilização desse adjetivo não seja tão

abusiva, é fundamental que seus usuários rompam com a inge­

nuidade e se informem sobre as respostas disponíveis para a per­

gunta "o que é sustentabilidade?"

Neste caso, a elaboração intelectual sobre o que poderia

ser um "caminho do meio" - entre a fábula panglossiana e a

fatalidade entrópica - está muito mais atrasada que no caso do

desenvolvimento. O que tem havido é coisa bem diversa: des­

de 1987, u m intenso processo de l e g i t i m a ç ã o e i n s t i t u ­

cionalização normativa da expressão "desenvolvimento susten­

tável" começou a se afirmar. Foi nesse ano que, perante a As­

sembleia Geral da O N U , Gro Harlem Brundt land, a presi­

dente da Comissão Mundia l sobre Meio Ambiente e Desen­

volvimento, caracterizou o desenvolvimento sustentável como

um "conceito polít ico" e um "conceito amplo para o progresso

económico e social". O relatório ali lançado com o belo t í tulo

Nosso futuro comum foi intencionalmente um documento polí­

tico, que procurava alianças com vistas à viabilização da Con­

ferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvol­

vimento, a "Rio-92".

113

Page 4: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

r

Esse processo de institucionalização do "desenvolvimento

sustentável" como simultaneamente maior desafio e principal

objetivo das sociedades contemporâneas está muito bem contado

e interpretado por Marcos Nobre, na primeira parte do livro que

organizou com Maurício Amazonas (2002). O que fez surgir essa

expressão foi o debate - principalmente americano, na década de

1960 - que polarizou "crescimento económico" versus "preserva­

ção ambienta l" , inteiramente impregnado por u m temor

apocalíptico da "explosão demográfica", mesclado ao perigo de

uma guerra nuclear ou da precipitação provocada pelos testes. E

não há melhor referência em português para o entendimento des­

sas circunstâncias do que a excelente história do ambientalismo

elaborada por John McCormick (1992).

A hipótese panglossiana

O crescimento económico contínuo trará cada vez mais da­

nos ao ambiente da Terra? Ou aumentos da renda e da riqueza

jogam as sementes de uma melhora dos problemas ecológicos? É

com esta alternativa formulada em duas perguntas que G & K

(Grossman &C Krueger, 1995) abrem a introdução de seu pionei­

ro artigo. Se os métodos de produção fossem imutáveis, é óbvio

que só seria possível responder afirmativamente à primeira per­

gunta. Todavia, há inúmeras evidências de que o processo de de­

senvolvimento leva a mudanças estruturais naquilo que as econo­

mias produzem. E muitas sociedades já demonstraram notável

talento em introduzir tecnologias que conservam os recursos que

lhe são escassos. Em princípio, os fatores que podem levar a mu­

danças na composição e nas técnicas da produção podem ser su­

ficientemente fortes para que os efeitos ambientalmente adversos

do aumento da atividade económica sejam evitados ou supera-

114

dos. E se houver evidência empírica que confirme essa suposta

tendência, será permitido concluir que a recuperação ecológica

resultará do próprio crescimento.

Com o propósito de testar essa hipótese, os autores investi­

garam a relação entre a escala da atividade económica e a qualida­

de ambiental, utilizando metodologia consolidada e os dados dis­

poníveis mais confiáveis sobre qualidade do ar em grandes cida­

des e qualidade da água em suas bacias hidrográficas. Além das

séries publicadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) -

o sistema Global Environmental Monitoring System (GEMS) -

para o período 1977-84, conseguiram dados inéditos para o pe­

ríodo 1985-88, junto à agência federal dos Estados Unidos para

o meio ambiente (U.S. Environmental Protection Agency, EPA).

Embora tais medidas estejam muito longe de constituir uma lis­

ta representativa das variáveis capazes de descrever a situação dos

respectivos ecossistemas, os autores acreditam que a variedade

dos tipos de poluentes considerados na investigação autoriza uma

generalização para outros tipos de problemas ambientais. E essa

crença certamente foi compartilhada pelos pareceristas que avali­

aram o trabalho para o QJE.

O dióxido de enxofre e a fumaça relacionam-se com o PIB

per capita na forma de uma curva em " U " invertido. Na verdade,

a poluição por dióxido de enxofre volta a subir quando são atingi­

dos altos níveis de renda per capita, mas os autores consideram

que o reduzido número de observações de casos em que ela atin­

giu 16 mil dólares impede que se tenha confiança na forma que a

curva adquire nesse estágio. Para os particulados, constatou-se

um m o n ó t o n o declínio da relação poluição/renda. Todavia, fo­

ram encontradas boas "curvas de Kuznets" para praticamente to­

dos os outros principais indicadores de poluição do ar e da água:

115

Page 5: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

B O D (demanda de oxigénio biológico), C O D (demanda de oxi­

génio químico), nitratos, coliformes fecais, coliformes totais, chum­

bo, cádmio, arsénico, mercúrio e níquel. E os picos de renda per

capita variaram entre 3 e 11 mil dólares, respectivamente para os

coliformes totais e cádmio.

Ao fazer a síntese dos resultados obtidos, G & K afirmam que

não encontraram evidência significativa de que a qualidade

ambiental tenda a se deteriorar de maneira firme, constante, ou

estável, com o crescimento económico. Ao contrário, quase todos

os indicadores apontaram para uma deterioração em fase inicial

do crescimento, mas com subsequente fase de melhoria. Foram

levados, então, a "suspeitar" que essa recuperação posterior esteja

em parte ligada ao aumento da demanda (e da oferta) de prote­

ção ambiental quando a renda nacional chega a níveis mais altos.

Os pontos de mutação variam bastante segundo o poluente con­

siderado, mas na maioria dos casos eles ocorrem antes que o país

atinja 8 mi l dólares (de 1985) de renda per capita.

Nas conclusões, G & K assumem um tom bem mais incisivo.

Rechaçando gritos alarmistas de grupos ambientalistas, afirmam

que o crescimento económico não causa inevitável dano ao habitat

natural. Segundo eles, isso só ocorre mesmo em países muito

pobres. Todavia, seu meio ambiente será, ao contrário, beneficia­

do pelo crescimento económico, assim que atingirem certos ní­

veis críticos de renda per capita, próximos ao patamar de 8 mi l

dólares (de 1985).

Desde que essa contribuição empírica de G & K foi publicada

no QJE, p u l u l a m c o n f i r m a ç õ e s dessa "curva de Kuznets

ambiental", pela utilização de outras variáveis, outros países, ou­

tros períodos. É preciso lembrar, contudo, que há um pressupos­

to na análise de G & K que só pode ser facilmente aceito pela

116

comunidade dos economistas convencionais, pois são todos

inveterados otimistas tecnológicos. Todos acreditam piamente que

as inovações tecnológicas acabarão por superar qualquer impasse

que venha a colocar em xeque a continuidade do crescimento

económico. E tal pressuposto é de que os indicadores de poluição

usados por G & K sejam termómetro da qualidade ambiental. Basta

lembrar de alguns outros fenómenos já bem conhecidos — como,

por exemplo, a erosão da biodiversidade, as perdas de patr imônio

genético, o aquecimento global, a deterioração da camada de ozô-

nio, a chuva ácida, ou a escassez de água - para que se perceba o

duvidoso valor científico da extrapolação. E ela ficaria ainda mais

absurda se fosse evocado o inevitável aumento da entropia. Mas

esta é uma ideia que só preocupa um pequeno grupo de econo­

mistas heterodoxos, que constituem o extremo oposto do debate

científico, e que com imensa dificuldade estão conseguindo rom­

per o isolamento que lhes foi imposto pelo establishment da ciên­

cia normal.

Dai Dong

Seria impossível fingir que Nicholas Georgescu-Roegen ja­

mais existira. Então, a esmagadora maioria dos economistas aca­

démicos fez de tudo para que ele fosse pura e simplesmente es­

quecido, ao longo das últimas décadas do século XX. Nem tanto

por sua longa pesquisa sobre a teoria do comportamento do con­

sumidor (1935-73), muito embora o principal resultado tenha

sido demonstrar que a versão neoclássica é empiricamente inacei­

tável, mas sim por teses posteriores de caráter evolucionista e re­

comendações sobre o que poderia ser um programa mín imo de

"bioeconomia". Enquanto na primeira fase de sua carreira cientí­

fica ele era festejado por Paul Samuelson como "pioneiro da eco-

117

Page 6: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

nomia matemática", a partir de 1973 foi deliberadamente colo­

cado na geladeira pelos mandarins da comunidade dos econo­

mistas americanos.

A condenação refletia diretamente as inquietações provocadas

pelo fato de defender a tese de que a economia certamente será

absorvida pela ecologia. Isso não acontecerá, dizia Georgescu,

enquanto os economistas puderem raciocinar apenas com prazos

de uma ou duas gerações. Mas basta pensar na administração de

recursos raros necessários à qualidade da vida de todas as próxi­

mas gerações para dar-se conta de que a economia atual só poderá

ser considerada um dia como parte da ecologia.

Relato circunstanciado, além de muito sereno, desse trau­

mático cisma científico está em artigo obituário de dois professo­

res de cepa italiana — Andrea Maneschi e Stefano Zamagni -

publicado quase três anos depois do falecimento de Georgescu,

na edição de maio de 1997 do The Economic Journal. Há, contu­

do, um episódio singular desse processo de excomunhão que aju­

da a dizer em poucas linhas qual foi a onça que ele cutucou com

vara curta.

Part icipando de assembleia da Amer ican Economic

Association, realizada ao f im de seu encontro anual de 1973,

solicitou que fosse transcrito em ata um texto intitulado "Rumo

a uma economia humana", que havia sido lançado dois meses

antes, na Dinamarca, por um projeto do Fellowship o f

Reconci l ia t ion in t i tu l ado " D a i Dong" . Era u m manifesto

ambientalista, cujo conteúdo agora seria visto como moderado

até pela folclórica convenção nova-iorquina que os republicanos

organizaram em prol da reeleição de George W. Bush. Propunha

essencialmente que a confraria dos economistas saísse do isola­

mento em que se metera e assumisse seu papel na gestão do "lar

118

Terra" ("Earth home"), juntando-se a cientistas e planejadores de

todas as áreas do conhecimento, com o firme objetivo de garantir

a sobrevivência da humanidade.

Hoje só pode parecer mentira que tal proposta tenha susci­

tado celeuma na reunião presidida por Kenneth J. Arrow. No

entanto, a ata publicada na edição de maio de 1974 da The

American Economic Review deixa claro que houve feroz manobra

para que a decisão final sobre a conveniência de se transcrever o

"Dai Dong" ficasse para arbítrio do secretário da associação. Por

isso, esse panfleto, que acabou sendo publicado como apêndice,

em letras de corpo mínimo, é um registro histórico do gigantesco

desprezo que os economistas americanos nutriam pela renascente

preocupação ambiental. O herege Georgescu, que ousava prog­

nosticar o avesso - a absorção da economia pela ecologia —, só

podia ter sido mesmo uma vítima de tais circunstâncias.

Trinta anos depois de tão sombrio acontecimento, e passa­

dos dez anos da morte de Georgescu, a atmosfera está sendo alte­

rada com mais rapidez do que se poderia imaginar. Sua obra vem

sendo seriamente resgatada em todos os continentes. Principal­

mente nas páginas de duas revistas científicas - EcologicalEconomics

e Environment and Development Economics —, mas também em

publicações especialmente organizadas para exame sistemático de

suas ideias, como são os casos do l i v ro Bioeconomics and

Sustainability: Essais in honor of Micholas Georgescu-Roegen, orga­

nizado por Kozo Mayumi & John M . Gowdy (Ed. Edward Elgar,

1999) e do "Fórum Georgescu-Roegen versus Solow/Stiglitz"

{Ecological Economics 22, Special Issue, setembro 1997).

Georgescu chegou à proposição de que a economia precisa

ser absorvida pela ecologia por considerar que a termodinâmica é

muito mais pertinente para a primeira do que a mecânica. Foi

119

Page 7: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

assim que ele entrou em colisão com o paradigma que une todas

as correntes do pensamento económico, da mais convencional à

mais heterodoxa, e da mais conservadora à mais radical. "Assimi­

lar o processo económico a um modelo mecânico é admitir o

mito segundo o qual a economia é um carrossel que de nenhuma

maneira pode afetar o ambiente composto de matéria e de ener­

gia. A conclusão evidente é que não há necessidade de integrar o

ambiente no modelo analítico do processo. E a oposição irredutível

entre mecânica e termodinâmica vem do segundo princípio, a

Lei da Entropia (Georgescu-Roegen, 1973: 38)."

Na verdade, entropia é uma noção suficientemente comple­

xa para que não seja às vezes compreendida pelos próprios físicos.

Tentando trocar em miúdos , pode-se dizer que o aumento de

entropia corresponde à transformação de formas úteis de energia

em formas que a humanidade não consegue utilizar. "No limite,

trata-se de algo relativamente simples: todas as formas de energia são

gradualmente transformadas em calor, sendo que o calor acaba se

tornando tão difuso que o homem não pode mais utilizá-lo. Para ser

utilizável, a energia precisa estar repartida de forma desigual. Ener­

gia completamente dissipada não é mais utilizável. A ilustração clás­

sica evoca a grande quantidade de calor dissipada na água dos mares

que nenhum navio pode utilizar (Georgescu-Roegen, 1973: 39)."

Todo organismo vivo está sujeito ao aumento de entropia, mas

procura mantê-la constante pela extração de seu meio ambiente

dos elementos de baixa entropia necessários à compensação. O cres­

cimento económico moderno baseou-se na extração da baixa

entropia contida no carvão e no petróleo. U m dia se baseará em

formas de exploração mais direta da energia solar. Mas nem por

isso poderá contrariar o segundo princípio da termodinâmica, o

que acabará por obrigar a humanidade a abandonar o crescimento.

