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construção DO argumento A A John Ramage Micheal Callaway . Jennifer Clary-Lemon Zachary Waggoner .

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Page 1: WordPress.com · cOMissãO eDitOrial editores executivos augusto noronha e Karla vidal conselho editorial Alex Sandro Gomes angela Paiva Dionisio Carmi ferraz Santos Cláudio Clécio

construccedilatildeoDO argumento

AAJohn Ramage Micheal Callaway

Jennifer Clary-Lemon Zachary Waggoner

John Ramage Micheal CallawayJennifer Clary-Lemon Zachary Waggoner

PiPa CoMuniCaccedilatildeoReCife 2018

construccedilatildeoDO argumento

AATraduccedilatildeo de Clemilton Lopes Pinheiro erik fernando

Martins felipo Bellini Souza Karine alves David Marcus

Mussi Maria Hozanete alves de Lima Siacutelvio Luis da Silva

CoPyRigHT 2018 copy PiPa CoMuniCaccedilatildeo ReSeRvaDoS ToDoS oS DiReiToS DeSTa eDiccedilatildeo

PuBLiCaDa exCLuSivaMenTe PaRa DiSTRiBuiccedilatildeo gRaTuiTa auToRiZaDa PeLa PaRLoR PReSS

Eacute PRoiBiDa a RePRoDuccedilatildeo ToTaL ou PaRCiaL DoS TexToS e PRoJeTo gRaacutefiCo DeSTa oBRa

SeM auToRiZaccedilatildeo exPReSSa DoS auToReS oRganiZaDoReS e eDiToReS

oRiginaLLy PuBLiSHeD aS aRguMenT in CoMPoSiTion copy 2009 By PaRLoR PReSS anD THe WaC

CLeaRingHouSe HTTPPaRLoRPReSSCoM TRanSLaTeD anD DiSTRiBuTeD By PeRMiSSion

traDuccedilatildeOClemilton Lopes Pinheiro erik fernando Martins

felipo Bellini Souza Karine alves David Marcus Mussi

Maria Hozanete alves de Lima Siacutelvio Luis da Silva

cOOrDenaccedilatildeO De traDuccedilatildeOClemilton Lopes Pinheiro

caPa PrOjetO GraacuteficO e DiaGraMaccedilatildeOKarla vidal e augusto noronha Pipa Comunicaccedilatildeo (wwwpipacomunicacombr)

revisatildeO linGuiacutesticaKarla geane de oliveira

Catalogaccedilatildeo na publiCaccedilatildeo (Cip)Ficha catalograacutefica produzida pelo editor executivo

R1409

RaMage J et al

a construccedilatildeo do argumento John Ramage Micheal Callaway Jennifer Clary-Lemon Zachary Waggoner traduccedilatildeo Clemilton Lopes Pinheiro erik fernando Martins felipo Bellini Souza Karine alves David Marcus Mussi Maria Hozanete alves de Lima Siacutelvio Luis da Silva ndash Pipa Comunicaccedilatildeo 2018 266p Bibliografia (e-book) 1ordf ed iSBn 978-85-66530-81-0

1 Linguiacutestica 2 Retoacuterica 3 argumentaccedilatildeo 4 escritai Tiacutetulo

410 CDD41 CDu

cpc0318ajns

cOMissatildeO eDitOrial

editores executivosaugusto noronha e Karla vidal

conselho editorialAlex Sandro Gomes

angela Paiva DionisioCarmi ferraz Santos

Claacuteudio Cleacutecio vidal eufrausinoClaacuteudio Pedrosa

Leila RibeiroLeonardo Pinheiro Mozdzenski

Clecio dos Santos Bunzen JuacuteniorPedro francisco guedes do nascimento

Regina Luacutecia Peacuteret Dellrsquoisolaubirajara de Lucena Pereira

Wagner Rodrigues SilvaWashington Ribeiro

Prefixo Editorial 66530

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apresentaccedilatildeo agrave ediccedilatildeo brasileira

A argumentaccedilatildeo eacute um fenocircmeno que recobre diferentes conceitos e eacute objeto de estudo de diferentes disciplinas desde as mais antigas ndash Loacutegica Retoacuterica Dia-leacutetica ateacute as mais recentes no domiacutenio das Ciecircncias Humanas e Sociais incluindo a Linguiacutestica Satildeo inuacutemeras as obras escritas sobre o tema mas se reconhece que mesmo assim ainda haacute muito a se dizer Nesse sentido a ideia de publicar uma versatildeo em portuguecircs da obra Argument in Composition de John Ramage Micheal Callaway Jennifer Clary-Lemon e Zachary Waggoner publicada em 1999 pela Parlor Press nos Estados Unidos tem como propoacutesito fomentar a discussatildeo sobre o tema entre os pesquisadores brasileiros

A obra focaliza a construccedilatildeo do argumento no contexto do ensino da escrita na universidade e se apoia em um quadro teoacuterico amplo e diversificado em parte bastante conhecido pelo puacuteblico brasileiro como a nova retoacuterica de Chaim Perel-man e Lucie Olbrechts-Tytecha em parte natildeo muito como eacute o caso da abordagem retoacuterica de Kenneth Burke Assim aleacutem da relevacircncia do tema a obra permite a ampliaccedilatildeo de um aporte para pensar a questatildeo da argumentaccedilatildeo e da construccedilatildeo do argumento no ensino da escrita na universidade e prepara o caminho para praacuteticas educativas tambeacutem relevantes para o ensino superior brasileiro ainda carente de inclusatildeo e de qualidade

Essa versatildeo em portuguecircs soacute foi possiacutevel graccedilas ao primoroso trabalho de traduccedilatildeo e empenho do(a)s colegas que se envolveram no projeto Nosso muito obrigado a todo(a)s Agradecemos tambeacutem ao professor Charles Bazerman da Universidade de Santa Baacuterbara-Califoacuternia que colaborou em muitas faces acadecirc-micas e legais da traduccedilatildeo Da mesma forma deixamos nosso agradecimento a David Blakesley e Michel Palmquist representantes da Parlor Press responsaacutevel pelos direitos autorais da obra em inglecircs pela autorizaccedilatildeo gratuita da publicaccedilatildeo

Boa LeituraClemilton Lopes Pinheiro

prefaacuteCio do Coordenador da Coleccedilatildeo RefeRe guides to RhetoRic and composition (Guia de Referecircncia para a Retoacuterica e a Escrita)1

Na ampla e crescente casa da retoacuterica e da escrita a argumentaccedilatildeo e sua irmatilde persuasatildeo compartilham um grande e digno quarto que vem sendo cons-truiacutedo desde a fundaccedilatildeo da Retoacuterica na Greacutecia antiga Os principais interesses da Retoacuterica claacutessica satildeo todos fundados com base no argumento debate sobre governo e cidadania julgamento de culpa ou inocecircncia declaraccedilatildeo de direitos e deveres formaccedilatildeo de alianccedilas e acordos protesto contra inimigos desenvol-vimento de compromisso comunitaacuterio As principais instituiccedilotildees sociais foram formadas para criar condiccedilotildees (como procedimentos princiacutepios e exigecircncias) de apontar argumentos para soluccedilotildees bem sucedidas da accedilatildeo comunitaacuteria altas cortes congressos de legisladores religiotildees democracia eleitoral

O grande quarto da argumentaccedilatildeo e da persuasatildeo tem uma larga entrada para os quartos vizinhos que se veem em diferentes condiccedilotildees A proacutepria Filoso-fia opositora de longa data do argumento estrutura suas discussotildees com base nele As disciplinas acadecircmicas satildeo campos argumentativos embora organiza-dos como esforccedilos cooperativos As escolhas de grupos sobre planejamento e escolhas ndash sejam estruturais meacutedicas ou militares ndash dependem da expressatildeo de diferentes visotildees embora enquadradas elipticamente em conhecimentos obje-tivos e papeacuteis especiacuteficos

A argumentaccedilatildeo tambeacutem pode servir para finalidades individuais Graccedilas ao ato de argumentar com os outros um indiviacuteduo pode trabalhar suas cren-ccedilas pessoais valores envolvimentos e opccedilotildees de vida As ocasiotildees sociais de argumentaccedilatildeo oferecem aos indiviacuteduos a oportunidade de pesquisar e refletir individualmente em um contexto de pontos de vista divergentes Os conceitos

1 Traduccedilatildeo Clemilton Lopes Pinheiro

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modernos sobre o desenvolvimento individual do conhecimento da consciecircncia e da responsabilidade dependem de um indiviacuteduo que tem acesso e participa da construccedilatildeo de argumentos e chega a crenccedilas pessoais

Enquanto alguns veem o engajamento a um argumento como um fenocircmeno oral a capacidade de confrontar pontos de vista opostos na escrita transformou o alcance e a profundidade dos argumentos as evidecircncias disponiacuteveis e as situ-accedilotildees em que os argumentos ocorrem Assim como os argumentos usados nos tribunais tenham se convertido em leis escritas textos com jurisprudecircncias resumos de audiecircncias depoimentos tratados fizeram do Direito uma profissatildeo liberal Muitos domiacutenios de letramento escrito que facilitam o contato agrave distacircncia na sociedade moderna dependem do argumento a exemplo de um investimento financeiro um projeto eficaz de preservaccedilatildeo do meio ambiente ou um projeto beneficente sem fins lucrativos No mundo acadecircmico da escrita argumentar facilita a aprendizagem de maneira clara inteligente bem fundamentada disci-plinada e articulada

Este Refere guides to Rhetoric and Compositionc (Guia de referecircncia para a Retoacuterica e a Escrita) fornece uma ampla gama de recursos para o ensino da es-crita As ideias dos principais teoacutericos da Retoacuterica claacutessica e contemporacircnea de Aristoacuteteles a Burke Toulmin e Perelman e sua relevacircncia para a instruccedilatildeo satildeo apresentadas sucintamente Os autores classificam de forma clara e expotildeem suas posiccedilotildees sobre a pedagogia das falaacutecias informais da propaganda e apresentam as razotildees para preferir uma abordagem a outra entre as disponiacuteveis para o en-sino da escrita Os autores igualmente destacam o papel da argumentaccedilatildeo em abordagens que natildeo satildeo diretamente vinculadas ao tema como as que destacam o movimento feminista a retoacuterica da libertaccedilatildeo os estudos culturais criacuteticos o movimento escrita atraveacutes do curriacuteculo as novas tecnologias e a retoacuterica visual A relaccedilatildeo de leituras suplementares e as referecircncias bibliograacuteficas datildeo a opor-tunidade de aprender mais sobre essas abordagens

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Grande parte do livro ilustra o valor de uma perspectiva e defende aberta-mente seu uso no ensino da escrita em relaccedilatildeo a outras Dessa forma o livro con-vida os leitores a tirar suas proacuteprias conclusotildees sobre o valor da argumentaccedilatildeo e sobre como melhor incorporaacute-la em sua didaacutetica Eu particularmente recomendo aos leitores considerar o raciociacutenio contra o engessamento dos sistemas argu-mentativos e as situaccedilotildees especiacuteficas em que cada argumento ocorre

Charles Bazerman

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prefaacuteCio1

A construccedilatildeo do argumento eacute um livro direcionado a todos os professores in-cluindo os que natildeo satildeo exatamente professores de produccedilatildeo de textos que desejam incorporar o ensino do argumento em suas aulas Ao delineaacute-lo tentamos atingir um niacutevel de generalidade entre um livro didaacutetico sobre argumento e uma teoria do argumento Ou nos termos de Kenneth Burke nossa abordagem estaacute situada em um niacutevel de ldquofalar sobrerdquo o argumento em oposiccedilatildeo ao argumento ldquoque falardquo ou ldquofalar sobrerdquo o argumento ldquoque falardquo

Os leitores que desejam uma discussatildeo mais especiacutefica devem consultar quais-quer dos inuacutemeros bons livros didaacuteticos dedicados ao assunto Os que buscam uma compreensatildeo mais restrita e mais profunda sobre o argumento podem consultar as muitas fontes agraves quais nos referimos ao longo do livro Nossa ecircnfase no niacutevel da generalidade mediana decorre de nosso propoacutesito ajudar professores a traduzir a teoria em praacutetica de ensino e fazer escolhas conscientes de livros didaacuteticos sobre o argumento (caso existam) que fazem mais sentido para suas aulas Esperamos que os trecircs primeiros capiacutetulos de A construccedilatildeo do argumento subsidiem nossos leitores para formular suas proacuteprias abordagens do argumento em sala de aula e a ler mais criticamente o material apresentado no restante do livro

Como a alusatildeo anterior agrave Kenneth Burke pode sugestionar A construccedilatildeo do argumento eacute profundamente influenciado pela abordagem retoacuterica desse autor Embora a teoria de Burke tenha recebido pouca ou nenhuma atenccedilatildeo na maioria dos livros didaacuteticos que abordam o argumento (aleacutem do tratamento muitas vezes simplificado do seu esquema pentagonal) noacutes acreditamos que ela eacute a estrutura mais coerente e compreensiacutevel disponiacutevel para unificar as diversas abordagens do argumento ndash o esquema de Toulmin a Stasis Theory as falaacutecias informais a situa-ccedilatildeo retoacuterica etc ndash que compotildeem a espinha dorsal da maioria dos livros didaacuteticos

1 Traduccedilatildeo Siacutelvio Luis da Silva

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atuais Uma vez que Burke serve como as primeiras lentes ou ldquotela finardquo atraveacutes das quais noacutes enxergamos o argumento alguns termos comumente utilizados natildeo satildeo detalhados no corpo principal do texto Em alguns casos esses termos sem que sejam problemaacuteticos em si mesmos satildeo incongruentes ou perifeacutericos agrave nossa abordagem Natildeo damos atenccedilatildeo demasiada por exemplo ao entimema Noacutes citamos em nosso glossaacuterio e mais importante citamos as anaacutelises racionais dos termos feitas por John Gage Certamente reconhecemos o lugar de destaque da noccedilatildeo de entimema na histoacuteria do ensino do argumento e seu potencial de utilidade para alguns professores em sala de aula Apenas tivemos problemas de encaixaacute-lo na nossa abordagem Outros termos natildeo satildeo especialmente discutidos porque senti-mos que jaacute estatildeo contemplados nos diferentes termos de nossa proacutepria rubrica No caso da situaccedilatildeo retoacuterica por exemplo discutimos a noccedilatildeo de exigecircncia de Lloyd Bitzer porque acreditamos que ela descreve perfeitamente um conceito funda-mental para os estudantes do argumento Por outro lado natildeo mencionamos outro elemento da situaccedilatildeo retoacuterica de Bitzer as limitaccedilotildees e restriccedilotildees (constraints) pela crenccedila de que alguns outros elementos que discutimos notadamente a Stasis Theory cumprem mais clara e adequadamente o papel desempenhado pelas limi-taccedilotildees e restriccedilotildees de Bitzer

A construccedilatildeo do argumento eacute inevitavelmente em si mesmo tanto um argu-mento como um compecircndio de abordagens sobre argumentaccedilatildeo Tentamos apresen-tar nosso argumento sem sermos muito argumentativos Ao mesmo tempo somos os primeiros a reconhecer que nosso campo ldquoretoacuterica e escritardquo estaacute longe de ser claramente definido De fato haacute argumentos a serem traccedilados a favor e contra a inclusatildeo da escrita expressiva nas aulas de argumento (noacutes tentamos apresentar um argumento a favor da inclusatildeo) Haacute ainda argumentos a favor e contra a inclusatildeo do argumento visual nessas aulas No caso do argumento visual nossa posiccedilatildeo eacute mais complexa Aplaudimos os objetivos e reconhecemos a importacircncia do argumento visual Citamos os trabalhos que estatildeo sendo feitos na aacuterea mas criticamos a falta de ferramentas utilizaacuteveis ndash ou um vocabulaacuterio comum para esse propoacutesito ndash que torne esse trabalho acessiacutevel para graduandos Por hora sugerimos aos professores

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a esperar que as melhores ferramentas sejam disponibilizadas ou desenvolvam as suas proacuteprias Enquanto isso vemos o argumento visual como aqueles sites da web intrigantes que nos recebem com a mensagem na tela ldquoem construccedilatildeordquo

sumaacuterio

19 introduccedilatildeo por que argumentar eacute importante

22 um entendimento sobre o argumento 24 Discussatildeo de Leo e fish ndash parte i perspectiva teoacuterica 35 Discussatildeo de Leo e fish ndash parte ii passando da dualidade ao compromisso 38 Leo e fish ndash parte iii os elementos do argumento 47 Argumento e a ldquopurificaccedilatildeo da guerrardquo 54 Por que os estudantes precisam argumentar 55 argumento e letramento criacutetico 61 argumento e identidade 67 Eacutetica e argumento

77 CapIacutetulo 1 a histoacuteria da argumentaccedilatildeo 78 Filosofia versus Retoacuterica 93 o problema do engessamento da Retoacuterica 99 figuras-chave da teoria moderna da argumentaccedilatildeo 99 introduccedilatildeo a Kenneth Burke 102 o realismo de Burke 107 introduccedilatildeo a Chaim Perelman e Lucie olbrechts-Tyteca 109 um panorama de a nova Retoacuterica 113 a Stasis Theory e a nova Retoacuterica 124 introduccedilatildeo a Stephen Toulmin 125 o esquema de Toulmin ndash o natildeo silogismo 128 a aplicaccedilatildeo do modelo de Toulmin 134 Resumo

137 CapIacutetulo 2 Questotildees sobre argumentaccedilatildeo 137 o debate sobre a falaacutecia 143 a abordagem pragma-dialeacutetica das falaacutecias 147 alternativas para focalizar a argumentaccedilatildeo em uma aula de escrita estudos criacutetico-culturais 151 Pedagogia expressivista 163 Retoacuterica processual 168 ensinar ou natildeo ensinar propaganda 170 o que eacute propaganda Burke e ellul 186 a propaganda em resumo

191 CapIacutetulo 3 introduccedilatildeo a algumas boas praacuteticas 191 o que funciona no ensino de escrita 196 Boas praacuteticas 200 Retoacuterica da libertaccedilatildeo 206 feminismo e argumento 211 aprendizagem-serviccedilo e argumentaccedilatildeo 215 escrita atraveacutes do curriacuteculo (writing across the curriculum ndash WaC) e escrita nas disciplinas (writing in the disciplines ndash WiD) 219 Computador e escrita 223 Retoacuterica visual

229 glossaacuterio

249 referecircnCias

263 sobre os autores

264 sobre os tradutores

a x b x C

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introduccedilatildeopor Que argumentar eacute importante1

Qualquer um que hoje ainda eacute ceacutetico sobre a importacircncia do argumento nos curriacuteculos dos cursos de escrita das faculdades do paiacutes precisa apenas olhar a abundacircncia de livros dedicados ao assunto Cada grande editora possui pelo menos trecircs ou quatro obras sobre o tema Aleacutem disso a qualidade da atual geraccedilatildeo de textos sobre argumento certamente excede o padratildeo ndash embora natildeo tenha sido eacute verdade um padratildeo particularmente alto ndash estabelecido por geraccedilotildees dos textos antes de meados da deacutecada de 1980 Enquanto uma seacuterie de livros de pensamento criacutetico escritos por filoacutesofos foram adaptados com sucesso para cursos de escrita durante os anos setenta os textos padratildeo sobre argumento compreendem um grupo bastante significativo

Na verdade o tema foi pouco ensinado de forma autocircnoma em aulas de escrita antes da deacutecada de 1980 Normalmente era ensinado como parte de algum esque-ma taxonocircmico comum no chamado curriacuteculo ldquotradicional correnterdquo O curriacuteculo tradicional corrente ou cursos de escrita baseados em modelos que dominaram os curriacuteculos universitaacuterios durante deacutecadas era organizado em torno de categorias supostamente funcionais de escrita como narraccedilatildeo descriccedilatildeo cada uma das quais concebida com um formato prescritivo

A caracteriacutestica mais marcante desses modelos era o caraacuteter retoacuterico Os alunos tinham pouca ideia sobre a razatildeo de algueacutem precisar de uma descriccedilatildeo de um animal de estimaccedilatildeo ou de um professor favorito bem como de um resumo detalhado de uma receita de sanduiacuteche A principal coisa dita sobre audiecircncia era em geral a suposiccedilatildeo de que as pessoas satildeo desinformadas e precisavam ler enunciados claros e detalhados Os alunos progrediam ao longo do semestre de

1 Traduccedilatildeo Clemilton Lopes Pinheiro e Karine alves David

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A construccedilatildeo do argumento

tarefas simples a tarefas complexas com base em uma teoria de aprendizagem essencialmente behaviorista Por ser considerado o mais complexo dos modelos o argumento era o uacuteltimo ponto do programa do curso Dessa forma recebia pouca atenccedilatildeo ou era mesmo totalmente esquecido

Muitos professores ficavam de fato aliviados por natildeo precisarem ensinar sobre argumento jaacute que seus alunos tinham muita dificuldade no contexto do en-sino tradicional Em siacutentese essas dificuldades natildeo eram surpreendentes Embora a relaccedilatildeo entre modelo e objetivo fosse bastante expliacutecita quando se tratava de descrever o processo de fazer um sanduiacuteche essa mesma relaccedilatildeo se complicava por vaacuterias razotildees quando se pretendia persuadir um puacuteblico sobre a proibiccedilatildeo constitucional do casamento entre pessoas do mesmo sexo ser ou natildeo uma grande ideia Qualquer mudanccedila que ocorresse nessas tarefas parecia parar abruptamente quando se tratava de argumentar Como se sabe quando as demandas cognitivas de uma tarefa ficam fora da ldquozona de desenvolvimento proximalrdquo dos alunos todos os outros problemas ndash ortografia gramaacutetica sintaxe e estilo ndash despontam como uma virose Muitos professores de escrita relutantemente concluiacuteram com base em suas tristes experiecircncias que o argumento deve ser ensinado mais tarde ou em qualquer outro momento na universidade

Assim muitos dos problemas enfrentados pelos alunos ao aprenderem a construir argumentos em um curso de escrita tradicional poderiam ser atribuiacutedos agrave abordagem de ensino Era como se tentaacutessemos preparar os alunos para o caacutel-culo atribuindo-lhes uma seacuterie de problemas aritmeacuteticos prevendo que a tarefa de resolver problemas de adiccedilatildeo subtraccedilatildeo multiplicaccedilatildeo e divisatildeo os preparasse para resolver equaccedilotildees de segundo grau

Nem todos os cursos de escrita eram no entanto organizados em torno dos princiacutepios tradicionais Poucos textos aparentemente destinados a ser usados em cursos independentes sobre argumento eram mais promissores Eles eram constituiacutedos principalmente de antologias de argumentos canocircnicos interligados

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A construccedilatildeo do argumento

a conselhos inuacuteteis e apontamentos vagos Os prefaacutecios e introduccedilotildees geralmente breves ndash e raramente se desejava que fossem mais longos ndash ensaiavam alguns ter-mos claacutessicos falaacutecias informais e modelos de silogismos e convidavam os alunos a aplicar o material de alguma forma aos ensaios que se seguiam Eacute desnecessaacuterio dizer que as complexidades dos ensaios natildeo esclareciam as duacutevidas do capiacutetulo de abertura deixando estudantes e professores se perguntarem se talvez o ar-gumento natildeo estava aleacutem do alcance dos meros mortais

O que fez tudo isso mudar nos uacuteltimos vinte anos Aqui noacutes enfrentamos uma questatildeo do tipo quem vem primeiro o ovo ou a galinha Nossas abordagens sobre o argumento ganharam em sofisticaccedilatildeo e em utilidade por causa de um reconhe-cimento crescente da sua importacircncia no mundo ou a sofisticaccedilatildeo e a utilidade crescentes de nossas abordagens nos tornam progressivamente mais conscientes dessa importacircncia no mundo Provavelmente os dois fenocircmenos ocorreram mais ou menos simultaneamente e se reforccedilaram mutuamente Ou mais precisamente nossa tardia consciecircncia das muitas boas ferramentas disponiacuteveis para os estu-dantes de argumento as quais foram em muitos casos adaptaccedilotildees das usadas haacute dois mil anos tornou o seu estudo mais fecundo e a transmissatildeo de habilidades de argumentar mais confiaacuteveis Por qualquer que seja a razatildeo nos encontramos hoje em meio a uma espeacutecie de era de ouro da histoacuteria do ensino do argumento

Mais adiante examinaremos o passado para ver como isso aconteceu e como situar a eacutepoca atual na histoacuteria do ensino desse tema Por enquanto queremos nos concentrar em nossa compreensatildeo atual do argumento e na nossa motivaccedilatildeo para ensinaacute-lo

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A construccedilatildeo do argumento

um entendimento sobre o argumento

Em nossas aulas pretendemos fazer uma abordagem inicial sobre o argumen-to de forma direta e indutiva pelo exame de dois ou mais argumentos sobre uma mesma questatildeo treinando com nossos alunos quais satildeo as caracteriacutesticas de nossos exemplos mais provaacuteveis de serem aplicadas a outros casos Essa abordagem de ensino eacute ilustrativa de outra mais geral que defendemos bottom-up a aprendiza-gem baseada em problemas fundamentada na aplicaccedilatildeo e ascensatildeo de princiacutepios em oposiccedilatildeo ao modo tradicional top-down modo expositivo de transmissatildeo de conhecimento (isto eacute aulas expositivas)

Haacute com certeza vantagens e desvantagens na nossa abordagem indutiva de aprendizagem Em nome da aprendizagem ativa de importantes elementos do argumento perdemos de vista embora de forma passiva a ldquocoberturardquo de nosso toacutepico O melhor que podemos esperar de nosso exame inicial do argumento eacute uma melhor compreensatildeo de algumas de suas caracteriacutesticas mais proeminentes e um senso mais eficaz de como pensar criticamente sobre o toacutepico Esse eacute um dos pontos do exerciacutecio e do nosso curso os significados de termos complexos como argumento satildeo sempre contestaacuteveis porque eles satildeo de fato inesgotaacuteveis

Qualquer que seja o perigo que os alunos possam encontrar com a seleccedilatildeo de partes do todo os benefiacutecios de nossa abordagem na nossa opiniatildeo superam sig-nificativamente os potenciais custos Embora pudeacutessemos transmitir muito mais conhecimento assertivo sobre o argumento atraveacutes da exposiccedilatildeo natildeo haacute garan-tia de que o conhecimento que transmitimos chegaria ao seu destino ou que se chegasse seria suficientemente livre de ruiacutedo para natildeo confundir nosso sinal ou que os alunos teriam uma noccedilatildeo clara do que ldquofazerrdquo com o conhecimento retido durante a transmissatildeo Nossa experiecircncia com exposiccedilotildees sobre a definiccedilatildeo de argumento sugere que a pergunta mais comum que conseguimos provocar sobre o material apresentado eacute a seguinte O que vai cair na prova Natildeo consideramos que isso seja positivo Definir os problemas sobre os quais haacute um consenso eacute entre

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A construccedilatildeo do argumento

outras coisas chato Definir problemas que satildeo incertos e contestaacuteveis eacute conside-ravelmente mais interessante

Em nossas discussotildees iniciais sobre argumentos queremos que nossos alu-nos percebam que a definiccedilatildeo de qualquer noccedilatildeo complexa como a de argumento eacute contestaacutevel que os valores e crenccedilas que trazemos para o exerciacutecio de definir o termo influenciam nossa forma de definir e que a forma como definimos por sua vez determina a maneira de analisar

A cada semestre no final de nosso exerciacutecio indutivo de definiccedilatildeo natildeo che-gamos ao mesmo conjunto de conclusotildees sobre o significado de argumento que ensaiamos em nossas aulas mas a conclusotildees diferentes muitas vezes inesperadas decorrentes de conversas livres Com certeza dirigimos essa conversa o suficiente para assegurar que pelo menos alguma coisa sobre argumento seja feita e que nem todos os pontos abordados em nossas aulas sobrevivam agraves questotildees agraves quais os submetemos (como disse o antigo mestre da dialeacutetica Soacutecrates agraves vezes natildeo estamos acima das correccedilotildees) Mas cada semestre produz novos insights sobre o significado do argumento Um ponto importante para lembrar eacute o fato de que depois haveraacute muito tempo para abordar as questotildees mais cruciais da questatildeo deixada sem resposta Ao esperar os alunos estatildeo mais propensos a se envolve-rem e mais preparados para aplicar as ideias que eles tecircm na matildeo quando tiverem que produzir

Os argumentos que se seguem (textos 01 e 02) natildeo satildeo os que usariacuteamos em uma classe de graduaccedilatildeo tiacutepica As questotildees que eles levantam satildeo apropriadas para uma discussatildeo mais teoacuterica do argumento do que a que buscamos promover no iniacutecio de uma aula de graduaccedilatildeo Certamente natildeo os consideramos exemplos de argumento Mas tampouco satildeo escolhidos aleatoriamente Satildeo meta-argumentos de um tipo que levanta questotildees sobre a natureza do argumento central para a nossa abordagem e preveem as questotildees que se repetem nas paacuteginas que se seguem Os dois argumentos e a discussatildeo subsequente obviamente natildeo podem ser reproduzi-dos em uma aula pois as discussotildees seratildeo sempre abertas Para se ter pelo menos

24

A construccedilatildeo do argumento

uma ideia sobre essa experiecircncia convidamos ao leitor a ler esse material da ma-neira como pedimos aos nossos alunos Antes de analisar nossa discussatildeo conveacutem observar como as duas coisas satildeo diferentes e semelhantes tanto na discussatildeo quanto nas conclusotildees a que chegam As conclusotildees podem entatildeo ser usadas para interrogar nossas proacuteprias conclusotildees sobre os dois argumentos

disCussatildeo de leo e fish parte i perspeCtiva teoacuteriCa

texto 01O relativismo cultural deixa algumas pessoas cegas para o mal

(John Leo universal Press Syndicate 15102001)

o governo episcopal da igreja episcopal emitiu uma declaraccedilatildeo vergo-

nhosa sobre os ataques terroristas Depois de estimular os crentes agrave recon-

ciliaccedilatildeo (isto eacute a dizer natildeo agrave guerra) os bispos disseram ldquoA afluecircncia de

naccedilotildees como a nossa contrasta com outras partes do mundo arruinadas

pela esmagadora pobreza que causa a morte de 6000 crianccedilas durante

uma manhatilderdquo O nuacutemero 6000 e a referecircncia a uma uacutenica manhatilde eacute claro

evocam o dia 11 de setembro em um espiacuterito de equivalecircncia moral

De forma clara os bispos parecem pensar que os americanos natildeo estatildeo

em posiccedilatildeo de queixar-se do massacre de Manhattan jaacute que 6000 crian-

ccedilas em todo o mundo podem morrer em um uacutenico dia os bons bispos

aparentemente estatildeo dispostos a tolerar 6 mil assassinatos em nova york2

porque o ocidente natildeo conseguiu eliminar a pobreza mundial e talvez de-

vesse ser culpado por causaacute-la Mas o ataque terrorista natildeo tem nada a ver

com a fome ou a doenccedila no mundo e a declaraccedilatildeo dos bispos eacute um enga-

2 O nuacutemero de viacutetimas dos atentados de 11 de setembro natildeo havia ainda sido fixado em 3000 quando Leo escreveu este texto

25

A construccedilatildeo do argumento

no moral Quantos assassinatos o episcopado pode ignorar por causa da

existecircncia de uma esmagadora pobreza Se 6000 por que natildeo 60000

Esse eacute um pequeno exemplo do que poderia ser um grande problema a

longo prazo um grande nuacutemero de nossos liacutederes culturais e morais satildeo

incapazes de dizer claramente que o mal existe no mundo e que ele deve

ser desafiado Em vez disso eles se contentam em falar sobre ldquociclos de

violecircnciardquo e sobre como a praacutetica do ldquoolho por olho dente por denterdquo torna

o mundo cego como se o policial que prende o criminoso violento eacute de

alguma forma tambeacutem culpado pelo crime

Parte dessa filosofia surge da cultura terapecircutica Acusar algueacutem de ser

mau eacute uma forma ruim de pensar natildeo haacute mal nem certo e errado soacute mal-

-entendidos que podem desaparecer se retermos o julgamento e formos

tocados emocionalmente pelos outros Tudo pode ser mediado e discutido

Outras coisas se originam no relativismo moral que foi cerne da filosofia

multicultural dominante nas nossas escolas durante toda uma geraccedilatildeo o

multiculturalismo vai muito aleacutem da toleracircncia e apreciaccedilatildeo de outras cultu-

ras e naccedilotildees Ele prega que todas as culturas e todas as expressotildees culturais

satildeo igualmente vaacutelidas Isso elimina as normas morais Toda cultura (exceto

a americana eacute claro) estaacute correta segundo suas proacuteprias normas e natildeo

pode ser julgada pelos outros

Professores de todos os niacuteveis advertiram durante anos para onde isso se

dirigia estamos vendo um grande nuacutemero de jovens incapazes ou indis-

postos a fazer as distinccedilotildees mais simples entre o certo e o errado Mesmo

atos horrendos ndash o sacrifiacutecio humano em massa pelos astecas e genociacutedio

pelos nazistas ndash satildeo declarados indiscutiacuteveis ldquoEacute claro que eu natildeo gosto

dos nazistasrdquo disse um estudante do estado de Nova York a seu professor

ldquoMas quem pode dizer que eles estatildeo moralmente erradosrdquo O mesmo

argumento ou natildeo argumento pode tambeacutem se aplicar aos terroristas de

11 de setembro

26

A construccedilatildeo do argumento

apenas uma minoria dos estudantes pensa dessa maneira mas o mul-

ticulturalismo com seu relativismo cultural radical estaacute se tornando um

problema seacuterio Isso deixa muitos estudantes em duacutevida sobre os valores

americanos tradicionais e desinteressados em qualquer sentimento de sen-

so comum ou solidariedade Eacute particularmente o caso do acreacutescimo a tudo

isso do mantra de que a esquerda cultural americana eacute ldquoracista-sexista-

-homofoacutebicardquo

Essa filosofia hiacutebrida ndash nenhum julgamento de outras culturas mas um jul-

gamento severo ndash jaacute estaacute comeccedilando a colorir muitas respostas aos ataques

terroristas Ela olha para o lado de fora do argumento das ldquocausas-raizrdquo e

da necessidade de ldquoentenderrdquo os terroristas e ver seus atos ldquono contextordquo

Muitas vezes o que as pessoas entendem por causa-raiz eacute o fato de que a

impiedosa e imperialista Ameacuterica trouxe os ataques contra si mesma

A filosofia tambeacutem brilha atraveacutes de muitas declaraccedilotildees de preocupaccedilatildeo

com o vieacutes contra os muccedilulmanos americanos naturalmente os muccedilulma-

nos natildeo devem ser escolhidos para o ataque ou o desprezo Mas muitas

declaraccedilotildees oficiais sobre o 11 de setembro fizeram apenas uma breve refe-

recircncia ao horror dos ataques antes de lanccedilar uma longa e desigual atenccedilatildeo

agrave possibilidade de um vieacutes anti-muccedilulmano

o terrorismo eacute a pior ameaccedila que a naccedilatildeo jaacute enfrentou e no momento os

americanos estatildeo solidamente unidos para enfrentaacute-lo a esquerda multi-

cultural-terapecircutica eacute pequena mas concentrada em instituiccedilotildees que fazem

a maior parte da pregaccedilatildeo para a ameacuterica ndash as universidades a imprensa

as principais igrejas e a induacutestria do entretenimento eles teratildeo de ser em-

purrados para afastar-se do multiculturalismo desleixado e do relativismo

universal Deixem a empurratildeo comeccedilar

27

A construccedilatildeo do argumento

texto 02Condenaccedilatildeo sem absolutos

(Stanley fish new york Times 15102001)

Durante o intervalo entre os ataques terroristas e a resposta dos estados

unidos um repoacuterter telefonou para me perguntar se os acontecimentos de

11 de setembro significavam o fim do relativismo poacutes-modernista Parecia

bizarro que eventos tatildeo seacuterios tivessem alguma relaccedilatildeo causal com uma

forma rara de discurso acadecircmico Mas nos dias que se seguiram um nuacute-

mero crescente de comentaristas apresentou importantes variaccedilotildees sobre

o mesmo tema as ideias apresentadas pelos intelectuais poacutes-modernos

enfraqueceram a soluccedilatildeo do paiacutes o problema de acordo com os criacuteticos

eacute o fato de que como os poacutes-modernistas negam a possibilidade de des-

crever objetivamente as questotildees eles natildeo nos deixam bases firmes para

condenar os ataques terroristas ou lutar contra eles

Natildeo eacute exatamente assim O poacutes-modernismo sustenta apenas que natildeo

pode haver um padratildeo independente para determinar qual das muitas in-

terpretaccedilotildees diferentes de um evento eacute a verdadeira a uacutenica coisa contra a

qual o pensamento poacutes-moderno se opotildee eacute a esperanccedila de justificar nossa

resposta aos ataques em termos universais que seriam convincentes para

todos inclusive para nossos inimigos invocar as noccedilotildees abstratas de justiccedila

e verdade para apoiar nossa causa natildeo seria de qualquer forma eficaz

porque nossos adversaacuterios reivindicam a mesma coisa (ningueacutem se declara

apoacutestolo da injusticcedila)

em vez disso podemos e devemos invocar os valores particulares vividos

que nos unem e satildeo assumidos pelas instituiccedilotildees que valorizamos e dese-

jamos defender

em momentos como esses a naccedilatildeo retoma com razatildeo o registro de as-

piraccedilatildeo e realizaccedilatildeo que compotildee nossa compreensatildeo coletiva do que vi-

vemos Esse entendimento eacute suficiente e longe de minar sua suficiecircncia o

28

A construccedilatildeo do argumento

pensamento poacutes-moderno nos diz que temos bases suficientes para a accedilatildeo

e condenaccedilatildeo justificadas nos ideais democraacuteticos que abraccedilamos sem

entender a retoacuterica vazia de absolutos universais a que todos subscrevem

mas que todos definem diferentemente

Mas eacute claro que natildeo eacute realmente com o poacutes-modernismo que as pessoas se

incomodam Eacute a ideia de que nossos adversaacuterios natildeo emergiram de algu-

ma antiga escuridatildeo mas de uma histoacuteria que os dotou de razotildees e motivos

e ateacute mesmo de uma versatildeo pervertida de algumas virtudes Bill Maher

Dinesh DrsquoSouza e Susan Sontag comeccedilaram a ter problemas ao assinalar

que ldquocovarderdquo natildeo eacute a palavra para descrever os homens que se sacrificam

por uma causa em que acreditam a Sra Sontag lhes daacute a coragem e tem

o cuidado de dizer que eacute um termo ldquomoralmente neutrordquo uma qualidade

que algueacutem pode exibir na execuccedilatildeo de um ato ruim (Satanaacutes de Milton eacute o

melhor exemplo literaacuterio) Vocecirc natildeo tolera esse ato porque o descreve com

precisatildeo Na verdade vocecirc se posiciona melhor para responder a ele to-

mando sua verdadeira medida Tornar o inimigo menor do que ele eacute cega

para o perigo que ele apresenta e daacute-lhe a vantagem que vem junto por ter

sido subestimado

Eacute por isso que o que Edward Said chamou de ldquofalsos universaisrdquo deve ser re-

jeitado eles estatildeo no caminho do pensamento uacutetil Quantas vezes ouvimos

estes novos mantras ldquoVimos a face do malrdquo ldquoEstes satildeo loucos irracionaisrdquo

ldquoEstamos em guerra contra o terrorismo internacionalrdquo Cada um eacute impre-

ciso e inuacutetil natildeo vimos o rosto do mal noacutes vimos a cara de um inimigo

que nos apresenta uma lista cheia de queixas de objetivos e de estrateacutegias

Se reduzimos esse inimigo ao ldquomalrdquo evocamos um democircnio que muda de

forma um anarquista moral de caraacuteter selvagem aleacutem de nossa compreen-

satildeo e portanto fora do alcance de qualquer contra estrateacutegia

A mesma reduccedilatildeo ocorre quando imaginamos o inimigo como ldquoirracionalrdquo

Os atores irracionais por definiccedilatildeo natildeo tecircm um objetivo claro e natildeo haacute ra-

zatildeo para raciocinar sobre a forma de combatecirc-los O melhor eacute pensar nes-

29

A construccedilatildeo do argumento

ses homens como portadores de uma racionalidade que rejeitamos porque

seu objetivo eacute a nossa destruiccedilatildeo Se tomarmos o trabalho de entender essa

racionalidade poderiacuteamos ter uma melhor chance de descobrir o que seus

adeptos faratildeo a seguir e prevenir

E o ldquoterrorismo internacionalrdquo natildeo descreve adequadamente o que en-

frentamos o terrorismo eacute o nome de um estilo de guerra a serviccedilo de

uma causa Eacute a causa e as paixotildees que a informam que nos confrontam

Concentrar-se em algo chamado terrorismo internacional ndash destacado de

qualquer agenda especiacutefica ndash soacute confunde as coisas Isto deveria ter sido

evidente quando o presidente vladimir Putin da Ruacutessia insistiu que qualquer

guerra contra o terrorismo internacional deve ter como um dos seus objeti-

vos a vitoacuteria contra os rebeldes na Chechecircnia

Quando a Reuters decidiu tomar cuidado ao usar a palavra ldquoterrorismordquo

porque segundo seu diretor de notiacutecias o terrorista de um homem eacute o luta-

dor pela liberdade de outro homem Martin Kaplan decano associado da

escola annenberg de Comunicaccedilatildeo da universidade do Sul da Califoacuternia

criticou o que ele viu como mais um exemplo de relativismo cultural Mas

a Reuters estaacute simplesmente reconhecendo quatildeo inuacutetil eacute a palavra porque

nos impede de fazer distinccedilotildees que nos permitem ter uma imagem melhor

de onde estamos e o que poderiacuteamos fazer Se vocecirc pensa em si mesmo

como o alvo do terrorismo com um T maiuacutesculo seu oponente estaacute em toda

parte e em nenhuma parte Mas se vocecirc pensa em si mesmo como o alvo

de um terrorista que vem de algum lugar mesmo que ele opere interna-

cionalmente vocecirc pode pelo menos tentar antecipar seus futuros ataques

Eacute este o fim do relativismo Se pelo relativismo se entende um elenco de

opiniotildees que torna vocecirc incapaz de preferir suas proacuteprias convicccedilotildees agraves do

seu adversaacuterio entatildeo o relativismo dificilmente poderia terminar porque

nunca comeccedilou Nossas convicccedilotildees satildeo por definiccedilatildeo preferidas Isso eacute o

que as torna nossas convicccedilotildees Relativizaacute-las natildeo eacute nem uma opccedilatildeo nem

um perigo

30

A construccedilatildeo do argumento

Mas se pelo relativismo se entende a praacutetica de se colocar no lugar do ad-

versaacuterio natildeo para se tornar igual a ele mas para ter alguma compreensatildeo

(muito longe da aprovaccedilatildeo) sobre o porquecirc de algueacutem mais querer ser

entatildeo o relativismo natildeo vai e natildeo deve terminar porque eacute simplesmente

outro nome para o pensamento fundamentado

Comeccedilamos com o elemento mais controverso da nossa discussatildeo nossa cren-ccedila de que o argumento de Fish eacute o mais forte e que nossos motivos para o preferir natildeo satildeo apenas ideoloacutegicos mas tambeacutem profissionais e teacutecnicos A primeira parte dessa afirmaccedilatildeo eacute provavelmente menos surpreendente para a maioria do que a segunda Muitos leitores deste livro acharatildeo o argumento de Leo menos persua-sivo assim como muitos leitores do digamos jornal conservador The Washington Times provavelmente achariam o argumento de Fish menos convincente A base para essa divisatildeo eacute congruente com as diferentes suposiccedilotildees sobre os argumentos colocados pelos dois autores Leo certamente afirmaria que nossos leitores leram mal seu artigo e foram enganados por Fish porque eles ndash isto eacute ldquovocecircrdquo ndash estatildeo presos ao ldquorelativismo moralrdquo

Da mesma forma Leo natildeo teria duacutevida de achar os leitores do The Washington Times mais perspicazes em grande parte porque eles conseguiram de alguma forma evitar a doutrinaccedilatildeo por uma ldquocultura terapecircuticardquo supervisionada pela elite intelectual ndash ou seja mais uma vez ldquovocecircrdquo Nossas duas leituras hipoteacuteticas tecircm diferenccedilas tanto de interpretaccedilatildeo quanto de significado Leitores competentes e natildeo corrompidos encontraratildeo o significado correto em cada um dos textos os leitores incompetentes e corrompidos natildeo Natildeo haacute espaccedilo no mundo de Leo para as ldquointerpretaccedilotildees rivaisrdquo de Fish sobre textos eventos porque no final haacute apenas uma leitura correta

Fish entretanto iria achar as diferenccedilas nas duas leituras insignificantes e certamente natildeo veria motivo para querelas Enquanto ele estaria preparado para se pronunciar contra uma leitura que julga seu argumento inferior ao de Leo ndash na

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A construccedilatildeo do argumento

verdade imagina-se que ele seria muito influenciado por tal julgamento ndash ele natildeo deixaria de relutar em reconhecer a superioridade de sua posiccedilatildeo como um sinal de corrupccedilatildeo moral

Os leitores do The Washington Times simplesmente constituem uma comuni-dade de leitores que compartilham crenccedilas diferentes e atribuem diferentes signi-ficados a termos como ldquoverdaderdquo e ldquojusticcedilardquo Ele estaria preparado para apresentar argumentos que mostram por que esses leitores estatildeo errados e ele certo ndash na verdade ele faz isso em seu texto ndash mas ele aceitaria desde o iniacutecio que em seus argumentos ele natildeo poderia apelar para qualquer conjunto de padrotildees univer-sais defendidos pelos seus apoiantes e pelos apoiantes de Leo que confirmariam suas conclusotildees e fortaleceria as de Leo aos olhos de todas as partes da discussatildeo (Porque Fish vecirc os limites entre as comunidades muito menos permeaacuteveis ele eacute menos otimista quanto agraves perspectivas do diaacutelogo intercomunitaacuterio do que noacutes) Leo entretanto assume que esses universais conhecidos de todos e ignorados perversamente por alguns existem embora ele tenha o cuidado de natildeo nomeaacute--los ou falar sobre suas relaccedilotildees Os extremos de Leo a ser nomeados mais tarde como divindades religiosas cujos nomes nunca devem ser citados impressionam mais na ausecircncia do que na realidade

Nossa proacutepria visatildeo nos inclina menos para Leo e mais para Fish por vaacuterias razotildees Em primeiro lugar as hipoacuteteses de Leo sobre a natureza da verdade e do significado satildeo incompatiacuteveis com as hipoacuteteses compartilhadas pela maioria dos membros de nossa proacutepria comunidade O mais importante dessas hipoacuteteses eacute a crenccedila de que o argumento tem poder heuriacutestico realizado pelo diaacutelogo com noacutes mesmos ou com outras pessoas fazendo o que Aristoacuteteles chamou de ldquoprovar opostosrdquo Noacutes natildeo apenas defendemos a verdade e vencemos o erro modificamos as verdades aceitas e descobrimos novas Nessa visatildeo estaacute impliacutecita a crenccedila de que a verdade natildeo pode ser como Leo parece assumir que eacute independente do jul-gamento humano ou da linguagem que usamos para formar esse julgamento Se a verdade eacute absoluta independente de noacutes e incorrigiacutevel por noacutes e se a linguagem eacute

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A construccedilatildeo do argumento

meramente um meio de expressatildeo transparente natildeo o que Burke chama de ldquotela terminoloacutegicardquo que molda o que revela a retoacuterica eacute um negoacutecio trivial merecedor do tipo de indignaccedilatildeo que o primeiro absolutista adepto ao platonismo sentiu pelo primeiro de nossa raccedila os sofistas

Embora a nossa posiccedilatildeo aqui uma posiccedilatildeo consistente se natildeo idecircntica agrave da maioria dos membros de nossa comunidade possa parecer com a posiccedilatildeo que Leo caracteriza como ldquorelativismo moralrdquo natildeo acreditamos que ela seja Dizer que noacutes mesmos ou Fish somos relativistas morais eacute mais uma caricatura do que uma re-presentaccedilatildeo de nossa posiccedilatildeo O fato de aceitarmos a inevitabilidade de posiccedilotildees muacuteltiplas sobre qualquer questatildeo de significado natildeo quer dizer que aceitamos ndash como o aluno desafortunado de Leo que ldquonatildeo gostardquo dos nazistas mas natildeo pode se denunciar ndash a equivalecircncia moral ou cognitiva de todas as posiccedilotildees sobre uma questatildeo Como retoacutericos natildeo podemos pedir a adesatildeo ao ldquoEu estou bemrdquo ldquoVocecirc estaacute OKrdquo quando debatemos relaccedilotildees humanas

De fato se isso prevalecesse os retoacutericos ficariam sem trabalho A retoacuterica e o argumentaccedilatildeo natildeo tecircm lugar em nenhum dos dois mundos que para Leo repre-sentem a soma de todas as possibilidades o mundo da Uma Verdade ou o mundo onde ele imagina habitar onde existem inuacutemeras verdades equivalentes No mundo da Uma Verdade a retoacuterica e a argumentaccedilatildeo podem servir tanto para propagar uma uacutenica feacute verdadeira como para levar as pessoas para longe dessa feacute mas natildeo poderia ter efeito legiacutetimo nas verdades que fundamentam a feacute Em um mundo de muacuteltiplas verdades equivalentes natildeo somente seriacuteamos impotentes para mudar a posiccedilatildeo uns dos outros tambeacutem natildeo haveria nenhuma razatildeo para querer ter boas razotildees para assumir uma posiccedilatildeo e natildeo outra

Nossa posiccedilatildeo portanto natildeo eacute absolutista nem relativista Preferimos consi-deraacute-la como ldquorealistardquo tal como Kenneth Burke usa esse termo Em um mundo re-alista a retoacuterica e a argumentaccedilatildeo satildeo atividades essenciais precisamente porque eacute um mundo que reconhece o papel significativo embora natildeo limitado que a accedilatildeo humana desempenha na soluccedilatildeo dos problemas do mundo e a parte importante

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A construccedilatildeo do argumento

que a linguagem desempenha para permitir ao ser humano atingir seus objetivos Em particular a linguagem tem a capacidade real de ldquofavorecer a cooperaccedilatildeordquo en-tre os seres humanos mesmo se falta o poder maacutegico de ldquoprovocar o movimento nas coisasrdquo (BURKE 1966) Embora Burke (1966) reconheccedila o enorme poder da linguagem para efetuar a mudanccedila seu realismo tambeacutem exige a crenccedila em um mundo independente do poder de formaccedilatildeo da linguagem

Nosso conhecimento desse domiacutenio extra verbal eacute adquirido negativamente atraveacutes do poder das coisas eventos e corpos para resistir a nossas afirmaccedilotildees e reivindicaccedilotildees e frustrar nossos projetos Esse poder de ldquodesobediecircnciardquo no mundo encoraja uma atitude de humildade como a que Burke (1996) encontra no pragmatista William James a quem ele se refere como ldquoum especialista no grau comparativo de adjetivos de valorrdquo James rejeitou o absolutismo (que eacute realmente o superlativo identificando o Um como o Melhor) e preferiu pensar ldquo[] em termos de mais e natildeo de todosrdquo Entre otimismo ou pessimismo ele preferia o ldquomelio-rismordquo (BURKE 1984) Enquanto os absolutistas como Leo agraves vezes permitem que o perfeito se torne o inimigo do bem julgando qualquer coisa menos do que tudo insuficiente e corrupta os realistas procuram melhorar as coisas por grau induzindo a cooperaccedilatildeo entre as pessoas e trabalhando em direccedilatildeo a finalidades coletivamente definidas que satildeo constantemente redefinidas Nesse mundo a re-toacuterica e as artes da persuasatildeo natildeo satildeo ferramentas insignificantes para distrair as massas satildeo ldquoequipamentos para viverrdquo

No mundo que descrevemos a justiccedila e a verdade satildeo termos importantes ainda que pouco presentes em nosso vocabulaacuterio O que as palavras significam para um determinado grupo de pessoas em um dado momento pode natildeo ser exatamen-te o mesmo em outro momento em circunstacircncias diferentes ou para um grupo diferente de pessoas em um mesmo tempo e um mesmo lugar Mas cada grupo em todas as circunstacircncias imagina que estaacute em busca da justiccedila e da verdade Ou como diz Fish de maneira mais marcante ldquoNingueacutem se declara apoacutestolo da injusticcedilardquo mesmo aqueles cujos meacutetodos nos podem parecer hediondos Diferentes

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A construccedilatildeo do argumento

grupos podem usar diferentes meios para chegar a significados diferentes para termos importantes como verdade e justiccedila mas essas diferenccedilas natildeo satildeo mais ldquosubjetivasrdquo do que o significado de Leo para ldquoobjetivordquo Apenas o fracasso de Leo em articular um significado especiacutefico para sua noccedilatildeo de verdade pode preservar sua aura de universalidade

Tanto a comunidade de Leo como a de Fish elaboraram uma definiccedilatildeo do termo consistente com seus proacuteprios princiacutepios Mas ao contraacuterio de Fish Leo e os membros de sua comunidade parecem rejeitar em primeiro lugar o processo que produziu sua versatildeo da verdade Ao chegarem ao reino dos Absolutos eles desfazem o caminho que percorreram e impendem outros de chegar Como o mundo platocircnico das Formas Puras a Verdade de Leo parece existir separada do mundo natildeo afetada pelas interaccedilotildees dos mortais As almas excepcionais podem ocasionalmente perceber uma essecircncia em meio aos acidentes da vida e depois de experimentar essas epifanias podem tentar compartilhaacute-las com os outros mas aleacutem disso os seres humanos natildeo tecircm nenhum papel na construccedilatildeo da verdade A diferenccedila entre as duas posiccedilotildees foi bem capturada pelo filoacutesofo Richard Rorty

Se vemos o conhecimento natildeo como uma essecircncia descrita por cien-tistas ou filoacutesofos mas como um direito segundo os padrotildees atuais de acreditar estamos no caminho para ver a conversaccedilatildeo como o uacuteltimo contexto a partir do qual o conhecimento pode ser entendido Nosso foco se desloca da relaccedilatildeo entre os seres humanos e os objetos de sua inves-tigaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre padrotildees alternativos de justificaccedilatildeo e daiacute para as mudanccedilas reais nesses padrotildees que compotildeem a histoacuteria intelec-tual (RORTY 1979 p 389-90)

Nos termos de Rorty (1979) o debate entre Leo e Fish pode ser enquadrado como um debate entre aqueles que representam o conhecimento como uma descri-ccedilatildeo precisa da essecircncia versus aqueles que o entendem como ldquoum direito segundo

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A construccedilatildeo do argumento

os nossos padrotildees atuais de acreditarrdquo Aqueles que defendem a primeira posiccedilatildeo relegam a retoacuterica e a persuasatildeo a um status decididamente secundaacuterio A desco-berta do conhecimento deve ser deixada para cientistas e filoacutesofos especializados na ldquorelaccedilatildeo entre os seres humanos e os objetos de sua investigaccedilatildeordquo Aqueles que defendem a segunda posiccedilatildeo colocam retoacuterica e persuasatildeo no centro da produccedilatildeo do conhecimento Atraveacutes da ldquoconversaccedilatildeordquo eles elaboram ldquoa relaccedilatildeo entre padrotildees alternativos de justificaccedilatildeordquo Isso eacute o que mais ou menos os retoacutericos tecircm feito haacute mais de dois milecircnios

disCussatildeo de leo e fish parte ii passando da dualidade ao Compromisso

Nesta segunda parte da nossa discussatildeo sobre os artigos de Fish e Leo que-remos voltar nosso foco para a sala de aula e mostrar como professores de que forma poderiacuteamos usar esses artigos para elaborarmos uma definiccedilatildeo provisoacuteria de argumento e aplicar as liccedilotildees do debate ao ensino Do ponto de vista do ensino o que eacute especialmente interessante sobre o argumento de Leo eacute quatildeo perfeitamente sua posiccedilatildeo e o status atribuiacutedo a ela reproduzem a mentalidade de dois grupos problemaacuteticos de estudantes que encontramos frequentemente em nossas aulas A partir do esquema de desenvolvimento cognitivo e moral de William Perry de-nominamos essas duas posiccedilotildees de ldquodualidade e multiplicidaderdquo Essas posiccedilotildees correspondem a dois dos primeiros estaacutegios do esquema de desenvolvimento de Perry (1999) e representam desafios marcadamente diferentes na sala de aula

Um aluno em dualidade supotildee que haacute respostas certas e erradas para cada pergunta e que o trabalho do professor eacute apresentar essas respostas de forma clara e depois testar os alunos para saber se eles lembram a resposta correta Nessa posiccedilatildeo os problemas surgem quando a) desafiamos os alunos a apresen-tarem as suas proacuteprias respostas eou b) os alunos acreditam que estamos dando

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A construccedilatildeo do argumento

respostas conflituosas em relaccedilatildeo as respostas anteriormente dadas por outros professores Se fizermos o nosso trabalho aconteceratildeo as duas coisas o que faraacute que os alunos retornem para suas antigas convicccedilotildees ou arrisquem a colocar suas crenccedilas ndash religiosa poliacutetica ou ideoloacutegica ndash em duacutevida Estudantes em dualidade podem muito bem nos ver como ameaccedilas agrave sua proacutepria identidade assim como sombrios e desconhecidos como os terroristas de Leo em nossas tentativas de desestabilizar sua visatildeo de mundo Eacute importante portanto ter em mente o quatildeo alto as apostas e os grandes riscos podem ser para esses estudantes quando lhes pedimos para ldquoprovar o que estaacute em contradiccedilatildeordquo e verdadeiramente ouvir argumentos opostos

Os alunos que estatildeo na multiplicidade entretanto adotam o laissez-faire vivem e deixam viver as diferenccedilas intelectuais tudo o que Leo atribui aos ldquomulticultu-ralistasrdquo Como os alunos em dualidade os em multiplicidade tambeacutem subvertem o processo dialeacutetico mas por meios diferentes Os em dualidade subvertem o processo dialeacutetico pronunciando Uma Tese Verdadeira e descartando todas as al-ternativas possiacuteveis Os que estatildeo na multiplicidade entretanto proclamam todas as teses alternativas igualmente vaacutelidas e as veem como possibilidades paralelas que nunca se cruzam Em nenhum dos casos uma tese pode engendrar uma antiacute-tese para produzir qualquer tipo de siacutentese Os que estatildeo na multiplicidade estatildeo abertos a novas ideias mas satildeo incapazes de engajar criticamente essas ideias de escolher as que fazem melhor sentido em um dado conjunto de circunstacircncias ou de combinar elementos de vaacuterias ideias para construir uma melhor

Na medida em que a faculdade eacute um lugar onde os estudantes abandonam a dualidade pela multiplicidade ndash embora na verdade poucos parecem entrar na faculdade na dualidade ndash Leo estaacute em parte certo ao afirmar que as faculdades encorajam os alunos a adotar algo como uma ldquoeacutetica difusardquo como visatildeo de mundo Provavelmente em um momento ou outro a maioria dos estudantes universitaacute-rios ndash incluindo alguns de noacutes ndash abraccedilaram um tipo de toleracircncia fraca a ideias diferentes a que Leo ironicamente se refere como ldquorelativismo moralrdquo como uma

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A construccedilatildeo do argumento

alternativa agraves formas mais maleacuteficas de intoleracircncia intelectual produzidas por dualismo Mas ao contraacuterio de Leo a maioria de noacutes vecirc nossa tarefa como estu-dantes em deslocamento das duas etapas para uma de raciociacutenio moral de ordem superior que abrange a complexidade e a contrariedade sem cair na indiferenccedila

Perry (1999) chama esse uacuteltimo estaacutegio de ldquocompromisso no relativismordquo Trata-se de uma posiccedilatildeo natildeo muito diferente da que Fish assume no seu artigo Embora permaneccedila um ideal mais do que uma possibilidade realista para a maio-ria das pessoas eacute uma aspiraccedilatildeo interessante de argumento para os professores levarem para seus alunos Aqueles que alcanccedilam o compromisso no relativismo reconhecem a impossibilidade de uma certeza perfeita equilibrada pela sua neces-sidade de agir sobre o conhecimento imperfeito Eles estatildeo firmemente compro-metidos com seus princiacutepios e conscientes de que nenhum conjunto de princiacutepios eacute infaliacutevel ou incorrigiacutevel O conhecimento eles passaram a entender eacute um processo infinito natildeo uma posse definitiva e o preccedilo que se paga por esse conhecimento eacute a duacutevida e o questionamento

Ao afastarem-se do que eacute absoluto aceitarem a necessidade de escolher a me-lhor entre alternativas imperfeitas e assumirem que a responsabilidade por essas escolhas as faz prosseguir pelo mundo aqueles do compromisso no relativismo satildeo perfeitamente capazes de natildeo apenas condenar posiccedilotildees contraacuterias aos seus proacuteprios princiacutepios mas de se colocarem no lugar de seus adversaacuterios e alcanccedilarem algum niacutevel de identificaccedilatildeo com eles

Eacute claro que natildeo haacute uma maneira clara de atrair os estudantes que estatildeo envol-vidos no relativismo (estaacutegio em que a maioria dos estudantes universitaacuterios de niacutevel baacutesico se encontra de acordo com Perry 1999) para a classe do compromisso no relativismo Poucos alunos se aproximaratildeo desse uacuteltimo estaacutegio ao concluiacuterem a carreira universitaacuteria Mas desde que o objetivo seja claro e nossos meacutetodos de ensino e nossa maneira de interagir com nossos alunos sejam congruentes com esse objetivo temos mais chance de levar aos alunos alguma coisa mais satisfatoacuteria para

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A construccedilatildeo do argumento

eles e para noacutes mesmos3 Se preferimos o argumento de Fish ao de Leo e se nossas preferecircncias estatildeo fundamentadas nos imperativos de nossa disciplina e de nosso modelo pedagoacutegico deveriacuteamos ser livres para compartilhar essa preferecircncia e o motivo de escolhecirc-la com nossos alunos

leo e fish parte iii os elementos do argumento

Um dos primeiros desafios que enfrentamos ao apresentar nossa noccedilatildeo de argumento para os alunos eacute dissipar as suposiccedilotildees erradas sobre o argumento que eles trazem para nossas salas de aula Afinal de contas eles adquiriram suas proacuteprias noccedilotildees de argumento muito antes de comeccedilarem o estudo formal do as-sunto Eles tiveram contato com argumentos em casa e na escola leram sobre isso em livros e jornais viram na televisatildeo escutaram no raacutedio e assistiram nos filmes incontaacuteveis vezes antes de entrarem na sala de aula onde pretendemos ensinar-lhes a escrever Dada a maneira natildeo sistemaacutetica como os alunos adquirem muito cedo o conhecimento sobre o argumento natildeo surpreende que eles possam precisar ser ldquodesatadosrdquo de algumas suposiccedilotildees antes de comeccedilar o ensino

No caso dos ensaios de Leo e Fish a primeira coisa que pode surpreender os alunos eacute o fato de que os dois ensaios natildeo dialogam entre si natildeo estatildeo em condiccedilatildeo de debate de ideias Embora os artigos de Leo e Fish tenham sido publicados no

3 ao usar o quadro de Perry (1999) para essa discussatildeo sobre o desenvolvimento do aluno natildeo queremos dizer que isso implica uma aceitaccedilatildeo sem criacutetica de sua teoria uma seacuterie de criacuteticas incisivas ao esquema de Perry foi feita nos anos setenta e oitenta particularmente por estudiosos feministas (por exemplo Gilligan Belenky e outros) que observaram o forte vieacutes masculino da pesquisa de Perry e sua incapacidade de explicar as diferenccedilas de gecircnero As formas de conhecimento das mulheres devemos reconhecer satildeo de fato diferentes das dos homens particularmente quando se trata de questotildees eacuteticas Dito isso as reaccedilotildees dos estudantes universitaacuterios em especial os estudantes de niacutevel inicial tanto do sexo masculino como feminino aos desafios colocados pelas aulas focadas no argumento parecem semelhantes agraves do esquema de Perry o que nos permite usaacute-las como um suporte para a presente discussatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

mesmo dia 15 de outubro de 2001 tratem do mesmo assunto e chegem a conclu-sotildees completamente diferentes por meio de raciociacutenios tambeacutem completamente diferentes parecem ter sido escritos sem alusatildeo de um ao outro Um artigo natildeo refuta ponto a ponto a ideia do outro e quando se contradizem o fazem pela inter-seccedilatildeo aleatoacuteria de ideias contraacuterias sem intenccedilatildeo de assumir uma postura oposta

Quando afirmamos que os argumentos mais importantes do dia satildeo cons-truiacutedos de maneira semelhante muitos estudantes surpreendentemente natildeo acham estranho As experiecircncias pessoais desses estudantes os levam a entender o argumento segundo um ldquomodelo de debaterdquo em que duas (ou algumas) pessoas inclinadas a ganhar disputam diretamente ideias opostas Alguns se atentam a tais argumentos pelo lado divertido ndash a possibilidade de que eles podem acabar violentamente lhes daacute vantagem ndash ou para apostar em um dos lados da disputa Outros natildeo se engajariam em tais argumentos ndash ou em versotildees falsas de um mesmo programa de TV ou raacutedio ndash para avaliaacute-los com cuidado observar os menos persu-asivos e criar novos a partir do confronto O modelo dominante de argumento natildeo eacute em suma um modelo dialeacutetico pois trata-se de algo semelhante a um jogo cujo resultado eacute zero a zero um esporte em equipe que natildeo possibilita a participaccedilatildeo ativa dos que assistem ou a busca das verdades mais criacuteveis4

Nosso modelo preferido de argumentaccedilatildeo permite a busca por melhores ideias a partir do que Burke chama de ldquobusca de vantagensrdquo Mas como Burke reconhe-cemos que pelo menos algum elemento da busca de vantagens pode ser encontrado em todos os argumentos por mais civilizado que seja o tom natildeo importa o grau de flexibilidade em relaccedilatildeo agrave oposiccedilatildeo de opiniotildees Ningueacutem discute simplesmente

4 No caso do debate entre Fish e Leo parece que estamos nos contradizendo e declarando nossa preferecircncia pelo argumento de fish Mas eacute preciso lembrar que o seu desacordo tem mais natureza de um meta-argumento do que de um argumento regular e como tal a razatildeo de nossa preferecircncia remonta ao fato de que Leo natildeo oferece nenhuma razatildeo para ouvir argumentos opostos enquanto Fish especificamente apela a uma abordagem dialeacutetica para o desacordo como a que estamos apoiando aqui

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A construccedilatildeo do argumento

para encontrar as melhores ideias Eacute importante no iniacutecio do semestre desacos-tumar os alunos de suas ideias de argumento excessivamente violentas para natildeo exagerar no teor da nossa proacutepria empreitada e assim deixaacute-los mais desiludi-dos O argumento afinal normalmente envolve algum investimento do ego e do coraccedilatildeo bem como da mente e do julgamento A maioria de noacutes assume os riscos do argumento ndash o risco de alienar as pessoas de suscitar a oposiccedilatildeo de perder o ponto e de ter isso apontado nem sempre gentilmente em um ambiente puacuteblico ndash somente se nossas crenccedilas ou interesses mais caros estatildeo em jogo Ateacute mesmo o mais altruiacutesta dos argumentadores deseja se natildeo ganhar um argumento pelo menos ldquoacertarrdquo Perder um argumento ou mesmo ter um argumento colocado em duacutevida pode muito bem exigir que voltemos e reexaminemos as crenccedilas que ancoram nossa identidade

Portanto o argumento eacute arriscado em parte porque estamos buscando vanta-gem para nossos interesses e crenccedilas ou estamos lutando para impedir que outros tirem vantagem em relaccedilatildeo aos seus interesses e crenccedilas No entanto dito isso a maioria de noacutes mesmos ndash ou talvez sobretudo os terroristas ndash acredita verdadei-ramente que a serviccedilo de nossos proacuteprios interesses satildeo mobilizados interesses maiores e que a transmissatildeo de nossas crenccedilas direciona a verdade e justiccedila para os outros Certamente todos noacutes nos encontramos agraves vezes na posiccedilatildeo de apoacutes-tolos de senatildeo da injusticcedila de ideias que satildeo pelo menos as injustas de conjunto ruim No entanto mesmo nessa busca haacute uma certa nobreza e os alunos devem ser lembrados disso no iniacutecio do semestre

O que gerou os argumentos de Fish e Leo foi um evento o 11 de setembro que levou muitos americanos a mudar suas percepccedilotildees e hipoacuteteses sobre o mundo Ateacute 11 de setembro de 2001 haacute seacuteculos nenhum poder estrangeiro conseguiu invadir os Estados Unidos ou matar um nuacutemero significativo de cidadatildeos americanos em solo americano Apoacutes o 11 de setembro nosso senso de invulnerabilidade e do nos-so papel no mundo exigiu um reexame enquanto nossas crenccedilas sobre a atitude do resto do mundo em relaccedilatildeo a noacutes tiveram que ser radicalmente revisadas Em

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suma os acontecimentos do 11 de setembro representam um exemplo claacutessico do que na retoacuterica eacute referido como uma ldquoexigecircnciardquo De acordo com Bitzer (1995 p 304) que cunhou o termo haacute quarenta anos como parte de seu olhar revisionista sobre a situaccedilatildeo retoacuterica ldquoqualquer exigecircncia eacute uma imperfeiccedilatildeo marcada pela urgecircncia Eacute um defeito um obstaacuteculo algo que espera ser feito algo que eacute diferente do que deveria serrdquo Uma exigecircncia natildeo pode ser na linguagem do debate um pro-blema ldquoinerenterdquo um aspecto imutaacutevel da condiccedilatildeo humana digamos que desfia a soluccedilatildeo e natildeo pode ser um problema que possa ser resolvido diretamente por meios extra verbais ldquoUma exigecircncia eacute retoacuterica quando eacute capaz de ser modificada positivamente e quando essa modificaccedilatildeo requer um discurso ou pode ser assistida pelo discursordquo (BITZER 1995 p 304)

O ataque terrorista de 11 de setembro exigia um ldquodiscursordquo de cada um de noacutes quer em nossas respostas em silenciosos soliloacutequios quer em voz alta ou impressas para conhecimento puacuteblico O que noacutes fizemos do ataque Como deve-mos responder como naccedilatildeo e como indiviacuteduos A maioria dos americanos tentou articular seus sentimentos sobre o ataque e encontrar algum modo de formar um julgamento eacutetico sobre ele Muitas vezes olhaacutevamos para especialistas de confian-ccedila como Leo e acadecircmicos como Fish que compartilhavam seus pensamentos na miacutedia em busca de ajudar para encontrar a expressatildeo dos pensamentos que nos iludiram e das ideais que poderiam nos guiar

