como o gênero estrutura o sistema prisional

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    Como o Gênero Estrutura o Sistema PrisionalAngela Y. Davis

    Tradução: Ana Carolina Cartillone

    Ao longo dos últimos cinco anos, o sistema prisional tem recebido mais atenção da mídia do que em qualquer outra época desde a rebelião de Attica de 1971. No entanto, resguardadas  1

     poucas importantes exceções, as mulheres tem sido deixadas de lado das discussões públicas sobre a expansão do sistema prisional dos EUA. Eu não estou sugerindo que simplesmente trazer  

    as mulheres para as discussões existentes acerca das prisões aprofundará a nossa análise da  punição estatal e fará avançar o projeto abolicionista. Pontuar problemas que são específicos de 

     prisões femininas é de importância vital, mas é igualmente importante modificar a maneira como 

     pensamos o sistema prisional como um todo. Certamente, as práticas das prisões femininas tem recorte de gênero, porém, da mesma forma, as práticas das prisões masculinas também o tem. 

    Assumir que as prisões masculinas constituem a norma e as prisões femininas são marginais é, em certo sentido, participar da própria normatização das prisões, que é o que uma abordagem 

    abolicionista pretende contestar. Assim, o título deste capítulo não é “Mulheres e o Sistema Prisional”, mas sim “Como o Gênero Estrutura o Sistema Prisional”. Nesse sentido, acadêmicos 

    e ativistas envolvidos em projetos feministas não devem considerar a estrutura do sistema 

     prisional como elemento marginal para seu trabalho. Pesquisas e estratégias avançadas devem reconhecer que o caráter da punição estatal profundamente fundado no gênero tanto reflete como 

    consolida a estrutura de gênero da sociedade de maneira mais ampla.Mulheres presas produziram uma pequena mas impressionante obra literária que elucidou 

    aspectos significativos da organização da punição que, de outra forma, teriam permanecido 

    desconhecidos. As memórias de Assata Shakur, por exemplo, revelam as perigosas intersecções de racismo, dominação masculina e estratégias estatais de repressão política. Em 1977, ela foi 

    condenada em acusações de homicídio e agressão, em conexão com um incidente de 1973 que culminou com um policial do estado de New Jersey morto e outro ferido. Ela e seu companheiro, 

    Zayd Shakur, que foi morto durante o tiroteio, foram alvos do que nós agora chamamos de   racial  

     profiling   e foram parados por policiais sob pretexto de uma lanterna quebrada. À época, Assata 2

    Shakur, conhecida então como Joanne Chesimard era subversiva e havia sido eleita pela polícia e 

     pela mídia como a “Alma do Exército de Libertação Negro”. Até sua condenação em 1977,  baseada no fato de que ela tinha sido declarada fugitiva, ela tinha sido absolvida ou tido as 

    1 Ocorrida na Attica Correctional Facility em Attica, Nova York, foi uma das mais importantes rebeliões no 

    movimento pelos direitos dos presos e foi motivada pelas demandas dos internos por direitos políticos e 

    melhores condições de vida, uma vez que o estabelecimento funcionava com quase o dobro de sua 

    capacidade, havia racionamento de banhos e materiais de higiene e o acorrentamento e a solitária eram 

    amplamente utilizados como formas de punição. 29 presos e 10 reféns foram mortos durante a revolta, que 

    durou quatro dias.2 Utilização do critério racial, por parte da autoridade policial, como o fator determinante para a decisão 

    sobre a abordagem ou o emprego da força sobre um indivíduo.

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    acusações retiradas em seis outros casos. Seu advogado, Lennox Hinds, pontua que, uma vez que foi provado que Assata Shakur não entregou a arma com a qual os policiais foram assassinados, 

    sua mera presença no carro, contrariando o cenário de demonização midiática ao qual ela foi 

    submetida, constituiu a base de sua condenação. No prefácio da autobiografia de Shakur, Hinds escreve:

     Na história de New Jersey, nenhuma mulher em prisão provisória ou condenada foi tratada como ela foi, continuamente confinada em uma prisão masculina, submetida a vigilância 24 horas por dia em suas atividades mais íntimas, sem apoio intelectual, atenção médica adequada e exercício, e sem a companhia de outras mulheres por todos os anos em que ela esteve sob 

    custódia.

     Não há dúvida de que o status de Assata Shakur de presa política negra acusada de matar  

    um policial fez com que ela fosse discriminada pelas autoridades e submetida a um tratamento incomumente cruel. Porém, sua própria narrativa enfatiza a medida em que suas experiências individuais refletiam aquelas de outras mulheres encarceradas, especiamente as negras e 

     portorriquenhas. Sua descrição da revista íntima ( strip search ), que foca na examinação interna de cavidades corporais, é especialmente reveladora:

    Joan Bird e Afeni Shakur (membros do Black Panther Party) haviam me contado sobre isso depois de terem sido afiançadas no julgamento do Panther  21 . Quando me disseram, fiquei horrorizada.3

    “Você quer dizer que eles realmente colocam as mãos dentro de você, pra te revistar?”, eu havia perguntado.“Uh-huh”, elas responderam. Toda mulher que já esteve presa pode te contar  sobre isso. As mulheres chamam de “levar o dedo” ou, mais vulgarmente, “ser  fodida com o dedo”.“O que acontece se você recusa?”, eu perguntara a Afeni.“Eles te trancam na solitária e não a deixam sair até que você consinta.”Eu pensei em recusar, mas eu certamente não queria estar na solitária. Eu já tinha passado pelo confinamento o suficiente. A “revista interna” era tão humilhante e asquerosa quanto soava. Você senta na ponta de uma mesa e a 

    enfermeira segura suas pernas abertas e enfia um dedo na sua vagina e mexe. Ela veste uma luva de plástico. Algumas delas tentam colocar um dedo na sua vagina e um no seu ânus ao mesmo tempo.