120

A conclusão de Georgescu é por demais inconveniente. U m

dia será necessário encontrar uma via de desenvolvimento hu­

mano que possa ser compatível com a retração, isto é, com o

decréscimo do produto. Por isso, no curto prazo é preciso que o

crescimento seja o mais compatibilizado possível com a conser­

vação da natureza. Não se trata de conseguir "crescimento zero",

ou "condição estacionária", visões por ele consideradas ingénu­

as. Para Georgescu, crescimento é sempre depleção e, portanto,

encurtamento de expectativa de vida da espécie humana. N ã o

considera cinismo, ou pessimismo, reconhecer que os seres hu­

manos não querem abrir mão de seu presente conforto para fa­

cilitar a vida dos que viverão daqui a dez m i l anos. Trata-se ape­

nas, dizia, de entender que a espécie humana está determinada

a ter uma vida curta, porém excitante. Em suma, ficaria na dú­

vida entre rir ou chorar se tivesse tido a oportunidade de tomar

conhecimento da atual discussão entre os economistas conven­

cionais sobre os dois géneros de sustentabilidade, apresentada a

seguir.

Arenga sobre incompatibilidade

Desde 1969, quando o prémio Nobel passou a ser concedi­

do também a economistas, por uma única vez a sua justificativa

referiu-se explicitamente ao crescimento. Foi em 1987, ao con-

templar Robert M . Solow "pela sua contribuição à teoria do cres­

cimento económico". N ã o é de estranhar, portanto, que esse tam­

bém tenha sido praticamente o único dos economistas laureados

pela academia sueca a realmente entrar na discussão sobre noção

de "sustentabilidade", alardeada justamente naquele ano pelo l i ­

vro Nosso futuro comum, mais conhecido como Relatório

Brundtland.

121

Page 8: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

Em sua teoria, inteiramente exposta em obra recente

(Solow, 2000), a natureza jamais consti tuirá sério obstáculo à

expansão. N o longo prazo, os ecossistemas não oferecerão qual­

quer t i p o de l i m i t e , seja como fontes de insumos ou

assimiladores de impactos. Qualquer elemento da biosfera que

se mostrar l imitante ao processo produtivo, cedo ou tarde,

acabará subs t i tu ído , graças a mudanças na combinação entre

seus três ingredientes fundamentais: trabalho humano, capi­

tal produzido e recursos naturais. Isto porque o progresso c i ­

entífico tecnológico sempre conseguirá introduzir as necessá­

rias alterações que substituam a eventual escassez, ou compro­

metimento, do terceiro fator, mediante inovações dos outros

dois ou de algum deles. Em vez de restrição às possibilidades

de expansão da economia, os recursos naturais podem no má­

ximo criar obstáculos relativos e passageiros, já que serão inde­

finidamente superados por invenções.

Cinco anos depois de receber o Nobel, quando a expressão

"desenvolvimento sustentável" acabara de ser consagrada na con­

ferência Rio-92, Solow foi convocado a abordar diretamente esse

tema como conferencista na comemoração do quadragésimo ani­

versário da organização Resources for the Future, uma das mais tra­

dicionais e moderadas ONGs ambientalistas americanas. O sim­

ples tom da primeira frase dessa conferência já indicava bem o

sentido do passo "quase prático" rumo à sustentabilidade que ele

ali propôs: "vocês talvez fiquem aliviados em saber que esta pales­

tra não será uma arenga sobre a intrínseca incompatibilidade en­

tre crescimento económico e preocupação com o ambiente natu­

ral" (Solow, 1993: 162).

Todavia, desse ultra-otimismo tecnológico, que sempre este­

ve na base do raciocínio de Solow, não decorre necessariamente

122

um sério desprezo pelo compromisso ético com as futuras gera­

ções. Para ele, a noção de sustentabilidade é muito útil, pois a

humanidade precisa evitar tudo o que possa ocorrer em detri­

mento de seus descendentes. Não apenas dos mais diretos, mas

também dos mais distantes. Só que isto significa, em seu ponto

de vista, a preservação da capacidade produtiva para um futuro

indefinido, pela ilimitada substituição dos recursos não renováveis.

O que exigirá, evidentemente, mudanças importantes na manei­

ra de se medir o desempenho das economias, isto é, dos sistemas

públicos de contabilidade, sejam eles nacionais, regionais ou lo­

cais. Será preciso calcular PIBs e PNBs "verdes", que ele prefere

chamar de produtos interno ou nacional "líquido".

Os seguidores de Solow enxergam a sustentabilidade como

capital total constante. Uma concepção que acabou sendo bati-

zada de "fraca". Isto porque assume que, no limite, o estoque de

recursos naturais possa até ser exaurido, desde que esse declínio

seja progressivamente contrabalançado por acréscimos propor­

cionais, ou mais do que proporcionais, dos outros dois fatores-

chaves - trabalho e capital produzido, - muitas vezes agregados

na expressão "capital reprodutível". O u seja, nessa perspectiva

de "sustentabilidade fraca", o que é preciso garantir para as ge­

rações futuras é a capacidade de produzir, e não manter qual­

quer outro componente mais específico da economia. Como diz

Amazonas (2002: 136), é uma visão na qual a ideia de desen­

volvimento sustentável acaba sendo absorvida e reduzida a cres­

cimento económico. O que explica, aliás, a enfática advertência

de Solow (1992) sobre a inconveniência de se procurar uma

def inição menos vaga de sustentabilidade. Em suma: é seu

fortíssimo otimismo tecnológico que o leva a pregar pela fraque­

za da sustentabilidade.

123

Page 9: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

Otimismo: seco ou suave?

Os economistas neoclássicos que não concordam com a pos­

tura de Solow também não se preocupam com definições mais

precisas para o adjetivo "sustentável". O que os diferencia é que

são menos otimistas sobre as possibilidades de troca-troca entre

os fatores de produção, preferindo, por isso, propugnar o que

chamam de "sustentabilidade forte". Em geral, seguem a chama­

da Escola de Londres, iluminada pela liderança intelectual de

Dav id W i l l i a m Pearce./ Entendem que o cr i té r io de jus t i ça

intergeraçÕes não deve ser a manutenção do capital total, mas

sim sua parte não reprodutível, que chamam de "capital natural".

E por não ignorarem que grande parte desse "capital natural" é

exaurível, propõem que os danos ambientais provocados por cer­

tas atividades sejam de alguma forma compensados por outras.

Esse debate em torno da força relativa que deveria ter a deusa

"sustentabilidade" é dos mais herméticos e bizantinos. Afinal, na

c o n c e p ç ã o neoc láss i ca , o objeto c i ênc i a e c o n ó m i c a é o

gerenciamento racional da finitude dos recursos produtivos em

sociedades marcadas pela infinitude das necessidades humanas.

O manejo dessa contradição se faz por um sistema no qual os

preços exprimem a escassez relativa dos bens e serviços, papel que

tem sido desempenhado da maneira mais eficiente por mercados

livres, sem restr ições (embora quase todos tenham exigido

institucionalização de códigos de comportamento e vários graus

de regulamentação pública, principalmente estatal). A economia

neoclássica lida, portanto, com a alocação eficiente de recursos

escassos para fins alternativos, presentes e futuros, por meio do

sistema de preços de mercado. Neste sentido, a ques tão da

sustentabilidade corresponde à administração mais ou menos efi­

ciente de uma dimensão específica da escassez.

124

Se os mercados de recursos naturais funcionassem razoável

mente e gerassem seus preços relativos, nem teria surgido pico

cupação especial com a sustentabilidade ambiental, pois eles es­

tariam sendo alocados de maneira eficiente ao longo do tempo.

Como isso não ocorre, o problema foi catalogado entre as "imper­

feições de mercado". E a saída que parece razoável para os

neoclássicos em geral - de Solow a Pearce - é a criação de novos

mercados para os bens ambientais, como, por exemplo, mercados

de direitos de poluir ou de cotas de emissões. E para que tais

mercados possam surgir, são adotados vários expedientes de

"precificação", mais conhecidos como técnicas de valoração.

Essa foi a maneira de responder à embaraçosa questão sobre

o valor económico de bens que não adquirem valor de troca, não

tendo, portanto, preços. Os economistas convencionais passaram

a dizer que o valor de troca e o valor de uso são apenas duas partes

de um valor total formado por outros tipos de valores, entre os

quais o "valor de existência". Afinal, dizem eles, se algumas pesso­

as conseguem satisfação somente por saber que algum ecossistema

particular existe em condições relativamente intocadas, o valor

resultante de sua existência é tão real como qualquer outro valor

económico, seja de uso ou de troca.

Esse valor começou então a ser medido por uma espécie de

análise de custo-benefício da alteração do bem-estar. Para um

indivíduo, o valor da mudança para uma situação preferida será

revelado pela "dispa": sua disposição a pagar por esse ganho. Se,

ao contrário, houver perda, ela será revelada pela "disco": sua dis­

posição em aceitar algo como compensação. Para a sociedade, o

valor líquido de uma mudança ambiental pode ser avaliado pela

diferença entre o total das "dispa" dos que esperam ganhar e o

total das "disco" dos que esperam perder.

125

Page 10: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

Os procedimentos para esse tipo de avaliação que se torna­

ram mais usuais são bem semelhantes às sondagens de opinião.

Propõem alternativas a uma amostra populacional afetada por

um problema ambiental de maneira a que sejam registradas as

"dispa" e "disco". Assim, se os cidadãos estiverem bem informa­

dos sobre as consequências das opções propostas, podem ser cal­

culados valores económicos de bens para os quais não existem

mercados. É dessa forma que costumam ser estimados, por exem­

plo, valores de existência de espécies em extinção.

Nesse processo, os adeptos da economia ambiental conven­

cional t ambém foram se convencendo de que a dificuldade de

saber qual é o valor económico da diversidade biológica, por exem­

plo, não decorre de limitações da ciência económica e sim de

limitações das ciências naturais. Acham que seus métodos de ava­

liação só não trazem bons resultados porque os ecólogos costu­

mam ter pouca confiança em suas estimativas sobre os impactos

da alteração dos ecossistemas, além de raramente chegarem a um

acordo. Se os peritos não podem construir cenários fidedignos

que descrevam os efeitos de po l í t i ca s alternativas para a

biodiversidade, as "dispa" e "disco" dos cidadãos irão reagir a estes

cenários refletindo aquela incerteza e desinformação, tanto quan­

to qualquer incerteza adicional que venha a ocorrer às suas pró­

prias preferências com relação à biodiversidade. A confusão, a

ignorância e a apatia entre os leigos refletiriam, então, sinais in­

completos e dissonantes dos especialistas.

Pequeno Príncipe

Seria um imenso equívoco imaginar que só os economistas

neoclássicos utilizam essas técnicas de valoração dos elementos

do meio ambiente que não têm preços. Por razões bem pragmáti-

126

cas, ligadas ao maior poder de persuasão de argumentos baseados

em valor monetário, é comum que economistas da corrente mais

cética também se sirvam desses expedientes de precificação. Por

isso, em países de capitalismo maduro, já é comum sondar a opi­

nião das pessoas para saber que tipo de valor elas atribuiriam a

uma determinada melhora da qualidade do ar ou à preservação

de um rio. É uma maneira de "internalizar as externalidades", tio

jargão da ciência económica normal.

O maior problema é que esse malabarismo nem sempre con­

segue persuadir. Qual poderia ser, por exemplo, o preço do ozô-

nio em rarefação, ou o preço de uma função como a regulação

térmica do planeta? Será que a preservação das diversidades bio­

lógica e cultural poderia ficar na dependência do aperfeiçoamen­

to dessas tentativas de simular mercados? Questões que só au­

mentam a distância entre economistas convencionais e "ecológi­

cos", mesmo que usem as mesmas técnicas. Os mais otimistas

consideram que a ciência económica só não respondeu a esses

problemas no passado porque eles não eram considerados pre­

mentes pela sociedade. Os outros acham que esses problemas

revelam a imaturidade da economia como ciência, pois questio­

nam a própria visão de sistema económico que é comum a todas

as teorias, das mais radicais às mais conservadoras.

U m bom exemplo foi o estudo realizado pela turma da "eco­

nomia ecológica" sobre os benefícids proporcionados aos seres

humanos por dezesseis grandes ecossistemas terrestres, publica­

do em 1997 pela revista Nature. Diz que as funções desempenha­

das por esses ecossistemas, que há milhões de anos vinham sendo

usufruídas gratuitamente pela humanidade, na verdade valem

quase duas vezes toda a riqueza produzida no mundo durante

um ano, isto é, cerca de 33 trilhões de dólares anuais. Para um

127

Page 11: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

dos pesquisadores envolvidos, esse resultado "pode até não ser

muito preciso, mas serve para dar uma dimensão da importância

da natureza na atividade humana". Segundo outro membro da

equipe, "fica muito mais fácil para a população e para as autorida­

des compreender que, quando se usa a natureza, há um preço a

pagar".

Será que a atribuição de um preço fictício a um bem natural

é a melhor maneira de ganhar a opinião pública para a preserva­

ção ambiental? Uma parte crescente dos economistas responde

que sim. N o fundo, eles estão convictos de que a racionalidade

económica sempre dominará as outras racionalidades. Como o

Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry, eles acham que os adultos

nunca valorizam uma casa por que ela tem tijolos rosados, com

gerânios nas janelas e pombas no telhado. Só são capazes de ad­

mirar sua beleza quando ouvem que ela custa tantos milhões.