Tanto Fish quanto Leo compartilham o necessaacuterio senso de urgecircncia sobre o que precisa ser feito em resposta ao problema Para Leo a liccedilatildeo do 11 de setembro eacute a de que chegou o momento de comeccedilar a empurrar a ldquoesquerda multicultural--terapecircuticardquo para longe de seu relativismo superficial e oferecer uma frente unida presumivelmente ldquomonoculturalrdquo em oposiccedilatildeo agrave ameaccedila terrorista Eacute uma linha de pensamento que parece antecipar algumas linhas de pensamento seguidas posteriormente por nossa lideranccedila poliacutetica o mundo mudou em 11 de setembro atraveacutes de um chamado para uma revisatildeo de nossas prioridades poliacuteticas e de nosso sistema de valores (ou um retorno aos nossos valores fundamentais) incluindo o

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sacrifiacutecio de algumas liberdades em troca de uma melhor seguranccedila Nosso inimigo eacute o ldquoterrorismordquo ou alguma variaccedilatildeo dele (ldquofascismo islacircmicordquo ldquomovimento ter-rorista internacionalrdquo ldquoextremistas muccedilulmanosrdquo) que tem natureza monoliacutetica sombria e niilista Em oposiccedilatildeo a esse inimigo noacutes devemos ser intransigentes mesmo sozinhos se outros membros da comunidade internacional natildeo compar-tilham de nossa visatildeo

Da mesma forma o ensaio de Fish parece antecipar muitos dos argumentos apresentados por eventuais criacuteticos da guerra no Iraque depois que o Iraque se tornou de fato um campo de testes para ideias muito parecidas com as apoiadas por Leo O que resultou eacute um exemplo claacutessico do que aconteceu ao longo da histoacuteria quando as ideias absolutistas foram testadas na realidade O modelo monoliacutetico do mal correu contra a natureza heterogecircnea de uma sociedade profundamente dividida Embora os grupos terroristas tenham entrado na briga depois da ocu-paccedilatildeo americana a maior parte da violecircncia apoacutes 2003 foi a sectaacuteria infligida por grupos especiacuteficos cada qual ldquocom uma lista completa de queixas metas e estrateacutegiasrdquo buscando vantagem para seus interesses

Uma das questotildees interessantes levantadas pela noccedilatildeo de exigecircncia eacute o grau em que o ldquodefeitordquo ou o ldquoobstaacuteculordquo estaacute no mundo em relaccedilatildeo ao que eacute percebido Nossa proacutepria leitura ldquorealistardquo dos dois artigos imporia uma exigecircncia nos dois lugares Ou seja os artigos de Fish e Leo satildeo ao mesmo tempo respostas a um acontecimento no mundo independente do poder da linguagem para mudaacute-lo ou invertecirc-lo e continuaccedilotildees da formaccedilatildeo dos dois escritores para a vida a partir dos seus sistemas de crenccedilas Enquanto Leo sugere que o 11 de setembro mudou o mundo (o mundo que ele descreve no rastro do que houve em 11 de setembro eacute um mundo que tem muito em comum com a distopia que ele descreveu por mui-tos anos) e sua receita para lidar com o poacutes 11 de setembro eacute consistente com as propostas de reforma que ele realizou desde os anos de 1960

Da mesma forma a resposta liberal de Fish (embora Fish normalmente esca-pa a roacutetulos como liberalconservador sua posiccedilatildeo sobre essa questatildeo particular

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alinha-se com a posiccedilatildeo que muitos liberais finalmente tomaram sobre a questatildeo) ao problema do 11 de setembro ecoa ideias que ele tem articulado por mais de trinta anos nos domiacutenios da teoria literaacuteria e juriacutedica Sua insistecircncia de que de-vemos atender agraves particularidades das queixas de nossos inimigos para entender suas motivaccedilotildees as quais somos confrontados eacute uma parte da sua insistecircncia de que devemos ficar atentos aos detalhes dos textos para elaborar seu sentido no contexto das intenccedilotildees dos autores Sua afirmaccedilatildeo de que ao justificar nossas res-postas ao 11 de setembro soacute podemos apelar para aquelas verdades contingentes que compartilhamos com outros membros de uma comunidade que compartilha nossas crenccedilas - ldquoo registro de aspiraccedilatildeo e realizaccedilatildeo que compotildee nossa compre-ensatildeo coletiva do que vivemosrdquo - eacute uma parte da sua crenccedila de que as comunidades de leitores elaboram padrotildees de sentido e interpretaccedilatildeo entre si

Nosso interesse em relacionar os argumentos de Leo e Fish sobre o 11 de setembro com a visatildeo de mundo mais ampla deles vai aleacutem de qualquer interesse em rotular corretamente suas posiccedilotildees poliacuteticas Entender a fonte de suas rei-vindicaccedilotildees eacute diriacuteamos fundamental para entender o tom que os dois escritores assumem ao se expressarem Estabelecer cedo uma maneira razoavelmente clara de falar sobre questotildees de tom nas aulas de argumento eacute fundamental em virtude das dificuldades que muitos estudantes enfrentam para encontrar uma tonalida-de apropriada para seus argumentos Parte dessa dificuldade ocorre em funccedilatildeo dos diferentes estaacutegios de desenvolvimento nos quais os estudantes chegam em nossas aulas

Os estudantes inclinados para o dualismo por exemplo podem adotar um tom excessivamente agressivo em seus argumentos (embora poucos dualistas com-pletos apareccedilam no primeiro dia em nossas aulas eacute uma posiccedilatildeo da qual alguns estudantes particularmente os de primeiro ano se retiram quando se sentem ameaccedilados intelectualmente) Eacute importante lembrar que muita coisa estaacute em jogo para um dualista quando precisa justificar ideias que ele julga injustificaacuteveis Um sintoma dessa ansiedade seraacute uma certeza com tom agressivo mas sem convicccedilatildeo

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As posiccedilotildees independente do grau seratildeo pouco defendidas pouco qualificadas e sem convicccedilatildeo absoluta Os julgamentos categoacutericos controversos particularmente os julgamentos morais seratildeo respondidos como se fossem ordens Os argumentos opostos seratildeo descartados mesmo que pareccedilam fortes para uma terceira pessoa Qualquer leitor que natildeo esteja totalmente de acordo com o autor de um argumento pode se sentir mais intimidado do que persuadido

Os estudantes que estatildeo no estaacutegio da multiplicidade entretanto tambeacutem tendem a ver suas posiccedilotildees e julgamentos como evidentes natildeo porque eles satildeo a Uacutenica Verdade mas porque todo mundo acreditar em tudo o que quer O tom ado-tado pelos estudantes em multiplicidade seraacute consideravelmente menos belicoso do que o dos seus pares em dualismo Eles natildeo satildeo ameaccedilados pelo desacordo afinal as pessoas inevitavelmente veem as coisas de forma diferente Um argu-mento para eles eacute apenas uma maneira de deixar as pessoas saber ldquode onde elas vecircmrdquo Na verdade muitas vezes eacute difiacutecil discordar de suas posiccedilotildees Quanto mais abstrata a posiccedilatildeo que assumem no final das contas mais difiacutecil eacute contestar sua premissa baacutesica a de que natildeo haacute necessidade real de diferenciar posiccedilotildees Se o dualista tende para um tom excessivamente belicoso o adepto da multiplicidade tende para um tom excessivamente brando

Para ajudar os alunos a reconhecer as origens intelectuais do tom e as limi-taccedilotildees que enfrentam se eles satildeo incapazes de moderar o tom eacute uacutetil analisar as questotildees de tom em artigos como os de Fishs e Leo Como esses escritores satildeo consideravelmente mais sofisticados do que a maioria dos escritores aprendizes suas diferenccedilas de tom embora significativas satildeo menos riacutegidas do que as que vemos em nossas aulas O tom de Fish pode ser atribuiacutedo agrave sua crenccedila de que a verdade deve ser redescoberta e renegociada agrave medida que os textos mudam e a de que a verdade natildeo consiste em uma correspondecircncia entre seu vocabulaacuterio e o estado de coisas do mundo mas da justificativa mais persuasiva entre as versotildees concorrentes de verdade O tom de Leo por sua vez deriva de sua crenccedila de que existe uma verdade universal que natildeo eacute alterada pelas circunstacircncias Aqueles que

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pensam em linha reta como Leo possuem a verdade e o bem absolutos Os que pensam como os bispos obscurecem nossa visatildeo de verdade e de bem e permitem que o erro e o mal penetrem no mundo

Correndo o risco de exagerar nessas diferenccedilas descreveriacuteamos o tom de Fish como o mais proacuteximo do de um mentor ou guia algueacutem preocupado simultanea-mente em esclarecer duacutevidas e complicar a compreensatildeo de seus leitores sobre as coisas Trata-se de uma relaccedilatildeo assimeacutetrica para ser mais preciso Fish eacute o pro-fessor e noacutes somos seus alunos mas agrave medida que ele parece acreditar que somos capazes de seguir uma linha complexa de raciociacutenio ele natildeo eacute condescendente O tom de Leo ao contraacuterio parece mais com o de um avaliador ou julgador raacutepido e criacutetico Sua preocupaccedilatildeo eacute esclarecer questotildees simplificando-as a fim de facilitar um julgamento moral soacutelido

O tom de Leo se estabelece no iniacutecio de sua primeira frase ao usar a expressatildeo ldquovergonhosardquo antes mesmo de nos informar sobre a declaraccedilatildeo dos bispos Depois apoacutes retomar dois trechos da declaraccedilatildeo ele diz aos seus leitores o que os bispos dizem ldquode forma clarardquo antes de concluir que eacute ldquoum engano moralrdquo A clareza moral e linguiacutestica satildeo uma peccedila importante para Leo Ele se preocupa pouco portanto com aqueles que se interessam pelas ldquocausas-raizrdquo e pela compreensatildeo dos atos ldquono contextordquo Para fixar a histoacuteria ele oferece uma traduccedilatildeo ldquode forma clarardquo dessa conversa moral e linguisticamente absurda Os bispos realmente querem dizer que ldquoa impiedosa e imperialista Ameacuterica trouxe os ataques contra si mesmardquo Ao longo de sua criacutetica Leo oferece pouca evidecircncia para suas generalizaccedilotildees e poucos detalhes para ajudar seu puacuteblico a identificar os multiculturalistas os relativistas morais e os cidadatildeos de cultura terapecircutica

A citaccedilatildeo de ldquoum estudante de Nova Yorkrdquo eacute a uacutenica que apoia uma ampla generalizaccedilatildeo sobre as praacuteticas educacionais lastimaacuteveis da educaccedilatildeo superior americana enquanto a declaraccedilatildeo dos bispos eacute apresentada como ldquoum pequeno exemplo do que poderia ser um grande problemardquo a incapacidade dos liacutederes mo-rais ldquopara dizer claramente que o mal existerdquo

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Se a opiniatildeo de Leo sobre a declaraccedilatildeo dos bispos eacute na verdade acurada e justa o tom de seu artigo pode ser atribuiacutedo mais agrave indignaccedilatildeo moral legiacutetima do que aos costumes concernentes ao seu sistema de crenccedilas No entanto mesmo um simpatizante do ponto de vista de Leo teria problemas para alinhar o resumo da declaraccedilatildeo dos bispos com o texto integral dessa declaraccedilatildeo Comeccedila-se de fato anunciando que ldquo[] uma nova solidariedade com aqueles de outras partes do mundo para quem as forccedilas malignas do terrorismo satildeo um medo e uma realidade contiacutenuosrdquo (bispos) Para ter certeza de que Leo e os bispos natildeo parecem definir o mal da mesma maneira os bispos natildeo parecem satisfeitos em deixar o epiacuteteto ldquomalrdquo servir de explicaccedilatildeo completa para a motivaccedilatildeo do ato dos terroristas No entanto eles dizem que ldquoclaramente o mal existerdquo e que atos terroristas como o de 11 de setembro satildeo qualificados como atos malignos

Nossa preocupaccedilatildeo aqui natildeo eacute desconsiderar a criacutetica que Leo faz aos bispos Nossa preocupaccedilatildeo eacute enfatizar ateacute que ponto o tom do artigo de Leo natildeo deriva de uma consciecircncia ldquoobjetivardquo de um mundo independente de suas percepccedilotildees mas do sistema de crenccedilas atraveacutes do qual ele percebe esse mundo Enquanto Leo sem duacutevida consideraria essa controveacutersia excessiva uma bobagem relativa Fish natildeo As diferenccedilas de tom entre os dois escritores diriacuteamos natildeo eacute uma consequecircncia do fato de um ser menos objetivo do que o outro mas de um ser mais conscien-te do que o outro de que a objetividade total eacute atrativa e enganosa Em lugar da verdade absoluta e da objetividade Fish abraccedila alguma coisa da ordem da inter-subjetividade Em sua opiniatildeo estamos unidos por ldquovalores particulares vividosrdquo e compartilhamos ldquoo registro de aspiraccedilatildeo e realizaccedilatildeo que compotildee nosso enten-dimento coletivo do que vivemosrdquo A visatildeo pragmaacutetica de Fish da verdade como faliacutevel e particular reflete-se em seu tom que rivaliza com o dinamismo de Leo mas eacute menos julgador e mais cauteloso quanto agrave nomeaccedilatildeo das coisas No cerne de seu artigo de fato reside sua rejeiccedilatildeo da rotulagem redutora sua preocupaccedilatildeo em complicar as versotildees do poacutes-modernismo do relativismo e do terrorismo En-quanto Fish diz que ele encontra a pergunta do repoacuterter sobre ldquoo fim do relativismo

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poacutes-modernordquo que comeccedila seu artigo ldquobizarrordquo ele passa a oferecer uma resposta cuidadosa atribuindo a interpretaccedilatildeo errocircnea que o repoacuterter faz do termo natildeo a algum lapso moral mas como ldquouma forma rarefeita de conversa acadecircmicardquo com a qual o repoacuterter natildeo eacute normalmente acostumado

Ao expressar nossa preferecircncia pelo estilo de Fish estamos evidentemente reafirmando nossa simpatia pela sua visatildeo de mundo Essa preferecircncia no entanto natildeo eacute simplesmente ldquosubjetivardquo no mesmo sentido que algueacutem como Leo usaria esse termo Nossa simpatia com o ponto de vista de Fish e seu modo de expressatildeo eacute profissional e pessoal As ideias que ele expressa e a forma como expressa estatildeo mais em harmonia com nossos propoacutesitos disciplinares do que as de Leo Os pen-samentos e o tom de Fish satildeo em nossa opiniatildeo mais propensos a oferecer uma melhor abordagem sobre o assunto em questatildeo do que os pensamentos e o tom de Leo A hipoacutetese de um argumento valer mais que o outro no mercado de ideias eacute outra questatildeo Esses julgamentos satildeo mais difiacuteceis de fazer e mais especiacuteficos para o puacuteblico do que o julgamento dos efeitos dos argumentos sobre a compre-ensatildeo da questatildeo Para entender melhor essa relaccedilatildeo complexa muitas vezes mal compreendida entre os argumentos preferidos em um dia pelo puacuteblico e os que levam o puacuteblico a reexaminar os problemas passamos agora a considerar um continuum de praacuteticas de argumento e a medida usada para organizaacute-los ao longo desse continuum

argumento e ldquoa purifiCaccedilatildeo da guerrardquo

O subtiacutetulo para esta seccedilatildeo foi tirado da epiacutegrafe latina da A Grammar of Motives (Uma Gramaacutetica dos Motivos) de Burke (1966) ndash Ad bellum purificandum Trata-se ao mesmo tempo de um sentimento muito modesto ndash afinal muito cedo viu-se a guerra acabar completamente ndash e um muito ambicioso ndash agrave medida que a guerra cresceu exponencialmente de forma mais selvagem no novo seacuteculo desejamos o que pudesse atenuar seus terriacuteveis efeitos Eacute tambeacutem uma epiacutegrafe que poderia servir

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para introduzir a obra inteira de Burke pois capta claramente o objetivo primaacuterio da retoacuterica como ele imagina a transformaccedilatildeo de impulsos destrutivos em atos criativos e cooperativos da inimizade em identificaccedilatildeo da guerra em argumento

Como observamos anteriormente Burke eacute bastante realista para sustentar que essa transformaccedilatildeo nunca poderaacute ser completa em todos os argumentos permaneceraacute um elemento residual de agressatildeo e busca de vantagens por mais nobre que seja a causa em nome da qual o argumento eacute feito No entanto Burke eacute tambeacutem muito idealista para acreditar que outros interesses de quem argumenta satildeo sempre servidos pelo argumento O uacutenico caso em que as necessidades e cren-ccedilas de um puacuteblico podem ser ignoradas eacute o do argumentador que se convence de que sua cooperaccedilatildeo seraacute garantida pela forccedila se o seu argumento falhar e passa a argumentar praticamente pelas mesmas razotildees pelas quais os ditadores realizam eleiccedilotildees Joseph Heller capta perfeitamente o espiacuterito do ldquopoder da forccedilardquo disfar-ccedilado de argumento uma praacutetica hegemocircnica muito familiar para o puacuteblico do seacuteculo XXI em um diaacutelogo do romance Catch-22 O diaacutelogo apresenta a conversa entre o protagonista do romance Yossarian com seu inimigo Milo Minderbinder sobre o fato de Milo ter oferecido a um ladratildeo italiano algumas tacircmaras em troca de um lenccedilol e depois ter se recusado a entregar as tacircmaras quando o ladratildeo lhe deu o lenccedilol

ldquoPor que vocecirc natildeo bateu na cabeccedila dele e tomou o lenccedilolrdquo Yossarian per-guntouPressionando os laacutebios com dignidade Milo balanccedilou a cabeccedila ldquoIsso te-ria sido muito injustordquo Repreendeu com firmeza ldquoUsar a forccedila eacute errado e dois erros nunca formam um acerto Foi muito melhor a maneira como eu agi Quando eu segurei as tacircmaras para ele e peguei o lenccedilol ele pro-vavelmente pensou que eu queria negociarrdquoldquoO que vocecirc estava fazendordquoldquoNa verdade eu estava negociando mas como ele natildeo entende inglecircs eu posso negar semprerdquo

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ldquoSupomos que ele estaacute bravo e quer as tacircmarasrdquo ldquoPor que vamos bater na cabeccedila dele e tomar as tacircmarasrdquo Milo respon-deu sem hesitar (HELLER 1961 p 68)

Esse eacute entatildeo o argumento que aparece na extremidade esquerda do continuum onde a forccedila aparece de forma ameaccediladora por traacutes de cada artimanha persuasiva Quais os tipos de praacuteticas argumentativas se encontram no final desse continuum A propaganda e a publicidade vecircm imediatamente agrave mente Os argumentos dos pais que terminam com aquela frase honrosa que anuncia simultaneamente a vitoacuteria e admite a derrota (Porque eu disse) certamente caem em qualquer lugar do lado esquerdo das coisas Entatildeo agrave medida que se avanccedila para a direita em direccedilatildeo a formas mais ldquopurificadasrdquo de combate encontra-se a praacutetica do direito da nego-ciaccedilatildeo do trabalho e da educaccedilatildeo Por fim na posiccedilatildeo mais distante da forccedila haacute as mais puras praacuteticas persuasivas que parecem natildeo ser persuasivas O exemplo que Burke usa eacute a escrita de um livro Vamos examinar mais de perto as caracteriacutesticas dessas diferentes praacuteticas mas antes disso precisamos articular o princiacutepio usado para distinguir entre essas vaacuterias formas de persuasatildeo um princiacutepio a que Burke se refere de vaacuterias maneiras ldquointerferecircnciardquo ou ldquoautointerferecircnciardquo

Para entender esse princiacutepio eacute uacutetil ter em mente uma das metaacuteforas favoritas de Burke para a persuasatildeo responsaacutevel a praacutetica do namoro que eacute em si uma versatildeo ldquopurificadardquo de praacuteticas consideravelmente menos aparentes Se o namoro reina no extremo direito do continuum espera-se encontrar o equivalente persuasivo a algo como asseacutedio sexual na extremidade esquerda O asseacutedio sexual eacute uma relaccedilatildeo predatoacuteria baseada na assimetria atraveacutes da qual uma das partes usa seu poder sobre o outro para coagir o afeto No entremeio as artes da seduccedilatildeo entram em jogo como o sedutor finge ser o que sua presa deseja que ele seja e diz a ela o que quer ouvir a fim de alcanccedilar sua proacutepria gratificaccedilatildeo No lado direito do continuum entretanto haacute um casal de namorados com uma relaccedilatildeo respeitosa baseada na mutualidade que inevitavelmente inclui o sexo e muitos outros desejos Com cer-

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teza cada pessoa em um namoro faraacute o que puder para se tornar desejaacutevel para a outra para persuadi-la como base na sua melhor caracteriacutestica como parceiro Certamente a atraccedilatildeo sexual desempenharaacute um papel na relaccedilatildeo mas cada um estaacute disposto no momento a adiar sua satisfaccedilatildeo em nome do aumento do seu senso de identificaccedilatildeo com a outra pessoa superando os distanciamentos de classe gecircnero nacionalidade religiatildeo ou qualquer categoria que possamos usar para classificar a raccedila humana Enquanto que nos casos anteriores as relaccedilotildees satildeo apenas um meio para a satisfaccedilatildeo sexual de um dos parceiros ndash na formulaccedilatildeo de Martin Buber uma claacutessica relaccedilatildeo ldquoEu-Issordquo (BURBER 2001) ndash no namoro a relaccedilatildeo eacute um fim em si (ldquoEu-Turdquo) para ambos os parceiros Se algueacutem estender a metaacutefora do namoro para aleacutem da extremidade esquerda do continuum encontrar-se-ia no escuro reino do estupro e da agressatildeo sexual No extremo direito do continuum encontrar-se-ia no reino luminoso do celibato quando uma freira se declara noiva de Cristo Todas as praacuteticas que encaixam ao longo do continuum entretanto satildeo uma combinaccedilatildeo de interesse proacuteprio e desejo fiacutesico e uma vontade de interferir nos impulsos naturais de uma pessoa para outros fins

Voltando agora agraves praacuteticas reais de persuasatildeo que se inscrevem no continuum da autointerferecircncia comeccedilamos pela propaganda e pela publicidade Essas praacuteticas satildeo diz Burke muito ldquoendereccediladasrdquo jaacute que satildeo obsessivamente focadas no puacuteblico Trata-se de uma relaccedilatildeo assimeacutetrica com o anunciante ou publicitaacuterio que tem pelo menos algum controle no caso de alguns publicitaacuterios um monopoacutelio virtual sobre o acesso do puacuteblico agrave informaccedilatildeo e agrave compreensatildeo Embora os anunciantes e os pu-blicitaacuterios sejam raacutepidos no elogio ao seu puacuteblico especialmente agrave sua inteligecircncia seus conselhos sobre como conquistar o puacuteblico demonstram pouca importacircncia agrave inteligecircncia das pessoas Eles gastam muito tempo e quantidades extraordinaacuterias de dinheiro para explorar a psique e os pontos fracos emocionais de seu puacuteblico Nenhum outro grupo entre aqueles que praticam a arte da persuasatildeo se preocupa em gastar tanto tempo para descobrir maneiras de explorar a vulnerabilidade do puacutebico como os anunciantes e os publicitaacuterios O livro Mein Kampf (Minha Luta) de

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Hitler por exemplo eacute um claacutessico da teoria da propaganda e uma anaacutelise completa da psicologia do puacuteblico Observando a habilidade de Hitler na manipulaccedilatildeo de seu puacuteblico Burke chama a atenccedilatildeo para a maneira muito calculada como ldquoele mede resistecircncias e oportunidades com a lsquoracionalidadersquo de um profissional qualificado que planeja uma nova campanha de vendas A poliacutetica diz ele deve ser vendida como sabatildeo ndash e o sabatildeo natildeo eacute vendido em transerdquo (BURKE 1941 p 216) Os publi-citaacuterios contemporacircneos durante esse tempo satildeo implacaacuteveis quando buscam as conexotildees entre informaccedilatildeo demograacutefica e psicograacutefica (haacute sessenta e quatro grupos distintos de consumidores dispostos em uma grade psicograacutefica usada por anunciantes) e haacutebitos de compra do consumidor

Enquanto os estilos antigos de teorias comportamentais estatildeo fora de moda entre a maioria dos psicoacutelogos acadecircmicos nos dias de hoje os anunciantes e pu-blicitaacuterios ainda trabalham com a manipulaccedilatildeo de estiacutemulos para obter a resposta desejada Como engenheiros que ainda se baseiam no antigo paradigma newtoniano para construir pontes e arranha-ceacuteus os publicitaacuterios e os behavioristas parecem achar que o paradigma mecanicista ultrapassado funciona muito bem quando se trata de vender sabatildeo e poliacutetica

Embora toda a propaganda seja por definiccedilatildeo predatoacuteria como sugerimos anteriormente vamos considerar mais adiante os usos recentes da propaganda que abrange uma gama mais ampla de praacuteticas algumas das quais satildeo bastante benignas A publicidade por exemplo eacute usada para promover as contribuiccedilotildees tanto de obras de caridade como as utilidades de uma marca de sabatildeo De fato dentro de cada categoria de praacuteticas persuasivas encontrar-se uma seacuterie de praacuteticas que em vaacuterios graus satildeo uacuteteis por um lado ou ldquonegativasrdquo por outro

Alguns anuacutencios podem fazer pouco mais do que apresentar referecircncias po-sitivas sobre seu produto para pessoas desinteressadas Agraves vezes a propaganda pode servir a um objetivo de poliacutetica puacuteblica altruiacutesta e em vez de contar ldquoa Grande Mentirardquo como Goebbels (o Ministro da Propaganda na Alemanha Nazista entre 1933 e 1945) recomenda pode simplesmente reter informaccedilotildees que complicariam

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seu argumento No entanto tomadas como um todo essas praacuteticas natildeo promovem a auto interferecircncia de forma grave apenas na medida em que algueacutem altera o seu proacuteprio roteiro em reconhecimento de que um roteiro diferente favorece mais a aceitaccedilatildeo do seu puacuteblico e interfere nas proacuteprias vontades Mas isso eacute mais uma questatildeo de subordinar uma forma de satisfaccedilatildeo agrave outra No final seu puacuteblico eacute sempre um meio para atingir seus fins

Agrave medida que se avanccedila para o centro do continuum as praacuteticas juriacutedicas persuasivas servem como modelo Embora muitos colocariam a arte dos juristas mais agrave esquerda em nosso continuum o argumento legal eacute consideravelmente mais limitado em sua capacidade de seduzir ou enganar seu puacuteblico do que a propaganda e o anuacutencio Haacute aliaacutes consideravelmente mais paridade entre argumento e puacuteblico na arena legal do que na arena da poliacutetica e do consumo A retenccedilatildeo de informaccedilotildees por exemplo que pode ser bem vista como elemento de uma campanha virtuosa para mudar o rumo das coisas no domiacutenio da poliacutetica e da publicidade pode ser uma infraccedilatildeo puniacutevel no acircmbito da lei Devido ao caraacuteter contraditoacuterio do sistema juriacutedico os lapsos de seus argumentos satildeo vulneraacuteveis agrave divulgaccedilatildeo e agrave exploraccedilatildeo (nosso sistema poliacutetico eacute nominalmente contraditoacuterio mas haacute poucas regras para controlar o discurso poliacutetico e a toleracircncia puacuteblica para o raciociacutenio falacioso e ateacute mesmo para a hipocrisia quase serve para encorajar a interferecircncia entre poliacuteticos) A lei oferece todo tipo de restriccedilotildees formais para os advogados que manipulam seu puacuteblico Os advogados mais atentos podem usar informaccedilotildees demograacuteficas e psicograacuteficas para defender seu ponto de vista quando conhecem os criteacuterios de escolha dos jurados Apesar de todas as suas falhas o raciociacutenio juriacutedico impotildee vaacuterias formas de ingerecircncia aos participantes ao logo de todo o sistema de julga-mento ateacute o topo em que os juiacutezes da Suprema Corte esperam escrever opiniotildees para a posteridade

Burke usa a curiosa metaacutefora da escrita de um livro para explicar a forma ldquomais purardquo de persuasatildeo o equivalente a um grande namoro Aqui o princiacutepio da auto-interferecircncia natildeo eacute imposto por preocupaccedilotildees com o puacuteblico nem por

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regras convenccedilotildees e receios de puniccedilatildeo ou exposiccedilatildeo A restriccedilatildeo exigida da pura persuasatildeo eacute inteiramente auto imposta A auto interferecircncia de um autor responde agraves exigecircncias do livro que estaacute criando ldquo[] as exigecircncias satildeo condicionadas pelas partes jaacute escritas de modo que o livro se torna de certa forma algo natildeo previsto pelo autor e exige que ele interfira nas suas intenccedilotildees originaisrdquo (BURKE 1969 p 269) Essa interferecircncia natildeo eacute mais esteacutetica do que eacutetica e a pureza da persuasatildeo pura eacute mais a pureza formal da ldquoarte por causa da arterdquo do que a pureza moral da santidade

Dito isso Burke (1969 p 271) atribui agrave pura persuasatildeo ldquoum alto valor eacuteticordquo na medida em que impotildee uma ordem diferente de obrigaccedilotildees agravequeles que a ex-perimentam algo como ldquoverdade pelo amor agrave verdaderdquo As formas mais puras de argumentaccedilatildeo satildeo de natureza dialeacutetica uma abordagem de ideias com um mo-vimento e uma integridade proacuteprios que natildeo leva em conta as necessidades e os desejos de um puacuteblico Assim como a arte pela arte que produz arte frequentemen-te arte de forma a tocar o puacuteblico sem criar expectativas de reaccedilatildeo o argumento da extrema direita do continuum pode ter pouco sucesso escasso no mercado No entanto como as melhores obras que surgem do movimento da arte pela arte os argumentos puramente persuasivos podem eventualmente ter uma aceitaccedilatildeo tar-dia pelo puacuteblico em parte porque eles mudam a forma como as pessoas pensam sobre um dado assunto

No fim claro a persuasatildeo pura desse tipo natildeo eacute uma meta para os estudantes de mas eacute uma tendecircncia dentro do argumento um contrapeso agraves tendecircncias opos-tas para um foco exclusivo ndash e muitas vezes predatoacuterio ndash no puacuteblico Ao apresentar os alunos o conceito de persuasatildeo pura eacute bom lembrar um sentido alternativo para o termo argumento ndash o ldquocernerdquo ou a ldquoessecircnciardquo de uma parte de um grande discurso Procurar o cerne de qualquer que seja o discurso eacute um haacutebito comum a todos os leitores criacuteticos Quanto mais complexo eacute o discurso que estamos lendo mais provaacutevel seraacute a identificaccedilatildeo de argumentos opostos menos encontraremos uma tese inequiacutevoca ou uma afirmaccedilatildeo principal na uacuteltima frase do primeiro pa-

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raacutegrafo ndash onde muitos de nossos alunos foram ensinados a procurar ndash A essecircncia eacute uma siacutentese de ideias diacutespares e um produto comum aos poderes interpretativos do leitorouvinte e agraves propriedades do discurso que eacute interpretado Natildeo eacute o que resta quando uma ideia supera a outra um trofeacuteu ou os louros para o vencedor eacute um ato criativo uma versatildeo retoacuterica da essecircncia no sentido ontoloacutegico No final das contas ensinamos argumento para isto para estimular o pensamento dos nossos alunos sobre o mundo para ajudaacute-los a aprender a compreender o julga-mento (para cultivar a arte do debate) de suas proacuteprias ideias bem como das dos outros para testaacute-lo de forma suficiente no rebate de ideias opostas e respeitar o resultado dessa combinaccedilatildeo

por Que os alunos preCisam argumentar

Ateacute aqui apresentamos uma definiccedilatildeo de argumento congruente com nossos propoacutesitos disciplinares e crenccedilas pessoais Nesta proacutexima seccedilatildeo mudamos nosso foco para as habilidades que podem ser esperadas dos alunos que fazem um curso baseado no argumento Qual o papel do estudo do argumento no curriacuteculo e na vida dos alunos Agrave medida que projetamos nossos cursos e nossos objetivos precisamos ter em mente esse papel e moldar nossa pedagogia em torno dele A seguir vamos nos concentrar em trecircs funccedilotildees particularmente importantes do argumento um meio de ensinar mais facilmente o conjunto de competecircncias que se pode aprender em um curso de escrita um meio de construccedilatildeo e defesa da identidade e um meio para o desenvolvimento do raciociacutenio eacutetico

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argumento e letramento CrIacutetiCo

Embora natildeo haja um uacutenico nome para o grupo altamente heterogecircneo de habi-lidades que os alunos podem aprender em um curso de escrita focado no argumento vamos nos referir a esse conjunto aqui como ldquoletramento criacuteticordquo um conceito que apresenta diferentes contornos e como veremos em breve eacute um pouco contro-verso Tentaremos precisar uma definiccedilatildeo proacutexima da forma como vamos usar e que minimize alguns de seus aspectos mais controversos Ao definir o letramento criacutetico conveacutem dizer que sabemos mais sobre o que natildeo eacute do que sobre o que eacute Certamente natildeo eacute o que era feito com a escrita na escola tradicional a ecircnfase em formas preacute-fabricadas e em leitores passivos O curriacuteculo tradicional natildeo soacute natildeo encorajava os alunos a pensar ldquofora da caixardquo como tambeacutem os encorajava a pensar em tudo como robocircs ateacute mesmo no que diz respeito agrave escrita que eacute um fenocircmeno inerentemente complexo e singular Seu objetivo aparente era o letramento no sentido mais antigo de competecircncia miacutenima embora fosse sendo ampliada ateacute a faculdade Natildeo encorajava o engajamento ou a reflexatildeo pessoal Certamente natildeo oferecia aos alunos muitas habilidades de compreensatildeo que pudessem ser usa-das fora da escola Poucos cursos de Filosofia na universidade exigem a escrita de narraccedilatildeo assim como cursos de Sociologia enfatizavam a funccedilatildeo da descriccedilatildeo (alguns outros cursos aboliram as aulas de escrita do primeiro ano exatamente porque acreditam que o modelo tradicional de escrita ou alguma variante dele eacute o modelo usado na vida profissional Se algueacutem acredita na existecircncia desse modelo estaacute certo)

Talvez a principal caracteriacutestica distinta do letramento criacutetico tal como o compreendemos e a que mais claramente o diferencia de sua versatildeo mais antiga e minimalista eacute sua ecircnfase no conhecimento reflexivo a capacidade que o poeta criacutetico e ensaiacutesta inglecircs Samuel Taylor Coleridge chama de ldquoconhecer seu conheci-mentordquo em relaccedilatildeo ao simplesmente possuir o conhecimento Isso significa dizer que em vez de focalizar as exigecircncias para a escrita de um bom artigo eacute preferiacutevel

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considerar as dificuldades enfrentados pelos alunos para construir um bom ar-gumento Eles devem ser capazes de imaginar os contra-argumentos antecipar a resposta do puacuteblico em particular o ceticismo e o desconhecimento e mover-se habilmente entre as pretensotildees de verdade as razotildees que justificam as alegaccedilotildees e as evidecircncias que apoiam as razotildees

Os alunos devem avaliar a adequaccedilatildeo da defesa agrave sua reivindicaccedilatildeo e analisar seu grau de conformidade Eles devem aprender a avaliar os elementos das provas resumir e questionar a autoridade a partir de pontos de vista diferentes Talvez o mais importante eacute preparar os alunos para arriscar suas crenccedilas e suposiccedilotildees sobre o mundo Natildeo eacute possiacutevel na arena do argumento simplesmente ldquoconectar [em uma foacutermula] e arriscar [uma resposta]rdquo Os alunos precisam entender as questotildees no contexto de uma conversa aceitando desde cedo que como Stanley Fish sugere nem todas as partes dessa conversa compartilharatildeo as mesmas crenccedilas e hipoacuteteses

No intuito de esclarecer ainda mais o conceito de letramento criacutetico pode ser uacutetil comparaacute-lo com outra abordagem de ensino de escrita que sucede ao modelo tradicional O movimento de reflexatildeo criacutetica na escrita foi proposto por Hayes e Flower (1980) Os autores mostram como os meacutetodos de resoluccedilatildeo de problemas podem ser aplicados na sala de aula para o ensino de escrita Eles estatildeo entre os primeiros no campo dos estudos sobre a escrita que tratam de forma plenamen-te desenvolvida a escrita como um ldquomodo de pensarrdquo e veem que a aquisiccedilatildeo da escrita implica um raciociacutenio de ordem superior Poreacutem enquanto o movimento de reflexatildeo criacutetica foi uacutetil para ajudar a disciplina a superar as abordagens tradi-cionais natildeo possibilitou uma reflexatildeo sobre a capacidade de compreensatildeo como o letramento criacutetico se propotildee a fazer Aleacutem disso as habilidades de resoluccedilatildeo de problemas focalizadas eram ensinadas sem um juiacutezo de valor como um conjunto de habilidades natildeo muito diferentes das que satildeo necessaacuterias para resolver um quebra-cabeccedila Isso limitou sua aplicabilidade ao ensino do argumento um gecirc-nero que muitas vezes nos leva longe em problemas que satildeo carregados de valor e emoccedilatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

Uma das maneiras mais faacuteceis de distinguir a abordagem da reflexatildeo criacutetica de ensino de escrita da abordagem do letramento criacutetico eacute focar na noccedilatildeo de re-soluccedilatildeo de problemas Dito de maneira simples os proponentes da reflexatildeo criacutetica se concentram na maneira de resolver problemas enquanto os proponentes do letramento criacutetico se concentram na maneira de descobrir problemas Uma das figuras mais importantes ligadas ao letramento criacutetico nos anos 80 o filoacutesofo brasileiro Paulo Freire cunhou o termo ldquoproblematizaccedilatildeordquo para descrever o que ele pretendia fazer com seu programa educacional na Ameacuterica do Sul

O trabalho de Freire com as populaccedilotildees do campo provou ser tatildeo polecircmico que o governo resolveu interditaacute-lo No processo de alfabetizaccedilatildeo baacutesica Freire ensinava a poliacutetica revolucionaacuteria fazendo que o pensamento ldquomiacuteticordquo da preacute--alfabetizaccedilatildeo desse lugar ao letramento criacutetico O poder de nomear situaccedilotildees que os camponeses de Freire cedo descobriram conteacutem as sementes para desafiar e redefinir essas situaccedilotildees Em um niacutevel as experiecircncias pedagoacutegicas de Freire confirmaram uma das ideias mais importantes de Kenneth Burke os proveacuterbios que constituem uma espeacutecie de enunciado com poucas palavras para nomear situaccedilotildees recorrentes constituem ldquoestrateacutegias para lidar com essas situaccedilotildeesrdquo (BURKE 1941 p 296) Para Burke e Freire as palavras nunca satildeo neutras Antes de dizer qualquer coisa devemos primeiro dimensionaacute-la ldquodiscernir o geral que estaacute atraacutes do particularrdquo (BURKE 1941 p 301) e a palavra que escolhermos por sua vez implica uma atitude em relaccedilatildeo a ela Na medida em que uma atitude eacute um ato incipiente a linguagem e a poliacutetica estatildeo indissoluvelmente ligadas

Os educadores tecircm relutado em abraccedilar a dimensatildeo poliacutetica do letramento criacutetico por razotildees oacutebvias Conforme testemunhou a antipatia de John Leo pelas simpaacuteticas poliacuteticas ldquoterapecircuticasrdquo ldquomulticulturalistasrdquo da faculdade jaacute existe um grande receio sobre a possibilidade de as escolas serem doutrinadoras em vez de educar os alunos O fato de o letramento criacutetico pertencer a uma antiga tradiccedilatildeo de educaccedilatildeo que defende que ldquoa vida sem consciecircncia natildeo vale a pena ser vividardquo e que encoraja as virtudes natildeo partidaacuterias como autorreflexatildeo e autoquestionamento

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natildeo desencorajou criacuteticos conservadores de denunciaacute-la como uma ferramenta de propaganda Enquanto alguns dos mais fervorosos defensores do letramento criacutetico como os mais verdadeiros crentes de alguma causa parecem agraves vezes acreditar que a uacutenica verdadeira feacute eacute a sua e os natildeo crentes estatildeo em alianccedila com os ldquoJohn Leordquo do mundo muitos dos nossos mais reflexivos praticantes e professores inovadores professam lealdade ao letramento criacutetico em bases essencialmente pedagoacutegicas

Aleacutem disso aqueles que satildeo tentados a acreditar que ao ensinar os alunos a desafiarem o status quo ao questionar a tradiccedilatildeo e a autoridade e ao refletir dia-leticamente sobre o mundo asseguram a formaccedilatildeo de uma geraccedilatildeo de estudantes comprometida com poliacuteticas progressistas se sentiratildeo orgulhosos O letramento criacutetico eacute um instrumento muito complexo para servir simplesmente como uma ferramenta eficiente de doutrinaccedilatildeo A ecircnfase na forma de pensar nos processos de primeiro plano e de compreensatildeo taacutecita combinada com sua atitude ceacutetica em relaccedilatildeo ao conteuacutedo e agrave sua abordagem deixa inteiramente aberta a questatildeo sobre o que os estudantes podem fazer com sua formaccedilatildeo As muitas qualidades desenvolvidas atraveacutes do letramento criacutetico que podem ser prontamente aplicadas a outros cursos e o torna bastante adaptaacutevel aos cursos de Histoacuteria Economia e Sociologia satildeo as mesmas que o tornam um mal instrumento de doutrinaccedilatildeo Como lembra Michael Berude citando o que ele chama de ldquoreversibilidaderdquo natildeo haacute como garantir que a formaccedilatildeo de estudantes em letramento avanccedilado possa ser ldquo[] um veiacuteculo unidirecional para a mudanccedila poliacuteticardquo (BERUDE 1998 p 145) Nossos pensadores mais criacuteticos podem se ser tanto grandes conhecedores de Hedge Fund (Fundo de multimercado) como certamente revolucionaacuterios poliacuteticos

Para aleacutem do medo de parecermos partidaacuterios em nossa abordagem de ensino de escrita haacute um estiacutemulo mais profundo para o ensino reflexivo que natildeo o super-ficial papel poliacutetico O filoacutesofo Hans Blumenberg por exemplo observa a crescente pressatildeo sobre os educadores para deixar de lado o objetivo de vida consciente e ldquoabandonar a ideia que eacute governada pela norma de que o homem deve saber o que estaacute fazendordquo (BLUMENBERG 1987 p 446) em nome da busca de meios cada vez

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mais parcimoniosos de resolver os problemas Em resposta Blumenberg (1987 p 446) pede uma volta agrave Retoacuterica alegando que ela representa ldquo[] um modo de re-alizaccedilatildeo consumada do atraso [do tempo] A circunstancial idade a inventividade processual a ritualizaccedilatildeo implicam uma duacutevida na maneira de saber se o ponto mais curto para ligar dois pontos eacute tambeacutem o caminho humano de um para o outrordquo

O motivo que explica a volta de Blumenberg para a retoacuterica ressoa aqui um tema abordado por Burke que frequentemente expressa uma atitude ceacuteptica em relaccedilatildeo agrave Lei da Parcimocircnia e ao nonsense de Occam (por exemplo o behaviorismo e o monetarismo) que resulta na seguinte conclusatildeo

[] se uma grande parte do serviccedilo foi obtido seguindo a lei de Occam segundo a qual ldquoas entidades natildeo deveriam ser multiplicadas para aleacutem da necessidaderdquo uma falta de serviccedilo surgiu na ignoracircncia de uma lei que ser enunciada da seguinte maneira as entidades natildeo devem ser re-duzidas para aleacutem da necessidade (BURKE 1966 p 324)

Para Burke (1966) a idade moderna eacute caracterizada muito mais por crimes contra a segunda lei do que contra a primeira Se o pensamento criacutetico implica uma capacidade de resolver problemas de forma eficiente atraveacutes da simplificaccedilatildeo o letramento criacutetico implica uma capacidade de gerar complexidade atraveacutes da reflexatildeo Aleacutem disso implica tambeacutem a capacidade de natildeo soacute escrever com clare-za quando se pode mas de maneira complexa quando eacute preciso de se referir aos limites de um puacuteblico quando conveacutem e desafiar e expandir esses limites quando a deferecircncia vence os objetivos Embora os objetivos que buscamos no letramento criacutetico sejam de fato altos e embora natildeo tenhamos chegado a um consenso sobre a melhor maneira de alcanccedilaacute-los eacute claro que ensinar os alunos a escrever argu-mentos eacute uma dessas maneiras Nesse processo as liccedilotildees que os alunos aprendem em um curso sobre argumento com base nos princiacutepios do letramento criacutetico satildeo mais faacuteceis de serem levadas para outras aacutereas do curriacuteculo

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Essa uacuteltima afirmaccedilatildeo eacute corroborada pela experiecircncia de muitos de noacutes que trabalham na aacuterea da escrita atraveacutes do curriacuteculo (WAC ndash writing across the curri-culum ndash escrita atraveacutes do curriacuteculo) O que muitos de noacutes descobrimos quando am-pliamos nossa atuaccedilatildeo para ajudar os professores de outras disciplinas a melhorar a escrita de seus alunos foi o fato de que realmente estaacutevamos ajudando seus alunos a escrever melhores argumentos Ou para dizer de forma mais precisa estaacutevamos ajudando os professores de outras disciplinas a ensinar seus alunos tanto a argu-mentar sobre um assunto de uma disciplina como a escrever sobre esse assunto Ensinar os formatos de textos em Psicologia ou Fiacutesica era relativamente simples Ao contraacuterio ao sensibilizar os alunos sobre os pressupostos desses formatos as hipoacuteteses sobre o peso relativo da evidecircncia relativa os diferentes formatos em concordacircncia agraves fontes primaacuterias e secundaacuterias aos dados experimentais agrave teoria agrave anomalia etc provaram ser uma tarefa consideravelmente mais desafiadora

Noacutes os agentes do movimento WAC estaacutevamos retomando o papel de nossos ancestrais sofistas noacutes eacuteramos os metecos os estrangeiros que passeiam por um lugar simultaneamente incapacitados e capacitados por nosso status de estrangeiro O que pareceu talvez para um membro de uma comunidade disciplinar como uma demonstraccedilatildeo de verdade para muitos de noacutes sob nosso olhar foi uma artimanha persuasiva Como o Senhor Jourdain de Moliegravere que se surpreende ao saber que falava sempre em forma de sermatildeo muitos de nossos colegas de outras disciplinas ficaram surpresos ao saber que eles estavam usando e ensinando retoacuterica o tempo todo Quando alcanccedilaram essa consciecircncia muitos desses colegas se tornaram grandes defensores do foco no argumento natildeo apenas em seus proacuteprios cursos mas tambeacutem nos cursos de escrita nos quais preparamos os alunos para suas dis-ciplinas Como demonstraremos no capiacutetulo dois as abordagens usadas nos cursos de argumento contemporacircneos satildeo perfeitamente adaptaacuteveis a outras disciplinas

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argumento e identidade

Um dos aspectos mais controversos do letramento criacutetico diz respeito agraves conexotildees que ele estabelece entre pensamento criacutetico e identidade Ao incentivar os alunos a se tornarem pensadores mais reflexivos os defensores do letramento criacutetico chamam a atenccedilatildeo para vaacuterias forccedilas no mundo que minam o senso de ca-pacidade de accedilatildeo das pessoas e os incitam a querer atingir seus propoacutesitos Eles chamam tambeacutem a atenccedilatildeo para o fato de que as formas como tomamos decisotildees como consumidores trabalhadores e cidadatildeos decisotildees sobre o que comer sobre como progredir no trabalho sobre em quem votar revelam quem somos e refor-ccedilamos para o bem ou para o mal nossa autocompreensatildeo Vendedores de sabatildeo gurus de gestatildeo e consultores poliacuteticos tecircm um interesse natildeo soacute de compreender quem somos mas em formar uma identidade compatiacuteveis com seus interesses Os alunos precisam portanto ser reflexivos sobre essas escolhas conscientes das implicaccedilotildees de algumas de suas escolhas e alertas para as artimanhas persuasivas comuns agravequeles que os encorajam a assumir essas identidades

Isso pode revelar-se uma tarefa desafiadora Os alunos satildeo muitas vezes fortemente resistentes a estabelecer relaccedilatildeo entre quem eles satildeo e as escolhas diaacuterias que eles fazem Eles natildeo gostam da sugestatildeo impliacutecita de que eles podem ser as viacutetimas de algum grupo sombrio de ldquoperseguidores ocultosrdquo nem da ideia de ter que prestar atenccedilatildeo tanto nas escolhas como nas decisotildees que ateacute entatildeo tecircm feito de forma simples Natildeo estamos fazendo uma montanha de um pequeno morro dizem eles para que essa intensa atenccedilatildeo criacutetica para um simples anuacutencio ou para escolher um livro de negoacutecios pop

Qualquer um que tenha ensinado em um curso de literatura reconheceraacute a resposta Eles satildeo ceacuteticos quanto ao fato de uma coisa tatildeo simples superficialmen-te poder ter toda essa profundidade de significado As vaacuterias preocupaccedilotildees que os alunos expressam sobre a aplicaccedilatildeo das liccedilotildees de letramento criacutetico para sua vida cotidiana precisam ser levadas em conta Por um lado eles tecircm o direito de

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insistir na sua proacutepria maneira de resolver as coisas e na sua proacutepria capacidade de se distanciar das influecircncias de grupos de interesses diferentes Muitos deles tecircm pensado criticamente sobre pelo menos algumas dessas escolhas e sempre encontramos alguns em cada classe que estatildeo de fato militantemente atentos contra os ataques externos agrave sua identidade Por outro lado muitos subestimam a haacutebil capacidade dos que criam identidades ldquoprontas para o usordquo de utilizar do hu-mor da ironia da autodeclaraccedilatildeo depreciaccedilatildeo e autorrevelaccedilatildeo e de muitos outros recursos para desarmaacute-los Ao abordar a relaccedilatildeo entre argumento e identidade portanto eacute importante respeitar a posiccedilatildeo e experiecircncia dos alunos nessa aacuterea e conduzi-los lentamente ateacute o final Noacutes gostamos de comeccedilar a discussatildeo da iden-tidade com um olhar sobre algumas das teacutecnicas mais comuns usadas por aqueles que vendem identidades ldquopronta para o usordquo agraves quais todos somos vulneraacuteveis

Consideremos por exemplo um dos recursos mais eficazes usados por publici-taacuterios consultores poliacuteticos e gurus de gestatildeo para desarmar o puacuteblico americano o apelo ao individualismo poderoso Seja como poliacutetico que ignora as pesquisas e segue seu instinto como gestor que desdenha a sabedoria convencional e ousa ser genial ou como o modelo masculino em traje de vaqueiro que acende um cigarro e ri da morte os americanos tecircm sido muito suscetiacuteveis aos encantos do indiviacuteduo poderoso em todos os seus muitos disfarces Na verdade a maneira mais faacutecil de vender a um grande puacuteblico americano comportamentos ou escolhas que tecircm consequecircncias duvidosas eacute apresenta-los como uma expressatildeo de individualis-mo poderoso Esse individualismo constitui o que Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969 p 84) chamam de loci ldquo[] premissas de natureza geral que podem servir de base para valores e hierarquiasrdquo A premissa representada por esse modelo de indiviacuteduo eacute talvez sintetizada pelo imperativo categoacuterico do coacutedigo do heroacutei ldquoUm homem tem que fazer o que um homem tem que fazerrdquo Ouve-se a masculinidade interior para intuir o melhor plano de accedilatildeo e segue-se esse plano orientaccedilatildeo face agrave convenccedilatildeo agrave popularidade agrave legalidade e ao risco pessoal

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Como todos os loci o modelo de indiviacuteduo poderoso se desenha em muitos caminhos em particular na histoacuteria americana e na cultura popular americana Um paiacutes nascido da revoluccedilatildeo e nutrido da ldquoconquistardquo de uma fronteira recuada um paiacutes cujo sistema econocircmico eacute baseado no risco econocircmico e na competiccedilatildeo um paiacutes cuja induacutestria de entretenimento forneceu um fluxo constante de cowboys bandidos misteriosos ricos e influentes empresaacuterios e gangsters em todos os meios eacute um paiacutes com o individualismo poderoso profundamente marcado no seu DNA Por isso o simples ato de associar uma marca um produto uma escolha uma pessoa um candidato ou uma proposta a esse modelo de individualismo aacutespero tem sido tatildeo eficaz ao longo dos anos na transmissatildeo dos interesses de seus patrocinadores Atraveacutes do ato de escolher o que quer que seja que o patrocinador deseja que esco-lhamos reforccedilamos o imaginaacuterio nacional asseguramos sua repeticcedilatildeo contiacutenua e o status do indiviacuteduo poderoso como um modelo de comportamento

No entanto eacute sabido que essa visatildeo de indiviacuteduo ndash a versatildeo John Wayne ndash tem um apelo limitado para os diferentes grupos de compradores da segmentaccedilatildeo psi-cograacutefica Assim elaboram-se variaccedilotildees no modelo central para atingir de forma mais especiacutefica o grupo para o qual um produto eacute lanccedilado Para alguns a versatildeo ldquomachordquo natildeo cai muito bem por isso exigem uma versatildeo mais gentil mais suave Consideremos por exemplo a campanha publicitaacuteria encantadora e divertida da Apple Computing que exibe personificaccedilotildees das linhas de computador MAC e PC Enquanto o PC eacute apresentado com um homem gordo vestido de terno escuro com uma visatildeo estreita do seu trabalho que reclama das muitas demandas dos seus usuaacuterios o MAC eacute personificado como um homem magro jovem vestido de forma despojada aberto a novas possibilidades intrigado com as queixas de PC sobre as demandas de seus usuaacuterios e perplexo com essa personalidade Trata-se de um conflito claacutessico ainda que suavizado entre o ldquohomem de negoacuteciosrdquo e o rebelde o burocrata e o inovador

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Esse anuacutencio eacute uma versatildeo muito mais marcante do claacutessico anuacutencio da Apple Super Bowl de 1984 da linha Mac de computadores em que uma mulher escapa de uma guerra para quebrar uma enorme tela de televisatildeo onde o Big Brother eacute enaltecido diante de um auditoacuterio cheio de figuras curvadas (embora seja tentador pensar que a escolha dos anunciantes por uma figura feminina para o papel de um indiviacuteduo forte como um sinal de avanccedilada consciecircncia social eacute mais provaacutevel que isso seja um reflexo da preocupaccedilatildeo para atingir um determinado grupo de consu-midor) A versatildeo do anuacutencio com a oposiccedilatildeo entre conservadores e rebeldes sugere que estaacute muito mais em jogo a escolha entre conformismo e individualidade e por implicaccedilatildeo entre a escolha da Apple e qualquer outra marca de computadores A escolha do computador eacute uma escolha poliacutetica natildeo somente praacutetica ou de estilo de vida Como a marca Apple em 1984 era pouco conhecida quando a IBM domi-nou o mercado a diferenccedila de tom eacute compreensiacutevel As implicaccedilotildees ideoloacutegicas do estereoacutetipo do individual poderoso na publicidade tendem a ser cada vez mais precisas quanto mais inesperadas satildeo as escolhas que os consumidores podem fazer (vejamos o exemplo do Homem Marlboro)

Natildeo haacute nada inerentemente ruim sobre a criatividade da Apple de mobilizar os personagens do imaginaacuterio americano para vender seu produto Como toda simplificaccedilatildeo miacutetica ela exagera nas diferenccedilas entre os dois produtos para natildeo mencionar as diferenccedilas entre as duas grandes empresas americanas mas toda propaganda eacute para ser entendida em um piscar de olhos e o exagero natildeo eacute um pe-cado O mal estaacute em dar a uma premissa questionaacutevel o status de hipoacutetese inques-tionaacutevel e a um papel que todos noacutes ocasionalmente podemos querer interpretar o status de ideal essencialista a que todos deveriam aspirar O mal tambeacutem reside no constante reforccedilo dos valores individualistas sobre os coletivos Se os valores representados por MAC parecem irrelevantes no contexto do anuacutencio podem natildeo parecer se ampliados para o domiacutenio das virtudes das pessoas Indiviacuteduos pode-rosos no final das contas natildeo se relacionam bem com os outros Seu questiona-

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A construccedilatildeo do argumento

mento da autoridade raramente se estende ao questionamento da autoridade de seus proacuteprios sistemas de valores

Qualquer quer seja a razatildeo pela qual usem o adesivo ldquoQuestione a autoridade (Question authority)rdquo eles na verdade acreditam na sua proacutepria autoridade e natildeo estatildeo preparados para questionar a sua finalidade de promover uma accedilatildeo coletiva que assegura um bem comum De toda maneira a capacidade ou incapacidade dos poliacuteticos de se venderem de maneira plausiacutevel como indiviacuteduos poderosos tem sido decisiva no seu sucesso no paiacutes durante grande parte das uacuteltimas trecircs deacutecadas

Na anaacutelise do anuacutencio noacutes mesmos estamos levantando uma hipoacutetese sobre a identidade com a qual nem todos certamente nem todos os nossos alunos po-dem estar satisfeitos Assumimos o sentido de identidade conforme Burke (1989) chama de ldquoparlamentarrdquo uma identidade variaacutevel natildeo unitaacuteria natildeo essencial e reparaacutevel Conforme essa visatildeo de identidade desempenhamos muitos papeacuteis e a autenticidade natildeo eacute tanto uma questatildeo de permanecer fiel a um eu central mas uma questatildeo de selecionar conscientemente os papeacuteis que desempenhamos e se envolver totalmente nesses papeacuteis As hipoacuteteses dos retoacutericos sobre a identidade humana satildeo tatildeo fundamentais para a praacutetica de sua arte quanto as dos economistas neoclaacutessicos ndash personificadas no modelo de identidade seletiva dos economistas neoclaacutessicos o do homo economicus ndash para a fundamentaccedilatildeo da sua proacutepria praacute-tica A verdade literal da hipoacutetese de uma ou outra disciplina eacute sempre aberta agrave conjectura ainda que as hipoacuteteses da retoacuterica contemporacircnea sobre a identidade pareccedilam se ajustar melhor as atualmente dominantes nos campos da Psicologia e da Filosofia A hipoacutetese dos economistas de que os agentes humanos tomam deci-sotildees apenas com base no interesse pessoal racional combina bem com as hipoacuteteses utilitaacuterias do seacuteculo XIX sobre a natureza humana mas parece muitas vezes estar em desacordo com o comportamento humano real Ainda assim apesar de todas as suas falhas o modelo continua a funcionar bem o suficiente para servir de ponto de partida para a anaacutelise microeconocircmica e continua a ser usado ateacute pelos mais ceacuteticos mesmo com alteraccedilotildees e modificaccedilotildees crescentes

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A construccedilatildeo do argumento

Embora estejamos preparados para defender a validade do modelo remanes-cente da retoacuterica de identidade humana natildeo devemos pensar que temos de provar aos nossos alunos ou colegas de outras disciplinas que eacute inquestionaacutevel Como o modelo muito mais simplificado dos economistas ele serve para explicar uma seacuterie de comportamentos observados na anaacutelise retoacuterica e fornecer um quadro claro para a teoria retoacuterica

Entatildeo quais satildeo algumas das implicaccedilotildees do modelo ldquoparlamentarrdquo natildeo es-sencialista de identidade Primeiro e acima de tudo o modelo implica um forte senso de agente por parte de cada ator retoacuterico

O modelo supotildee que as pessoas tecircm a liberdade de fazer escolhas natildeo apenas escolhas de comportamento mas de identidade e a retoacuterica eacute uma forma principal pela qual essas escolhas podem ser sistematicamente examinadas realizadas e defendidas A liberdade assumida pela retoacuterica pode ser vista de um ponto de vista essencialista como uma maldiccedilatildeo na medida em que nunca eacute ldquoacabadardquo e segura Como o heroacutei existencialista de Sartre o homo rhetoricuseacute ldquocondenado agrave liberdaderdquo Nesse sentido Blumenberg (1987) compara os seres humanos a outros animais e observa que ao contraacuterio de outros membros do reino animal estamos privados de instintos que nos permitem saber ou ser qualquer coisa im-mediately Ateacute mesmo o autoconhecimento ou autocompreensatildeo tem a estrutura da ldquoautoexternalidaderdquo Um ldquodesviordquo eacute necessaacuterio para adquirir esse conhecimento um ato de mediaccedilatildeo para o outro ndash o phoros de uma analogia o veiacuteculo de uma metaacutefora o segundo termo de uma relaccedilatildeo as relaccedilotildees que mantemos com outros seres humanos Em alguns casos iniciamos esse processo de construccedilatildeo da identidade Em outros nos encontramos selecionando ou resistindo opccedilotildees que nos satildeo oferecidas ou impostas

Nesse uacuteltimo caso a retoacuterica desempenha um papel particularmente crucial na medida em que ldquo[] natildeo eacute apenas a teacutecnica de produccedilatildeo um efeito eacute sempre tambeacutem um meio de manter o efeito transparenterdquo (BLUMENBERG 1987 p 435-36) Essa segunda capacidade a capacidade de interpretar os efeitos sobre noacutes mesmos bem como de produzir efeitos sobre os outros faz que o domiacutenio da retoacute-

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A construccedilatildeo do argumento

rica seja particularmente crucial para nossos alunos neste momento da histoacuteria quando tantas forccedilas atuam fazem circular identidades disfuncionais para eles e negativizam processos perfeitamente funcionais

eacutetiCa e argumento

O modelo de identidade que prevalece na retoacuterica na medida em que enfatiza a accedilatildeo e a escolha do ser humano assegura a centralidade da eacutetica na nossa tarefa Como o filoacutesofo Charles Taylor (1989) observou ldquo[] a individualidade e o bem ou de outro modo a individualidade e a moralidade se tornam temas inextricavelmente interligadosrdquo (TAYLOR 1989 p 3) Ainda segundo Taylor (1989) falhamos ao levar formalmente em conta essa conexatildeo principalmente por causa do fasciacutenio da filoso-fia moral em ldquo[] definir o conteuacutedo da obrigaccedilatildeo em vez da natureza da boa vidardquo (TAYLOR 1989 p 3) A vida boa conforme entende o autor eacute fundamentalmente social na medida em que o eu eacute fundamentalmente uma construccedilatildeo social Eu sou quem eu sou em virtude de meus relacionamentos com outros seres humanos e a felicidade natildeo pode ser entendida para aleacutem desses relacionamentos Trata-se de uma visatildeo que contrasta com aquelas visotildees que equiparam a felicidade ao prazer ou maximizaccedilatildeo da utilidade ou no caso do individualista poderoso agrave completa autossuficiecircncia Ao contraacuterio do modelo dos economistas neoclaacutessicos de vida boa modelo que domina o imaginaacuterio popular americano o benefiacutecio social natildeo eacute um subproduto acidental da ganacircncia individual Para que um benefiacutecio social tenha um significado eacutetico ou retoacuterico deve ser um produto da intenccedilatildeo A vida boa eacute na simpaacutetica caseira de Kenneth Burke ldquo[] um projeto para se dar bem com as pessoasrdquo (BURKE 1984 p 256) Entender-se uns com os outros implica a identificaccedilatildeo coletiva desses ldquovalores particulares vividos que nos unem e satildeo assumidos pelas instituiccedilotildees que valorizamos e desejamos defenderrdquo como disse Stanley Fish Natildeo existe um padratildeo universal que dita esses valores e funda essas instituiccedilotildees ndash ou mais precisamente nenhuma das vaacuterias normas defendidas por

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seus adeptos como universais satildeo universalmente subscritas ndash daiacute a necessidade de articulaacute-las e estabelecer as diferenccedilas entre elas atraveacutes do uacutenico meio mais faacutecil ou como alguns filoacutesofos preferem o ldquodiaacutelogordquo

Quanto mais se considera a eacutetica natildeo apenas em termos das escolhas corretas dos indiviacuteduos mas em termos de uma determinaccedilatildeo coletiva sobre essas esco-lhas individuais mais o estudo da retoacuterica equivale ao estudo da eacutetica Dito isso qualquer um que ensinou argumento reconheceraacute a ligaccedilatildeo fundamental entre retoacuterica e eacutetica As questotildees eacuteticas surgem de todo tipos de argumento ateacute mesmo de alguns que parecem agrave primeira vista muito distantes da esfera do pensamento eacutetico A questatildeo natildeo eacute se devemos abordar a dimensatildeo eacutetica do argumento mas saber a melhor maneira de estudar a eacutetica em classe de argumentos Falaremos mais tarde de argumentos eacuteticos em si quando discutiremos uma teoria dos tipos de argumento conhecida como Stasis Theory Trataremos agora dos argumentos eacuteticos ou seja daqueles cujos princiacutepios gerais constituem um julgamento eacutetico um argumento especial de avaliaccedilatildeo que utiliza uma parte da linguagem tradicio-nalmente usada pelos filoacutesofos quando determinam o ldquoconteuacutedo da obrigaccedilatildeordquo em uma dada circunstacircncia e sistematizam os meios para se chegar a decisotildees eacuteticas Agora interessa-nos mais amplamente a relaccedilatildeo entre eacutetica e retoacuterica A seguir nos deteremos nas caracteriacutesticas comuns do raciociacutenio eacutetico e retoacuterico e da eacutetica do debate

Uma maneira de ressaltar o quanto tecircm em comum a retoacuterica e a eacutetica eacute considerar a questatildeo da melhor forma de se inserir a eacutetica em um curriacuteculo O processo que consiste em provar a eacutetica da eacutetica em um curso de escrita focado no argumento mostra o quanto as duas atividades estatildeo intimamente relaciona-das Tradicionalmente a eacutetica tem sido ensinada na faculdade seja nos cursos de Filosofia dedicados agrave consideraccedilatildeo das teorias eacuteticas sua histoacuteria e aplicaccedilatildeo seja nos seminaacuterios de teologia nas aulas de religiatildeo focadas na aplicaccedilatildeo dos princiacutepios e crenccedilas das religiotildees Taylor (1989) apontou algumas das limitaccedilotildees da eacutetica ensinada nos cursos de Filosofia porque ela se concentra no ldquoconteuacutedo

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da obrigaccedilatildeordquo em vez de determinar em que consiste uma boa vida Ao analisar vaacuterias ldquoexperiecircncias de pensamentordquo construiacutedas em torno de problemas morais os filoacutesofos tendem a ajudar os alunos a compreender mais as limitaccedilotildees de teorias morais existentes do que ajudaacute-los a definir para si uma vida digna de ser vivida Como os cursos de argumento natildeo tecircm a obrigaccedilatildeo de ldquocobrirrdquo nenhum conjunto particular de teorias morais estamos livres para oferecer aos alunos a oportuni-dade de buscar suas proacuteprias definiccedilotildees

Uma das maneiras mais eficazes de iniciar uma conversa entre os alunos sobre sua proacutepria concepccedilatildeo de vida boa ndash ao contraacuterio da maneira como vaacuterios filoacuteso-fos definiram essa concepccedilatildeo ndash eacute fazecirc-los discutir o belo conto de Ursula LeGuin (Aqueles que caminham longe de Omelas) Omelas eacute um reino utoacutepico imaginaacuterio onde pareceria que a vida boa conforme todas as medidas tradicionais foi atingi-da O uacutenico problema eacute o fato de que a felicidade constante de toda a comunidade depende do sofrimento constante de uma crianccedila que vive em um poratildeo e nunca deve ver nenhum gesto de bondade Toda crianccedila em Omelas entre oito e doze anos tomam conhecimento da existecircncia da crianccedila que sofre Aqueles que poste-riormente vatildeo embora muitas vezes perplexos pela histoacuteria para a perplexidade do narrador ndash aparentemente decidiram que a grande felicidade da comunidade natildeo justifica o sofrimento de uma crianccedila Sua escolha por sua vez reflete a cren-ccedila na natureza parlamentar da identidade ou seja a identidade eacute relacional e natildeo essencial Portanto todos os que vivem em Omelas e conhecem o sofrimento da crianccedila estatildeo implicados nesse sofrimento e sua vida boa aparente eacute tatildeo imperfeita como sua individualidade

Nesses dias eacute claro os cursos de Filosofia estatildeo longe de ser o uacutenico lugar onde a crescente demanda em mateacuteria de eacutetica estaacute sendo respeitada Como alternati-va aos cursos de Filosofia muitos cursos hoje oferecem suas proacuteprias disciplinas de eacutetica que enfatizam as questotildees eacuteticas recorrentes na aacuterea e os cacircnones de comportamento derivados das normas da profissatildeo Por mais bem intencionados que sejam esses cursos e embora claramente constituam um reconhecimento

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da necessidade de instruccedilatildeo eacutetica dentro da academia eles satildeo diriacuteamos espaccedilos problemaacuteticos de instruccedilatildeo eacutetica precisamente porque natildeo haacute conexatildeo funda-mental entre os objetivos da disciplina e objetivos eacuteticos Por outro lado tudo o que pudesse haver nos cursos de eacutetica para o equiliacutebrio dos estudantes em relaccedilatildeo agraves formas taacutecitas de eacutetica pode ser ofertado em outros cursos Como os alunos de muitas faculdades de artes liberais filiadas agrave igreja resistiram ao longo do uacuteltimo seacuteculo agrave frequecircncia obrigatoacuteria agrave ldquocapelardquo esses cursos apresentam uma infeliz tendecircncia para tocar esses alunos da melhor maneira como um conselho paternal para uma correccedilatildeo moral ou da pior maneira para se distraiacuterem do seu verdadeiro caminho acadecircmico

O campo dos negoacutecios por exemplo eacute o mais publicamente lembrado quando se fala de eacutetica nos uacuteltimos anos graccedilas a uma seacuterie de escacircndalos empresariais altamente divulgados na miacutedia Considerando as teorias econocircmicas de maior influecircncia na Ameacuterica hoje eacute provaacutevel que os estudantes sejam ensinados direta e indiretamente em muitos cursos diferentes supervisionados por pessoas dife-rentes que os mercados satildeo mais saacutebios do que os agentes humanos Se algueacutem pretende tomar uma decisatildeo prudente sobre as possiacuteveis consequecircncias de uma poliacutetica eacute aconselhaacutevel estudar o desempenho do mercado em situaccedilotildees seme-lhantes no passado Se algueacutem quer saber o que funcionou e estaacute funcionando a uacutenica opiniatildeo que realmente conta eacute a do mercado Um preccedilo ldquojustordquo portanto eacute o que o mercado suportaraacute enquanto um salaacuterio ldquojustordquo eacute o miacutenimo que o mer-cado permite pagar No contexto desse respeito quase onisciente pelo mercado qualquer curso de eacutetica que introduza criteacuterios estranhos agrave dinacircmica do mercado dinacircmico no processo de tomada de decisatildeo provavelmente teraacute pouco efeito sobre as prioridades ou os comportamentos dos alunos

O que falta em um curso de eacutetica empresarial eacute a ligaccedilatildeo clara entre ldquoindi-vidualidade e moralidaderdquo Qualquer curso que comece com um sentimento de individualidade um tipo de ldquoauto personal businessrdquo inevitavelmente deixaraacute uma