    3 Em abril de 1969, 21 membros do Black Panther Party foram presos em Nova York acusados de 

    conspiração terrorista por supostamente estarem planejando a explosão de cinco lojas de departamento, 

    uma delegacia de polícia, linhas de trem e o Jardim Botânico do Bronx. Todos foram presos e, dois anos 

    mais tarde, julgados inocentes.

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     Eu citei essa passagem tão extensivamente porque ela expõe uma rotina diária nas prisões 

    femininas que beira o abuso sexual na mesma proporção em que é subestimada e banalizada. 

    Tendo sido encarcerada na Casa de Detenção de Mulheres à qual Joan Bird e Afeni Shakur se referem, eu posso pessoalmente afirmar a veracidade de suas denúncias. Mais de trinta anos 

    depois de Bird e Afeni serem soltas e após eu mesma ter passado vários meses na Casa de Detenção de Mulheres, o problema da revista íntima ainda é pauta prioritária do ativismo do 

    encarceramento feminimo. Em 2001, a Sisters Inside, uma organização australiana de apoio a 

    mulheres presas, lançou uma campanha nacional contra a revista íntima cujo slogan era “Pelo Fim da Violência Sexual do Estado”. A autobiografia de Assata Shakur fornece uma abundância 

    de   insights do recorte de gênero da punição estatal e revela a medida em que as prisões femininas tem mantido práticas patriarcais opressivas que são consideradas obsoletas no “mundo livre”. Ela 

     passou seis anos em diversas cadeias e penitenciárias antes de escapar em 1979 e receber asilo 

     político da República de Cuba, onde ela vive hoje.

    Elizabeth Gurley Flynn, mais cedo, escreveu um memorial em uma prisão feminina, 

    The  Alderson Story, My Life As a Political Prisoner  . No auge da era McCarthy, Flynn, uma militante dos trabalhadores e lider comunista, foi condenada pelo Smith Act e passou dois anos no  4

    Reformatório Federal Alderson para Mulheres, de 1955 a 1957. Seguindo o modelo dominante 

     para prisões femininas da época, o regime de Alderson era baseado na premissa de que mulheres “criminosas” podiam ser reabilitadas assimilando comportamentos femininos corretos - ou seja, 

    se se tornassem experts em tarefas domésticas - especialmente culinária, limpeza e costura. É claro, o treinamento projetado para produzir melhores esposas e mães entre a classe média 

     branca efetivamente produziu habilidosas empregadas domésticas entre as mulheres pobres e 

    negras. O livro de Flynn fornece descrições vívidas desse regime. Sua autobiografia se localiza em uma tradição de literatura prisional produzida por presos políticos, inclusive mulheres. As 

    obras contemporâneas de presas políticas incluem poemas e contos de Ericka Huggins e Susan Rosenberg, análises do complexo industrial prisional de Linda Evans e o programa para 

    educação em prisões femininas sobre HIV/AIDS de Kathy Boudin e do coletivo de educação e aconselhamento em AIDS de Bedford Hills.

    Apesar da existência de retratos perceptivos da vida nas prisões femininas, tem sido 

    extremamente difícil persuadir o público - e até, ocasionalmente, ativistas do sistema prisional que estão primariamente preocupados com a péssima situação dos presos homens - da 

    centralidade do gênero para o entendimento da punição do Estado. Ainda que os homens constituam a vasta maioria dos prisioneiros do mundo, aspectos importantes da operação da 

     punição estatal são ignorados quando se assume que aquelas mulheres são marginais e, portanto, 

    não merecedoras de atenção. A justificativa mais frequente para a desatenção com relação às mulheres presas e aos problemas específicos acerca do encarceramento feminino é a proporção 

    4 O Smith Act, promulgado nos Estados Unidos em 1940, tipificava “defender a deposição do governo”.

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    relativamente pequena de mulheres entre as populações encarceradas ao redor do mundo. Na maioria dos países, a porcentagem feminina entre a população prisional é em torno de 5%. No 

    entanto, as mudanças políticas e econômicas dos anos de 1980 - a globalização dos mercados, a 

    desindustrialização da economia dos EUA, o desmantelamento de programas de bem estar social como o Aid to Families of Dependent Children e, é claro, o   boom   da construção de presídios,  5

     produziu uma significativa aceleração das taxas de encarceramento feminino, tanto nos Estados Unidos quanto no exterior. Na verdade, as mulheres são hoje o setor de crescimento mais rápido 

    na população prisional dos Estados Unidos. Esse recente crescimento na taxa de encarceramento 

    feminino aponta diretamente para o contexto econômico que produziu o complexo industrial carcerário e que tem tido um impacto devastador tanto para homens quanto para mulheres.