O problema é que os adultos t ambém não acreditam em

estórias da carochinha. Sabem que os preços são determinados

simultaneamente pela utilidade e pelo custo de produção. Perce­

bem intuitivamente o que coube a Alfred Marshall esclarecer em

1890: "Da mesma forma que não se pode afirmar se é a lâmina

inferior ou superior de uma tesoura que corta uma folha de pa­

pel, também não se pode discutir se o valor e os preços são gover­

nados pela utilidade ou pelo custo de produção."

Isto quer dizer que só podem ter valor económico e, portan­

to, preço, bens que sejam produtíveis e apropriáveis. E tais bens

representam, por mais espantoso que possa parecer, uma ínfima

parcela do universo formado por todos os seres vivos e objetos que

compõem a biosfera. A aceitação dessa microscópica redução foi

indispensável para que se chegasse à visão de sistema económico

representado pelas contas sociais.

128

Como diz o economista espanhol José Manuel Naredo

(1987), ao nos perguntarmos como será possível contabilizar

monetariamente bens naturais que não têm preço, estamos nos

perguntando se é possível estender a economia para um campo

que não seja o seu. A noção usual de sistema económico consoli-

dou-se justamente pelo crescente distanciamento da natureza.

Por isso, toda tentativa de incorporar variáveis ambientais nas

contabilidades esbarra em obstáculos conceituais e práticos que

acabam tornando os resultados muito suspeitos. T ã o suspeitos

quanto esses 33 trilhões de dólares anuais atribuídos a dezesseis

grandes ecossistemas terrestres.

Horizonte

O que realmente opõe os economistas ecológicos a todas as

outras correntes não é, portanto, o uso de técnicas de valoração,

mas sim a crítica básica de Georgescu-Roegen à tese de Robert

Solow, choque que nunca fora exposto de forma tão clara quanto

no fórum publicado em número especial da revista Ecological

Economics de setembro de 1997 (vol. 22, n. 3).

A ideia desse fórum partiu de Herman E. Daly, o mais ilus­

tre d isc ípulo de Georgescu. E a apresentação começa com o

pomo da discórdia: recursos naturais e capitais são geralmente

complementares e não substitutos. Pensar, como Solow, que eles

possam se substituir é contrariar du^s leis da te rmodinâmica .

Como dizia Georgescu, imaginar uma economia sem recursos

naturais — como Solow chegou a fazer em 1974 — é simples­

mente ignorar a diferença entre o mundo real e o Jardim do

Éden. E a melhor defesa de Solow feita nesse fórum não foi a

réplica enviada pelo próprio, mas sim a de seu colaborador Joseph

E. Stiglitz. O argumento é muito simples: os modelos analíti-

129

Page 12: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

cos da economia convencional são feitos para ajudar em ques­

tões de médio prazo, isto é, para os próximos 50 ou 60 anos.

U m horizonte no qual os recursos naturais ainda poderão ser

facilmente substituíveis por capital.

Não pode ser mais patente, então, a raiz do impasse. Quan­

do se evoca a segunda lei da termodinâmica para evidenciar a

fatalidade entrópica, o horizonte temporal é evidentemente de

longuíssimo prazo. Por isso prevalece um verdadeiro anátema entre

os economistas convencionais e os ecológicos a respeito da

sustentabilidade, mesmo na tal versão chamada de "forte". E a

questão que imediatamente se coloca só pode ser a seguinte: nada

poderia preencher esse imenso vazio que separa modelos de cres­

cimento para algumas décadas da milenar fatalidade entrópica?

Não há, neste caso, um "caminho do meio"?

O que existe de diferente não chega a ser um "caminho do

meio", mas sim um desdobramento menos pessimista das ideias

de Georgescu, feito por Herman E. Daly. Sua proposta é superar

o crescimento económico pelo resgate de uma ideia formulada

por economistas clássicos, e principalmente John Stuart M i l l em

1857: a condição estacionária ("stationary state"), que Daly prefe­

re chamar de "steady-state economy", certamente por analogia à

hipótese cosmológica de que a densidade total da matéria perma­

nece constante no universo em expansão.

Stuart M i l l declarou-se francamente propenso a crer que a

"condição estacionária do capital e da riqueza" seria, no conjunto,

uma enorme melhoria, ao contrário de uma "aversão impassível",

generalizadamente manifestada pelos economistas clássicos que o

antecederam e que ele classificava "da velha escola". Como se trata

de um autor muito pouco lido nos atuais cursos das chamadas

humanidades, os próximos parágrafos resumem o pensamento de

130

M i l l sobre a condição estacionária, usando quase que literalmen­

te o seu próprio texto ( M i l l , 1983: 252-4).

Ele começa por confessar que não lhe encanta o ideal de vida

defendido por quem pensa que o estado normal dos seres huma­

nos é aquele de sempre lutar para progredir do ponto de vista

e c o n ó m i c o . Atropelar e pisar os outros, andar sempre às

cotoveladas ao encalço do outro não podem ser o destino mais

desejável da espécie humana. Na realidade, esses seriam apenas

sintomas desagradáveis de uma das fases do progresso. Um está­

gio necessário no progresso da civilização. Isso seria um incidente

do crescimento, não uma marca do declínio, pois essa condição

estacionária do capital não é necessariamente destruidora das as­

pirações mais elevadas e das virtudes heróicas, como a América,

em sua grande guerra civil, o demonstrou ao mundo, tanto pela

sua conduta como povo, quanto por numerosos exemplos esplên­

didos.

Mas esse não é o tipo de situação que os filantropos futuros

desejarão muito ajudar a construir, acrescenta M i l l . Sem dúvida,

é altamente conveniente que, enquanto as riquezas forem consi­

deradas como poder, e o tornar-se o mais rico possível for um

objetivo universal de ambição, o caminho para chegar a isso seja

aberto a todos, sem favorecimento ou parcialidade. Mas o melhor

estado para a natureza humana é aquele em que, se por um lado

ninguém é pobre, por outro lado ninguém deseja ser mais rico do

que é, nem tem motivo algum para temer ser jogado para trás

pelos esforços que outros fazem para avançar.

Evidentemente, as energias da humanidade não devem se

enferrujar e permanecer estagnadas. É mais desejável que sejam

utilizadas para conseguir riqueza do que para lutar na guerra.

Mas isso somente até o momento em que suas inteligências pos-

131

Page 13: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

sam ser educadas para coisas melhores. Enquanto estas forem pri­

mitivas e necessitarem de estímulos primitivos, que os tenham.

Entrementes, os que não aceitam o estágio atual do aperfeiçoa­

mento humano - ainda muito inicial - como o modelo último

deste, podem ser escusados por se manterem relativamente indi­

ferentes a esse tipo de progresso económico, que desperta as con­

gratulações dos políticos comuns e que consiste no simples au­

mento da produção e na acumulação de capital. Para a segurança

da independência nacional, é essencial que um país não fique

muito atrás de seus vizinhos nessas coisas. Mas, consideradas em

si mesmas, são de pouca importância enquanto o aumento da

população ou algum outro fator impedir a massa do povo de ter

alguma participação no benefício proporcionado por elas.

O aumento da produção só deveria continuar a ser uma meta

importante nos países atrasados. Nos mais avançados, o que se

necessitaria, segundo M i l l , seria de uma melhor distribuição. E

um meio fundamental seria a limitação maior da população. N i ­

velar instituições - fossem elas justas ou injustas - não poderia

bastar, pois com isso poder-se-ia apenas fazer baixar quem esti­

vesse muito por cima, em vez de fazer subir em caráter perma­

nente quem estivesse na base da sociedade.

M i l l supunha que essa melhor distribuição poderia ser ade­

quadamente atingida pelo efeito conjunto da prudência e da fru-

galidade dos indivíduos e por um sistema de legislação que favo­

recesse a igualdade das fortunas, na medida em que isso fosse

conciliável com o justo direito do homem ou da mulher aos fru­

tos, grandes ou pequenos, de seu própr io trabalho. "Podemos

pensar, por exemplo, em limitar a soma que qualquer pessoa pode

adquirir por doação ou por herança ao montante suficiente para

proporcionar uma autonomia razoável. Sob essa dupla influên-

132

cia, a sociedade apresentaria as seguintes características domi­

nantes: um conjunto de trabalhadores bem remunerados e aflu­

entes e inexistência de fortunas enormes, a não ser que fossem

ganhas e acumuladas durante uma ú n i c a ex i s t ênc i a ; em

contrapartida, um conjunto, muito maior do que atualmente, de

pessoas não apenas livres das ocupações mais duras, mas também

dispondo de lazer suficiente, tanto físico quanto mental, para se

libertarem de detalhes mecânicos e poderem cultivar livremente

os encantos da vida, e para darem exemplos disso às classes menos

favorecidas para o cultivo desses valores" (Mi l l , 1983: 253).

Enfim, Stuart M i l l imaginava uma sociedade com tais carac­

terísticas como altamente preferível àquela que via na parte mais

avançada do mundo de meados do século XIX. E não achava que

ela seria apenas perfeitamente compatível com a condição estaci­

onária. Afirmava que ela se coadunaria com mais naturalidade

com essa condição estacionária do que qualquer outra. Além dis­

so, achava que nos países mais povoados já havia sido atingida a

densidade necessária para possibilitar à humanidade obter, no

grau máximo, todas as vantagens da cooperação e do intercâmbio

social.

Uma população pode ser excessiva, mesmo que todos tenham

abundância de alimentos e de roupa. Não é bom que o homem

seja forçado em todos os momentos a estar no meio de seus seme­

lhantes. Um mundo do qual se extirpa a solidão é um ideal muito

pobre. A solidão, no sentido de estar muitas vezes a sós, é essen­

cial para qualquer profundidade de meditação ou de caráter; e a

solidão na presença da beleza e da grandeza natural é o berço de

pensamentos e aspirações que não apenas são bons para o indiví­

duo, mas também algo sem o qual dificilmente a sociedade pode­

ria passar.

133

Page 14: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

M i l l não via como se poderia sentir muita satisfação em con­

templar um mundo em que não sobrasse espaço para a atividade

espontânea da natureza: um mundo em que se cultivasse cada naco

de terra capaz de produzir alimentos para seres humanos, um mun­

do em que toda a área agreste e florida ou pastagem natural fosse

arada, um mundo em que todos os quadrúpedes ou aves não domes­

ticados para consumo humano fossem exterminados como rivais do

homem em busca de alimento, um mundo em que cada árvore su­

pérflua fosse arrancada, e raramente sobrasse um lugar onde pudesse

crescer um arbusto ou uma flor selvagem, sem serem exterminados

como erva daninha, em nome de uma agricultura aprimorada.

"Se a Terra tiver que perder a grande parte de amenidade que

deve a coisas que o aumento ilimitado da riqueza e da população

extirpariam dela, simplesmente para possibilitar à Terra sustentar

uma população maior, mas não uma população melhor ou mais

feliz, espero sinceramente, por amor à posteridade, que a popula­

ção se contente com permanecer estacionária, muito antes que a

necessidade a obrigue a isso" ( M i l l , 1983: 254).

Colapso nervoso

O otimismo de M i l l entrevia grandes mudanças no destino

humano. Somente quando, além de instituições justas, o aumen­

to quantitativo da humanidade for guiado de forma planejada

pela previsão criteriosa, somente então as conquistas sobre as for­

ças da natureza conseguida pelo intelecto e pela energia de pes­

quisadores científicos poderão transformar-se em propriedade co­

mum da espécie humana, bem como em meio para melhorar e

elevar a sorte de todos.

Como já foi enfatizado no primeiro capítulo, mas vale a pena

repetir, o padrão de vida médio na Europa e nos Estados Unidos

134

praticamente quadruplicou nos 150 anos que separaram o final

do século X V I I I do abalo sísmico da crise de 1929, como disse

Keynes, graças aos avanços científico-tecnológicos obtidos "atra­

vés do carvão, do vapor, da eletricidade, do petróleo e do aço, da

borracha, do algodão e das indústrias químicas, das máquinas

automáticas e dos métodos de produção de massa, do telégrafo e

da imprensa, de Newton, Darwin e Einstein, e milhares de ou­

tras coisas, homens famosos e conhecidos demais para enume­

rar". Pelos cálculos de Keynes, o crescimento do capital deu-se

numa escala bem superior a uma centena de vezes do que jamais

existiu em qualquer período anterior. "E de agora em diante, não

precisamos esperar um aumento tão grande da população" (Keynes,

1984: 153).

Considera-se em geral que o parto do crescimento económi­

co moderno ocorreu durante os noventa anos de revoltas e revolu­

ções políticas que separaram a prolongada resistência das treze

colónias norte-americanas à política colonial britânica (da qual

resultou a Declaração de Independência em 1776) e a queda do

governo Tokugawa, no Japão, em janeiro de 1868. Foi durante

esses noventa anos que a Revolução Industrial atingiu as nações

que fazem parte do seleto Primeiro Mundo. E não pode haver

dúvida sobre a ruptura introduzida pela indústria, pois, de 1700

a 1990, o desempenho económico europeu foi mais de vinte ve­

zes superior ao dos sete séculos anteriores. O brilhante historia­

dor económico Paul Bairoch estimou que, na melhor das hipóte­

ses, a produtividade do conjunto da economia europeia dobrou

entre os anos 1000 e 1700, sendo que ela foi multiplicada por 45

nos quase três séculos posteriores. Todavia, quando examinou mais

em detalhe o crescimento económico moderno, o próprio Bairoch

(1987) foi levado a fazer uma clara distinção entre o per íodo

135

Page 15: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

anterior e posterior à interpenetração entre ciência e técnica, si­

multânea à expansão dos sistemas educacionais.