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visatildeo enviesada de obrigaccedilatildeo eacutetica Burke (1968) aborda a natureza da relaccedilatildeo entre identidade e obrigaccedilatildeo eacutetica no processo de definiccedilatildeo de sua noccedilatildeo central de ldquoidentificaccedilatildeordquo

O ser humano como agente que eacute natildeo eacute motivado unicamente pelos princiacutepios de uma atividade especializada mas esse poder especiali-zado em seu papel de sugerir imagem eacute capaz de afetar seu caraacuteter Qualquer atividade especializada participa de uma unidade de accedilatildeo maior ldquoIdentificaccedilatildeordquo eacute uma palavra usada no lugar de atividade au-tocircnoma nesse contexto mais amplo um lugar em que o agente pode ser indiferente O pastor enquanto pastor age para o bem das ovelhas para protegecirc-las do perigo e do mal Mas ele pode ser ldquoidentificadordquo com um projeto que estaacute criando as ovelhas para o mercado (BURKE 1968 p 27)

Da mesma maneira a administraccedilatildeo corporativa pode agir de forma conscien-te no interesse de seus acionistas para aumentar o retorno de seu investimento realizando accedilotildees que simultaneamente ldquoos identificamrdquo tanto com a degradaccedilatildeo quanto com a necessidade de preservar o meio ambiente

Mesmo uma consideraccedilatildeo breve das conexotildees entre os modos de pensar promovidos ao mesmo tempo tanto pela eacutetica como pela retoacuterica ressalta as vantagens de integrar o ensino da eacutetica em uma aula de argumentos Uma das caracteriacutesticas mais importantes compartilhadas pela eacutetica e pela retoacuterica eacute o foco no processo e na compreensatildeo do processo ndash ldquocomo fazerrdquo ndash mais que o conhe-cimento declarativo ndash ldquoo que eacuterdquo Eacute essa preocupaccedilatildeo com o processo que permite que tanto eacutetica como retoacuterica envolvam ldquoatividades especializadasrdquo de qualquer espeacutecie e se movam facilmente entre os campos pessoal e profissional Em ambos os casos os processos que envolvem a eacutetica e a retoacuterica envolvem duas etapas um processo de seleccedilatildeo ndash que identifica o melhor argumentoa escolha mais de-fensiacutevel e um processo de comunicaccedilatildeo ndash a formulaccedilatildeo de uma justificativa para

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o argumento ou escolha eou a promoccedilatildeo de uma forma mais ampla de adotar De acordo os pontos de vista mais comuns da retoacuterica o primeiro processo que termina na escolha eacute o uacutenico necessaacuterio Natildeo haacute obrigaccedilatildeo de explicar as razotildees para se fazer a escolha ou de compartilhar o processo pelo qual se chegou a ela No entanto como haacute argumentos para determinadas escolhas eacuteticas haacute uma eacutetica do argumento que exige que se crie uma situaccedilatildeo para as escolhas A diferenccedila aqui entre argumentos eacuteticos e outros tipos de argumentos eacute o grau natildeo o tipo Embora seja sempre uacutetil explicar as razotildees de se fazer escolhas e embora seja prudente fazer sempre que algueacutem quer contar com o apoio de outrem eacute neces-saacuterio optar pela escolha eacute eacutetica

A fonte dessa restriccedilatildeo eacute a natureza das escolhas eacuteticas Ao opinarmos por exemplo sobre uma faculdade para as pessoas que precisam escolher uma expli-camos nossos criteacuterios para ajudaacute-las a se decidirem sobre a escolha da faculdade No entanto se estamos fazendo uma escolha eacutetica sobre digamos justificativas para a tortura estamos falando sobre alguma coisa muito mais forte Ao reali-zarmos escolhas eacuteticas a escolha natildeo eacute apenas para noacutes mesmos no aqui e agora mas para os outros e para noacutes mesmos em situaccedilotildees futuras semelhantes Quando qualificamos um ato como eacutetico natildeo estamos simplesmente dizendo Eu fiz isso mas tambeacutem Isso deve ser feito

Se algueacutem eacute de iniacutecio obrigado sob a eacutetica do argumento a explicar um raciociacutenio sobre suas escolhas eacuteticas tambeacutem eacute obrigado a assegurar que seus motivos satildeo verdadeiros Isso significa dizer que a justificativa do raciociacutenio para que sirva de guia para outros atos eacuteticos natildeo deve ser apenas verdadeira mas extensiva Eacute preciso estar preparado para reconhecer toda a gama de esco-lhas ndash natildeo necessariamente todas mas todas que possam parecer plausiacuteveis ou provaacuteveis para a quem interessa ndash possiacuteveis antes de se fazer a seleccedilatildeo As razotildees para descartar ou hierarquizar alternativas provaacuteveis e selecionar a accedilatildeo final devem ser claramente indicadas

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Os princiacutepios que orientaram a avaliaccedilatildeo dessas escolhas e as evidecircncias que apoiam essa avaliaccedilatildeo devem ser claramente explicados O grau de certeza sobre a melhor escolha de uma pessoa deve ser explicitamente registrado (essas condiccedilotildees assim como o termo ldquolegitimidaderdquo que derivam do modelo de Stephen Toulmin seratildeo discutidos mais detalhadamente no proacuteximo capiacutetulo) Embora natildeo haja um coacutedigo formal de comportamento retoacuterico que obriga algueacutem a oferecer uma justificativa simultaneamente honesta e legiacutetima para o argumento presume-se a obrigaccedilatildeo de fazer caso seja solicitado Aleacutem disso a falha na condiccedilatildeo de legiti-midade de um argumento pode potencialmente tornaacute-lo menos eficaz Um argu-mento que tende a revelar o que se deixou de dizer ou que chama a atenccedilatildeo para as questotildees ignoradas pelo opositor pode enfraquecer a adesatildeo do puacuteblico a esse argumento tatildeo prontamente como se ele tivesse mostrado sua proacutepria falsidade

O processo de seleccedilatildeo em eacutetica eacute homoacutelogo ao que os retoacutericos chamam agraves vezes de estaacutegio de invenccedilatildeo O processo de descoberta e avaliaccedilatildeo das escolhas compreende grande parte da teacutecnica da retoacuterica e da eacutetica Como vimos ante-riormente Blumenberg (1987) associou esse processo ao ldquoatrasordquo do tempo que compreende a preocupaccedilatildeo de explicar a ldquocircunstancialidaderdquo as diferenccedilas particulares entre a situaccedilatildeo dada e outras para as quais se procura orientaccedilatildeo Enquanto enfatizamos anteriormente as recompensas cognitivas associadas a essa rejeiccedilatildeo de meios parcimoniosos de compreensatildeo destacamos aqui as restriccedilotildees eacuteticas para tal movimento Onde prevalece a automaticidade natildeo haacute lugar para a eacutetica ou para a retoacuterica Pode-se apenas fazer ou dizer ldquoo que algueacutem precisa fazer ou dizerrdquo sem hesitaccedilatildeo A eacutetica e a retoacuterica exigem escolha e escolha implica deli-beraccedilatildeo Ao chegar a essa conclusatildeo natildeo rejeitamos a ideia de que o fim apropriado da instruccedilatildeo eacutetica eacute o de tornar a virtude um haacutebito Os haacutebitos eacuteticos da mente por oposiccedilatildeo ao mero conhecimento da teoria eacutetica e da histoacuteria satildeo certamente os limites apropriados da instruccedilatildeo eacutetica Isso natildeo quer dizer todavia que esses haacutebitos sejam melhor expostos pela forma como as pessoas fazem suas escolhas eacuteticas Pode-se interpretar a noccedilatildeo de haacutebito de uma forma ampla rejeitando um

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acento behaviorista como resposta imediata a um estiacutemulo familiar Pode-se in-cluir nos haacutebitos eacuteticos da mente a inclinaccedilatildeo para buscar a dimensatildeo eacutetica das escolhas a consideraccedilatildeo de tantas alternativas plausiacuteveis quanto possiacuteveis e a avaliaccedilatildeo cuidadosa dessas escolhas

Combinando a instruccedilatildeo eacutetica e a instruccedilatildeo retoacuterica com ecircnfase nessa uacuteltima na ldquoinventividade processualrdquo e no exame disciplinado das alternativas podemos esperar melhorar as escolhas eacuteticas tornando mais complexas e aumentando o nuacutemero de escolhas para os nossos alunos Em vez de se concentrar na adequaccedilatildeo da escolha final uma eacutetica retoricamente influenciaacutevel enfatizaria as alternativas inventadas ou descobertas no processo de seleccedilatildeo e nas respostas uacutenicas da escolha final agraves particularidades do seu dilema eacutetico Eacute aiacute onde a natureza controversa da retoacuterica eacute mais evidente

Para alguns a medida da instruccedilatildeo eacutetica eacute exatamente ajudar os alunos a che-gar da maneira mais parcimoniosa possiacutevel agrave boa escolha que estaacute posta agrave espera deles Qualquer coisa que possibilita uma pessoa reconhecer e fazer essa escolha resulta de lacunas no seu caraacuteter Somente se se acredita que a melhor escolha pode ser um produto das deliberaccedilotildees antes de algo que existia a priori dessas deliberaccedilotildees pode ser um ldquoatrasordquo do tempo a recusa de reduzir ldquoas entidades para aleacutem da necessidaderdquo eacute justificaacutevel Nesse ponto aqueles que equiparam a virtude a uma injusta e raacutepida rejeiccedilatildeo da tentaccedilatildeo acusaratildeo algueacutem de relativista Para os absolutistas morais ndash e certamente o absolutismo moral eacute uma posiccedilatildeo eacutetica que um nuacutemero significativo de pessoas adota por mais diferentes que sejam os absolutismos ndash as provas de Satanaacutes devem ser respondidas com uma questatildeo dis-cursiva com o verdadeiro ou o falso Preparar-se para essa prova familiarizando-se com as respostas certas repetindo-as memorizando-as e depois recordando-as instantaneamente quando os desafios se apresentam Somente os inimigos devem deliberar e soacute os infieacuteis imaginam que poderiam por seu proacuteprio poder da razatildeo chegar a uma escolha melhor do que a prescrita pelos absolutos transmitidos pela leitura literal de alguns sacerdotes da sagrada escritura

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O fracasso do absolutismo a partir da perspectiva da eacutetica como retoacuterica eacute um fracasso da imaginaccedilatildeo5 Eacute a incapacidade de imaginar qualquer outra leitura de escritos sagrados diferente da que eacute sugerida por quem estaacute no puacutelpito Eacute a incapacidade de imaginar uma maneira de identificaccedilatildeo entre si e qualquer outra forma de realismo O fracasso do absolutismo tambeacutem envolve o simples equiacutevoco em observar coisas o equiacutevoco de natildeo observar que as respostas derivadas da es-critura sagrada ao longo dos seacuteculos mudam de tempos em tempos e de lugar para lugar e o equiacutevoco de natildeo constatar que natildeo haacute um tribunal com o poder de julgar as diferenccedilas entre os absolutismos nem de anular os recursos dos relativistas O problema principal que surge do fracasso dos absolutismos eacuteticos eacute o fato de que em uacuteltima instacircncia eles acabam por se fazer ouvir e nos fazem voltar ao lugar onde a eacutetica e a retoacuterica surgem o lugar onde o poder eacute certo Acima de tudo a eacutetica e a retoacuterica compartilham a rejeiccedilatildeo da forccedila como meio de resolver a diferenccedila

A retoacuterica comeccedila como Burke (1969) argumenta como um namoro na cria-ccedilatildeo de um senso de identificaccedilatildeo entre pessoas pertencentes a diferentes classes seja de gecircnero grupo socioeconocircmico posiccedilatildeo poliacutetica etc As obrigaccedilotildees da eacutetica surgem do reconhecimento do eu nos outros da capacidade de assumir a posiccedilatildeo do outro O absolutismo cria um mundo binaacuterio (NoacutesEles BomMal CorretoErrado) ndash e natildeo oferece meios civilizados para superar esses binarismos De fato o absolutismo aconselha a natildeo falar com o Outro nem mesmo identificaacute-lo Para ser fiel agrave visatildeo absolutista do mundo eacute preciso permanecer sempre no interior das suas fronteiras Deixar o reino dos absolutos eacute ser desafiado a cada passo por ideias e costumes diferentes e ter poucos recursos para negociar essas diferenccedilas Noacutes aprendemos todavia desde muito tempo com os sofistas a atravessar vaacuterios

5 Empregamos o termo Absolutismo para expressar uma mentalidade natildeo uma ideologia ou sistema de crenccedila Dentro de qualquer religiatildeo portanto haacute absolutistas que praticamente atuam dessa forma Haacute tambeacutem pessoas com mais imaginaccedilatildeo que conseguem conciliar suas crenccedilas religiosas com uma preocupaccedilatildeo pelo bem-estar dos que natildeo compartilhar suas crenccedilas

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reinados no processo de muacuteltiplas realidades sempre amarrados agrave nossa sanidade e seguranccedila Se esse antepassado mais benigno dos absolutistas Platatildeo venceu os sofistas em seus diaacutelogos Ele de fato sobreviveu para discutir novamente e nos ensinar a fazer o mesmo Em um mundo acometido por muita certeza sobre muitas ideias irreconciliaacuteveis e pouca vontade de natildeo usar forccedila e tentar a conciliaccedilatildeo nossos alunos se serviriam bem da instruccedilatildeo eacutetica influenciada pelo espiacuterito dos sofistas

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caPiacutetulO 1a histoacuteria da argumentaccedilatildeo6

Nosso objetivo neste capiacutetulo natildeo eacute o de apresentar uma histoacuteria exaustiva da argumentaccedilatildeo mas o de construir essa histoacuteria que possa ser bem usada por professores na contemporaneidade Eacute certo que nosso esboccedilo contempla algumas boas histoacuterias da Retoacuterica e do ensino da escrita e nossos leitores podem consultar nossas referecircncias caso desejem explorar essas histoacuterias com maior profundidade Mas no breve espaccedilo disponiacutevel para essa discussatildeo preferimos a economia ao detalhamento e a utilidade agrave novidade De modo a deixar o texto o mais utilizaacute-vel possiacutevel o dividimos em duas partes Na primeira apresentamos uma ldquofatiardquo ou amostra representativa da Retoacuterica preacute-moderna sob a forma de dois temas recorrentes ndash ou mais precisamente duas tensotildees recorrentes ndash que marcam a evoluccedilatildeo da teoria do argumento Tais tensotildees sobrevivem ateacute hoje e continuam a promover controveacutersias A primeira tensatildeo centra-se sobre o antigo antagonismo entre a Retoacuterica e a Filosofia enquanto a segunda estaacute focada na resistecircncia da Retoacuterica ao engessamento nem sempre bem-sucedido Apoacutes revisar essas tensotildees destacando sua aplicabilidade agraves escolhas que os professores ainda enfrentam realizamos na segunda parte uma discussatildeo mais aprofundada sobre as teorias modernas da argumentaccedilatildeo responsaacuteveis por alterar ndash ou que tecircm potencial para alterar ndash a maneira como eacute ensinada

Em funccedilatildeo da pequena mudanccedila nos uacuteltimos 50 anos de nossa compreensatildeo sobre o argumento e nos uacuteltimos 25 das nossas abordagens para o ensino dedi-camos maior tempo agrave histoacuteria mais recente da argumentaccedilatildeo Ao fazer isso natildeo temos a intenccedilatildeo de deixar de lado as contribuiccedilotildees dos sofistas de Aristoacuteteles de Ciacutecero de Erasmo de Santo Agostinho de Campbell entre outros De fato como

6 Traduccedilatildeo erik fernando Martins

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a maioria dos teoacutericos contemporacircneos aqui citados admite o conhecimento de nossos antepassados ainda resplandece nos melhores trabalhos desenvolvidos recentemente Na medida em que nosso objetivo eacute criar um passado utilizaacutevel ao indicar as fontes de nossa abordagem para o argumento o que segue compreende o coraccedilatildeo deste livro

filosofia versus retoacuteriCa

Em certo sentido tudo que eacute discutido neste capiacutetulo pode ser compreendido atraveacutes das lentes da oposiccedilatildeo entre Filosofia e Retoacuterica Eacute por meio dessa velha briga que muitas de nossas batalhas antigas e recentes surgiram Se antigamente muitos filoacutesofos definiam a si proacuteprios atraveacutes de suas diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave Retoacuterica atualmente muitos filoacutesofos e criacuteticos como Hans Blumenberg Hayden White Richard Rorty Charles Taylor Stanley Fish Terry Eagleton entre outros definem-se e distinguem-se de seus pares ao abraccedilar em alguns casos explicita-mente a Retoacuterica e em outros ao abraccedilar ideias consoantes agrave Retoacuterica contempo-racircnea Na segunda parte deste capiacutetulo na qual destacamos as contribuiccedilotildees dos retoacutericos modernos veremos que um nuacutemero consideraacutevel delas possui raiacutezes na Filosofia Abordaremos essas tentativas recentes de redefinir a Filosofia em um momento posterior deste capiacutetulo No entanto na presente discussatildeo sobre a divisatildeo FilosofiaRetoacuterica vamos nos limitar aos temas principais que emergem da antiga ruptura entre essas duas disciplinas

A antiga batalha entre Filosofia e Retoacuterica se reveste de muitas tensotildees mas nosso foco aqui eacute a tensatildeo principal entre elas e a ousada reivindicaccedilatildeo dos filoacuteso-fos de oferecer demonstraccedilotildees irrefutaacuteveis sobre a verdade para audiecircncias ideais contra a mais modesta reivindicaccedilatildeo dos retoacutericos para persuadir uma audiecircncia especiacutefica de que uma conclusatildeo particular garante anuecircncia O fato de que mesmo hoje dois mil e quinhentos anos depois do iniacutecio desse debate o prestiacutegio recai sobre aqueles que reivindicam demonstrar a verdade aos especialistas contra

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aqueles que reivindicam persuadir audiecircncias gerais enfatiza a difiacutecil batalha que a Retoacuterica encontra em sua luta com a Filosofia para garantir um nicho legiacutetimo dentro das ciecircncias humanas Parte do problema reside no fato de que a Filosofia foi declarada vencedora da batalha haacute muito tempo e consequentemente de que a histoacuteria desse debate foi escrita desse ponto de vista Como nos aponta Jarratt (1991) uma teoacuterica da Retoacuterica eacute difiacutecil entender os primeiros retoacutericos os Sofis-tas atraveacutes das lentes dos filoacutesofos antigos em particular Platatildeo e Aristoacuteteles com quem a histoacuteria alinhou-se por dois milecircnios (JARRATT 1991) A histoacuteria recente tem sido mais gentil com a Retoacuterica em parte graccedilas a intelectuais como Jarratt Assim tornou-se possiacutevel entendecirc-la em outros termos que os impostos pela Fi-losofia Isso natildeo significa dizer que as tensotildees desapareceram Elas simplesmente foram reconfiguradas dentro do campo da Retoacuterica Uma manifestaccedilatildeo particular dessa batalha por exemplo pode ser vislumbrada na tentativa de ldquoprofissionalizarrdquo a disciplina Retoacuterica de transformaacute-la em uma ciecircncia social capaz de apresentar se natildeo demonstraccedilotildees irrefutaacuteveis conclusotildees confiaacuteveis sobre o mundo baseadas em dados e de tornar-se mais ldquoautocircnomardquo ou menos parasitaacuteria de outras disci-plinas A resistecircncia a essas tentativas envolve a jaacute mencionada observaccedilatildeo de filoacutesofos contemporacircneos ndash em sua maioria rejeitam as tradiccedilotildees filosoacuteficas que demonizam a Retoacuterica ndash que casam perspectivas pragmaacuteticas e construtivistas como uma atividade transdisciplinar e sem apologias

A tensatildeo entre Filosofia e Retoacuterica ou entre demonstraccedilatildeo e persuasatildeo agraves vezes eacute caracterizada como uma tensatildeo entre verdade e efeito Em termos mais simples eacute o conflito entre aqueles que veem a verdade como independente da per-cepccedilatildeo humana e aqueles que entendem a anuecircncia da audiecircncia como condiccedilatildeo necessaacuteria para tornar algo verdadeiro Em nossa discussatildeo sobre os artigos de Fish e Leo cujo meta-argumento eacute com efeito uma retomada contemporacircnea da disputa aqui considerada cunhamos a visatildeo antiga como ldquoabsolutistardquo no sentido de que era natildeo contingente e natildeo relacional O filoacutesofo Hans Blumenberg (1987) rejeita essa visatildeo nos seguintes termos

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No relacionamento dos gregos com os gregos diz Isoacutecrates o meio apro-priado eacute a persuasatildeo enquanto no trato com os baacuterbaros eacute o uso da for-ccedila Essa diferenccedila eacute compreendida como sendo entre linguagem e edu-caccedilatildeo porque a persuasatildeo pressupotildee a partilha de horizontes alusotildees a materiais prototiacutepicos e uma orientaccedilatildeo providenciada por metaacuteforas e siacutemiles A antiacutetese entre verdade e efeito eacute superficial porque o efeito retoacuterico natildeo eacute uma alternativa a ser escolhida em oposiccedilatildeo a um insight que pode ser tido mas uma alternativa agrave evidecircncia definitiva que natildeo pode ser obtida que ainda natildeo pode ser obtida ou que em nenhuma me-dida pode ser obtida aqui e agora (BLUMENBERG 1987 p 435-6)

O que os filoacutesofos sugeriram por seacuteculos ser possiacutevel eacute justamente o que Blu-menberg (1987) estaacute aqui dizendo ser impossiacutevel ndash evidecircncias definitivas para a veracidade de asserccedilotildees no aqui e agora A recusa de Blumenberg (1987) em separar verdade de efeito aponta para uma aceitaccedilatildeo do fato de que como coloca Burke (1969) vivemos na ldquoBabel depois a quedardquo onde a uacutenica alternativa agrave forccedila eacute estabelecer uma identificaccedilatildeo entre falantes uma condiccedilatildeo que eacute conquistada atraveacutes de consideraacutevel exerciacutecio e astuacutecia graccedilas a todas as barreiras impostas pela linguagem pelo gecircnero pelas classes etc que sempre existiram

Tanto para Blumenberg (1987) quanto para Burke (1969) apenas quando falantes partilham um horizonte a conversaccedilatildeo e ainda menos a persuasatildeo e a identificaccedilatildeo se tornam possiacuteveis Em um mundo poacutes-lapsaacuterio (depois do lapso da entrada do pecado) a verdade eacute social Algueacutem eacute certamente livre para afirmar que as ldquoevidecircncias definitivasrdquo para seu ponto de vista existem fora da consciecircncia ou do entendimento das almas perdidas com quem se conversa mas essa afirmaccedilatildeo em si natildeo carrega a forccedila da disposiccedilatildeo dos outros em concordar Uma verdade sem efeito no mundo natildeo eacute bem uma verdade Um nuacutemero consideraacutevel de debates contemporacircneos confirma a inutilidade de se apelar para fontes natildeo autorizadas pelos objetivos do argumento de algueacutem O debate entre criacionistas (ou os pro-ponentes do intelligent design ndash projeto inteligente) e evolucionistas por exemplo

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A construccedilatildeo do argumento

eacute um choque entre linguagens incomensuraacuteveis e entre horizontes incongruen-tes Natildeo apenas a resoluccedilatildeo da questatildeo eacute inimaginaacutevel como uma conversaccedilatildeo significativa entre esses adversaacuterios eacute de difiacutecil visualizaccedilatildeo Se a minha verdade baseada em uma teoria coerente apoiada durante um seacuteculo por dados empiacutericos ou por uma poesia do texto sagrado ela natildeo seraacute vista como verdade se a audiecircn-cia natildeo partilhar desse mesmo horizonte Ateacute as provas geomeacutetricas podem ser ldquodemonstradasrdquo apenas se os axiomas nas quais se apoiam estejam garantidos A natureza incomensuraacutevel das vaacuterias verdades e vocabulaacuterios tem dado origem recentemente natildeo apenas a debates puacuteblicos rancorosos e inuacuteteis mas a violentos e sanguinaacuterios conflitos entre sistemas de crenccedila incomensuraacuteveis

O primeiro grande nome da perspectiva agrave que Blumenberg e Burke se opotildeem aqui foi Platatildeo que obviamente criticou a mais antiga escola retoacuterica a dos so-fistas Ironicamente a postura de Platatildeo em relaccedilatildeo aos filoacutesofos estaacute articulada a uma seacuterie de conjuntos de peccedilas oratoacuterias nas quais ele propaga uma gama de praacuteticas retoacutericas um pouco semelhantes agraves de seus adversaacuterios Para piorar as coisas as praacuteticas de Platatildeo satildeo menos respeitaacuteveis do que as dos filoacutesofos alvos de sua criacutetica Em particular a retoacuterica de Platatildeo eacute marcadamente assimeacutetrica para adotarmos um termo cunhado por Conley (1990) na medida em que o locutor Soacutecrates eacute ativo versado e possui uma agenda enquanto o interlocutor especial-mente os poetas ou os sofistas satildeo tipicamente passivos ingecircnuos e prenhes de conhecimento falso De maneira claramente ostensiva o Soacutecrates de Platatildeo possui no coraccedilatildeo os interesses mais nobres de seus interlocutores e o objetivo de suas perguntas eacute educaacute-los salvaacute-los dos erros de percurso tal como uma parteira que arranca a verdade de suas consciecircncias agastadas Em teoria Platatildeo natildeo possui um modelo de sua audiecircncia e eacute o mais puro dos persuasores Mesmo assim ele natildeo consegue persuadir sua audiecircncia a reconhecer as verdades que vatildeo aleacutem de seus horizontes A conversa natildeo pode transportar sua audiecircncia para as verdades inquestionaacuteveis que ele deseja compartilhar Ele precisa recorrer ao mesmo tipo de praacuteticas manipuladoras que ele atribui a seus adversaacuterios A genialidade de Platatildeo

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natildeo estaacute na habilidade em compor argumentos logicamente hermeacuteticos mas em sua inigualaacutevel habilidade de disfarccedilar sua retoacuterica assimeacutetrica como diaacutelogo

Em oposiccedilatildeo agrave dependecircncia de Platatildeo a retoacuterica assimeacutetrica atribui-se a Protaacutegoras o desenvolvimento de uma forma de ldquoantiloacutegicardquo que torna o diaacutelogo aberto o que permite que as crenccedilas (doxa) de cada locutor exerccedila um papel na resoluccedilatildeo de um problema

A visatildeo de Protaacutegoras parece ser bilateral no sentido de que os dois la-dos de uma questatildeo devem exercer pressatildeo umas sobre as outras para que se atinja uma resoluccedilatildeo agrave questatildeo em voga Como nenhum lado eacute privilegiado a priori e ambos estatildeo fundamentados na doxa dos ou-vintes podemos caracterizar a relaccedilatildeo entre orador e audiecircncia como ldquosimeacutetricardquo (CONLEY 1990 p 6-7)

A manipulaccedilatildeo de Platatildeo dessa forma de diaacutelogo deixa clara a dificuldade de conciliar uma feacute absolutista em uma crenccedila e um diaacutelogo genuiacuteno Caso sejam privilegiadas a priori algumas crenccedilas em detrimento de outras antes do iniacutecio de um diaacutelogo eacute impossiacutevel garantir que essas crenccedilas transcendentais possam ser alteradas no curso desse diaacutelogo A uacutenica maneira pela qual um diaacutelogo pode subs-tituir crenccedilas privilegiadas a priori por outras eacute criar um tipo de barreira Todas essas questotildees nos levam de volta ao debate entre Fish e Leo do capiacutetulo anterior Apenas os ldquorelativistasrdquo e os inclinados perigosamente aos ldquomulticulturalistasrdquo podem acreditar na possibilidade de que um diaacutelogo genuiacuteno entre adversaacuterios possa ser um evento positivo ou na de algueacutem poderia mudar de opiniatildeo nesse tipo de discussatildeo O fato de que o ldquoabsolutismordquo na versatildeo moderna do debate entre platocircnicos e sofistas natildeo defende universais absolutos e especiacuteficos eacute sintomaacutetico da diferenccedila entre o mundo de nossos antepassados e o nosso

Os absolutismos de hoje como nota de maneira irocircnica o criacutetico americano M H Abrams carecem de absolutos Como Leo a maioria dos platocircnicos recentes tende a apoiar-se em lamentaccedilotildees como principal veiacuteculo de persuasatildeo Ao focar o

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ataque ndash e a atenccedilatildeo da audiecircncia ndash em tudo que deu errado desde 1968 quando os relativistas tomaram conta do asilo Leo e sua personagem podem evitar referecircn-cias a outros absolutos aleacutem dos que desapareceram O tratamento desses valores universais eacute muito mais um exerciacutecio nostaacutelgico do que uma anaacutelise

Impliacutecitas agrave oposiccedilatildeo entre os antigos filoacutesofos e retoacutericos e suas versotildees atuais estatildeo diferentes assunccedilotildees sobre as finalidades da razatildeo A rejeiccedilatildeo pelos antigos filoacutesofos do efeito como um aspecto da verdade eacute parte da mais significativa diferenccedila entre as duas abordagens O fim da razatildeo para a filosofia eacute algum tipo de descoberta ndash da verdade da realidade ou do bem ndash que seraacute entatildeo conhecida e partilhaacutevel Por outro lado para a retoacuterica o fim da razatildeo eacute uma escolha eacute ter a certeza de que a escolha pode nos aproximar da verdade da realidade ou do bem (e se alguns dos trecircs eacute privilegiado pela retoacuterica seria o bem como indicamos) mas eacute o ato em si executado em um lugar e hora especiacutefica e com um resultado par-ticular e natildeo o conhecimento em si que motiva o processo De fato como propotildee Blumenberg (1987 p 441) a situaccedilatildeo retoacuterica eacute como ldquo[] uma (falta) de provas e (eacute) compelido agrave accedilatildeordquo ao contraacuterio de Platatildeo que ldquoinstitucionalizourdquo a noccedilatildeo de que o ldquoconhecimento eacute a virtuderdquo desse modo tornando ldquo[] o que eacute evidente em norma de comportamentordquo (BLUMENBERG 1987 p 431) Agrave luz de Platatildeo quando algueacutem deteacutem o conhecimento correto eacute compelido a accedilotildees virtuosas enquanto os retoacutericos entendem que a virtude deve ser compelida outra vez em cada situaccedilatildeo nova usando informaccedilotildees incompletas e meios especiacuteficos para essa situaccedilatildeo

Uma das principais vantagens dos filoacutesofos ao promover o conhecimento em detrimento da accedilatildeo jaacute que o fim da razatildeo em muitos casos reduz as escolhas a duas eacute o fato de que a escolha recomendaacutevel se aplica a todas as situaccedilotildees Como aponta Crosswhite (1996 p 36) esse processo pode gerar uma ideia redutora dos produtos da retoacuterica ldquoA necessidade da accedilatildeo de onde vem a necessidade de uma escolha agraves vezes forccedila a uma bivalecircncia ndash isto eacute demanda um sim ou natildeo agraves reivindicaccedilotildees colocadas nos argumentos ndash mas isso natildeo deve ser confundido com as demandas da razatildeordquo O que a razatildeo demanda e o que a retoacuterica eacute destinada a

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produzir eacute um campo amplo de escolhas selecionaacuteveis e um senso de criteacuterio claro e transparente para realizar a escolha Isso ocorre porque os filoacutesofos natildeo pre-cisam necessariamente agir sobre o conhecimento descoberto porque o maacuteximo que eles se aproximam do par escolha-accedilatildeo eacute a traduccedilatildeo ocasional de princiacutepios em regras (caso da eacutetica aplicada) eles estatildeo a salvo do consideraacutevel luto que vem apoacutes as escolhas errocircneas Enquanto isso a Histoacuteria apresenta diversos casos de argumentos retoricamente brilhantes e vencedores que levaram a consequecircncias malsucedidas natildeo intencionais ou ateacute mesmo desastrosas

Da perspectiva dos retoacutericos filoacutesofos como Platatildeo rotineiramente despreza a injunccedilatildeo proverbial que natildeo permite o perfeito ser inimigo do bem Enquanto os filoacutesofos tradicionais conjuraram respostas perfeitas agraves perguntas mais pro-fundas da vida eles precisaram colocar o peacute fora da histoacuteria para consegui-lo e suas respostas raramente satildeo retomadas de maneira intacta Os retoacutericos por outro lado sempre se restringiram a respostas imperfeitas poreacutem viaacuteveis para o aqui e agora Ao recusar o passo em direccedilatildeo a um passado dourado um futuro transcendente ou a algum paradigma novo e inimaginaacutevel os retoacutericos tornam a si proacuteprios uacuteteis agrave esfera puacuteblica

De fato muitos retoacutericos antigos eram figuras puacuteblicas dignas de nota que arguiram em casos legais ajudaram a passar leis e a definir os valores da proacutepria sociedade O soacutelido sistema dos filoacutesofos antigos ofereceu frameworks compreensi-vos e capazes de explicar inteiramente os sentidos do mundo e antecipou todas as perguntas importantes sobre a vida apesar de raramente apresentarem impacto significativo (com exceccedilatildeo poreacutem dos filoacutesofos morais) das atividades cotidianas do mundo em que viviam Hoje em dia poucos filoacutesofos arriscam-se a oferecer teorias unificadas das coisas Mas isso natildeo significa que seu papel tradicional no debate entre filosofia e retoacuterica desapareceu Hoje em dia esse papel eacute preenchido por uma classe de pensadores um subconjunto de absolutistas agraves vezes referidos como ideoacutelogos

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Enquanto ldquoideoacutelogordquo eacute um termo muitas vezes usado para designar uma pessoa radical tendenciosa em oposiccedilatildeo a uma pessoa racional desprovida de caracte-riacutesticas subjetivistas empregamos esse termo de maneira mais restrita Noacutes natildeo equacionamos racionalidade com objetividade e admitimos que todos possuem preconceitos pontos de vista e crenccedilas que constroem e suas percepccedilotildees ldquoUma maneira de verrdquo como nos lembra Burke (1984 p 49) ldquo[] eacute tambeacutem uma maneira de natildeo verrdquo Tambeacutem admitimos que nossas crenccedilas e assunccedilotildees satildeo corrigiacuteveis que elas podem e iratildeo mudar e que agraves vezes uma mudanccedila na crenccedila eacute um epi-fenocircmeno que segue uma mudanccedila na experiecircncia outras vezes eacute um resultado previsiacutevel de uma busca disciplinada e intencional de novas perspectivas ou de evidecircncias de provas e de intercacircmbio com os outros

Assumimos que a uacuteltima possibilidade representa uma condiccedilatildeo necessaacuteria agrave retoacuterica Tambeacutem nos juntamos a Aristoacuteteles ao admitirmos que eacute mais faacutecil mudar as mentes aos poucos e que a maneira mais praacutetica de mover as pessoas em direccedilatildeo a crenccedilas natildeo familiares eacute atraveacutes de crenccedilas familiares

Isto posto tambeacutem admitimos a existecircncia daqueles que deteacutem firmemente suas proacuteprias crenccedilas e satildeo tatildeo resistentes agrave mudanccedila que merecem uma de-signaccedilatildeo especial Em casos extremos podem ser conhecidos como fanaacuteticos No entanto dentro do esquema ordinaacuterio das coisas o termo ideoacutelogo parece bastante aplicaacutevel Os ideoacutelogos detecircm com notaacutevel tenacidade um bocado de ideias suficientes para explicar exaustivamente algum aspecto do mundo ou uma semente de uma explicaccedilatildeo universal Eles satildeo raramente afetados por ar-gumentos a que se opotildeem ou por evidecircncias que invalidam suas crenccedilas Face a fatos pouco cooperativos ou a contra-argumentos fatais eles podem optar por descaracterizar ou ignorar a oposiccedilatildeo Enquanto aceitam a remota possibilidade de que suas crenccedilas possam ser em um momento posterior estremecidas o ocircnus da prova imposto aos criacuteticos eacute quase inalcanccedilaacutevel A crenccedila em Deus (o deles natildeo o seu) no Livre Mercado no Indecidiacutevel ou no Novo Paradigma eacute completa e quaisquer consequecircncias maleacuteficas que possam resultar do agir em nome de sua

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forccedila-motriz satildeo postas de lados ou racionalizadas Eles enxergam quem prati-ca a ldquoantiloacutegicardquo e promovem a retoacuterica simeacutetrica como fracos e perigosamente vulneraacuteveis a ideias que ameaccedilam o nosso ndash vale dizer o deles ndash estilo de vida

Eacute por isso que ensaiar alguns dos principais argumentos de Platatildeo contra a retoacuterica prova ser uma importante preparaccedilatildeo para o debate com os ideoacutelogos de hoje e para antecipar argumentos que nossos estudantes incorporaram das inuacutemeras e bem divulgadas ideologias disponiacuteveis hoje em dia no mercado de ideias Enquanto alguns dos ideoacutelogos mais poderosos da atualidade defendem suas convicccedilotildees com a mesma sinceridade que Platatildeo usava ao defender as suas outros criaram nichos lucrativos em mercados midiaacuteticos ao se tornarem o que designamos ldquoideo-treinadoresrdquo (ideo-trainers) oradores profissionais que fazem declaraccedilotildees rigorosas geralmente extravagantes mais uacuteteis para a venda de li-vros e para ganhar tempo de exposiccedilatildeo na miacutedia do que para expor uma posiccedilatildeo legiacutetima ou ateacute mesmo coerente Nos anos recentes com o crescimento de canais pagos de notiacutecias e blogs de Internet a linha que separa entretenimento e notiacutecia quase desapareceu transformando em estrelas pessoas que atendem aos anseios de determinados grupos O tipo de ideoacutelogos artificiais que emergem nesse mer-cado e os diferentes crentes verdadeiros que operam principalmente no mercado impresso oferecem um modelo de argumento profundamente assimeacutetrico para nossos estudantes Por isso dedicar-se agrave antiga habilidade da ldquoantiloacutegicardquo ou dia-leacutetica pode ser uma habilidade crucial de sobrevivecircncia

Uma figura da retoacuterica antiga a quem vale a pena dedicar um pouco mais de espaccedilo na nossa histoacuteria eacute Aristoacuteteles Pode-se alegar que tudo o que eacute ne-cessaacuterio agrave compreensatildeo do argumento estaacute em Aristoacuteteles O resto eacute nota de rodapeacute Embora nossa admiraccedilatildeo por esse pensador seja enorme reconhecemos a necessidade de ldquodar um descontordquo ao tratamento aristoteacutelico do argumento para os estudantes de hoje em dia Aleacutem disso achamos que um bom nuacutemero de intelectuais recentes citados neste capiacutetulo fez exatamente isto expandiram a compreensatildeo aristoteacutelica sobre o argumento deixando de lado alguns de seus

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julgamentos pontuais sobre a audiecircncia e revendo suas ideias afim de dar conta de perspectivas sobre o efeito da miacutedia na comunicaccedilatildeo e sobre o papel ativo que a linguagem desempenha na compreensatildeo

Aristoacuteteles transcende a eterna batalha entre filosofia e retoacuterica e torna a retoacuterica uma ferramenta respeitaacutevel embora de segundo niacutevel para realizar nos-sos trabalhos sobre o mundo Ele eacute o primeiro grande sistematizador da retoacuterica o primeiro a oferecer uma anaacutelise profunda de sua dinacircmica bem como sobre a taxonomia de seus elementos Evita tambeacutem o problema crocircnico do filoacutesofo de permitir a busca pela perfeiccedilatildeo ndash representada pela ciecircncia e pela filosofia ndash para esconder a busca da retoacuterica pelo que eacute uacutetil Cria um espaccedilo intelectual para a retoacuterica apontando para o reconhecimento de verdades provaacuteveis e para o reconhecimento do impacto das circunstacircncias sobre a verdade Ele deixa claro ainda que o maior poder da retoacuterica natildeo reside apenas na concepccedilatildeo dos argumentos vencedores mas tambeacutem na capacidade de ldquose enxergar os meios de persuasatildeo disponiacuteveisrdquo Um elemento importante dessa capacidade reside na habilidade de argumentar de maneira persuasiva em qualquer um dos lados de uma discussatildeo Natildeo que isso seja um ensinamento jaacute que natildeo se deve persuadir sobre o que estaacute aviltado mas para que natildeo nos escape o real estado de coisas e para que possamos ser capazes de evitar que outra pessoa use o discurso de forma injusta (Retoacuterica Livro I)

Aristoacuteteles fez tambeacutem do estudo da audiecircncia uma ciecircncia rudimentar En-quanto sua psicologia da audiecircncia atinge provavelmente um leitor contemporacircneo imperfeito e estereotipado a precursora da ldquopsicologia dos humoresrdquo ele define um caso claro e convincente sobre a importacircncia de se estabelecer uma base comum com a audiecircncia considerando suas crenccedilas e convicccedilotildees Quaisquer que sejam as limitaccedilotildees de visatildeo de Aristoacuteteles sobre a psicologia da audiecircncia seu desejo em tomar a audiecircncia como elemento relevante representa um grande avanccedilo em relaccedilatildeo agrave posiccedilatildeo de Platatildeo

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Aristoacuteteles portanto privilegiou a arte da dialeacutetica e da demonstraccedilatildeo sobre a arte da persuasatildeo e foi consideravelmente menos igualitaacuterio do que boa parte dos sofistas Ele tambeacutem suspeitava das dimensotildees emocionais e natildeo racionais da verdade Parece que ele partilhou da desconfianccedila popular da tendecircncia dos sofistas de que ldquotornar-se fraco parece ser a melhor causardquo (Retoacuterica Livro II) Nesse uacuteltimo caso ele claramente tinha em mente o ldquoequivocadordquo uso da antiloacutegica pelos sofistas que apoacutes argumentar de maneira persuasiva em qualquer um dos lados de uma discussatildeo elege o lado mais fraco porque serve a seus interesses natildeo aos da verdade Poreacutem a quem cabe julgar qual eacute o lado mais forte e o mais fraco Evidentemente qualquer argumento que frustre ou enfraqueccedila os nossos nos pareceraacute mais fraco O argumento de Aristoacuteteles nesse ponto pode ser circular ele presume conhecer o que pode apenas ser determinado ao testar os argumentos de um lado contra o outro Deixando de lado alguns pontos fracos de Aristoacuteteles no tocante aos sofistas dedicamos nossa atenccedilatildeo a algumas das razotildees pelas quais ele continua importante e ainda mais agrave adaptaccedilatildeo do seu pensamento ao ensino do argumento na atualidade

A descrenccedila aristoteacutelica sobre os meios natildeo racionais de persuasatildeo eacute certa-mente compreensiacutevel no contexto de sua eacutepoca Assim como Platatildeo ele via a filo-sofia como um meio de substituir as formas retroacutegradas de raciociacutenio herdadas dos mitos gregos sob os quais os sofistas debruccedilaram-se enquanto fonte de doxa Como defendeu Jarratt (1991) a hostilidade dos filoacutesofos antigos em relaccedilatildeo agrave re-toacuterica pode ser entendida como uma hostilidade a qualquer forma natildeo racional de persuasatildeo Sobre Platatildeo por exemplo a autora aponta que ele temia ldquo[] a trans-ferecircncia poeacutetica de informaccedilatildeo cultural crucial por conta dos efeitos hipnoacuteticos e defendeu que ela abrigava uma absorccedilatildeo acriacutetica da ideologia dominanterdquo (1991 p xxi) Embora a oposiccedilatildeo de Aristoacuteteles tenha sido mais silenciosa que a de Platatildeo e embora ele certamente reconhecesse um lugar para as emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo ndash desde que pelo menos essas emoccedilotildees sejam categorizadas de maneira apropriada e exaustiva e triadas em pares opostos com a virtude na posiccedilatildeo medial ndash parece

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que ele nunca esteve completamente confortaacutevel com a emoccedilatildeo e o espetaacuteculo duas das ferramentas primaacuterias dos bardos e sofistas e apenas hesitou a reconhecer explicitamente seu valor Ele inclui o espetaacuteculo nessas condiccedilotildees como um dos seis elementos do drama na Poeacutetica mas relega a ele a menor importacircncia entre esses elementos incluindo-o mais como trabalho do operador de palco do que como arte do poeta Aleacutem disso discorda de quem atribui mais valor ao espetaacuteculo do que ao funcionamento interno da trama na criaccedilatildeo de efeitos dramaacuteticos

Na Retoacuterica ele atribui aos autores de manuais isto eacute os sofistas a ecircnfase demasiada na retoacuterica forense ou de tribunal ldquo[] ataque verbal a prece a raiva e outras emoccedilotildees da alma natildeo estatildeo relacionadas ao fato mas satildeo apelos ao juacuterirdquo (Retoacuterica Livro I) Ao contraacuterio propotildee maior ecircnfase sobre a retoacuterica deliberativa com seus apelos mais racionais Impliacutecita agrave criacutetica de Aristoacuteteles ao espetaacuteculo e agrave emoccedilatildeo estaacute a desconfianccedila sobre as opiniotildees populares desconfianccedila potenciali-zada por sua tendecircncia nas palavras de Burke (1969 p 64) em ver a ldquo[] audiecircncia como algo puramente dadordquo ao inveacutes de em arte uma construccedilatildeo do orador De modo particular ele lembra em diversos momentos as habilidades limitadas desse tipo de audiecircncia de compreender cadeias complexas de raciociacutenio

O segredo para ajudar a superar a descrenccedila de Aristoacuteteles com o natildeo racional eacute olhar para aleacutem da tendecircncia de desprezar a opiniatildeo puacuteblica Enquanto a audiecircn-cia for associada a pessoas preconceituosas e emotivas as opiniotildees natildeo racionais na construccedilatildeo do argumento seratildeo vistas com ressalva Os estudantes precisam ser expostos a um entendimento mais complexo de audiecircncia De modo particular precisam entender que a audiecircncia como vaacuterios teoacutericos reconhecem eacute ao mesmo tempo direcionada suplicada servida e criada Por isso gostamos de dar iniacutecio a nossas aulas desde o primeiro dia ressaltando a metaacutefora do argumento como uma conversa e o processo de invenccedilatildeo colaborativa Essa noccedilatildeo da plasticidade da audiecircncia como conceito puramente intelectual que pode ser difiacutecil para os estudantes compreender eacute mais acessiacutevel no niacutevel da interaccedilatildeo entre pares

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Um segundo elemento uacutetil das ideias de Aristoacuteteles que precisa ser destacado em sala de aula diz respeito agraves situaccedilotildees de uso do argumento Parece que ele ima-gina um nuacutemero limitado de eventos e ocasiotildees em que o argumento eacute utilizado (sessotildees legislativas tribunais ocasiotildees solenes) mas o argumento atualmente estaacute muito mais difundido Pode-se ter contato com ele atraveacutes da televisatildeo do raacutedio dos jornais impressos ou on line Ele pode durar um longo periacuteodo de tempo e pode se consolidar aos poucos atraveacutes de chavotildees reacuteplicas e anuacutencios de ataque e contra-ataques Agraves vezes os argumentos na esfera puacuteblica tomam formas fluidas e expressam apoio ou criacutetica a uma posiccedilatildeo fazendo alusatildeo a outra e defendem uma alternativa sem designar a outra agrave qual ela se opotildee Os argumentos polecircmicos natildeo evoluem como evolui uma metaacutestase ou os interessados nas disputas dos talk shows nos noticiaacuterios blogs propagandas editoriais no vazamento de insinuaccedilotildees maldosas e assim por diante que oferecem novas nem sempre confiaacuteveis revela-ccedilotildees ldquofactuaisrdquo e linhas de raciociacutenio Geralmente esses tipos de argumento incluem mais de duas posiccedilotildees possiacuteveis agraves vezes mais de duas Nesse sentido considera-mos uacutetil que os estudantes conservem jornais nos quais observem controveacutersias em andamento em vez de se concentrarem estritamente em argumentos escritos descontextualizados Eacute interessante a propoacutesito observar como novas linhas de argumentaccedilatildeo que aparecem em seccedilotildees de revistas e editoriais satildeo retiradas da Internet e reproduzidas sem a identificaccedilatildeo da fonte Um dos nossos estudantes deu um exemplo recente a esse respeito Ele observou que a controveacutersia sobre a guerra no Iraque foi comparada ao Vietnatilde ndash que natildeo eacute um fato comumente evocado pelos apoiadores da guerra ndash nos argumentos de diversos conservadores proacute-guerra que apontaram o colapso quase imediato do exeacutercito Sul-Vietnamita apoacutes a saiacuteda dos americanos Como todas as analogias essa sugere possibilidades muacuteltiplas de conclusatildeo incluindo a de que mesmo se permanececircssemos no Iraque ou no Viet-natilde ou mesmo se perdecircssemos todas as vidas como as que perdemos ainda assim isso natildeo garantiria a soberania do governo iraquiano Os apoiadores da guerra de

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maneira unacircnime rejeitaram essa possibilidade ao favorecer a sugestatildeo de que a retirada das tropas seria responsaacutevel por todas as cataacutestrofes ocorridas no Iraque

Por fim a argumentaccedilatildeo de hoje em dia se comparado ao da eacutepoca de Aris-toacuteteles debruccedila-se mais fortemente sobre elementos visuais Particularmente no domiacutenio da publicidade e do marketing o apelo argumentativo pode ser puramen-te visual Em muitos domiacutenios o suporte visual provecirc um contexto criacutetico para a mensagem textual Em parte eacute evidente isso tudo tem a ver com o ambiente alta-mente midiaacutetico em que vivemos Raramente presenciamos um debate ou ouvimos um argumento de primeira matildeo Estamos muito mais inclinados a apreender as coisas atraveacutes de uma maneira que trata e filtra intencionalmente a mensagem Algueacutem pode passar um dia inteiro no Youtube e ver incontaacuteveis postagens sobre controveacutersias atuais versotildees editadas de viacutedeos de figuras puacuteblicas que apresen-tam argumentos Esses viacutedeos amadores podem ser ao mesmo tempo partidaacuterios e divertidos Outro motivo pelo qual o visual suplanta o textual na apresentaccedilatildeo do argumento atualmente tem a ver com um fenocircmeno jaacute percebido por Aristoacutete-les os argumentos que natildeo parecem ser tecircm maior chance de passarem desper-cebidos por nossos filtros cognitivos do que os apelos racionais expliacutecitos Esses argumentos podem apoiar-se substancial ou inteiramente no proacuteprio ldquoespetaacuteculordquo criticado por Aristoacuteteles no cenaacuterio no pano de fundo nos recursos visuais nos acircngulos da cacircmera e assim por diante e oferecem pouca ou nenhuma proposiccedilatildeo argumentativa A maioria dos manuais atuais sobre argumento dedica alguma atenccedilatildeo aos seus elementos visuais particularmente na propaganda impressa

Assim recomendamos fortemente a dedicaccedilatildeo de tempo da aula para discutir e aplicar algumas dessas liccedilotildees Dito isso o vocabulaacuterio especializado necessaacuterio agrave anaacutelise seacuteria dos argumentos visuais em suas diferentes modalidades eacute tatildeo grandioso que nas aulas de escrita focadas na argumentaccedilatildeo podemos esperar fazer um pouco mais que sensibilizar os estudantes para as dimensotildees visuais dos argumentos

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Em suma a retoacuterica de Aristoacuteteles permanece como uma excelente fonte para o entendimento da produccedilatildeo de textos e discursos persuasivos embora ofereccedila pouca ajuda para compreender como os eventos e os comportamentos natildeo pro-posicionais funcionam de forma persuasiva Aristoacuteteles privilegia os elementos racionais ocasionais e textuais da argumentaccedilatildeo e certamente esses elementos continuam importantes para qualquer discussatildeo contemporacircnea sobre persuasatildeo ndash em detrimento das dimensotildees visuais midiaacuteticas e natildeo racionais Se considerar-mos o assunto a partir da proacutepria terminologia de Aristoacuteteles (Retoacuterica Livro II) o equiliacutebrio entre os trecircs modos ldquoartiacutesticosrdquo de persuasatildeo (em oposiccedilatildeo aos modos natildeo artiacutesticos como a tortura) mudou radicalmente nos uacuteltimos anos do logos para o ethos e para o pathos Na apresentaccedilatildeo aristoteacutelica sobre a forma como interagem esses modos o ethos ou o caraacuteter do orador ndash a situaccedilatildeo retoacuterica eacute invariavelmente oral para Aristoacuteteles ndash eacute empregado para a elaboraccedilatildeo das observaccedilotildees da forma mais clara possiacutevel e desse modo chamar a atenccedilatildeo da audiecircncia Ao despertar as emoccedilotildees da audiecircncia (pathos) o orador possibilita a accedilatildeo ou uma boa recepccedilatildeo das decisotildees dessa audiecircncia O logos ou o argumento loacutegico eacute por sua vez empre-gado para tornar provaacutevel a causa do orador e as alternativas improvaacuteveis Ethos e pathos cumprem aqui uma funccedilatildeo importante mas suplementar nesse esquema

O cerne da questatildeo eacute a concepccedilatildeo da estrutura argumentativa e a seleccedilatildeo das razotildees e evidecircncias que iratildeo ter maior peso para a audiecircncia O logos atua de ma-neira central na retoacuterica de Aristoacuteteles assim como o enredo na sua poeacutetica por razotildees similares Eacute a alma da peccedila a forccedila-motriz do argumento No entanto como hoje em dia o ethos pode ser derivado da celebridade assim como da experiecircncia ou da virtuosidade linguiacutestica e como o pathos pode ser evocado por uma muacutesica ou uma imagem forte a persuasatildeo pode ser alcanccedilada com muito menos esforccedilo pelo logos como nos tempos de Aristoacuteteles Assim os estudantes precisam estar mais atentos a essas dimensotildees natildeo racionais do argumento

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o problema do engessamento da retoacuteriCa

A eterna batalha entre Retoacuterica e Filosofia apresenta implicaccedilotildees importantes para o nosso segundo tema da histoacuteria da Retoacuterica a transformaccedilatildeo recorrente dos poderes imaginativos da Retoacuterica em foacutermulas e sistemas riacutegidos A questatildeo colocada pelo engessamento contiacutenuo da Retoacuterica eacute a seguinte em que medida a Retoacuterica pode ser metoacutedica sem se tornar inerte Burke (1984 p 225) considera essa questatildeo agrave luz da ldquoburocratizaccedilatildeo da imaginaccedilatildeordquo entendida como um ldquopro-cesso histoacuterico baacutesicordquo que pode apenas ser desacelerado mas nunca paralisado ou superado Esse processo emerge quando uma das possibilidades geradas por um princiacutepio ou insight eacute colocada de lado em detrimento de outras Eacute evidente que para qualquer possibilidade se tornar factual outras devem ser ignoradas ou me-nos exploradas Todos passamos por experiecircncias desse tipo Quando precisamos escolher uma pessoa com quem iremos ficar ou o que fazer isso nos forccedila a colocar de lado outras escolhas Se sonhos devem tornar-se realidade se as promessas dos poliacuteticos devem tornar-se poliacuteticas puacuteblicas se os projetos devem tornar-se insti-tuiccedilatildeo ou produtos se crenccedilas filosoacuteficas e religiosas devem tornar-se leis outras possibilidades devem ser superadas ou abandonadas Assim como toda maneira de ver eacute tambeacutem uma maneira de natildeo ver toda maneira de atualizar uma perspectiva eacute tambeacutem uma maneira de natildeo atualizar outra

No entanto por mais inevitaacutevel que seja esse processo ele pode com o tempo apresentar implicaccedilotildees negativas Ideias originais tornam-se gradualmente em ortodoxia e os sistemas que elas nos oferecem engendram hierarquias que definem e datildeo prioridades a elementos nela presentes de acordo com o princiacutepio originaacuterio

Eventualmente a hierarquia muitas vezes problemaacutetica torna-se um peso burocraacutetico dedicada mais agrave autoperpetuaccedilatildeo do que agrave realizaccedilatildeo do princiacutepio de origem e agraves possibilidades sobre as quais a estrutura foi fundada Os que estatildeo no topo da burocracia reivindicam a ortodoxia como a posse de um tiacutetulo que lhes eacute proacuteprio e oferecem-se como personificaccedilatildeo do princiacutepio subordinante a tal ponto

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que ldquoos subprodutos natildeo intencionaisrdquo (BURKE 1984 p 226) de suas accedilotildees sobre-potildeem-se agraves gloriosas possibilidades que deram suporte ao princiacutepio originaacuterio Um exemplo claacutessico de burocratizaccedilatildeo diz respeito agrave inversatildeo da doutrina puritana da eleiccedilatildeo cujos sinais satildeo convertidos em causas e simultaneamente os ldquoeleitosrdquo quem quer que seja a empregam para herdar seus benefiacutecios tidos como presentes divinos enquanto o fracasso dos natildeo eleitos eacute atribuiacutedo agrave falta de piedade divina Um programa religioso destinado a encorajar a humildade e a abnegaccedilatildeo eacute assim transformado em apologia do status quo e um exerciacutecio insiacutepido de melhoria de posiccedilatildeo social A loacutegica baacutesica por traacutes dessa enganaccedilatildeo de trezentos anos ainda pode ser observada em argumentos presentes no discurso poliacutetico americano atual Como aponta Burke (1984) todos os sistemas designados para transformar ideais em accedilatildeo eventualmente atingem um ponto de rendimento decrescente quando a manutenccedilatildeo do status dentro do sistema torna-se a razatildeo de ser do proacuteprio sistema

Infelizmente as observaccedilotildees de Burke (1984) sobre a burocratizaccedilatildeo tornam--se verdade em todas as tentativas de sistematizaccedilatildeo ateacute mesmo em tentativas de sistematizar o entendimento retoacuterico Adotar uma metodologia da invenccedilatildeo significa ldquo[] que os desenvolvimentos satildeo treinados pela rotina Ciecircncia conhe-cimento eacute a burocratizaccedilatildeo do saberrdquo (BURKE 1984 p 228) A rotina para ser uacutetil deve apresentar um caraacuteter axiomaacutetico Ou nas palavras simples de Burke a rotina torna-se o ldquocaminho da roccedilardquo que foi ldquoconservado natildeo porque foi criticado avaliado e julgado como o melhor processo possiacutevel mas simplesmente porque nunca foi questionadordquo (BURKE 1984 p 228) Nem mesmo a metodologia de Burke estaacute excluiacuteda dessa criacutetica

Nossa foacutermula ldquoa perspectiva pela incongruecircnciardquo eacute uma ldquometodologia da invenccedilatildeordquo paralela em uma esfera puramente conceitual Ela buro-cratiza um recurso confinado a uma escolha de alguns de nossos pen-sadores ldquoreaisrdquo Ela torna a perspectiva barata e faacutecil (BURKE 1984 p 228-29)

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A construccedilatildeo do argumento

Embora esse movimento acarrete alguma deterioraccedilatildeo de ideias produzidas pelo meacutetodo tambeacutem resulta em ldquo[] um desenvolvimento correspondente na qualidade da sofisticaccedilatildeo popularrdquo (BURKE 1984 p 229) que para Burke (1984) justifica a mudanccedila Talvez o exemplo mais conhecido da metodologia desse au-tor em sala de aula de escrita eacute a difundida abordagem dramaacutetica na forma de pentaacutegono como um dispositivo heuriacutestico accedilatildeoato agente agecircncia propoacutesito cenaacuterio e agraves vezes atitude De nosso ponto de vista muitas tentativas de adaptar a abordagem dramaacutetica de Burke (1984) agraves aulas de escrita resultam em um mal uso das ideias e perda de conexatildeo com o contexto mais amplo no qual ela se ori-gina Dissociado do conceito de ratio (a relaccedilatildeo entre os conceitos do pentaacutegono) o sistema proposto por Burke funciona de maneira similar agraves perguntas tiacutepicas do lead no campo do jornalismo O que Quem Quando Onde Por quecirc e agraves ve-zes Como Poreacutem no final das contas cada professor deve pesar os ganhos com a compreensatildeo em oposiccedilatildeo agraves perdas com ldquosabedoriardquo na adoccedilatildeo de qualquer metodologia em sala de aula

Esse prefaacutecio estendido das ideias de Burke sobre o engessamento da retoacuterica tem por funccedilatildeo colocar o assunto em perspectiva jaacute que ele estaacute ausente quando o tema do meacutetodo eacute levantado no contexto do ensino do argumento No campo da escrita o processo pelo qual os insights satildeo convertidos em rotina e as heuriacutesticas em foacutermula eacute tipicamente visto como injustificado desnecessaacuterio e negativo A importacircncia de democratizar um recurso eacute consequentemente omitida e a mera presenccedila de uma rotina em um sistema levaraacute alguns a demonizaacute-la enquanto uma ldquocorrente tradicionalrdquo Para ser justo em nossa histoacuteria haacute uma abundacircncia de casos nos quais pedagogias desenhadas para ajudar iniciantes a dominar a arte da retoacuterica metamorfoseiam-se em sistemas que sufocam a imaginaccedilatildeo das pessoas deformam a prosa e afastam os assuntos que nos interessam

No entanto se natildeo aprendermos a tolerar um certo elemento de burocratiza-ccedilatildeo em nossas aulas corremos o risco de tornar a retoacuterica em uma arte elitista (e

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A construccedilatildeo do argumento

essencialmente incompreensiacutevel) dependente em grande parte do olhar aguccedilado de cada indiviacuteduo para a representaccedilatildeo ndash o que no seacuteculo XVII seria referido como ldquopreferecircnciardquo ndash ao inveacutes de uma maneira racional social e replicaacutevel de construir sentido O problema do engessamento ao cabo levanta questotildees fundamentais para o ensino do argumento incluindo a mais fundamental de todas o que de fato ensinamos quando ensinamos estudantes a produzir argumentos

Algumas evidecircncias desse engessamento jaacute aparecem nas referecircncias depre-ciativas aos primeiros manuais de retoacuterica precursores dos atuais livros didaacuteticos Apesar de parte dessa criacutetica ocorrer em funccedilatildeo do desdeacutem geral dos filoacutesofos pela retoacuterica uma parte dela parece ter meacuterito Depois de Aristoacuteteles de acordo com Kennedy (1999) a urgecircncia em codificar e sistematizar a Retoacuterica cresceu junto ao decliacutenio intelectual que atingiu o mundo antigo

A aceitaccedilatildeo de regras para a arte de respostas certas e erradas signifi-cou o iniacutecio de um processo de engessamento que sufocou toda a criati-vidade antiga A praacutetica dentro das artes foi controlada mais e mais por regras restritas O artista era cada vez mais um virtuoso exultante no jogo e nas regras O uacutenico lugar para o crescimento estava dentro das proacuteprias regras de modo que podemos encontrar a execuccedilatildeo dos temas desenhada nos primeiros manuais [] O desenvolvimento da retoacuterica em um sistema fechado foi preluacutedio para o conceito de vida e pensamen-to enquanto sistemas fechados (KENNEDY 1999 p 124)

Enquanto Aristoacuteteles elaborava os elementos da Retoacuterica explicava sua di-nacircmica e a situava no contexto de outras abordagens para o entendimento seus sucessores geralmente se contentavam com a enumeraccedilatildeo de elementos ignoran-do as preocupaccedilotildees mais importantes Por consequecircncia geraram terminologias elaboradas e cada vez mais distantes da linguagem cotidiana pouco aplicaacuteveis agraves preocupaccedilotildees praacuteticas enfatizadas pelos primeiros retoacutericos Tudo o que era necessaacuterio saber para argumentar com ecircxito eram as regras do argumento e as

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partes de um discurso persuasivo Cada caso era previsto pelas regras e catego-rias da retoacuterica enquanto as ldquocircunstacircncias mitigadas da vidardquo (KENNEDY 1999 p 267) eram ignoradas em prol do encaixe dos casos nas devidas categorias e do encontrar uma soluccedilatildeo ditada pela categoria Assim quando a Retoacuterica abandona as circunstacircncias mitigadas e particulares de uma situaccedilatildeo deixa de ser Retoacuterica em qualquer sentido vaacutelido

Em outras palavras esse foco que a Retoacuterica atribui agraves regras se daacute em funccedilatildeo da atenccedilatildeo agrave unicidade de cada situaccedilatildeo retoacuterica uma preocupaccedilatildeo que os pri-meiros gregos chamavam de kairos (oportunidade) O kairos era particularmente importante porque servia como ferramenta para resolver antinomias aparentes geradas pela abordagem antiloacutegica de compreensatildeo dos sofistas A propoacutesito da preocupaccedilatildeo de Goacutergias com o kairos Kennedy (1999 p 66) assinala ldquo[] qualquer problema posto envolve escolha ou compromisso entre duas antiacuteteses de modo que a consideraccedilatildeo do kairos isto eacute do tempo lugar e circunstacircncia [] pode resolver o dilema e levar agrave escolha da verdade relativa e agrave accedilatildeordquo Quando as leis e princiacute-pios (ou regras dos retoacutericos) se contradizem a loacutegica e os sistemas engessados deixam de ajudar a soluccedilatildeo do impasse As hierarquias cujos valores satildeo dados a priori natildeo poderatildeo ajudar a decidir qual regra legiacutetima entre duas ou mais eacute mais apropriada para um conjunto particular de circunstacircncias A menos que se possa tomar tais decisotildees natildeo se pode agir e a Retoacuterica torna-se uma atividade cerimo-nial virtualmente inuacutetil na esfera puacuteblica exceto enquanto forma degradada de entretenimento Algo que aprendemos a partir de praacuteticas derivadas das vaacuterias versotildees histoacutericas do problema do engessamento diz respeito ao entendimento de que a Retoacuterica eacute a ldquociecircncia das instacircncias particularesrdquo e de que ao cabo os meacutetodos devem acomodar as circunstacircncias

Nossa tendecircncia em esquecer a centralidade da circunstacircncia para o entendi-mento na Retoacuterica eacute literalmente visiacutevel em aulas de escrita haacute seacuteculos Qualquer um que tenha ensinado escrita na faculdade por mais de vinte anos iraacute reconhecer

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A construccedilatildeo do argumento

na pedagogia dos modelos tradicionais de escrita um resquiacutecio do ldquosistema fechadordquo da Retoacuterica que prevalece haacute mais de dois mil anos O argumento recebeu pouca atenccedilatildeo nesses cursos em grande parte porque a partir do momento em que se atribui as questotildees sobre letramento criacutetico a outros campos restou pouco material interessante para falar sobre persuasatildeo exceto dizer que a estrutura organiza-cional composta por cinco eacute a essecircncia de um bom argumento Os estudantes natildeo eram estimulados a trabalhar uns com os outros porque os modelos e estruturas dos cursos eram visuais e portanto prontamente disponiacuteveis para reproduccedilatildeo Aleacutem disso os aspectos inferiacuteveis da escrita da conversaccedilatildeo e todos os processos precedentes ao produto eram abolidos e o processo de criaccedilatildeo ficava reduzido a exerciacutecios de estruturaccedilatildeo de sentenccedilas

Para os professores de hoje a liccedilatildeo a ser aprendida a partir dessa batalha centenaacuteria tem duas faces De um lado devemos tomar grande cuidado em nossas aulas para salvaguardar contra a adoccedilatildeo ou o desenvolvimento de meacutetodos de en-sino que transformam a construccedilatildeo do argumento em processo muito ldquosimples e raacutepidordquo reduzindo-a a algo um pouco mais que o exerciacutecio de ldquoespremer e encaixarrdquo De outro lado devemos encontrar maneiras de materializar e tornar disponiacuteveis aos iniciantes as ferramentas para produzir insights e sentidos Se falharmos de um lado nossa disciplina continuaraacute como um formalismo inuacutetil se falharmos do outro nossos estudantes natildeo teratildeo acesso ao mais poderoso e menos misterioso ldquoinstrumento de sobrevivecircnciardquo disponiacutevel agraves pessoas comuns

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A construccedilatildeo do argumento

figuras-Chave da teoria moderna da argumentaccedilatildeo

Introduccedilatildeo a Kenneth Burke

A influecircncia de Kenneth Burke em nossa abordagem sobre o ensino do ar-gumento como jaacute deve estar claro eacute enorme Valemo-nos bastante de sua termi-nologia e de seu vocabulaacuterio agraves vezes peculiar para articular as ideias centrais em torno de teorias retoacutericas e pedagoacutegicas Burke eacute a lente que nos permite uma visatildeo tanto estreita quanto ampla do empreendimento retoacuterico e do papel da argumentaccedilatildeo nesse empreendimento Ele eacute podemos dizer o uacutenico desde Aris-toacuteteles a circunscrever o escopo da teoria retoacuterica dentro do contexto mais amplo das preocupaccedilotildees filosoacuteficas Ao mesmo tempo tambeacutem podemos dizer ele natildeo eacute um ldquosistematizadorrdquo filosoacutefico dada a inabalaacutevel atenccedilatildeo agrave relaccedilatildeo entre o geral e o particular a concepccedilatildeo e a percepccedilatildeo a cena e o ato

Essa eacute basicamente a maneira como temos usado suas ideias ateacute o momen-to Noacutes utilizamos o conceito de ldquoautointerferecircnciardquo para esboccedilar uma escala de praacuteticas argumentativas em curso focadas na audiecircncia de anunciantes e publi-citaacuterios centrados nos atos e de conselheiros que visam seus proacuteprios interesses Admitindo que no mundo haacute sempre a busca de vantagens em cada argumento a visatildeo geral de Burke sobre as praacuteticas argumentativas daacute menos importacircncia a conquista da audiecircncia do que a busca por verdades mais soacutelidas capazes de en-globar as posiccedilotildees inicialmente antagocircnicas e a guerra ldquopurificadardquo na dialeacutetica Reiteramos a ideia de que uma maneira de ver eacute tambeacutem uma maneira de natildeo ver e de que nossos instrumentos para ver satildeo terministic screens (enquadramento de termos) filtros linguiacutesticos que tornam a percepccedilatildeo e a avaliaccedilatildeo simultacircneas Eacute esse foco na linguagem enquanto instrumento do conhecimento que nos leva a colocaacute-lo ao lado de filoacutesofos chamados de ldquoedificantesrdquo por Rorty (1979 p 12)

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ou seja aqueles cujo foco eacute ldquo[] ajudar os leitores ou a sociedade como um todo a se livrar de vocabulaacuterios e atitudes ultrapassadas ao inveacutes de prover uma base para as intuiccedilotildees e costumes do presenterdquo

A principal questatildeo colocada por esses filoacutesofos edificantes eacute a de saber como evitar que nos tornemos viacutetimas da proacutepria linguagem da qual precisamos para ter acesso ao mundo Ou como o Lord de Burke lembra ao diabo no diaacutelogo con-clusivo de The Rhetoric of Religion (A Retoacuterica da Religiatildeo) ldquoOnde as pessoas satildeo implicadas qualquer terminologia eacute suspeita na medida em que ela natildeo permite a criacutetica dela mesmardquo (BURKE 1970 p 303) Para Burke (1970) o segredo para atingir esse tipo de autoconsciecircncia autocriacutetica eacute a sua abordagem dramaacutetica da compreensatildeo por ele alcunhada nos primeiros trabalhos como ldquoperspectiva por incongruecircnciardquo Hans Blumenberg (1987 p 439) refere-se a algo muito parecido com a perspectiva por incongruecircncia quando cita ldquo[] o procedimento de entender uma coisa por meio de outrardquo