    É dessa perspectiva de expansão contemporânea das prisões, tanto nos Estados Unidos quanto ao redor do mundo, que devemos examinar alguns dos aspectos históricos e ideológicos 

    da punição imposta às mulheres. Desde o final do século XVIII, quando, como vimos, o 

    encarceramento começou a emergir como forma dominante de punição, as mulheres condenadas 

    vem sendo representadas como essencialmente diferentes de seus pares homens. É verdade que os homens que cometem os tipos de transgressões que são consideradas puníveis pelo Estado são etiquetados como desviantes sociais. Entretanto, a criminalidade masculina sempre foi tida como 

    mais “normal” que a feminina. Sempre houve uma tendência de considerar essas mulheres que 

    foram publicamente punidas pelo Estado por seu mau comportamento como significativamente mais aberrantes e muito mais ameaçadoras para a sociedade do que seus pares homens.

    Ao buscar entender essas diferenças na percepção sobre os prisioneiros baseadas em gênero, deve-se ter em mente que conforme a prisão emergiu e evoluiu como forma majoritária 

    de punição pública, as mulheres continuaram a ser rotineiramente submetidas a outras formas de 

     punição que não são reconhecidas como tal. Por exemplo, as mulheres foram encarceradas em instituições psiquiátricas em proporções maiores do que em prisões. Estudos indicando que as 

    mulheres tem sido mais suscetíveis a serem internadas em manicômios que homens sugerem que enquanto cadeias e presídios tem sido as instituições dominantes de controle dos homens, as 

    instituições psiquiátricas tem servido a um propósito similar para as mulheres. Isto é, o homem desviante tem sido construído como criminoso e a mulher desviante tem sido construída como 

    louca. Regimes que refletem essa premissa continuam a caracterizar a prisão feminina. Drogas 

     psiquiátricas continuam a ser distribuídas muito mais extensivamente para presas do que para  presos. Uma presa nativo-americana encarcerada no Centro de Correção de Mulheres em 

    Montana relatou sua experiência à socióloga Luana Ross:

    Haldol é uma droga que eles dão para pessoas que não conseguem lidar com a  prisão. Ela faz com que você se sinta morta, paralisada. E então eu comecei a sentir efeitos colaterais do Haldol. Eu queria brigar com qualquer pessoa, qualquer uma das agentes, eu comecei a gritar e dizer para elas sairem da 

    5 O programa oferecia auxílios financeiros do Estado para mães solteiras.

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    minha frente, então o médico disse, “Assim não dá.” e então eles me deram Tranxene. Eu não tomo tranquilizantes, eu nunca tive problemas para dormir  até chegar aqui. Agora eu tenho que ir ao conselheiro de novo por causa dos meus sonhos. Se você tem um problema, eles não vão cuidar dele, eles vão te colocar sob efeito de drogas para a controlar.

    Antes da emergência da penitenciária e, consequentemente, da noção de punição como “passar tempo na prisão”, o uso do confinamento para controlar pedintes, ladrões e os loucos não 

    necessariamente se distinguia entre essas três categorias de desvio. Nessa fase, na história da  punição - antes das revoluções americana e francesa - o processo de classificação através do qual 

    a criminalidade é diferenciada da doença mental e da pobreza ainda não tinha se desenvolvido. 

    Conforme o discurso sobre a criminalidade e as instituições correspondentes para a controlar  distinguiram o “criminoso” do “louco”, as distinções de gênero tomaram as rédeas e continuaram 

    a estruturar as políticas penais. Classificada como feminina, a categoria de insanidade era altamente sexualizada. Quando nós consideramos o impacto de raça e classe aqui, podemos dizer  

    que para mulheres brancas e ricas, essa equalização tende a servir como evidência de transtornos 

    emocionais e mentais, mas para mulheres negras e pobres, ela aponta para a criminalidade.Deve-se também ter em mente que até abolição da escravidão, a vasta maioria das 

    mulheres negras era submetida a regimes de punição que divergiam significativamente daqueles que as brancas experienciavam. Como escravas, elas eram direta e frequentemente disciplinadas 

     brutalmente por condutas consideradas perfeitamente normais em um contexto de liberdade. A 

     punição dos escravos tinha visivemente um recorte de gênero - penas especiais eram, por  exemplo, reservadas às grávidas que não conseguiam atingir as cotas que determinavam por  

    quanto tempo e em que velocidade eles deveriam trabalhar. Na narrativa da escravidão de Moses Grandy, é descrita uma forma especialmente brutal de chicoteamento em que a mulher deve 

    deitar no chão com a barriga posicionada em um buraco, cujo propósito era resguardar o feto 

    (concebido como futura força de trabalho escravo). Se expandirmos nossa definição de punição escravocrata, nós podemos dizer que as relações sexuais coercitivas entre escravas e senhores 

    constituia uma penalidade à mulher, pela única razão de ela ser escrava. Em outras palavras, o desvio do senhor era transferido à escrava a qual ele vitimizava. Da mesma forma, abuso sexual 

     por parte de agentes penitenciários é traduzido como hipersexualidade das presas. A noção de 

    que o “desvio” feminino tem sempre uma dimensão sexual persiste na era contemporânea e a 

    intersecção de criminalidade e sexualidade continua a ser racializada. Assim, mulheres brancas rotuladas “criminosas” são mais fortemente associadas com a negritude do que suas pares “normais”.