Apesar de alertar para uma nova doença, a respeito da qual

alguns de seus leitores ainda não teriam ouvido falar, mas sobre a

qual certamente ouviriam muito nos anos seguintes - o desem­

prego tecnológico - , Keynes se mostrava tão ou mais confiante

que M i l l sobre o que se poderia esperar para os cem anos posteri­

ores a 1930. O crash de 1929 não tirou seu otimismo sobre as

possibilidades económicas de seus netos, frase que deu título ao

ensaio. Seria, segundo ele, "apenas uma fase t emporá r i a de

desajustamento. Afinal, tudo isto significa que a humanidade está

resolvendo seu problema económico. Eu prediria que o padrão de

vida nos países em progresso será daqui a cem anos entre quatro e

oito vezes maior do que o atual. E não seria absurdo considerar a

possibilidade de um progresso ainda maior" (Keynes, 1984: 153).

Contrariamente ao que se poderia deduzir desse forte o t i ­

mismo que certamente foi confirmado pelos acontecimentos, as

subsequentes conjecturas de Keynes se desdobram em direção

semelhante às de M i l l . Sua conclusão foi que, se não houvesse

grandes guerras ou grande aumento da população, o problema

económico poderia ser resolvido ou, pelo menos, ter uma solução à

vista nos cem anos subsequentes. Isto significa que o problema

económico não constitui — se olharmos para o futuro - o proble­

ma permanente da humanidade.

"Por que - perguntariam vocês - que isso é tão surpreenden­

te? É surpreendente porque - se em vez de olharmos para o futu­

ro, olharmos para o passado - verificaremos que o problema eco­

nómico, a luta pela subsistência, sempre foi o problema funda­

mental e mais premente da raça humana - não só da raça huma­

na, mas de todo o reino biológico, desde o início da vida em suas

136

formas mais primitivas". "Dessa maneira, estivemos expressamente

envolvidos pela natureza - com todos os nossos impulsos e os

mais profundos instintos - na tarefa de resolver o problema eco­

nómico. Se o problema económico for resolvido, a humanidade

ficará privada de seu objetivo tradicional" (Keynes, 1984: 155).

"Será isso um benefício? Se de alguma forma acreditamos

nos valores reais da vida, essa perspectiva pelo menos abre uma

oportunidade de benefício. Contudo, penso com pavor no rea­

justamento dos hábitos e instintos do homem comum, nele cul­

tivados por incontáveis gerações, e que, daqui a algumas décadas,

ele poderá ser solicitado a pôr de lado. Na linguagem atual, não

será de se esperar um 'colapso nervoso' geral? Já temos um pouco

de experiência do que quero dizer - um colapso nervoso do tipo

que já é comum na Inglaterra e nos Estados Unidos, entre as

mulheres das classes privilegiadas. Muitas dessas infelizes criatu­

ras, privadas pela riqueza de suas tarefas e de suas ocupações tra­

dicionais, não conseguem achar suficientemente satisfatória a si­

tuação em que, não tendo necessidade económica de cozinhar,

limpar e remendar, são, contudo, incapazes de descobrir alguma

ocupação mais agradável. Para os que suam pelo seu pão cotidia-

no, o lazer constitui uma doçura esperada - até ser obtida"

(Keynes,1984: 155).

Outro jargão '

O caráter obviamente machista dessa última observação não

impede que se perceba a proximidade entre essas ideias de Keynes

e as que foram formuladas mais de sessenta anos antes por Stuart

M i l l . Para este, a condição estacionária seria uma situação sem

crescimento da população e do estoque físico de capital, mas com

cont ínua melhoria tecnológica e ética. E para Daly, esta seria a

137

Page 16: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

19 W

ideia mais relevante para pensar nas economias já maduras do

chamado "Norte" (ou "desenvolvidas", como, infelizmente, se cos­

tuma dizer). Pensando nesses termos, a sustentabilidade é uma

questão muito mais crítica para o Norte do que para os periféricos

do Sul. Ela precisa ser antes de tudo atingida lá onde o nível de

uso dos recursos é simultaneamente suficiente para permitir boa

vida à popu lação e compat ível com a capacidade de suporte

ambiental.

O crescimento da população e da produção não deve levar a

humanidade a ultrapassar a capacidade de regeneração dos recur­

sos e de absorção dos dejetos. Nos países do centro, tanto a pro­

dução quanto a reprodução já deveriam estar voltadas apenas à

reposição. O crescimento físico deveria cessar, com continuidade

exclusiva de alterações qualitativas. Ou seja, na visão de Daly, a

ideia do desenvolvimento sustentável teria quase 150 anos, pois

só foi formulada com outro jargão. Desenvolvimento sustentável

quer dizer, para Daly, desenvolvimento sem crescimento.

Essa mudança radical de uma economia do crescimento, com

tudo que isso implicaria, para uma economia estável (mas não

estática), que começaria pelo Norte e mais tarde também seria

adotada pelo atual Sul, é difícil de ser vislumbrada. Mas Daly

propõe quatro políticas inter-relacionadas em ordem crescente

de radicalismo. As duas primeiras seriam até conservadoras, fun­

damentalmente neoclássicas, e não deveriam ser objeto de muita

controvérsia, embora infelizmente o sejam. A terceira certamente

exigiria muito debate, e a quarta com certeza seria considerada

totalmente fora de propósito pela esmagadora maioria dos econo­

mistas (Daly, 1997: 179).

Em primeiro lugar, é preciso acabar com essa loucura de

contabilizar o consumo de capital natural como renda. Renda,

138

por definição, é o montante máximo que uma sociedade pode

consumir este ano (com uma dada base de recursos) e ainda ser

capaz de consumir o mesmo montante no próximo ano. Ou seja,

o consumo, este ano, se for chamado de renda, deve deixar intacta

a capacidade de se produzir e consumir o mesmo volume no ano

próximo. Assim, a noção de sustentabilidade está inserida na pró­

pria definição de renda. No entanto, a capacidade produtiva que

deve ser mantida intacta tem sido tradicionalmente entendida

somente como capital construído pelo homem, excluindo-se o

capital natural.

Tem-se habitualmente computado o capital natural como

um bem livre. Isto até poderia se justificar no mundo relativa­

mente vazio de antigamente. Mas no repleto mundo de hoje,

nada existe de mais antieconômico. E esse erro de implicitamen­

te contabilizar o capital natural como renda domina três âmbitos

cruciais: o Sistema de Contas Nacionais, a avaliação de projetos

que exaurem capital natural e a contabilidade do balanço inter­

nacional de pagamentos.

No caso das contabilidades nacionais, a questão é bem reco­

nhecida, e esforços estão em curso para que tão crasso erro seja

corrigido. Várias organizações internacionais, a começar pelo pró­

prio Banco Mundial, empenham-se hoje para encontrar a melhor

maneira de esverdear o PIB e o PNB. Já no caso da avaliação de

projetos, a situação é ambígua. Ele é há muito reconhecido pelos

economistas convencionais que apontam para a necessidade de se

contar o "custo de uso" (encargos de depleção) como parte do

custo de oportunidade de projetos que consomem recursos natu­

rais. Todavia, quase sempre isso acaba sendo deixado de lado na

prática usual das instituições de financiamento, a começar (outra

vez) pelo Banco Mundial. Custos de uso não contabilizados apa-

139

Page 17: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

recém em benefícios líquidos inflados e em taxas de retorno supe­

restimadas. Isto enviesa a alocação de investimentos na direção de

projetos que causam depleção de capital natural, afastando-os de

projetos mais equilibrados ou menos distorcidos.

Corrigir tal viés é o primeiro passo lógico na direção de uma

política de desenvolvimento sustentável. O custo de uso deve ser

contado não somente em face da depleção de recursos não renováveis,

mas também no caso de projetos que exploram recursos naturais

renováveis sem respeito pelo patamar de reprodução. A função de

sorvedouro, ou serviços de absorção prestados pelo capital natural,

pode igualmente se esgotar se usada além de certo ponto. Portanto,

um custo de uso deve ser computado em projetos que comprome­

tem a capacidade de assimilação, tal como a possibilidade de um rio

transportar resíduos, ou da atmosfera absorver dióxido de carbono.

E na contabilidade do balanço de pagamentos, a exportação

de capital natural extraído, seja petróleo ou madeira cortada além

do patamar de reprodução, entra na conta corrente e assim é

tratada inteiramente como renda. No entanto, alguma porção

dessas exportações deveria ser tratada como ativo, entrando na

conta capital. Se isso fosse feito dessa maneira, alguns países veri­

am seus aparentes superávits na balança comercial convertidos

em déficits atualmente financiados por saques e transferências ko

exterior de seu estoque de capital natural. Reclassificar transações /

de forma a converter superávits na balança comercial em redon­

dos déficits exigiria o desencadeamento de recomendações intei­

ramente novas pelo F M I , assim que essa instituição começasse a

se preocupar de fato com a sustentabilidade do desenvolvimento.

A segunda política recomendada por Daly é tributar menos

a renda e taxar mais o uso de recursos naturais. Além de remover

os subsídios financeiros explícitos ao uso de energia, água, fertili-

V 140

d» <

uri

zantes e até ao desmatamento, será necessário também retirar os

implícitos. Ou seja, todos os custos externos para as comunida­

des gerados pela produção de mercadorias sobre as quais eles não

incidem. A maneira mais simples e operacional seria distanciar a

base de impostos do trabalho e da renda, principalmente quando

se lembra o quanto é distorcido um sistema que taxa trabalho e

renda em situação de imenso desemprego. Isso só desencoraja o

que mais se gostaria de promover: a ocupação.

Seria muito melhor economizar no uso da natureza devido

aos altos custos externos de suas respectivas depleção e poluição,

e simultaneamente favorecer a ocupação de mão-de-obra capaz

de reduzir o desemprego. Em poucas palavras, elevar a produtivi­

dade dos recursos naturais. É verdade que são limitadas as possi­

bilidades desse tipo de substituição entre recursos naturais e tra­

balho, mas é preciso tirar o máximo partido das que existem.

Realizar essa mudança na base da taxação induz maior eficiência

no uso dos recursos naturais e internaliza, de maneira rude e

grosseira, as externalidades de depleção e poluição.

Do ponto de vista político, a introdução de ecotaxas pode

ser vendida sob a bandeira da neutralidade da receita: o mesmo

montante de dinheiro será retirado da coletividade, mas de um

jeito bem diferente. Mesmo mantendo o perfil progressivo do

imposto de renda, que permite subsidiar" famílias de renda muito

baixa, o grosso da receita pública deveria ser extraído de impostos

sobre o uso da natureza, quer na ponta da depleção, quer na da

poluição, mas especialmente da primeira. O u seja, a finalidade

da manutenção do imposto de renda seria a redistribuição e não

a geração de recursos governamentais.

Essa reforma tributária ecológica, crucial para o ajustamento

estrutural, deve ser realizada gradualmente e começar pelas soci-

141

Page 18: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

edades do núcleo central, ou orgânico, da economia mundial. O

que mostra bem a dificuldade da operação, pois as organizações

internacionais que já estão adotando o discurso do desenvolvi­

mento sustentável têm enorme poder de pressão sobre o Sul, mas

quase nenhum sobre o Norte.

As duas políticas mais controversas

A terceira política recomendada por Daly é a de maximizar a

produtividade do capital natural no curto prazo e investir no

crescimento de sua oferta no longo. Não há desacordo sobre o

princípio lógico de que se deva lidar dessa forma com o fator

limitante de qualquer sistema de produção: maximizar sua pro­

dutividade hoje e investir no seu aumento amanhã. O desacordo,

como já foi bem enfatizado, é sobre o fato de se considerar o

capital natural como o fator limitante. É uma ideia que parece

irrelevante para quem acredita que recursos naturais sejam

substituíveis por capital produzido pelo trabalho humano. No

entanto, por mais exercícios que possam fazer os econometristas,

o senso comum reconhece o fato de que capital natural e capital

construído são fundamentalmente complementares e só margi­

nalmente substituíveis.

Quando o capital natural era superabundante e seu preço

era zero, realmente pouco importava saber se ele era complemen­

tar ou substituto do capital construído. Hoje, quanto mais escas­

so se torna o capital natural remanescente, mais complementar

ele se mostra. A captura de peixes, por exemplo, não é limitada

pelo número de embarcações cada vez mais eficientes, mas sim

pelos cardumes que restam. Também não é o número de serrarias

que restringe o corte de madeira, mas as florestas que continuam

de pé. O óleo cru bombeado não se l imi ta pela capacidade

142

construída de extração, mas pelos estoques de petróleo remanes­

centes. E a capacidade da atmosfera em continuar servindo como

depósi to de dióxido de carbono talvez ainda venha a ser mais

limitante que os próprios estoques de combustíveis fósseis.

Um substituto de capital natural é a mistura de capitais da

natureza e capitais produzidos pelo homem que ocorre, por exem­

plo, em florestas plantadas, criação de peixes etc. É o que pode

ser chamado de capital natural cultivado. Todavia, mesmo dentro

dessa importante categoria h íb r ida , acabarão por se tornar

limitantes os serviços complementares essenciais do capital natu­

ral, na forma de chuva, insolação, solo etc. Além disso, em termos

de biodiversidade, o capital natural cultivado sempre é inferior

aos recursos naturais propriamente ditos.