Para Burke (1970) entender algo natildeo significa entender enquanto algo um membro de uma categoria mas significa ver uma coisa nos termos de outra Disso decorrem os ratios do seu meacutetodo chamado dramatismo De acordo com o drama-tismo haacute cinco (eventualmente seis) elementos que contribuem para um entendi-mento bem definido das motivaccedilotildees humanas ato cena agente meios propoacutesito e por uacuteltimo atitude (que eacute um ato incipiente) Ao analisar um discurso para entender por que algo foi feito ou por que deveria ser feito considerar-se idealmente todas as combinaccedilotildees possiacuteveis dos elementos ato-cena cena-ato agente-cena e assim por diante A relaccedilatildeo entre quaisquer dois elementos eacute expressa como um ratio Em qualquer ratio o segundo termo funciona como um tipo de parte essencial provi-soacuteria para o par Assim por exemplo em um ratio ato-cena o ato eacute entendido ldquonos termos dardquo cena que de fato eacute a lente atraveacutes da qual o ato eacute compreendido Vaacuterias escolas filosoacuteficas se caracterizam pela tendecircncia de privilegiar um dos termos continuamente enxergando todos os outros elementos ldquonos termosrdquo do elemento

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privilegiado Assim o naturalismo privilegia a cena de modo que os atos humanos satildeo entendidos como consequecircncias das condiccedilotildees cecircnicas

O ldquoparadoxo da substacircnciardquo proposto por Burke (1966 p 23) segundo o qual uma palavra ldquo[] usada para designar o que algo eacute deriva da palavra para designar o que algo natildeo eacuterdquo nos distancia da Lei da Identidade (A eacute A) e nos aproxima de um modo mais metafoacuterico de entendimento Por fim haacute ainda a noccedilatildeo de ldquoanedota representativardquo ldquo[] preocupaccedilatildeo tatildeo dramaacutetica que pode ser definida como abor-dagem dramaacutetica do dramatismordquo (BURKE 1966 p 60) atraveacutes da qual o todo eacute representado por uma de suas partes Para entender qualquer coisa devemos entendecirc-la em contexto agrave luz de assuntos extriacutensecos e de termos apropriados que natildeo satildeo idecircnticos agrave essa coisa mas estatildeo identificados com ela A relaccedilatildeo elementar representada na linguagem eacute portanto metafoacuterica (categoria Y eacute melhor entendida atraveacutes da Parte X) ao inveacutes de categoacuterica (tudo que precisamos saber eacute que Parte X eacutepertence agrave Categoria Y)

Quando nossas terminologias natildeo nos permitem fazer criacuteticas progressivas delas mesmas quando desistimos de buscar a perspectiva por incongruecircncia tornamo-nos presas entre outras coisas da tendecircncia jaacute discutida anteriormen-te de burocratizar a imaginaccedilatildeo Embora a burocratizaccedilatildeo da imaginaccedilatildeo seja um processo necessaacuterio em Burke nossa capacidade de autocriacutetica nos permite evitaacute-la e manter viva o maior tempo possiacutevel nossa consciecircncia imaginativa dos princiacutepios originais que definem a boa vida e nos animam a buscar realizaacute-la Se tudo isso parece distante do ensino retornemos aos ensaios de Fish e Leo discu-tidos no primeiro capiacutetulo Nossa criacutetica agrave posiccedilatildeo de Leo e a preferecircncia pela de Fish podem ser diretamente traccediladas a partir das posiccedilotildees tomadas em direccedilatildeo agrave autocriacutetica progressiva A rejeiccedilatildeo de Leo ao ldquomulticulturalismordquo como uma frente ao antiamericanismo eacute parte da rejeiccedilatildeo geral agraves tentativas de entender os eventos do 11 de setembro nos termos de ldquocausas-raizrdquo ou ldquoda necessidade de entender o terrorismo e ver seus atos em contextordquo Qualquer alternativa agrave visatildeo do 11 de se-

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tembro ldquonos termosrdquo de outra coisa ameaccedila a visatildeo de mundo de Leo que passa a ser desconsiderada Fish por outro lado vecirc que a tarefa diante de noacutes ultrapassa os vaacuterios ldquofalsos universaisrdquo que nos impedem de ver o mundo que eles nomeiam e de nos ldquocolocar no lugar do adversaacuteriordquo Apenas com essa maneira de desconstruir uma visatildeo de mundo eacute possiacutevel manter-se atento aos princiacutepios fundantes dessa visatildeo ldquoos valores particulares vividos que nos unem e satildeo assumidos pelas insti-tuiccedilotildees que valorizamos e desejamos defenderrdquo O argumento de Fish contra Leo em suma ilustra muitos dos princiacutepios baacutesicos do argumento que Burke delineou tatildeo eloquentemente em sua longa carreira

o realismo de burke

Burke (1969) oferece talvez a caracterizaccedilatildeo mais econocircmica de sua aborda-gem da retoacuterica na conclusatildeo da seccedilatildeo de abertura do livro A Rhetoric of Motives (The Range of Rhetoric ndash O alcance da retoacuterica) Para ele a Retoacuterica estaacute ldquoarraigada a uma funccedilatildeo proacutepria da linguagem uma funccedilatildeo totalmente realista e em contiacutenua renovaccedilatildeo o uso da linguagem como meio simboacutelico de induzir a cooperaccedilatildeo entre seres que por natureza respondem aos siacutembolosrdquo (BURKE 1969 p 43) O ldquorealismordquo de Burke refere-se aqui ao realismo filosoacutefico entendido agrave luz do debate medieval entre nominalistas e realistas O mais destacado proponente do nominalismo nesse debate Willian de Occam Segundo a proposiccedilatildeo hoje conhecida como Navalha de Occam as ldquoentidades natildeo devem ser multiplicadas aleacutem do necessaacuteriordquo (BURKE 1966 p 324) O realismo de Burke enquanto isso requer igualmente que ldquo[] en-tidades natildeo devem ser reduzidas aleacutem do necessaacuteriordquo No tocante agrave desnecessaacuteria multiplicaccedilatildeo de entidades o alvo primaacuterio de Occam eacute a linguagem empregada para aleacutem da nomeaccedilatildeo do assunto imediato Todos os termos geneacutericos e abstraccedilotildees satildeo responsaacuteveis por nomear toda sorte de entidades supeacuterfluas Esses termos satildeo vistos pelos nominalistas como ldquoconveniecircncias da linguagemrdquo e natildeo ldquosubstacircncias reaisrdquo (BURKE 1966 p 248) No entanto o paradoxo da substacircncia definido por

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Burke sugere que natildeo se pode usar a linguagem simplesmente para nomear um assunto imediato Toda palavra que designa o que algo eacute necessariamente designa o que algo natildeo eacute Consequentemente a conotaccedilatildeo de uma palavra eacute tatildeo crucial para Burke quanto o que ela denota

De fato natildeo temos acesso ao que eacute individual exceto atraveacutes do que eacute simboacutelico ou categoacuterico ldquo[] homem qua homem eacute um usuaacuterio de siacutembolo A esse respeito qualquer aspecto de sua lsquorealidadersquo eacute possiacutevel ser visto atraveacutes de uma neacutevoa de siacutembolos (BURKE 1969 p 136) Enquanto animais usuaacuterios de siacutembolos os huma-nos experienciam ldquo[] diferenccedilas entre esse fato e o que constitui uma diferenccedila entre um tipo de ser e outrordquo (BURKE 1969 p282) Essa tensatildeo entre o particular e o geral entre a funccedilatildeo denotativa e a conotativa da linguagem precisamente nos leva agrave ressonacircncia simboacutelica e nos permite ver uma coisa ldquonos termosrdquo de outra Sem essa ressonacircncia e a capacidade de ldquomultiplicar entidadesrdquo aleacutem do aqui e agora seria impossiacutevel a linguagem induzir agrave cooperaccedilatildeo entre indiviacuteduos marcados simultaneamente por similaridades e diferenccedilas

Outra vez essa discussatildeo sobre o realismo filosoacutefico de Burke pode parecer distante do ensino Certamente natildeo eacute Tomemos por exemplo a noccedilatildeo de politi-camente correto Como termo ostensivamente neutro tem sido manejado recen-temente de maneira mais eficaz pelos conservadores no debate puacuteblico nacional Liberais reticentes assim argumenta-se satildeo incapazes de ldquodizer como as coisas satildeordquo Estatildeo sempre a inventar expressotildees eufemiacutesticas para encobrir suas vaacuterias ldquoagendasrdquo Em tom rude os saacutebios conservadores ldquode fala simplesrdquo passam a atingir o verbalismo pretensioso dos liberais e a substituiacute-lo por uma linguagem ldquoclara e simples como a verdaderdquo transformando ldquoaccedilotildees afirmativasrdquo em ldquodiscriminaccedilatildeo reversardquo e assim por diante (o comediante Steven Colbert do programa ldquoColbert Reportrdquo faz paroacutedias sobre a franqueza do comentarista conservador Bill OrsquoReilly no quadro ldquoPalavra do diardquo

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Nesse quadro as palavras e expressotildees aparentemente inofensivas satildeo desvir-tuadas para aleacutem do reconhecimento de Colbert enquanto um contraponto textual acompanhada silenciosamente os esforccedilos de Colbert para defini-las e expotildee suas proacuteprias intenccedilotildees) Essas pessoas estatildeo operando na tradiccedilatildeo de Occam ansiosos em reduzir a multiplicaccedilatildeo desnecessaacuteria de sentidos e tambeacutem na tradiccedilatildeo mais recente de Jeremy Bentham que se dedicou a desarraigar a insidiosa ldquopergunta apelativardquo (BURKE 1969 p 92) que nomeia mais de uma coisa colocando o assunto sob uma luz ldquoelogiosardquo ou ldquopejorativardquo e prejudicando-o da mesma maneira que os arrazoados circulares antecipam a premissa principal da conclusatildeo

Subjacente ao uso politicamente correto e ao pensamento de Occam e Bentham estaacute a crenccedila em uma linguagem neutra e puramente denotativa que nomeia a rea-lidade ldquoobjetivardquo e que de fato diz como as coisas satildeo sem apontar o que elas natildeo satildeo O que a definiccedilatildeo de Retoacuterica proposta por Burke deixa imediatamente claro eacute a inexistecircncia dessa linguagem7 Toda palavra porta indiacutecios de sentidos ldquopositivosrdquo e ldquonegativosrdquo e para se entender um termo deve-se entendecirc-lo em uso dentro de um contexto e apropriadamente atualizado Como diz Burke ateacute o vocabulaacuterio utilitaacuterio de Bentham garante a certos termos nuanccedilas ldquopositivasrdquo independente do uso escapando ao mito da linguagem neutra que ele proacuteprio promovia

O realismo de Burke natildeo eacute apenas filosoacutefico mas tambeacutem um realismo cotidia-no Para todo poder atribuiacutedo agrave linguagem ele tambeacutem reconhece o consideraacutevel poder de veto que a realidade extralinguiacutestica possui sobre as palavras Qualquer que seja nossa visatildeo e quatildeo persuasivo seja nosso vocabulaacuterio a falha do mundo material em ratificar nossos argumentos eacute fatal para Burke A esse respeito o rea-lismo linguiacutestico de Burke deve ser distinguido de solipsismo e de visotildees maacutegicas

7 Burke (1969 p 183-4) assinala uma ldquoordem positiva dos termosrdquo capaz de nomear as coisas no aqui e agora e recomenda manter-se nessa ordem sempre que possiacutevel Mas aleacutem de terminologias altamente convencionalizadas como nas ciecircncias que evitam a linguagem natural e estipula termos nativos para o discurso as oportunidades para limitarmo-nos na ordem positiva satildeo extremamente limitadas

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sobre a linguagem O autor explicitamente rejeita a crenccedila de que o ldquo[] universo eacute mero produto de nossas interpretaccedilotildeesrdquo precisamente porque ldquo[] as interpre-taccedilotildees em si mesmas devem ser alteradas enquanto o universo apresenta a elas vaacuterios tipos de recorrecircnciardquo (BURKE 1984 p 256) Enquanto a linguagem nossa ldquoneacutevoa de siacutembolosrdquo recobre tudo o que positivamente sabemos o universo deteacutem o poder de negar e reformar nossas interpretaccedilotildees De fato para Burke (1966) a diferenccedila primaacuteria entre a falsa e a verdadeira magia da retoacuterica eacute o fato de que os praticantes da falsa usam os siacutembolos para induzir movimentos na natureza enquanto os praticantes da verdadeira usam os siacutembolos para induzir atos coope-rativos entre as pessoas O julgamento sobre a adequaccedilatildeo de instituiccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas para Burke natildeo estaacute baseado em um padratildeo ideal e fixo mas na sua capacidade de atender agraves demandas materiais das pessoas a quem servem De acordo com a meacutetrica realista de Burke tais instituiccedilotildees apresentam um ldquo[] valor relativo pragmaticamente dependente no sentido darwinista da capacidade de dar conta de problemas de produccedilatildeo distribuiccedilatildeo e consumo atinentes agraves condiccedilotildees temporais e espaciais peculiaresrdquo (BURKE 1969 p 279)

Como apontamos em nossa discussatildeo sobre a ldquoburocratizaccedilatildeo da imaginaccedilatildeordquo o papel social mais importante da Retoacuterica eacute resistir agrave conversatildeo de possibilidades imaginativas que transformam as instituiccedilotildees em dogmas resistentes agrave realizaccedilatildeo dessas possibilidades Enquanto ideoacutelogos fazem vista grossa agraves falhas de seus programas de dar conta de problemas de produccedilatildeo distribuiccedilatildeo e consumo no aqui e agora a tarefa da Retoacuterica eacute adaptar o programa agrave situaccedilatildeo debruccedilando-se sobre os princiacutepios originadores para delinear novas estrateacutegias

Por fim o realismo de Burke natildeo eacute apenas um realismo filosoacutefico ou atrelado ao senso comum eacute tambeacutem um realismo no sentido que eacute agraves vezes empregado em ciacuterculos de poliacuteticas internacionais Eacute um tipo de realismo que nos encoraja a selecionar e escolher nossas lutas pesando as consequecircncias de nossas escolhas umas em relaccedilatildeo agraves outras em vez dos nossos princiacutepios independente de para onde nos levem Eacute um realismo que reconhece escolhas duras difiacuteceis Eacute esse aspecto do

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seu realismo que o leva a valorizar algueacutem como Willian James considerado um ldquomelioristardquo (BURKE 1984 p 3) algueacutem famoso por escolher em aceitar o universo ao inveacutes de contestar e que prefere acreditar em bases bastante pragmaacuteticas cuja feacute ldquoo permitiu ter o senso de mover-se em direccedilatildeo a algo melhorrdquo (BURKE 1984 p 5) Com frequecircncia o expresso ceticismo de Burke em relaccedilatildeo ao perfeccionismo eacute a contraparte de sua admiraccedilatildeo pelo meliorismo Da mesma forma sua destituiccedilatildeo como um ldquoperfeccionismo reversordquo (BURKE 1966 p 100) uma criacutetica bastante dura que extirpa as bases de uma posiccedilatildeo tomada eacute sintomaacutetica de um realismo balanceado que sempre encontra elementos das pessoas e sistemas que ele critica em sua proacutepria pessoa e crenccedilas Natildeo haacute oposiccedilotildees simples no realismo de Burke natildeo haacute certos ou errados absolutos natildeo haacute diferenccedilas categoacutericas Toda substacircncia conteacutem elementos de substacircncias extriacutensecas a ela mesma Em todos os pontos dos vaacuterios contiacutenuos que Burke supotildee residem elementos de ambos os extremos do contiacutenuo Burke (1969 p 23) aceita o fato de que vivemos em um mundo poacutes--Babel e que por consequecircncia a Retoacuterica deve perseguir seus temas ldquo[] dentro da luacutegubre regiatildeo da maliacutecia e da mentirardquo Dado que as soluccedilotildees perfeitas nunca estatildeo disponiacuteveis

[] a pessoa escrupulosa nunca abandonaraacute um propoacutesito que ela consi-dera absolutamente bom Poreacutem iraacute escolher os meios mais ideias dis-poniacuteveis na situaccedilatildeo Assim como na retoacuterica ideal de Aristoacuteteles ela iraacute considerar uma gama de meios mas escolheraacute o melhor permitido por um conjunto particular de circunstacircncias (BURKE 1969 p 155)

Todos que ensinam argumentaccedilatildeo deveriam saber um pouco sobre Burke no miacutenimo para ajudar a entender o lugar da argumentaccedilatildeo e da retoacuterica na or-dem mais ampla dos empreendimentos intelectuais e para lembrar o que entra em jogo para ensinar bem Ele nos oferece tanto uma teoria da Retoacuterica como um ldquocaminhordquo para se fazer retoacuterica como haacutebitos mentais que nos ajudam a evitar

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modos simplistas de pensar e modos agressivos de argumentar Brummett (1984 p 103) em ensaio fortemente apoiado sobre o pensamento de Burke sumariza com precisatildeo nossa tarefa

Se levarmos em consideraccedilatildeo as pessoas comuns (estudantes) como au-diecircncia primaacuteria da teoria retoacuterica e suas criacuteticas entatildeo o objetivo final e a justificativa satildeo pedagoacutegicos ensinar as pessoas a experienciar seus proacuteprios ambientes retoacutericos de maneira mais ricardquo

Certamente tambeacutem ensinamos a nossos estudantes a ldquotirar vantagemrdquo dos seus proacuteprios argumentos e que sempre haacute um elemento vantajoso para buscar o mais claro dos argumentos No entanto ao desafiaacute-los constantemente a submeter sua terminologia ndash ou ideologia se preferirmos ndash a ldquouma criacutetica progressiva de sirdquo estamos desafiando-os a reconsiderar sobre o que e para que eles deveriam buscar A Retoacuterica lembra-nos Burke (1984 p 102) eacute um domiacutenio no qual os ldquotestes de sucesso existem para serem testadosrdquo Ao cabo quando alargamos a capacidade dos estudantes de encontrar os modos disponiacuteveis de persuasatildeo em uma dada situaccedilatildeo e os encorajamos a escolher o meio mais claro estamos ensinando a argumentar tanto de maneira eacutetica como eficiente

introduccedilatildeo a Chaim perelman e luCie olbreChts-tyteCa

A Nova Retoacuterica (PERELMAN OLBRECHTS-TyTECA 1969) eacute um compecircndio enciclopeacutedico de pequenas histoacuterias retoacutericas citaccedilotildees exemplos e estratagemas organizados segundo um sistema extremamente fluido e flexiacutevel por um lado e extremamente confuso por outro Gage (1996 p 13) liga esse sistema ao de Burke na medida em que compreende uma ldquoperspectiva das perspectivasrdquo tratando a argumentaccedilatildeo natildeo como uma coleccedilatildeo a priori de partes de silogismos mas como

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A construccedilatildeo do argumento

um sistema cujas partes satildeo ldquo[] derivadas de processos de associaccedilatildeo e disso-ciaccedilatildeo ligamento e desligamento que torna o argumento uma rede de partes em relaccedilatildeo de variedade infinitardquo Do lado negativo Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969) parecem muitas vezes nomear cada uma das infinitas relaccedilotildees possiacuteveis do sistema atraveacutes de um sem-nuacutemero de termos ndash agraves vezes inventados agraves vezes emprestados de fontes desconhecidas ndash que dificultam mais do que facilitam um acesso raacutepido ao sistema Para o termo locus por exemplo pode-se encontrar vinte e quatro variedades listadas no iacutendice e sessenta e oito figuras ldquotradicionaisrdquo satildeo mencionadas a maioria de passagem em adiccedilatildeo a quinze tipos diferentes presu-midamente natildeo tradicionais

A versatildeo reduzida do tratado de Perelman ao tratado (The Realm of Rhetoric) (PERELMAN 1982) transforma o sistema em algo ligeiramente mais acessiacutevel e oferece uma versatildeo esquemaacutetica do corpus mas em detrimento da profundidade e da grande diversidade do original8 A utilidade da NR se deve sobretudo ao fato de que eacute um livro de sabedoria de razatildeo praacutetica ou phroacutenesis Assim eacute um livro para ser lido consultado mais do que um tratado para ser estudado Por outro lado The Realm of Rhetoric eacute muito mais uacutetil apoacutes a leitura de A Nova Retoacuterica e natildeo deve ser lido em substituiccedilatildeo ao seu extenso e complexo progenitor

Assim como o sistema de Burke o sistema de Perelman e Olbrecht-Tyteca empresta-se ao uso parcial mas de maneira muito distinta Apesar de toda comple-xidade do pensamento de Burke muito pode ser feito com algumas poucas grandes ideias que constituem uma ldquoperspectiva por incongruecircnciardquo No caso de A Nova Retoacuterica entretanto a obra pode ser melhor usada e de fato pode-se exploraacute-la extraindo ideias uacuteteis estrateacutegias e citaccedilotildees da mesma forma que alunos tiram ideia promissoras de livros comuns

8 o ensaio de Perelman publicado em 1970 The New Rhetoric A Theory of Practical Reasoning reimpresso em 2001 (PERELMAN 2001) representa uma siacutentese ainda mais eficiente do sistema

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A construccedilatildeo do argumento

De maneira a tornar uacutetil a nova retoacuterica aos professores noacutes seguiremos dois passos Primeiro faremos um breve panorama dessa abordagem e de seu lugar no campo das teorias modernas da argumentaccedilatildeo Em seguida de modo a apresentar tais ideias de maneira coerente apesar de menos ortodoxa adap-taremos alguns dos seus insights a uma abordagem consideravelmente menos pesada a Stasis Theory

um panorama de a nova retoacuteriCa

Assim como a maioria dos filoacutesofos que romperam barreiras e se voltaram para a Retoacuterica em meados do seacuteculo XX Perelman e Olbrechts-Tyteca basearam sua dissidecircncia na rejeiccedilatildeo ao modelo loacutegico-formal de argumento tradicional-mente privilegiado pelos filoacutesofos particularmente pelos positivistas loacutegicos da eacutepoca Ao citar a fusatildeo da dialeacutetica de Petrus Ramus com a loacutegica e o subsequente rebaixamento da Retoacuterica a uma arte ornamental Perelman (2001) reivindica a Dialeacutetica para a Retoacuterica e a declara complementar agrave demonstraccedilatildeo definida como

[hellip] um caacutelculo feito de acordo com as regras previamente dispostas [hellip] Uma demonstraccedilatildeo eacute considerada correta ou incorreta de acordo com sua conformidade ou natildeo agraves regras Uma conclusatildeo eacute tida como comprovada se ela pode ser atingida por meio de uma seacuterie de opera-ccedilotildees corretas e iniciadas nas premissas aceitas como axiomas Se tais axiomas satildeo considerados evidentes necessaacuterios verdadeiros ou hipo-teacuteticos a relaccedilatildeo entre eles e o que eacute demonstrado permanece intacta Para passar da inferecircncia correta agrave verdade ou agrave probabilidade com-putaacutevel da conclusatildeo deve-se admitir tanto a verdade das premissas como a coerecircncia do sistema axiomaacutetico (PERELMAN 2001 p 1390)

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A construccedilatildeo do argumento

Ao distinguir a argumentaccedilatildeo retoacuterica da demonstraccedilatildeo formal Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969 p 5) sublinham as seguintes caracteriacutesticas O ponto de iniacutecio de um argumento natildeo eacute um axioma invariante e universal mas uma premissa ou ldquoopiniatildeo geralmente aceitardquo Os autores entatildeo distinguem dois tipos de premissas ldquoa primeira concernente ao real que compreende fatos verdades e presunccedilotildees e a segunda concernente ao preferiacutevel que compreende valores hie-rarquias e linhas de argumentaccedilatildeo (ou loci) relativas ao preferiacutevelrdquo (PERELMAN OLBRECHTS-TYTECA 1969 p 66) As premissas natildeo satildeo objetivas ou impessoais como eacute o caso dos axiomas loacutegicos mas intersubjetivos ou pessoais na medida em que sua forccedila depende do grau de verdade coerecircncia plausibilidade e assim por diante a partir do qual a audiecircncia o aceita Por conta da natureza contingente das premissas distintas audiecircncias ofereceratildeo diferentes graus de aprovaccedilatildeo em mo-mentos distintos sob condiccedilotildees distintas Trata-se de um estado de coisas que quem argumenta deve levar em consideraccedilatildeo Enquanto o movimento de demonstraccedilatildeo eacute o de estender o alcance de verdades axiomaacuteticas a uma verdade particular e com-pelir o consentimento em direccedilatildeo a essa verdade o movimento de um argumento eacute o de aumentar a ldquointensidade da adesatildeordquo (PERELMAN OLBRECHTS-TyTECA 1969 p 45) de uma audiecircncia a uma conclusatildeo ao enviar as premissas para ldquo[] dentro de um conjunto de processos associativos e dissociativosrdquo (PERELMAN OLBRECHTS-TyTECA 1969 p 65) responsaacutevel por dar forma ao entendimento da audiecircncia sobre a relaccedilatildeo entre as premissas e a conclusatildeo O argumento pode aumentar o grau em que uma audiecircncia aceita uma conclusatildeo mas ela natildeo conse-gue compelir o consentimento da mesma maneira que a demonstraccedilatildeo Enquanto a finalidade da demonstraccedilatildeo eacute a descoberta de uma verdade a finalidade de um argumento eacute a de construiacute-la na ldquocomunidade de mentesrdquo (PERELMAN 2001 p 1388) de modo a ldquo[] colocar em movimento a accedilatildeo intencionada [] ou ao menos criar nos ouvintes um desejo de agir que apareceraacute no momento certordquo (PEREL-MAN OLBRECHTS-TyTECA 1969 p 45)

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A construccedilatildeo do argumento

O ponto de partida da abordagem presente em A Nova Retoacuterica agrave argumen-taccedilatildeo natildeo foi uma teoria tomada da Filosofia mas uma questatildeo sobre a forma como as pessoas de fato discutem os valores no mundo real Consequentemen-te os autores examinaram milhares de exemplos de argumentos sobre valores extraiacutedos de uma infinidade de fontes incluindo trabalhos poliacuteticos juriacutedicos filosoacuteficos religiosos e cientiacuteficos de diferentes eacutepocas Se o exame dessas fon-tes tornou a teoria mais potente eacute algo contestaacutevel mas natildeo haacute duacutevidas de que a enriqueceu9 Em certo sentido os exemplos sobrepotildeem-se ao quadro teoacuterico de modo a impossibilitar a reduccedilatildeo da teoria a um conjunto de preceitos Por conseguinte a linguagem da nova retoacuterica eacute decididamente natildeo categoacuterica mais nuanccedilada e metafoacuterica que a linguagem tiacutepica da retoacuterica da metade do seacuteculo Algumas ideias-chave demonstram esse fato Ao inveacutes de acarretamento loacutegico os autores falam em ldquoligaccedilotildeesrdquo entre ideias em vez de contradiccedilotildees preferem ldquoincompatibilidadesrdquo em vez da certeza ou ateacute de probabilidade da conclusatildeo preferem mencionar a ldquorazoabilidaderdquo em vez de falar em concordacircncia ou discor-dacircncia da audiecircncia sobre uma conclusatildeo falam sobre o aumento ou diminuiccedilatildeo da intensidade da adesatildeo a um argumento

Talvez o mais interessante dos possiacuteveis efeitos dessa metodologia eacute o lugar privilegiado da noccedilatildeo de ldquopresenccedilardquo na teoria a importacircncia de trazer ideias agraves audiecircncias em todo seu imediatismo De forma muito conveniente a maior vir-tude da Nova Retoacuterica eacute a abundacircncia de exemplos de ldquopresenccedilardquo que ilustram o quadro teoacuterico

9 Eacute claro que Lucie Olbrechts-Tyteca como pessoa ldquoerudita em ciecircncias sociais e literatura europeiardquo (BiZZeLL HeRZBeRg 2001 p 1371) merece um creacutedito especial por encontrar e selecionar exemplos pertinentes que tornam a teoria de Perelman significativamente mais uacutetil e mais atrativa

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A construccedilatildeo do argumento

Em muitos aspectos o movimento de Perelman e Olbrechts-Tyteca da Loacute-gica tradicional em direccedilatildeo agrave Dialeacutetica segue o percurso tomado por Burke que tambeacutem entende a Retoacuterica como expressatildeo do pensamento dialeacutetico O proacuteprio Perelman assinala essa conexatildeo ao citar a noccedilatildeo de identificaccedilatildeo proposta por Burke como o modelo para que o uso da Retoacuterica forme uma ldquocomunidade de mentesrdquo e assim ldquodespertar a disposiccedilatildeo para a accedilatildeordquo (PERELMAN 2001 p 1388) de uma audiecircncia Aleacutem disso a tensatildeo essencial na Nova Retoacuterica entre parte (exemplos) e todo (teoria) eacute como vimos uma peccedila criacutetica da abordagem de Burke agrave Retoacuterica Entender uma coisa ldquoem termos derdquo outra em vez de ldquocomordquo outra leva Burke a procurar ldquopequenas histoacuterias representativasrdquo (BURKE 1966 p 523) em vez de regras leis ou narrativas que exaustivamente datildeo conta do todo Esse mesmo modo sinedoacutequico de entendimento leva Burke (1996) a rejeitar contra-diccedilotildees aparentes entre ideias e a favorecer algo como as incompatibilidades que ele deseja superar atraveacutes de acordos em vez de aboli-las atraveacutes do desmonte

Aleacutem disso Burke assim como Perelman e Olbrechts-Tyteca tambeacutem en-fatiza a dimensatildeo inventiva da Retoacuterica em detrimento da funccedilatildeo ornamental Enquanto Burke subordina a funccedilatildeo persuasiva agrave inventiva Perelman e Olbrechts--Tyteca apoacutes reconhecerem a importacircncia da invenccedilatildeo continuam a assinalar a funccedilatildeo persuasiva Tanto na Nova Retoacuterica quanto na A Rhetoric of Motives de Burke somos sempre lembrados do contexto mais amplo que define as ativida-des de uma pessoa Para Burke o dever de uma pessoa enquanto cidadatilde precede o dever de uma pessoa enquanto especialista natildeo importando quanta ldquopsicose ocupacionalrdquo nos leve a confundir obrigaccedilotildees eacuteticas e profissionais Jaacute Perelman e Olbrechts-Tyteca baseiam seu estudo sobre retoacuterica na noccedilatildeo de justiccedila social e a enfatizam em todo o tratado

Por fim a controversa noccedilatildeo de ldquoaudiecircncia universalrdquo empregada na Nova Retoacuterica pode ser melhor entendida no contexto da noccedilatildeo burkeana de ldquopersuasatildeo purardquo Assim como natildeo existe uma instacircncia da persuasatildeo pura natildeo existe de

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A construccedilatildeo do argumento

fato uma audiecircncia universal Ambas satildeo ideais que norteiam quem argumenta para aleacutem da persuasatildeo ldquodirecionadardquo ndash ldquoo que me faraacute trazer essa audiecircncia para minha posiccedilatildeo rdquo ndash em direccedilatildeo ao trabalho de um entendimento completo do tema A audiecircncia universal natildeo eacute necessariamente uma audiecircncia mais po-pulosa que a particular Quando escrevemos para audiecircncias eruditas e criacuteticas em nossas especialidades presumimos seu ceticismo e sua perspicaacutecia que nos leva aos melhores e mais razoaacuteveis argumentos Os publicitaacuterios que empurram cerveja suave para homens brancos na faixa dos 18 aos 29 anos querem sem duacutevida atingir faixas menores

a stasis theory e a nova retoacuteriCa

Ao adaptar a Nova Retoacuterica agraves nossas aulas tentamos identificar esquemas simples que servem como veiacuteculos para selecionar e organizar os ricos insights do livro em um todo coerente de alcance razoaacutevel De nosso ponto de vista o esque-ma que melhor serve a essa funccedilatildeo eacute a Stasis Theory Originalmente essa teoria emergiu na Greacutecia antiga como uma categoria do discurso juriacutedico (ou forense) que junto ao discurso epidiacutetico (ou cerimonial) e ao deliberativo (ou legislativo) compreendem as trecircs formas do discurso Nos anos recentes a ideia de Stasis tem sido retomada e modificada para uso em aulas de argumento em reconhecimen-to ao fato de que como aponta Fulkerson (1996 p 40) eacute ldquo[] incrivelmente uacutetil [] porque natildeo se sobrepotildee e eacute sequencialmente progressiva e [] porque pode funcionar como uma heuriacutestica geradora que pode ajudar os estudantes a criar os argumentos necessaacuterios em um artigordquo Os dois estudiosos mais responsaacuteveis pelo renascimento da Stasis como uma caracteriacutestica integral da instruccedilatildeo argumenta-tiva satildeo Jeanne Fahnestock e Marie Secor O artigo Teaching Argument A Theory of Types (FAHNESTOK SECOR 1983) levou muitos professores de escrita a integrar a Stasis agraves aulas e muitos autores a incluir a discussatildeo em livros O artigo representa

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A construccedilatildeo do argumento

um caso exemplar de acadecircmicos contemporacircneos que adaptaram teorias antigas da Retoacuterica em aulas de escrita10

Antes de demonstrarmos como usar a ideia de Stasis para organizar estrateacute-gias narrativas e princiacutepios da Nova Retoacuterica apresentaremos um breve panorama dessa ideia

De acordo com Aristoacuteteles cada uma das trecircs categorias originais do discurso que antecipam as categorias da Stasis possuem um foco temporal distinto O discurso deliberativo lidava com propostas para o futuro particularmente as propostas legis-lativas o epidiacutetico lidava com o elogio e a culpa e apresentava ao puacuteblico ocasiotildees para reforccedilar os valores comunitaacuterios no presente o forense ndash de onde vecircm a Stasis ndash lidava com vereditos atribuiacutedos a eventos passados tipicamente na esfera legal Por conta da associaccedilatildeo primaacuteria com a lei a antiga Stasis tendia a seguir o modelo procedimental dos tribunais Desse modo o promotor em um caso era requerido a fazer trecircs tipos de teses reivindicatoacuterias representando trecircs pontos em questatildeo ou Stasis que a pessoa acusada cometeu o crime em questatildeo (reivindicaccedilatildeo do fato) que o ato cometido constitui um crime (reivindicaccedilatildeo da definiccedilatildeo) e que o ato natildeo pode ser mitigado pelas circunstacircncias (reivindicaccedilatildeo de valores)11

10 a contribuiccedilatildeo do ensaio produzido por fahnestock e Secor (1983) agraves teorias contemporacircneas do argumento eacute exemplar tanto em termos do importante impacto no campo quanto da abordagem particular sobre a teoria Boa parte dos melhores trabalhos recentes sobre retoacuterica e escrita se desenvolveu como adaptaccedilatildeo de abordagens antigas ou como uma adaptaccedilatildeo de abordagens de outros campos agraves necessidades do argumento contemporacircneo aleacutem do trabalho de fahnestock e Secor (1983) o criativo trabalho de John gage (1983) sobre o entusiasmo dos estudantes com a escrita exemplifica o primeiro tipo de contribuiccedilatildeo enquanto a adaptaccedilatildeo da psicanaacutelise ao domiacutenio da retoacuterica promovida por Richard Young Alton Becker e Kenneth Pike eacute um exemplo da segunda um grande nuacutemero de livros e artigos interessantes e uacuteteis sobre retoacuterica e escrita vem sendo escrito nos uacuteltimos anos por intelectuais do campo mas ainda natildeo presenciamos o desenvolvimento pleno de teorias do argumento para confrontar com as que satildeo desenvolvidas no campo da comunicaccedilatildeo e da Filosofia Agrave medida que consideramos essas uacuteltimas de utilidade limitada agrave sala de aula apreciamos o intercacircmbio rico e apaixonado sobre argumento regularmente desenvolvido nesses campos

11 A taxonomia da Stasis aqui utilizada proveacutem em grande parte de Ramage Bean e Johnson (2007)

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A construccedilatildeo do argumento

O esquema desenhado por Ramage Bean e Johnson (2007) possui cinco ele-mentos e inclui definiccedilatildeo (X eacutenatildeo eacute uma instacircncia de y) semelhanccedila (X eacutenatildeo eacute como y ndash os autores definem duas variedades de semelhanccedilas as precedentes e as analogias) causa (X eacutenatildeo eacute a causa de Y) avaliaccedilatildeo (X eacutenatildeo eacute um bom Y) e eacutetica (X eacutenatildeo eacute bom)12 As trecircs uacuteltimas Stasis satildeo derivadas dos dois primeiros tipos de discurso o deliberativo e o epidiacutetico enquanto as duas primeiras satildeo derivadas do juriacutedico Os autores enfatizam que cada uma eacute um tipo de reivin-dicaccedilatildeo oposto a um tipo de argumento (apesar de dispor de uma reivindicaccedilatildeo maior que pode ser usada para caracterizaacute-lo como um todo) e isso tipicamente inclui inuacutemeras reivindicaccedilotildees dos mais variados tipos O objetivo das Stasis natildeo eacute servir como uma taxonomia dos argumentos mas ajudar os estudantes a entender as demandas peculiares dos arrazoados e das evidecircncias geradas por um tipo de reivindicaccedilatildeo

Entender isso pode ser usado para antecipar as necessidades persuasivas dentro dos proacuteprios argumentos e para reconhecer os lugares dos outros nos quais tais demandas satildeo ou natildeo satildeo atendidas Os breves traccedilos associados a cada tipo de reivindicaccedilatildeo servem para representar o impulso geral das proposiccedilotildees incluiacutedas na categoria Nos argumentos reais tais reivindicaccedilotildees geralmente to-mam diferentes formas exigindo em alguns casos uma interpretaccedilatildeo significativa

Como foi dito em nossa discussatildeo sobre o possiacutevel engessamento da Retoacuterica sempre haacute um tipo de troca entre a facilidade com a qual uma metodologia pode ser aplicada e o perigo de que as conclusotildees dessa aplicaccedilatildeo sejam simplificadas em excesso Defendemos que o benefiacutecio de oferecer aos estudantes uma abor-dagem coerente ao argumento supera os perigos do engessamento mas deve-se

12 em versotildees mais recentes das Stasis Ramage Bean e Johnson tambeacutem esboccedilam uma distinccedilatildeo entre Stasis categoriais e definidoras a depender se os criteacuterios compotildeem a categoria Y ou se a correspondecircncia entre criteacuterios e caracteriacutesticas de um x particular constituem o foco do debate aqui continuamos a tratar ambos os casos sob a rubrica de definiccedilatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

ter em mente o imperativo metodoloacutegico de Burke (1970 p 303) segundo o qual ldquo[] qualquer terminologia eacute suspeita na medida em que ela natildeo permite a criacutetica dela mesmardquo A esse respeito um papel importante da Nova Retoacuterica em relaccedilatildeo ao esquema das Stasis diz respeito a sua capacidade de nos lembrar os contextos argumentativos mais importantes dos argumentos bem como sua capacidade de complicar nosso entendimento da tarefa ao identificar o ocircnus da prova associado a cada uma das Stasis Sem duacutevida muitos dos princiacutepios e estrateacutegias da Nova Retoacuterica podem ser utilmente aplicados em conjunccedilatildeo com as Stasis

Na sequecircncia no entanto dispomo-nos a ilustrar o papel que a Nova Retoacuteri-ca pode assumir para evitar que as Stasis se transformem em foacutermula ao focar em um pequeno nuacutemero de questotildees centradas nas reivindicaccedilotildees de definiccedilatildeo e semelhanccedila por um lado e por outro nas reivindicaccedilotildees eacuteticas e avaliativas

As distinccedilotildees cuidadosamente esboccediladas na Nova Retoacuterica entre valores argumentativos e demonstraccedilatildeo loacutegica nos lembram do limite entre a reivin-dicaccedilatildeo da definiccedilatildeo e da semelhanccedila e reforccedilam a importacircncia de qualificar com cuidado tais reivindicaccedilotildees e de suportar as conexotildees mais tecircnues aqui realizadas A seccedilatildeo da Nova Retoacuterica que introduz a regra da justiccedila (seres ou situaccedilotildees do mesmo tipo devem ser tratadas de maneira idecircntica) eacute dedicada aos ldquoargumentos Quase-loacutegicosrdquo um tiacutetulo que chama a atenccedilatildeo tanto para as simi-laridades aparentes como para as diferenccedilas importantes entre a demonstraccedilatildeo formal e a argumentaccedilatildeo substantiva A regra da justiccedila adapta-se agrave descriccedilatildeo ldquoquase-loacutegicardquo na medida em que eacute uma regra formal ou equaccedilatildeo na qual pode-se substituir muitos valores particulares Poreacutem os argumentos dessa natureza satildeo menos rigorosos como classe de argumentos loacutegicos na medida em que a classe requer que ldquo[] os objetos aos quais se aplica devem ser idecircnticos isto eacute comple-tamente intercambiaacuteveisrdquo (PERELMAN e OLBRECHTS-TyTECHA 1969 p 219) Esse nunca eacute entretanto o caso no domiacutenio dos valores humanos nos quais a igualdade ldquosubstancialrdquo como quis Burke eacute o maacuteximo que podemos esperar Ao cabo deve-se fazer a mais retoacuterica das determinaccedilotildees o quanto os objetos em

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A construccedilatildeo do argumento

questatildeo satildeo parecidos e o quanto desse parentesco eacute suficiente para justificar a evocaccedilatildeo da regra da justiccedila

De fato assim todas as reivindicaccedilotildees de definiccedilatildeo na Nova Retoacuterica po-dem ser consideradas reivindicaccedilotildees de semelhanccedila Agrave media que aceitamos em princiacutepio essa equaccedilatildeo ndash se a linguagem eacute fundamentalmente metafoacuterica todas as relaccedilotildees assumidas de identidade tornam-se em um exame detalhado rela-ccedilotildees de identificaccedilatildeo ndash retemos a distinccedilatildeo entre a reivindicaccedilatildeo de definiccedilatildeo e de semelhanccedila por razotildees pragmaacuteticas (o que Burke chamaria de ldquorealistardquo) A distinccedilatildeo entre definiccedilatildeo e semelhanccedila eacute parte da linguagem ordinaacuteria e nomeia uma distinccedilatildeo real de graus ou como implicado de parentesco Enquanto as reivindicaccedilotildees de definiccedilatildeo obliteram as diferenccedilas entre os termos definidos as reivindicaccedilotildees de semelhanccedila colocam-nas em primeiro plano

Consequentemente a relaccedilatildeo entre ldquoseres ou situaccedilotildeesrdquo para quem reivin-dica semelhanccedilas eacute mais tentadora e o ocircnus da prova eacute mais fraco no tocante agraves relaccedilotildees estabelecidas sob as reivindicaccedilotildees de definiccedilatildeo De modo inverso quanto mais relaccedilatildeo reivindicada dos termos for definida ou comparada menos uma exceccedilatildeo ou um contraexemplo seratildeo inferiores agrave versatildeo da regra da justiccedila Eacute pragmaacutetico reter essa distinccedilatildeo aos estudantes desse modo tanto porque a distinccedilatildeo eacute significativa no cotidiano da linguagem natural como porque assina-lar essa distinccedilatildeo leva os estudantes a reconhecer as significativas diferenccedilas no ocircnus da prova decorrentes do tipo de Stasis adotado

Outra distinccedilatildeo do mesmo tipo pode ser esboccedilada entre os dois diferentes tipos de reivindicaccedilatildeo de semelhanccedila os precedentes e os analoacutegicos No pri-meiro caso a conexatildeo entre os termos eacute sequencial e ldquo[] os termos reunidos estatildeo no mesmo plano fenomecircnicordquo (PERELMAN OLBRECHTS-TyTECHA 1969 p 293) Assim por exemplo quando pensamos em precedentes temos em mente dois ou mais casos legais duas ou mais situaccedilotildees histoacutericas e assim por diante Assim que um precedente eacute estabelecido a extensatildeo da regra da justiccedila no caso em questatildeo eacute desse modo razoavelmente clara Jaacute no caso das analogias natildeo haacute

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A construccedilatildeo do argumento

clareza que pode equacionar entidades radicalmente diferentes De acordo com Perelman e Olbrechts-Tytecha (1969 p 381) analogias compreendem ldquotrans-ferecircncia de valoresrdquo de um termo a outro ou ldquodo phoros ao temardquo mas quando se clama que dois termos como ldquoamorrdquo e ldquorosas vermelhasrdquo apresentam valor aproximadamente igual isso natildeo implica estender a regra da justiccedila de um para outro e concluir que se deve por exemplo fertilizar o companheiro de algueacutem ou ter um encontro com uma rosa

Em suma ao escolher entre reivindicaccedilotildees de definiccedilatildeo de precedecircncia ou de analogia para preparar a extensatildeo da regra da justiccedila de um termo a ou-tro deve-se considerar o niacutevel de suporte disponiacutevel para uma reivindicaccedilatildeo e determinar o grau de qualificaccedilatildeo apropriado para uma conclusatildeo Enquanto a reivindicaccedilatildeo por definiccedilatildeo que implica igualdade substancial entre termos requer suporte maior analogias que implicam valores partilhados entre termos requer menor suporte

Eacute importante que os estudantes entendam essas distinccedilotildees entre os tipos de reivindicaccedilatildeo e as suas implicaccedilotildees para a regra da justiccedila Muitas das con-troveacutersias atuais de fato sustentam-se em termos de definiccedilatildeo e semelhanccedila e nas diferenccedilas entre ambas Talvez a ilustraccedilatildeo mais expressiva e clara da importacircncia de se distinguir entre reivindicaccedilotildees de identidade e de semelhan-ccedila eacute o conflito entre os juiacutezes da Suprema Corte quando a partir de uma regra da justiccedila aplicaacutevel na sociedade norte-americana atual Boa parte dos debates da Suprema Corte podem ser caracterizados como ruminaccedilotildees sobre o grau de similaridade entre casos variados ldquoseres e situaccedilotildeesrdquo e sobre como determinar que satildeo suficientemente similares para evocar a regra da justiccedila Entre os juiacutezes alguns ndash conhecidos como originalistas ou strict constructionists ndash concordam com o papel de destaque das reivindicaccedilotildees por definiccedilatildeo e sustentam que as diferenccedilas com as reivindicaccedilotildees por semelhanccedila natildeo satildeo apenas de grau mas

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A construccedilatildeo do argumento

de natureza Para eles a definiccedilatildeo original do termo como foi entendido pelos que pensaram a Constituiccedilatildeo eacute imanente ao texto que eacute a uacutenica fonte legiacutetima de sentido13

Historicamente as posiccedilotildees mais literais sobre a interpretaccedilatildeo juriacutedica satildeo difiacuteceis quando natildeo impossiacuteveis de serem mantidas daiacute ser frequente juiacutezes ldquode esquerdardquo defenderem uma visatildeo menos riacutegida da interpretaccedilatildeo durante anos sobre assuntos extremamente complexos de reivindicaccedilatildeo de definiccedilatildeo e de se-melhanccedila14 Entre os fatores que claramente influenciam os juiacutezes a tornarem-se mais flexiacuteveis em procedimentos interpretativos em face ao protesto de pares ori-ginalistas satildeo as mudanccedilas das circunstacircncias histoacutericas que envolvem os casos Aqui o axioma de Burke ldquoas circunstacircncias alteram os argumentosrdquo eacute um guia uacutetil Por exemplo muitos anos apoacutes a Corte ter rejeitado as leis de Jim Crow e outras que previam diferenccedilas categoacutericas entre afro-americanos e brancos e assim natildeo contemplados pelos mesmos direitos e garantias leis contraacuterias ao casamento entre raccedilas continuaram ativas Finalmente no despertar do movimento dos Direitos Civis dos anos sessenta a uacuteltima dessas leis foi derrubada Enquanto o princiacutepio de igualdade racial foi abraccedilado um seacuteculo antes a lei foi mais lenta para estender a regra da justiccedila a praacuteticas como a miscigenaccedilatildeo pois os haacutebitos tornavam as leis antimiscigenaccedilatildeo parecerem ldquonaturaisrdquo e foi necessaacuterio um levante histoacuterico para ajudar a Corte a elaborar uma nova perspectiva sobre o assunto

13 em mais de uma ocasiatildeo alguns juiacutezes citaram o Dicionaacuterio de Sam Johnson publicado em 1756 o uacutenico dicionaacuterio de liacutengua inglesa existente quando a Constituiccedilatildeo foi esboccedilada como uma tentativa de divinizar como os constituintes estavam empregando determinado termo Presumivelmente esses mesmos juiacutezes optaram por natildeo citar a definiccedilatildeo de ldquodemocraciardquo de Johnson presente nesse dicionaacuterio e ilustrada com uma citaccedilatildeo do Dr arbuthnot ldquoComo o governo britacircnico possui uma mistura democraacutetica dentro de si o direito de inventar tensotildees poliacuteticas reside parcialmente no povordquo

14 Talvez sem surpresa a mais notaacutevel exceccedilatildeo a essa regra o juiz Antonin Scalia que apoacutes mais de duas deacutecadas na Suprema Corte mantem-se um originalista ardente eacute o filho de um criacutetico formalista a versatildeo literal da teoria strict constructionism

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A construccedilatildeo do argumento

O processo continua Quando a Suprema Corte derrubou posteriormente as leis estaduais que criminalizam as praacuteticas homossexuais argumentou-se citando a lei preacutevia do casamento entre raccedilas que a decisatildeo constituiacutea precedentes para derrubar o banimento do casamento gay Enquanto alguns tribunais estaduais ndash e diversos tribunais estrangeiras ndash de fato decidiram que as similaridades entre os dois fenocircmenos eram suficientes para estender a regra da justiccedila da diversidade racial agrave diversidade sexual a Corte Suprema natildeo fez o mesmo De maneira suficien-temente apropriada oponentes dessa extensatildeo mas sofisticados o suficiente para reconhecer as incompatibilidades de suas proacuteprias posiccedilotildees valem-se de outras das vaacuterias ferramentas disponiacuteveis na Nova Retoacuterica para o trabalho de ldquovinculaccedilatildeo e desvinculaccedilatildeordquo de argumentos que servem a determinados propoacutesitos Nesse caso o dispositivo empregado por aqueles que delimitam uma linha niacutetida entre casamento inter-racial e o casamento gay eacute o ldquopar filosoacuteficordquo Enquanto dispositivo para categorizar fenocircmenos similares os pares filosoacuteficos inevitavelmente elevam um em detrimento do outro O mais notaacutevel desses pares ldquoaparecircnciarealidaderdquo ndash originalmente designado a desconectar a percepccedilatildeo sensorial da busca pela ver-dade ndash serve aos oponentes do casamento gay ao diminuiacute-lo a uma versatildeo falsa da coisa real o casamento heterossexual

Reivindicaccedilotildees avaliativas (X eacutenatildeo eacute bom) e reivindicaccedilotildees eacuteticas (X eacutenatildeo eacute um bom Y) podem ser enriquecidas ao valer-se da Nova Retoacuterica Muito da obra de fato eacute tomado por discussotildees sobre o valor e os autores satildeo particularmente eficientes em articular distinccedilotildees entre reivindicaccedilotildees por valores eacuteticos e por avaliaccedilotildees Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969) discutem inicialmente os valores no contexto dos ldquotipos de acordordquo entre os membros de um auditoacuterio que podem ser empregados como premissas argumentativas De maneira interessante os au-tores identificam as caracteriacutesticas uacutenicas dos valores e as que os distinguem de outros tipos de premissas ndash fatos verdades e presunccedilotildees ndash como sendo de natureza local rejeitando desse modo a noccedilatildeo de valores universais do tipo que pessoas como John Leo nos garantem que existem Em reveacutes direto agrave Loacutegica adotada por

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A construccedilatildeo do argumento

Leo os autores da Nova Retoacuterica afirmam que enquanto outros tipos de premissa apelam a uma audiecircncia universal os valores reclamam ldquoapenas a adesatildeo a gru-pos particularesrdquo (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTEXA 1969 p 74) No tocante agraves reivindicaccedilotildees da universalidade de valores como ldquoo Verdadeiro o Bom o Belo e o Absolutordquo os autores datildeo a seguinte resposta

A alegaccedilatildeo de um acordo universal [] parece-nos devido apenas agrave sua generalidade Eles podem ser tratados como vaacutelidos por uma audiecircncia universal apenas sob a condiccedilatildeo de que o conteuacutedo natildeo seja especificado assim que entramos nos detalhes temos contato apenas com a adesatildeo de audiecircncias particulares (PERELMAN OLBRECHTS-TyTECHA 1969 p 76)

De modo a ilustrar como a Nova Retoacuterica pode nos ajudar a articular a diferenccedila entre reivindicaccedilotildees avaliativas e reivindicaccedilotildees eacuteticas consideraremos o papel do meacutedico e ex-senador Bill Frist no caso Terry Schaivo Cumpre lembrar que esse caso ocorreu na Floacuterida e envolveu um conflito entre os pais da mulher e o marido sobre a remoccedilatildeo de tubos de alimentaccedilatildeo que a levaram agrave morte Um nuacutemero de meacutedicos responsaacuteveis por Schaivo declarou seu ldquoestado vegetativo permanenterdquo condiccedilatildeo sob a qual as leis da Floacuterida permitem a eutanaacutesia O estado interveio a favor dos pais e os tribunais deram decisatildeo contraacuteria a tal ponto que membros do Congresso Norte-Americano tentaram intervir em favor dos pais O senador Frist chegou a alegar que Schaivo natildeo estava em estado vegetativo permanente ao assistir a um breve viacutedeo

Com esse pano de fundo consideremos as diferenccedilas entre um julgamento avaliativo das habilidades meacutedicas de Frist e o julgamento eacutetico de sua interven-ccedilatildeo no caso A excelecircncia de Frist como meacutedico eacute melhor mensurada por padrotildees gerais da profissatildeo meacutedica e pelos padrotildees de sua especialidade (cirurgia cardiacutea-ca) dentro dessa profissatildeo ldquoComparado a quemrdquo ele eacute um excelente cirurgiatildeo Os julgamentos impliacutecitos em reivindicaccedilotildees avaliativas satildeo sempre condicionados

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A construccedilatildeo do argumento

a esse tipo de perguntas Ao formar uma resposta para essas questotildees eacute nossa incumbecircncia selecionar o menor grupo de referecircncia aplicaacutevel e tirar daiacute nossos criteacuterios e agirmos com prudecircncia para que esses criteacuterios cumpram sua funccedilatildeo no grupo a que servem Desse modo enquanto todos os meacutedicos deveriam possuir uma confortante relaccedilatildeo meacutedico-paciente e um grau razoaacutevel de destreza manual os meacutedicos de famiacutelia devem ser julgados mais pela relaccedilatildeo meacutedico-paciente do que pela destreza manual Na medida em que as pessoas se opotildeem agraves funccedilotildees da classe e aos pesos atribuiacutedos por diferentes criteacuterios o debate ultrapassa o domiacutenio meacutedico e sua avaliaccedilatildeo Quem discorda tem de apresentar valores de seu repertoacuterio pessoal e fazecirc-los valer na profissatildeo meacutedica

Em relaccedilatildeo agrave oposiccedilatildeo de Frist de remover os tubos de alimentaccedilatildeo de Ter-ry Schaivo por outro lado o julgamento dessa accedilatildeo natildeo eacute condicional na mesma medida em que as reivindicaccedilotildees de avaliaccedilatildeo do tipo precedente costumam ser A accedilatildeo tomada por ele natildeo pertence agrave classe mais ampla de accedilotildees portadoras de criteacuterios derivados da funccedilatildeo da classe Os criteacuterios para julgamento da qualidade da accedilatildeo devem vir de crenccedilas pessoais e valores de quem julga Essa eacute a dimensatildeo ldquolocalrdquo do julgamento eacutetico aludida pelos autores da Nova Retoacuterica A fonte do jul-gamento eacute local mas as implicaccedilotildees do julgamento satildeo universais Certamente haacute casos como o do dos Nazistas citado por John Leo no qual a proporccedilatildeo dos que concordam com o julgamento eacute tatildeo ampla que chega a ser virtualmente universal Poreacutem poucas questotildees eacuteticas seriam pertinentes se a concordacircncia com todos os julgamentos fosse tatildeo assimeacutetrica

Desse modo enquanto apenas uma parcela de pessoas pode concordar com Frist no que diz respeito agrave remoccedilatildeo do tubo de alimentaccedilatildeo de uma pessoa em permanente estado vegetativo por quatorze anos a reivindicaccedilatildeo implica que to-dos devem concordar com o julgamento O fato de ele ser meacutedico nesse tempo daacute a ele pouco poder no debate moral sobre eutanaacutesia Qualquer argumento por ele oferecido agrave populaccedilatildeo norte-americano da qual trecircs quartos discordaram quando ele se opocircs agrave morte de Schaivo teria fundamento moral Enquanto em um niacutevel

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A construccedilatildeo do argumento

geral todos podem concordar com esse meacutedico de que uma ldquocultura da vidardquo eacute uma boa ideia o caso de Schaivo compeliu o puacuteblico a ldquoentrar em detalhesrdquo sobre o significado desse princiacutepio e quando assim o fizeram houve muita dissidecircncia Esse resultado eacute previsiacutevel por qualquer leitor da Nova Retoacuterica

No contexto da teoria proposta por Perelman e Olbrechts-Tyteca o que po-deria parecer agrave primeira vista ser uma tarefa simples no contexto da teoria das Stasis eacute ao fim bastante complicado De acordo com a Nova Retoacuterica as pessoas natildeo subscrevem monoliticamente a valores Indiviacuteduos e grupos hierarquicamente mantecircm valores e eacute por isso que dois indiviacuteduos que pertencem nominalmente ao mesmo grupo e admitem os mesmos valores podem ranqueaacute-los de maneiras significativamente diferentes Duas pessoas desse modo que admitem os valores sobre a ldquocultura da vidardquo podem concordar que o aborto eacute algo muito ruim e ao mesmo tempo se dividir sobre o papel da pesquisa com ceacutelulas-tronco Por sua vez tais diferenccedilas sobre a questatildeo do uso de ceacutelulas-tronco podem refletir outra distinccedilatildeo de tipos de valores discutida por Perelman e Olbrechts-Tyteca a distinccedilatildeo entre valores concretos e abstratos Natildeo importa o quatildeo ardentemente algueacutem se oponha ao sacrifiacutecio de vidas humanas em termos abstratos pode-se abrir uma exceccedilatildeo para o caso da pesquisa com ceacutelulas-tronco quando algum ente querido eacute atingido por uma doenccedila grave cuja possibilidade de cura eacute aumentada por esse tipo de pesquisa Novamente o que a Nova Retoacuterica nos ensina sobre a reivindica-ccedilatildeo por valores eacute que o julgamento sobre o niacutevel de bondade ou maldade eacute guiado pela natureza local dos valores em questatildeo Os valores em questatildeo raramente satildeo tomados como simplesmente bons ou maus Eles satildeo melhores ou piores que outros e a interaccedilatildeo entre eles pode atenuar ou intensificar os julgamentos baseados neles mesmos Por isso a probabilidade de algueacutem diminuir a adesatildeo da audiecircncia a um valor ao evocar uma alternativa mais estimada eacute maior se comparada agrave tentativa de desacreditar e desmerecer o valor contestado

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A construccedilatildeo do argumento

introduccedilatildeo a stephen toulmin

A uacuteltima de nossas figuras da Retoacuterica contemporacircnea o filoacutesofo britacircnico Stephen Toulmin talvez seja o mais controverso A abordagem desse autor jaacute foi considerada a-retoacuterica ndash e certamente sua escolha infeliz de casos ilustrativos datildeo suporte a essa acusaccedilatildeo ndash e com frequecircncia a aplicaccedilatildeo em sala de aula eacute evitada Alguns professores descrevem tal abordagem como muito limitada outros recla-mam que eacute confusa Da mesma forma que as outras figuras discutidas neste capiacutetulo deve-se estar atento agraves expectativas para a aplicaccedilatildeo desse autor O que se espera da sua abordagem Quando se responde a essa pergunta de maneira especiacutefica e com expectativas modestas em mente em geral natildeo haacute frustraccedilatildeo Comumente problemas com essa abordagem decorrem de expectativas natildeo realistas Os autores deste livro nunca se apoiam primariamente e menos ainda exclusivamente na abordagem de Toulmin ndash muito tempo de aula dedicado a analisar argumentos a partir do esquema desse autor pode ser uma experiecircncia enlouquecedora Sempre lembramos nossos estudantes de que essas anaacutelises acarretam uma boa interpre-taccedilatildeo e que assim como os comerciais confessam suas mentiras discretamente no canto da tela ldquoos resultados apresentados podem natildeo ser tiacutepicosrdquo quando deixam de ser ilustraccedilotildees ad hoc para ser casos reais Essa abordagem eacute melhor utilizada em conjunccedilatildeo com a reivindicaccedilatildeo mais importante de um argumento como meio de ldquochecarrdquo e ter certeza de que essa reivindicaccedilatildeo diz algo muito similar agravequilo que algueacutem tem por intenccedilatildeo deixar claro aleacutem de clarificar as obrigaccedilotildees impos-tas a si ao realizaacute-la Por consequecircncia geralmente pedimos a nossos estudantes que submetam a reivindicaccedilatildeo mais importante agrave anaacutelise de Toulmin depois de completados os rascunhos Assim como na Nova Retoacuterica funciona bem em com-binaccedilatildeo com a abordagem sobre as Stasis em parte porque ambas enfatizam a reivindicaccedilatildeo Enquanto as Stasis satildeo eficazes para a expansatildeo das reivindicaccedilotildees a proposta de Toulmin eacute particularmente eficaz para refinaacute-las e delimitaacute-las Ao fim a forccedila peculiar da abordagem de Toulmin o acesso que ela permite ao fun-

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A construccedilatildeo do argumento

cionamento interno do argumento e a consciecircncia sobre as nuances linguiacutesticas do argumento fazem valer a pena evocaacute-la Isso posto vejamos as origens dessa abordagem e seus princiacutepios fundamentais

o esQuema de toulmin ndash o natildeo silogismo

Assim como na Nova Retoacuterica o ponto de partida de Toulmin em Os usos do argumento eacute a demonstraccedilatildeo loacutegico-formal (TOULMIN 1958) O que distingue a abordagem desse autor eacute o fato de que ele se manteacutem proacuteximo ao modelo loacutegico inventando uma variaccedilatildeo do silogismo categorial para apontar as deficiecircncias do arrazoado silogiacutestico ndash em particular a natildeo atenccedilatildeo dada agraves circunstacircncias e agrave in-diferenccedila sobre verdades substantivas e analiacuteticas ndash enquanto preserva algumas caracteriacutesticas especialmente a habilidade de tornar os argumentos mais trans-parentes A abordagem de Toulmin mais estreita que as outras tratadas neste capiacutetulo supre sua falta de riqueza com a capacidade de tornar os argumentos mais coerentes e mais transparentes

Em oposiccedilatildeo ao silogismo categorial e seus trecircs elementos (premissa maior premissa menor e conclusatildeo) Toulmin evoca seis (1) dado (2) garantia (3) tese (4) reforccedilo (5) reserva (6) qualificador Para ilustrar um esquema tiacutepico de Toul-min tomaremos emprestado um dos famosos exemplos ldquoa-retoacutericosrdquo Em poucas palavras o ldquoargumentordquo tal como eacute segue este caminho Petersen eacute sueco e como sueco pode ser considerado quase certamente como natildeo catoacutelico Petersen eacute quase certamente natildeo catoacutelico O argumento inclui quatro dos seis elementos ldquoPetersen eacute suecordquo eacute o dado ou ldquoo que permanecerdquo ldquoUm sueco pode ser considerado quase certamente como natildeo catoacutelicordquo eacute a garantia a generalizaccedilatildeo ou a regra que licen-cia as inferecircncias sobre o dado e leva agrave tese ldquoPetersen natildeo eacute catoacutelicordquo O ldquoquase certamenterdquo representa o qualificador ou medida de confianccedila que se pode ter na conclusatildeo baseada na forccedila da garantia e no poder do dado Um argumento pode tambeacutem incluir os outros dois elementos ldquoreservardquo e ldquoreforccedilordquo O primeiro

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aponta para exceccedilotildees agrave regra implicada pela garantia No caso de nosso amigo sueco a possibilidade digamos de ter passado feacuterias na Itaacutelia ter-se apaixonado por uma catoacutelica e converter-se para poder casar na igreja Jaacute o ldquoreforccedilordquo inclui todas as certezas de que a garantia por noacutes usada eacute aceitaacutevel Nesse caso podem ser dados estatiacutesticos que apontam para a pequena proporccedilatildeo de suecos adeptos do catolicismo

Eacute usual encontrar o esquema de Toulmin reduzido a apenas trecircs dos elemen-tos dado-garantia-tese ou como proposto em alguns livros didaacuteticos evidecircncia--razatildeo-conclusatildeo Esse trio eacute provavelmente menos difiacutecil para os novatos mas quando se simplifica o esquema dessa maneira perde-se muita da precisatildeo da abordagem do autor muitas garantias podem ser definidas como razotildees mas eacute impossiacutevel converter razotildees em garantias Aleacutem disso razotildees tambeacutem servem como motivaccedilatildeo A simplificaccedilatildeo do esquema acarreta igualmente uma perda de transparecircncia ou aquilo que o autor cunhou como a ldquosinceridaderdquo A funccedilatildeo primaacuteria desses elementos afinal eacute extrair informaccedilotildees das partes de um argumento que podem passar despercebidas Quando solicitamos aos estudantes para indicarem o qualificador e o reforccedilo conveacutem lembrar que esses elementos operaram no do-miacutenio das probabilidades e das contingecircncias e natildeo satildeo categoacutericos forccedilando-os a calibrar cuidadosamente o grau de confianccedila na tese e assinalar as possibilidades sob as quais ela natildeo se sustenta

Indo mais ao ponto o esquema de Toulmin pode ldquosubstituirrdquo um auditoacuterio ceacutetico ou aquilo que o autor se refere como um ldquodesafianterdquo A esse respeito Os Usos do Argumento assim como a Nova Retoacuterica eacute fortemente influenciado pelo modelo juriacutedico de argumento Ao passo que o silogismo categorial representa em uacuteltima instacircncia um argumento por autoridade ndash o sistema da loacutegica natildeo oferece uma maneira de questionar a veracidade dos termos ou de desafiar suposiccedilotildees ndash o esquema de Toulmin antecipa questotildees sobre a veracidade levantadas por um ldquoconselho opositivordquo em cada circunstacircncia Dito de outra forma os slots no esque-

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A construccedilatildeo do argumento

ma de Toulmin representados pela reserva e pelo qualificador antecipam desafios que podem ser postos em relaccedilatildeo agrave adequaccedilatildeo das motivaccedilotildees e da relevacircncia da garantia Jaacute o reforccedilo antecipa o desafio agrave legitimidade da garantia Dada a dificul-dade que muitos de noacutes ndash especialmente os estudantes ndash apresentam para desafiar os proacuteprios argumentos Toulmin provecirc uma maneira sistemaacutetica de antecipar desafios reforccedilando nosso argumento de acordo com eles (Sem mencionar oacutebvio a criacutetica aos argumentos alheios)

No entanto Toulmin tambeacutem eacute cuidadoso ao delimitar os desafios que podem ser colocados aos argumentos Se em teoria todos os elementos de um argumento estatildeo abertos a desafios de fato a vulnerabilidade dos seis elementos eacute a limitaccedilatildeo pela convenccedilatildeo Ou seja Toulmin aceita que diferentes campos do argumento apre-sentam acordos ndash alguns taacutecitos outros expliacutecitos ndash sobre o que constitui dados suficientes e relevantes reforccedilos legiacutetimos e o que tornam irrelevantes muitos dos desafios colocados ao argumento De fato em alguns casos nomear as garantias e os reforccedilos pode ser um insulto agrave audiecircncia Por convenccedilatildeo os elementos do modelo de Toulmin satildeo menos questionaacuteveis do que parece agrave primeira vista Aleacutem disso o autor impotildee um padratildeo rigoroso ao reforccedilo exigindo um status de ldquocomo um fatordquo a ele presumidamente para evitar o prospecto inapropriado de um infinito regresso de justificativas de reforccedilos empilhados Mesmo dentro da mais rigoro-sa das convenccedilotildees disciplinares entretanto a loacutegica do modelo de Toulmin estaacute longe de ser utilitarista e estreita como a imposta pelo silogismo categorial Como mostram os trabalhos de pessoas como a economista Deirdre McCloskey em anos recentes ateacute os argumentos quantitativos da economia e de outros campos das ciecircncias sociais satildeo menos objetivos e convincentes do que faz crer as estruturas pseudo-logiacutesticas

Por fim o modelo de Toulmin tem sido aplicado e usado livremente a argu-mentaccedilatildeo sobre eacutetica e poliacuteticas puacuteblicas nas quais poucos elementos carregam definiccedilotildees aceitas por todas ou quase todas as partes do debate De fato nessas

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instacircncias o valor principal do modelo reside no poder de revelar a vulnerabili-dade das premissas (garantias e reforccedilo) sobre as quais se assenta o argumento e na capacidade em oferecer uma ideia mais clara do quanto pode ser provaacutevel uma conclusatildeo

a apliCaccedilatildeo do modelo de toulmin

Para ilustrar a abordagem de Toulmin eacute preciso que nos movamos das teses diretas e pouco controversas de que ele se vale em direccedilatildeo a teses mais contro-versas e abertas que os estudantes podem de fato empregar ou encontrar em um discurso persuasivo Para tomarmos emprestada uma controveacutersia recente no discurso poliacutetico norte-americano consideremos a seguinte ldquouma parte da contribuiccedilatildeo dos trabalhadores norte-americanos agrave seguridade social deve ser colocada em contas de investimento pessoalrdquo Como geralmente eacute o caso essa tese aparece com o miacutenimo de reserva ou qualificaccedilatildeo De maneira a acessar a validade da tese devemos perguntar o que o orador pode ter em mente para servir de dado garantia reforccedilo qualificador ou reserva Em outros casos como nesse devemos supri-las ou inferi-las de outras declaraccedilotildees feitas pelo mesmo orador

O mais proeminente dos dados aduzidos para justificar a tese eacute algo da se-guinte ordem ldquoo sistema de seguridade social estaraacute falido em breverdquo A primeira coisa a ser notada sobre esse dado em particular eacute o fato de que ele proacuteprio eacute uma tese De fato as bases para os argumentos do mundo real satildeo geralmente reivindicaccedilotildees natildeo imunes a questionamentos particularmente quando se estaacute engajado em temas relativos a poliacuteticas puacuteblicas diferente das controveacutersias de outros campos bem definidos cujas regras satildeo expliacutecitas e acordadas por con-venccedilatildeo Os dados raramente sobem ao niacutevel dos ldquofatosrdquo (mantendo-se em mente que ldquofatosrdquo satildeo aqui entendidos como medida de concordacircncia de uma audiecircncia e natildeo da correspondecircncia entre uma proposiccedilatildeo e a realidade extralinguiacutestica) e satildeo suscetiacuteveis a desafios Satildeo para ficarmos seguros uma reivindicaccedilatildeo mais