    Antes da emergência das prisões como forma dominante de punição pública, a ideia de 

    que os violadores da lei seriam submetidos a penas corporais e frequentemente à pena capital era extremamente banalizada. O que não é geralmente reconhecido é a conexão entre a punição 

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    corporal imposta pelo Estado e as agressões físicas a mulheres no espaço doméstico. Essa forma de disciplina do corpo tem, de maneira continua, sido rotineiramente aplicada às mulheres no 

    contexto das relações íntimas, mas é raramente entendida como relacionada à punição do Estado.

    Os reformistas Quaker nos Estados Unidos - especialmente a Philadelphia Society for  Alleviating the Miseries of Public Prisons, fundada em 1787 - desempenharam um papel central 

    em campanhas para substituir a punição corporal pelo encarceramento. Seguindo a tradição estabelecida por Elizabeth Fry na Inglaterra, os Quakers foram também responsáveis por  

    extensivas cruzadas para instituir prisões separadas para mulheres. Dada a prática de encarcerar  

    mulheres criminalizadas em estabelecimentos masculinos, a demanda por separar as prisões femininas era vista como radical nesse período. Fry formulou diretrizes para a reforma prisional 

     para mulheres em seu trabalho de 1827,   Observations in Visiting, Superintendence and  

    Government of Female Prisoners  , que foram trazidas aos Estados Unidos por mulheres como Josephine Shaw Lowell e Abby Hoppers Gibbons. Nos anos de 1870, Lowell e Gibbons 

    ajudaram a liderar a campanha para prisões separadas para mulheres em Nova York.

    Posturas predominantes com relação às condenadas diferenciavam-se daquelas com relação aos condenados, que eram considerados como penalizados pela perda de direitos e liberdades que as mulheres não podiam reivindicar nem no “mundo livre”. Ainda que algumas 

    mulheres fossem alojadas em penitenciárias, a instituição em si era masculinizada e 

    substancialmente nenhum ajuste particular foi feito para acomodar as sentenciadas.

    As mulheres que cumpriram pena entre 1820 e 1870 não foram sujeitos da reforma prisional vivenciada pelos internos. Oficiais empregavam isolamento, silêncio e trabalho duro para reabilitar os homens. A carência de acomodações 

     para as internas fazia o isolamento e o silêncio impossível para elas e o trabalho produtivo não era considerado parte importante de suas rotinas. A negligência às presas, no entanto, era raramente benevolente. Ao invés disso, um padrão de superlotação, tratamento abusivo e violência sexual reincide ao longo das histórias da prisão.

    A punição masculina era relacionada ideologicamente a penitência e reforma. A própria  perda de direitos e liberdades sugeria que com auto-reflexão, estudo religioso e trabalho, os 

    condenados homens poderiam atingir a redenção e recuperar esses direitos e liberdades. No entanto, uma vez que as mulheres não eram reconhecidas como em possessão desses direitos, 

    elas não eram elegíveis para participar desse processo de redenção.De acordo com visões dominantes, as condenadas eram irrevogavelmente mulheres 

    desonradas, sem possibilidade de salvação. Se os criminosos eram considerados indivíduos 

     públicos que tinham simplesmente violado o contrato social, as criminosas eram vistas como tendo transgredido princípios morais fundamentais da feminilidade. As reformistas, que, 

    seguindo Elizabeth, argumentaram que as mulheres eram capazes de redenção, não questionaram 

    essas premissas ideológicas sobre o lugar da mulher. Em outras palavras, elas não questionaram 

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    a própria noção de “mulher desonrada”. Ao invés disso, elas simplesmente opuseram a ideia de que as “mulheres desonradas” não poderiam ser salvas. Elas poderiam ser salvas, as reformistas 

    afirmaram, e para esse fim elas defenderam estabelecimentos penais separados e uma abordagem 

    especialmente feminina para a punição. Essa abordagem demandou modelos arquitetônicos que substituíram celas por edículas e “salas” de uma maneira que deveria infundir a vida doméstica 

    na vida da prisão. Esse modelo facilitou um regime elaborado para reintegrar a mulher  criminalizada à vida de esposa e mãe. Elas, no entanto, não reconheceram as estruturas de raça e 

    classe desse regime. O treinamento que foi, na superfície, elaborado para produzir boas esposas e 

    mães de fato levou mulheres pobres (especialmente as negras) para trabalhos domésticos no “mundo livre”. Ao invés de esposas, mães e donas de casa habilidosas, muitas egressas 

    tornavam-se arrumadeiras, cozinheiras e faxineiras de mulheres ricas. A utilização de agentes  penitenciárias mulheres, as reformistas também argumentavam, minimizaria as tentações 

    sexuais, que elas acreditavam estar frequentemente na raíz da criminalidade feminina.