Tanto para recursos renováveis quanto para não renováveis, é

necessário fazer inversões para elevar a produtividade do uso de

recursos naturais. Aumentar a produtividade de um determina­

do recurso pode ser, sem dúvida, um bom substituto para a ut i ­

lização de maior quantidade desse recurso. No entanto, a questão

central reside no fato de que o investimento deva ser feito é no

fator limitante. Em países nos quais esse fator limitante ainda é o

capital construído, não há muito mal em ver que seu investimen­

to está sendo subsidiado. O problema é que não há mudança de

comportamento quando o fator limitante passa a ser o capital

natural. '

A quarta política recomendada por Daly é ainda mais pole­

mica que as três anteriores juntas. Sair da ideologia da integração

económica global do livre comércio, do livre movimento de capi­

tais e do crescimento promovido por exportações em direção a

uma orientação mais nacionalista que busque desenvolver a pro­

dução doméstica para mercados internos como primeira opção,

143

Page 19: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

recorrendo ao comércio internacional apenas quando claramente

muito mais eficiente. Segundo ele, o globalismo não contribui,

em geral, para um real aumento da produtividade dos recursos

naturais, mas sim para uma competição que abaixa padrões sala­

riais e externaliza custos sociais e ambientais mediante exporta­

ção de capital natural a baixos preços, enquanto os classifica como

renda.

Globalização

É profundo o choque de visões sobre a globalização. De um

lado, estão os que a enxergam como fenómeno real e pensam que

nada sintetizaria melhor a condição humana contemporânea. Do

outro, céticos, como Herman Daly, para quem tudo não passaria

de ilusão inflada pelo entusiasmo de inocentes globalistas. E nem

de longe tais visões são redutíveis a meras retóricas ou ideologias.

Há muito a se aprender com os dois campos, desde que se consi­

ga separar o trigo do joio que em ambos prolifera.

Enquanto os melhores globalistas mostram a crescente im­

portância de problemas mundiais que engendram cada vez mais

consciência sobre o destino comum da humanidade, os melhores

céticos alertam para a contínua primazia de interesses nacionais e

de fatos culturais que dão sentido às identidades socioterritoriais.

Tanto quanto os primeiros insistem no crescimento explosivo dos

mercados financeiros durante o último quarto do século passado,

seus contestadores enfatizam a organização das economias reais,

lembrando das insignificantes mudanças nas proporções entre

comércio e PIB ao longo de todo o século, ou das raízes geográfi­

cas das multinacionais.

Examinar esse debate com serenidade - "a mais impolítica

das virtudes", segundo o saudoso pensador piemontês Norberto

144

Bobbio - exige ponderação dos bons argumentos lançados por

ambos os lados, com o intuito de discernir terreno comum que

conduza a algo mais consistente, exatamente o contrário dos que

pensam que haveria "consenso" sobre um suposto "fracasso" da

globalização. A falta de cabimento de se falar em consenso sobre

a globalização está magistralmente exposta em opúsculo que David

Held redigiu com Anthony McGrew, intitulado An Introduction

to the Globalization Debate, publicado em português com o título

Prós e contras da globalização (2001).

Depois de dissecar as principais frentes de desacordo entre

globalistas e céticos, a dupla vislumbra cinco áreas de convergên­

cia. Os "trigos" dos dois lados tendem a aceitar que esteja ocor­

rendo: a) maior interligação económica nas e entre regiões do

mundo, ainda que com consequências multifacetadas; b) novas

desigualdades e abalo de velhas hierarquias, ambos provocados

pela c o m p e t i ç ã o inter-regional; c) ampl i ação de problemas

transnacionais e transfronteiriços (como lavagem de dinheiro ou

d isseminação de organismos geneticamente modificados, os

OGMs); d) expansão das formas de gestão internacional - como

a União Europeia e a Organização Mundial do Comércio ( O M C )

- , que traz novas interrogações sobre o tipo de ordem mundial a

ser construída; e) exigência de novas maneiras de pensar e de dar

respostas criativas sobre as futuras formas democráticas de regulação

política. /

Há, entretanto, pelo menos uma sexta face da globalização,

bem enfatizada em outro livro do grupo de David Held (1999),

que não poderia ser ignorada até pelo pior dos analistas céticos. É

inédito o reconhecimento do caráter planetário da apreensão sobre

a decadência ambiental. E não é por outra razão que os movimen­

tos ambientalistas são os que mais questionam (e até desafiam) a

145

Page 20: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

manutenção do Estado-Nação como principal lócus de legitimida­

de do poder. Aliás, não é mera coincidência o fato de terem sido os

Verdes os primeiros a fundarem um partido europeu, mediante a

fusão de 32 formações políticas nascidas em países que, em grande

maioria, farão parte da UE. Esse primeiro partido europeu foi fun­

dado em Roma, durante o carnaval de 2004.

O desgaste da camada de ozônio, o aumento do efeito estufa

e as perdas de biodiversidade são problemas globais em sua pró­

pria génese e âmago. São três questões que explicitam o cerne dos

conflitos sociais sobre a sustentabilidade. Este cerne reside na

dificuldade de, preservar e expandir as liberdades substantivas de

que as pessoas hoje desfrutam sem comprometer a capacidade

das futuras gerações desfrutarem de liberdade semelhante ou

maior. Por isso, não poderia ter sido mais oportuna a exposição

dessa tese por Amartya Sen no suplemento Mais!, da Folha de

S.Paulo de 14/03/04. Mesmo que se atribua absoluta supremacia

ao antropocentrismo, ainda assim a questão central é a de garan­

tir condições para que as futuras gerações possam desfrutar de

liberdade bem maior que a atual.

São transcendentes duas ideias desse artigo do prémio Nobel

de 1998. A primeira é a crítica ao que muitos supõem ser o "con­

ceito" de desenvolvimento sustentável. A versão original, do Rela­

tório Brundtland, comparava as "necessidades" desta e das próxi­

mas gerações. Na forma ampliada por Robert Solow, a compara­

ção passou a ser entre "padrões de vida", mas está ausente das

duas versões a liberdade dos humanos para salvaguardarem aqui­

lo que valorizam e aquilo a que atribuem importância. "Nossa

razão para valorizar determinadas oportunidades não precisa sem­

pre derivar da contribuição que elas oferecem ao nosso padrão de

vida", escreveu Amartya Sen.

146

A segunda se refere ao senso de responsabilidade quanto ao

futuro das espécies. É justamente pelo fato de a espécie humana ter

conseguido se tornar a mais poderosa que ela deve ter responsabili­

dade para com as outras, em generoso e altruísta esforço por mino­

rar tal assimetria. Se uma comunidade humana demonstra prefe­

rência pela conservação de determinado ecossistema em vez da im­

plantação de um parque de diversões, por exemplo, isto só pode ser

sinal de que interesses estreitamente locais foram subordinados a

uma bem mais vasta atenção global a valores morais e estéticos.

Governança

Uma eventual adoção pelos países centrais daquelas quatro

políticas básicas propostas por Herman Daly, e de tantas outras

necessárias para que pudessem empreender uma transição para

um processo de desenvolvimento sem crescimento, exigiria um

verdadeiro choque de al truísmo. Nas palavras de Daly (1996:

201): "a change ofheart, a renewal ofthe mind, and a healthy dose

of repentance". Três evocações religiosas, que ele usa de propósito,

por considerar que mudança tão profunda no rumo das socieda­

des contemporâneas — quer se queira ou não — é essencialmente

religiosa. E acrescenta que sabe muito bem que a melhor maneira

de marginalizar uma questão no ambiente académico é classificá-

la de religiosa. Todavia, como bom católico, parece-lhe absurdo

não dar à Bíblia os créditos que lhe são devidos pelos princípios

éticos e morais hoje expostos e analisados por famosos pensadores

laicos, como John Rawls, Robert Nozick e Amartya Sen. Além

disso, também não é impossível encontrar exemplos históricos de

mudanças radicais que emergiram de motivações extra-econômi-

cas e foram fortemente influenciadas por valores e ideais, como

argumenta Romeiro (2000).

147

Page 21: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

Raciocínio diferente, mas igualmente exploratório, é feito

por Douglass E. Booth (1998), um entusiasta das ideias de Daly.

Para ele, o problema central está na força dos interesses que preci­

sarão ser contrariados, principalmente nos países mais ricos. Não

existe resposta fácil, e ela é altamente especulativa. Por isso, pro­

põe um brevíssimo exame de duas possíveis vias de transição.

A primeira, que lhe parece mais óbvia, seria um brusco corte no

suprimento de petróleo motivado por crise política no Oriente Mé­

dio. Em prazo mais longo, um eventual esgotamento das reservas de

petróleo e de gás teria o mesmo efeito, sempre segundo Booth. A

explosão do custo energético do sistema certamente engendraria es­

forços de conservação e a procura de substitutos em fontes renováveis.

Todavia, além dos riscos de uma volta ao carvão e de uma possível

retomada do alto consumo caso a crise política fosse ultrapassada,

Booth pondera que uma tal via implicaria danos económicos e rup­

turas sociais que poderiam ser evitadas por uma transição planejada.

Bem melhor seria, evidentemente, que a t e n d ê n c i a

incremental da consciência coletiva sobre os problemas ambientais

se acelerasse. Com mais força política, o movimento ambientalista

poderia ter sucesso cada vez maior nas batalhas por regulamenta­

ções, principalmente no âmbito dos acordos internacionais. Para

Booth, a maior dificuldade, neste caso, é saber se o tempo neces­

sário para tal processo institucional não seria superior ao ritmo da

degradação ambiental, principalmente no que se refere ao aque­

cimento global. Pode ficar muito tarde para que se consiga uma

reversão. Muito dependeria, segundo ele, da possibilidade de ex­

pansão da democracia económica, na perspectiva que tem sido

chamada de "economia solidária". E outra tendência que muito

poderia ajudar seria o desejo por mais lazer. Com mais tempo

livre e maior participação em atividades culturais, a população

148

seria levada a valorizar cada vez mais a natureza, reduzindo o

aumento do consumo material.

Seja como for, a contradição entre o atual imperativo do cres­

cimento económico e a finitude dos recursos do planeta acabará

por se resolver de alguma maneira. Impossível prever, entretanto,

se essa solução decorrerá de uma governança cada vez mais

esclarecida do desenvolvimento, de hecatombes provocadas por

catástrofes ambientais, ou de alguma outra saída mais difícil de

se imaginar. Nada disso pode ser antecipado por duas razões bem

singelas. Primeiro, porque ainda está engatinhando o conheci­

mento científico sobre a conexão entre os fenómenos humanos e

ecológicos. Segundo, porque esse limitado conhecimento cientí­

fico já indica a completa indeterminação dos sistemas adaptativos

complexos, como são os sistemas vivos. Para prazos estimados em

gerações, em vez de anos ou décadas, de nada valem as projeções

do passado recente, por mais argutas que consigam ser.

Essa cegueira sobre as possibilidades futuras de formas sus­

tentáveis de organização social só poderá diminuir com o aperfei­

çoamento das metodologias científicas voltadas à montagem de

cenários. Contrariamente às projeções e às previsões, que tendem

a ser essencialmente quantitativas e a ter poucos pressupostos, os

cenários são narrativas lógicas que procuram justamente lidar com

as mais prováveis mudanças de rumo.'Ao explicitarem visões de

mundo alternativas e desafiarem'as posturas convencionais, os

cenários ajudam a identificar problemas que podem estar na pe­

numbra, mas são cruciais para o desenvolvimento humano.

Só solução global

Foi exatamente por isso que o Stockolm Environment Institute

atraiu analistas com longa experiência nesse tipo de abordagem

149

Page 22: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

para que integrassem o Global Scenario Group. O primeiro rela­

tório desse grupo, intitulado Branch Points: Global Scenarios and

Human Choice, apresenta seis cenários embutidos em três visões

básicas sobre o futuro — convencional, barbárie e grandes transi­

ções - , cada uma contendo duas variantes. Quem conhece o valor

pedagógico da utilização da abordagem de cenários certamente

tirará muito proveito do artigo publicado na edição de abril de

1998 da revista Environment, na qual dois diretores do Stockholm

Environment Institute, os cientistas Gilberto Gal lopín e Paul

Raskin, publicaram uma síntese do relatório Branch Points.

Além do simples prolongamento do status quo, que forneceu

o cenário I , de referência, o grupo incluiu na visão convencional

uma variante I I , reformista, que corresponderia à progressiva ado-

ção de propostas políticas já formuladas nas últimas décadas, em

parte consagradas na Rio-92. Além da possibilidade de uma de­

sintegração institucional e económica contida num cenário I I I ,

de colapso, o grupo incluiu na visão barbárica uma variante IV,

autoritária, que permitiria tanto a proteção das elites em alguns

enclaves bem manejados, quanto o controle da massa de excluí­

dos bem longe dessas fortalezas. Além da possibilidade V, de uma

progressiva adoção do ideário verde mais radical, do tipo "small is

beautifuF, qualificada de "ecocomunitária", o grupo incluiu na

visão das grandes transições uma variante V I na qual os mesmos

objetivos seriam atingidos com intensa globalização. Estes dois

últimos cenários, decorrentes da visão mais idealista, podem pa­

recer excessivamente utópicos. Mas o grupo alerta que eles não

são menos plausíveis do que as propostas de sustentabilidade que

excluem profundas transformações sociais.

A principal conclusão desse exercício patrocinado pelo

Stockólm Environment Institute elimina qualquer possibilidade

150

de soluções separadas, uma para o núcleo formado pelos países

mais desenvolvidos e outra para as nações periféricas e semi-perifé-

ricas. Só uma verdadeira solução global poderia garantir um futuro

humano e sustentável, afirma o Global Scenario Group. E ela exi­

giria que a formulação das políticas públicas assumisse desde já as

escalas da humanidade e da biosfera. Uma conclusão que pode ser

facilmente tachada de romântica, principalmente numa conjuntu­

ra que parece apontar para os dois cenários da visão barbárica como

os mais prováveis. Mas não se deve esquecer que também tendem a

crescer os anseios de uma relação mais saudável com a natureza, as

rejeições às extravagâncias consumistas, as ressurreições de laços

comunitários e, sobretudo, as tentativas de encontrar mais sentido

para a vida humana. Mesmo que esses valores ainda estejam muito

dispersos e incipientes, eles poderão fazer emergir o cenário V I , de

sustentabilidade em contexto de globalização.