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amplamente aceita do que a que serve como conclusatildeo do argumento No entanto muitas pessoas questionaram esses dados levando em conta as definiccedilotildees qual o significado de ldquoem breverdquo e de ldquofalirrdquo

Ambas as perguntas poderiam ser respondidas por prediccedilotildees econocircmicas de longo prazo que satildeo notoriamente instaacuteveis Isso posto um consenso sobre opiniotildees econocircmicas concluiu que se nada fosse feito o sistema comeccedilaria a gas-tar mais do que recebe a partir de 2017 e que teria de reduzir os benefiacutecios entre 20 a 30 em algum momento entre os anos de 2042 e 2052 Outra previsatildeo mais terriacutevel dos defensores da mudanccedila foi rejeitada com base no fato de que eles se valeram de um conjunto de suposiccedilotildees diferentes se comparadas a outras previsotildees econocircmicas para chegar agrave conclusatildeo O sistema nunca foi projetado para falir De fato diversas anaacutelises econocircmicas das propostas mais severas que envolvem contas pessoais indicaram que em 2042 os beneficiaacuterios receberiam quantia similar ou inferior ao pior caso o cenaacuterio do ldquonada a fazerrdquo O termo ldquofali-dordquo desse modo revelou relativo em oposiccedilatildeo ao julgamento categorial Na mesma moeda oponentes da proposta enfatizaram que ldquoem breverdquo tambeacutem eacute um termo relativo e perguntaram ldquocomparado a quecircrdquo a seguridade social estaacute em um beco sem saiacuteda e ldquocomparado a quecircrdquo essa ameaccedila eacute urgente Como vimos em nossa discussatildeo sobre a Nova Retoacuterica o valor de uma reivindicaccedilatildeo seraacute afetado pelas reivindicaccedilotildees associadas por questotildees como essas Por consequecircncia quando os oponentes da privatizaccedilatildeo da seguridade social mediram os perigos que ela enfrenta face ao seguro de sauacutede o puacuteblico considerou esse uacuteltimo muito mais preocupante Comparado ao impacto da crise do sistema de sauacutede os problemas da seguridade social pareceram eminentemente mais administraacuteveis

Quaisquer que sejam os problemas com a adequaccedilatildeo dos dados agrave urgecircncia e magnitude da tese os problemas mais interessantes com a proposta segundo a perspectiva assumida no esquema de Toulmin concernem ao ato que poderia justificar a passagem do dado tese movimento que vai das bases ndash iremos assu-mir por ora a adequaccedilatildeo dos dados para justificar a instaacutevel condiccedilatildeo financeira

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do sistema de seguridade social ndash agrave tese Como algueacutem pode ir da afirmaccedilatildeo ldquoo sistema de seguridade social em breve estaraacute falidordquo agrave tese ldquoparte da contribui-ccedilatildeo dos trabalhadores norte-americanos agrave seguridade social deve ser colocada em contas de investimento pessoalrdquo Como eacute geralmente o caso em questotildees de poliacuteticas puacuteblicas nenhuma garantia foi articulada deixando a tarefa agravequeles que questionam a tese Ao imaginar uma garantia adequada agrave tarefa o desafiador precisa discernir o grau de certeza dos que fazem as reivindicaccedilotildees em relaccedilatildeo agrave sua adequaccedilatildeo No caso da tese em questatildeo o fato de que natildeo foi acompanhada por qualificadores ou reservas sugere a necessidade de uma garantia de forccedila consideraacutevel Ou seja qualquer regra ou princiacutepio aduzido deve fazer a conclusatildeo ser altamente provaacutevel ou certa

Para alguns inferir uma garantia eacute uma questatildeo muito simples uma vez que jaacute se estimou o grau de certeza que ela deve possuir Basicamente deve-se reafir-mar em niacutevel mais geral a relaccedilatildeo entre os dados e a tese algo como ldquosempre que dado entatildeo teserdquo ou ldquosempre que dado frequentemente teserdquo No exemplo prosaico de Toulmin em Os usos do argumento a garantia parece autoevidente a ponto de ser supeacuterflua No caso em questatildeo poreacutem a declaraccedilatildeo da garantia pode ser ao mesmo tempo autoevidente e controversa Haacute como esperado boas razotildees para natildeo declarar o oacutebvio No caso da proposta sobre a seguridade social um candidato oacutebvio para a garantia eacute algo do tipo ldquoquando um programa puacuteblico estaacute com pro-blemas privatizar ao menos parte dele eacute a melhor soluccedilatildeordquo Tudo o que fizemos foi converter os dados (o sistema social em breve estaraacute falido) e a tese (uma parte da contribuiccedilatildeo deve ser colocada em contas de investimento pessoal) em versotildees um pouco mais gerais e combinaacute-las Os proponentes do plano abandonaram os termos ldquoprivadordquo e ldquoprivatizarrdquo porque os julgaram demasiado controversos Mas quando o fizeram jaacute empregavam-no por mais de duas deacutecadas para descrever a proposta que promoviam e os sinocircnimos que julgavam ultrapassados

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A construccedilatildeo do argumento

A vantagem de reafirmar as coisas agrave moda de uma garantia eacute tornar o racio-ciacutenio subjacente ao argumento muito mais transparente Nesse processo eacute inevi-taacutevel o surgimento de questotildees que podem passar despercebidas desde que o foco seja o caso particular em apreccedilo Assim garantias para teses propositivas como a proposta da seguridade social implicam uma relaccedilatildeo causal entre um problema e uma soluccedilatildeo (problema X portanto soluccedilatildeo Y) Estabelecer tais relaccedilotildees de forma tipicamente requer o recurso a precedentes histoacutericos (soluccedilatildeo Y eacute muito parecida com soluccedilatildeo Z que jaacute funcionou em situaccedilatildeo similar) e conexotildees fiacutesicas (soluccedilatildeo y funciona do seguinte modo A entatildeo B entatildeo C) Essas preocupaccedilotildees empiacutericas estatildeo ausentes nos exemplos pouco problemaacuteticos de Toulmin nos quais o reforccedilo eacute uma simples questatildeo de conferir dados censitaacuterios No caso da seguridade social o reforccedilo agrave garantia implicada de que a privatizaccedilatildeo iraacute resolver os problemas eacute necessariamente menos ldquofactualrdquo e mais aproximado de uma reivindicaccedilatildeo por semelhanccedila (nos casos em os programas X tiveram problemas a privatizaccedilatildeo os salvou) Os exemplos de Toulmin natildeo requerem muito reforccedilo empiacuterico em parte pela similaridade com os silogismos categoriais Nesses a premissa maior simplesmente afirma pertencimento a uma categoria No exemplo de Toulmin a garantia ndash ldquoSuecos raramente satildeo catoacutelicosrdquo ndash serve agrave funccedilatildeo prosaica Apesar de natildeo ser estritamente falando uma proposiccedilatildeo categoacuterica a garantia eacute suficien-temente similar a um fato para tornar o reforccedilo algo supeacuterfluo A garantia para o argumento sobre a seguridade social eacute consideravelmente menos factual e requer reforccedilo significante para garantir a adesatildeo Em que casos a privatizaccedilatildeo foi tentada no passado onde funcionou ou natildeo e por quecirc Como a privatizaccedilatildeo da seguridade social eacute parecida com esses casos precedentes Exatamente como passo a passo a privatizaccedilatildeo levaraacute agrave salvaccedilatildeo do programa

As vaacuterias tentativas de responder tais questotildees se mostraram pouco convin-centes para a grande maioria do puacuteblico norte-americano De fato criaram mais questotildees do que respostas Como as contas privadas teriam apoio sem cortar con-

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A construccedilatildeo do argumento

tribuiccedilotildees aos benefiacutecios a que eram destinadas Qual o efeito da perda de trilhotildees de doacutelares em contribuiccedilotildees para a sauacutede financeira dos programas de seguridade social existentes Ao cabo proponentes das contas privadas recuaram na alegaccedilatildeo de que resolveriam os problemas da seguridade social e as recomendaram por razotildees distintas

Ter garantias expliacutecitas significa que podemos ser mais especiacuteficos sobre os requisitos para um reforccedilo apropriado Quais evidecircncias haacute de fato de que a pri-vatizaccedilatildeo eacute um meio eficaz para solucionar problemas com programas puacuteblicos Aqui os proponentes poderiam se voltar para um conjunto misto de evidecircncias os casos nos quais a privatizaccedilatildeo foi ou natildeo eficaz Um precedente frequentemente citado que pode servir de reforccedilo agrave nossa garantia eacute o caso do Chile que privatizou integralmente o sistema no final da deacutecada de 1970 No entanto mesmo esse pre-cedente falhou em prover um reforccedilo soacutelido agrave garantia que a tese desqualificada parecia apelar No geral o sistema chileno funcionou bem mas muitas anaacutelises sugerem que funcionou melhor para a classe meacutedia e para a classe alta do que para os mais pobres cuja maioria teria se beneficiado mais com o programa social Considerando que a seguridade social eacute um instrumento para diminuir a margem de pobreza entre idosos norte-americanos a mais ou menos dois terccedilos (de cerca de 30 para 10) desde a deacutecada de 1970 esse foi um aspecto preocupante da experiecircncia chilena Aleacutem disso a vida do programa chileno em paralelo ofere-ceu condiccedilotildees para o maior aumento de preccedilo de accedilotildees na histoacuteria da negociaccedilatildeo de bens puacuteblicos o que levou algumas pessoas a questionarem o valor preditivo dessa accedilatildeo O programa chileno estaacute neste momento sendo reformulado de modo a tentar atenuar a tendecircncia de encurtamento de benefiacutecios aos mais pobres

Hoje em dia a proposta de privatizaccedilatildeo do sistema de seguridade social nos Estados Unidos estaacute parada em funccedilatildeo do crescente volume de criacuteticas mas ainda permanece como uma possibilidade no horizonte das poliacuteticas puacuteblicas As reivin-dicaccedilotildees ousadas e natildeo modificadas que defendem as contas privadas falharam na tarefa de ganhar amplo apoio puacuteblico apesar do grande volume de capital financeiro

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A construccedilatildeo do argumento

e poliacutetico investido Quanto mais o puacuteblico ouvia os argumentos dos proponentes menor era o apoio agrave proposta A fraqueza dos argumentos poderia ser facilmente expressa sem o modelo de Toulmin No entanto a linguagem do autor oferece uma maneira precisa de expressar problemas de articulaccedilatildeo entre aacutereas distintas Retroceder agrave falha geral da qualificaccedilatildeo da tese maior serve para se reconhecer o ocircnus da prova assumido pelo argumento No contexto dessa certeza os dados que reforccedilam tanto a urgecircncia quanto a magnitude do problema parecem insu-ficientes Aleacutem disso a incompatibilidade entre o problema (a seguridade social estaacute falindo) e a soluccedilatildeo (investir parte da contribuiccedilatildeo em contas privadas) pode ser mais visiacutevel apoacutes a desconstruccedilatildeo do argumento Mais do que isso a falta de qualquer elemento proacuteximo a um fato para a garantia erodiu a confianccedila puacuteblica no argumento

Apesar dos pesares o sucesso ou fracasso de um argumento correlaciona-se com a sonoridade tal qual estabelecida por Toulmin Ao final da anaacutelise o contex-to mais amplo as circunstacircncias nas quais os proponentes deveriam ldquoencontrar meios disponiacuteveis para a persuasatildeordquo provavelmente estaacute associado ao fracasso do argumento Um sem nuacutemero de eventos recentes levaram as pessoas a serem mais adversas aos riscos em particular no que toca agrave renda da aposentadoria As quedas dos mercados de accedilotildees em 2002 seguidas de trecircs anos de fraca recupe-raccedilatildeo deixaram as pessoas muito preocupadas em relaccedilatildeo a qualquer proposta que transferissem renda para esse mercado Mais do que isso ao longo da deacutecada anterior muitos descobriram que os planos privados de aposentadoria eram insol-ventes ou severamente subfinanciados quase ao ponto de serem abolidos ou ainda o silencioso fato de que os benefiacutecios definidos foram convertidos em benefiacutecios flutuantes dependentes da performance das accedilotildees no mercado Por fim entre os fatores que levaram aos problemas do mercado em 2002 estava o relaxamento de poliacuteticas regulatoacuterias do governo federal que levaram agrave falecircncia da Enron e de muitas outras operadoras de serviccedilos financeiros A maioria dos argumentos emerge ou afunda com base em assuntos ldquosubstanciaisrdquo como esses em oposiccedilatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

agrave fraqueza ldquoanaliacuteticardquo ou formal dentro de um argumento Poreacutem ao assumir que se pode recorrer ao contexto mais amplo e a familiaridade com circunstacircncias re-levantes a proposta de Toulmin permanece uma ferramenta poderosa para checar se um argumento eacute a melhor expressatildeo desses elementos

resumo

Em siacutentese o que os professores podem extrair dessa breve histoacuteria Das anti-gas contendas com a Filosofia podemos aprender a abraccedilar as bases ldquorealistasrdquo de nosso empreendimento a aceitar o fato de que natildeo podemos prometer certezas ou verdades com ldquovrdquo maiuacutesculo como efeito da argumentaccedilatildeo Podemos entretanto oferecer meios para atingir um entendimento mais completo e mais complexo do mundo e uma probabilidade maior de que esse entendimento seraacute traduzido em accedilotildees e decisotildees Podemos lembrar o fato de que o primeiro livro abrangente de teoria retoacuterica A Retoacuterica de Aristoacuteteles eacute um manual para a participaccedilatildeo cidadatilde na democracia grega e que de iniacutecio precisamos preparar natildeo especialistas a cumprir com suas obrigaccedilotildees como cidadatildeos Podemos oferecer sem desculpas meios sistemaacuteticos para a formulaccedilatildeo e teste de argumentos mesmo se nos man-temos cautelosos de que esses meios natildeo oferecem soluccedilotildees baratas e raacutepidas Podemos na aurora da ldquovirada linguiacutesticardquo da Filosofia em que o poder da lingua-gem em construir e tambeacutem representar a realidade eacute algo reconhecido aceitar a responsabilidade em ajudar as pessoas a ldquoquebrar as correntes de um vocabulaacuterio desgastadordquo e assegurar que qualquer terminologia por noacutes empregada eacute capaz de um ldquoprogresso criacutetico de si mesmardquo Quando a linguagem eacute entendida como funda-mentalmente metafoacuterica e carregada de valor em vez de literal e neutra quando o entendimento eacute compreendido como maneira de ver uma coisa em termos de outra (identificaccedilatildeo) e natildeo como consciecircncia de que uma coisa eacute outra (identidade) a interpretaccedilatildeo deixa de ser um exerciacutecio de desambiguaccedilatildeo de linguagem pouco

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A construccedilatildeo do argumento

elaborado e passa a ser um requisito baacutesico de todo o entendimento uma traduccedilatildeo de uma compreensatildeo geral para algo especiacutefico e circunstanciado

Na mesma moeda a relaccedilatildeo entre regras ou princiacutepios gerais e casos particu-lares eacute tal que os princiacutepios natildeo satildeo assumidos para explicar os casos no modelo de conversatildeo de leis para a explicaccedilatildeo de fenocircmenos fiacutesicos Na Retoacuterica a relaccedilatildeo entre princiacutepios e casos eacute de matildeo dupla Agrave medida que os princiacutepios oferecem meios para interpretar os casos esses desafiam e alteram os princiacutepios Em suma as mudanccedilas recentes na Filosofia moveram a Retoacuterica das margens em direccedilatildeo ao centro e transformaram os focos maiores da disciplina argumentaccedilatildeo e interpre-taccedilatildeo em operaccedilotildees essenciais e natildeo mais acessoacuterias

Em termos das praacuteticas em sala de aula a Retoacuterica nos ensina que as liccedilotildees da histoacuteria satildeo muito uacuteteis para irmos aleacutem da proacutepria histoacuteria Os antigos e os primeiros modernos os grandes sistematizadores dos seacuteculos passados podem nos levar longe mas temos de adaptar seus princiacutepios gerais agraves circunstacircncias que enfrentamos A Retoacuterica tradicional era vista ndash atraveacutes das lentes distorcidas da Filosofia ndash como versatildeo de baixa qualidade da demonstraccedilatildeo loacutegica um inqueacuterito para obtenccedilatildeo de provas A esfera do argumento foi cuidadosamente delimitada e o modelo de persuasatildeo era a ocasiatildeo uma apresentaccedilatildeo oral e formal operada em poucos locais Pouca atenccedilatildeo era dada aos meios atraveacutes dos quais as mensagens eram transmitidas e os seus possiacuteveis efeitos As audiecircncias eram tratadas como dadas como algo a ser estrategicamente endereccedilado seguindo um modelo de com-preensatildeo da natureza humana que lembra uma versatildeo crua das grades psicoloacutegicas aplicadas por publicitaacuterios para a manipulaccedilatildeo da audiecircncia

Ao transmitirmos as liccedilotildees da histoacuteria em sala de aula muitas generalizaccedilotildees uacuteteis satildeo aplicaacuteveis A argumentaccedilatildeo contemporacircnea raramente eacute operada em apenas um lugar ou miacutedia Ela avanccedila em muitas frentes atraveacutes de meios diver-sos cada qual responsaacutevel por colocar demandas uacutenicas a quem argumenta Em particular os efeitos dessas miacutedias vatildeo do texto escrito ou falado ao modo de apre-

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A construccedilatildeo do argumento

sentaccedilatildeo aos filtros atraveacutes dos quais as mensagens satildeo direcionadas ao puacuteblico agrave maneira pela qual cacircmeras microfones iluminaccedilatildeo e cenaacuterios prendem a atenccedilatildeo em determinadas caracteriacutesticas em detrimento de outras Devemos atentar agraves maneiras pelas quais os gecircneros ndash discurso poliacutetico editorial carta ao editor talk shows anuacutencios impressos e televisionados etc ndash afetam nossa percepccedilatildeo do texto Muitas vezes as dimensotildees natildeo racionais ndash natildeo confundir com ldquoirracionaisrdquo ndash do argumento satildeo mais importantes do que os fatores racionais para determinar a eficaacutecia de um dado argumento Por isso devemos aprender uma maneira de ler isso Devemos oferecer oportunidades aos nossos estudantes para trabalharem com os argumentos em suas diferentes facetas e natildeo limitaacute-los a operar com coleccedilotildees antoloacutegicas de argumentos muito longos geralmente direcionados a audiecircncia de escopo muito limitado

Ao adaptar as teorias contemporacircneas para a sala de aula nossos desafios satildeo mais especiacuteficos Como organizar uma aula focalizada em torno das diversas abordagens aqui discutidas Sem sermos muito doutrinaacuterios encorajamos algo da seguinte ordem Ler profundamente a obra de Burke em especial A Rhetoric of Motives e Perelman e Olbrechts-Tyteca especialmente o Tratado da Argumentaccedilatildeo ndash A Nova Retoacuterica de forma a desenvolver um quadro conceitual a partir do qual se ensina a argumentar Entretanto a abordagem mais adaptaacutevel e uacutetil para o ensino a nosso ver eacute a abordagem da Stasis Theory Ela tem espaccedilo de sobra para acomodar qualquer assunto funciona bem para a formulaccedilatildeo e anaacutelise do argumento e ofe-rece aos novatos uma linguagem razoavelmente simples para discutir argumento Por fim recomendamos o uso cuidadoso e limitado de Toulmin em conjunccedilatildeo com a leitura profunda das reivindicaccedilotildees maiores nos argumentos dos estudantes A aplicaccedilatildeo das ideias desse autor pode ser muito uacutetil para o segundo estaacutegio do esboccedilo na escrita quando os estudantes conhecem o argumento o suficiente para perceber os pontos fortes e fracos e estatildeo suficientemente comprometidos a ponto de serem desafiados mas natildeo derrotados pelas severas interrogaccedilotildees advindas do esquema proposto por Toulmin

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caPiacutetulO 2 Questotildees sobre argumentaccedilatildeo15

Neste capiacutetulo vamos examinar quatro questotildees conexas que delineiam nosso entendimento sobre o argumento e seu valor em sala de aula Primeiro criticamos a praacutetica tradicional de ldquofalaacutecias informaisrdquo dando especial atenccedilatildeo agrave lacuna entre os modelos formais de falaacutecias e sua aplicaccedilatildeo atual Segundo vamos estender essa criacutetica agrave pragma-diaacuteletica influente escola de teoria do argumento e seu esforccedilo para construir um paradigma em que as falaacutecias podem ser mais precisamente definidas e avaliadas Terceiro usando a taxionomia das praacuteticas composicionais de Fulkerson (1996) recentemente atualizada vamos verificar as principais al-ternativas para o ensino do argumento em aulas de escrita e situar o ensino do argumento entre essas praacuteticas Finalmente vamos considerar os proacutes os contras e os desafios do ensino da propaganda em uma aula dedicada agrave construccedilatildeo do argumento

o debate sobre a falaacuteCia

O tratamento de falaacutecias informais nas aulas de escrita sobre argumento eacute muito frequente Apesar dos esforccedilos de muitos da aacuterea em pocircr fim a essa praacutetica e a despeito de alguns autores de livros didaacuteticos que gostariam de bani-las de seus livros as falaacutecias permanecem Haacute aparentemente uma espeacutecie de apelo inerente agraves falaacutecias como eacute o apelo agrave gramaacutetica prescritiva nas aulas de escrita Em uma aacuterea tatildeo fluiacutedica e complexa as falaacutecias satildeo finitas concretas e oferecem

15 Traduccedilatildeo Siacutelvio Luis da Silva

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A construccedilatildeo do argumento

aos praticantes a perspectiva perturbadora de permitir um julgamento positivo ou negativo de ser capaz de proclamar argumentos natildeo simplesmente fracos ou fortes mas completamente errados ou certos Assim exatamente como o professor de escrita solitaacuterio e preocupado em justificar uma nota ao estudante pode achar pertinente a chance de apontar a ocorrecircncia de concordacircncia verbal inadequada ou construccedilotildees sem paralelismo (natildeo discuta com o livro meu amigo) a criacutetica distraiacuteda de um argumento inconsistente do aluno pode igualmente apontar a pre-senccedila absolutamente inequiacutevoca do argumento ad hominem tu quoque (natildeo discuta com o latim meu amigo) Ao passo que ajudar os alunos a entender que uma tese eacute evidente ou vaga ou que as suas evidecircncias satildeo irrelevantes para o que pretende pode ser difiacutecil e levar tempo penalizaacute-los pelas falaacutecias e erros gramaticais gasta menos tempo e exige menos justificativas

Por certo aqueles que usam as falaacutecias informais no ensino do argumento tecircm um motivo mais nobre Haacute uma longa tradiccedilatildeo na maneira de ensinar as falaacutecias que remonta aos seus primoacuterdios A gecircnese da abordagem das falaacutecias pode ser atribuiacuteda a Aristoacuteteles que primeiramente em De Sophisticis Elenchis (e tambeacutem em Prior Analytics e Rhetoric) tratou das falaacutecias como uma coleccedilatildeo de argumentos intencionalmente enganadores propostos pelos sofistas para confundir e cativar seus oponentes Algumas das treze falaacutecias enumeradas por ele satildeo completamente dependentes de artimanhas linguiacutesticas mas outras satildeo independentes da lin-guagem Contudo os problemas de obscuridade que envolvem as falaacutecias atraveacutes dos seacuteculos estatildeo presentes desde a primeira vez que se fez essa distinccedilatildeo Como mencionado por Eemeren et al (1996) os exemplos de falaacutecias linguiacutesticas e natildeo linguiacutesticas de Aristoacuteteles natildeo satildeo particularmente esclarecedores Na verdade muitos estudantes atuais de falaacutecia satildeo pressionados a encontrar algumas que natildeo sejam dependentes do uso evasivo alterado ou ambiacuteguo da linguagem Con-sideremos o seguinte argumento sofiacutestico retirado do Euthydemus de Platatildeo que eacute mencionado como um exemplo de falaacutecia dependente da linguagem vocecirc tem um cachorro seu cachorro eacute pai dos filhotes seu cachorro eacute seu pai (citado por

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A construccedilatildeo do argumento

Eemeren et al 1996 p 58-59) Posto dessa forma o argumento pareceria ser o mais completo absurdo e incapaz de enganar o mais creacutedulo dos interlocutores Ateacute em seu formato original de diaacutelogo parece ser completamente evidente Agrave luz do pensamento de Aristoacuteteles essa eacute uma falaacutecia dependente da linguagem ba-seada em ldquouma mudanccedila ilegiacutetima de um atributo de uma propriedade acidental de um sujeito [] ao proacuteprio sujeito ou vice-versa O que Aristoacuteteles entende aqui por lsquoacidentalrsquo natildeo eacute clarordquo (EEMEREN et al 1996 p 59) Mesmo se pudeacutessemos imaginar o que precisamente Aristoacuteteles tinha em mente ao designar um atributo ldquoacidentalrdquo a maioria de noacutes acharia a sua explicaccedilatildeo desnecessariamente tortuosa e complexa O simples fato de um cachorro ser o pai de alguns filhotes natildeo o faz pai de toda pessoa no mundo assim como designar algueacutem como esposa natildeo implica designar todo o resto no mundo como seu marido Essa eacute uma grande categoria de erro do tipo que pessoas na vida real simplesmente natildeo cometem

A uacutenica razatildeo para classificar isso como uma ldquofalaacutecia dependente da lingua-gemrdquo eacute o fato de que eacute tatildeo absurdamente grosseira que poucas pessoas satildeo passiacuteveis de serem enganadas pela artimanha linguiacutestica que transforma ldquoseurdquo e ldquopairdquo em propriedades universalmente aplicaacuteveis De fato muitos dos exemplos de falaacutecias paradigmaacuteticas de hoje satildeo por si mesmos mal engendrados como os exemplos antigos Isso natildeo surpreende uma vez que muitos deles parecem ter sido retirados de exemplos de falaacutecias de livros didaacuteticos tambeacutem antigos

Mesmo assim as falaacutecias continuam a ser um ponto essencial nas aulas de escrita dedicadas ao argumento a despeito do fato de que como Fulkerson (1996 p 96) ressaltou ldquo[] nunca houve uma definiccedilatildeo consensual ou uma classificaccedilatildeo utilizaacutevel de falaacuteciasrdquo e o nuacutemero atual de falaacutecias mencionado nos livros didaacuteticos varia demais inclusive com nomes diferentes Na tentativa de tornar o estudo das falaacutecias mais uacutetil para os professores de escrita Fulkerson (1996) cita o trabalho da loacutegica informal em especial uma definiccedilatildeo de falaacutecia desenvolvida por Kahane (1971) De acordo com a anaacutelise de Fulkerson (1996 p 97) dessa definiccedilatildeo existe uma falaacutecia se algueacutem natildeo puder responder ldquosimrdquo para as seguintes questotildees

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1 As premissas ndash tanto as expliacutecitas quanto as impliacutecitas ndash satildeo aceitaacuteveis2 Todas as informaccedilotildees relevantes e importantes satildeo levadas em con-sideraccedilatildeo3 A forma do argumento satisfaz as regras relevantes da loacutegica

Fulkerson (1996) deixa de lado a terceira questatildeo com base no fato de que ela trata das regras de deduccedilatildeo formal que a torna difiacutecil de ser aplicada sem se dispensar um tempo extenso com o ensino de loacutegica tempo que poderia ser melhor utilizado em questotildees mais relevantes Aleacutem disso problemas de loacutegica formal ra-ramente ocorrem em argumentos do mundo real Ele entatildeo passa a citar as onze maiores falaacutecias que define como ldquorelevanterdquo no sentido de que elas satildeo natildeo formais e enquadram-se nas duas questotildees apresentadas pela definiccedilatildeo de Kahane (1971)

A discussatildeo de Fulkerson (1996) eacute uacutetil e clara e qualquer pessoa determinada a ensinar falaacutecias nos argumentos deveria se referir a ela Como o autor esclarece desde o iniacutecio e ao longo de sua discussatildeo que ldquoa falaacutecia das falaacuteciasrdquo por assim dizer eacute confundir um defeito relevante com um defeito formal Pressupotildee-se como muitos fazem que ldquo[] qualquer argumento cuja falaacutecia natildeo eacute identificaacutevel seja um bom argumentordquo (FULKERSON 1996 p 15) eacute semelhante a presumir que qualquer argumento sem erros factuais seja aceitaacutevel A ausecircncia de falaacutecia natildeo garante um argumento persuasivo da mesma maneira que a ausecircncia de erros formais na deduccedilatildeo garante um argumento aceitaacutevel Da mesma forma encontrar um argu-mento particular apresentado da mesma maneira que um argumento falacioso natildeo garante que seja falacioso No caso de um argumento ldquoem cadeiardquo se algueacutem argumenta que fazer A leva a B que levaraacute a C e assim por diante esse argumento pode ou natildeo ser defeituoso Algumas cadeias satildeo afinal de fato escorregadias e algumas cadeias casuais mesmo as muito longas satildeo hermeacuteticas

O simples fato de um argumento seguir um padratildeo que geralmente eacute seguido por argumentos que acabam por ser falaciosos natildeo garante que o argumento em questatildeo seja falacioso O erro que alguns cometem ao pensar assim eacute o mesmo da

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falaacutecia de post horc ergo proper hoc (depois disso portanto por causa disso) Even-tos conectados em ordem sequencial satildeo apenas um indiacutecio de causalidade e ateacute que algueacutem possa realmente mostrar a relaccedilatildeo causal natildeo se tem nada provado O mesmo acontece com argumentos falaciosos Ao final deve-se sempre mostrar com bases soacutelidas exatamente por que eles satildeo falaciosos Uma vez mostrado conclusivamente que uma linha especiacutefica de raciociacutenio eacute falaciosa tipicamente apenas se enfraqueceu um argumento geral natildeo o anulou

Poreacutem como as objeccedilotildees anteriores agrave abordagem das falaacutecias sugerem alguns insights uacuteteis podem surgir ao se observarem os argumentos com as lentes das falaacutecias Vista como heuriacutestica ou como sintoma que levanta as questotildees aponta-das sobre dado argumento ao inveacutes de um algoritmo que classifica ou avalia um argumento a falaacutecia pode nos levar a uma linha de investigaccedilatildeo frutiacutefera Muitas falaacutecias realmente aparecem em argumentos do mundo real sob formas reconhe-ciacuteveis Por exemplo as falaacutecias mencionadas na conjunccedilatildeo com causalidade as veneraacuteveis post hoc ergo propter hoc e as falaacutecias ldquoem cadeiardquo aparecem frequen-temente especialmente em conjunccedilatildeo com argumentos poliacuteticosincitativos De forma diferente os argumentos nas ciecircncias por causa das regras mais riacutegidas de evidecircncia e dos meios mais precisos de se medir e por causa de uma tradiccedilatildeo de se fazerem afirmaccedilotildees cuidadosamente qualificadas tendem a produzir afirma-ccedilotildees menos controversas (ou pelo menos em relaccedilatildeo agraves do domiacutenio puacuteblico) Os argumentos de causalidade no cenaacuterio poliacutetico puacuteblico tendem a ser tanto mais difiacuteceis de qualificar quanto mais faacuteceis de manipular para fins poliacuteticos No caso das provas escolares por exemplo o estabelecimento de provas mais elaboradas nas escolas primaacuterias e secundaacuterias eacute tido como uma evidecircncia de que algo estaacute sendo feito para melhorar o sistema escolar e ainda melhor para garantir que ldquonenhuma crianccedila [seja] deixada para traacutesrdquo Nesse contexto o aumento de dois ou trecircs pontos nas notas escolares eacute entendido como uma validaccedilatildeo de um ldquomovimen-to de prestaccedilatildeo de contasrdquo No entanto um aumento na nota que vem ldquodepois das provasrdquo natildeo garante nem que as melhores notas sejam ldquopor causa da provardquo nem

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A construccedilatildeo do argumento

mais importante que a prova meccedila aprendizagem e proficiecircncia reais O resultado da prova pode muito bem indicar que os professores estatildeo ensinando melhor para a prova e que os estudantes estatildeo indo melhor nas provas ou que estatildeo sendo faacuteceis

Quando os resultados das provas estaduais usados para medir o progresso do aluno satildeo contestados pelos resultados de provas nacionais projetados para medir a proficiecircncia do aluno sem viacutenculos com o financiamento ou o credenciamento escolar o ldquoprogressordquo na prova estadual precisa ser reexaminado Como um nuacutemero consideraacutevel de criacuteticos do movimento das avaliaccedilotildees educacionais tem mostrado as provas por si mesmas nada fazem para melhorar a aprendizagem dos alunos Ou como alguns criacuteticos tecircm ilustrado ldquonatildeo se engorda um porco pesando-ordquo

Exemplos desse raciociacutenio falacioso podem ser encontrados em vaacuterios deba-tes puacuteblicos e para dizer a verdade natildeo satildeo desconhecidos pela impressa Ter em mente padrotildees falaciosos pode potencialmente ajudar as pessoas a reconhecer os sinais de raciociacutenio falacioso quando se deparam com eles e a organizar a resposta para os argumentos que eles trazem nas entrelinhas A decisatildeo de se discutir ou natildeo as falaacutecias informais em uma aula de escrita tem menos a ver com a prevalecircncia do problema que elas engendram ou da utilidade das falaacutecias para detectar tais problemas do que com os desafios pedagoacutegicos que elas trazem Para os conhece-dores de falaacutecias as que satildeo reais satildeo facilmente distinguiacuteveis das aparentes Por outro lado a forma eacute facilmente confundida com a substacircncia pelos inexperientes Algueacutem que procura argumentos post hoc ergo propter hoc pode achar um que faz adequadamente uma alegaccedilatildeo tiacutemida de relaccedilatildeo causal baseada em correlaccedilotildees es-tatiacutesticas altamente persuasivas e ainda assumir que todo o argumento eacute falacioso

Haacute mais problemas pedagoacutegicos com a abordagem das falaacutecias O filoacutesofo Michael Scriven um antigo liacuteder do movimento do pensamento criacutetico opocircs de acordo com Eemeren et al (1996 p 182) ldquo[] o uso de falaacutecias com o objetivo de criticar o argumento alegando que fazer isso requer construir durante o processo de identificaccedilatildeo do argumento todas as habilidades necessaacuterias para a anaacuteliserdquo Por que ensinar os estudantes o vocabulaacuterio ldquoteacutecnico das falaacuteciasrdquo Scriven ques-

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tiona se determinar o estado real do argumento pode ser feito da mesma maneira na ldquolinguagem naturalrdquo de alegaccedilatildeo evidecircncia razatildeo e assim por diante usada na anaacutelise retoacuterica tradicional Aprender a terminologia latina das falaacutecias eacute na visatildeo de Scriven um passo desnecessaacuterio A ldquoprecipitada generalizaccedilatildeordquo universal das falaacutecias por exemplo natildeo oferece nada de novo no sentido de fornecer uma ferramenta para se saber o quatildeo bem embasado um argumento eacute Evidecircncia fraca natildeo eacute apenas uma falaacutecia eacute a base de enfraquecimento de muitos argumentos Eacute prudente julgar a adequaccedilatildeo de uma sustentaccedilatildeo no acircmbito da compreensatildeo e no grau de ceticismo que uma determinada audiecircncia empresta ao argumento

Em linhas gerais entatildeo noacutes partilhamos do ceticismo de Scriven a respeito da utilidade da terminologia das falaacutecias em nossas aulas Da mesma forma sem-pre tentamos oferecer pelo menos uma breve exposiccedilatildeo de um grupo selecionado de falaacutecias como aquelas que lidam com a causalidade que realmente surgem no mundo real e que podem se tornar mais reconheciacuteveis com o uso do vocabulaacuterio das falaacutecias Na nossa experiecircncia pelo menos alguns alunos acreditam que a abordagem eacute uacutetil

a abordagem pragma-dialeacutetiCa das falaacuteCias

A criaccedilatildeo da Sociedade Internacional para o Estudo do Argumento (ISSA) com sede na Universidade de Amsterdatilde e composta majoritariamente por linguistas europeus e canadenses filoacutesofos retoacutericos e teoacutericos da comunicaccedilatildeo eacute um tema que merece atenccedilatildeo apenas porque os principais membros publicaram muito sobre o assunto e satildeo frequentemente citados por estudantes americanos de argumento16 Em certa medida a pragma-dialeacutetica (P-D) representa uma tentativa de resgatar a

16 O extremamente uacutetil Fundamentals of Argumentation Theory que temos citado tem a participaccedilatildeo de dez membros do iSSa e os dois autores principais van eemeren e grootendorst satildeo os fundadores da abordagem

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abordagem das falaacutecias das vaacuterias criacuteticas apresentadas anteriormente e daacute con-tinuidade ao trabalho promissor iniciado pela loacutegica informal e os movimentos do pensamento criacutetico dos anos 1970 e 1980

A maioria dos estudantes americanos de argumentaccedilatildeo vai achar o nome dessa abordagem no miacutenimo um pouco intrigante A tradiccedilatildeo pragmaacutetica da filo-sofia americana que inspira o trabalho de muitos retoacutericos americanos e muitos filoacutesofos americanos contemporacircneos que apoiam as abordagens retoacutericas do argumento vai muito aleacutem do que os defensores da P-D parecem ter em mente Para os pragmatistas americanos a adoccedilatildeo de uma abordagem pragmaacutetica impli-ca certas assunccedilotildees a respeito da centralidade da linguagem para a compreensatildeo do mundo e consequentemente modelos de construccedilatildeo do conhecimento como a ldquoconversa da humanidaderdquo de Oakeshott (1975) e Rorty (1979) e a metaacutefora da ldquosalardquo de Burke (1941)17 Isso implica uma rejeiccedilatildeo agraves abordagens formalistas e sis-temaacuteticas da Filosofia em favor de uma abordagem ldquoedificanterdquo e interativa O fim da Filosofia em favor do pragmatismo se repousa natildeo em uma maior quantidade de conhecimento ou maiores certezas a respeito da Verdade mas em decisotildees e atos que levam algueacutem substancialmente para mais perto de uma visatildeo da ldquoboa vidardquo uma visatildeo que pragmatistas continuamente questionam e modificam em respostas agraves mudanccedilas na base O movimento P-D entretanto parece identificar ldquopragmaacuteticardquo principalmente com o ato de considerar premissas natildeo expressas de argumentos de acordo com ldquopadrotildees de discurso fundamentadordquo (EEMEREN et al 1996 p 14) A parte pragmaacutetica da P-D portanto licencia as pessoas a consultar ldquoinformaccedilotildees contextuais e conhecimento preacuteviordquo (EEMEREN 1966 p 15) para a avaliaccedilatildeo da validade de um argumento e a teoria dos atos de fala para determinar a funccedilatildeo de uma dada afirmaccedilatildeo

17 Burke (1941) se utiliza da metaacutefora da ldquosalardquo para esclarecer que quando entramos em uma sala na qual haacute outras pessoas e tentamos participar da conversa precisamos ouvir e tentar compreender o que estaacute acontecendo e que soacute conseguimos participar da conversa depois de termos informaccedilotildees suficientes a respeito do assunto

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A construccedilatildeo do argumento

Essa compreensatildeo mais modesta da Pragmaacutetica pode ser levada ao ponto de partida para a abordagem P-D a abordagem dedutivista tradicional do argumen-to baseada inteiramente em regras internas para os argumentos bem formados Comparada agrave essa uacuteltima abordagem o desejo dos analistas de P-D de consultar o extraverbal os elementos natildeo formais do argumento e considerar os motivos e propoacutesitos pode ser visto como significativo poreacutem a sua semelhanccedila eacute miacutenima com compreensotildees mais robustas de pragmatismo por estudantes americanos de argumento

Da mesma forma a parte ldquodialeacuteticardquo da anaacutelise P-D eacute quando comparada com os usos americanos do termo igualmente modesta A abordagem dialeacutetica de Burke para a compreensatildeo como exemplificado em seu meacutetodo dramaacutetico eacute por exem-plo um grande instrumento de compreensatildeo Enxergar algo ndash leia-se ldquoatordquo ndash em termos de outra coisa ndash leia-se ldquoagenterdquo ndash resulta em uma uacutenica compreensatildeo do fenocircmeno em questatildeo A inversatildeo do par em questatildeo ou a substituiccedilatildeo por termos diferentes resulta em uma compreensatildeo radicalmente diferente Isso eacute um meio de compreensatildeo do mundo que resiste agrave conclusatildeo e certeza o que eacute acima de tudo heuriacutestico A compreensatildeo do termo P-D entretanto se baseia na assunccedilatildeo de que ldquo[] toda argumentaccedilatildeo se daacute entre dois (ou mais) participantes que estatildeo engajados em uma interaccedilatildeo muacutetua e sincrocircnica com o objetivo de solucionar um problemardquo (FULKERSON 1996 p 15) Eacute uma compreensatildeo entusiasmada de argumentaccedilatildeo ndash de acordo com EEMEREN et al (1996 p 277) mais um exerciacutecio de ldquoresoluccedilatildeo conjunta de problemasrdquo do que de persuasatildeo ndash e natildeo por acaso di-ficilmente encontrado no mundo real Enquanto os propositores da P-D poderiam felizmente garantir que poucos argumentos atingem seu ideal ndash ldquopor muitas razotildees a realidade argumentativa nem sempre se assemelha com o ideal de uma discussatildeo criacuteticardquo (EEMEREN et al1996 p 295) ndash eles defenderiam o modelo na medida em que isso fornecesse um padratildeo uacutetil que avaliasse o mundo real dos argumentos

Isso nos leva de volta ao iniacutecio da discussatildeo a tentativa da P-D de salvar fa-laacutecias Eles dizem que faltava nas abordagens tradicionais de falaacutecia um padratildeo

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A construccedilatildeo do argumento

para distinguir os argumentos que se parecem com argumentos falaciosos dos que satildeo realmente falaciosos Embora seu proacuteprio padratildeo seja eles diriam muito rigoroso natildeo eacute irrealista Eles podem estar certos O maior obstaacuteculo para usar a abordagem com a maioria dos estudantes americanos de argumento que opotildeem Retoacuterica agrave Filosofia ou agrave Linguiacutestica eacute a grande complexidade do modelo Se al-gueacutem usa P-D em sua aula deve estar preparado para usaacute-la sozinha porque boa parte do semestre vai ser dispensada para elucidar os elementos do sistema e ilustrar esses elementos com exemplos extremamente simples e muito distantes dos tipos de controveacutersias que os alunos realmente encontram no mundo Como a P-D eacute uacutetil para interpretar a apresentaccedilatildeo de um argumento mais simples ela lembra a abordagem de Toulmin No entanto nesse aspecto ela requer a aquisiccedilatildeo de uma gama maior de vocabulaacuterio necessaacuterio para traduzir a linguagem natural da argumentaccedilatildeo em padratildeo P-D apropriado o que eacute algo como Toulmin elevado ao quadrado Talvez ao cubo Consideremos os elementos do sistema haacute quatro princiacutepios teoacutericos dos quais derivam normas para o estudo do argumento haacute quatro estaacutegios de ldquoresoluccedilatildeo diferentesrdquo haacute dez regras de discussatildeo criacutetica haacute quatro tipos de atos de fala usados em vaacuterios estaacutegios para se chegar agrave soluccedilatildeo treze usos possiacuteveis de cinco atos de fala nos quatro estaacutegios e quarenta e trecircs possiacuteveis regras de violaccedilatildeo

Estaacute aberto o debate sobre o fato do benefiacutecio da enorme complexidade que a P-D defende para esclarecer quando um argumento natildeo eacute apenas formalmente mas substantivamente falacioso leva a uma anaacutelise mais efetiva Para a maioria dos professores a ideia de que os meios justificam os fins eacute aparentemente menos questionaacutevel Na medida em que a P-D eacute uma ferramenta para anaacutelise de argumento ela eacute por hora provavelmente melhor aplicada por profissionais

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A construccedilatildeo do argumento

alternativas para enfatizar a argumentaccedilatildeo em uma aula de esCrita estudos CrIacutetiCo-Culturais

Em um artigo sobre a escrita na virada do seacuteculo XXI Fulkerson (2005) procura estabelecer o cenaacuterio dos estudos da escrita contrastando o panorama atual com o que encontrou em 1990 quando ele realizou um trabalho parecido na deacutecada de 1980 O autor descobre em sua uacuteltima leitura profunda sobre o assunto que a escrita ldquo[] se tornou uma disciplina menos unificada e mais controversa no iniacutecio do seacuteculo XXI do parecia ser nos anos 1990rdquo (FULKERSON 2005 p 654) Ele identificou trecircs axiologias ou teorias de valor que datildeo origem a trecircs abordagens distintas da escrita18 As trecircs axiologias incluem a visatildeo de ldquoconstruccedilatildeo socialrdquo que daacute origem agrave abordagem dos ldquoestudos criacutetico-culturaisrdquo (ECC) uma visatildeo expressi-vista que daacute origem ao expressivismo e uma visatildeo ldquoretoacuterica multifacetadardquo que origina o que ele define como ldquoretoacuterica processualrdquo (FULKERSON 2005 p 655) Essa uacuteltima abordagem eacute entretanto dividida em trecircs formas de ldquoretoacuterica proces-sualrdquo ldquo[] escrita como argumentaccedilatildeo escrita baseada em gecircneros e escrita como introduccedilatildeo ao discurso da comunidade acadecircmicardquo (FULKERSON 2005 p 671) Segundo o autor no ambiente atual ldquomenos unificado e mais controversordquo escolher uma dessas abordagens pode facilmente se constituir em um ato controverso

Concordamos com Fulkerson (2005 p 681) sobre a divisatildeo da disciplina um estado que talvez seja melhor captado na sua citaccedilatildeo da contenccedilatildeo de Gary Olson de que os estudos da escrita estatildeo agrave beira de uma ldquoguerra de novas teoriasrdquo Somos tambeacutem simpaacuteticos com a sua clara preferecircncia agrave retoacuterica processual em geral e a uma ecircnfase argumentativa em particular Somos por outro lado menos criacuteticos a abordagens alternativas do que ele parece ser e em alguns casos nossa

18 uma quarta abordagem a aparentemente imortal corrente tradicional eacute relutantemente reconhecida mas pouco discutida por fulkerson (2005)

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fundamentaccedilatildeo para preferir o foco no argumento e natildeo em outra abordagem eacute diferente Parte dessas diferenccedilas indubitavelmente se deve agrave inevitaacutevel reduccedilatildeo de perspectiva que Fulkerson teve de fazer para construir um mapa legiacutevel Como ele reconhece todas essas abordagens satildeo mais complexas e heterogecircneas do que se pode abarcar no acircmbito de uma visatildeo geral Aleacutem disso natildeo estaacute claro para noacutes se uma ecircnfase no argumento eacute pedagogicamente em vez de ideologicamente incompatiacutevel com algumas dessas abordagens19

De qualquer maneira atualmente a decisatildeo de enfatizar ou em certa medida simplesmente incluir a argumentaccedilatildeo em uma aula de escrita eacute uma escolha poliacutetica para a qual se deve estar bem preparado para defender dos defensores de outras abordagens Em programas cujas decisotildees curriculares satildeo feitas coletivamente esse debate aqui ensaiado pode ser feito muito rapidamente agraves vezes arduamente

Certamente a maior mudanccedila na ecircnfase da escrita nos uacuteltimos vinte anos envolve o surgimento das abordagens dos ECC Defendida mais notadamente por James Berlin essa abordagem engloba uma gama de ecircnfases diferentes incluindo o feminismo a aprendizagem de serviccedilo ou serviccedilo comunitaacuterio e a pedagogia criacutetica (que natildeo deve ser confundida com as abordagens de pensamento criacutetico de-cididamente neutros dos anos 1970 e 1980) Fulkerson (2005 p 660) eacute criacutetico dos ECC essencialmente por enfatizar demais questotildees de justiccedila social e ldquolibertaccedilatildeo dos discursos dominantesrdquo e pela sua tendecircncia a privilegiar o empoderamento dos alunos em detrimento da melhora da escrita como um resultado do curso Ele tambeacutem eacute reticente ao foco na interpretaccedilatildeo de textos e artefatos culturais em oposiccedilatildeo agraves estrateacutegias de inventividade e revisatildeo dos textos dos alunos Ele vecirc uma inquietante semelhanccedila entre os cursos de ECC

19 No proacuteximo capiacutetulo (Introduccedilatildeo a algumas boas praacuteticas) na verdade nos atentamos a uma gama de diferentes abordagens pedagoacutegicas para o ensino da escrita que parecem perfeitamente compatiacuteveis com o foco no argumento

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A construccedilatildeo do argumento

[] e os cursos de escrita baseados em literatura popular e de resistecircn-cia Em ambos os tipos os alunos leem textos que os professores julgam importantes Eles escrevem a respeito desses textos e o seu trabalho eacute avaliado a partir do quatildeo bem demonstram que eles entendem e podem fazer uma abordagem interpretativardquo (FULKERSON 2005 p 662-63)

Cursos desse tipo supotildee Fulkerson (2005) satildeo motivados em parte pelo que ele define como ldquociuacuteme de conteuacutedordquo dos professores de escrita

Nossa preferecircncia por cursos de escrita baseados na argumentaccedilatildeo agrave abor-dagem ECC natildeo implica uma rejeiccedilatildeo total a cursos de escrita ricos em conteuacutedo mesmo quando esse conteuacutedo eacute compatiacutevel com o ensinado em um curso tiacutepico de ECC Oferecer aos alunos um conjunto de textos eou artefatos para serem lidos e discutidos natildeo impede uma instruccedilatildeo direcionada para a argumentaccedilatildeo ou a escrita Aleacutem disso em uma aprendizagem baseada na colaboraccedilatildeo ou coo-peraccedilatildeo textos e assuntos comuns podem ser extremamente uacuteteis na promoccedilatildeo da discussatildeo e negociaccedilatildeo de sentido Dito isso noacutes partilhamos de algumas das reservas de Fulkerson (2005) quanto ao que muitas vezes realmente acontece em cursos ricos em conteuacutedo especialmente quando o conteuacutedo em questatildeo eacute uma paixatildeo do professor A discussatildeo de textos selecionados e de artefatos pode custar a discussatildeo dos proacuteprios textos dos alunos e o tempo dedicado agrave invenccedilatildeo e agrave revisatildeo de seu trabalho Poucos livros didaacuteticos aparentemente feitos para o uso em cursos de ECC oferecem o bastante na forma de instruccedilatildeo ou invenccedilatildeo ou revisatildeo e menos ainda discutem seriamente princiacutepios retoacutericos Muito do que se demanda dos alunos em cursos assim eacute a escrita baseada em argumentaccedilatildeo aleacutem disso haacute pouca instruccedilatildeo clara em como produzir um argumento ou como pensar sobre ele e os exerciacutecios como os exerciacutecios sobre a construccedilatildeo do argumento nem sempre satildeo claramente focados

Certamente muitos professores que usam essa abordagem criam o seu proacuteprio material por razotildees natildeo relacionadas ao seu compromisso com o foco em ECC De qualquer forma qualquer um que usa uma abordagem ECC que deseja garantir um

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equiliacutebrio entre o foco no conteuacutedo e o foco na escrita do aluno deve estar prepa-rado para realizar um levantamento pedagoacutegico bem extenso

Em alguns casos os cursos de ECC baseados em um uacutenico tema podem apre-sentar temas e artefatos com o mesmo ponto de vista e apontar para uma uacutenica direccedilatildeo desencorajando as discordacircncias racionais e a reflexatildeo criacutetica a respeito dos assuntos em questatildeo Ateacute mesmo cursos essencialmente pensados para criar uma consciecircncia criacutetica podem dificultar o desenvolvimento dessa capacidade agrave medida que ignoram a maacutexima de Burke de que qualquer terminologia eacute suspeita agrave medida que natildeo permite uma criacutetica progressiva de si mesma Ao desmerecer e criticar o vocabulaacuterio dos outros eacute importante que nos mantenhamos atentos aos nossos proacuteprios limites vocabulares que seratildeo mencionados e questionados por muitos alunos cuja visatildeo poliacutetica pode ser decididamente diferente daquela dos defensores tiacutepicos da ECC

Reiteramos que natildeo achamos que os cursos de ECC necessariamente incorrem nessas falhas natildeo mais do que acreditamos que os cursos baseados na argumen-taccedilatildeo necessariamente incorrem no formalismo vazio ou noccedilotildees panglossianas de pluralismo Certamente como deixamos claro no primeiro capiacutetulo em que discutimos a instruccedilatildeo criacutetica em sentido mais geneacuterico partilhamos muitos dos objetivos libertadores anunciados pelos defensores de ECC Acreditamos que os alunos podem ser empoderados pelos cursos de escrita e que eles podem se tornar mais conscientes dos modos como o discurso e a ideologia dominantes reduzem o ciacuterculo do pensamento criacutetico Acreditamos que podem fazer isso ateacute mesmo agrave medida que se tornam melhores escritores No entanto devemos concordar eacute possiacutevel se alcanccedilarem esses objetivos sem usar exclusivamente ou mesmo signi-ficativamente os materiais comumente vistos nos cursos de ECC Na verdade em alguns casos os alunos tendem a achar ambiciosos os objetivos delineados pelos defensores da ECC em um ambiente que daacute mais ecircnfase aos processos de leitura reflexatildeo escrita discussatildeo e escuta dos proacuteprios alunos do que nos materiais pri-maacuterios e secundaacuterios normalmente encontrados no curso

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Qualquer curso que deseja combinar com sucesso uma ecircnfase nos materiais de ECC e na melhora da escrita dos alunos deve deixar clara a ligaccedilatildeo do trabalho entre a interpretaccedilatildeo de textos e dos artefatos feitos pelos alunos e a construccedilatildeo de seus proacuteprios textos a respeito desse material Aqui novamente nossa pers-pectiva se diferencia da de Fulkerson Enquanto ele tende a tratar a interpretaccedilatildeo como uma atividade separada que prejudica as habilidades de escrita dos alunos noacutes tendemos a ver as duas atividades como complementares e concordamos com Berthoff (1983) para quem interpretamos como escrevemos No contexto de um curso de escrita a interpretaccedilatildeo pode se tornar uma atividade inventiva um meio de gerar o texto original No entanto isso soacute pode funcionar se ficar claro para os alunos que natildeo existe ldquouma maneira certardquo de ler o material e se as muacuteltiplas formas de leitura do texto satildeo delineadas para eles pelo professor pelos colegas e pelo material que eles estatildeo interpretando Se somos tentados a limiar o desen-volvimento dos alunos como pensadores independentes em nome de conclusotildees corretas talvez desejemos cutucaacute-los ou ateacute mesmo empurraacute-los fariacuteamos bem se nos lembraacutessemos mais uma vez do conceito de ldquoreversibilidaderdquo de Berude (1998) e da nossa incapacidade de prever os fins aos quais nossos alunos datildeo aos meios intelectuais que pomos agrave disposiccedilatildeo deles

pedagodia expressivista

A criacutetica de Fulkerson (2005 p 655) agraves abordagens expressivistas que ldquo[] a despeito dos vaacuterios golpes dos canhotildees do poacutes-modernismo e dos decorrentes elogios estaacute de fato silenciosamente expandindo seu campo de atuaccedilatildeordquo indica que elas incluem ldquo[] um aumento da conscientizaccedilatildeo e a chegada de uma ala com vozrdquo (FULKERSON 2005 p 666) que em nome de uma sauacutede psicoloacutegica comete os mesmos pecados contra o ensino da escrita cometidos pelos defensores da ECC em nome da libertaccedilatildeo poliacutetica O fato de Fulkerson dedicar menos da metade do espaccedilo que usa para criticar o expressivismo do que dedica agrave criacutetica da ECC ou aos

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procedimentos retoacutericos parece refletir um pouco de desprezo por essa abordagem Ao comentar o principal exemplo um estudioso defensor do curriacuteculo expressivis-ta ele rejeita a premissa baacutesica do autor com base na ldquo[] inclusatildeo de uma uacutenica narrativa autobiograacutefica no primeiro curso ser uma praacutetica completamente padratildeo e natildeo justifica designar o curso como lsquoexpressivorsquordquo (FULKERSON2005 p 668)

Nossa visatildeo sobre o expressivismo eacute mais positiva do que a de Fulkerson Na verdade vemos como uma estrateacutegia convincente a ser adotada para pedir aos alunos que componham narrativas pessoais nas aulas de escrita focadas na argu-mentaccedilatildeo e para ensinar a ler narrativas pessoais como uma forma de argumentar Enquanto vemos cursos baseados em argumentaccedilatildeo melhor delineados para atingir os fins da Retoacuterica e em longo prazo para servir a ambos os objetivos cognitivos e de desenvolvimento dos alunos noacutes aceitamos a importacircncia do engajamento da pessoa nos cursos de escrita e reconhecemos as contribuiccedilotildees dos estudiosos feministas e expressivistas dos uacuteltimos tempos para alcanccedilarmos esse objetivo Embora a criacutetica ao expressivismo de Fulkerson (2005) seja bem formulada ele ignora alguns trabalhos interessantes que vecircm sendo feitos pela ldquosegunda geraccedilatildeordquo de acadecircmicos expressivistas e relega a segundo plano um dos mais poderosos e igualitaacuterios instrumentos de persuasatildeo

Na verdade um trabalho aacuterduo deve ser feito no desenvolvimento de meios de avaliar interpretar e responder a narrativas pessoais para atingir seu total potencial em aulas de argumentaccedilatildeo Alguns acadecircmicos expressivistas contem-poracircneos jaacute comeccedilaram a trilhar esse caminho Na sequecircncia oferecemos algumas das nossas proacuteprias observaccedilotildees destinadas a identificar armadilhas das narrativas pessoais persuasivas e formas de abordar essas armadilhas

A esse respeito citamos o artigo Argument and Evidence in the Case of the Personal de Spigelman (1993) como um caso exemplar que situa o expressivismo na tradiccedilatildeo retoacuterica (especialmente a tradiccedilatildeo Aristoteacutelica) e o concebe como uma teoria contemporacircnea que explica o papel do pessoal no contexto da escrita persu-asiva Spigelman (1993) usa a escrita pessoal ldquo[] para fazer referecircncia aos modos

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com os quais os escritores atribuem sentido a suas vidas por meio da organizaccedilatildeo de suas experiecircncias em histoacuterias em primeira pessoardquo (SPIGELMAN 1993 p 65)

Independentemente de sua extensatildeo essas histoacuterias ldquo[] servem a finalidades que ultrapassam a pura expressatildeo de suas opiniotildees ou de confissotildees cartaacuterticasrdquo (SPIGELMAN 1993 p 66) Uma das finalidades mais importantes a que essas nar-rativas servem eacute mostrar comprovaccedilotildees O que conta como comprovaccedilatildeo enfatiza Spigelman (1993) eacute qualquer elemento que um auditoacuterio se dispotildee a permitir como tal Nas disciplinas tradicionais isso significa que apenas aquelas formas de comprovaccedilatildeo reconhecidas pelos especialistas da aacuterea seratildeo contabilizadas Isso significa por outro lado que quem estaacute de fora dessas disciplinas tradicionais ndash frequentemente as mulheres ndash cujas experiecircncias pessoais contradizem as conclu-sotildees dos especialistas natildeo seratildeo facilmente reconhecidas por esses especialistas A narrativa pessoal entatildeo ldquoeacute entendida como lsquoum ato significativo e subversivorsquo que daacute voz e autoridade agraves reivindicaccedilotildees das mulheres para o conhecimento ao nomear as suas experiecircncias como dados admissiacuteveis e relevantesrdquo (SPIGELMAN 1993 p 66)

Ainda que a narrativa de fato desempenhe um papel importante para em-prestar autoridade agraves reivindicaccedilotildees dos excluiacutedos pode parecer que natildeo eacute sub-versiva Na sequecircncia desses desenvolvimentos como a thick description (descriccedilatildeo consistente)20 na Antropologia no novo historicismo na Literatura e na proacutepria Histoacuteria sem mencionar os trabalhos de vaacuterios teoacutericos como Paul Feyerabend e Michel de Certeau as narrativas hoje possuem a funccedilatildeo de comprovaccedilatildeo tanto para os incluiacutedos quanto para os excluiacutedos Por certo como enfatiza Spigelman (1993 p 69) alguns ldquo[] poacutes-modernistas questionam a representaccedilatildeo [das nar-

20 o termo thick description(descriccedilatildeo consistente) se tornou conhecido pelo trabalho de Clifford geertz e eacute entendido como uma forma de escrever que inclui natildeo apenas a descriccedilatildeo e a observaccedilatildeo geralmente do comportamento humano mas tambeacutem as circunstacircncias em que esse comportamento se daacute assim se vale mais do que das aparecircncias pois inclui o contexto as emoccedilotildees os detalhes e toda a rede de relaccedilotildees sociais

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rativas pessoais] de sujeitos como indiviacuteduosrdquo mas esses questionamentos satildeo mais frequentemente direcionados para a maneira como a qual a representaccedilatildeo eacute construiacuteda do que para a legitimaccedilatildeo da narrativa pessoal como tal Certamente muitos de nossos alunos vatildeo encontrar narrativa pessoal e vaacuterias formas de pes-quisa etnograacutefica na universidade e devem estar preparados para responder a isso criticamente e a reproduzi-las inteligentemente

Como Fulkerson (2005 p 662) ressalta nossa proacutepria aacuterea tem adotado ldquoum construtivismo vagamente interacionistardquo nos uacuteltimos vinte anos e no processo legitimado ateacute mesmo privilegiado a narrativa pessoal comprova a nossa pesquisa Como era de se esperar Fulkerson (2005) natildeo eacute otimista a respeito dessa evoluccedilatildeo Apoacutes termos brevemente mostrado as suas consideraccedilotildees a respeito da corrente expressivista e da nossa versatildeo significativamente revisitada dessas considera-ccedilotildees vamos retornar agrave defesa de Spigelman (1993) da narrativa pessoal como uma ferramenta educativa e persuasiva e ponderar as formas como essa defesa deve ser expandida para tornar a narrativa pessoal mais prontamente uacutetil em aulas de escrita com ecircnfase no argumento

Citando pesquisas realizadas por teoacutericos da ECC Fulkerson (2005 p 662) aponta que ldquoo apelo pedagoacutegico embora algumas vezes seja baseado em estudos de caso etnograacuteficos nunca eacute geral mas sempre local Seu status epistemoloacutegico eacute o da erudiccedilatildeo sofisticada lsquoEu vi isso acontecerrsquo ou lsquoEu fiz isso e isso ajudou meus alunosrsquordquo O questionamento de Fulkerson aqui nos parece um tanto quanto ultrapassado A primeira imperfeiccedilatildeo da pesquisa etnograacutefica ele defende eacute a de que ela natildeo pode ser generalizada No entanto eacute evidente que ela pode ser generalizada natildeo pelo seu autor mas pelo auditoacuterio De fato essas pesquisas geralmente satildeo generalizadas seja por aqueles que a conduzem ou por aqueles que a citam Nossa preocupaccedilatildeo a respeito do uso de estudos de caso eacute o fato de que natildeo fica exatamente claro ateacute que ponto ou para qual direccedilatildeo as generalizaccedilotildees podem nos levar uma vez que os limites expliacutecitos satildeo raramente conhecidos ou articulados no acircmbito dos estudos

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propriamente ditos21 Nesse sentido as pesquisas etnograacuteficas natildeo satildeo diferentes de tantos outros substratos de narrativas pessoais que intencionalmente ou natildeo deixam obscuro exatamente a funccedilatildeo para a qual a narrativa estaacute a serviccedilo ou quais regras ou generalizaccedilotildees podem ser legitimadas pelas evidecircncias que apresentam

De fato os auditoacuterios de narrativas literaacuterias poderiam considerar esse co-mentaacuterio inoportuno desnecessaacuterio e ateacute mesmo completamente ofensivo Como forma de esclarecer a funccedilatildeo e o real status de casos de narrativa em pesquisa retomamos Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969 p 350) e a sua discussatildeo sobre a confusatildeo a respeito de trecircs funccedilotildees diferentes de ldquocasos particularesrdquo exemplos ilustraccedilotildees e modelos O caso particular que eles mencionam eacute o das revistas ame-ricanas O perfil de celebridade nas revistas tem a seguinte caracteriacutestica

[] descreve a carreira de pessoas de negoacutecios poliacuteticos ou estrelas de cinema sem explicitamente tirar proveito dele Os fatos satildeo evidenciados apenas como uma contribuiccedilatildeo para a histoacuteria ou satildeo uma complementa-ccedilatildeo a ela Os exemplos estatildeo sugerindo uma generalizaccedilatildeo espontacircnea Eles satildeo ilustraccedilotildees de receitas conhecidas para o sucesso social Ou as figuras centrais estatildeo nessas narrativas sendo elevadas a modelos ex-traordinaacuterios a serem imitados pelo puacuteblico Eacute impossiacutevel de ter certeza Provavelmente uma histoacuteria como essa tem a intenccedilatildeo de ndash e com frequ-ecircncia efetivamente fazem ndash satisfazer todos esses papeacuteis para diferentes classes de leitores (PERELMAN OLBRECHTS-TYTECA 1969 p 351)

21 Um dos exemplos recentes mais conhecidos do fenocircmeno que citamos aqui o fato de pesquisador se basear fortemente em evidecircncias e narrativas natildeo comprovadas para estabelecer uma categoria de julgamentos quantitativa sobre o seu tema eacute trabalho de Debora Tannen enquanto a maioria de seus pares no campo da Sociolinguiacutestica baseia a ldquodireccedilatildeordquo de suas descobertas nas diferenccedilas na forma como os homens e mulheres se comunicam alguns se preocupam com a intensidade do impacto e a universalidade dessas diferenccedilas Para concluir a partir das descobertas de que os homens satildeo 5 ou 10 mais propensos do que as mulheres a responder a uma situaccedilatildeo especiacutefica de uma maneira especiacutefica que haacute categoacutericas diferenccedilas nas suas respostas (ou seja que eles tipificam ldquoestilosrdquo de respostas masculinas ou femininas) parece ser exagerado Para anaacutelises retoacutericas mais completas da metodologia de Tannen consultar Ramage (2005)

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Dadas as diferenccedilas de escopo de generalizaccedilotildees legitimadas por diferentes tipos de casos particulares o prejuiacutezo que resulta de relatar um caso e entatildeo cui-dadosamente evitar ldquotirar uma liccedilatildeo delerdquo pode ser significativo O caso em ques-tatildeo eacute primeiramente um exemplo que sugere um padratildeo maior mesmo se ajudar a estabelecer a existecircncia desse padratildeo Ou eacute um modelo um ideal inquestionaacutevel que o auditoacuterio deveria desejar Ou talvez seja uma ilustraccedilatildeo de um padratildeo es-tabelecido que eacute aceito como tal Deixar duacutevida a respeito dessa questatildeo eacute dar espaccedilo para se oferecer ostensivamente um evento uacutenico para o entretenimento de um auditoacuterio que eventualmente se torna uma regra imposta a esse auditoacuterio

Ao mesmo tempo em que reconhecemos alguns dos problemas de empregar casos particulares e narrativas pessoais na pesquisa acreditamos que esses proble-mas satildeo sobrevalorizados pelos valores da narrativa pessoal As narrativas pessoais satildeo uma ferramenta de pesquisa uacutetil e tambeacutem uma ferramenta de persuasatildeo po-derosa ndash assim eacute o poder da narrativa pessoal que torna o seu abuso tatildeo perigoso Ao inveacutes de distanciar os alunos das narrativas pessoais entatildeo noacutes defendemos que eles devem ser ensinados a construiacute-las e a criticaacute-las Dito isso voltamo-nos agora para o artigo de Spigelman (1993) e para algumas das preocupaccedilotildees que ela partilha sobre os perigos da narrativa no contexto da escrita persuasiva Iremos entatildeo tentar desenvolver o que a autora comeccedilou a esboccedilar

Spigelman (1993 p 79) estaacute particularmente preocupada com ldquo[] a proble-maacutetica de teste de validade em pesquisas empiacutericasrdquo e cita a questatildeo que Richard Flores levanta a respeito de seu proacuteprio trabalho

Como os meus colegas avaliadores fazem para acessar o meu trabalho acadecircmico que estaacute ligado agrave minha experiecircncia de crescer no Texas sob o olhar atento daqueles cujas visotildees dos mexicanos eram abertamente racistas Os meus colegas poderiam escrever nas suas resenhas que mi-nhas consideraccedilotildees satildeo incorretas e que eu deveria reconsiderar a mi-nha praacutetica (SPIGELMAN 1993 p 79)

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Para responder agrave questatildeo levantada por Flores Spigelman (1993) se volta para duas narrativas sobre a escrita uma de uma professora de escrita de uma faculdade comunitaacuteria outra do contista Raymond Carver

As conclusotildees contraditoacuterias a que chegaram os dois escritores ilustram a ldquoproblemaacutetica do teste de validaderdquo pelo menos para aqueles que leem as nar-rativas na esperanccedila de se depararem com insights sobre seu proacuteprio trabalho em oposiccedilatildeo agravequeles que leem por puro entretenimento No caso da professora a maior generalizaccedilatildeo ou alegaccedilatildeo que emerge da histoacuteria aponta para a futilidade de comentar a respeito da escrita dos alunos A afirmaccedilatildeo se baseia na discussatildeo que a professora teve com seu marido a respeito de um texto que ele escreveu durante o ensino meacutedio e obteve a nota 95 sem nenhum comentaacuterio No caso de Carver entretanto a maior generalizaccedilatildeo ou afirmaccedilatildeo que emerge da histoacuteria diz respeito ao feedback detalhado e agrave avaliaccedilatildeo baseada em aulas que ele teve com o romancista John Gardner Como poderia algueacutem avaliar essas duas conclusotildees aparentemente contraditoacuterias a partir de experiecircncia pessoal

Sigelman se volta para a abordagem de James Raymond oriunda das discussotildees de Aristoacuteteles sobre exemplo e entimema Ele direciona a atenccedilatildeo dos alunos para as premissas que subjazem agrave narrativa e agrave questatildeo Em que o leitor deveria acredi-tar para aceitar que os argumentos satildeo persuasivos Spigelman entatildeo expande as anaacutelises de Raymond voltando-se ao paradigma da narrativa de Walter Fisher e a sua assunccedilatildeo sobre as narrativas

[] podem ser avaliadas e criticadas por sua validade ou racionalidade aplicando-se os princiacutepios da probabilidade narrativa o que constitui uma histoacuteria coerente e fidelidade narrativa se as histoacuterias que eles [o auditoacuterio] experienciam conectam realidade com histoacuterias que eles sa-bem serem reais em suas vidas (SIGELMAN 1993 p 80)