    Quando o movimento reformista pelas prisões separadas emergiu nos Estados Unidos e 

    na Inglaterra durante o século XIX, Elizabeth Fry, Josephine Shaw e outras defensoras da causa argumentaram contra a ideia estabelecida de que mulheres criminosas estavam além do alcance da reabilitação moral. Assim como os condenados homens, que presumidamente podiam ser  

    “corrigidos” por regimes prisionais severos, as condenadas, elas sugeriram, também podiam ser  

    moldadas para a moralidade por regimes diferenciados pelo padrão de gênero feminino. Mudanças arquitetônicas, atividades domésticas e um quadro de agentes de custódia formado 

    apenas por mulheres foram implementados no programa proposto por reformistas e, eventualmente, as prisões femininas tornaram-se tão fortemente ancoradas à paisagem social 

    quanto as masculinas, mas ainda mais invisíveis. Sua invisibilidade ainda mais intensa era tanto 

    um reflexo da maneira como as tarefas domésticas das mulheres sob o patriarcado eram assumidas como normais, naturais e consequentemente invisíveis, quanto do número 

    relativamente pequeno de mulheres encarceradas nessas novas instituições.Vinte e um anos após o primeiro reformatório inglês para mulheres foi estabelecido em 

    Londres, em 1853, o primeiro reformatório norteamericano para mulheres foi aberto em Indiana. O objetivo era

    treinar as presas no importante papel doméstico. Dessa forma, um importante  papel do movimento reformista nas prisões femininas era encorajar e firmar   papéis de gênero “apropriados”, com o treinamento vocacional em culinária, costura e limpeza. Para acomodar esses objetivos, as edículas dos reformatórios eram usualmente projetadas com cozinhas, salas de estar e até alguns berçários para presas com bebês.

     No entanto, a punição pública feminilizada não atingiu a todas as mulheres da mesma forma. Quando negras e nativo-americanas eram encarceradas em reformatórios, elas eram 

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    frequentemente segregadas das mulheres brancas. Além disso, elas tendiam a ser  desproporcionamente sentenciadas para prisões masculinas. Nos estados do sul após o final da 

    Guerra Civil, as mulheres negras padeceram com as crueldades do   convict lease system   não  6 

    apaziguadas pela feminização da punição, nem suas sentenças ou o trabalho que elas eram obrigadas a realizar eram abrandados pela virtude do seu gênero. Conforme o sistema prisional 

    dos EUA evoluiu ao longo do século XX, os modos feminizados de punição - o sistema de edículas, o treinamento doméstico e assim por diante - foram projetados ideologicamente para 

    reformar mulheres brancas, relegando pardas e negras em larga medida para domínios da punição 

     pública que não faziam a menor questão de oferecê-las feminilidade.Além disso, conforme Lucia Zedner pontua, práticas de sentença dentro do sistema 

    reformatório frequentemente requeriam que mulheres de todas as raças cumprissem pena por  mais tempo que os homens por ofensas similares. “Essa diferença era justificada com base na 

    ideia de que as mulheres eram mandadas aos reformatórios não para serem punidas na proporção 

    da seriedade da ofensa cometida, mas sim para serem reformadas e retreinadas, um processo que, 

    argumentava-se, levava tempo. Ao mesmo tempo, Zedner pontua que essa tendência de enviar  mulheres à prisão por mais tempo que os homens foi acelerada pelo movimento eugênico, “que visava que as mulheres ‘geneticamente inferiores’ fossem removidas da circulação social pela 

    maior quantidade de anos possível.

     No começo do século XXI, as prisões femininas começaram a parecer mais com suas correspondentes masculinas, particularmente os estabelecimentos construídos na era 

    contemporânea do complexo industrial prisional. Conforme o envolvimento corporativo com a  punição se expande em maneiras que teriam sido inimagináveis apenas duas décadas atrás, o 

    objetivo presumido da prisão como reabilitação tem sido completamente destituído pela 

    neutralização ( 

    incapacitation) como maior objetivo da punição. Como já pontuei, agora que a  população carcerária dos Estados Unidos já excedeu dois milhões de pessoas, a taxa de 

    crescimento nos números de mulheres presas ultrapassou o de homens presos. Como o criminólogo Elliot Currie observa,

    Pela maior parte do período pós Segunda Guerra Mundial, a taxa de encarceramento feminino se situava em torno de 8 para 100000, não atingiu dois dígitos até 1977. Hoje, é 51 para 100000. Nas taxas atuais, haverá mais mulheres presas em 2010 do que internos de ambos os sexos em 1970. Quando combinamos os efeitos de raça e gênero, a natureza das mudanças na 

     população prisional é ainda mais clara. A taxa de encarceramento de mulheres negras hoje excede a de homens brancos em 1980.

    6 Sistema de administração penitenciária difundido no século XIX no sul dos Estados Unidos no período de 

    reconstrução após o fim da Guerra Civil, no qual empresas privadas de construção civil e ferroviárias 

    arrendavam a mão-de-obra de presos condenados junto ao Estado, que provia não só o “alojamento” - a 

    prisão - como também o monitoramento do trabalho realizado. Em troca, a administração penitenciária tinha 

    participação nos lucros gerados e livrava o Estado da necessidade de prover orçamento para as prisões.