A conclusão mais incisiva do estudo refere-se, contudo, ao

cenário I I , reformista, que supõe a firme adoção das propostas do

famoso Relatório Brundtland. O consumo de energia oriunda de

fontes não renováveis, por exemplo, cairia bastante a partir de

2025. Mesmo assim, a concentração de carbono na atmosfera

continuaria a crescer ao longo do próximo século, atingindo ní­

veis 25% superiores aos atuais. E foi esse tipo de resultado que

levou o grupo a afirmar que uma estratégia apoiada no Relatório

Brundtland pode até alcançar a sustentabilidade, mas numa si­

tuação na qual não valeria a pena viver ("a sustainable world but

not one that is worth living in").

E agora, José?

Como reagem os economistas diante desse dilema entre a

postura francamente otimista de sua ciência normal - a mecânica

151

Page 23: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

neoclássica - e uma outra, que poderia ser considerada apocalíptica,

no or ig ina l t e r m o d i n â m i c o de Georgescu, ou meramente

evangelista, na versão de seu discípulo Herman Daly?

Em esmagadora maioria, os economistas simplesmente ig­

noram a existência desse dilema. Usam todas as suas energias

intelectuais para continuar a crer naquilo que foram treinados a

acreditar. Por razões eminentemente pragmáticas, ou por fervor

doutrinário, dão preferência ao otimismo teórico de Robert Solow,

ou ao empírico de Grossman & Krueger. Tornam-se usuários de

versões cada vez mais recauchutadas do raciocínio neoclássico,

que sempre serão mais "pé no chão" do que sua antítese ecológica.

E entre esses dois extremos há um heterogéneo pântano que in­

siste em tentar "esverdear" outras variantes tradicionalmente anti-

eco lóg icas das c iências e c o n ó m i c a s , sejam elas de ca r á t e r

institucionalista ou duramente marxista.

Em tais circunstâncias, não existe sequer consenso sobre o

modo de classificar as correntes e tendências do pensamento eco­

nómico, segundo suas respectivas visões da questão ambiental. E

não poderiam ser mais diferentes as recentes tentativas feitas no

Brasil. Amazonas (2002: 107-286) visualiza três blocos de teori­

as: neoclássicas, institucionais e ecológicas. Romeiro (2003: 1-

29) prefere considerar apenas dois campos, os das susten-

tabilidades "fraca" e "forte", que opõem fundamentalmente - mas

não exclusivamente - os economistas neoclássicos aos que se di­

zem "ecológicos". Mueller (2004: 97-104) t ambém destaca a

oposição intrínseca entre a economia ambiental neoclássica e a

economia ecológica, mas subdivide esta última em cinco varian­

tes: "fundamentalismo socioambiental", "ambientalismo cepalino",

"ambientalismo dos pobres" (Martinez-Alier), "marxismo verde"

e "economia da sobrevivência". Montibeller-Filho (2001: 83-207)

152

já havia destacado o "ecomarxismo" como terceira vertente, ao

lado da neoclássica e da ecológica. E outras três obras t ambém

recentes que merecem ser mencionadas não chegam a apresentar

uma taxonomia das teorias económicas: Aroudo Mota (2001),

Foladori (2001) e Penteado (2004).

De que valeria propor aqui alguma outra tipologia das atuais

linhas teóricas e programas de pesquisa sobre a problemát ica

ambiental? Poder-se-ia, por exemplo, encarar a economia ecoló­

gica como uma possível resultante do debate entre neoclássicos e

"ecoenergéticos", como propôs Vivien (1994). Confrontar essas

abordagens com relação a três temáticas distintas: economia dos

recursos naturais, economia do meio ambiente e economia do

desenvolvimento sustentável, como preferiram Faucheux & Noel

(1999). O u simplesmente constatar a persistência da clivagem

entre abordagens ortodoxas - como a de Pearson (2000), por

exemplo - e diversas abordagens não apenas heterodoxas, mas

que sobretudo pretendem promover a aproximação com as ciên­

cias naturais. É a pretensão de juntar economia e ecologia que

está na base do programa de pesquisa da chamada "economia

eco lóg ica" . Basta consultar as primeiras p á g i n a s de seu

paradigmático manual, editado por Robert Costanza (1991), para

verificar que o objetivo desse movimento é superar simultanea­

mente a "economia convencional" e a "ecologia convencional".

No fundo, todas esses esforços'de classificação se equivalem,

pois as tipologias são sempre dependentes dos critérios escolhi­

dos. E qualquer tentativa de explicar como os economistas estão

voltando a dar importância à natureza será necessariamente leva­

da a fazer agrupamentos por critérios que pareçam os mais perti­

nentes ao autor. Todavia, muito mais importante do que qual­

quer dessas tipologias é a compreensão da história do pensamen-

153

Page 24: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

to económico, e entender que a economia só pôde se tornar ciên­

cia por um processo reducionista que consolidou a noção hoje

usual de "sistema económico". Um sistema formado apenas por

aqueles objetos que além de apropriados e valorados, sejam consi­

derados p rodu t íve i s . Coube a Naredo (1987) mostrar, com

meridiana clareza, que todas as tentativas atuais vão no sentido

de estender a economia para um campo que, na verdade, não é o

seu. É por isso, aliás, que alguns economistas ecológicos que pa­

recem dos mais heterodoxos acabam usando e abusando, sem a

menor cerimónia, de técnicas de valoração ambiental que foram

concebidas por seus oponentes mais ortodoxos.

Não resta dúvida de que os programas de pesquisa em eco­

nomia do meio ambiente se separam essencialmente pela ado­

ção de pressupostos contrários sobre a reversibilidade dos pro­

cessos de degradação ambiental, uma escolha que está intima­

mente associada a um horizonte temporal, de pouquíssimas ou

muitas gerações. Como diz Georgescu (1976), a atividade eco­

nómica de qualquer geração não deixa de influenciar a das gera­

ções seguintes: os recursos terrestres em energia e materiais são

irrevogavelmente degradados e se acumulam os efeitos nocivos

das poluições sobre o ambiente. Por isso, um dos principais

problemas ecológicos que se colocam à humanidade é o da rela­

ção entre a qualidade de vida de uma geração à outra, e particu­

larmente o da repartição do dote da humanidade entre todas as

gerações. Ora, a ciência económica não pode sequer sonhar com

o tratamento desse problema. Seu objeto é a gestão de recursos

raros no âmbi to de uma única geração, ou, no máximo, tam­

bém das duas seguintes. Não faz parte do raciocínio económico

a demanda e oferta de recursos naturais no ano 3000, para nem

mencionar os que poderiam existir daqui a 100 m i l anos. De

154

resto, nunca seriam mecanismos de mercado os que poderiam

proteger a humanidade de crises ecológicas, nem de otimizar a

repartição dos recursos entre gerações, por mais que se consiga

fixar preços "justos".

Ocorre, todavia, que um grande número das atuais agressões

ao meio ambiente podem, sim, ser mitigadas, ou mesmo evita­

das, por mecanismos de mercado cujas instituições resultam de

novas regulamentações, principalmente regulamentações de i n ­

centivos. E vêm daí as forças que rejuvenescem a ciência econó­

mica convencional. E sobre esta questão é fundamental o arguto

relato de casos ocorridos nos Estados Unidos, feito no fascinante

livro Tudo à venda, de Robert Kuttner. Dada a importância desse

depoimento, ele será reproduzido nas próximas páginas com as

próprias palavras de Kuttner (1998: 403-12).

Ti ro pela culatra

A primeira onda de regulação ambiental, nos anos 1970, co­

meçou com critérios de saúde pública que procuravam reduzir a

poluição em sua origem. Exigiam que as indústrias empregassem a

melhor tecnologia disponível para conformar-se às normas para a

qualidade do ar e da água, para o controle de substâncias tóxicas e

assim por diante. A lei americana do ar puro (Clean Air Aci) de

1970 obrigava que os modelos de automóveis ano 1975 apresen­

tassem uma redução de 90% na emissão de dióxido de carbono e

de hidrocarbonetos, apesar de a tecnologia necessária para atingir

esses resultados ainda não existir na época. A data de cumprimento

desses patamares teve de ser prorrogada, mas os carros dos anos

1980 já os tinham atingido e mesmo superado, graças a tecnologias

tornadas possíveis pela regulação. Hoje o controle da poluição au­

tomobilística é um negócio de 7 bilhões de dólares por ano.

155

Page 25: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

Nos primeiros anos da regulação da qualidade do ar, vários

problemas se evidenciaram. Os estados não possuíam nem a in­

formação nem os recursos para coletar dados sobre as fontes de

poluição. Alguns dos patamares de emissão especificados nos ob-

jetivos iniciais mostraram-se tecnologicamente inatingíveis, ou

proibitivamente caros. Com o tempo, a maioria dos estados con-

formou-se à maioria das normas, mas outros problemas aparece­

ram. Logo de início, os idealizadores da Lei do Ar Puro decidiram

impor normas mais exigentes às novas gerações de tecnologias de

produção. Isso parecia fazer sentido. Limpar o ar a um custo acei­

tável é uma finalidade de longo prazo. Velhas fontes de poluição

acabariam por se tornar obsoletas. Em termos de custos, parecia

muito mais eficiente exigir que novas fábricas e geradores de energia

incluíssem em seus projetos tecnologias mais limpas do que adaptar

dispendiosamente instalações velhas. Por isso, os requisitos de

emissão mais exigentes foram aqueles aplicados a novas fontes

poluentes.

Contudo, tal abordagem saiu em parte pela culatra. Muitas

usinas elétricas e outros tipos de instalações industriais acabaram

por exigir uma longevidade muito maior do que a projetada, es­

pecialmente como resultado de manutenção e renovação. Em

1990, mais de dois terços das emissões de usinas elétricas respon­

sáveis pela chuva ácida provinham de instalações com 25 anos de

idade ou mais. A imposição de requisitos mais rigorosos de con­

trole de poluição em novas instalações aumentava o custo margi­

nal de se construir uma nova usina. De modo que os padrões

mais dispendiosos de emis são impostos a novas fontes

desencorajavam perversamente a adoção de novas tecnologias.

Um segundo problema era que a solução mais barata para se

atingir padrões de qualidade do ar ambiente - chaminés altas -

156

simplesmente exportava o problema. Na primeira geração da

regulação da qualidade do ar, chaminés altas pareciam a solução

ideal. Jogar poluentes na alta atmosfera resulta num ambiente

local mais limpo, possibilitando aos estados atingir mais cedo os

patamares ambientais. Infelizmente, aquilo que sobe cai mais

adiante. O gás sulfídrico e o óxido nitroso emitidos por fábricas e

usinas do Meio-Oeste, muitas das quais queimavam carvão bara­

to e sujo, com alto teor de enxofre, voltaram à terra na forma de

chuva ácida, que caía centenas de quilómetros adiante, na Nova

Inglaterra e no Canadá. A chuva ácida matou peixes, desnudou

florestas, arruinou colheitas.

Embora o problema da chuva ácida já estivesse bem do­

cumentado desde os anos 60, o Congresso norte-americano

ficou travado por quase vinte anos até que se decidisse por

controlá-la. O dilema era a repartição dos custos. O principal

culpado era o carvão de tipo sujo, abundante na região dos

Apalaches e amplamente usado pelas empresas de eletricidade

da região central dos EUA. O Meio-Oeste era responsável por

uma parcela desproporcionalmente alta de prec ip i tações de

chuva ácida, mas controlar diretamente tais emissões não cau­

saria somente elevação dos custos locais de eletricidade; tam­

bém fecharia as portas de muitas das minas de carvão de alto

teor de enxofre de West Virgínia, Penhsylvania e Kentucky, a

um custo de dezenas de milhares tle empregos. Os estados do

Sul e do Oeste, estes últ imos detentores de um carvão muito

mais l impo, destinado à exportação, não estavam dispostos a

arcar com os custos da limpeza do Meio-Oeste, que não queria

pagar mais caro pela eletricidade, porque isso originaria uma

desvantagem competitiva regional. De modo que o impasse

permaneceu.

157

Page 26: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

Nesse ínter im, os economistas continuavam a refinar sua

posição em favor da regulação por incentivos — neste caso, a nego­

ciação de direitos de emissão. Embora de início a permissão de se

vender "direitos de poluir" tenha se configurado para muitos

ambientalistas como um modo de sancionar a poluição e de de­

gradar partes do país que ainda estavam limpas, os economistas

conseguiram demonstrar que um ambiente perfeitamente

imaculado seria inatingível. Sendo assim, o desafio colocado à

política pública era como conseguir o máximo de controle de

poluição com um mínimo de custo - independentemente de qual

controle de poluição se tratasse. Embora repulsivo à primeira vis­

ta, um sistema que cria e permite a negociação de licenças de

poluição apresenta diversas virtudes.

Antes da criação de direitos negociáveis de emissão, uma ge­

radora que emitisse gás sulfídrico em quantidade superior ao l i ­

mite permitido tinha quatro opções básicas: 1. mudar para um

c o m b u s t í v e l menos poluente; 2. incorporar tecnologia

ant ipoluição, normalmente dispositivos de dessulfurização; 3.

construir instalações novas e mais modernas; 4. apostar em que a

economia de energia reduzisse a produção e, portanto, a polui­

ção. Uma geradora mais eficiente, cujas emissões totais já se en­

contrassem abaixo dos limites admitidos, não tinha qualquer

motivo em especial para reduzi-los ainda mais, mesmo que isso

fosse tecnicamente factível e barato.