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Para avaliar a probabilidade narrativa eacute preciso prestar especial atenccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves falas dos personagens agrave medida que o padratildeo de adequaccedilatildeo eacute oriundo das suas accedilotildees e falas anteriores e dos valores que implicam A fidelidade narrativa entretanto demanda que examinemos as suposiccedilotildees subjacentes agraves alegaccedilotildees do escritor a respeito da importacircncia e do significado de sua histoacuteria e confrontemos essas suposiccedilotildees com nossas proacuteprias suposiccedilotildees e com as que partilhamos com outros Quando aplica essa meacutetrica agraves duas histoacuterias Spigelman descobre que a histoacuteria da professora ignora muitas variaacuteveis possiacuteveis que baseadas em suas proacuteprias experiecircncias como professorapesquisadora poderiam explicar bem mais a eventual fluecircncia na escrita de seu marido advogado do que a nota 95 sem comentaacuterios que conseguiu com o seu professor de inglecircs do segundo ano

A pesquisa de Carvey por outro lado parece mais consistente com as suposi-ccedilotildees a respeito do ensino da escrita do que ela partilha com muitos de sua aacuterea e apresenta por conseguinte maior fidelidade narrativa A habilidade de Spigelman em avaliar os dois textos sem paracircmetros impressionistas enfatiza a sua crenccedila de que se pode ensinar a outros como fazer esse trabalho Aleacutem disso como ela enfatiza depois ldquoa narrativa pessoal natildeo questionada e natildeo avaliada eacute sedutora e consequentemente perigosardquo (SPIGELMAN 1993 p 83) e natildeo podemos permitir que natildeo se ensine a escrita pessoal retoricamente constituiacuteda em nossas aulas

Acreditamos que o artigo de Spigelman eacute sugestivo e ao que parece persu-asivo No entanto como ela admite haacute ainda muito trabalho a ser feito no campo da avaliaccedilatildeo de alegaccedilotildees provenientes de experiecircncia pessoal Ainda que sempre possamos avaliar as alegaccedilotildees (quase sempre expliacutecitas) em artigos expositivos com maior grau de certeza do que podemos avaliar em alegaccedilotildees (geralmente taacutecitas) oriundas de exposiccedilotildees pessoais com certeza podemos conseguir um maior grau de confianccedila do que o estado da arte atual permite Talvez a melhor maneira de iniciar o trabalho que resta a ser feito nessa aacuterea seja perceber algumas das limitaccedilotildees dos criteacuterios avaliativos de Spigelman (1993) O primeiro passo eacute considerar a sua principal razatildeo para criticar o trabalho da narrativa pessoal da

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professora ndash o seu descuido na fidelidade narrativa A professora tira conclusotildees de sua experiecircncia pessoal sobre a falta de importacircncia do feedback que natildeo coin-cide com as crenccedilas e valores de Spigelman (1993 p 80) ou dos seus colegas A professora parece ldquo[] ignorar mais de vinte anos de pesquisas sobre a escrita em favor de uma nota raacutepidardquo No entanto Spigelman natildeo menciona nada a respeito de ldquomais de vinte anos de pesquisa sobre a escritardquo que subsidiam o que eacute consensual a respeito da importacircncia dos comentaacuterios nos textos dos alunos nem que essa lacuna eacute significativa Certamente haacute um vago consenso a respeito da importacircncia da revisatildeo e do feedback e haacute conhecimento acadecircmico desse consenso mas a) o conhecimento em questatildeo eacute menos unacircnime do que Spigelman sugere tanto na questatildeo sobre para onde os professores devem direcionar seus comentaacuterios quanto a respeito da quantidade de feedback que devem oferecer e b) pouco ou nenhuma dessas pesquisas satildeo muito recentes

Talvez o mais frequentemente citado ensaio sobre a resposta agrave escrita dos alunos Minimal Marking de Haswell (1983) natildeo encoraja a resposta zero mas efetivamente defende uma resposta econocircmica agrave escrita dos alunos Mais pontu-almente os valores e as premissas da obra de Haswell estatildeo muito longe das que motivam as dez revisotildees de Carver de um conto e as respostas cuidadosas de Gard-ner a cada um (HASWELL 1983) O artigo de Haswell (1983) parece assumir que poucos professores de escrita na universidade teriam tempo de oferecer a todos os seus alunos o grau de atenccedilatildeo que Gardner dispensa para Carver e que poucos alunos teriam a habilidade e o compromisso de aproveitar os apontamentos da forma como Carver o faz Para fazer justiccedila com os alunos poucos deles possuem o tipo de vocabulaacuterio teacutecnico requerido por Gardner para processar as observaccedilotildees meticulosas que Gardner faz Em suma o caso de Carver poderia funcionar mais como um exemplo fascinante de uma relaccedilatildeo de aprendizagem entre dois escritores extremamente talentosos do que um exemplo de relaccedilatildeo professor-aluno aplicada a aulas de escrita na graduaccedilatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

Aleacutem disso a maioria das pesquisas a respeito da revisatildeo e do feedback tem vinte anos ou mais em boa parte por causa das ldquovoltas pessoaisrdquo nas pesquisas em escrita agraves quais fizemos alusatildeo anteriormente Independentemente de suas falhas ndash e reconhecemos muitas delas ndash a pesquisa empiacuterica realmente proporcionou aos membros da comunidade da escrita uma base para o consenso nas preocupaccedilotildees baacutesicas da pedagogia como revisatildeo e feedback e hoje muitos de noacutes incluindo os que desdenham a pesquisa empiacuterica continuamos a contar com ela como base para um consenso instruiacutedo contra a ldquoerudiccedilatildeo sofisticadardquo Talvez uma parte do trabalho que mais claramente articula esse consenso o artigo de Hillocks (1984) What Works in Teaching Composition A Meta-analysis of Experimental Treatment Studies tem mais de vinte anos Ele natildeo poderia ser repetido atualmente justamen-te porque natildeo haveria estudos empiacutericos suficientes a respeito do que funciona e do que natildeo funciona na escrita para se chegar a qualquer conclusatildeo significativa

Assim como o artigo pessoal da professora ignora certas variaacuteveis importan-tes que poderiam explicar melhor o desenvolvimento do marido como escritor a anaacutelise comparativa de Spigelman (1993) das duas narrativas tambeacutem ignora certos aspectos que poderiam desempenhar um papel importante na sua avaliaccedilatildeo final Em primeiro lugar ao discutir a fidelidade narrativa ela trata o padratildeo de julgamento ndash ldquo[] as histoacuterias que [noacutes] sabemos serem verdadeiras nas [nossas] vidasrdquo (SPIGELMAN 1993 p 80) e os valores e crenccedilas partilhados em nossa comunidade ndash como relativamente natildeo problemaacuteticos Ela dispensa pouco tempo para justificar esse padratildeo e foca a sua avaliaccedilatildeo nas falhas dos valores impliacutecitos na histoacuteria da professora para combinar com o padratildeo que ela traz agrave tona No en-tanto como Fulkerson (2005) deixa claro a nossa proacutepria comunidade eacute menos homogecircnea do que era e hoje poucos de noacutes nos sentiriacuteamos confiantes de que nossas proacuteprias praacuteticas valores e crenccedilas coadunam com a maioria dos outros da aacuterea No lugar desse consenso os criacuteticos de uma narrativa pessoal devem se basear mais profundamente nas histoacuterias que sabem serem reais em suas proacuteprias

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A construccedilatildeo do argumento

vidas para o julgamento Para contabilizar as alegaccedilotildees impliacutecitas questionaacuteveis em uma narrativa eles satildeo provavelmente incentivados a basear suas contra-alegaccedilotildees em suas experiecircncias algo que Spigelman natildeo faz e talvez sabiamente Mesmo natildeo sendo algo ruim a praacutetica de responder a narrativas com narrativas significa que nossas alegaccedilotildees seratildeo dotadas de menos certeza e nossa evidecircncia de menor autoridade do que se pudeacutessemos evocar uma visatildeo consensual

Um segundo aspecto natildeo salientado na anaacutelise de Spigelman diz respeito agrave desproporcionalidade entre a autoridade de suas duas fontes Eacute inevitaacutevel que natildeo se preocupe com o papel que o ethos desempenha na sua avaliaccedilatildeo dos dois relatos e da nossa proacutepria resposta ao seu julgamento O relato pessoal de uma professo-ra universitaacuteria sobre seu marido eacute contrastado com o relato pessoal de um dos mais ilustres representantes da literatura americana do final do seacuteculo XX e seu igualmente ilustre mentor De certa forma Carver e Gardner satildeo o tipo de pessoas ndash ldquomodelosrdquo nas palavras de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969) ndash cujos atos satildeo autoautorizados na medida em que eles definem ideais que os meros mortais se esforccedilam para alcanccedilar Se um professor universitaacuterio viola uma norma consen-sual da comunidade temos menos tendecircncia a questionar nossas normas do que a pessoa mas se uma figura importante viola a mesma norma podemos nos voltar para a questatildeo ou ignorar essa norma O ethos que atribuiacutemos a escritores do cali-bre de Carver e Gardner tem mais a ver com uma funccedilatildeo do que com sua essecircncia

O ethos desses escritores como o de todo escritor depende muito da qualidade de sua escrita apresentada no texto especiacutefico que estaacute sendo avaliado A qualida-de da prosa de Carvey eacute muito boa Apresenta histoacuterias ardilosamente complexas contadas de maneira direta quase de maneira espontacircnea Enquanto noacutes tende-mos a concordar com Spigelman e outros que a qualidade da prosa Carver se deve mais ao trabalho consciente e minucioso (veja as suas dez revisotildees) do que a um dom misterioso tambeacutem percebemos que poucos escritores por quaisquer razotildees que sejam produzem um trabalho de qualidade comparaacutevel Muitos efetivamen-

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A construccedilatildeo do argumento

te tentam escrever narrativas pessoais com os modelos de Carver em mente Na verdade muito mais pessoas sentem-se compelidas a escrever narrativas pessoais do que a lecirc-las

A distacircncia entre quem escreve e quem ler na universidade tem a ver com a promessa ilusoacuteria de que a escrita pessoal eacute destinada agraves pessoas cansadas de trabalhar com a impessoalidade e serve para falar sobre assuntos que natildeo satildeo de sua proacutepria escolha em liacutenguas que natildeo suas seguindo roteiros que natildeo satildeo criaccedilotildees suas ndash o que diz respeito ao que eacute feito no mundo todo dia Voltar-se para a narrativa pessoal garante agraves pessoas uma oportunidade de dizer o que importa a elas sobre assuntos de sua proacutepria escolha na sua liacutengua materna seguindo ro-teiros tatildeo perfeitamente assimilados atraveacutes dos anos que eles natildeo sentem que satildeo roteiros No entanto como o espaccedilo entre o escritor e o leitor na narrativa pessoal eacute sugerido a promessa permanece ilusoacuteria Narrativas pessoais satildeo relativamente faacuteceis de escrever mas narrativas pessoais legiacuteveis satildeo difiacuteceis de escrever e nar-rativas pessoais engajadas satildeo muito mais difiacuteceis de escrever

Exemplos de narrativas pessoais ruins estatildeo agrave nossa volta nas universidades nas salas de aula e ateacute mesmo nas listas de best-sellers Elas satildeo certamente ruins de diferentes maneiras As piores narrativas pessoais de nossos alunos tendem a ser natildeo muito coerentes releituras de mitos populares natildeo muito plausiacuteveis textos de 750 palavras para um anuacutencio da MasterCard A pior das narrativas pessoais de um colega por sua vez tende a apresentar homilias religiosas contos previsiacute-veis lentos que terminam com uma admiraacutevel se natildeo oacutebvia moral Ao ler essas palavras as pessoas se lembram de que a liberdade da narrativa pessoal tem um preccedilo significativo e uma boa parte desse preccedilo eacute a obrigaccedilatildeo nas palavras do famoso ditado de Henry James ldquoacima de tudo ser interessanterdquo Para que natildeo nos desanimemos com a leitura dos piores trabalhos de nossos colegas e alunos ler os seus melhores trabalhos ndash para natildeo mencionar aqueles de pessoas como Raymond Carver ndash nos lembraraacute por que eacute tatildeo importante continuar tentando

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A construccedilatildeo do argumento

Essas satildeo apenas duas das muitas complicaccedilotildees que enfrentamos ao propor avaliar alegaccedilotildees oriundas das narrativas pessoais Com a ajuda de Spigelman ape-nas comeccedilamos a separar os problemas Qualquer padratildeo que eventualmente seja desenvolvido para nos ajudar a fazer julgamentos plausiacuteveis nos pareceraacute razoaacutevel Noacutes devemos desenvolver esse padratildeo Haacute algumas verdades que apenas podem ser descobertas ou adequadamente justificadas por meio da narrativa pessoal Satildeo tipos de verdades muito importantes para serem excluiacutedas das aulas de escrita argumentativa em nome da rejeiccedilatildeo ao retorno do ensino da escrita como terapia

retoacuteriCa proCessual

Quando trecircs possibilidades satildeo exploradas por um estudioso da escrita a ter-ceira eacute frequentemente a escolhida seja por devoccedilatildeo agrave ordem nestoriana ou pelas lembranccedilas de Cachinhos Dourados de deixar as coisas ldquoexatamenterdquo nessa esco-lha Eacute evidente que Fulkeson (2005) estaacute mais agrave vontade para discutir e elaborar a seu proacuteprio tertium quid ldquoabordagem retoacuterica processualrdquo Por isso ele inicia a discussatildeo da abordagem citando um documento da associaccedilatildeo Council of Writing Program Administrators (WPA)22 ldquo[] oficialmente aprovado pelo corpo de pessoas que efetivamente dirigem os programasrdquo (FULKESON 2005 p 670) A declaraccedilatildeo de ldquoresultadosrdquo da WPA enfatiza Fulkeson (2005) em sua maior parte exclui os objetivos da ECC e as abordagens expressivas dos resultados esperados e focaliza os objetivos retoacutericos tradicionais O autor acrescenta ainda que a desatenccedilatildeo agrave retoacuterica processual nos principais jornais tem mais a ver com a natureza estabe-lecida com o status quo da abordagem do que com qualquer falha inerente a ela Como ele sugere a argumentaccedilatildeo pode parecer uma das abordagens dominantes

22 NT A WPA eacute uma associaccedilatildeo de escritores profissionais que defendem e sediam conferecircncias workshops e programas acadecircmicos A organizaccedilatildeo representa professores e pesquisadores cujo enfoque acadecircmico satildeo os aspectos intelectuais e pedagoacutegicos do planejamento do ensino da escrita e de sua gestatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

efetivamente ensinadas na sala de aula Em adiccedilatildeo agrave argumentaccedilatildeo ele menciona duas outras abordagens retoacutericas sob esse tiacutetulo geral ldquo[] a escrita baseada em gecircneros e a escrita como introduccedilatildeo ao discurso de uma comunidade acadecircmicardquo (FULKESON 2005 p 671)

A escrita baseada em gecircneros recebe grande atenccedilatildeo acadecircmica Para que natildeo seja confundida com as antigas abordagens de gecircnero ou com seus parentes mais temidos os ldquotiposrdquo (narraccedilatildeo descriccedilatildeo processo etc) eacute consideravelmente mais flexiacutevel e teoricamente mais sofisticada Oriunda em parte de Bakhtin e de antro-poacutelogos como Clifort Geertz essa abordagem foi adaptada para o trabalho com a escrita por vaacuterios teoacutericos da comunicaccedilatildeo e da escrita Em particular o artigo de Miller (1984) Genre as Social Action (Gecircnero como accedilatildeo social) eacute frequentemente citado por acadecircmicos da nossa aacuterea juntamente com os trabalhos subsequentes de Carol Berkenkotter e Thomas Huckin Aviva Freedman e Peter Medway A definiccedilatildeo de gecircnero de Miller (1984 p 164) desenvolvida para descrever especificamente os gecircneros orais eacute ldquo[] contextualsituacional [] e oposta agrave ideia anterior de gecircnero como uma formafunccedilatildeordquo A relaccedilatildeo entre os membros de uma classe de gecircneros eacute entendida como mais familiar do que homogecircnea A abordagem de gecircnero assume que a maioria dos eventos de escrita acontece em situaccedilotildees recorrentes As simi-laridades dessas situaccedilotildees no que tange a assuntos objetivos e audiecircncia criam discursos muito parecidos adaptados agraves especificidades da situaccedilatildeo

Dessa forma estamos muito distantes dos tipos que satildeo antes de tudo for-mas estruturais Tem-se pouca noccedilatildeo sobre o propoacutesito de um texto descritivo ou narrativo ou sobre o auditoacuterio para o qual satildeo dirigidos Geralmente o que se sabe eacute apenas o que se passa Enquanto a abordagens baseada em gecircneros natildeo necessa-riamente exclui as consideraccedilotildees formais ela inverte a ordem da abordagem tradi-cional do tipo Ao inveacutes de comeccedilar pela assunccedilatildeo de que a forma motiva a escrita comeccedila-se a olhar para as situaccedilotildees recorrentes que datildeo origem e condicionam as escolhas formais ndash e outros inuacutemeros tipos de escolhas ndash que os escritores fazem

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A construccedilatildeo do argumento

em uma dada situaccedilatildeo para determinar qual ldquofamiacuteliardquo de escolhas formais podem ser adequadas Por causa do foco em situaccedilotildees recorrentes a audiecircncia ldquotiacutepicardquo para um dado gecircnero gera determinadas expectativas a respeito da resposta apro-priada e os escritores devem trabalhar com essas expectativas satisfazendo-as ou habilidosamente desrespeitando-as para obter um maacuteximo efeito

Assim como a abordagem ECC a abordagem de gecircnero enfatiza a importacircncia de ler cuidadosamente os modelos textuais dos gecircneros que os alunos devem pro-duzir Como a ECC ela ldquo[] presume que os textos satildeo socialmente construiacutedos em relaccedilotildees intertextuaisrdquo (MILLER 1984 p 165) Para compreender a instacircncia de um gecircnero eacute preciso ter natildeo apenas informaccedilotildees formais a respeito desse gecircnero mas compreensatildeo substancial da sua importacircncia ou modelos paradigmaacuteticos que escritores e audiecircncia devem ter em mente ao escrever ou interpretar qualquer instacircncia especiacutefica do gecircnero Enquanto a abordagem de gecircnero enfrenta alguns dos perigos que os cursos de ECC enfrentam quando se pesa a atenccedilatildeo dispensa-da aos textos e a atenccedilatildeo dispensada aos processos dos alunos o foco retoacuterico da abordagem assegura que atividades de interpretaccedilatildeo realizadas em sala devem se traduzir mais diretamente na construccedilatildeo do texto do aluno

Diante disso a abordagem baseada em gecircnero talvez seja a mais faacutecil entre as abordagens alternativas para se unir ao foco no argumento A compreensatildeo do argumento na abordagem baseada em gecircnero eacute desenvolvida em praticamente todas as principais abordagens da argumentaccedilatildeo e nos principais livros didaacuteticos do assunto A Stasis Theory na verdade eacute uma teoria de gecircnero segundo a maneira de entender por grande parte dos teoacutericos contemporacircneos A maioria das Stasis eacute derivada indutivamente dos tipos de situaccedilotildees recorrentes e dos objetivos recor-rentes dos locutores nessas situaccedilotildees O valor da Stasis como qualquer abordagem baseada em gecircnero natildeo eacute o fato de que ela dita uma estrutura especiacutefica mas o de permitir que se antecipem as respostas do auditoacuterio e dos pontos importante na construccedilatildeo de um argumento Natildeo se trata exatamente de uma forma preacute-fabricada

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A construccedilatildeo do argumento

que surge de uma preocupaccedilatildeo com a Stasis em questatildeo ndash ainda que dependendo do contexto do argumento uma forma preestabelecida pode ser necessaacuteria ndash mas de uma seacuterie de movimentos adaptados agraves especificidades da situaccedilatildeo

Ensinar em um curso de escrita baseado no argumento usando a Stasis theory tambeacutem permite que se adapte mais rapidamente agrave abordagem ldquoescrita como intro-duccedilatildeo ao discurso de uma comunidade acadecircmicardquo Nesse sentido Fulkeron (2005 p 672) cita a posiccedilatildeo de Gerald Graff em Clueless in Academe segundo a qual ldquo[] todo discurso acadecircmico eacute um argumento caracterizado por certos lsquomovimentosrsquo intelectuais preferidos que poderiam ser explicitamente compartilhados com os estudantesrdquo O estudante que entende o argumento como semelhante a uma seacuterie de movimentos realizados em resposta a uma Stasis que pede uma alegaccedilatildeo causal ou avaliativa tem pouca dificuldade em se adaptar a uma abordagem que enfa-tiza os modos particulares como um socioacutelogo entende avaliaccedilatildeo ou um quiacutemico entende causalidade

Dito isso a escrita como introduccedilatildeo ao discurso de uma comunidade acadecircmica eacute problemaacutetica por uma seacuterie de razotildees Como diz Fulkerson (2005) essa abor-dagem tem sido criticada por focalizar certos valores e padrotildees que favorecem os estudantes brancos da classe meacutedia De fato ela tem estado sob crescente ataque nas disciplinas nos uacuteltimos anos Aleacutem disso as dificuldades praacuteticas de introduzir os estudantes ao discurso acadecircmico geneacuterico trazem alguns problemas para o professor Indubitavelmente o melhor lugar para se aprender o discurso acadecircmico eacute a comunidade onde ele eacute usado Por que perder tempo em querer saber habilidades e competecircncias que natildeo podem ser transpostas para outras disciplinas Deixemos que essas disciplinas ensinem os estudantes a forma apropriada de escrever Para aprender como escrevem psicoacutelogos fiacutesicos ou cientistas poliacuteticos precisariacuteamos aprender o vocabulaacuterio a metodologia e o raciociacutenio reconhecido pelos membros de cada uma dessas comunidades o que eacute uma atividade impossiacutevel para uma uacutenica aula Na realidade na medida em que se compreende que a funccedilatildeo preciacutepua de um curso de escrita do primeiro ano eacute apresentar os alunos ao discurso acadecircmico natildeo

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A construccedilatildeo do argumento

se pode exigir mais que isso Os membros do chamado movimento ldquoabolicionistardquo um movimento que reivindica a extinccedilatildeo da escrita do primeiro ano e em alguns casos da extinccedilatildeo de cursos de escrita no primeiro constantemente mencionam a ausecircncia de convenccedilotildees e normas disciplinares nessas aulas como razatildeo para extingui-las

Embora natildeo tenhamos tempo ou espaccedilo neste trabalho para apresentar um exemplo completo de ensino de argumento em aulas de escrita como um antiacutedoto para os vaacuterios males mencionados pelos abolicionistas podemos perceber nas entrelinhas que seus argumentos apresentam as mesmas fragilidades que Burke (1941 p 171) observa nos argumentos vagos como testemunham as falhas que ele encontra em The Folklore of Capitalism (O folclore do capitalismo) de Thurman W Arnold ldquoPara atacar as sustentaccedilotildees subjacentes dos argumentos de seus opositores ele aperfeiccediloa um modelo de argumento que poderia se levado a cabo consistentemente tambeacutem atacar as sustentaccedilotildees subjacentes aos seu proacuteprio argumentordquo Dessa forma se algueacutem rejeitar a importacircncia da escrita no primeiro ano de todos os outros cursos universitaacuterios poder-se-ia com a mesma funda-mentaccedilatildeo negar a importacircncia da retoacuterica para o argumento em todas as outras disciplinas Realmente o que eacute mais surpreendente a respeito do renascimento da retoacuterica nos uacuteltimos anos eacute o ganho que esses estudos trouxeram para as pessoas em outros campos notadamente a Biologia e a Economia para reavaliar a sua proacutepria praacutetica argumentativa Pela mesma razatildeo a importacircncia da retoacuterica para outras disciplinas por meio do programa Escrita atraveacutes do curriacuteculo (em inglecircs Writting across curriculumndash WAC) proporcionou a muitos professores de outras disciplinas revisar suas abordagens de ensino de escrita Embora obviamente a escrita e a retoacuterica sejam sempre em certa medida atividades secundaacuterias melhor compreendidas como escrita sobre algo e retoacuterica de alguma coisa essa obviedade natildeo contradiz a natureza transdisciplinar dessas atividades a existecircncia de grandes semelhanccedilas e coincidecircncias entre as suas vaacuterias aplicaccedilotildees e a capacidade tanto de uma como de outra de alterar as coisas agraves quais se ligam Aleacutem disso mesmo

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A construccedilatildeo do argumento

que os abolicionistas estivessem corretos em sua perspectiva sobre a irrelevacircncia da escrita baacutesica para a escrita acadecircmica por exemplo ainda haacute uma loacutegica pode-rosa para o ensino da escrita como ldquodiscurso ciacutevicordquo uma capacidade que prepara os alunos para cumprir seus deveres como cidadatildeos ao inveacutes de preparaacute-los para escrever academicamente

ensinar ou natildeo ensinar propaganda

Por muitos anos os professores de escrita compreensivelmente se esqui-varam de usar o termo ldquopropagandardquo em sala de aula e mais ainda de ensinar aos alunos o que o termo poderia significar No uso comum trata-se mais de um termo pejorativo do que descritivo Virtualmente a uacutenica vez em que se ouviu o termo sendo invocado foi no contexto de uma demissatildeo partidaacuteria ldquoElesrdquo usam propaganda enquanto ldquoNoacutesrdquo oferecemos argumentos razoaacuteveis O termo parece causar muito alarde para uma anaacutelise corrente da persuasatildeo O clima atual natildeo eacute inteiramente saudaacutevel para lidar com questotildees pesadas como a propaganda na sala de aula No nosso estado do Arizona por exemplo um projeto de lei que corre no legislativo quer proibir professores de ensino meacutedio e superior de se valer de posiccedilotildees poliacutetico-partidaacuterios em sala de aula Mesmo natildeo sendo claro o que eacute um comentaacuterio ldquopartidaacuteriordquo os alunos poderiam ser estimulados a denunciar o que eles percebem como ofensas e as autoridades poderiam entatildeo resolver o caso com os acusados O projeto eacute aparentemente semelhante aos apresentados em outros estados na esteira de protestos de pessoas como David Horowitz Dinesh DrsquoSousa e Ann Coulter que alegam que a ldquolavagem cerebralrdquo liberal se tornou comum nas escolas puacuteblicas americanas Pouco importa que em ambientes como esse as pessoas poderiam relutar em analisar atos particulares de discurso poliacutetico como sendo possivelmente propagandiacutesticos

Dito isso a propaganda apresenta um cenaacuterio muito real de praacuteticas persuasi-vas que estatildeo em certa medida presentes em muitos argumentos aparentemente

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A construccedilatildeo do argumento

natildeo propagandiacutesticos Como visto anteriormente em nosso contiacutenuo de praacuteticas de argumentaccedilatildeo natildeo existe praacutetica pura de persuasatildeo no mundo real e alguns elementos das piores praacuteticas persuasivas podem ser encontrados ainda que fracos nas melhores Nossa habilidade em detectar essas praacuteticas no trabalho com qual-quer argumento e confrontaacute-las com os piores argumentos eacute cada vez mais criacutetica Natildeo haacute duacutevidas de que estamos mal preparados para lidar com a propaganda de um modo racional especialmente porque a dinacircmica da persuasatildeo na propaganda natildeo eacute amplamente compreendida ndash ou ainda pior essa dinacircmica eacute largamente mal compreendida ndash e recebe pouca atenccedilatildeo na sala de aula

Para ser mais especiacutefico o uso dessas praacuteticas tem aumentado significativa-mente nos uacuteltimos anos na medida em que a miacutedia tem assumido novas formas mais adequadas agrave dinacircmica da propaganda A tentaccedilatildeo de usaacute-la tem sido intensi-ficada em uma sociedade em que se propaga a ideia de que ldquoo vencedor leva tudordquo e a resistecircncia a isso tem sido enfraquecida pelo sistema puacuteblico de educaccedilatildeo cada vez menos comprometido com o ensino do letramento criacutetico e cada vez mais com-prometido com o ensino que prepara para exames padronizados

Antes de comeccedilar a analisar exatamente o que a propaganda eacute vamos ver o que ela natildeo eacute Vamos fazer isso porque acreditamos que os erros conceituais a respeito da propaganda a que aludimos anteriormente ainda satildeo as maiores barrei-ras para uma compreensatildeo contemporacircnea do fenocircmeno Um dos equiacutevocos mais recorrentes eacute a crenccedila de que a propaganda eacute majoritariamente uma ferramenta de um estado totalitaacuterio A Alemanha nazista a China comunista a Coreia do Nor-te a antiga Uniatildeo Sovieacutetica o Iraque na eacutepoca de Sandam Russein ndash na cabeccedila da populaccedilatildeo esses satildeo os modelos de uso da propaganda Em nome do controle da populaccedilatildeo os monopoacutelios midiaacuteticos dirigidos pelo estado alimentam um fluxo constante de ldquoverdades oficiaisrdquo muacutesicas motivadoras e mensagens pessoais de seus ldquoqueridos liacutederesrdquo do povo ldquoDocumentaacuteriosrdquo que apresentam os inuacutemeros triunfos do Estado satildeo artisticamente construiacutedos com a finalidade de fundir os liacutederes poliacuteticos com os seus mitos Outdoors e cartazes por toda parte apresen-

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tam imagens de liacutederes e citaccedilotildees de heroacuteis do passado Os cidadatildeos satildeo levados a participar de celebraccedilotildees organizadas em torno de exibiccedilotildees de forccedilas militares Aqueles que natildeo satildeo receptivos agraves mensagens das propagandas satildeo encaminhados para instituiccedilotildees governamentais para serem ldquoreabilitadosrdquo As fronteiras satildeo her-meticamente fechadas para que os cidadatildeos natildeo possam buscar as suas proacuteprias verdades fora disso e para prevenir que ldquoagitadores estrangeirosrdquo mostrem histoacute-rias alternativas Mesmo que esse modelo seja historicamente preciso e em alguns casos como na Coreacuteia do Norte ainda esteja em vigor hoje eacute simplesmente muito custoso mantecirc-lo mesmo para um ditador mais determinado Aleacutem disso com o advento da Internet eacute praticamente impossiacutevel policiar a expressatildeo de opiniotildees Hoje em dia a propaganda eacute ao mesmo tempo mais difundida e menos oacutebvia do que era no passado

o Que eacute propaganda burke e ellul

No final desta seccedilatildeo vamos deixar resumidamente algumas das caracte-riacutesticas principais da propaganda para que as pessoas as reconheccedilam e possam entender melhor seu impacto negativo No entanto neste momento vamos re-troceder um pouco e dar uma olhada mais acurada na propaganda tendo como nossos guias dois pensadores que na nossa opiniatildeo oferecem as mais profundas anaacutelises retoacutericas do fenocircmeno Kenneth Burke especialmente em seu ensaio de 1941 Rhetoric and Hitlerrsquos Battle e o filoacutesofo social francecircs Jacques Ellul Talvez o ponto de partida mais uacutetil para essa anaacutelise seja a distinccedilatildeo de Burke (1966) entre retoacuterica realista e retoacuterica maacutegica a que aludimos no primeiro capiacutetulo Ao fazer essa distinccedilatildeo Burke (1966) enfatiza a capacidade realista da retoacuterica de ldquoinduzir a cooperaccedilatildeordquo entre as pessoas em oposiccedilatildeo ao poder maacutegico da linguagem de ldquoprovocar o movimento nas coisasrdquo (BURKE 1966 p 42) Burke rejeita essa visatildeo maacutegica da linguagem com base no fato real de que o domiacutenio extraverbal ao mesmo tempo em que depende da linguagem para a sua compreensatildeo e entendimento eacute

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A construccedilatildeo do argumento

independente da linguagem na medida em que ele tem o poder de contrariar nos-sas perspectivas linguiacutesticas sobre ele Apenas para lembrar Burke natildeo faz isso

A propaganda pode ser compreendida nesse contexto como uma tentativa de reduzir as audiecircncias a um estado de coisificaccedilatildeo para nelas ldquoinduzir o movimen-tordquo que satisfaz as necessidades do anunciante Com esse fim o empreendimento da propaganda eacute altamente redutor reduz a audiecircncia ao menor denominador e apela para os elementos baacutesicos do caraacuteter humano infantiliza a audiecircncia ao en-fatizar a onisciecircncia divina do anunciante e o poder que ele tem para garantir sua seguranccedila limita o acesso da audiecircncia agraves informaccedilotildees e aos contra-argumentos excluindo-os do apelo propaganda descaracterizando-os ou impedindo que os concorrentes os conheccedilam

O resultado de tudo isso de acordo Ellul (1973) eacute o que ele chama de ldquoorto-praxiardquo Como o seu primo etimoloacutegico ortodoxia a ortopraxia se refere mais ou menos a um nuacutemero de crenccedilas sem reflexatildeo mas na medida em que a ortopra-xia indica um vasto motor inconsciente de resposta a estiacutemulos que ldquodatildeo curto--circuito em todos os pensamentos e decisotildeesrdquo (ELLUL 1973 p 27) ela vai muito aleacutem da ortodoxia Na verdade a ortopraxia eacute mais reconhecida por fazer ldquo[] o indiviacuteduo viver em um mundo separado ele natildeo pode ter referecircncias exteriores A ele natildeo eacute permitido um momento de meditaccedilatildeo ou reflexatildeo a respeito de como se vecircrdquo (ELLUL1973 p 17) Como jaacute sugerimos os meios tradicionais de alcanccedilar esse objetivo dados os aportes massivos de dinheiro e matildeo de obra necessaacuterios natildeo satildeo mais vistos como viaacuteveis para a maioria dos governos Nos dias de hoje como veremos versotildees menos draconianas disso podem ser feitas relativamente de forma mais faacutecil com muito menos investimentos de recursos

Neste ponto do nosso texto natildeo precisamos mais fazer uma introduccedilatildeo a Burke Jacques Ellul provavelmente precisa Seu trabalho mais relevante Propa-ganda The Formation of Menrsquos Attitudes (Propaganda A Formaccedilatildeo das Atitudes do

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A construccedilatildeo do argumento

Homem) foi escrito em 196223 mas ainda permanece indiscutivelmente como o trabalho mais completo e racional sobre o assunto disponiacutevel para os estudantes de retoacuterica especialmente pela sua explicaccedilatildeo de como as forccedilas sociais modernas interagem para nos tornar mais vulneraacuteveis aos apelos da propaganda Certa-mente vaacuterias das tendecircncias que ele menciona nesse estudo como responsaacutevel pelo crescimento da propaganda em meados do seacuteculo XX ainda satildeo evidentes atualmente Particularmente ele sugere que um sistema educacional que ensina as pessoas a ler mas natildeo a pensar criticamente eacute um preacute-requisito para a difusatildeo da propaganda Em certa medida isso eacute muito simples porque uma populaccedilatildeo alfabetizada ndash mas natildeo criacutetica ndash eacute necessaacuteria para a formaccedilatildeo de uma miacutedia de massa a serviccedilo da propaganda Nesse sentido a criacutetica de Ellul agrave educaccedilatildeo anteci-pa a criacutetica de Paulo Freire nos anos 1970 que ajudou a estabelecer o movimento de letramento criacutetico Uma das maiores diferenccedilas entre os dois pensadores e o nosso ponto de divergecircncia em relaccedilatildeo a Ellul eacute o recente ceticismo em relaccedilatildeo agrave ldquoeducaccedilatildeo de massardquo e a sua capacidade de se autorreformar Em geral a atitude de Ellul com ldquoas massasrdquo expressa sua posiccedilatildeo como um homem do seu tempo e do lugar onde viveu

Entatildeo o que eacute propaganda Ellul (1973 p 61) apresenta a seguinte definiccedilatildeo que natildeo ajuda muito na nossa perspectiva

A propaganda eacute um conjunto de meacutetodos empregados por um grupo or-ganizado que quer promover a participaccedilatildeo ativa ou passiva nas suas accedilotildees de uma massa de indiviacuteduos psicologicamente unidos por meio de manipulaccedilotildees psicoloacutegicas e inseridos em uma organizaccedilatildeo

23 a ediccedilatildeo usada neste trabalho eacute a de 1973

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A construccedilatildeo do argumento

Natildeo nos deteremos nessa definiccedilatildeo mas podemos fazer uma observaccedilatildeo A definiccedilatildeo de Ellul aparentemente poderia ser estendida para incluir questotildees como a doutrinaccedilatildeo dos consumidores pelos anunciantes e marqueteiros No entanto o seu estudo enfatiza a propaganda poliacutetica caminho que tambeacutem percorremos em nossa discussatildeo Seguimos esse caminho mesmo que como demonstraremos a seguir as praacuteticas e teacutecnicas dos publicitaacuterios e marqueteiros se sobrepotildeem mais e mais publicitaacuterios emergem da publicidade do marketing e das relaccedilotildees puacuteblicas e a persuasatildeo implacaacutevel na esfera do consumo por certo torna as pessoas mais suscetiacuteveis aos apelos da propaganda na esfera puacuteblica Isso posto os objetivos e os impactos dos que oferecem elementos de convencimento em nome de produtos e os que oferecem elementos persuasivos em nome de causas poliacuteticas satildeo signi-ficativamente diferentes

A maior diferenccedila entre as duas esferas tem a ver com o fato de que a esfera do consumo pelo menos no niacutevel das escolhas individuais eacute essencialmente amoral ao passo que a esfera poliacutetica em todos os niacuteveis eacute essencialmente moral A seme-lhanccedila entre as esferas poliacutetica e moral recebeu grande atenccedilatildeo mais recentemente de Lakoff (2002 p 41) que parte da premissa de que ldquo[] as perspectivas poliacuteti-cas satildeo derivadas de sistemas de conceitos moraisrdquo e exaustivamente explora as implicaccedilotildees dessa assunccedilatildeo para a poliacutetica americana contemporacircnea Por traacutes de questotildees sobre cuidados com a sauacutede aborto seguranccedila social tributaccedilatildeo entre outras haacute questotildees fundamentais sobre justiccedila e felicidade e sobre o caraacuteter sagra-do da vida Na medida em que nos distanciamos das questotildees morais e poliacuteticas e priorizamos a escolha entre marcas concorrentes de cerveja trivializamos essas questotildees e potencialmente alienamos os cidadatildeos acerca do processo poliacutetico

O ponto mais relevante de Lakoff (2002) poreacutem natildeo eacute tanto o fato de que a dimensatildeo moral da poliacutetica eacute ignorada nos uacuteltimos anos mas o fato de que a dimensatildeo moral da poliacutetica tem sido grosseiramente muito simplificada a fim de que se manipulem as audiecircncias de uma forma que ao nosso ver parece ser propagandisticamente Para que as questotildees morais digam algo corretamente agraves

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A construccedilatildeo do argumento

questotildees poliacuteticas a perspectiva moral predominante deve ser suficientemente inclusiva para assegurar que qualquer posiccedilatildeo moral importante seja ouvida e que um consenso moral nasccedila de algum tipo de processo dialeacutetico Na medida em que o discurso poliacutetico na esfera puacuteblica eacute dominado por um uacutenico conjunto de valores morais que natildeo tolera oposiccedilatildeo e na medida em que em contrapartida esses valores natildeo satildeo vistos como um fim em si mesmos mas muito mais como meios de controlar aqueles que se filiam a eles e de se atingir objetivos poliacuteticos a qualidade das nossas decisotildees poliacuteticas e a precisatildeo de nossas sensibilidades poliacuteticas sofreratildeo igualmente

Embora a definiccedilatildeo de propaganda de Ellul (1973) abarque o uso de ldquomani-pulaccedilotildees psicoloacutegicasrdquo como parte do empreendimento da propaganda conforme acabamos de descrever natildeo se estende automaticamente para a praacutetica de mentir De fato a crenccedila de que uma mensagem deve ser intencionalmente natildeo verdadeira para qualificar como propaganda eacute umas das maiores barreiras para o seu reco-nhecimento Embora os profissionais de propaganda possam por vezes recorrer agrave propagaccedilatildeo da ldquodesinformaccedilatildeordquo os riscos de serem apanhados numa grande mentira satildeo suficientemente grandes para desencorajar a disseminaccedilatildeo de uma mentira em larga escala A mensagem ideal da propaganda deveria ser plena de informaccedilotildees precisas e rica em insinuaccedilotildees especulativas repetidas constante-mente em um longo periacuteodo de tempo ateacute que as insinuaccedilotildees assumam o status de fatos Na linguagem dos anunciantes antigos ldquorepeticcedilatildeo eacute reputaccedilatildeordquo uma foacutermula que funciona muito por causa da nossa tendecircncia de confundir familiaridade com convicccedilatildeo o ldquofilme dos costumesrdquo como verdade

Novamente tomando emprestado o pensamento de Lakoff (2002) a propagan-da eacute mais uma questatildeo de ldquoconstruirrdquo informaccedilatildeo de forma a induzir as pessoas a delinearem as conclusotildees desejadas do que uma questatildeo de prover as pessoas com as informaccedilotildees que faltam e isolaacute-las da informaccedilatildeo verdadeira Essa construccedilatildeo eacute tipicamente concebida como uma seleccedilatildeo cuidadosa de um vocabulaacuterio que faz um prejulgamento das questotildees discutidas As implicaccedilotildees metafoacutericas taacutecitas da

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A construccedilatildeo do argumento

escolha de palavras vatildeo direcionar a audiecircncia para a direccedilatildeo desejada Usando um dos exemplos favoritos de Lakoff conceber uma discussatildeo de poliacutetica tributaacuteria sob a rubrica de ldquoaliacutevio fiscalrdquo em oposiccedilatildeo a ldquocortes de impostosrdquo implica que os impostos satildeo uma carga opressiva sobre os contribuintes Embora possa haver um limite a respeito do tamanho do ldquocorterdquo que querem fazer nos impostos natildeo haacute limite quanto agrave questatildeo de saber a medida que algueacutem pode pedir no ldquoaliacuteviordquo de impostos

Para nossos propoacutesitos esse enquadramento pode ser estendido de questotildees de vocabulaacuterio e metaacutefora para o meio atraveacutes do qual a mensagem eacute recebida Nas miacutedias altamente sofisticadas de hoje em dia essas questotildees satildeo literalmente construiacutedas pelo cenaacuterio em que satildeo apresentadas Para mencionar um exemplo atual Hannity and Colmes um programa de notiacutecias do canal Fox apresenta um ponto de vista ldquoequilibradordquo (Hannity) por intermeacutedio de um ponto de vista liberal (Colmes) No entanto mesmo uma visatildeo superficial do programa pode convencer alguns de que uma matildeo pesada perturba o equiliacutebrio Hannity tem a aparecircncia de um acircncora de jornal Eacute um sujeito vigoroso agitado muito seguro que domina seu suposto inimigo liberal Colmes um sujeito fuacutenebre com aparecircncia de um apresentador de previsatildeo do tempo e tendecircncia a balbuciar que frequentemente apresenta argumentos de forma melancoacutelica e pessimista Raramente Colmes faz muitos pontos nas discussotildees muito menos consegue muitas vitoacuterias Natildeo eacute preciso ldquomentirrdquo nesse formato porque verdades ineficazes funcionam bem

Na construccedilatildeo da informaccedilatildeo os profissionais da propaganda podem distorcer o significado exagerar ou amenizar as suas implicaccedilotildees futuras obscurecer ou disfarccedilar as intenccedilotildees do falante ou atribuir motivaccedilotildees duvidosas geralmente as menos apresentaacuteveis aos seus adversaacuterios (ELLUL 1973) Como alguns programas de TV populares os profissionais da propaganda adoram ldquoestampar histoacuterias nas manchetesrdquo que convertem os assuntos correntes especialmente eventos sensacio-nalistas condizentes com os mitos populares como se fossem crises que precisam da atenccedilatildeo das massas Nas palavras de Ellul (1973 p 44)

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A construccedilatildeo do argumento

[] eacute evidente que a propaganda pode ser bem sucedida apenas quando o indiviacuteduo se sente desafiado Natildeo tem qualquer influecircncia quando o sujeito estaacute equilibrado tranquilo sentindo-se em total seguranccedila Nem os eventos passados nem os maiores problemas metafiacutesicos desafiam o indiviacuteduo meacutedio o homem comum atual Ele natildeo eacute sensiacutevel ao que eacute traacute-gico na vida e natildeo estaacute angustiado por questotildees que Deus possa imputar--lhe Ele natildeo se sente desafiado exceto por fatos poliacuteticos e econocircmicos atuais Por isso a propaganda precisa comeccedilar pelos fatos atuais

Vale salientar que noacutes natildeo partilhamos nem aqui nem em qualquer outro local o desprezo de Ellul pelo ldquohomem comum dos dias atuaisrdquo mas a sua alegaccedilatildeo de que as notiacutecias satildeo uma constante fonte de panfletagem propagandiacutestica parece pelo menos mais verdadeira hoje na era dos ciclos de 24 horas de notiacutecias do que quando ele a formulou haacute deacutecadas Algumas distorccedilotildees dos fatos atuais estatildeo eacute certo inevitavelmente inseridos nas reportagens sobre esses fatos pelos princi-pais meios de comunicaccedilatildeo No entanto essas miacutedias representam uma parcela em decliacutenio do que eacute entendido como notiacutecia atualmente Na maioria das propagandas seacuterias exibidas hoje em dia podemos ver um segmento de difusatildeo de notiacutecias em plena expansatildeo que eacute ldquosecundaacuteriordquo agraves notiacutecias jornaliacutesticas Esse eacute um mundo de Hanity and Colmes de especialistas e de consultores poliacuteticos de blogueiros edito-rialistas e de analistas especializados que reviram e interpretam as notiacutecias por meio de vaacuterias formas de infoentretenimento que satildeo muito mais baratas do que coberturas jornaliacutesticas de verdade Uma forma de avaliar a tendecircncia propagan-diacutestica desses programas eacute perceber como eles satildeo veiculados ldquo[] na linguagem da indignaccedilatildeo um tom que eacute quase sempre uma marca da propagandardquo (ELLUL 1973 p 58) Em casos extremos ndash pensemos nos programas populares de raacutedio ndash esses programas apelam para os sentimentos mais crueacuteis como ldquooacutedio fome orgulhordquo (ELLUL1973 p 38) e temem agitar as paixotildees de seus espectadores

Burke (1941) toca em muitas dessas questotildees na sua discussatildeo sobre Hitler cuja retoacuterica eacute um modelo de retoacuterica ldquoimpurardquo Ao iniciar a anaacutelise de Minha luta

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A construccedilatildeo do argumento

Burke chama a atenccedilatildeo simultaneamente para as impurezas da retoacuterica de Hitler e para a responsabilidade dos retoricistas para articular essa retoacuterica Os criacuteticos tecircm a obrigaccedilatildeo de analisar livros ldquoincocircmodos e ateacute mesmo repulsivosrdquo como os de Hitler (BURKE 1941 p 191) Ele compara uma anaacutelise raacutepida desinteressada de Minha luta ao fato de queimaacute-lo em uma pira como fazia Hitler com as pesso-as Ao fazer isso Burke defende noacutes perdemos uma oportunidade de descobrir como Hitler conseguiu inventar um remeacutedio que foi tomado com tanto prazer por milhotildees de pessoas e assim ldquo[] prevenir a invenccedilatildeo de um remeacutedio parecido na Ameacutericardquo (BURKE 1941 p 191) Burke ainda destaca que embora os norte--americanos possam acreditar que suas virtudes iratildeo protegecirc-los das palavras de Hitler na verdade isso eacute ldquoo conflito no meio dos seus viacuteciosrdquo (BURKE 1941 p 192) eacute a discussatildeo parlamentar de suas diferenccedilas ndash a proacutepria retoacuterica ndash que os protege dos encantos do sistema ldquoperfeitordquo do Hitler a sua teoria de campo unificado da natureza humana

Um dos temas da anaacutelise de Burke que ecoou anos depois na teoria de Ellul eacute a associaccedilatildeo entre propaganda moderna e as teacutecnicas de marketing e publici-dade A propaganda moderna em oposiccedilatildeo agraves suas formas mais antigas como as ldquopropagandas comunistasrdquo ou invenccedilotildees usadas para provocar furor partidaacuterio eacute consideravelmente mais sutil e cientiacutefica Segundo as consideraccedilotildees de Burke Hitler possui a ldquoracionalidaderdquo de um haacutebil publicitaacuterio que planeja a sua nova campanha de vendas ldquoA poliacutetica ele diz deve ser vendida como se vende sabone-te ndash e natildeo se vende sabonete em transerdquo (BURKE 1941 p 216) Elul (1973 p 25) na mesma direccedilatildeo caracteriza os profissionais da propaganda como ldquo[] cada vez mais o teacutecnico que trata de seus clientes de vaacuterias maneiras mas se manteacutem frio e indiferente escolhendo suas palavras e accedilotildees por razotildees puramente teacutecnicasrdquo O que era caracteriacutestica da propaganda em meados do seacuteculo XX parece hoje ser paradigmaacutetico Graccedilas aos avanccedilos tecnoloacutegicos as convergecircncias entre a propa-ganda e o marketing satildeo muito mais evidentes no ambiente altamente midiaacutetico A linha que separa as duas atividades eacute ainda menos visiacutevel e muito mais atravessada

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A construccedilatildeo do argumento

por um grupo ldquoprofissionalmente psicoacuteticordquo de pessoas que torcem por candidatos poliacuteticos guerras e veiacuteculos utilitaacuterios esportivos com a mesma serenidade e da mesma maneira

Uma das liccedilotildees mais importantes que os profissionais da propaganda aprende-ram com os anunciantes diz respeito agraves cuidadosas teacutecnicas de separar o puacuteblico uma arte aperfeiccediloada por uma legiatildeo de pesquisadores demograacuteficos e psicograacute-ficos que trabalham para os marqueteiros A propaganda eacute para usar o termo de Ellul (1973 p 212) ldquoparticionada ou para usar a descriccedilatildeo retoacuterica tradicional de Burke a propaganda eacute ldquodirecionadardquo uma retoacuterica de ldquobusca de vantagensrdquo Em uma palestra famosa que Burke deu em 1935 para o Congresso Americano de Escritores ele descreveu a relaccedilatildeo parasitaacuteria dos profissionais da propaganda com o seu puacuteblico da seguinte maneira ldquo[] natildeo eacute o trabalho de um profissional da propaganda convencer os convencidos mas pleitear os natildeo convencidos o que lhe requer o uso do vocabulaacuterio deles valores deles siacutembolos deles tanto quanto for possiacutevelrdquo (SIMONS MELIA 1989 p 271-72) Eacute por isso que os profissionais da propaganda assim como os anunciantes estudam seu puacuteblico tatildeo profundamente e sua mensagem eacute expressa com siacutembolos valores e vocabulaacuterio apropriado que se reflete nos grupos cuidadosamente selecionados cujas necessidades desejos e medos satildeo meticulosamente mapeados

Em uma sociedade fechada e homogecircnea como a Alemanha de Hitler isso significa que a propaganda pode ser canalizada atraveacutes de um uacutenico meio para apelar a um grupo imenso de ldquoincluiacutedosrdquo cujas necessidades ansiedades aspira-ccedilotildees sem mencionar mitos e fantasias satildeo integralmente compreendidas agraves custas de uma minoria de ldquoexcluiacutedosrdquo que representa os piores medos dos incluiacutedos Por outro lado em uma sociedade pluralista como a norte-americana isso significa que a propaganda para ser efetiva tem de ter acesso a muacuteltiplos canais e usar mensagens personalizadas para os consumidores e direcionadas a um eleitorado variado Assim ironicamente a nossa imprensa aparentemente livre e robusta e os inuacutemeros canais de informaccedilatildeo que ela proporciona pode revelar-se indispensaacutevel

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A construccedilatildeo do argumento

para os profissionais da propaganda assim como para os anunciantes na divisatildeo e na conquista da audiecircncia

Como esses uacuteltimos apontamentos sugerem por mais inestimaacutevel que seja uma imprensa livre para combater a propaganda isso eacute apenas uma necessidade natildeo condiccedilatildeo suficiente para a resistecircncia Como Ellul (1973 p 212) destaca ldquoToda propaganda tem de separar seu grupo de todos os outros gruposrdquo assegurando que cada grupo tenha seu canal dedicado agraves suas crenccedilas ldquoEles aprendem mais e mais que o seu grupo estaacute correto que seus atos satildeo justificadosrdquo (ELLUL 1973 p 213) ao mesmo tempo em que os grupos rivais satildeo repetidamente rotulados como equivocados e erroneamente fundamentados

Essa criacutetica ao proacuteximo que natildeo eacute ouvida por esse proacuteximo eacute conheci-da pelos integrantes do grupo que a expressa O anticomunista ficaraacute cada vez mais convencido da maldade do comunista e vice-versa Como resultado as pessoas ignoram mais e mais umas agraves outras Elas natildeo se permitem se abrir a um intercacircmbio de pontos de vista argumentos e raciociacutenio (ELLUL 1973 p 213)

Muitos anos depois com o advento da TV digital e por sateacutelite que oferece centenas de canais e informaccedilatildeo a Internet com seus inuacutemeros portais blogs e sites sem mencionar o raacutedio a criacutetica de Ellul parece ser ainda mais proeminente Noacutes realmente vivemos como diz Burke em ldquoBabel depois da queda da torrerdquo e na medida em que a miacutedia moderna multiplica e acirra a divisatildeo entre os cidadatildeos ela devolve o antiacutedoto retoacuterico a esse estado ndash algo como a conversa de Rorty e Oakeshott sobre a humanidade ndash que eacute muito menos eficaz

O problema da divisatildeo entre os cidadatildeos se agrava quando se leva em consi-deraccedilatildeo os efeitos indiretos da miacutedia sobre os que satildeo eleitos para representar o cidadatildeo Por causa dos custos sempre ascendentes para se ganhar eleiccedilotildees devi-do primeiramente pelos altos custos de se comprar tempo na miacutedia e produzir os anuacutencios poliacuteticos que por si mesmos exibem incrivelmente tendecircncias pro-

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A construccedilatildeo do argumento

pagandiacutesticas os altos escalotildees da poliacutetica tornam-se mais e mais dependentes de interesses especiais dispostos a financiar as suas campanhas A fidelidade a interesses particulares por sua vez torna cada vez mais difiacutecil para os oacutergatildeos puacuteblicos suplantar as disputas partidaacuterias e conciliar seus interesses em nome do bem puacuteblico A reduccedilatildeo ndash muitas vezes perceptiacutevel ndash da conversa produtiva e cortecircs no Congresso Americano eacute um sinal de que o modelo de divisatildeo proposto por Ellul se expandiu do eleitorado para os oacutergatildeos legisladores Na realidade Burke sugere que isso sempre aconteceu e que a mudanccedila da natureza da miacutedia deve ter simplesmente agravado uma afliccedilatildeo crocircnica dentro dos oacutergatildeos legisladores

As conclusotildees de Burke quanto agraves causas que subjazem agraves divisotildees legislativas surgem no contexto de sua discussatildeo sobre a psicologia de Hitler desenvolvida agrave luz das ideias de Freud Burke alega que o proacuteprio ldquoeu parlamentarrdquo de Hitler era profundamente cindido entre ego superego e id Hitler por sua vez projetou as prodigiosas lutas interiores que cercam sua personalidade para o mundo es-pecialmente para o extremamente dividido e em colapso parlamento do Impeacuterio Habsurg Impor a sua visatildeo totalitaacuteria ao mundo representou uma cura maacutegica para as suas divisotildees interiores Todas as evidecircncias de heterogeneidade de dife-renccedilas se tornavam para Hitler sintomas de ldquodemocracia falida em dias difiacuteceisrdquo (BURKE 1941 p 200) O processo poliacutetico democraacutetico inevitavelmente confuso com ecircnfase no debate no compromisso e no consenso eacute convertido por Hitler em uma Babel de vozes

[] e pelo meacutetodo de fusotildees associativas usando ideias como imagens Viena tornou-se na retoacuterica de Hitler lsquoBabilocircniarsquo como a cidade da po-breza prostituiccedilatildeo imoralidade coalisotildees meias medidas incesto de-mocracia (ou seja regras da maioria que leva a lsquofalta de responsabilidade pessoalrsquo (BURKE 1941 p 200)

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A construccedilatildeo do argumento

Em qualquer das conversas calorosas dos programas de raacutedio pode-se ouvir anaacutelises similares conduzidas com os mesmos tons de indignaccedilatildeo moral dos conta-dores de faacutebulas das notiacutecias de hoje De acordo com Burke os editores dos jornais de seu tempo seguiam o modelo talvez no mesmo tom da retoacuterica de Hitller Essa eacute uma observaccedilatildeo que ainda parece ressoar

Qualquer conflito entre os porta-vozes parlamentares representa um conflito correspondente entre os interesses materiais dos grupos pe-los quais eles estatildeo falando Hitler natildeo discute a Babel por esse acircngu-lo Ele discutiu isso com bases puramente sintomaacuteticas A estrateacutegia da nossa imprensa ortodoxa de ridicularizar a verborragia cacofocircnica do Congresso eacute oacutebvia ao centralizar o ataque aos sintomas dos assuntos conflituosos como eles se revelam nos indiacutecios das disputas poliacuteticas e ao deixar a causa nas entrelinhas e os assuntos conflituosos fora de pauta satisfazem o povo que poderia de outra forma ficar alienado no-meadamente os empresaacuterios que satildeo os membros ativos de seu puacuteblico leitor (BURKE 1941 p 201)

O resultado desse cenaacuterio eacute o enfraquecimento da crenccedila do povo no gover-no Na medida em que as regras instituiccedilotildees princiacutepios e tradiccedilotildees do governo podem limitar o poder dos profissionais da propaganda ou impedir um programa especiacutefico que eles queiram engrenar eles natildeo veem isso como uma coisa neces-sariamente ruim Daiacute decorre a afirmaccedilatildeo de Ellul (1973 p 191) de que na medida em que os cidadatildeos se ldquodesinteressam das questotildees poliacuteticasrdquo eles (o estado eou os que o controlam) ficaratildeo ldquoabanando as matildeosrdquo Por outro lado ao mesmo tempo haacute um ponto de atenuaccedilatildeo jaacute que continuar a enfraquecer a crenccedila do povo no go-verno pode natildeo ser do interesse proacuteprio daqueles que controlam ou gostariam de controlar as reacutedeas do poder do governo Se o puacuteblico tem receio em relaccedilatildeo aos entremeios do governo a propaganda ldquo[] natildeo tem absolutamente efeito nos que vivem na indiferenccedila ou ceticismordquo (ELLUL 1973 p 190) Como entatildeo fazem os

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A construccedilatildeo do argumento

marqueteiros poliacuteticos para simultaneamente enfraquecer a confianccedila no gover-no como instituiccedilatildeo e expandir os poderes governamentais que servem aos seus propoacutesitos

O truque de acordo tanto com Burke quanto com Ellul eacute personalizar o go-verno identificando-o cada vez mais com a personalidade ou as personalidades de seu liacuteder De acordo com Ellul (1973 p 172) ldquo[] o culto ao heroacutei eacute o complemento absolutamente necessaacuterio para a massificaccedilatildeo da sociedaderdquo Atraveacutes do heroacutei diz o autor a pessoa mediana ldquovive vicariamenterdquo e o heroacutei eacute uma celebridade das telas ou o presidente Na esfera poliacutetica Ellul vecirc esse tema aparecer mais claramente nos partidos poliacuteticos cujos marqueteiros (ou publicitaacuterios se preferem) exploram ldquo[] a inclinaccedilatildeo das massas em admirar o poder pessoal criando a imagem de um liacuteder e investindo nela com atributos de onipresenccedila e onisciecircnciardquo (ELLUL 1973 p 217) Para reforccedilar a sua argumentaccedilatildeo aqui Ellul cita a corrida presidencial americana de 1952 na qual Eisenhower explorou com sucesso essa inclinaccedilatildeo agraves custas de Adlai Stevenson a quintessecircncia do intelectual reservado que viu as suas ideias mas natildeo a sua pessoa como a chave para as suas reivindicaccedilotildees agrave presidecircncia

Ellul (1973 p 172) de passagem observa como o fascismo repetidamente afirmava ter ldquorestaurado a personalidade ao seu lugar de honrardquo uma questatildeo que por sua vez ocupa um enorme espaccedilo na anaacutelise de Burke sobre a propaganda de Hitler Em especial Hitler eacute habilidoso em ldquoespiritualizarrdquo e ldquoeticizarrdquo os viacutenculos materiais que une os diferentes estratos da sociedade ao ldquopersonalizarrdquo esses viacuten-culos tornando ldquogrosseiro o ato de tratar empregadores e empregados como classes diferentes e classificar de forma tambeacutem diferente os seus interessesrdquo (BURKE 1941 p 217) Ao inveacutes disso as relaccedilotildees entre empregador e empregado devem se dar na base ldquopessoalrdquo de liacuteder e seguidorrdquo (BURKE 1941 p 217)24 O vocabulaacute-

24 Pelo mesmo motivo enquanto os que hoje apontam as injusticcedilas entre as classes satildeo acusados de instigar a ldquoluta de classesrdquo a populaccedilatildeo em geral eacute inundada com livros fitas e seminaacuterios sobre ldquolideranccedilardquo uma qualidade miacutestica que eacute recompensada com montantes de dinheiro cada vez mais fabulosos

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A construccedilatildeo do argumento

rio que Hitler usa para efetivar essa transformaccedilatildeo maacutegica vem da terminologia prestigiada da religiatildeo que ele desvia impunemente

Aqui novamente o uso corrompido que Hitler faz dos padrotildees religiosos vecircm agrave tona O pensamento religioso primeiramente preocupado com as questotildees de ldquopersonalidaderdquo com problemas de aperfeiccediloamento moral naturalmente e eu acho que corretamente enfatiza a natureza essencial do ato de vontade individual Daiacute decorre a resistecircncia a uma explicaccedilatildeo puramente ldquoambientalrdquo dos males humanos Daiacute a ecircnfase na ldquopessoardquo Daiacute a tendecircncia a buscar uma explicaccedilatildeo natildeo econocircmica para os fenocircmenos econocircmicos (BURKE 1941 p 201)

Essa personalizaccedilatildeo de todas as relaccedilotildees no estado nazista eacute por fim esten-dida para a imagem do proacuteprio estado Com o intuito de alcanccedilar paz e harmonia ldquoa discussatildeo do parlamentar eacute para ser acalmada pela concessatildeo de uma voz para todo o povo a lsquovoz interiorrsquo de Hitler tornada uniforme em toda a Alemanha como a do liacuteder e as pessoas estavam totalmente identificadas umas com as outrasrdquo (BURKE 1941 p 207) Assim Hitler oferece ao povo alematildeo ldquo[] o conteuacutedo mau de uma necessidade boardquo (p 210) ao perverter o desejo de supremacia Ao fazer essa unificaccedilatildeo Hitler se volta para a criacutetica de um tipo especiacutefico de propaganda

Natildeo um criticismo no sentido ldquoparlamentarrdquo de duacutevida de ouvir a oposi-ccedilatildeo e de tentar amadurecer uma poliacutetica agrave luz das contra poliacuteticas mas o tipo unificado de criticismo que simplesmente busca modos conscientes de tornar a oposiccedilatildeo de algueacutem mais ldquoeficienterdquo mais cheia de si (BURKE 1941 p 211)

O mundo que Hitler cria com a propaganda censurando a oposiccedilatildeo excluindo contradiccedilatildeo identificando a unidade essencial do estado com o ldquosanguerdquo da raccedila ariana eacute a distopia da propaganda segundo Ellul (1973) um mundo hermetica-mente fechado no qual o indiviacuteduo ldquonatildeo tem pontos de referecircncia externosrdquo

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A construccedilatildeo do argumento

A despeito de a propaganda ser normalmente identificada com retoacuterica tanto a compreensatildeo de Ellul quanto a de Burke do termo torna-o antirretoacuterica O que acontece com a propaganda na Alemanha de Hitler e na democracia Ocidental de Ellul eacute o que acontece com qualquer termo que se permite transformar-se em ldquoum fim em si mesmordquo Na linguagem de Burke (1941) o termo sucumbe ao paradoxo da pureza e se torna diferente na sua natureza de cada uma das instacircncias pelas quais a sua uacuteltima definiccedilatildeo foi concebida Simplesmente inverte-se o processo pelo qual noacutes chegamos ao conceito de pura persuasatildeo eliminando toda e qual-quer sugestatildeo de sacrifiacutecio e impasse de dialeacutetica e de invenccedilatildeo ateacute que se torna puramente ldquodirecionadordquo e qualquer potencial interlocutor se transforma em um movimento

Para entender melhor exatamente a razatildeo de a propaganda ter se tornado uma forccedila mais penetrante na nossa avanccedilada democracia supostamente imune aos seus encantos voltamos a Ellul (1973 p 129) e a um ponto importante que ele estabelece a respeito do funcionamento da democracia ocidental ldquoPara o ocidental mediano o desejo das pessoas eacute sagrado e o governo que falha em representar esse deseja eacute uma ditadura abominaacutevelrdquo Para qualquer governo democraacutetico manter a sua legitimidade ele deve manter o apoio popular na forma de opiniatildeo puacuteblica de apoio eleitoral ou ambos No entanto a opiniatildeo puacuteblica como todos que seguem as pesquisas sabem eacute sabidamente inconstante O apoio agraves poliacuteticas militares ou econocircmicas de uma administraccedilatildeo puacuteblica ou de um partido sobe e desce dependendo de quatildeo boas ou ruins satildeo as notiacutecias das esferas econocircmica ou militar Poreacutem para serem efetivas as poliacuteticas devem ser estaacuteveis e os operado-res da poliacutetica precisam enxergar mais longe se as notiacutecias seratildeo contra eles ndash e inevitavelmente seratildeo contra eles por um tempo ndash eles devem modificar ou ateacute mesmo inverter a sua poliacutetica aceitar derrotas ou persuadir as pessoas de que as suas decisotildees estatildeo efetivamente dando certo ou prestes a dar certo

A dificuldade no acircmbito poliacutetico eacute perfeitamente capturada por Ellul (1973 p 132) que observa que toda administraccedilatildeo de qualquer filiaccedilatildeo partidaacuteria ldquo[]

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A construccedilatildeo do argumento

daacute a impressatildeo de obedecer a opiniatildeo puacuteblica ndash depois de tecirc-la criado O ponto eacute fazer as massas solicitaram ao governo o que ele jaacute tinha decidido fazerrdquo Em al-guns casos noacutes podemos ndash agraves vezes corretamente ndash atribuir um motivo sinistro para essas tentativas iliacutecitas de influenciar a opiniatildeo puacuteblica As poliacuteticas que vatildeo sendo promovidas podem de fato beneficiar interesses especiacuteficos agraves custas do bem puacuteblico Ateacute mesmo essas poliacuteticas de interesse puacuteblico enfrentaratildeo muitas das mesmas dificuldades que enfrentam as praacuteticas corruptas O fato de as praacuteti-cas aparentemente mais civilizadas poderem ser mais facilmente defendidas com bases racionais natildeo garante a sua popularidade ou nega a necessidade pelo menos aos olhos de seus proponentes de se utilizar a propaganda em seu benefiacutecio Por isso a eacute inevitaacutevel

A propaganda portanto natildeo eacute algo que podemos esperar erradicar ou nas palavras de Burke (1941) desbancar Podemos retardar a sua propagaccedilatildeo e enca-minhaacute-la para formas mais legiacutetimas de persuasatildeo por meio do questionamento e da criacutetica Como as praacuteticas de marketing e de publicidade agraves quais a propaganda estaacute tatildeo intimamente ligada ela tambeacutem pode ser mais ou menos honesta mas apenas se falhar nas formas mais rudes ndash propaganda disfarccedilada de boletins in-formativos do governo que divulga os benefiacutecios de programas duvidosos pes-quisas falsas financiadas pela induacutestria usadas seletivamente por membros do governo para apoiar poliacuteticas duvidosas falsos jornalistas que fazem perguntas natildeo embaraccedilosas aos membros do governo comentaristas que datildeo depoimentos falsos em apoio a programas e poliacuteticas sem dizer que satildeo pagos para isso e de-putados vereadores que realizam sessotildees em cenaacuterio de Potemkin Village25 com

25 O termo Potemkin Village refere-se agrave histoacuteria de que o marechal russo Grigory Alexander Potemkin (1739-1791) amante da imperatriz russa Catarina ii (1729-1796) teria construiacutedo uma cidade falsa para impressionaacute-la durante sua viagem agrave Crimeacuteia em 1787 Conta-se que eram feitas construccedilotildees falsas ao longo do rio Diepner que eram desmontadas e montadas novamente agrave frente do trajeto da imperatriz que as via como se fossem novas

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A construccedilatildeo do argumento

participantes cuidadosamente escolhidos para fazer perguntas preacute-estabelecidas ndash porque os jornalistas de verdade fazem seu trabalho eou porque o puacuteblico mais sofisticado aprendeu a ldquodar um descontordquo para as alegaccedilotildees duvidosas e questionar criticamente accedilotildees simboacutelicas

Para ajudar a compreensatildeo desse assunto oferecemos a seguir um breve re-sumo das praacuteticas dos profissionais de propaganda

a propaganda em resumo

Antes de ponderarmos os sintomas e a dinacircmica das praacuteticas da propagan-da deixamos a seguinte advertecircncia as diferenccedilas entre a propaganda e outras formas legiacutetimas de praacuteticas retoacutericas satildeo de intensidade Toda e qualquer praacutetica retoacuterica eacute mais ou menos honesta ou desonesta e nenhuma delas pode ser aplicada categoricamente a um ato qualquer Se reduzirmos a coisa toda a uma uacutenica frase nossa visatildeo da propaganda poderia ser chamada de ldquopublicidade de esteroides por razotildees poliacuteticasrdquo Muitas das condiccedilotildees que se seguem caracterizam tanto discursos poliacuteticos comuns quanto a propaganda Determinar quando um discurso poliacutetico se torna propaganda requer ldquodisputas poliacuteticasrdquo entre pessoas de diversas convic-ccedilotildees Consequentemente talvez fosse melhor pensar nessas condiccedilotildees mais como dicas do que traccedilos taxionocircmicos

1 A propaganda poliacutetica requer um palco se natildeo o placo Sem um palco deixa-se de natildeo apenas disseminar uma mensagem a uma massa mas de enquadrar o debate de forma a cercear as mensagens adversaacuterias Em-bora nem todos os que divulgam uma mensagem precisem ter crachaacutes de uma organizaccedilatildeo ou ser parte interessada de um projeto para se en-gajar na divulgaccedilatildeo da propaganda aqueles que criam e produzem uma mensagem propagandiacutestica devem fazecirc-lo conscientemente em nome de

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A construccedilatildeo do argumento

um sistema de crenccedilas Na forma como se encontra hoje a propaganda frequentemente se dissemina como uma fofoca na cultura oral por meio da expansatildeo de mensagens de propaganda conscientemente elaboradas que se originam na miacutedia de massa e se proliferam pela Internet nos programas de raacutedio em programas de TV em que os telespectadores participam em cartas aos editores e assim por diante Cada vez mais a direccedilatildeo desse movimento eacute inversa na medida em que os blogueiros comeccedilam a criar mensagens propagandiacutesticas que parodiam as mensa-gens dos liacutederes ldquooficiaisrdquo