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    O estudo de Luana Ross acerca das mulheres nativo-americanas encarceradas no Centro 

    de Correção de Mulheres de Montana afirma que “prisões, como concebidas pelo modelo 

    euroamericano, operam para manter os nativo-americanos em situação colonial”. Ela pontua que o povo nativo é vastamente super-representado em prisões estaduais e federais do país. Em 

    Montana, onde realizou sua pesquisa, eles constituem 6% da população geral, mas 17,3% da  população presa. As mulheres nativo-americanas são ainda mais desproporcionalmente presentes 

    no sistema prisional de Montana. Elas constituem 25% das mulheres encarceradas pelo estado.

    Trinta anos atrás, na época da revolta de Attica e do assassinato de George Jackson, setores radicais de oposição ao sistema prisional identificaram-o como o principal espaço de 

    violência estatal e repressão. Em parte como reação à invisibilidade das mulheres presas nesse movimento e em parte como consequência da ascendência do movimento de liberação feminina, 

    campanhas específicas sobre os direitos das mulheres encarceradas foram desenvolvidas. Muitas 

    dessas campanhas ofereceram - e fizeram avançar - críticas radicais da repressão e da violência 

    estatal. No meio das políticas carcerárias, no entanto, o feminismo tem sido largamente influenciado por construções liberais de igualdade de gênero.

    Em contraste com o movimento reformista do século XIX, que foi fundado em uma 

    ideologia de diferença de gênero, as “reformas” do final do século XX tem se apoiado em um 

    modelo “separado porém igual”. Essa abordagem tem sido frequentemente abordada de maneira acrítica, resultando, ironicamente, em demandas por condições mais repressivas, de modo a 

    tornar os estabelecimentos femininos “iguais” aos dos homens. Um claro exemplo disso pode ser  encontrado em um memorial,   The Warden Wore Pink , escrito por uma ex diretora da Prisão 

    Feminina de Huron Valley. Durante os anos de 1980, a autora, Tekla Miller, defendeu mudanças 

    nas políticas do sistema correcional de Michigan que resultariam que as mulheres presas fossem tratadas   da mesma forma que os homens presos. Sem nenhum traço de ironia, ela caracteriza 

    como “feminista” sua luta por “igualdade de gênero” entre presas e presos e por igualdade entre as instituições de encarceramento masculino e feminino. Uma dessas campanhas é centrada na 

    alocação desigual de armas, que ela visava remediar:

    Arsenais em prisões masculinas eram salas grandes com prateleiras de espingardas, rifles, revólveres, munição, bombas de gás e equipamentos de contenção… o arsenal de Huron Valley era um armário de um metro e meio 

     por cinquenta centímetros que guardava dois rifles, oito espingardas, dois 

    megafones, cinco revólveres, quatro bombas de gás e vinte conjuntos de algemas.

     Não ocorre a ela que uma versão mais produtiva do feminismo questionaria também a organização punitiva do Estado para homens também e, na minha opinião, consideraria 

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    seriamente a proposição que afirma que a instituição como um todo - estruturada em padrões de gênero como é - demanda o tipo de crítica que poderia nos levar a considerar sua abolição.

    Miller também descreve um caso de tentativa de fuga de uma mulher presa. A prisioneira 

    escalou e a cerca e passou por cima do arame farpado, mas foi capturada quando pulou para o outro lado. Essa tentativa de fuga gerou um debate sobre a diferença de tratamento sobre fugas 

    de homens e mulheres. A posição de Miller era de que guardas deveriam ser treinados para atirar  em mulheres da mesma forma que eram treinados para atirar em homens. Ela argumentava que a 

     paridade entre presas e presos deveria consistir na igualdade do direito de serem baleados pelos 

    guardas. O resultado do debate, Miller observou, foi que

    fugitivas em prisões de segurança média ou alta são tratadas da mesma forma que fugitivos. Um tiro de aviso é disparado. Se o preso não interrompe a fuga e está em cima da cerca, o oficial é autorizado a atirar para ferir. Se a vida do oficial estiver em perigo, ele é autorizado a atirar para matar.

    Paradoxalmente, demandas por paridade com prisões masculinas, ao invés de criarem melhores oportunidades educacionais, vocacionais e de saúde para as presas, tem frequentemente 

    culminado em condições mais repressivas para mulheres. Isso não é somente uma consequência da aplicação de noções liberais - isto é, noções formalistas - de igualdade, mas, mais perigoso 

    ainda, permitir que as prisões masculinas funcionem como a norma da punição. Miller pontua 

    que ela tentou impedir que uma presa, que ela caracterizava como uma “assassina” cumprindo uma pena longa, de participar das cerimônias de formatura da Universidade de Michigan porque 

     presos homicidas não tinham o mesmo privilégio. (É claro, ela não indica a natureza do 

    homicídio que a presa teria cometido - se, por exemplo, ela foi condenada por matar um companheiro abusivo, como é o caso de um número significativo de mulheres condenadas por  homicídio.)