Direitos de poluir

Com a aparição dos direitos negociáveis de emissão, a gera­

dora mais suja ganhou uma quinta opção. Passou a poder com­

prar, no mercado aberto, o direito de poluir. Simultaneamente, a

geradora mais limpa passou a ter uma nova oportunidade de lu -

158

crar. Poderia reduzir ainda mais suas emissões, fazendo com que

lhe sobrasse uma quantidade maior de licenças para vender. A

virtude dessa abordagem foi que passou a permitir que as forças

descentralizadas do mercado encontrassem o caminho do menor

custo para reduzir a poluição no sistema como um todo. Caso

uma companhia de energia elétrica de Ohio concluísse que seria

mais barato trocar o carvão pelo gás natural, de modo a entrar em

conformidade com os limites de emissão, seus executivos escolhe­

riam esse caminho. Mas caso acontecesse de a mesma quantidade

de poluição poder ser reduzida de modo ainda mais barato por

uma geradora mais moderna, situada, digamos, no Colorado,

então se tornaria mais interessante para a empresa de Ohio ad­

quirir direitos excedentes de emissões da empresa do Colorado.

Haveria redução da mesma quantidade de poluição por chuva

ácida, mas a um custo menor.

A criação de uma espécie de "mercado obrigatório" mediante

negociação do direito de poluir é uma evolução sofisticada da

regulação convencional. N u m esquema de negociação de emis­

sões, as fontes ganham quando vão além dos controles mínimos

que exerceriam se o sistema fosse outro. Enquanto a regulação

convencional é concebida para forçar a empresa a internalizar seus

custos sociais, os esquemas de comercialização de emissões são

projetados para internalizar objetivos sociais nas decisões de pro­

dução da firma.

Nos quinze anos anteriores à promulgação das emendas de

1990, a EPA conduziu experimentos com a regulação de merca­

do em diversos domínios. Kuttner enfatiza que esses experimen­

tos mostraram quão essencial é o processo de formulação de polí­

ticas públicas no desenvolvimento de tais híbridos regulatórios.

Para que a p o l í t i c a referente à chuva ác ida pudesse ser

159

Page 27: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

implementada, foi necessária uma boa dose de manobra política,

pois era preciso harmonizar interesses divergentes. As regras esta­

vam sendo subitamente alteradas, e não havia uma forma "ótima"

de alocar os custos, salvo por meio de barganha política.

Fortuitamente, aconteceu de as forças políticas se conforma­

rem em um alinhamento propício. Em 1990, os ambientalistas e

os economistas, que uma década antes eram adversários desconfi­

ados, haviam encontrado algum terreno comum. A maioria dos

principais grupos ambientalistas, que inicialmente havia se me­

lindrado com a questão da venda do direito de poluir, passou a

aceitar a ideia das licenças negociáveis - caso fossem solidamente

amarradas a uma estrutura regulatória estável, que garantisse a

redução de emissões totais ao longo do tempo. Exceto os mais

doutrinários, todos os economistas reconheciam que um tal mer­

cado exigiria uma regulação significativa.

Além do desafio da política havia, o desafio do planejamen­

to. Os experimentos com créditos comercializáveis de poluição

anteriores a 1990 haviam mostrado que os planejadores tinham

de dar resposta a diversas questões técnicas complexas devido a

incertezas e custos de transação, um mercado de licenças negoci­

áveis de larga escala. Qual seria a meta nacional atingível para a

redução das precipitações de chuva ácida? Os limites de emissão

deveriam exprimir-se na forma de taxas relativas à produção ou

referir-se a quantidades totais admissíveis de poluentes? Quais

poluentes deveriam ser contemplados? E assim por diante.

Apesar de mercantil, o sistema resultante não foi de livre

mercado. E, com efeito, críticos conservadores reagiram precisa­

mente nesses termos. Lamentam que vales negociáveis não cons­

tituam realmente uma abordagem de livre mercado, pois é ainda

um órgão público que determina o nível das licenças, e estas não

160

forçam os poluidores a compensarem aqueles prejudicados pela

poluição. Nesse sistema, dizem eles, é o processo político que

determina os patamares iniciais ou ótimos de poluição, e não a

barganha entre os poluidores e aqueles que arcam com o custo da

poluição.

É importante registrar a ressalva de Kuttner sobre as possibi­

lidades de generalização do esquema. Insiste em que o sucesso da

regulação por incentivos no caso da chuva ácida não significa que

se trate de uma abordagem para qualquer t ipo de regulação

ambiental.

Ela funciona para a chuva ácida porque o problema é nacio­

nal, as fontes de poluição são isoladas e essencialmente fungíveis

e a tecnologia para medir emissões é relativamente precisa. O

regime de licenças negociáveis pode envolver uma mescla de

regulações tanto de comando e controle como de incentivos.

Outros tipos de regulação necessariamente requerem comando

direto. Por exemplo, muitíssimos produtos químicos são de tal

modo tóxicos que faz mais sentido simplesmente proibi-los do

que maquinar alguma espécie de mercado em torno do direito de

usá-los em troca de um preço muito elevado.

Em resumo, há bastante espaço para atingir metas sociais

por meio do mercado e da regulação mercantil - do mesmo modo

que, em uma economia mista, existe espaço para o mercado. Mas

a regulação por incentivos e o mecanismo de preços não propor­

cionam uma abordagem superior em todos os casos, ou todo o

tempo. E a regulação por incentivos continua a ser regulação. Só

quem alimente um ponto de vista utópico sobre os mercados

pode se surpreender com essas conclusões. O sistema no qual o

mercado privado opera é inevitavelmente estruturado pela lei e

pelas escolhas democráticas. Tais escolhas podem levar a tipos de

161

Page 28: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

economia mista relativamente eficientes ou ineficientes. Mas a

busca por um mercado livre perfeitamente puro, ou por uma

economia que seja livre de influências políticas, é uma ilusão,

conclui Robert Kuttner (1998: 403-12).

Programa mínimo

A ques tão que se coloca, portanto, é se a tão almejada

sustentabilidade poderá ser paulatinamente conquistada por

mecanismos semelhantes aos que foram acima descritos, ou se,

em algum momento, se tornará necessário adotar t ambém deci­

sões semelhantes às que Georgescu-Roegen (1976: 33-35) es­

boçou em seu "programa bioeconômico m í n i m o ' \e progra­

ma tem oito pontos, a seguir resumidos. Primeiro, proibir to­

talmente não somente a própria guerra, mas a produção de to­

dos os instrumentos de guerra. Segundo, ajudar os países sub­

desenvolvidos a ascender, com a maior rapidez possível, a uma

existência digna de ser vivida, mas em nada luxuosa. Terceiro,

d iminui r progressivamente a população até um nível no qual

uma agricultura orgânica bastasse à sua conveniente nutr ição.

Quarto, evitar todo e qualquer desperdício de energia — se ne­

cessário por estrita regulamentação - enquanto se espera que se

viabilize a utilização direta da energia solar, ou que se consiga

controlar a fusão termonuclear. Quinto, curar a sede mórbida

por "gadgets" extravagantes para que os fabricantes parem de

produzir esse tipo de "bens". Sexto, acabar t ambém com essa

doença do espírito humano que é a moda, para que os produto-

' res se concentrem na durabilidade. Sétimo, as mercadorias mais

duráveis devem passar a ser concebidas para que sejam conser­

tadas. Oitavo, reduzir o tempo de trabalho e redescobrir a im­

portância do lazer para uma existência digna.

162

9

<f

Depois de formular esses oito pontos de seu programa mínimo

bioeconômico, Georgescu reconhece que é muito difícil imaginar

que as sociedades humanas venham um dia a adotá-lo. E assim con­

clui que o destino do homem é o de ter uma vida curta, mas fogosa,

em vez de uma existência longa, mas vegetativa, sem grandes even­

tos. "Deixemos outras espécies — as amebas, por exemplo — que não

têm ambições espirituais herdar o globo terrestre ainda abundante­

mente banhado pela luz solar" (Georgescu-Roegen, 1976: 35).

A atual retórica sobre o desenvolvimento sustentável oscila

entre essa sinistra visão de futuro, delineada por Georgescu, e a

confiante crença de que surgirão, em tempo, os novos mercados e

as inovações tecnológicas capazes de evitar, ou contornar, as catás­

trofes ambientais. Por isso, além de ter surgido a já mencionada

distinção entre sustentabilidade forte e fraca, também surgiu um

sério debate sobre o caráter "objetivo" ou "subjetivo" do "concei­

to" de sustentabilidade (Hueting e Reijnders, 1998). E há ainda

quem diga ser absolutamente necessário ir além da sustentabilidade

para que seja possível abordar a atual desordem existente no rela­

cionamento humano com a natureza (Jamieson, 1998).

Na verdade, nos últimos anos, a palavra sustentabilidade pas­

sou a ser usada com sentidos tão diferentes que até já se esqueceu

qual foi a sua génese, bem anterior à atual aplicação ao desenvol­

vimento, à sociedade e até à cidade." Em algum momento das

últ imas décadas do século XX, úm velho conceito (aqui, sim,

sem aspas) da biologia populacional passou a ser transferido, por

analogia, para os sistemas humanos. Contudo, mesmo nas áreas

mais familiarizadas com o tema - floresta e pesca - , a ideia de

sustentabilidade ainda esbarra em conhecimentos rudimentares

sobre os possíveis comportamentos dos ecossistemas, como ad­

vertiu Rebelo (1996).

163

Page 29: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

Acontece que estão justamente nas fraquezas, imprecisões e

ambivalências da noção de sustentabilidade as razões de sua força

e aceitação quase total. Como dizem Nobre e Amazonas (2002:

8), essa noção só conseguiu se tornar quase universalmente aceita

porque reuniu sob si posições teóricas e políticas contraditórias e

até mesmo opostas. E isto só foi possível exatamente porque ela

não nasceu definida: seu sentido é decidido no debate teórico e

na luta política. Sendo assim, sua força está em delimitar um

campo bastante amplo em que se dá a luta política sobre o senti­

do que deveria ter o meio ambiente no mundo contemporâneo.

Além disso, esse conflito está ancorado, em última instância, nas

diferentes visões sobre a inst i tucional ização da problemát ica

ambiental.

C o m o enfatizam Nobre e Amazonas (2002: 8) , a

sustentabilidade é o carro-chefe desse processo de institucio­

nalização que insere o meio ambiente na agenda política interna­

cional, além de fazer com que essa dimensão passe a permear a

formulação e a implantação de políticas públicas em todos os

níveis nos Estados nacionais e nos órgãos multilaterais e de cará­

ter supranacional. E um dos principais resultados da disputa po­

lítica pela definição da sustentabilidade foi um claro predomínio

da economia na determinação do que devam ser a teoria e a prá­

tica do desenvolvimento sustentável (DS). "Mais do que isso, é o

mainstream da teoria económica, a economia neoclássica em sua

vertente ambiental, a teoria hegemónica na determinação do que

seja o DS e, por consequência, do que seja a própria posição do

meio ambiente na prática política, social e económica. E isto não

decorre simplesmente da posição hegemónica de que já dispõe a

economia neoclássica no âmbito da teoria económica, mas igual­

mente de sua posição hegemónica estratégica nos órgãos de

164

regulação e fomento de caráter mundial, como o F M I ou o Banco

Mundial" (Nobre e Amazonas, 2002: 9).

/

Por evocar, em última instância, uma espécie de "ética de

p e r p e t u a ç ã o da humanidade e da vida" , a e x p r e s s ã o

sustentabilidade passou a exprimir a necessidade de um uso

mais responsável dos recursos ambientais, o que só pode ser

complicado para qualquer corrente de pensamento que se fun­

damente no utilitarismo, individualismo e equilíbrio, como é o

caso da economia neoclássica, isto é, numa racionalidade da

maximização das utilidades individuais com a resultante deter­

minação do uso "ót imo" ou "eficiente" dos recursos em equilí­

brio. Todavia, como "uso ót imo" e "uso sustentável" são catego­

rias que atendem a critérios distintos - o de eficiência e o de

equidade - , Amazonas (2002: 108) apresenta a economia

ambiental neocláss ica como u m esforço de compatibi l izar

"otimalidade" com "sustentabilidade". E depois de examinar

todos os meandros das diversas variantes da economia neoclássica,

institucionalista e ecológica, o autor conclui que a questão é

aberta e de natureza ética: fazer ou não opções normativas na

direção do favorecimento de gerações futuras, abrindo mão de

afluência imediata (Amazonas, 2002:278).

Sendo uma questão primordialmente ética, só se pode lou­

var o fato da ideia de sustentabilidade ter adquirido tanta impor­

tância nos últimos vinte anos, meímo que ela não possa ser en­

tendida como um conceito científico. A sustentabilidade não é, e

nunca será, uma noção de natureza precisa, discreta, analítica ou

aritmética, como qualquer positivista gostaria que fosse. Tanto

quanto a ideia de democracia - entre muitas outras ideias tão

fundamentais para a evolução da humanidade - , ela sempre será

contraditória, pois nunca poderá ser encontrada em estado puro.

165

Page 30: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

Como enfatizou Georgescu-Roegen (1999: 43-47), logo no iní­

cio de seu principal livro, sobre o papel da entropia no processo

económico, sempre será possível encontrar características não de­

mocráticas no país mais democrático do mundo, como sempre

será possível encontrar aspectos democráticos em países subjuga­

dos por regimes ditatoriais.