2 Assim como os anunciantes os profissionais de propaganda satildeo exigen-tes ldquointegrantesrdquo do mercado cujas mensagens frequentemente refletem pesquisas extensas sobre a estrutura psicoloacutegica e demograacutefica de seu puacuteblico Eles se baseiam muito na ldquoartimanhardquo de que fala Burke (1941) na busca de vantagens para as suas ideias falando dos medos anseios e desejos especiacuteficos do seu puacuteblico alvo numa tentativa de contornar as anaacutelises racionais e induzir o ldquomovimentordquo nos sujeitos aos quais se dirigem Seu apelo se baseia menos nas evidecircncias e nas razotildees do que no ldquosenso comumrdquo que ldquonatildeo tem origemrdquo Tambeacutem como os anunciantes os profissionais da propaganda satildeo adeptos da persuasatildeo de grandes audiecircncias (ldquoVocecircrdquo) para as quais eles estatildeo falando individualmente (vocecirc) e persuadindo-as a aderir a uma linha partidaacuteria em nome de seus proacuteprios pensamentos

3 Ainda que muitas das teacutecnicas usadas para criar e promover a pro-paganda sejam tomadas emprestadas dos anuacutencios existem diferenccedilas cruciais Em geral os anunciantes conseguem seu palco em negocia-ccedilotildees comerciais diretas Os profissionais da propaganda por sua vez normalmente usam a miacutedia puacuteblica especialmente a miacutedia de notiacutecias

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A construccedilatildeo do argumento

para divulgar a sua mensagem Aleacutem disso os anuacutencios satildeo abertamente apresentados como anuacutencios ao passo que a propaganda eacute raramente apresentada como propaganda Na medida em que um puacuteblico sabe que uma mensagem eacute uma propaganda a efetividade da mensagem tende a diminuir Agraves vezes os profissionais da propaganda adotam medidas extremas (por exemplo plantam notiacutecias falsas nas principais miacutedias e criam falsas organizaccedilotildees partidaacuterias de terceiros e assim por diante) para transmitir a sua mensagem enquanto dissimulam as suas intenccedilotildees

4 O texto da mensagem da propaganda normalmente eacute fruto de fatos atuais Muitas vezes ele se concentra em um problema ou crise que atrai a atenccedilatildeo do puacuteblico em virtude de sua natureza dramaacutetica eou sua analogia com um tema miacutetico popular (por exemplo um indiviacuteduo humilde [Davi] toma o posto de um grande governador [Golias]) As consequecircncias materiais do problema satildeo menos importantes para os profissionais da propaganda do que sua repercussatildeo simboacutelica Em al-guns casos realmente o problema eacute fabricado para desviar a atenccedilatildeo de outros problemas que tecircm consequecircncias puacuteblicas consideravelmente maiores mas que satildeo menos manejaacuteveis eou que refletem bem menos nos que fazem a propaganda

5 Ao se vincularem a um problema que jaacute ganhou a atenccedilatildeo do puacuteblico os profissionais da propaganda ampliam o tema que inspirou a sua men-sagem Ao adequar o significado de um evento problemaacutetico aos seus temas ideoloacutegicos eles podem persuadir o puacuteblico de que sua interpre-taccedilatildeo de um evento singular eacute na verdade a confirmaccedilatildeo de uma ordem subjacente Assumir uma soluccedilatildeo ndash ao contraacuterio de simplesmente culpar outra ideologia ndash reflete a ideologia dos profissionais da propaganda mais claramente do que adequar o problema Muitas vezes o problema eacute refor-

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A construccedilatildeo do argumento

mulado como uma questatildeo moral e a soluccedilatildeo proposta seraacute mais espiritual ou moral do que pragmaacutetica Consequentemente a propaganda vai dire-cionar nossa atenccedilatildeo para a dimensatildeo pessoal do problema e para longe das causas que o circundam Em suas formas mais danosas as soluccedilotildees da propaganda apelam para a puniccedilatildeo a exclusatildeo ou o impeachment de bodes expiatoacuterios cujos comportamentos justificam o tom de indignaccedilatildeo ou ultraje moral beneficiado pelos profissionais da propaganda

6 Os profissionais da propaganda mostram pouco entusiasmo por ldquoau-tointerferecircnciardquo ou ldquocontraditoacuteriordquo Seus argumentos satildeo frequentemente construiacutedos em segredo com poucos elementos de fontes variadas Eles distorcem demonizam ou excluem por completo as visotildees opostas ao assunto em questatildeo Falam para o menor denominador comum do seu puacuteblico Se os argumentos dos profissionais da propaganda satildeo depara-dos com fatos inconvenientes ou contra-argumentos contundentes uma vez que eles estatildeo postos no mundo os que os defendem natildeo hesitam nem procuram apresentar justificativas Eles vatildeo repetir o argumento infinitamente mostrando firmeza de propoacutesito que em alguns casos passa como lideranccedila26

7 Enquanto a propaganda em sociedades fechadas eacute frequentemente criada em torno de um ldquoculto agrave personalidaderdquo nas sociedades abertas tende a ser frequentemente criada em torno de um ldquoculto agrave celebridaderdquo As biografias das personalidades que falam em nome de uma ideologia seratildeo interpretadas para adaptar os mitos que permeiam essa ideologia

26 Burke (1941 p 212) observa que Hitler se recusou a alterar um uacutenico item de sua plataforma nazista original de 25 itens porque achava que a fixidez da plataforma era mais importante para propoacutesitos da propaganda do que qualquer revisatildeo de seus slogans mesmo que as revisotildees em si mesmas tivessem muito a dizer a seu favorrdquo

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A construccedilatildeo do argumento

e acabaratildeo por personificaacute-la da mesma forma como as estrelas do cine-ma frequentemente satildeo identificadas aos personagens que interpretam

8 Quanto mais ansioso eacute o puacuteblico mais efetiva eacute a propaganda Para ser bem recebida a propaganda requer um puacuteblico indeciso fraacutegil e ateacute mesmo temeroso Um sentimento de crise a sensaccedilatildeo de estar sob ata-que rendem uma audiecircncia mais tolerante a argumentos unilaterais e agrave reduccedilatildeo dos oponentes a figuras de desenhos animados Os profissionais da propaganda inventam crises mas mais comumente eles simplesmente transformam problemas reais de pequenas proporccedilotildees em problemas apocaliacutepticos de proporccedilotildees homeacutericas Os criacuteticos internos de suas cria-ccedilotildees satildeo prontamente agrupados como seus inimigos amorfos

Isso eacute entatildeo a propaganda em resumo Com a intenccedilatildeo de sermos ldquojustos e equilibradosrdquo gostariacuteamos de convidar nossos estudantes a aplicar essas observa-ccedilotildees natildeo apenas agraves praacuteticas administrativas do governo mas tambeacutem aos filmes de Michael Moore e aos programas da emissora Air America

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caPiacutetulO 3 introduccedilatildeo a algumas boas praacutetiCas27

Neste capiacutetulo vamos revisar algumas abordagens de ensino de escrita ba-seadas na argumentaccedilatildeo ndash ou que podem facilmente ser adaptadas para esse fim Embora os professores que se concentrem digamos na retoacuterica da libertaccedilatildeo em suas aulas de escrita possam natildeo se considerar adeptos da pedagogia do argu-mento sua abordagem tende a focalizar a argumentaccedilatildeo e inclusive a requerer estrateacutegias tiacutepicas de construccedilatildeo de argumento Qualquer abordagem que facilite o ensino da argumentaccedilatildeo e envolva um ensino de escrita inovador seraacute conside-rada aqui como parte integral de boas praacuteticas na aacuterea Poreacutem antes de revisar-mos essas praacuteticas detalhadamente ofereceremos um breve panorama geral dos princiacutepios baacutesicos de um curso de escrita bem sucedido e das melhores praacuteticas que o integram

o Que funCiona no ensino de esCrita

Como jaacute sugerimos em diversas ocasiotildees poucos pesquisadores nas aacutereas de retoacuterica e escrita ainda se dedicam agrave avaliaccedilatildeo empiacuterica das praacuteticas adotadas em sala de aula Ao nos referirmos a uma determinada abordagem como ldquouma boa praacuteticardquo natildeo estamos apenas nos referindo necessariamente agrave didaacutetica associada a essa praacutetica nem aos seus resultados Na verdade pouco sabemos sobre esses resultados aleacutem do que dizem os seus criadores Favorecemos uma determinada praacutetica ou abordagem apenas por sentir que ela se alinha melhor com nossa opi-

27 Traduccedilatildeo felipo Bellini Souza e Maria Hozanete alves de Lima

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A construccedilatildeo do argumento

niatildeo sobre o ensino de escrita e porque elas natildeo entram em conflito direto com os princiacutepios baacutesicos do ensino que no nosso ponto de vista pessoal permeiam o ensino adequado da escrita

Ao articularmos conscientemente nosso raciociacutenio pessoal a respeito do en-sino de escrita e dos princiacutepios baacutesicos da instruccedilatildeo em geral podemos destacar dois trabalhos que nos influenciaram especialmente na elaboraccedilatildeo deste estudo O primeiro The Rhetoric of Reason Writing and the Attractions of Argument de James Crosswhite (CROSSWHITE 1996) oferece instruccedilotildees filosoacuteficas extensas a respeito de como fundamentar o ensino de escrita baseado na argumentaccedilatildeo Inspirado pelos trabalhos de diversos filoacutesofos como Platatildeo Aristoacuteteles Heideg-ger Perelman e Olbrechts-Tyteca Levinas Cavell Habermas Schrag e Gadamer Crosswhite (1996) desenvolve o conceito de ldquoretoacuterica da razatildeordquo e o posiciona como uma alternativa ao ceticismo radical da desconstruccedilatildeo como foi exemplificado por Derrida e Man28 O livro eacute recomendaacutevel a todos os professores por uma seacuterie de motivos ele defende com sucesso a eficaacutecia e a importacircncia da educaccedilatildeo geral como parte da educaccedilatildeo superior nos Estados Unidos estabelece paracircmetros para a compreensatildeo da argumentaccedilatildeo sobretudo como um ato como forma de abordar problemas praacuteticos e tomar decisotildees corretas ao inveacutes de defini-la apenas como um apanhado de sugestotildees de comportamento e oferece um caminho para neutrali-zar doutrinas natildeo essenciais ndash poreacutem presentes na maior parte dos curriacuteculos ndash a respeito da verdade e da identidade como forma de responsabilizar o indiviacuteduo por suas escolhas pessoais

O livro de Crosswhite tambeacutem aborda uma seacuterie de questotildees de natureza teoacuterica filosoacutefica e pedagoacutegica de maneira muito mais completa que satildeo tocadas aqui apenas brevemente Embora haja ainda pontos de vista conflitantes entre a

28 nesse processo Crosswhite ainda destaca os pontos em que Derrida pode servir como base ou apoio para a retoacuterica da razatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

nossa opiniatildeo como autores e os conceitos defendidos por Crosswhite (fazemos objeccedilatildeo especialmente agraves conclusotildees duramente pessimistas apresentadas no final do livro) acreditamos que a obra oferece uma espeacutecie de macrovisatildeo que engloba nossas premissas a respeito do ensino da argumentaccedilatildeo em aula de escrita

Da mesma forma o livro Teaching Writing as Reflective Practice (Ensinar es-crita como praacutetica reflexiva) de George Hillocks (HILLOCKS 1984) oferece uma micro visatildeo de nossa filosofia pedagoacutegica Embora seus meacutetodos para a compre-ensatildeo do ensino de escrita estejam fora de moda nas aacutereas da retoacuterica e escrita as conclusotildees de Hillocks e a aplicaccedilatildeo baacutesica de seus conceitos satildeo relevantes para a nossa abordagem Como jaacute mencionamos os que desmerecem o autor e sua obra continuam fundamentando o ensino de escrita com base nos seus conceitos ainda que inconscientemente Na verdade quando defendemos e explicamos ao longo dos anos os fundamentos dos nossos cursos (por que vocecircs natildeo datildeo mais relevacircncia aos fundamentos da escrita e da gramaacutetica em seus cursos) e a busca de recursos financeiros junto a gestores de instituiccedilotildees de ensino verificamos que o trabalho de Hillocks era bastante eficaz para convencer esses gestores na sua maioria de formaccedilatildeo em Ciecircncias ou Ciecircncias Sociais Assim mesmo correndo o risco de simplificar as ideias do autor aleacutem do razoaacutevel enumeramos os seguintes fundamentos da praacutetica em sala de aula baseados amplamente nos trabalhos de Hillocks

1 A aprendizagem ativa eacute muito mais eficaz que a aprendizagem passiva Algumas particularidades desse princiacutepio incluem

a Reduza o tempo de aula expositiva (o que Hillocks chama de ldquomoacutedulo de apresentaccedilatildeordquo durante o ensino) ao miacutenimo possiacutevel Se vocecirc pre-cisa dar uma aula expositiva (com grande tempo de explanaccedilatildeo em que apenas o professor fala como no ensino tradicional) ndash agraves vezes todos noacutes precisamos fazer isso ndash faccedila que essa etapa seja o mais

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A construccedilatildeo do argumento

breve possiacutevel quinze minutos ou menos Certifique-se o maacuteximo possiacutevel de que seu tempo com exposiccedilatildeo seja usado para interagir com os alunos e natildeo como uma agenda pessoal e necessidade de ldquocobrirrdquo toda mateacuteria

b Ao maacuteximo possiacutevel construa um curso em torno da aprendizagem indutiva em vez de focar-se na assimilaccedilatildeo de conteuacutedo ou na livre expressatildeo Quando as aulas se baseiam no argumento isso pode requerer mais atenccedilatildeo a assuntos locais pessoais que permitam aos alunos se concentrarem em fontes primaacuterias e secundaacuterias A aprendizagem indutiva parte da ldquo[] estrateacutegia baacutesica do questiona-mento que integra todos os campos do conhecimentordquo (HILLOCKS 1984 p 100) natildeo de estrateacutegias especializadas de questionamento Quando falamos de um curso baseado no argumento destacamos os seguintes pontos do recurso agrave aprendizagem indutiva a criaccedilatildeo de um inventaacuterio do conhecimento preacutevio e pressupostos existentes a respeito de um determinado assunto a formaccedilatildeo de hipoacuteteses a criaccedilatildeo de uma ldquosuposiccedilatildeo justificadardquo de uma alegaccedilatildeo principal o teste dessa alegaccedilatildeo primeiramente a partir de novos conheci-mentos e informaccedilotildees adquiridos com a leitura o questionamento a pesquisa e afins e em um segundo momento a partir da discussatildeo em grupo do conhecimento acumulado

c Concentre-se em estudos individualizados ou em grupo dentro da sala de aula O questionamento eacute algo que deve ser conduzido den-tro e fora da sala de aula Hillocks (1984 p 55) usa o termo ldquoensino ambientalrdquo para descrever o ensino que ldquo[] cria ambientes que introduzem e apoiam o aprendizado ativo de estrateacutegias complexas que os alunos ainda natildeo satildeo capazes de utilizar sozinhosrdquo

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A construccedilatildeo do argumento

2 A transparecircncia eacute tatildeo importante para o ensino eficiente quanto o eacute para o bom governo Deixe suas expectativas e metas para cada aula ndash e para cada tarefa ndash perfeitamente claras Encoraje os alunos a compartilha-rem e discutirem juntos cada rascunho e atividade durante o processo Quando possiacutevel apresente hipoacuteteses iniciais de outros alunos como exemplo para esclarecer ainda mais os criteacuterios e expectativas adotados Ofereccedila feedback especiacutefico mas ao mesmo tempo de forma que englobe toda a sala (por exemplo diga que os alunos natildeo ofereceram evidecircncias suficientes que justifiquem essa ou aquela hipoacutetese ou que a hipoacutetese proposta natildeo satisfaz as necessidades do puacuteblico alvo ou que ldquohaacute quebra de paralelismo nessas frasesrdquo)

3 Estabeleccedila metas altas mas crie processos que permitam aos alunos atingi-las Uma das bases teoacutericas da abordagem de Hillocks deriva de Vygotsky ndash particularmente do conceito de ldquozona de desenvolvimento proximalrdquo (ZDP) Essa zona eacute definida como a aacuterea localizada entre a capacidade real da pessoa e sua capacidade potencial que pode ser atingida com orientaccedilatildeo e cuidado Nesse caso a ldquoorientaccedilatildeo cuidadosardquo inclui atividades em sala de aula em especial as oportunidades de usar a criatividade em atividades orais ou escritas a correccedilatildeo intermediaacuteria dos demais alunos ou do professor e em seguida a confecccedilatildeo de novos rascunhos baseados no feedback recebido ateacute entatildeo

4 Coloque em praacutetica seus princiacutepios seja tambeacutem um aluno quando esti-ver em sala de aula Hillocks encoraja professores a praticarem a mesma abordagem baseada no questionamento quando estatildeo em sala de aula Ao informar aos alunos os seus objetivos antes de atribuir-lhes uma tarefa ou atividade vocecirc oferece na verdade uma hipoacutetese inicial sobre

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A construccedilatildeo do argumento

o caminho para atingir esses objetivos Preste atenccedilatildeo ao que acontece depois disso e teste a sua hipoacutetese Quando alguma coisa falhar descubra porque e repense suas estrateacutegias

5 Adapte-se da melhor forma possiacutevel aos diferentes estilos de aprendiza-do e inteligecircncia de seus alunos Use diferentes maneiras de pesquisar assimilar e apresentar informaccedilotildees Se vocecirc natildeo tiver recursos digitais em sala de aula faccedila o possiacutevel para encorajar o uso de miacutedias visuais e computadores fora da sala

6 Use seus pontos fortes quando estiver em sala de aula (isso deriva menos das teorias de Hillocks do que de nossa experiecircncia como autores e pro-fessores) Da mesma forma que fazemos o possiacutevel para nos adaptarmos aos alunos precisamos respeitar nossas particularidades Alguns de noacutes satildeo palestrantes realmente brilhantes ndash apesar de nossa experiecircncia provar que os brilhantes satildeo menos numerosos que aqueles que pensam que satildeo Outros criam tarefas extraordinaacuterias em grupo Alguns tecircm um verdadeiro talento para aulas particulares Qualquer que seja seu maior talento como professor seja qual for o motivo pelo qual vocecirc escolheu essa profissatildeo busque sempre uma maneira de utilizar esse talento

boas praacutetiCas

O que propomos a seguir natildeo eacute absolutamente uma exaustiva lista de orien-taccedilotildees para introduzir a argumentaccedilatildeo em sua sala de aula Trata-se apenas de uma compilaccedilatildeo de algumas boas praacuteticas Acima de tudo essa seccedilatildeo busca auxi-liar professores a se valerem do argumento como forma de engajar seu puacuteblico Qualquer pessoa que tenha lecionado e pedido a seus alunos que redijam textos

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A construccedilatildeo do argumento

argumentativos sabe que natildeo existe uma ldquomelhor formardquo de estruturar essa aula haacute diversas maneiras eficazes Aqui vamos apenas enumerar algumas

Para os professores que satildeo calouros no campo da argumentaccedilatildeo esta seccedilatildeo oferece um mapa dessa abordagem pedagoacutegica Para os que jaacute tecircm mais experiecircncia com o assunto esta seccedilatildeo oferece uma lista de ideias de como reestruturar aulas jaacute criadas Se pedimos a nossos alunos constantemente que questionem suas su-posiccedilotildees acerca de argumentos por eles apresentados precisamos tambeacutem estar dispostos a questionar as nossas suposiccedilotildees a respeito do ensino

As informaccedilotildees a seguir representam uma abordagem ecleacutetica sobre a retoacuteri-ca e a construccedilatildeo de argumento como uma diferente forma de ver o mundo e natildeo apenas como fins que podem ser alcanccedilados com a mera repeticcedilatildeo de uma foacutermula (ainda que em certas ocasiotildees os pesquisadores que adotam essa metodologia sugerem um processo um tanto quanto formal) Algumas das melhores praacuteticas partem do desejo de ajudar alunos a irem aleacutem de sua posiccedilatildeo isolada de indiviacuteduo e a se colocarem em um contexto mais abrangente Esse esforccedilo social baseado na identidade grupal inclui a retoacuterica da libertaccedilatildeo o argumento feminista e a aprendizagem-serviccedilo

A retoacuterica da libertaccedilatildeo eacute um movimento educacional que surgiu como reaccedilatildeo aos modelos de educaccedilatildeo para alunos passivos Ela foi fundamental para o esforccedilo de evidenciar questotildees ligadas agrave representatividade dentro da sala de aula e ao reconhecimento da educaccedilatildeo como um processo natildeo neutro ndash a ideologia eacute sempre transmitida junto com o conhecimento Ao incorporar a retoacuterica da libertaccedilatildeo agrave aula sobre argumento criamos um ambiente abertamente politizado que tem a cultura como ponto focal de discussatildeo e chama os alunos a questionar de manei-ra criacutetica o conteuacutedo do curso e as experiecircncias e ideologias que eles trazem agrave discussatildeo como falantes ou escritores A escrita eacute um veiacuteculo que pode ser usado de diferentes maneiras na formaccedilatildeo do aluno que se engajaraacute de forma criacutetica ao mundo agrave sua volta

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O argumento feminista tambeacutem contesta o status quo Ao tentar eliminar a oposiccedilatildeo perdedorganhador de um argumento atraveacutes de uma abordagem mais eacutetica as feministas nos clamam a buscar estrateacutegias menos agressivas e mais cooperativas especialmente focadas na importacircncia do ouvir compreender e dialogar numa troca de argumentos Na sala de aula as abordagens feministas podem ser implementadas em doses homeopaacuteticas e natildeo precisam ser adotadas com exclusividade

A abordagem aprendizagem-serviccedilo vecirc a linguagem como uma atividade so-cial que eacute ao mesmo tempo interpretativa e construtiva Da mesma forma que a retoacuterica da libertaccedilatildeo auxilia o aluno a explorar seu potencial maacuteximo a apren-dizagem-serviccedilo busca fomentar uma simpatia precoce pelo engajamento ciacutevico Em muitos casos essa abordagem se manifesta na relaccedilatildeo entre aulas de escrita e interaccedilotildees in-loco focadas em projetos reais desenvolvidos com organizaccedilotildees ou empresas da comunidade Essa no entanto natildeo eacute a regra O engajamento ou a pesquisa aprofundados de uma questatildeo pertinente que afeta a mesma comunidade podem ser alternativas interessantes A aprendizagem-serviccedilo oferece ao aluno a oportunidade de vivenciar uma situaccedilatildeo hipoteacutetica com exigecircncias e limitaccedilotildees reais sobre as quais eacute necessaacuterio ponderar Ela tambeacutem expotildee o aluno a um aspecto da academia que natildeo eacute limitado pela disciplina tradicional

Da mesma forma o movimento escrita atraveacutes do curriacuteculo (writing across the curriculum- WAC) objetiva diminuir as limitaccedilotildees das disciplinas Tem como princiacutepio central a ideia de que o aluno aprende mais quando se confronta com o conteuacutedo escrito do curso No caso de professores que natildeo ensinam liacutengua (InglecircsPortuguecircs) essa abordagem oferece uma justificativa racional para a utilizaccedilatildeo da escrita em todas as disciplinas pois postula que o argumento eacute a pedra fundamental de uma educaccedilatildeo superior As disciplinas satildeo diferenciadas principalmente pelas regras de construccedilatildeo de argumento e de apresentaccedilatildeo de evidecircncias favoraacuteveis Em aacutereas que tradicionalmente natildeo requerem extensiva dedicaccedilatildeo agrave escrita as atividades de escrita podem ser usadas para fortalecer os princiacutepios disciplinares

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A construccedilatildeo do argumento

e apresentar aos alunos os meacutetodos de questionamento que satildeo aceitos por deter-minada aacuterea do conhecimento

O raacutepido avanccedilo de possibilidades tecnoloacutegicas forccedilou os professores a reava-liarem o papel e o impacto das diferentes tecnologias de escrita sobre o poder do argumento A escrita com computadores eacute um exemplo disso Como os alunos da atualidade constantemente se sentam agrave frente de um teclado eacute importante levar em consideraccedilatildeo a linguagem que eles trazem agrave sala de aula A tecnologia tambeacutem pode expandir os limites do que eacute considerado ldquoescritardquo especialmente quando o hipertexto eacute utilizado em sala de aula para mudar a perspectiva sobre um deter-minado argumento Os avanccedilos tecnoloacutegicos tambeacutem afetaram mecanismos de pesquisa ndash a confiabilidade de fontes e autoria de ideias estatildeo entre alguns dos assuntos recentemente controversos

A retoacuterica visual tambeacutem se concentra em tecnologias que impactam nossas vidas Ela busca ampliar as discussotildees sobre o argumento para incluir nelas o exame de imagens visuais que constantemente complementam ou substituem as palavras Mesmo que as imagens sejam mais memorizaacuteveis e capazes de maior res-sonacircncia psicoloacutegica seu impacto passa comumente despercebido Haacute mensagens ocultas na miacutedia visual que exigem que repensemos nossa habilidade de processar informaccedilotildees A partir da exploraccedilatildeo da produccedilatildeo e consumo de textos visuais os alunos podem se tornar mais conscientes sobre a forma como as imagens sutis podem transmitir conteuacutedos persuasivos

Por que a construccedilatildeo do argumento e mais amplamente a retoacuterica deveriam receber toda essa atenccedilatildeo em sala de aula Precisamos ensinar retoacuterica para que possamos nos proteger dela As mensagens persuasivas nos rodeiam a todo tem-po ndash elas perfazem um amaacutelgama de nossos ldquoeurdquo coletivos Quanto melhor noacutes ndash e nossos alunos ndash identifiquemos essas mensagens em sua forma real (pontos de vista natildeo verdades monoliacuteticas) melhor atuaremos nesse mundo de ldquoBabel apoacutes a quedardquo Essa seccedilatildeo de boas praacuteticas seraacute mais uacutetil se for empregada como ponto

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A construccedilatildeo do argumento

de partida para uma exploraccedilatildeo mais detalhada do que essas posiccedilotildees teoacutericas e pedagoacutegicas tecircm a oferecer no contexto de uma determinada aula Esses resumos de praacuteticas destacam as diferenccedilas entre os praticantes

retoacuteriCa da libertaccedilatildeo

O conceito de retoacuterica da libertaccedilatildeo tambeacutem chamado pedagogia criacutetica ou retoacuterica da criacutetica foi definido de diferentes formas no estudo da escrita A ideia de a pedagogia libertadora adveacutem dos trabalhos de Paulo Freire educador brasi-leiro que acreditava que a educaccedilatildeo bancaacuteria ndash um modelo de educaccedilatildeo que pinta os alunos como recipientes vazios que precisam ser preenchidos de conhecimento por professores versados (FREIRE 2000) ndash contribuiacutea para a opressatildeo poliacutetica ao condicionar as pessoas a natildeo questionarem seu entorno O papel central da retoacuterica da libertaccedilatildeo eacute o de ajudar na compreensatildeo da natureza profundamente poliacutetica da educaccedilatildeo Essa abordagem pressupotildee um mundo injusto onde as diversas formas de afirmar manter e distribuir poder satildeo veladas e frequentemente ignoradas Dessa forma a educaccedilatildeo natildeo seria neutra professores e alunos tecircm pressuposiccedilotildees expectativas e valores acerca da ldquoideologia dominanterdquo que frequentemente satildeo ignorados em sala de aula (SHOR FREIRE 1987 p 13) Como as opiniotildees poliacuteticas satildeo frequentemente transmitidas de professor para aluno durante o processo de aprendizagem os alunos precisam assumir a responsabilidade de compreender a natureza doutrinadora dos sistemas educacionais se quiserem ser capazes de questionar os princiacutepios que norteiam o conhecimento recebido A Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire surgiu a partir do trabalho com camponeses analfabe-tos no Brasil um grupo verdadeiramente oprimido e lanccedilou a base para uma educaccedilatildeo realmente libertadora ndash fora do controle do Estado Consequentemente as ideias de Paulo Freire precisam ser adaptadas aos diferentes estilos de sala de aula ao redor do mundo levando em consideraccedilatildeo as necessidades dos alunos dos diferentes grupos sociais

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A construccedilatildeo do argumento

Na segunda metade da deacutecada de 70 e iniacutecio dos anos 80 o trabalho de Paulo Freire influenciou os campos da retoacuterica e da escrita conforme os professores da eacutepoca tentavam incorporar a teoria progressista ao trabalho aparentemente apo-liacutetico de instruccedilatildeo da escrita (BIZZELL 1997) O componente mais uacutetil da teoria de Paulo Freire para os professores de argumento eacute a atenccedilatildeo especial ao exame criacutetico de interaccedilotildees problemaacuteticas em niacutevel local (SHOR 1996) Em vez de se concentrar em interaccedilotildees dialeacuteticas abstratas de ideias valores e conceitos Paulo Freire pede um maior foco sobre ldquotemas geradoresrdquo o ponto principal que funda-menta a discussatildeo abstrata O tema de estudo se origina nos artefatos cotidianos de uma comunidade especiacutefica que pertence a uma determinada cultura (FREIRE 2000) No caso dos camponeses brasileiros com quem Paulo Freire trabalha isso quis dizer comeccedilar os estudos pela percepccedilatildeo do homem que sacia sua sede com aacutegua natildeo com o conceito de justiccedila social

Para os professores norte-americanos de escrita na atualidade os temas gera-dores de Paulo Freire podem envolver a interaccedilatildeo sustentaacutevel atraveacutes de assuntos que interessam aos alunos como aumentos nas mensalidades da universidade ou protestos contra discriminaccedilatildeo racial divulgados pela televisatildeo Tal foco permite que os alunos atuem sobre ideias em vez de consumi-las passivamente aleacutem de fomentar um ambiente em que a educaccedilatildeo eacute inteiramente voltada agrave conquista do potencial pleno Como argumenta Berthoff (1983 p 41) eacute importante ldquo[] (ensinar) escrita como uma forma de pensar e aprenderrdquo e ldquo[] de fazer que nossos alunos se apropriem desse incomparaacutevel recurso []rdquo Em outras palavras ldquo[] a subjetivida-de eacute um sinocircnimo de motivaccedilatildeo [hellip] O material de teor subjetivo eacute definitivamente relevante para aqueles que estudamrdquo (SHOR 1987 p 24) Dessa forma a ecircnfase sobre o raciociacutenio criacutetico a respeito de questotildees locais provavelmente eliminaraacute a reflexatildeo natildeo criacutetica de assuntos banalizados pela repeticcedilatildeo ndash como o aborto e a pena de morte ndash e acessaraacute a capacidade de imaginaccedilatildeo dos alunos como ponto de partida para a invenccedilatildeo de uma nova retoacuterica (BERTHOFF 1983)

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A construccedilatildeo do argumento

A retoacuterica da libertaccedilatildeo natildeo estaacute completamente livre de criacuteticas no entanto Alguns pesquisadores questionam a politizaccedilatildeo aberta da sala de aula como for-ma de entregar o poder aos alunos Ellsworth (1989) faz uma ampla criacutetica a essa pedagogia Seu argumento central se baseia na crenccedila de que a maior parte dos cursos que se dizem adeptos dessa pedagogia na verdade tecircm intenccedilotildees poliacuteticas veladas escondidas atraacutes do clamor por ldquoconsciecircncia criacuteticardquo o que cria dessa forma mais um ambiente em que uma determinada doutrina poliacutetica eacute defendida em detrimento de outras Lazere (1992 p 9) questiona outra premissa da retoacuterica da libertaccedilatildeo ao declarar que

[] os esquerdistas erram terrivelmente ao rejeitar a restauraccedilatildeo de uma ecircnfase nas habilidades e conhecimentos fundamentais que podem impulsionar a real liberaccedilatildeo ndash natildeo opressatildeo ndash caso sejam transmitidos com bom senso abertura e pluralismo cultural aleacutem de uma aplicaccedilatildeo desses conhecimentos baacutesicos agrave habilidade de pensar de forma criacutetica especialmente a respeito de questotildees sociopoliacuteticas em vez de buscar a mera memorizaccedilatildeo de conceitos

A inquietaccedilatildeo de Lazere eacute irrelevante visto que caso um indiviacuteduo queira superar o poder sistemaacutetico da sociedade ele deve poder empregar o discurso de poder da forma correta para se comunicar de maneira bem sucedida com quem deteacutem o poder Mesmo os mais fervorosos apoiadores da retoacuterica da liberaccedilatildeo vis-lumbram problemas potenciais nesses fins especiacuteficos Bizzell (1997 p 320) por exemplo critica a sugestatildeo de que o reconhecimento da desigualdade ldquo[] tambeacutem desperta automaticamente o desejo progressivo de reforma poliacuteticardquo Reconhecer o status dos alunos necessariamente atribui-lhes o poderio de se manter imoacuteveis especialmente quando eles percebem que seus proacuteprios privileacutegios satildeo colocados agrave prova quando o status quo tambeacutem o eacute

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A construccedilatildeo do argumento

Apesar dos pontos de vista divergentes acerca dos valores da pedagogia liber-tadora estudiosos da aacuterea ainda atribuem valor agrave busca por lutas ideoloacutegicas na sala de aula de escrita A praacutetica da retoacuterica da liberaccedilatildeo no entanto pode tomar diversas formas de acordo com o professor e o material didaacutetico Shor (1980 p 162-69) parte dos artifiacutecios cotidianos jaacute que integram o ldquouniverso geradorrdquo dos alunos Eacute o caso da atividade que propotildee (Worldrsquos Biggest Hamburger ndash Atividade do maior hambuacuterguer do mundo) criada quando a autora trouxe um hambuacuterguer para a sala de aula para que seus alunos o examinassem de acordo com o meacutetodo de Descriccedilatildeo-Diagnoacutestico-Reconstruccedilatildeo

O hambuacuterguer eacute o nexo de muitas realidades cotidianas Natildeo apenas eacute o rei dos fast food a refeiccedilatildeo curta de almoccedilo lanche ou jantar mas eacute tam-beacutem a fonte de renda de muitos alunos que trabalham nesses restauran-tes Eu pude entatildeo segurar em minhas matildeos um interstiacutecio valioso da experiecircncia da massificaccedilatildeo Levei um hambuacuterguer para a sala de aula e com isso interferi em um grande aspecto da cultura de massa Agora que reflito a respeito muitos dos alunos acharam aquele hambuacuterguer nojento Quando reli para a sala um conjunto de suas descriccedilotildees o ham-buacuterguer tomou uma forma bastante negativa Em seguida pedi aos alu-nos que tentassem diagnosticar o objeto O problema oacutebvio sugerido por nosso trabalho ateacute o momento era Se o hambuacuterguer natildeo eacute atraente por-que consumimos muito Porque haacute tantos fast food Porque satildeo usados muitos ingredientes em hambuacutergueres Eles satildeo nutritivos Onde pro-curaacutevamos alimento antes desses impeacuterios de comida raacutepida existirem

Depois de os alunos considerarem o hambuacuterguer sob uma temaacutetica inquisi-tiva mais polecircmica foi-lhes atribuiacuteda a tarefa de reconstruiacute-lo ndash salas diferentes desenvolveram essa fase de maneiras distintas Um dos grupos criou alternativas saudaacuteveis enquanto outro recriou todo o processo de produccedilatildeo e distribuiccedilatildeo para desvendar a complexa relaccedilatildeo entre comida e cultura Shor (1980) acredita que ati-vidades dessa natureza satildeo poderosas porque descaracterizam objetos cotidianos

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A construccedilatildeo do argumento

ao apresentaacute-los sob uma nova perspectiva e contexto o que permite aos alunos a oportunidade de reinterpretar o corriqueiro Professores de argumento devem introduzir exerciacutecios dessa natureza porque eles satildeo abertamente argumentativos Os alunos teratildeo opiniotildees distintas inevitavelmente a respeito da natureza do que eacute corriqueiro em suas vidas No entanto se observado sob a oacutetica ideal o exerciacutecio pode deixar claro que as tentativas de descrever diagnosticar e reconstruir satildeo na verdade conceitos pessoais unidos uns aos outros por posicionamentos poliacuteticos

Outra forma que a retoacuterica da liberaccedilatildeo assume eacute exemplificada por Berlin (2003) quando trata sobre ldquoretoacuterica socioepistecircmicardquo Uma sequecircncia de exerciacutecios comeccedila

[] com uma mateacuteria do Wall Street Journal intitulada The Days of a Cowboy are Marked by Danger Drudgery and Low Pay (O dia a dia de um vaqueiro eacute marcado por perigo labuta e salaacuterio piacutefio) escrito por William Blundell As instruccedilotildees satildeo ao mesmo tempo variadas e acessiacuteveis aos alunos Inicialmente a turma deve levar em conta o contexto da mateacute-ria explorando as caracteriacutesticas da relaccedilatildeo entre o jornal e os eventos histoacutericos que circundam a produccedilatildeo do texto O objetivo da anaacutelise eacute determinar quais aspectos serviram de significantes principais para os leitores originais O significado da palavra cowboss (capataz ou patratildeo) eacute estabelecido pela relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre cowboy (vaqueiro ou peatildeo de boiadeiro) e o chefe que trabalha na cidade longe da fazenda (Essas) dicotomias sugerem outras como natureza-civilizaccedilatildeo e peatildeo-peatildeo ur-bano Os alunos passam entatildeo a notar que essas dicotomias satildeo estabe-lecidas de forma hieraacuterquica com um dos lados em posiccedilatildeo de privileacutegio em relaccedilatildeo ao outro Eles tambeacutem veem o quanto essas hierarquias satildeo instaacuteveis Os alunos analisam discutem e escrevem sobre posiccedilotildees acer-ca de certos aspectos determinantes dentro dessas narrativas social-mente preacute-fabricadas e descobrem que o texto busca posicionar o leitor sobre um determinado tipo de papel masculino Eles podem entatildeo ex-plorar sua proacutepria cumplicidade e resistecircncia ao se adequar a esse papel (BERLIN 2003 p 125-27)

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A construccedilatildeo do argumento

Essa metodologia se adeacutequa bem aos objetivos propostos pelo autor a saber mostrar aos alunos que ldquonarrativasrdquo ndash praacuteticas significantes que parecem naturais e natildeo preacute-fabricadas ndash na verdade moldam suas vidas O conteuacutedo associado a essa sequecircncia estaacute centralizado no ldquo[] posicionamento de aspectos fundamentais in-seridos na textura da narrativa socialmente preacute-fabricadardquo (BERLIN 2003 p 126) Por exemplo embora individualidade e liberdade sejam aspectos frequentemente associados a peotildees de boiadeiro o artigo tambeacutem descreve essas personagens como merecedoras de respeito e submissas ao cowboss (o patratildeo) Uma vez que a narra-tiva eacute destrinchada uma anaacutelise mais consciente do conteuacutedo permite aos alunos situar cada narrativa em um cenaacuterio econocircmico social e poliacutetico mais abrangente

Schutt (1998 p 126) sugere basear o conteuacutedo do curso em espaccedilos sociais

Os benefiacutecios da utilizaccedilatildeo de casos especiacuteficos como texto base pare-cem ter surgido recentemente em conjunto com o conceito emergente de ldquozonas de contatordquo Como definido por Mary Louise Pratt essas zo-nas satildeo ldquoos espaccedilos sociais nos quais culturas distintas se encontram se confrontam e debatem entre si frequentemente em contextos permea-dos por relaccedilotildees de poder profundamente assimeacutetricasrdquoNo caso de E306 esses espaccedilos sociais eram os tribunais americanos No entanto em muitos cursos sobre argumento nenhum espaccedilo (ou even-to) de natureza social pode ser confrontado jaacute que frequentemente ne-nhum espaccedilo dessa natureza eacute assim definido o que cria uma profunda confusatildeo a respeito de quando e como os alunos podem iniciar uma dis-cussatildeo

A soluccedilatildeo para esse problema apresentada pelo autor eacute o agrupamento de leituras em torno do toacutepico da pena de morte que consequentemente leva a dis-cussotildees a respeito da forma como os tribunais administram a justiccedila em nossa sociedade Os exerciacutecios de escrita variam de uma anaacutelise criacutetica de documentos e transcriccedilotildees do processo legal (com comentaacuterios acerca do sucesso particular desse ou daquele argumento legal) agrave produccedilatildeo de textos sobre o impacto perceptual na

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A construccedilatildeo do argumento

opiniatildeo puacuteblica de relatos fictiacutecios de filmes sobre a pena de morte e finamente a anaacutelises criacuteticas e ensaios sobre o impacto do texto jornaliacutestico sobre a opiniatildeo puacuteblica em geral

Certamente natildeo haacute uma forma uacutenica de incorporar a retoacuterica da libertaccedilatildeo agrave aula sobre argumento Apesar de natildeo faltarem inconsistecircncias um programa de aulas desenhado para preparar alunos para o engajamento criacutetico em relaccedilatildeo ao mundo agrave sua volta necessariamente contribuiraacute para a expansatildeo de seus pontos de vista acerca das possibilidades abertas pela retoacuterica indutiva Assim que eles passarem a questionar as figuras de autoridade o reino da invenccedilatildeo retoacuterica poderaacute se expandir exponencialmente Jaacute que muitos dos espaccedilos para discussatildeo estatildeo situados em torno de objetos corriqueiros natildeo seraacute difiacutecil encontrar pontos discutiacuteveis ou engajar alunos em diaacutelogos que exijam deles o questionamento criacute-tico dos pressupostos que possuem

feminismo e argumentaccedilatildeo

A abordagem feminista da argumentaccedilatildeo surgiu da necessidade de encon-trar alternativas aos modelos claacutessicos de argumentaccedilatildeo e da necessidade de se focalizar menos os modelos agonistas e antagonistas que criam ldquovencedoresrdquo e ldquoperdedoresrdquo ou os modelos que pregam que a utilizaccedilatildeo de certas ferramentas de persuasatildeo eacute vaacutelida apenas para se conseguir o que se deseja Em movimento contraacuterio a estrateacutegia feminista se concentra em novas formas de abordar a argu-mentaccedilatildeo a partir de alternativas eacuteticas que reposicionam as partes exteriores ao debate para que a argumentaccedilatildeo a mediaccedilatildeo a negociaccedilatildeo e a cooperaccedilatildeo sejam vistos de forma menos antagonista

Em suas primeiras manifestaccedilotildees as correntes alternativas agrave abordagem aristoteacutelica tentaram se inspirar na obra de Carl Rogers um psicoterapeuta cujos trabalhos se centraram em torno da comunicaccedilatildeo terapeuta-cliente O trabalho de Roger influenciou os campos da retoacuterica e escrita desde 1970 e foi mencio-

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A construccedilatildeo do argumento

nado como uma ldquoalternativa agrave argumentaccedilatildeo tradicionalrdquo por Young Becker e Pikes (1970 p 270) Segundo os autores a abordagem rogeriana foi considerada adequada a ldquo[] situaccedilotildees em que haacute diacuteade comunicativardquo A retoacuterica rogeriana foi ardentemente contestada no final da deacutecada de 1970 e durante toda a deacutecada de 1980 em textos como Carl Rogersrsquos Alternative to Traditional Rhetoricrdquo (HAIRSTON 1976) Aristotelian vs Rogerian Argument A Reassessment (LUNSFORF 1979) Is Rogerian Rhetoric Really Rogerianrdquo(EDE 1984) Rogerian Problem Solving and the Rhetoric of Argumentation (TEICH 1987) e Feminist Responses to Rogerian Argu-ment (LASSNER 1990)

O trabalho de Carl Roger quando adaptado agrave escrita e agrave retoacuterica apresentou uma teoria da argumentaccedilatildeo baseada na ldquoaudiccedilatildeo e compreensatildeordquo repletas de em-patia e na habilidade das partes de enxergarem uma discussatildeo especiacutefica a partir de um ponto de vista diferente de forma que fosse possiacutevel ldquosentir realmenterdquo o que significa trilhar os passos de outra pessoa para se comunicar de forma efi-caz (yOUNG BECKER PIKES 1970 p 285) O trabalho tornou-se atraente para ideologias feministas emergentes no estudo de escrita jaacute que a retoacuterica rogeriana oferecia ldquo[] empatia em vez de oposiccedilatildeo diaacutelogo em vez de discussatildeordquo (LASSNER 1990 p 220) Mesmo assim a retoacuterica rogeriana nunca foi abertamente feminista como defende Lamb (1991 p 17) porque eacute ldquomais feminina do que feministardquo jaacute que ldquocompreender o outro sempre foi a lsquoobrigaccedilatildeorsquo da mulherrdquo

Teorias e abordagens da argumentaccedilatildeo feminista visam entatildeo a oferta de alternativas que se preocupem com a representaccedilatildeo de poder ao mesmo tempo em que se ocupam da empatia e do cuidado De acordo com Lamb (1991 p 18) entender a construccedilatildeo do argumento como um processo de negociaccedilatildeo e media-ccedilatildeo eacute uma alternativa vaacutelida ao argumento masculino porque o ponto central da discussatildeo ldquo[] deixa de ser o ganhador e passa a ser a habilidade de se atingir uma soluccedilatildeo justa adequada a ambas as partesrdquo da mesma forma que a concepccedilatildeo de poder muda ldquode algo que eacute possuiacutedo e pode ser usado contra o outro para algo que estaacute agrave disposiccedilatildeo de ambos e tem o potencial de ser usado para benefiacutecio muacutetuordquo

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A construccedilatildeo do argumento

Abordagens cooperativas que envolvem negociaccedilatildeo e mediaccedilatildeo satildeo pontos de vista populares na representaccedilatildeo feminista da argumentaccedilatildeo mas natildeo satildeo desprovidas no entanto de criacuteticas advindas do proacuteprio movimento feminista Muitos pesquisadores apontam que esse estilo de argumento se baseia numa visatildeo truncada da visatildeo claacutessica (ver por exemplo LUNSFORD 1979) ou na metaacutefora excessivamente simplista da ldquodiscussatildeo como forma de guerrardquo (FULKERSON 1996) Como ilustra Jarratt (1991 p 106) pedagogias da argumentaccedilatildeo centradas na negociaccedilatildeo e mediaccedilatildeo frequentemente exigem que os alunos especialmente os do sexo feminino a estarem ldquo[] insuficientemente preparados para argumentar contra os discursos opressivos do racismo sexismo e divisatildeo de classes que ten-dem a surgir em ambientes onde se estuda escritardquo no dia a dia e nos processos democraacuteticos De forma similar Easley (1997) diz que a melhor estrateacutegia a ser empregada por um professor de escrita ao abordar as diferenccedilas e conflitos ine-rentes agrave argumentaccedilatildeo tradicional em contraste com as linhas de argumentaccedilatildeo alternativa eacute mostrar o contraditoacuterio da posiccedilatildeo diferente de dois alunos que deve por sua vez ser resolvido atraveacutes da produccedilatildeo textual Easley (1997) acredita que os alunos devem ter acesso a ferramentas de argumentaccedilatildeo da mesma forma que devem aprender a utilizaacute-las de maneira eacutetica reflexiva e responsaacutevel Aleacutem disso Fulkerson (1996) sugere que reparar as metaacuteforas de abordagem da argumentaccedilatildeo que refletem menos violecircncia porque focam mais os trabalhos desenvolvidos por meio de parcerias pode levar a um entendimento de argumentaccedilatildeo

[]como uma forma interativa de discurso [hellip] construiacuteda sobre uma estrutura de reivindicaccedilatildeo e apoio e (reiterando a ideia) de que seu pro-poacutesito eacute engajar interlocutores em uma parceria dialeacutetica com a espe-ranccedila de atingir um entendimento muacutetuo que amplie a compreensatildeo (FULKERSON 1996 p 7)

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Fraser (1992 p 73) aborda o conceito de argumentaccedilatildeo e discurso domi-nante ao sugerir que em sociedades estratificadas ldquoarenas discursivas especia-lizadasrdquo ndash na forma de esferas puacuteblicas subalternas ndash satildeo uacuteteis e necessaacuterias para os que lidam diretamente com identidades marginalizadas Extensotildees de teorias da argumentaccedilatildeo feminista tambeacutem podem ser encontradas na teoria retoacuterica moderna por pesquisadores que incorporem o trabalho de Kenneth Burke (FOSS e GRIFFIN 1992) a hermenecircutica posicional (RyAN NATALLE) e a retoacuterica de atraccedilatildeo (FOSS e GRIFFIN 1995)

Ainda que as teorias feministas da argumentaccedilatildeo sejam elas mesmas nego-ciadas as praacuteticas que emergem no ensino do argumento refletem alguns dos princiacutepios essenciais do pensamento e da accedilatildeo feministas Fulkerson (1996) sugere que os alunos escrevam propostas de poliacuteticas que requeiram a investigaccedilatildeo e a escrita de algum pequeno procedimento ou projeto de poliacuteticas locais para ser-viccedilos que eles acreditam natildeo estar funcionando de maneira adequada Esse texto argumentativo deve ser endereccedilado natildeo a um oponente que precisa ser vencido mas sob a forma de um memorando agrave pessoa ou comitecirc responsaacutevel pelo proble-ma O autor propotildee ensinar aos alunos as principais caracteriacutesticas e padrotildees de raciociacutenio utilizados nesse gecircnero textual apresentar exemplos de outros grupos sugerir locais onde se possa pesquisar toacutepicos interessantes entrevistar pessoas conhecedoras do assunto (especialmente as envolvidas com o problema) e seguir o processo tradicional de produccedilatildeo de diferentes rascunhos que deve ser revisado pelos proacuteprios colegas Ele tambeacutem discute

[] a relativa capacidade de persuasatildeo de um ataque enervado ou agressi-vo versus uma criacutetica razoaacutevel com soluccedilotildees propostas que sejam de faacutecil adoccedilatildeo Assim que os textos apresentem um formato adequado ele pede aos alunos que as enviem a quem satildeo de direito para verificar o potencial sucesso de seu trabalho no mundo real (FULKERSON 1996 p 3-4)

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A construccedilatildeo do argumento

Nesse ponto Fulkerson sugere que o gecircnero textual que propotildee novas poliacute-ticas eacute o que aborda injusticcedilas perpetradas na comunidade imediata da mesma forma que aborda uma argumentaccedilatildeo em parceria com ndash direcionada a buscar um consenso mutuamente satisfatoacuterio sobre a criaccedilatildeo de mudanccedilas no processo democraacutetico

Miller (1996) aborda teorias femininas de forma diferente em um curso online Feminism and Expository Writing (Feminismo e a escrita expositiva) Baseando a tarefa proposta em ldquoassuntos pertinentes agrave retoacuterica feministardquo a autora afirma que

[] a argumentaccedilatildeo eacute uma das principais formas de praticar o ldquosaber me-todoloacutegicordquo ou seja um pensamento sistemaacutetico Como habilidades ar-gumentativas satildeo valorizadas nessa cultura eacute importante aprendecirc-las Mesmo assim muitas feministas aleacutem de outras pessoas apresentam objeccedilotildees agrave argumentaccedilatildeo tradicional baseadas em diferentes aspectos inerentes agrave teoria Elas dizem tratar-se de posiccedilatildeo frequentemente in-tolerante de visotildees opositoras e focada na conversatildeo ou destruiccedilatildeo do oponente (MILLER 1996 p 8)

Para deixar a tensatildeo mais palpaacutevel para os alunos Miller propotildee uma tarefa em que ela pede

[] que os alunos se unam a outra pessoa para ldquocolaborarrdquo na estrutu-raccedilatildeo de um argumento em que cada uma das partes assume um pon-to de vista diferenteoposto a respeito de um assunto de sua escolha Eles devem trabalhar juntos para desenvolver formas de argumentar que natildeo possuam caracteriacutesticas tradicionalmente agoniacutesticas Como discordar de forma respeitosa que reconhece perspectivas pluralis-tas e ainda assim consegue apresentar seu ponto de vista Eacute possiacutevel durante uma discussatildeo se manter amaacutevel e em conexatildeo com o outro (MILLER 1996 p 8)

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A construccedilatildeo do argumento

Assim Miller sugere Easley (1997) permite que os alunos articulem e nego-ciem as tensotildees inerentes aos modelos de argumentaccedilatildeo feminista por si mesmos

Praacuteticas e abordagens da argumentaccedilatildeo feminista satildeo contraditoacuterias No entanto eacute razoaacutevel dizer que essas contradiccedilotildees fazem essas abordagens viaacuteveis e sustentaacuteveis Utilizar respostas e abordagens feministas em nossa sala de aula natildeo apenas beneficia os alunos porque lhes oferecer uma ampla gama de estrateacute-gias argumentativas que se somam agraves ferramentas retoacutericas jaacute agrave disposiccedilatildeo mas tambeacutem porque encoraja os professorespesquisadores a ldquo[] romperem com abordagens calcificadas acriacuteticasrdquo tanto na abordagem do argumento quanto no ensino (PALCZEWSKI 1996 p161)

aprendizagem-serviccedilo e argumentaccedilatildeo

As raiacutezes da aprendizagem-serviccedilo na retoacuterica da escrita se encontram na ldquomudanccedila socialrdquo da aacuterea conforme detalha Cooper (1986) A autora faz alusatildeo agrave pedagogia que se preocupa com o proacuteprio processo de escrita assim como a reflete

[] a crescente consciecircncia de que a linguagem e os textos natildeo satildeo ape-nas os meios pelos quais os indiviacuteduos decodificam e comunicam infor-maccedilatildeo mas essencialmente atividades sociais que como tal dependem de estruturas e processos sociais natildeo apenas na interpretaccedilatildeo mas tam-beacutem na construccedilatildeo (COOPER 1986 p 366)

Os objetivos da aprendizagem-serviccedilo estatildeo ligados tanto ao trabalho realiza-do por John Dewey para quem a educaccedilatildeo tem uma funccedilatildeo democraacutetica expliacutecita quanto agraves pedagogias da libertaccedilatildeo que baseadas nos trabalhos de Paulo Freire buscam a formaccedilatildeo de cidadatildeos com consciecircncia criacutetica a respeito das instituiccedilotildees de poder e capazes de trabalhar para combater injusticcedilas sociais Desde meados da deacutecada de 1990 alguns pesquisadores tentam estabelecer a aprendizagem-

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A construccedilatildeo do argumento

-serviccedilo como um toacutepico relevante para os estudos sobre argumento a exemplo de Herzberg (1994) Cushman (1997) e Adler-Kassner Crooks e Watters (1997) Recentemente a aprendizagem-serviccedilo tambeacutem esteve ligada agrave ideia que a escrita eficiente eacute situada ou seja ocorre em espaccedilo para aleacutem da sala de aula para garantir que estudantes tenham acesso a situaccedilotildees retoacutericas reais29

Apesar de intimamente ligada agrave teoria da argumentaccedilatildeo a aprendizagem--serviccedilo tem uma linhagem muito mais antiga o pensamento de Quintiliano se-gundo o qual quem argumenta bem eacute um ldquobom homem que fala bemrdquo Em outras palavras o pressuposto de que a habilidade de persuasatildeo de um determinado indiviacuteduo estaacute tanto ligada a seu caraacuteter eacutetico e ao dever ciacutevico de agir com retidatildeo quanto agrave questatildeo retoacuterica em si A pedagogia da aprendizagem-serviccedilo portanto trata da formaccedilatildeo de um cidadatildeo-orador algueacutem que ldquo[] pode trazer agrave tona suas habilidades discursivas quando a comunidade a que serve for obrigada a enfrentar uma decisatildeo poliacutetica ou judicial difiacutecil ou precisa celebrar seu valor cultural iacutempar ou apenas sinta-se carente de uma injeccedilatildeo de moralrdquo (CROWLEY 1989 p 318)

Essa pedagogia no entanto natildeo estaacute inteiramente livre de criacuteticas A apren-dizagem-serviccedilo vem sendo criticada como ldquo[] hiperpragmaacutetica porque precisa manter a anaacutelise criacuteticardquo (SCOTT 2004 p 301) como excessivamente idealista em suas expectativas de transformaccedilatildeo social (ROZyCKI 2002) e como desatenta agraves relaccedilotildees de poder entre as universidades e as comunidades em que se situam especialmente quando levada em conta a repentina popularidade de iniciativas para captaccedilatildeo de recursos baseadas apenas na aprendizagem-serviccedilo sem qual-quer avaliaccedilatildeo criacutetica (MAHALA e SWILKy 2003) Agrave medida que as universidades satildeo impelidas de divulgar suas parcerias comunitaacuterias para arrecadar fundos e adaptam cada vez mais suas declaraccedilotildees de missatildeo para incluir o compromisso com o serviccedilo agrave comunidade (WILLIAM AND MARy UNIVERSITy WEB 2004) ou

29 ver tambeacutem Heilker (1997) e Mauk (2003)

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A construccedilatildeo do argumento

a outros grupos locais regionais nacionais e internacionais muitos podem se sentir pressionados a buscar iniciativas ligadas agrave aprendizagem-serviccedilo sem que haja qualquer intenccedilatildeo real de transformaccedilatildeo social Aleacutem disso muito se tem questionado ndash de ambos os lados ndash a autenticidade dos propoacutesitos dos trabalhos de escrita que as situaccedilotildees retoacutericas reais podem oferecer aos estudantes para produzir textos30

Entretanto apesar do aparente apogeu da aprendizagem-serviccedilo estar chegan-do ao seu inevitaacutevel fim alguns pesquisadores tecircm se dedicado agrave defesa de inicia-tivas dessa natureza produzindo material que atesta a sustentabilidade em larga escala de programas de aprendizagem-serviccedilo em todo territoacuterio norte-americano (ROBINSON 2005 CUSHMAN 2002) Essa pedagogia adveacutem de um compromisso com a accedilatildeo democraacutetica e o serviccedilo comunitaacuterio e frequentemente eacute composta por aspectos da aprendizagem experiencial que transcende a sala de aula e trata das necessidades da comunidade local e inclui a reflexatildeo estruturada da experi-mentaccedilatildeo (SCOTT 2004) Assim as melhores praacuteticas da aprendizagem-serviccedilo e da argumentaccedilatildeo satildeo aquelas que apoiam a filosofia de Quintiliano e ao mesmo tempo contribuem para um melhor entendimento da aprendizagem experiencial da comunidade da geografia e da reflexatildeo criacutetica

A utilizaccedilatildeo de praacuteticas de aprendizagem-serviccedilo na sala de aula para o en-sino da argumentaccedilatildeo pode ser tatildeo simples quanto a sugestatildeo de um argumento proposto para combater alguma injusticcedila que assola a comunidade imediata ao mesmo tempo em que pode como sugere Mauk (2003 p381) ser uma forma de provocar nos estudantes a reflexatildeo criacutetica a respeito de cidadania e de cuidados de sauacutede

Uma investigaccedilatildeo ou tarefa comeccedila com a leitura de uma accedilatildeo poliacutetica Os alunos satildeo levados a levantar os nomes de funcionaacuterios puacuteblicos elei-

30 ver Deans (2000) e Petraglia (1995)

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A construccedilatildeo do argumento

tos ou natildeo nos acircmbitos municipal estadual ou federal Eles satildeo depois levados a produzir um pequeno texto [argumento] ou desenvolver um panfleto que explique detalhadamente como um cidadatildeo comum pode se colocar em contato com esse representante Os alunos entatildeo entregam esse texto a seus vizinhos e em um trabalho subsequente exploram o impacto do trabalho previamente divulgado Para esse segundo texto os alunos podem organizar encontros ou recorrer a outros textos sobre accedilotildees ciacutevicas

Os argumentos ligados a atividades de aprendizagem-serviccedilo podem ser ligeiramente mais complexos e servirem para que os alunos critiquem suas vi-vecircncias durante as atividades de aprendizagem ou ideais como a de ldquoalfabetizaccedilatildeo ciacutevicardquo que satildeo centrais para o modelo de Quintiliano Os estudantes tambeacutem podem discutir a escrita argumentativa e como ela se insere em aulas baseadas em aprendizagem-serviccedilo apostando diretamente como explicam Cooper e Julier (2011 p 86)

Nossos alunos pesquisaram e coletaram informaccedilotildees a respeito da emenda proposta [para proteger cidadatildeos da discriminaccedilatildeo baseada em altura peso origem familiar orientaccedilatildeo sexual porte ou presenccedila de deficiecircncia fiacutesica] publicadas na imprensa local Eles entatildeo solicitaram declaraccedilotildees de posicionamento de diferentes indiviacuteduos e organizaccedilotildees Outros alunos acompanharam o debate quando a cacircmara municipal se isentou das discussotildees atribuindo-as ao Conselho de Relaccedilotildees Humanas Contra esse pano de fundo contextual pedimos que nossos alunos dese-nhassem e conduzissem uma pesquisa de opiniatildeo puacuteblica para ajudar o Conselho de Relaccedilotildees Humanas da cidade de Lansing a decidir se reco-mendaria ou natildeo agrave cacircmara a adoccedilatildeo da regulamentaccedilatildeo [o que resultou no rascunho de um memorando] para o Conselho sugerindo medidas acerca da regulamentaccedilatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

O que eacute primordial entre as melhores praacuteticas de argumento em cursos de aprendizagem-serviccedilo que observem um modelo democraacuteticoretoacuterico de ensino de escrita eacute a ecircnfase sobre os valores ciacutevicos da resoluccedilatildeo de conflitos aleacutem do compromisso com o engajamento de estudantes ao discurso puacuteblico de forma a ldquo[] forjar declaraccedilotildees duradouras de reciprocidade ciacutevica e obrigaccedilatildeo eacuteticardquo (COOPER e JULIER 2011 p 92) Em resumo produzir bons homens e mulheres capazes de falar (e escrever) bem

esCrita atraveacutes do CurrIacuteCulo (writing across the curriculum ndash WaC) e esCrita nas disCiplinas (writing in the disciplines ndash Wid)

A escrita atraveacutes do curriacuteculo (WAC) eacute um movimento pedagoacutegico que tem como princiacutepio central a ideia de que os alunos retecircm melhor o conhecimento quando estatildeo envolvidos em atividades de escrita O modelo padratildeo do movimen-to prevecirc cursos especiacuteficos de escrita em uma variedade de disciplinas Nesses cursos os alunos sintetizam analisam e aplicam conhecimentos que adquiriram necessariamente atraveacutes da escrita Apesar de serem constantemente fundidos e confundidos a WAC e a escrita nas disciplinas(WID) possuem fundamentos dis-tintos A WID eacute um ldquo[] movimento de pesquisa que busca compreender quais os tipos de escrita que realmente ocorrem em diferentes aacutereas disciplinaresrdquo (BA-ZERMAN et al 2005 p 10) que se seguiu ao movimento WAC e preencheu um vazio teoacuterico deixado pelos especialistas que estudaram esse movimento (JONES e COMPRONE 1993) Enquanto a WAC estaacute fundamentalmente preocupada com o desenvolvimento de uma atmosfera em que a escrita eacute sistematicamente encorajada atraveacutes do treinamento de professores e do estiacutemulo aos alunos para a escrita a WID visa desvendar as distinccedilotildees teoacutericas que as diferentes visotildees disciplinares exercem no papel da escrita e examinar a fundo os tipos de escrita que ocorrem

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A construccedilatildeo do argumento

nas diversas disciplinas (BAZERMAN 2005) A WAC e a WID satildeo relevantes para as boas praacuteticas de ensino de argumento de duas formas diferentes

1 Aqueles que ensinam segundo um programa de WAC ou os que desenvol-vem pesquisas na aacuterea de WID se concentram em teorias do argumento como a base para suas atividades Diferentes formas de escrever nas disciplinas resultam tipicamente em diferentes formas de argumentar nas disciplinas2 As liccedilotildees ndash e em alguns casos os debates ndash deixados pelo estudo de WAC e WID frequentemente podem ser aplicados agrave realidade da escrita durante os cursos

Como aponta Bartholomae (1997 p 589)

[] cada vez que um aluno se senta para escrever ele precisa ldquoinventarrdquo uma universidade que se adapte agrave ocasiatildeo que ele vive ndash inventar aqui refere-se tanto agrave universidade em si quanto a suas subdivisotildees como o Departamento de Antropologia Economia ou Inglecircs O aluno nessa cir-cunstacircncia precisa aprender a falar a liacutengua de seu professor a falar como fala o acadecircmico a experimentar as diferentes e peculiares formas de saber selecionar avaliar reportar concluir e argumentar que defi-nem o discurso dessa comunidade em particular

Uma das mais antigas tentativas de teorizar sobre a construccedilatildeo de argumen-tos em diferentes disciplinas foi realizada por Toulmin (1999) em seu The Uses of Argument O autor sugere a necessidade de primeiramente se levar em conta a distinccedilatildeo entre elementos campo-invariaacutevel e campo-dependente antes de cri-ticar um determinado argumento Os elementos do campo-invariaacutevel denotam a existecircncia de convenccedilotildees como as mencionadas por Bartholomae (1997) Essas convenccedilotildees mantecircm-se relativamente em uma variedade de disciplinas Indepen-dente do campo a induccedilatildeo tem iniacutecio na proposiccedilatildeo de um problema leva em conta

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A construccedilatildeo do argumento

limitaccedilotildees e se fia em evidecircncias para construir um argumento Jaacute os elementos do campo-dependente por outro lado estatildeo em constante mutaccedilatildeo Eles incluem por exemplo os padrotildees usados para determinar quais os assuntos satildeo proacuteprios para o estudo e quais afirmaccedilotildees requerem ou natildeo uma base argumentativa Basica-mente as diferenccedilas entre as formas de escrita de historiadores e bioacutelogos estatildeo nas formas especiacuteficas que essas aacutereas defendem para a criaccedilatildeo suporte e eluci-daccedilatildeo de argumentos Os elementos do campo-dependente tambeacutem podem variar dentro de uma mesma disciplina Um exemplo disso satildeo as visotildees divergentes dos pesquisadores do ensino de escrita em inglecircs a respeito do que constitui um dado vaacutelido em uma pesquisa alguns defendem dados etnograacuteficos e observacionais enquanto outros preferem dados quantitativos e empiacutericos Essas diferenccedilas de entendimento remontam agrave compreensatildeo que os membros desses grupos especiacuteficos tecircm do que constitui induccedilatildeo e argumento vaacutelidos

Em seu claacutessico artigo Writing as a Mode of Learning Emig (1997) foi quem primeiro associou o estudo da escrita a certas questotildees sobre a WAC e WID Ela se vale das teorias de Vygotsky James Britton e outros para argumentar que a escrita eacute uma forma de aprendizagem ldquouacutenicardquo em parte porque ldquopode subsidiar o apren-dizado jaacute que consegue acompanhar seu ritmordquo (EMIG 1997 p 12) A natureza recursiva da escrita permite ao indiviacuteduo processar e compreender a informaccedilatildeo de maneira que a fala e o raciociacutenio sozinhos tendem a dificultar Foram os ensaios de Emig que legitimaram algumas tentativas pioneiras de implementar a WAC

Alguns dos debates associados agrave WAC tambeacutem tecircm implicaccedilotildees relevantes para a leitura de textos argumentativos apresentados em cursos de escrita O trabalho de Russell (1995) sobre a Teoria da Atividade desafia a noccedilatildeo de que a escrita pode ser usada em todas as disciplinas Russell (1995) se utilizou nes-se caso da teoria de Vygotsky a teoria da atividade pressupotildee a existecircncia de ldquosistemas de atividaderdquo similares a campos ou comunidades discursivas que se utilizam de contextos especiacuteficos para produzir conhecimento Esses sistemas de atividade tecircm histoacuterias de interaccedilatildeo canonizadas pela literatura e se utilizam de

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ferramentas tanto fiacutesicas (computadores calculadoras) quanto semioacuteticas (fala e escrita) para articular ideias e produzir conhecimento a partir do mundo Eles se modificam atraveacutes de discussotildees que ocorrem dentro deles mesmos aleacutem de emprestar e transformar ferramentas de outras disciplinas para atingir seus fins Partindo desse ponto de vista existem apenas alguns ndash se eacute que de fato existem ndash elementos do campo-invariaacutevel e nenhuma parte da escrita pode ser considerada uma habilidade autocircnoma

Para verificar a relevacircncia que os trabalhos acerca da WACWID tecircm sobre a construccedilatildeo do argumento consideremos o trabalho realizado por alunos de um curso de Economia focado em ajudaacute-los a definir construccedilotildees e termos da aacuterea Para despertar a sensibilidade para esses conceitos Palamini (1996 p 206) sugere o uso de rhetorical cases (casos retoacutericos)

O caso retoacuterico ndash ou estudo de caso retoacuterico ndash eacute um problema de uma histoacuteria independente que simula uma situaccedilatildeo real de comunicaccedilatildeo O caso disponibiliza informaccedilatildeo acerca de contextos experienciais e edu-cacionais de escritores e leitores Mais importante ele especifica uma situaccedilatildeo particular de escrita (ou foacuterum) e portanto o tipo de relacio-namento que existe entre autor e leitor ou seja seus papeacuteis organizacio-nais muacutetuos e seus propoacutesitos O aluno entatildeo assume o papel de autor e se esforccedila para explicar de maneira persuasiva como a anaacutelise econocirc-mica pode ajudar o leitor a compreender seu negoacutecio ndash ou outro tipo de problema econocircmico ndash e tomar decisotildees positivas

Para ilustrar seu meacutetodo Palamini (1996) usa o exemplo de um economista de um sindicato que discute informaccedilotildees referentes ao custo de vida com um grupo do mesmo sindicato responsaacutevel pela negociaccedilatildeo de um contrato O autor aponta o valor que esses ldquocasos retoacutericosrdquo tecircm sobre a necessidade de se considerar o puacuteblico alvo de um discurso em um determinado contexto Os economistas po-dem compreender a maneira ideal de se comunicar com seus semelhantes mas a

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A construccedilatildeo do argumento

natureza de seu trabalho envolve tambeacutem a habilidade de transmitir informaccedilotildees abstratas em uma linguagem que leigos possam compreender e utilizar No final Palamini delimita de forma mais extensiva um caso retoacuterico especiacutefico

A divisatildeo da responsabilidade do ensino de escrita eacute uma ideia que vem sendo aceita de forma lenta ndash mas constante ndash nos ciacuterculos acadecircmicos Os sistemas edu-cacionais massificados frequentemente ignoram a natureza da escrita e os alunos sofrem com o resultado de modelos redutores acriacuteticos de escrita encontrados na academia Se realmente existe a intenccedilatildeo de incentivar os estudantes a realmen-te encontrar e utilizar ferramentas de persuasatildeo mais eficazes o conhecimento da retoacuterica especializada e adequada a uma disciplina especiacutefica deveria ser um dos fundamentos das disciplinas comuns baacutesicas nas faculdades e universidades Refletir mais cuidadosamente sobre o papel da escrita na educaccedilatildeo pode levar os educadores a se interessarem mais por melhores praacuteticas de ensino e aprendi-zagem de escrita Apenas a compreensatildeo sobre como os modelos de escrita e de argumento ensinados em outros cursos diferem ou se assemelham aos modelos tradicionalmente ensinados em cursos de escrita pode permitir ajustes apropriados ao desenvolvimento de cursos e materiais didaacuteticos