    Ainda que Miller não tenha sucedido em sua tentativa de impedir que a interna 

     participasse da colação de grau, além de sua beca e capelo, ela foi obrigada a usar correntes e algemas durante a cerimônia. Esse é certamente um exemplo bizarro de demandas feministas por  

    igualdade no sistema prisional.Um exemplo amplamente publicizado do uso de aparelhos repressivos historicamente 

    associados ao tratamento de homens presos para criar “igualdade” para as presas foi a decisão de 

    1996 do secretário de administração prisional do Alabama de criar    chain gangs   de mulheres.  7 

    Após o Alabama ter se tornado o primeiro estado a reinstituir  

    chain gangs em 1995, o secretário 

    estadual de correção Ron Jones anunciou no ano seguinte que as mulheres seriam acorrentadas enquanto cortassem grama, recolhessem lixo ou trabalhassem na horta na Prisão Feminina 

    7 Chain gang é um tipo de punição em que prisioneiros são acorrentados uns aos outros e forçados a 

    realizar trabalhos físicos exaustivos, sobretudo ao ar livre. Abandonada nos anos 50, a prática foi retomada 

    nos anos de 1990 no contexto de endurecimento da política criminal nos EUA e abolida novamente em 

    todos os estados americanos, exceto o Arizona, onde ainda persiste porém com caráter voluntário.

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    Estadual Julia Tutwiler. Essa tentativa de instituir   chain gangs   para mulheres era em parte uma resposta a ações judiciais movidas por homens presos, que afirmavam que

      chain gangs 

    masculinas configuravam discriminação contra os homens em virtude de gênero. No entanto, 

    imediatamente após o anúncio de Jones, o governador Fob James, obviamente pressionado a impedir que o Alabama contraísse o duvidoso título de único estado do país a ter    chain gangs 

    com oportunidades iguais, demitiu-o.Pouco depois do embaraçoso flerte do Alabama com a possibilidade de implantar 

      chain 

     gangs  para mulheres, o xerife Joe Arpaio do condado de Maricopo, Arizona - representado na 

    mídia como o xerife mais rígido dos EUA - concedeu uma coletiva de imprensa para anunciar  que, uma vez que ele era um “encarcerador de oportunidades iguais”, ele estava estabelecendo a 

     primeira   chain gang   feminina do país. Quando o plano foi implementado, jornais ao redor do  país foram estampados pela fotografia de mulheres acorrentadas limpando as ruas de Phoenix. 

    Ainda que isso pode ter sido um ato de populismo planejado para reforçar a fama do xerife 

    Arpaio, o fato é que essa   chain gang   feminina ter surgido em um contexto de crescimento 

    generalizado da repressão imposta às mulheres é certamente motivo para preocupação. Prisões femininas ao redor do país crescentemente vem abrigado seções conhecidas como unidades de alojamento de segurança. Os regimes de confinamento solitário e privação sensorial nessa seção 

    dentro das prisões femininas são versões menores das proliferantes prisões de segurança 

    máxima. Uma vez que a população de mulheres na prisão hoje consistem em uma maioria de mulheres negras e pardas, as ressonâncias históricas da escravidão, colonização e do genocídio 

    não podem ser perdidas nessas imagens de mulheres em correntes.Conforme o nível de repressão nas prisões femininas cresce e, paradoxalmente, conforme 

    a influência de regimes prisionais domésticos recua, o abuso sexual - que, assim como a 

    violência doméstica, é ainda outra dimensão da punição privada imposta às mulheres - tornou-se um componente institucionalizado da punição detrás das paredes das prisões. Ainda que o abuso 

    sexual de presas por parte de agentes penitenciários não seja sancionado como tal, a tolerância amplamente difundida com a qual os agentes ofensores são tratados sugere que para as mulheres 

    a prisão é um espaço onde a ameaça da violência sexualizada que se massifica na sociedade em geral é sancionada como aspecto rotineiro da paisagem da punição.

    De acordo com um relatório de 1996 da Human Rights Watch sobre abuso sexual de 

    mulheres em prisões dos EUA:

     Nossas descobertas indicam que ser uma mulher em uma prisão estadual nos EUA pode ser uma experiência aterrorizante. Se você é abusada sexualmente, você não pode escapar do seu agressor. Procedimentos de queixa e investigação, onde existem, são frequentemente ineficazes, e funcionários continuam a abusar mulheres porque eles acreditam que raramente serão responsabilizados, administrativamente ou criminalmente. Poucas pessoas fora da prisão sabem o que acontece dentro, ou se importam se sabem. Menos 

     pessoas ainda tomam algum tipo de iniciativa para enfrentar o problema.