Todavia, se só há bons motivos para louvar essa rápida ado­

ção do adjetivo sustentável, esse é justamente o motivo de se per­

guntar se a ideia de ser humano que ele abarca é suficientemente

abrangente. E é aqui que se concentra a elegante crítica de Amartya

Sen à definição mais aceita, proposta em 1987 pelo pioneiro ma­

nifesto Nosso futuro comum (Relatório Brundtland). Além das

cruciais "necessidades" das atuais e futuras gerações, tão enfatizadas

nesse documento, as pessoas também têm valores. Valorizam prin­

cipalmente sua própria capacidade de pensar, avaliar, agir e parti­

cipar. Ver os seres humanos apenas em termos de necessidades é

fazer uma ideia muito insuficiente da humanidade, diz o prémio

Nobel de Economia de 1998 (Sen, 2004: 17).

As pessoas não são apenas pacientes, cujas demandas reque­

rem atenção, mas também agentes, cuja liberdade de decidir qual

valor atribuir às coisas e de que maneira preservar esses valores

pode se estender muito além do atendimento de suas necessida­

des. É preciso perguntar, então, se as prioridades ambientais não

deveriam também ser encaradas em termos de sustentação das

liberdades humanas. "No contexto ecológico, basta considerar

um ambiente deteriorado, no qual as gerações futuras não pode­

rão respirar ar fresco (devido às emissões poluentes), mas no qual

essas gerações futuras sejam bem ricas e bem servidas de outros

confortos que seu padrão de vida talvez se sustente. Uma aborda­

gem de desenvolvimento sustentável seguindo o modelo de

166

Brundtland-Solow talvez se recuse a ver qualquer mérito nos pro­

testos contra essas emissões, sob a justificativa de que a geração

futura terá ainda assim um padrão de vida pelo menos igual ao

atual. Mas isso desconsidera a necessidade de políticas de restri­

ção de emissões que possam ajudar as gerações futuras a ter a

liberdade de desfrutar do ar fresco que soprava para as antigas

gerações" (Sen, 2004: 18).

Como se pode constatar a partir dessa crítica de Amartya

Sen à versão mais amplamente aceita da noção de sustentabilidade,

o debate científico está neste caso bem menos amadurecido do

que o debate sobre a ideia de desenvolvimento.

Sete transições

O destino da biosfera está virtualmente ligado a todos os

aspectos do futuro do homem e, por isso mesmo, exige mais do

que nunca uma agenda de pesquisas científicas. Uma agenda que

conclame pessoas de muitas instituições e de uma ampla varieda­

de de disciplinas a pensar juntas sobre se pode haver cenários

evolutivos que conduzam da situação presente para um mundo

"quase-sustentável no século X X I " , na visão do prémio Nobel de

Física de 1969, Murray Gell-Mann. Ao explicar o que entende

por "sustentável", começa por lembrar que o significado literal da

palavra é inadequado. A ausência completa de vida na Terra pode

ser sustentável por milhões de anos, mas não é isto o que se quer

dizer. A tirania universal pode ser sustentável durante gerações,

mas também não é isto que se pretende. Imagine-se, então, um

mundo muito apinhado e altamente regulado, talvez extrema­

mente violento, com apenas algumas espécies de plantas e ani­

mais sobreviventes (estes últimos intimamente relacionados com

a sociedade humana). Mesmo que estas condições possam de al-

167

Page 31: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

gum modo ser mantidas, elas também não correspondem ao que

se quer dizer com mundo sustentável. Enfim, o que Gell-Mann

(1996: 356) quer mostrar é que o que se está procurando "abarca

um tantinho de desejabilidade junto com a sustentabilidade".

Surpreendentemente, diz ele, há um certo acordo hoje sobre o

que seja desejável. H á um certo consenso sobre as aspirações da

humanidade que se corporificam, por exemplo, em declarações

das Nações Unidas.

Que tipo de futuro se está visualizando, então, para o plane­

ta e para a humanidade quando se mistura aos desejos uma dose

de realismo? Certamente não se pensa em estagnação, sem espe­

ranças de melhoria das vidas dos seres humanos famintos e opri­

midos, mas também não se quer dizer abuso contínuo e crescente

do meio ambiente enquanto a população cresce, os pobres ten­

tam elevar seu nível de vida e os ricos exercem enorme impacto

per capita. A humanidade precisa evitar guerras, tiranias, pobre­

za, assim como degradação desastrosa da biosfera e destruição da

diversidade biológica e ecológica. Trata-se de obter qualidade de

vida para o homem e para a biosfera que não seja conseguida

principalmente à custa do futuro. Abarca a sobrevivência de d i ­

versidade cultural humana e também de muitos dos organismos

com os quais ela divide o planeta, assim como as comunidades

que eles formam. Ou seja, para Gell-Mann (1996: 358-84), o

principal desafio para a humanidade é realizar um conjunto de

sete ^transições interligadas para uma situação mais sustentável

no século X X I " .

Em primeiro lugar, uma sustentabilidade maior, se puder ser

alcançada, significaria uma estabilização da população, globalmen­

te e na maioria das regiões. Em segundo, práticas económicas que

encorajem a cobrança de custos reais, crescimento em qualidade

168

em vez de quantidade, e a vida a partir dos dividendos da natureza

e não do seu capital. Terceiro, uma tecnologia que tenha compara­

tivamente um baixo impacto ambiental. Quarto, é preciso que a

riqueza seja de alguma forma mais equitativamente distribuída,

especialmente para que a extrema pobreza deixe de ser comum.

Em quinto, são imprescindíveis instituições globais e transnacionais

mais fortes para lidar com os problemas globais urgentes. Sexto, é

fundamental um público mais bem informado sobre os desafios

múltiplos e interligados do futuro. E sétimo - e talvez o mais im­

portante e mais difícil de tudo - , o predomínio de atitudes que

favoreçam a unidade na diversidade, isto é, cooperação e competi­

ção não violenta entre tradições culturais diferentes e naçÕes-Esta-

dos, assim como a coexistência com os organismos que comparti­

lham a biosfera com os seres humanos.

Em seu esforço de compreensão da natureza e das socieda­

des, os teóricos precisam privilegiar as hipóteses mais simples e

gerais que permitem dar conta de uma grande variedade de pro­

blemas. E não houve disciplina que mais seguisse essa linha do

que a física. Inquestionáveis resultados foram obtidos na procura

de equilíbrios com a hipótese de que eles não dependiam das

condições iniciais, ou seja, com a hipótese de que quase todos os

fenómenos são reversíveis. Foi com o surgimento da termodinâmica

que tal hipótese geral pôde ser abandonada, fazendo nascer uma

nova física. '

O pensamento económico teve evolução análoga. Quando a

economia política se transformou em análise económica, a ideia

de equilíbrio passou a ocupar o centro nervoso da disciplina. Na

segunda metade do século X X , foi o estudo da existência, da

estabilidade e até da unicidade do equilíbrio que se tornou o

principal esteio da análise económica. Tanto a ausência de fric-

169

Page 32: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

ção, quanto a falta de pertinência da história são as hipóteses

centrais que levam diretamente à ideia de perfeita reversibilidade

ao equilíbrio. Uma reversão do sentido do movimento de qual­

quer variável permite facilmente a volta ao equilíbrio anterior.

As pesquisas científicas dos últimos vinte ou trinta anos in­

dicam uma reje ição bem generalizada dessa h i p ó t e s e .

Termodinâmica não linear, inércia dos sistemas técnicos, dificul­

dades de estabilização macroeconómica pelas políticas monetári­

as e fiscais, tomada de consciência sobre os limites do cálculo

económico aplicado às degradações ambientais, tudo isso mostra

a necessidade de levar em conta a história de qualquer sistema.

Não há retorno ao estado inicial. Nas mais diversas áreas do co­

nhecimento, histerese, persistência, inércia e irreversibilidade

passaram a ser noções decisivas das pesquisas científicas contem­

porâneas. Para fazer um balanço sobre a evolução desse tipo de

pensamento na ciência económica, realizou-se em Paris, em 1989,

um importantíssimo colóquio sob a égide da Escola de Altos Es­

tudos em Ciências Sociais, e dele resultou um livro que deve ser

considerado como uma das principais referências de um futuro

ponto de mutação (Boyer, Chavance & Godard, 1991).

Então, o que é sustentabilidade?

Depois de comparar as duas respostas mais científicas, que

se opõem pelo grau de confiança que depositam na possibilidade

de novas tecnologias virem a reverter os obstáculos ambientais à

continuidade do crescimento económico, e depois de revisar as

obscuras tentativas de construir um discurso sobre o que poderia

ser considerado um "caminho do meio", qual é o balanço que

pode ser feito? Seria possível encontrar uma resposta positiva,

direta e concisa à pergunta?

170

Outra vez, entre autores que mais se dedicaram ao assunto

ao longo dos últimos quatro decénios, desde os primeiros prepa­

rativos da célebre Conferência de Estocolmo, realizada em 1972,

é Ignacy Sachs quem melhor soube evitar simultaneamente o

ambientalismo pueril, que pouco se preocupa com pobrezas e

desigualdades, e o desenvolvimentismo anacrónico, que pouco se

preocupa com as gerações futuras. E sua visão aparece claramente

no segundo capítulo de um pequeno livro publicado em 2002,

Caminhos para o desenvolvimento sustentável, que reproduz sua

apresentação ao quinto encontro bienal da International Society

for Ecological Economics, realizada em Santiago de Chile, entre

15 e 19 de novembro de 1998, e cujo tema foi "Beyond Growth:

Policies and Institutions for Sustainability".

Sachs considera que a abordagem fundamentada na

harmonização de objetivos sociais, ambientais e económicos, pri­

meiro chamada de ecodesenvolvimento, e depois de desenvolvimento

sustentável, não se alterou substancialmente nos vinte anos que se­

pararam as conferências de Estocolmo e do Rio. E acredita que

permanece válida, na recomendação de objetivos específicos para

oito das suas dimensões: social, cultural, ecológica, ambiental,

territorial, económica, política nacional e política internacional.

No que se refere às dimensões ecológicas e ambientais, os objetivos

de sustentabilidade formam um verdadeiro tripé: 1) preservação

do potencial da natureza para a produção de recursos renováveis;

2) limitação do uso de recursos não renováveis; 3) respeito e realce

para a capacidade de autodepuração dos ecossistemas naturais.

A sustentabilidade ambiental é baseada no duplo imperati­

vo ético de solidariedade sincrônica com a geração atual e de soli­

dariedade diacrônica com as gerações futuras. Ela compele a tra­

balhar com escalas múltiplas de tempo e espaço, o que desarruma

171

Page 33: Como Pode Ser Entendida a Sustentabilidade (Veiga)

a caixa de ferramentas do economista convencional. Ele impele

ainda a buscar soluções triplamente vencedoras (Isto é, em ter­

mos sociais, económicos e ecológicos), eliminando o crescimento

selvagem obtido ao custo de elevadas externalidades negativas,

tanto sociais quanto ambientais. Outras estratégias, de curto pra­

zo, levam ao crescimento ambientalmente destrutivo, mas social­

mente benéfico, ou ao crescimento ambientalmente benéfico, mas

socialmente destrutivo (Sachs, 2004).

Leituras mais recomendadas

Das muitas referências bibliográficas deste capítulo, devem ser destacados

cinco livros publicados no Brasil, cuja leitura certamente será muito frutífera.

O livro de Marcos Nobre e Maurício Amazonas sobre o processo de

institucionalização do desenvolvimento sustentável surge em primeiro lugar,

pois fornece simultaneamente introduções à dinâmica política e às teorias

económicas que precisam ser conhecidas por quem queira evitar os inúmeros

riscos trazidos pela proliferação de interpretações das mais ingénuas sobre o

assunto. Será uma verdadeira vacina contra o senso comum. Em paralelo, vale

a pena conhecer as grandes questões ambientais que constituem a base objeti-

va desse processo. E não há nada melhor para esse objetivo do que a coletânea

organizada por André Trigueiro. Quem quiser ver análises mais específicas de

aspectos da dimensão brasileira dessas questões, certamente deverá consultar a

verdadeira enciclopédia organizada por Wagner da Costa Ribeiro. Finalmen­

te, bons textos introdutórios às abordagens económicas das questões ambientais

serão encontrados no livro patrocinado pela EcoEco e organizado por Peter

May, Maria Cecília Lustosa e Valéria Vinha. Deliciosos aperitivos para a leitura

mais decisiva: a excelente exposição sobre as inter-relações entre o sistema

económico e o meio ambiente preparada pelo professor da UNB Charles

Mueller, com certeza a maior autoridade brasileira nesse tema.

172

Capítulo 4

Como pode ser medida a sustentabilidade

H á um movimento internacional liderado pela Comissão para

o Desenvolvimento Sustentável (CSD) das Nações Unidas, cujo

objetivo é construir indicadores. Reunindo governos nacionais,

inst i tuições académicas, ONGs, organizações do sistema das

Nações Unidas e especialistas de todo o mundo, esse movimento

pretende pôr em prática os capítulos 8 e 40 da "Agenda 2 1 " ,

firmada na Rio-92, referentes à necessidade de informações para

a tomada de decisões. Em 1996, a CSD publicou o documento

"Indicadores de desarollo sostenible: marco y metodologias", que

ficou conhecido como "Livro Azul". Continha um conjunto de

143 indicadores, que foram, quatro anos depois, reduzidos a uma

lista mais curta, com apenas 57, mas acompanhados de fichas

metodológicas e diretrizes de utilização. Foram muito importan­

tes para que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

pudesse lançar, em 2002 e 2004, os primeiros indicadores brasi­

leiros de desenvolvimento sustentável (IBGE, 2002 e 2004).

A importância desses dois pioneiros trabalhos do IBGE não

deve ser subestimada pelo fato de a maioria de suas estatísticas e

173