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     O excerto a seguir, retirado do resumo desse relatório, intitulado

      All Too Familiar: 

    Sexual Abuse of Women in U.S. State Prisons, revela a medida em que o quão violentamente 

    sexualizados são os ambientes prisionais femininos, retomando, assim, a violência familiar que caracteriza a vida privada de muitas mulheres:

     Nós descobrimos que agentes penitenciários homens tem estuprado presas vaginalmente, analmente e oralmente, e violentado-as sexualmente. Descobrimos que ao cometer tais transgressões grotescas, agentes homens não tem apenas ameaçado ou de fato empregado o uso de força física, mas também tem usado de sua autoridade quase total para proporcionar ou negar quaisquer  

     produtos ou privilégios para obrigá-las a fazerem sexo ou, em outros casos,  para recompensá-las por o terem feito. Em outros casos, agentes homens tem violado suas responsabilidades profissionais mais básicas e tem obtido contato sexual com as mulheres presas sem uso de ameaça de força e nenhuma troca material. Além de engajarem-se em relações sexuais com as presas, agentes tem se utilizado de revistas obrigatórias e buscas para apalpar os seios, nádegas e a área vaginal das mulheres e para observá-las inapropriadamente em estado de nudez, nos alojamentos ou nos banheiros. Agentes penitenciários também agridem verbalmente e assediam as mulheres presas, assim contribuindo para um ambiente de custódia altamente sexualizado e excessivamente hostil nas prisões femininas estaduais.

    A violenta sexualização da vida na prisão dentro das instituições femininas levanta uma série de problemáticas que podem nos ajudar a desenvolver nossa crítica ao sistema prisional. 

    Ideologias da sexualidade - e particularmente a intersecção de raça e sexualidade - tem tido um  profundo efeito nas representações e no tratamento recebido por mulheres negras e latinas dentro 

    e fora da prisão. Certamente, homens negros e latinos vivenciam uma perigosa continuidade na 

    forma como são tratados na escola, onde são disciplinados como potenciais criminosos, nas ruas, onde são submetidos a   racial profiling   pela polícia e nas prisões, onde são armazenados e 

     privados de virtualmente todos os seus direitos. Para mulheres, a continuidade de tratamento do mundo livre para o universo da prisão é ainda mais complicada, uma vez que elas também 

    confrontam formas de violência, na prisão, que elas vivenciam em seus lares e relações íntimas.

    A criminalização de mulheres negras e latinas inclui imagens persistentes de 

    hipersexualidade que servem para justificar violência sexual contra elas dentro e fora da prisão. Tais imagens foram vividamente expostas em uma série de televisão da Nightline filmada em novembro de 1999 na Prisão Feminina Estadual California’s Valley. Muitas das mulheres 

    entrevistadas por Ted Koppel reclamavam que recebiam exames pélvicos frequentes e 

    desnecessários, incluindo quando iam ao médico com doenças rotineiras tais como resfriados. Em uma tentativa de justificar os exames, o chefe médico explicou que mulheres presas 

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    indivíduos empregados nessas instituições. Esses delitos, ainda que sejam raramente reportados, são claramente entendidos como sendo “crimes” pelos quais o indivíduo e não o Estado é responsável. Ao mesmo tempo em que o Estado desaprova agressões sexuais “ilícitas” cometidas por seus funcionários, ele usa da violência sexual como forma de controle.

    Em Victoria, oficiais de polícia e da prisão são resguardados com o  poder e a responsabilidade de cometer atos que, se feitos fora do horário de trabalho, seriam crimes de violência sexual. Se uma pessoa não “consente” em ser despida por esses oficiais, pode-se legitimamente empregar força para despi-la… Essas revistas íntimas legais são, na visão da autora, violência sexual dentro da definição de agressão indecente no Crimes Act 1958 (Vic) emendado na seção 39.

    Em novembro de 2001, em uma conferência sobre mulheres na prisão realizada pela organização de Brisbane Sisters Inside, Amanda George descreveu uma intervenção realizada 

    antes de um encontro nacional de agentes penitenciários de prisões femininas. Algumas mulheres ocuparam o palco e algumas interpretando guardas e outras interpretando as prisioneiras, dramatizaram a revista íntima. De acordo com George, o público sentiu tanta repulsa da 

    encenação de um ato que ocorre rotineiramente em prisões femininas em todos os lugares que muitos dos participantes do encontro se sentiram obrigados a se desassociarem de tais práticas, 

    insistindo que não era daquele jeito que eles faziam. Alguns dos guardas, disse George, 

    simplesmente choraram assistindo a representação de suas próprias ações fora do contexto da  prisão. O que eles devem ter percebido é que “sem o uniforme, sem o poder do Estado, a revista 

    íntima seria abuso sexual”.

    Mas por que o entendimento da disseminação do abuso sexual nas prisões femininas é um elemento importante para uma análise radical do sistema prisional e especialmente das análises 

    avançadas que nos direcionam para o caminho da abolição? Porque o apelo pela abolição da  prisão como forma dominante de punição não pode ignorar a medida em que a instituição da 

     prisão tem armazenado ideias e práticas que se aproximam da obsolescência na sociedade em geral, mas que conservam sua vitalidade sinistra por detrás das paredes das prisões. A 

    combinação destrutiva de machismo e misoginia, apesar do quão tem sido desafiada pelos 

    movimentos sociais, pela academia e pela arte ao longo das três últimas décadas, ainda retém todas as suas consequências abomináveis dentro das prisões femininas. A presença relativamente 

    incontestada do abuso sexual nas prisões femininas é um dos múltiplos exemplos. A crescente evidência de um complexo industrial prisional nos Estados Unidos com ressonância global nos 

    leva pensar até que ponto as corporações que adquiriram investimentos na expansão do sistema 

    carcerário não estão, assim como o Estado, diretamente envolvidas em uma instituição que  perpetua a violência contra a mulher.

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