Computador e esCrita

Para a maior parte dos alunos inscritos em cursos de escrita o computador e a escrita compotildeem uma parceria natural os rascunhos podem ser escritos e re-visados com a ajuda de vaacuterios programas de ediccedilatildeo de textos e-mails e papos on line satildeo redigidos e enviados agraves duacutezias diariamente A escrita produzida eletroni-camente jaacute domina atualmente os estudos sobre a escrita mas obviamente nem sempre foi assim Haacute alguns anos quando os programas de ediccedilatildeo de texto eram ainda restritos a uma ou outra plataforma e a disponibilidade de computadores pessoais se resumia a um sonho futuriacutestico os especialistas em escrita se dividiam sobre o impacto que a tecnologia e os computadores teriam sobre o campo

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A construccedilatildeo do argumento

Em 1983 foi criada a revista Computers and Composition que discutia ndash e ainda discute ndash a teoria e a praacutetica do uso de computadores na escrita Nos artigos publicados surgiram os mais importantes debates sobre o assunto Aleacutem disso nas paacuteginas de Computers and Composition os principais especialistas do campo (como Kate Kiefer Cynthia Selfe e Gail Hawisher que compotildeem um triunvirato pioneiro) continuam publicando seus estudos Qualquer professor interessado em compreender a histoacuteria e a evoluccedilatildeo do papel dos computadores no campo da escrita deve iniciar seus estudos consultando esse perioacutedico

Considerando-se que esse campo eacute ainda novo e as reaccedilotildees polarizadas de muitos professores agrave utilizaccedilatildeo da tecnologia diferentes visotildees sobre computador e escrita podem ser encontradas em vaacuterios artigos Um dos primeiros desses artigos publicado em Computers and Composition apresenta um debate entre professores de escrita teria a escrita por computador ldquo[] o potencial para produzir uma me-lhora global na qualidade dos textos dos nossos alunosrdquo (MORAN 2003 p 347) Brownell (1984 p 3) atesta que ldquo[] os editores de texto possibilitam escrever mais em menos tempo e realmente fazem de noacutes melhores escritoresrdquo Essa declaraccedilatildeo no entanto foi prontamente contestada por McAllister (1985) Sommers e Collins (1985) e mais tarde tambeacutem por Dowling (1994) e Collier (1995) Os professores interessados no assunto podem utilizar esse argumento para verificar a origem da polaridade entre tecnoacutefilos que acreditam no impacto positivo dos computadores sobre a escrita e os especialistas mais cautelosos (HARRIS 1995 BANGERT-DRO-WNS 1993) que acreditam serem necessaacuterias mais avaliaccedilotildees e mais evidecircncias concretas da eficaacutecia ou falecircncia do meacutetodo antes de incluir computadores nas aulas de escrita E o debate continua Muitos pesquisadores acreditam e utilizam as opiniotildees dos alunos para direcionarem sua proacutepria avaliaccedilatildeo acerca do ensino de escrita em salas de aula computadorizadas como fazem Gos (1996) Duffelmeyer (2001) e LeCourt e Barnes (1999) pioneiros na aacuterea

Igualmente eacute bastante debatida a forma como as tecnologias emergentes impactam o estudo e o ensino de argumentaccedilatildeo O avanccedilo contiacutenuo na criaccedilatildeo de

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hardware software e perifeacutericos abre muitas possibilidades (e potenciais armadi-lhas) agrave vida de professores de argumentaccedilatildeo Stephens (1984) foi um dos primeiros especialistas a teorizar a respeito do impacto dos computadores sobre a argumen-taccedilatildeo e a declarar que essas ferramentas aumentam as habilidades argumentativas dos estudantes Eacute loacutegico que no momento em que Stephens pensava suas teorias em 1984 os computadores eram sinocircnimos de editores de texto Conforme o seacuteculo XX avanccedila no entanto ocorre uma variedade nova de meacutetodos agrave disposiccedilatildeo de um professor muitos especialistas criaram hipoacuteteses acerca de como argumentar em ambientes hipertextuais de maneira eficaz por exemplo Marshall (1987) Conklin e Begeman (1987) Bolter (1991) Landow (1992) e Kolb (2005) Carter (2003) dis-cute a argumentaccedilatildeo em hipertexto de maneira bastante detalhada utilizando-se extensivamente do trabalho realizado por Perelman (2001) Williams (2002) a partir do ponto de vista de Toulmin declara que a interaccedilatildeo eacute fundamental para a utilizaccedilatildeo da persuasatildeo na Web Kajder e Bull (2003) e Williams e Jacobs (2004) exploram como os blogs podem oferecer aos estudantes uma consciecircncia a respeito do puacuteblico alvo aleacutem de oferecer um componente dialoacutegico crucial para a constru-ccedilatildeo de argumentos eficazes

Para os professores que datildeo aulas em ambiente digital McAlister Ravenscroft e Scanlon (2004) e Coffin e Hewings (2005) apresentam sugestotildees de como usar esses espaccedilos para garantir suporte agrave colaboraccedilatildeo e agrave construccedilatildeo de argumentos de maneira mais eficaz Para os especialistas que buscam um tratamento mais teacutecnico sobre a forma como a tecnologia pode se relacionar agrave argumentaccedilatildeo as ciecircncias da computaccedilatildeo jaacute dedicaram consideraacutevel espaccedilo ao assunto como pode ser observado nos trabalhos de Andriessen (2003) Baker (2006) Reed e Norman (2004) Kirschner Buckingham e Carr (2003) e McElholm (2002)

Para professores que buscam uma abordagem mais praacutetica haacute uma seacuterie de websites acadecircmicos agrave disposiccedilatildeo A citaccedilatildeo e confiabilidade de fontes online no entanto permanece ocupando uma posiccedilatildeo de suma importacircncia jaacute que os estu-dantes tendem cada vez mais a confiar em websites para fundamentar e pesquisar

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seus argumentos ndash sem no entanto atribuir a devida atenccedilatildeo ao ethos da fonte As livrarias online da Cornell University da UC Berkeley University e da New Mexico State University oferecem uma amostra abrangente de perguntas a serem realiza-das na hora de avaliar fontes digitais Muitas outras universidades oferecem em seus ambientes online recursos de ensino e aprendizagem

O laboratoacuterio Purdue Online Writing Lab (OWL) foi um dos primeiros laboratoacute-rios de escrita digital nos Estados Unidos e se manteacutem entre os mais importantes oferecendo uma variedade de heuriacutesticas e ideias para uma escrita eficaz A Dart-mouth College oferece um site abrangente inteiramente devotado ao ensino online incluindo materiais didaacuteticos artigos sobre o ensino atraveacutes do uso de tecnologia e estudos de caso de professores que se utilizaram da Internet como ferramenta de ensino O website da Schoolcraft College oferece materiais do mesmo tipo incluindo exerciacutecios planilhas moacutedulos de ensino e materiais sobre o ensino de argumenta-ccedilatildeo A comunidade virtual Lingua MOO tambeacutem oferece a professores um espaccedilo em que materiais didaacuteticos adicionais relacionados agrave tecnologia e argumentaccedilatildeo podem ser encontrados

As fontes listadas aqui oferecem um bom ponto de partida para professores que querem explorar o impacto de tecnologias da computaccedilatildeo sobre a escrita e o ensino de argumentaccedilatildeo Os professores que desejem encontrar mais materiais acerca das aplicaccedilotildees praacuteticas e teoacutericas do ensino de argumentaccedilatildeo atraveacutes de uma variedade de aplicativos espaccedilos e ferramentas eletrocircnicos devem comeccedilar acompanhando as discussotildees dos artigos de Computers and Composition seja na versatildeo impressa ou digital Outro excelente ponto de partida satildeo os sites acadecircmi-cos como o Lingua MOO em que a aplicaccedilatildeo praacutetica de tecnologias de ponta pode usualmente ser encontrada em primeira matildeo

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retoacuteriCa visual

Em A New Rhetoric Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969) discorrem sobre a importacircncia da ldquopresenccedilardquo para a argumentaccedilatildeo No texto os autores descrevem presenccedila como a combinaccedilatildeo de forma e substacircncia que influencia psicologica-mente a audiecircncia atraveacutes do uso de teacutecnicas como omissatildeo ecircnfase escolha e seleccedilatildeo Ainda que os autores natildeo discutam profundamente os usos extra verbais do recurso visual parece claro que esse conceito que enfatiza a necessidade de se colocar algo frente a frente com a audiecircncia eacute particularmente importante para a retoacuterica visual Aliaacutes pode-se afirmar que se trata do tipo de apelo mais pene-trante e frequente em nossa cultura As retoacutericas visuais de revistas (um anuacutencio brilhante em paacutegina dupla na revista Vanity Fair em que a marca Lancocircme mostra uma jovem modelo relaxando num belo vestido de veratildeo cor de rosa convidando os leitores a ldquodespertar para a nova primaverardquo) da televisatildeo (o jogador de baseball Alex Rodrigues com um sorriso paciente ajudando crianccedilas a aprender os funda-mentos do jogo num comercial para os clubes infantis de baseball da liga Boys and Girls Clubs of America) e da Internet (no site internacional do Greenpeace a imagem de um bebecirc orangotango com seus grandes olhos arredondados ao lado do texto ldquoEssa Terra fraacutegil precisa de uma voz Ela precisa de soluccedilotildees mudanccedilas accedilatildeordquo) estatildeo entre as cerca de 3000 mensagens que o cidadatildeo meacutedio encontra dia apoacutes dia que satildeo predominantemente visuais em seu apelo persuasivo

No entanto temos sido relativamente lentos em nossa capacidade de realmente abraccedilar a retoacuterica visual como parte dos estudos de escrita retoacuterica e argumen-taccedilatildeo Handa (2004 p 305) aponta esse fato mais claramente

As disciplinas de escrita e de retoacuterica claacutessica abordam a retoacuterica e a argumentaccedilatildeo em termos estritamente verbais Nos estudos de escrita os especialistas natildeo concordam sob nenhum aspecto universalmente a respeito da capacidade que as imagens tecircm ou natildeo de apresentar ar-gumentos especialmente quando levada em consideraccedilatildeo a definiccedilatildeo

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claacutessica de argumento uma sequecircncia linear de alegaccedilotildees contra ale-gaccedilotildees e evidecircncias Se as imagens satildeo capazes de apresentar um argu-mento completo quando utilizadas sozinhas ou se isso soacute acontece ao combinaacute-las a palavras e frases eacute um assunto ainda mais contencioso

Para os leitores que cresceram em uma cultura dominada pelo imaginaacuterio e natildeo pela miacutedia impressa o poder persuasivo de imagens signos e siacutembolos parece um fato oacutebvio Porque entatildeo nossas disciplinas tecircm resistido tanto em considerar a retoacuterica visual como um campo legiacutetimo de estudo

Stroupe (2000 p 10) ajuda a situar esse fenocircmeno ao salientar que os pro-gramas de ensino de retoacuterica e escrita estatildeo frequentemente limitados aos depar-tamentos de idiomas satildeo justamente os responsaacuteveis por uma defesa estanque da cultura da palavra impressa e sua ldquo[] costumeira rejeiccedilatildeo do discurso popular predominantemente visualrdquo O medo da tecnologia (especialmente do computador) e o desdeacutem pelo texto ldquopopularrdquo contribuiacuteram profundamente para essa margi-nalizaccedilatildeo precoce da retoacuterica visual na disciplina de escrita A retoacuterica visual complementa claramente uma seacuterie de disciplinas No entanto como ocorre com outros ldquonovosrdquo campos de estudo tambeacutem pode ameaccedilar a hegemonia de disci-plinas academicamente estabelecidas ao colocar sua coerecircncia interna limites e pressuposta completude sob questionamento Tendo esses obstaacuteculos em vista eacute mais faacutecil compreender o ritmo lento do (re)aparecimento e total estabelecimento dos estudos visuais

A reticecircncia demonstrada pelos estudos de retoacuterica e escrita em dar as boas--vindas ao estudo da retoacuterica visual eacute bastante irocircnica haja vista a importacircncia da imagem visual ao longo da histoacuteria para as duas disciplinas desde seus primoacuter-dios Aristoacuteteles reconheceu o poder da metaacutefora e da visualizaccedilatildeo e Quintiliano afirmou que a visualizaccedilatildeo eacute uma das formas mais claras de manipular emoccedilotildees Platatildeo atribuiu grande importacircncia agrave luz e agrave visatildeo tanto no mundo extrassensorial quanto no sensorial Curtius (1973) descreve como em tempos medievais a retoacuterica epidiacutetica (com maior ecircnfase na apresentaccedilatildeo visual) se tornou mais importante

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que a retoacuterica deliberativa Hobbs (2002) afirma que Francis Bacon ao chamar emblemas de imagens aceitou a premissa de que as imagens satildeo mais memoraacuteveis que as palavras A autora recorre agrave uma citaccedilatildeo de Bacon para essa constataccedilatildeo

Eacute mais faacutecil reter a imagem de um esportista que caccedila uma lebre de um farmacecircutico que organiza suas caixas de um rapaz que recita versos ou de um ator durante uma performance do que reter as noccedilotildees correspon-dentes de invenccedilatildeo disposiccedilatildeo eloquecircncia memoacuteria (e) accedilatildeo (HOBBS 2002 p 60)

Os ldquonovos retoacutericosrdquo do Iluminismo Escocecircs (Smith Blair Lord Kames e Cam-pbell entre outros) tambeacutem foram influenciados pela centralizaccedilatildeo da imagem e da imaginaccedilatildeo propostas por Bacon Os termos e conceitos hoje reconhecidos como parte integral e relevante dos estudos visuais apresentam a maior riqueza de seus antecedentes histoacutericos da retoacuterica Hunter Gardner (2004) Kress e Van Leeuwen (1996) estatildeo entre os especialistas que lideram as discussotildees acadecircmicas acerca da necessidade de se dar maior atenccedilatildeo agrave retoacuterica visual

Haacute vaacuterias aplicaccedilotildees relevantes da retoacuterica visual em sala de aula Um dos primeiros textos a demonstrar como incorporar o estudo da imagem nas aulas de escrita foi Seeing the Text de Bernhardt (1986) Neste ensaio o autor afirma que ateacute a palavra impressa eacute inerentemente visual por depender de arranjos espaciais e decisotildees (como estilo e tamanho de fontes localizaccedilatildeo de espaccedilos em branco e divisatildeo de paraacutegrafos etc) que satildeo de natureza retoacuterica Ele tambeacutem apresenta uma lista de fatos relevantes acerca do ambiente produzida por cidadatildeos conservadores e poliacuteticos em busca de proteccedilatildeo legislativa de aacutereas de manancial e alagadiccedilas A forma como Bernhardt analisou a construccedilatildeo dessa lista serve como importante introduccedilatildeo agrave noccedilatildeo de que a retoacuterica visual natildeo precisa necessariamente incluir fotos desenhos signos ou siacutembolos aleacutem de servir como ponto de comparaccedilatildeo para as milhares de publicaccedilotildees dessa natureza sejam elas listas de importacircncia ciacutevica panfletos que defendem causas ou websites

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No texto Reading the Visual in College Writing Classes Hill (2003) partilha al-gumas de suas proacuteprias teacutecnicas para introduccedilatildeo da retoacuterica visual na sala de aula Seus exemplos satildeo diversificados e cobrem desde o arranjo dos espaccedilos entre as linhas do texto e o tamanho dessas linhas (como faz Bernhardt 1996) passando pela anaacutelise retoacuterica de fotografias famosas (como a dos fuzileiros navais dos Es-tados Unidos erguendo a bandeira americana no solo de Iwo Jima no Japatildeo) ateacute a desconstruccedilatildeo de valores culturais escondidos de maneira subliminar em um anuacutencio impresso de uma empresa que vende seguros de vida A anaacutelise apresen-tada por Hill (2003) de cada um desses exemplos ajuda a demonstrar claramente a diversidade de apelos visuais de persuasatildeo e oferece a professores e alunos uma fundamentaccedilatildeo pedagoacutegica firme a partir da qual pode explorar outros exemplos de retoacuterica visual

Para os professores que pretendem continuar explorando as conexotildees entre retoacuterica e cultura visual os artigos de Frascina (2003) e Zagacki (2005) oferecem uma anaacutelise complementar das pinturas de Norman Rockwell Frascina compara os originais de Rockwell inspirados na Segunda Guerra Mundial com as versotildees digitalmente alteradas produzidas pelo jornal The New York Times apoacutes os aten-tados de 11 de setembro de 2001 numa tentativa de demonstrar a ldquomemoacuteria cul-tural coletivardquo que imagens poderosas podem construir Zagacki usa as pinturas de Rockwell sobre direitos civis para ilustrar como as obras de arte visuais ldquo[] podem operar na retoacuterica para articular o conhecimentordquo e moldar a percepccedilatildeo do puacuteblico Os dois trabalhos oferecem excelentes oportunidades para os professores apresentarem aos seus alunos os conceitos e meacutetodos da retoacuterica visual aleacutem de orientaacute-los a respeito de como os apelos imageacuteticos persuasivos podem ser ana-lisados e desconstruiacutedos

Exemplos praacuteticos de outros gecircneros da retoacuterica visual tambeacutem existem Em Understanding Comics The Invisible Art McCloud (1994) utiliza quadrinhos de forma criativa para analisar as praacuteticas retoacutericas aiacute empregadas A anaacutelise dos componentes retoacutericos verbais e visuais do filme The Usual Suspects (Os Suspeitos

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filme de 1995 lanccedilado no Brasil em 1996 e dirigido por Brian Singer) realizada por Blakesley (2003) oferece um raciociacutenio estrutural que pode ser aplicado ao estudo da retoacuterica visual no cinema Jaacute Television News as Rhetoric de Smith (1977) funciona bem em conjunto com The Rhetoric of Television News de Nydahl (1986) e com Uses of Television Hartley (1999) para oferecer exemplos representativos de estudo e aplicaccedilatildeo da retoacuterica televisiva Os professores que desejam combinar estudos sobre televisatildeo e cinema podem optar pelo artigo de Rosteck (1989) que analisa a estrutura argumentativa de Report on Senator McCarthy de Edward R Murrow uma parte integrante da seacuterie documental See It Now Esse artigo tambeacutem analisa o filme de George Clooney Good Night and Good Luck 2005) que apresenta outra visatildeo sobre o mesmo episoacutedio histoacuterico

Aqueles que se interessem pela retoacuterica aplicada aos videogames e pelas cons-tantes discussotildees acerca dos impactos nocivos de jogos violentos podem consultar Lachlan (2003) e Smith (1977) aleacutem das incontaacuteveis mateacuterias jornaliacutesticas que cobrem o debate entre Joseph Lieberman designers de jogos e jogadores de todo o mundo (o site wikipediaorg oferece uma excelente cobertura desse assunto) Todo esse material pode tambeacutem ser combinado aos videogames Doom Doom 3 e ao filme Doom The Movie (2005 dirigido por Andrzej Bartkowiak) para exemplificar de forma praacutetica a maneira como as diferentes retoacutericas visuais impactam o assunto

Os proacuteximos anos veratildeo os estudos da retoacuterica visual ganhando cada vez mais status em todas as disciplinas acadecircmicas relevantes incluindo retoacuterica e escrita Os professores que vislumbram o futuro comeccedilaratildeo a ampliar seus conhecimentos da teoria e pedagogia da retoacuterica visual (aproveitando a proliferaccedilatildeo de exemplos culturais disponiacuteveis a seu redor) como forma de se prepararem para a crescente consciecircncia acadecircmica do apreccedilo pelo poder de persuasatildeo de uma imagem e de textos visualmente persuasivos

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GlOssaacuteriO31

Neste glossaacuterio tentamos ser concisos na definiccedilatildeo e descriccedilatildeo dos termos Trata-se de um glossaacuterio especiacutefico para nossa forma de tratar o ensino da cons-truccedilatildeo do argumento neste livro Isso significa que alguns termos especiacuteficos do recorte terminoloacutegico de Kenneth Burke aparecem entre os termos tradicionais Tambeacutem natildeo se trata de uma lista definitiva ou exaustiva jaacute que satildeo muitos os termos da retoacuterica usados quando se fala de ensino do argumento

Para outras definiccedilotildees de termos-chave retoacutericos os leitores interessados devem consultar um dos trabalhos de referecircncia da aacuterea como a Encyclopedia of Rhetoric editado por Thomas Sloane a Encyclopedia of Rhetoric and Composition editado por Theresa Enos ou Sourcebook on Rhetoric de James Jasinski

Accedilatildeo vs Movimento ndash Em A Grammar of Motives Burke (1966 p 14) define accedilatildeo como o ldquo[] corpo humano em movimento consciente e intencionalrdquo Accedilatildeo eacute algo que apenas humanos satildeo capazes de fazer A capacidade de agir por sua vez eacute um preacute-requisito para escolhas morais Uma bola de baseball eacute capaz de movimentar mas natildeo de agir porque ela ldquo[] nem eacute moral e nem imoral ela natildeo pode agir pode apenas mover ou ser movidardquo (BURKE 1966 p 136) Para Burke a accedilatildeo envolve o ato de mover em direccedilatildeo ao ideal criando novidade durante o percurso As transformaccedilotildees afetadas pela accedilatildeo satildeo necessariamente parciais por necessidade devido ao paradoxo da substacircncia Ver tambeacutem Maacutegica Paradoxo da Substacircncia

31 Traduccedilatildeo Marcus Mussi

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Argumento agoniacutesticoeriacutestico ndash Do grego agon que significa concurso ou conflito e eris que significa contenda o argumento agoniacutestico ou eriacutes-tico representa um modelo de argumento que enfatiza conflito e disputa e ocorre quando a perspectiva de algueacutem avanccedila em detrimento de outrem O argumento agoniacutesticoeriacutestico tem sido visto por escolas feministas entre outras como um modelo patriarcal baseado na polecircmica que pro-move dissenso mais do que consenso Aleacutem disso o argumento eriacutestico tem sido criticado por ser irrealista Muitos modelos contemporacircneos de argumento satildeo complexos e natildeo defendem a derrota do adversaacuterio mas um propoacutesito mais realista como aumentar ou diminuir a adesatildeo de participantes ou a identificaccedilatildeo com a posiccedilatildeo argumentativa eou a perda de adesatildeo ou identificaccedilatildeo com posiccedilotildees alternativas

Analogia ndash Ver Invenccedilatildeo

Argumento rogeriano ndash Eacute um tipo de argumento que tenta explorar eou resolver problemas atraveacutes da escuta empaacutetica O princiacutepio funda-mental eacute considerar a comunicaccedilatildeo do ponto da compreensatildeo de outra pessoa Para participar da comunicaccedilatildeo autecircntica exige-se que as ideias e as atitudes de outras pessoas sejam vistas tatildeo profundamente a ponto de ser possiacutevel sentir como a pessoa sente O objetivo eacute promover uma mudanccedila de perspectiva ou modificar a concepccedilatildeo da realidade de ou-tra pessoa de modo que uma cooperaccedilatildeo uacutetil seja possiacutevel Existem trecircs estrateacutegias (1) tranquilizar a pessoa sobre o fato de que ela estaacute sendo compreendida (2) descobrir a validade do posicionamento da pessoa e (3) encontrar aacutereas de similaridade Um dos problemas do argumento rogeriano eacute a praacutetica de identificar no iniacutecio da argumentaccedilatildeo um possiacutevel

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resultado Potencialmente pode tambeacutem ser usado para fins manipu-lativos Se usado como teacutecnica a identificaccedilatildeo pode natildeo ser vista como sincera criando uma falsa sensaccedilatildeo de empatia

Atitude ndash Burke usa cinco termos para explicar os motivos humanos accedilatildeoato agente agecircncia propoacutesito e cenaacuterio Mais tarde ele adicionou atitude para descrever a maneira como o ato eacute conduzido Eacute um precursor do ato que ele chama de ldquoato incipienterdquo A retoacuterica conduz as pessoas para o ato ou a moldar suas atitudes de tal forma que cheguem ao ato As pessoas natildeo satildeo forccediladas a agir satildeo convencidas Os atos entatildeo se tornam as representaccedilotildees de nossas atitudes

Casuiacutestica ndash ldquoAs direccedilotildees geral e particular da retoacuterica se sobrepotildeem na medida em que todos os casos uacutenicos necessariamente envolvem a aplicaccedilatildeo dos toacutepicos universais para a questatildeo particular Assim mesmo as situaccedilotildees consideradas muito amplas podem apresentar exclusivida-derdquo (BURKE 1969 p 72) Para Burke a casuiacutestica eacute uma filosofia um princiacutepio geral que se aplica a situaccedilotildees especiacuteficas Embora a casuiacutestica assuma conotaccedilotildees negativas para muitos analistas contemporacircneos Burke ver isso como inevitaacutevel Entretanto ldquoa extensatildeo casuiacutesticardquo eacute fre-quentemente necessaacuteria para persuadir as pessoas de que em um sistema original (como a Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos por exemplo) ainda eacute viaacutevel apesar de novas variaacuteveis temporais e espaciais Ver tambeacutem Identificaccedilatildeo Paradoxo da substacircncia

Consubstancialidade ndash Ver Identificaccedilatildeo

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Cortejo ndash Para Kenneth Burke o cortejo eacute uma forma de persuasatildeo que opera atraveacutes da identificaccedilatildeo em que uma ldquoentidaderdquo persuade outra Para que o cortejo exista cada entidade deve pertencer a uma classe separada o que leva ao que Burke se refere como ldquoestranhamentordquo No acircmbito individual esse estranhamento reside na diferenccedila entre os se-xos No mundo social a diferenccedila entre os sexos equivale agraves diferenccedilas entre classes sociais Burke refere-se agrave comunicaccedilatildeo entre as classes como cortejo ldquoabstratordquo No acircmbito do cortejo abstrato os membros de classes sociais mais altas tentam a controlar as classes menos privi-legiadas atraveacutes da ldquodoutrinardquo e da ldquoeducaccedilatildeordquo Assim ldquoo princiacutepio do cortejordquo na retoacuterica quer dizer ldquoo uso de dispositivos persuasivos para a transcendecircncia do estranhamento socialrdquo (BURKE 1969 208) Nessa relaccedilatildeo de estranhamento social os grupos satildeo ldquomisteacuteriosrdquo uns para os outros e esse misteacuterio pode ser convertido em poder Um professor por exemplo pode permanecer em silecircncio durante grande parte de tempo de modo a dar gravidade agraves perguntas que ele faz parecendo assim ldquoinspecionar as profundezas de coisasrdquo aos olhos do aluno (BURKE 1969 p 210) O cortejo de Burke difere do de Perelman e da noccedilatildeo de adesatildeo de Olbrecht-Tyteca na medida em que natildeo prever explicitamente que a persuasatildeo aumenta o grau de concordacircncia com o locutor Um grau de adesatildeo da audiecircncia ao argumento do locutor pode variar muito Em contraste o cortejo focaliza principalmente a relaccedilatildeo desigual entre o persuasor e os persuadidos em vez de empregar significados geralmente considerados ldquopersuasivosrdquo Atraveacutes do cortejo o ldquocortesatildeordquo jaacute comanda uma certa ldquocaptaccedilatildeordquo do puacuteblico Assim essa audiecircncia ldquocortejadardquo an-seia transcender a abertura do estranhamento social para unir-se com o persuasor quando ele ldquotimidamenterdquo manteacutem essa distacircncia e portanto a captaccedilatildeo e o poder

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A construccedilatildeo do argumento

Dialeacutetica ndash Na primeira frase da Retoacuterica Aristoacuteteles define retoacuterica como a contrapartida da dialeacutetica Retoacuterica e dialeacutetica satildeo faculdades de provimento de argumentos Historicamente a dialeacutetica eacute vista agraves vezes como a contrapartida da retoacuterica agraves vezes como competidora da retoacuterica Aristoacuteteles distingue o raciociacutenio demonstrativo (causal) do raciociacutenio dialeacutetico (natildeo causal ou contingente) definindo o uacuteltimo como ldquoraciociacute-nio de opiniotildeesrdquo que satildeo geralmente vistas como verdades provaacuteveis O raciociacutenio dialeacutetico pode ocorrer entre interlocutores ou pode ser uma interrogaccedilatildeo interna O Meacutetodo Socraacutetico eacute o mais conhecido exemplo de um raciociacutenio dialeacutetico se caracteriza por uma proposiccedilatildeo inicial seguida de uma conclusatildeo por perguntas e respostas e da aplicaccedilatildeo da lei da contradiccedilatildeo O raciociacutenio dialeacutetico eacute um teste para a verdade um processo de criaccedilatildeo de significado As proposiccedilotildees devem ser garanti-das antes do argumento Uma proposiccedilatildeo eacute dialeticamente assegurada quando ela passa pela lei da contradiccedilatildeo O modelo hegeliano de dialeacutetica envolve a tese (uma proposiccedilatildeo) a antiacutetese (a contradiccedilatildeo da proposiccedilatildeo) e a siacutentese (uma incorporaccedilatildeo dos dois primeiros elementos)

Doxa ndash Eacute a palavra grega que significa opiniotildees comuns ou populares Eacute a raiz de palavras como ldquoortodoxiardquo (opiniatildeo reta) e ldquoparadoxordquo (opini-otildees opostas) Doxa satildeo as opiniotildees agraves vezes sistematizadas geralmente aceitas por uma comunidade A noccedilatildeo de doxa situa o locus da autoridade fora do individual e no interior da comunidade As opiniotildees de pessoas individuais satildeo natildeo somente delas mas tambeacutem de muitas outras o que confere maior importacircncia a essas opiniotildees Situar as opiniotildees fora do escopo do indiviacuteduo tambeacutem abre a porta para que a persuasatildeo ocorra

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A construccedilatildeo do argumento

Entimema ndash Agraves vezes chamado de ldquosilogismo truncadordquo o entimema deixa de fora uma premissa e espera que seja fornecida tacitamente pela audiecircncia O entimema portanto natildeo deve ser julgado pelas convenccedilotildees de validade formal mas pelas leis da probabilidade Quanto mais ampla-mente a premissa eacute aceita mais provaacutevel eacute o consentimento da audiecircncia com o argumento do entimema Aristoacuteteles rotulou o entimema a ldquosubs-tacircncia da persuasatildeo retoacutericardquo Como haacute pouca coisa que pode ser tomada como certa os oradores devem confiar nas crenccedilas e pressupostos de sua audiecircncia

Espeacutecies de retoacuterica ndash Para Aristoacuteteles existem trecircs tipos de discurso cada um com sua proacutepria ecircnfase temporal Em primeiro lugar o discurso epidiacutedico (cerimonial) tem a ver com louvor ou culpa Um exemplo des-se tipo de discurso eacute o elogio O orador usa o discurso cerimonial para reforccedilar atitudes e crenccedilas importantes no presente Em segundo lugar discurso deliberativo eacute um apelo para algum tipo de accedilatildeo tipicamente legislativa que ou exorta ou dissuade de um determinado plano de accedilatildeo Em terceiro lugar o discurso forense (judicial) determina a culpa a inocecircncia ou a causalidade baseado em um exame de eventos passados

Esquema de Toulmin ndash O esquema e a terminologia de Toulmin para analisar e criar argumentos satildeo frequentemente usados no ensino do argumento No centro do modelo de Toulmin encontram-se vaacuterios termos-chave Todos os argumentos apresentam uma demanda com base em dados Uma garantia eacute uma proposiccedilatildeo geral que estabelece uma conexatildeo entre a demanda e os dados As garantias geralmente precisam de apoio ou suporte (evidecircncias que ajudam a provar a garantia) A demanda pode precisar tambeacutem de um qualificador (para evitar a

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A construccedilatildeo do argumento

linguagem absolutista) e condiccedilotildees de refutaccedilatildeo (exceccedilotildees para a regra formulada pela demanda) para maximizar seu potencial persuasivo O esquema de Toulmin provou ser aplicaacutevel em disciplinas acadecircmicas a argumentos populares

Ethos ndash Ver Pisteis

Exemplo Ilustraccedilatildeo Modelo ndash Perelman e Olbrechts-Tyteca analisam como os oradores procuram estabelecer uma comunhatildeo com o puacuteblico atraveacutes de um caso particular sob a forma de exemplo que torna possiacute-vel a generalizaccedilatildeo ilustraccedilatildeo que fornece suporte para a generalizaccedilatildeo estabelecida e modelo que incentiva a imitaccedilatildeo Esses termos podem ser definidos da seguinte forma

a Exemplo uma instacircncia especiacutefica que fornece uma base para uma regra e atua como ponto de partida de uma generalizaccedilatildeo Um exemplo deve ser pelo menos provisoriamente um fato Os exemplos servem tan-to para ilustrar uma generalizaccedilatildeo como para estabelecer a verdade da generalizaccedilatildeo De acordo com Perelman grande parte de um argumento eacute concebido para levar a audiecircncia a reconhecer fatos natildeo vaacutelidos (ou seja os exemplos que contradizem generalizaccedilotildees ou regras que tambeacutem admitem) Para Aristoacuteteles as provas surgem na forma de entimema ou exemplo Um exemplo natildeo eacute a relaccedilatildeo da parte com o todo nem do todo com a parte nem de um todo com outro todo Ao contraacuterio o exemplo eacute a relaccedilatildeo da parte com a parte de um igual com outro igual Os exemplos podem ser histoacutericos (que faz referecircncia a eventos passados) ou inventa-dos (Aristoacuteteles identificou a faacutebula como um tipo de exemplo inventado)

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A construccedilatildeo do argumento

b Ilustraccedilatildeo A ilustraccedilatildeo procura criar uma regra abstrata ou uma ideia concreta atraveacutes de um caso particular Ela promove a compreensatildeo da regra Enquanto os exemplos devem ser inquestionaacuteveis as ilustraccedilotildees natildeo precisam As ilustraccedilotildees podem ser detalhadas mas os exemplos devem ser concisos para evitar distraccedilatildeo

c Modelo Os modelos satildeo ilustraccedilotildees idealizadas de uma regra geral Os modelos natildeo devem ser apenas compreendidos devem ser imitados

Falaacutecias Informais ndash No sentido mais geral falaacutecias satildeo argumentos imperfeitos Os argumentos podem ser falaciosos devido a falhas em sua estrutura e na sua forma Isso constitui as falaacutecias formais Os argumentos que satildeo invaacutelidos por qualquer outro motivo aleacutem da forma constituem as falaacutecias informais As falaacutecias informais aparecem de muitas formas Um exemplo de uma falaacutecia informal eacute uma ldquorelaccedilatildeo falsardquo a alegaccedilatildeo de que dois grupos diferentes que natildeo tecircm nenhum viacutenculo loacutegico estatildeo contudo conectados A Wikipedia apresenta como exemplo de uma re-laccedilatildeo falsa a anaacutelise de venda de sorvete em uma cidade Satildeo vendidos mais sorvetes quando a taxa de afogamentos da cidade eacute maior Alegar que as vendas de sorvete causam afogamento seria implicar uma relaccedilatildeo falsa entre esses dois eventos Na realidade uma onda de calor pode ser a causa de ambos Para um tratamento mais completo sobre relaccedilatildeo entre as falaacutecias informais e a construccedilatildeo de argumentos ver Fulkerson (1996)

Heuriacutestica ndash Ver Invenccedilatildeo

Identificaccedilatildeo ndash Para Burke o conceito de identificaccedilatildeo eacute central para a retoacuterica e para o argumento A identificaccedilatildeo nos termos de Burke se ba-seia nos conceitos de fusatildeo e divisatildeo Uma pessoa A deseja se relacionar

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com uma pessoa B se elas tecircm interesses em comum ou se for persuadida a acreditar que esses interesses existem ldquo[] ao ser identificado com B A eacute lsquosubstancialmente umrsquo em relaccedilatildeo a outra pessoa que natildeo seja ela mesmardquo (BURKE 1969 p 21) No processo de agir em conjunto os in-diviacuteduos compartilham sensaccedilotildees conceitos ideias e atitudes O termo de Burke para isso eacute consubstancialidade uma maneira de ldquoagir juntosrdquo Para esclarecer isso Burke fala de consubstancialidade em termos de relaccedilotildees entre pais e filhos Por exemplo uma crianccedila eacute consubstancial com seus pais no sentido de que eacute ao mesmo tempo sua prole e um su-jeito autocircnomo Um miacutenimo de separaccedilatildeo (divisatildeo) sempre existe pois cada pessoa eacute ldquo[] uacutenica um locus individual de motivosrdquo (BURKE 1969 p 21) Atraveacutes da identificaccedilatildeo a retoacuterica e a argumentaccedilatildeo se tornam possiacuteveis pois os argumentos usam os princiacutepios de fusatildeo e divisatildeo para permitir atitudes e persuadir Ver tambeacutem Paradoxo da substacircncia

Ilustraccedilatildeo ndash Ver Exemplo

Imparcialidade ndash Eacute a condiccedilatildeo de ser membro de um grupo que seraacute afetado pelo efeito de um argumento sem ter sua decisatildeo influenciada por isso como ldquoum juiz imparcialrdquo que aplica as leias a todos inclusive a ele mesmo A imparcialidade portanto envolve o equiliacutebrio entre todos os pontos de vista de um argumento Isso contrasta com a objetividade conforme proposta por Perelman pois nesse caso a neutralidade eacute man-tida porque o orador espera natildeo ser atingindo pelo efeito do argumento

Ineacutercia ndash Em A Nova Retoacuterica Perelman e Olbrechts-Tytecha usam o termo ldquoineacuterciardquo para designar a resistecircncia humana agrave mudanccedila Inspirando-se na Fiacutesica os autores descrevem a ideia de que as atitudes as crenccedilas e

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A construccedilatildeo do argumento

os comportamentos de um puacuteblico tendem a ser conservados atraveacutes dos haacutebitos As atitudes as crenccedilas e os comportamentos tambeacutem car-regam valores que conservam os haacutebitos Assim a ineacutercia favorece a norma Ao passo que natildeo eacute necessaacuterio persuadir algueacutem sobre o que jaacute estaacute aceito qualquer mudanccedila seraacute questionada e exigiraacute justificaccedilatildeo A ineacutercia natural de uma audiecircncia atribui o ocircnus da prova agrave parte que deseja promover a mudanccedila

Invenccedilatildeo ndash Do latim invenire ldquoencontrarrdquo a invenccedilatildeo eacute o primeiro dos cinco cacircnones claacutessicos da Retoacuterica seguido pela disposiccedilatildeoarranjo elocuccedilatildeoestilo memoacuteria e entregaaccedilatildeo Como Aristoacuteteles define retoacute-rica como ldquoa faculdade de descobrir os meios de persuasatildeo disponiacuteveisrdquo grande parte de sua Retoacuterica centra-se na invenccedilatildeo A invenccedilatildeo consiste em buscar algo para dizer consequentemente refere-se ao logos ou seja o que o orador diz ao inveacutes do como diz A heuriacutestica (do grego heuriskein que significa ldquodescobrirrdquo) satildeo estrateacutegias pelas quais o orador pode des-cobrir de forma sistemaacutetica seguindo um conjunto de procedimentos Um orador pode fazer uma seacuterie de perguntas como um meio de explorar e investigar um problema ou questatildeo No acircmbito do argumento a Stasis Theory funciona principalmente como uma heuriacutestica na medida em que cada tipo de demanda levanta questotildees diferentes para quem propotildeem ou para quem ouve Na construccedilatildeo do argumento existem cinco tipos de demanda principais definiccedilatildeo (eacute X um y) causa (X causa y) avaliaccedilatildeo (eacute X um bom ou mau Y) proposta (devemos fazer X) e semelhanccedila (eacute X como Y) Os argumentos de semelhanccedila satildeo as primeiras versotildees contemporacircneas das analogias cuja formulaccedilatildeo mais geral eacute A eacute para B assim como C eacute para D No entanto essa formulaccedilatildeo pode ter apenas trecircs termos como em B eacute para A assim como C eacute para B ou A eacute para B

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A construccedilatildeo do argumento

assim como A eacute para C Perelman e Olbrechts-Tyteca citam a analogia de Aristoacuteteles ldquo[] assim como os olhos dos morcegos satildeo ofuscados pela claridade do dia a razatildeo da nossa alma eacute ofuscada pelas evidecircncias das coisas rdquo para explicar o theme (razatildeo da alma coisas evidentes) e o phoros (olhos de morcegos claridade do dia) Em analogia o theme e o phoros devem pertencer a diferentes esferas Se estiverem na mesma esfera haacute exemplo ou ilustraccedilatildeo A analogia depende de transferecircncias de valor do phoros para o theme e vice-versa A analogia eacute frequentemente vista com desconfianccedila quando usada como prova Perelman vecirc como um tipo instaacutevel de argumento semelhante agraves falaacutecias informais Ver tambeacutem Stasis Theory

Kairoacutes ndash Kairoacutes e chronos traduzidos grosso modo do grego representam o conceito de tempo Aristoacuteteles usou kairoacutes em seu sentido claacutessico como um momento criacutetico no desenrolar de um argumento quando algueacutem tem uma oportunidade de despertar seu puacuteblico Mais recentemente o kairoacutes tambeacutem tem sido traduzido como adequaccedilatildeo e oportunidade James Kinneavy usa o termo para se referir agrave ldquocontexto situacionalrdquo Nesse sentido o kairoacutes desempenha um papel na construccedilatildeo de todo o argumento e de toda escolha retoacuterica

Logos - Ver Pisteis

Mediaccedilatildeo - Ver Negociaccedilatildeo

Modelo ndash Ver Exemplo

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A construccedilatildeo do argumento

Mistificaccedilatildeo ndash Termo usado por Kenneth Burke A mistificaccedilatildeo ocorre quando a linguagem eacute usada entre diferentes classes soacutecias mais para enganar do que para comunicar A mistificaccedilatildeo reduz o potencial feacutertil do misteacuterio ldquoburocratizandordquo a hierarquia em um esquema definido que privilegia um grupo sobre o outro eliminando as diferenccedilas misteriosas entre as classes em detrimento de sua identidade Essa retoacuterica mal dire-cionada se preocupa principalmente com a coerccedilatildeo e o controle Misteacuterio e mistificaccedilatildeo satildeo diferentes da magia Como uma forccedila sobrenatural a magia eacute baseada em uma concepccedilatildeo primitiva de autoridade mas tem semelhanccedilas com a retoacuterica em seus fins persuasivos Enquanto a ma-gia tenta erroneamente induzir uma accedilatildeo agraves coisas (ou reduzir os seres humanos a objetos a serem movidos) a retoacuterica (muitas vezes atraveacutes de discurso exortativo) tenta induzir a accedilatildeo nas pessoas Burke observa que a magia eacute tambeacutem associada agrave novidade na medida em que cria algo fora do nada Cada ato retoacuterico envolve assim uma sugestatildeo de magia na medida em que usa a novidade na induccedilatildeo da accedilatildeo Ver tambeacutem Cortejo

Negociaccedilatildeo ndash A negociaccedilatildeo eacute um modo de acordo orientado para alcanccedilar consenso por meio da comunicaccedilatildeo ou ldquosoluccedilatildeo de diferenccedilasrdquo O conceito de negociaccedilatildeo foi aceito por muitas estudiosas feministas como alterna-tiva ao modelo agoniacutestico de argumento e como modelo para a interaccedilatildeo em sala de aula Outros e outras inclusive algumas feministas criticam a negociaccedilatildeo na medida em que evita conflitos em situaccedilotildees em que o conflito eacute preciso A ideia de negociaccedilatildeo criacutetica tambeacutem tem crescido no meio acadecircmico como Thomas West que conecta o conceito de negocia-ccedilatildeo agrave teoria poacutes-colonial agrave formaccedilatildeo de identidade e agrave hibridizaccedilatildeo A mediaccedilatildeo eacute um tipo particular de negociaccedilatildeo Na mediaccedilatildeo uma parte desinteressada ajuda a orientar o curso de um argumento em vez de se envolver ou fazer um julgamento a favor de qualquer participante Na

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mediaccedilatildeo o mediador natildeo tem poder sobre qualquer participante na construccedilatildeo do argumento em oposiccedilatildeo agrave arbitragem em que a terceira parte tem poderes para decidir o resultado de um argumento A mediaccedilatildeo eacute cada vez mais utilizada em soluccedilatildeo de disputas juriacutedicas

Objetividade ndash Eacute a condiccedilatildeo de natildeo ter interesse e natildeo ser afetado pelo resultado de um argumento A maioria das teorias de argumento con-temporacircneas rejeita a objetividade como uma postura praacutetica realista ou mesmo desejaacutevel para um orador ou puacuteblico Perelman por exemplo reconhece que fora da ciecircncia as controveacutersias satildeo resolvidas entre as partes O melhor que se pode esperar natildeo eacute objetividade mas imparcia-lidade atraveacutes da qual as pessoas agem em nome do que eacute melhor para todos ao inveacutes do que eacute melhor para si ou seus aliados

Ofiacutecio (ensino e informaccedilatildeo prazer movimento e submissatildeo) ndash esses trecircs propoacutesitos retoacutericos originaram-se nas ideias de Ciacutecero sobre os trecircs ofiacutecios do orador Cada ofiacutecio tem um estilo apropriado Mais especifica-mente o primeiro ofiacutecio (ensinar informar instruir) eacute pensado para ter um estilo simples O segundo ofiacutecio (agradar) deve ter um estilo mais temperado O movimento e a submissatildeo na oratoacuteria entretanto reque-rem um estilo mais eloquente que serve de forma mais suficiente para persuadir um puacuteblico para a accedilatildeo

Paradoxo da substacircncia ndash ldquoLiteralmente a substacircncia de uma pessoa ou de uma coisa seria algo que fica abaixo ou apoia a pessoa ou a coisardquo (BURKE 1966 p 22) Aqui Burke rastreia as raiacutezes etimoloacutegicas da pa-lavra ldquosubstacircnciardquo para ajudar a explicar o seu conceito de paradoxo da substacircncia mostrando que a proacutepria palavra implica a presenccedila do que eacute exterior O conceito de substacircncia de Burke contrasta marcadamente

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A construccedilatildeo do argumento

com o de Aristoacuteteles Para Aristoacuteteles a substacircncia de uma entidade seria inteira para si mesma Burke inclina-se agrave opiniatildeo de Spinoza segundo o qual nenhuma entidade uacutenica poderia ser compreendida como idecircntica mas apenas pelo que natildeo eacute (ldquo[] toda a determinaccedilatildeo eacute negaccedilatildeordquo (BURKE 1966 p 25)) Esse conceito estaacute no cerne do paradoxo da substacircncia a fim de ser capaz de entender o que dada coisa eacute eacute preciso primeiro colocaacute--la ldquoem termos derdquo outra coisa Isso eacute a loacutegica fundamental subjacente ao dramatismo de Burke Para Burke haacute um ldquo[] inevitaacutevel paradoxo de definiccedilatildeo uma antinomia que deve dotar a noccedilatildeo de substacircncia de uma ambiguidade irresoluacutevelrdquo (BURKE 1966 p 24) A substacircncia de alguma coisa soacute pode ser conhecida em termos do que substancialmente ela natildeo eacute Ver tambeacutem Identificaccedilatildeo e Dialeacutetica

Pathos - Ver Pisteis

Pisteis ndash Aristoacuteteles identificou dois tipos de provas retoacutericas (1) artiacutes-ticas (teacutecnicas ou intriacutensecas) e (2) natildeo artiacutesticas (natildeo teacutecnicas ou ex-triacutensecas) As provas extriacutensecas natildeo se originam nos esforccedilos proacuteprios de um orador mas em dados preexistentes que o orador deve descobrir e usar confissotildees contratos escritos etc As provas intriacutensecas satildeo for-necidas por meacutetodos retoacutericos atraveacutes dos proacuteprios esforccedilos do orador Os Pisteis (proveniente da palavra grega que se refere aos meios de persuasatildeo disponiacuteveis em um argumento) satildeo os trecircs tipos de provas artiacutesticas disponiacuteveis para o orador logos ethos e pathos O ethos (termo grego para ldquocaraacuteterrdquo) do orador refere-se agrave sua credibilidade Na eacutepoca de Aristoacuteteles a confianccedila era criada a partir do proacuteprio discurso e natildeo a partir do status do homem que falava Mais recentemente no entanto ethos muitas vezes natildeo eacute mais que o cargo ou a posiccedilatildeo de algueacutem Por exemplo noacutes confiamos naqueles que satildeo peritos em suas aacutereas de atu-

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accedilatildeo mais do que naqueles que satildeo generalistas O Pathos (termo grego para ldquosofrimentordquo ou ldquoexperiecircnciardquo) refere-se agraves emoccedilotildees do puacuteblico quando elas satildeo trazidas para uma situaccedilatildeo favoraacutevel agrave adesatildeo ao proacute-prio argumento O orador pode apelar eficazmente para o pathos porque conhece as crenccedilas e os valores do puacuteblico e empregar vaacuterias estrateacutegias retoacutericas apropriadamente O logos (termo grego para ldquopalavrardquo) refere-se agrave racionalidade do proacuteprio argumento O argumento deve ser consistente coerente racional bem fundamentado e plausiacutevel em seu apelo loacutegico

Praacutexis ndash Eacute uma alternativa ao par bifurcado teoriapraacutetica em que a praacutetica eacute subordinada agrave teoria A praacutexis existe como praacutetica teorizada conhecida e situada No ensino de escrita eacute o que separa a aula ldquoCultrdquo (criticada por natildeo promover a reflexatildeo como ad-hoc abstrata e super teorizada) do ensino reflexivo fundamentado em criacutetica em formas pe-dagogicamente situadas de saber e aprender

Presenccedila ndash Refere-se aos elementos de seleccedilatildeo arranjo eou omissatildeo de fatos julgamentos ou linhas de raciociacutenio que agem diretamente em nossa sensibilidade Esses elementos dotam um argumento de presenccedila e permitem que um puacuteblico perceba o que de outra forma seria apenas imaginado Dotar o argumento de presenccedila atraveacutes de metaacuteforas exem-plos viacutevidos graacuteficos atraentes aumenta muito a identificaccedilatildeo do puacuteblico com o argumento

Propaganda ndash Eacute um tipo de persuasatildeo retoacuterica que objetiva atingir uma massa em vez de um puacuteblico indiviacuteduo Eacute expliacutecita e produzida por uma instituiccedilatildeo ou grupo (como um governo) A propaganda eacute tambeacutem notaacutevel pela sua natureza egoiacutesta natildeo faz nenhuma questatildeo de ter compromis-so com o orador e a audiecircncia Baseando-se fortemente na repeticcedilatildeo de

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siacutembolos e imagens nas miacutedias sociais a propaganda frequentemente assume conotaccedilotildees negativas na sociedade ocidental mas governos orga-nizaccedilotildees religiosas e anunciantes corporativos (entre outros) continuam a produzir propaganda em altos niacuteveis Os argumentos (muitas vezes de natureza visual) produzidos pela propaganda fornecem exemplos claros que promovem discussatildeo produtiva em salas de aula de argumento

Pentaacutegono de Burke ndash Kenneth Burke acredita que a comunicaccedilatildeo so-cial eacute melhor analisada e compreendida como um drama o que o levou a propor um pentaacutegono de termos para o estudo retoacuterico accedilatildeoato agente agecircncia cena e propoacutesito Os resultados das accedilotildees retoacutericas satildeo determi-nados pelos iacutendices (relacionamentos) entre esses cinco elementos Ver tambeacutem Situaccedilatildeo retoacuterica

Relaccedilatildeo ndash Ver Pentaacutegono de Burke

Retoacuterica da burocracia ndash Refere-se a uma retoacuterica de gesto geralmente de natureza simboacutelica Um exemplo moderno nos EUA de retoacuterica da burocracia eacute a derrubada da estaacutetua de Saddam Hussein apoacutes a invasatildeo das forccedilas dos EUA em Bagdaacute Esse tipo de gesto retoacuterico significa a vi-toacuteria das forccedilas dos Estados Unidos e a derrota do Iraque

Retoacuterica deliberativa ndash Ver Espeacutecies de retoacuterica

Retoacuterica epidiacutetica ndash Ver Espeacutecies de retoacuterica

Retoacuterica forense ndashVer Espeacutecies de retoacuterica

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A construccedilatildeo do argumento

Regra de justiccedila ndash Termo que estaacute no cerne das teorias de Perelman e Olbrechts-Tytecha (1969 p 218) sobre argumentaccedilatildeo A chave para essa regra formal eacute dar ldquo[] tratamento idecircntico para seres ou situaccedilotildees da mesma naturezardquo Observar a regra da justiccedila eacute necessaacuterio para a constru-ccedilatildeo de argumentos juriacutedicos Atraveacutes dessa regra os precedentes tambeacutem adquirem maior importacircncia casos anteriores podem influenciar casos futuros (desde que as categorias sejam essencialmente as mesmas)

Sofisma ndash Na linguagem popular o sofisma refere-se a qualquer argu-mento intencionado a enganar em vez de persuadir legitimamente um ouvinte O termo data do seacuteculo V aC Os sofistas eram um grupo de filoacutesofos preacute-platocircnicos e professores de retoacuterica Em geral os sofistas ensinavam a partir da experiecircncia em vez da teoria e enfatizavam as habilidades persuasivas do mundo real ao inveacutes da busca de uma forma particular de verdade Assim atraveacutes de suas teacutecnicas ensinavam a ldquoargumentar para ganharrdquo Nos Diaacutelogos de Platatildeo os sofistas satildeo vistos como espantalhos e usavam a retoacuterica de forma egoiacutesta e amoral (ver Goacutergias de Platatildeo) De forma oposta agrave retoacuterica de Platatildeo os sofistas emer-gem como trapaceiros astutos que usam a linguagem para enganar em vez de encontrar a verdade As perspectivas contemporacircneas da retoacuterica tecircm reabilitado muitos conceitos sofistas incluindo a atenccedilatildeo para am-biguidade da liacutengua e o contexto natural da verdade e do conhecimento O ldquofeminismo retoacutericordquo de Susan Jarratt por exemplo liga o foco poliacutetico do feminismo contemporacircneo agraves abordagens sofistas sobre o poder real do uso da linguagem

Situaccedilatildeo retoacuterica ndash Refere-se agrave contextualizaccedilatildeo da maneira de persu-adir se eacute oral ou escrito Como melhor determinar o impacto persuasivo em um determinado puacuteblico-alvo Quais satildeo os elementos de uma dada

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situaccedilatildeo retoacuterica Natildeo haacute uma resposta faacutecil a essas questotildees e os estu-diosos continuam a oferecer quadros praacuteticos e teoacutericos Uma estrutura comum utilizada no ensino de escrita eacute o triacircngulo retoacuterico com foco no inter-relacionamento da mensagem do escritor e do puacuteblico Outros quadros satildeo ainda mais especiacuteficos e identificam cinco componentes principais da situaccedilatildeo retoacuterica ocasiatildeo propoacutesito toacutepico audiecircncia e escritor O pentaacutegono de Kenneth Burke tambeacutem identifica cinco elemen-tos essenciais accedilatildeoato agente agecircncia cena e propoacutesito Observa-se que embora diferentes essas estruturas apresentam elementos centrais similares proporcionando variaccedilotildees no triacircngulo retoacuterico Natildeo importa qual estrutura terminoloacutegica eacute usada A chave para a compreensatildeo da situaccedilatildeo retoacuterica loacutegica consiste em reconhecer o raacutetio dos termos que elementos satildeo mais importantes para a situaccedilatildeo dada

Stasis Theory ndash Da palavra grega staseis que significa ldquotomar uma po-siccedilatildeordquo Na teoria retoacuterica a Stasis theory pode ser usada para encontrar pontos comuns de uma questatildeo ou como uma estrateacutegia de criaccedilatildeo que fornece ao orador uma seacuterie de perguntas que servem para descobrir o ponto de discordacircncia entre dois opositores Desde o seacuteculo II da nossa era tradicionalmente tem havido uma ordem hieraacuterquica das questotildees de Stasis No entanto recentemente alguns pesquisadores argumentam que as questotildees natildeo necessariamente tecircm de ser feitas numa ordem especiacutefica e dependendo da situaccedilatildeo retoacuterica algumas das questotildees podem natildeo ser aplicaacuteveis Encontrar o ponto de origem de um desacordo eacute desnecessaacuterio se o objetivo do argumento eacute chegar a uma resoluccedilatildeo ou pelo menos a uma compreensatildeo mais clara do problema por oposiccedilatildeo agraves disputas que satildeo muitas vezes o resultado de um argumento em que a Stasis natildeo foi alcanccedilada antes do engajamento As Stasis satildeo divididas em quatro perguntas

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1 Conjectura ndash existe um ato a ser considerado2 Definiccedilatildeo ndash como o ato pode ser definido3 Qualidade ndash quatildeo seacuterio eacute o ato Quais satildeo as circunstacircncias atenuantes4 Procedimento ndash o que deveriacuteamos fazer Existe alguma coisa sobre o ato que exige uma decisatildeo natildeo padratildeo ou pena menor

Topoi (Toacutepicos) ndash Originalmente delineado por Aristoacuteteles os toacutepicos satildeo significados disponiacuteveis de persuasatildeo e satildeo utilizados durante a fase de criaccedilatildeo da argumentaccedilatildeo Aristoacuteteles classificou os toacutepicos em dois grupos (1) os comuns a todos os sujeitos (lugares comuns) e a todas as circunstacircncias e (2) os de aacutereas especializadas como Fiacutesica ou poliacutetica Perelman tem uma abordagem diferente para os toacutepicos Ele aplica o termo loci apenas a premissas de natureza geral que podem servir como bases para valores e hierarquias e que se relacionam com escolhas que fazemos Ele classifica loci em (1) loci de quantidade (por exemplo um maior nuacutemero de bens eacute mais desejaacutevel do que um nuacutemero menor de mercadorias) (2) de qualidade (por exemplo uma verdade deve ser desejada acima de cem erros ou o uacutenico eacute valorizado aleacutem do usual do ordinaacuterio ou do vulgar) (3) de ordem (por exemplo o que eacute anterior eacute superior ao que estaacute depois por exemplo o original eacute superior agrave coacutepia) (4) de existecircncia (por exemplo o que eacute atual ou real eacute superior ao pos-siacutevel ao contingente ou ao impossiacutevel) (5) de essecircncia (por exemplo a superioridade do valor dos indiviacuteduos que incorpora a essecircncia por exemplo uma raccedila melhor exibiria as qualidades daquela raccedila melhor do que seus concorrentes) e (6) de pessoa (por exemplo a dignidade o valor ou a autonomia da pessoa)

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AA

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sObre Os autOres

John RamageFoi professor por mais de trinta anos na Montana State University e na Arizona State University Ensinou literatura escrita teoria retoacuterica e argumentaccedilatildeo na graduaccedilatildeo e na poacutes-graduaccedilatildeo Tambeacutem foi coordena-dor de programas de escrita por mais de uma deacutecada supervisionando centros de escrita programas curriculares e de suporte acadecircmico Seu livro Writing Arguments em co-autoria com John Bean e June Johnson jaacute estaacute na oitava ediccedilatildeo

Zachary WaggonerEacute professor do Departamento de Inglecircs na Arizona Satate University En-sina retoacuterica escrita teoria de jogos eletrocircnicos e atua na formaccedilatildeo de professors Eacute autor de My Avatar My Self Identity in Video Role-Playing Games e de vaacuterios artigos sobre o ensino da escrita

Micheal CallawayEacute professor residente no Mesa Community College em Mesa Arizona Aleacutem do ensino atualmente tem se dedicado ao desenvolvimento de curriacuteculo para cursos de educaccedilatildeo para o desenvolvimento Aleacutem de atividades de ensino ele tambeacutem se interessa por questotildees de avaliaccedilatildeo

Jennifer Clary-LemonEacute professora assistente de retoacuterica na University of Winnipeg Os seus interesses de investigaccedilatildeo incluem a retoacuterica da representaccedilatildeo e a histoacute-ria da escrita e da disciplinaridade Eacute co-autora com Peter Vandenberg e Sue Hum de Relations Locations Positions Composition Theory for Writing Teachers Tambeacutem tem publicaccedilotildees em revistas como American Review of Canadian Studies e Handbook of Research on Writing

264

sObre Os traDutOresClemilton Lopes Pinheiro Doutor em Letras aacuterea de Filologia e Linguiacutestica Portuguesa pela Uni-versidade Estadual Paulista Juacutelia de Mesquita Filho Realizou estaacutegio de poacutes-doutorado em Linguiacutestica na Universiteacute Sorbonne Nouvelle Paris 3 Eacute professor de linguiacutestica na Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Erik Fernando MartinsDoutor em Linguiacutestica pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Univer-sidade Estadual de Campinas Eacute professor de linguiacutestica na Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Felipo Bellini SouzaLicenciado em Letras e mestrando em Estudos da Linguagem pela Uni-versidade Federal do Rio Grande do Norte Eacute tradutor e administrador da empresa Traduzabiz

Karine Alves DavidLicenciada em Letras pela Universidade Estadual do Cearaacute Mestre em Linguiacutestica pela Universidade Federal do Cearaacute Doutoranda em Estudos da linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte com estaacutegio na University of California Santa Barbara

Marcus MussiDoutorando em Linguiacutestica pela Universidade Federal da Paraiacuteba Eacute pro-fessor de inglecircs no Centro de Formaccedilatildeo de Professores da Universidade Federal de Campina Grande

265

Maria Hozanete Alves de LimaDoutora em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Alagoas Realizou estaacutegio de poacutes-doutorado no Institut de textes et manuscrits modernes unidade de pesquisa ligada ao CNRS da Franccedila Eacute professora de estudos claacutessicos na Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Siacutelvio Luis da SilvaDoutor em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte aacuterea de Linguiacutestica Aplicada Eacute professor de linguiacutestica e liacutengua portuguesa na Universidade Federal da Paraiacuteba

a construccedilatildeo do argumento fornece uma ampla gama de

recursos para o ensino da escrita as ideias dos principais

teoacutericos da Retoacuterica claacutessica e contemporacircnea de aristoacuteteles a

Burke Toulmin e Perelman e sua relevacircncia para a instruccedilatildeo

satildeo apresentadas sucintamente Os autores classificam de forma

clara e expotildeem suas posiccedilotildees sobre a pedagogia das falaacutecias

informais da propaganda e apresentam as razotildees para preferir

uma abordagem a outra entre as disponiacuteveis para o ensino da

escrita os autores igualmente destacam o papel do argumento

em abordagens que natildeo satildeo diretamente vinculadas ao tema

como as que destacam o movimento feminista a retoacuterica da

liberaccedilatildeo os estudos culturais criacuteticos o movimento escrita

atraveacutes do curriacuteculo as novas tecnologias e a retoacuterica visual as

referecircncias bibliograacuteficas datildeo a oportunidade de aprender mais

sobre essas abordagens

AA

isbn 978-85-66530-81-0

Page 2: WordPress.com · cOMissãO eDitOrial editores executivos augusto noronha e Karla vidal conselho editorial Alex Sandro Gomes angela Paiva Dionisio Carmi ferraz Santos Cláudio Clécio

John Ramage Micheal CallawayJennifer Clary-Lemon Zachary Waggoner

PiPa CoMuniCaccedilatildeoReCife 2018

construccedilatildeoDO argumento

AATraduccedilatildeo de Clemilton Lopes Pinheiro erik fernando

Martins felipo Bellini Souza Karine alves David Marcus

Mussi Maria Hozanete alves de Lima Siacutelvio Luis da Silva

CoPyRigHT 2018 copy PiPa CoMuniCaccedilatildeo ReSeRvaDoS ToDoS oS DiReiToS DeSTa eDiccedilatildeo

PuBLiCaDa exCLuSivaMenTe PaRa DiSTRiBuiccedilatildeo gRaTuiTa auToRiZaDa PeLa PaRLoR PReSS

Eacute PRoiBiDa a RePRoDuccedilatildeo ToTaL ou PaRCiaL DoS TexToS e PRoJeTo gRaacutefiCo DeSTa oBRa

SeM auToRiZaccedilatildeo exPReSSa DoS auToReS oRganiZaDoReS e eDiToReS

oRiginaLLy PuBLiSHeD aS aRguMenT in CoMPoSiTion copy 2009 By PaRLoR PReSS anD THe WaC

CLeaRingHouSe HTTPPaRLoRPReSSCoM TRanSLaTeD anD DiSTRiBuTeD By PeRMiSSion

traDuccedilatildeOClemilton Lopes Pinheiro erik fernando Martins

felipo Bellini Souza Karine alves David Marcus Mussi

Maria Hozanete alves de Lima Siacutelvio Luis da Silva

cOOrDenaccedilatildeO De traDuccedilatildeOClemilton Lopes Pinheiro

caPa PrOjetO GraacuteficO e DiaGraMaccedilatildeOKarla vidal e augusto noronha Pipa Comunicaccedilatildeo (wwwpipacomunicacombr)

revisatildeO linGuiacutesticaKarla geane de oliveira

Catalogaccedilatildeo na publiCaccedilatildeo (Cip)Ficha catalograacutefica produzida pelo editor executivo

R1409

RaMage J et al

a construccedilatildeo do argumento John Ramage Micheal Callaway Jennifer Clary-Lemon Zachary Waggoner traduccedilatildeo Clemilton Lopes Pinheiro erik fernando Martins felipo Bellini Souza Karine alves David Marcus Mussi Maria Hozanete alves de Lima Siacutelvio Luis da Silva ndash Pipa Comunicaccedilatildeo 2018 266p Bibliografia (e-book) 1ordf ed iSBn 978-85-66530-81-0

1 Linguiacutestica 2 Retoacuterica 3 argumentaccedilatildeo 4 escritai Tiacutetulo

410 CDD41 CDu

cpc0318ajns

cOMissatildeO eDitOrial

editores executivosaugusto noronha e Karla vidal

conselho editorialAlex Sandro Gomes

angela Paiva DionisioCarmi ferraz Santos

Claacuteudio Cleacutecio vidal eufrausinoClaacuteudio Pedrosa

Leila RibeiroLeonardo Pinheiro Mozdzenski

Clecio dos Santos Bunzen JuacuteniorPedro francisco guedes do nascimento

Regina Luacutecia Peacuteret Dellrsquoisolaubirajara de Lucena Pereira

Wagner Rodrigues SilvaWashington Ribeiro

Prefixo Editorial 66530

7

apresentaccedilatildeo agrave ediccedilatildeo brasileira

A argumentaccedilatildeo eacute um fenocircmeno que recobre diferentes conceitos e eacute objeto de estudo de diferentes disciplinas desde as mais antigas ndash Loacutegica Retoacuterica Dia-leacutetica ateacute as mais recentes no domiacutenio das Ciecircncias Humanas e Sociais incluindo a Linguiacutestica Satildeo inuacutemeras as obras escritas sobre o tema mas se reconhece que mesmo assim ainda haacute muito a se dizer Nesse sentido a ideia de publicar uma versatildeo em portuguecircs da obra Argument in Composition de John Ramage Micheal Callaway Jennifer Clary-Lemon e Zachary Waggoner publicada em 1999 pela Parlor Press nos Estados Unidos tem como propoacutesito fomentar a discussatildeo sobre o tema entre os pesquisadores brasileiros

A obra focaliza a construccedilatildeo do argumento no contexto do ensino da escrita na universidade e se apoia em um quadro teoacuterico amplo e diversificado em parte bastante conhecido pelo puacuteblico brasileiro como a nova retoacuterica de Chaim Perel-man e Lucie Olbrechts-Tytecha em parte natildeo muito como eacute o caso da abordagem retoacuterica de Kenneth Burke Assim aleacutem da relevacircncia do tema a obra permite a ampliaccedilatildeo de um aporte para pensar a questatildeo da argumentaccedilatildeo e da construccedilatildeo do argumento no ensino da escrita na universidade e prepara o caminho para praacuteticas educativas tambeacutem relevantes para o ensino superior brasileiro ainda carente de inclusatildeo e de qualidade

Essa versatildeo em portuguecircs soacute foi possiacutevel graccedilas ao primoroso trabalho de traduccedilatildeo e empenho do(a)s colegas que se envolveram no projeto Nosso muito obrigado a todo(a)s Agradecemos tambeacutem ao professor Charles Bazerman da Universidade de Santa Baacuterbara-Califoacuternia que colaborou em muitas faces acadecirc-micas e legais da traduccedilatildeo Da mesma forma deixamos nosso agradecimento a David Blakesley e Michel Palmquist representantes da Parlor Press responsaacutevel pelos direitos autorais da obra em inglecircs pela autorizaccedilatildeo gratuita da publicaccedilatildeo

Boa LeituraClemilton Lopes Pinheiro

prefaacuteCio do Coordenador da Coleccedilatildeo RefeRe guides to RhetoRic and composition (Guia de Referecircncia para a Retoacuterica e a Escrita)1

Na ampla e crescente casa da retoacuterica e da escrita a argumentaccedilatildeo e sua irmatilde persuasatildeo compartilham um grande e digno quarto que vem sendo cons-truiacutedo desde a fundaccedilatildeo da Retoacuterica na Greacutecia antiga Os principais interesses da Retoacuterica claacutessica satildeo todos fundados com base no argumento debate sobre governo e cidadania julgamento de culpa ou inocecircncia declaraccedilatildeo de direitos e deveres formaccedilatildeo de alianccedilas e acordos protesto contra inimigos desenvol-vimento de compromisso comunitaacuterio As principais instituiccedilotildees sociais foram formadas para criar condiccedilotildees (como procedimentos princiacutepios e exigecircncias) de apontar argumentos para soluccedilotildees bem sucedidas da accedilatildeo comunitaacuteria altas cortes congressos de legisladores religiotildees democracia eleitoral

O grande quarto da argumentaccedilatildeo e da persuasatildeo tem uma larga entrada para os quartos vizinhos que se veem em diferentes condiccedilotildees A proacutepria Filoso-fia opositora de longa data do argumento estrutura suas discussotildees com base nele As disciplinas acadecircmicas satildeo campos argumentativos embora organiza-dos como esforccedilos cooperativos As escolhas de grupos sobre planejamento e escolhas ndash sejam estruturais meacutedicas ou militares ndash dependem da expressatildeo de diferentes visotildees embora enquadradas elipticamente em conhecimentos obje-tivos e papeacuteis especiacuteficos

A argumentaccedilatildeo tambeacutem pode servir para finalidades individuais Graccedilas ao ato de argumentar com os outros um indiviacuteduo pode trabalhar suas cren-ccedilas pessoais valores envolvimentos e opccedilotildees de vida As ocasiotildees sociais de argumentaccedilatildeo oferecem aos indiviacuteduos a oportunidade de pesquisar e refletir individualmente em um contexto de pontos de vista divergentes Os conceitos

1 Traduccedilatildeo Clemilton Lopes Pinheiro

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modernos sobre o desenvolvimento individual do conhecimento da consciecircncia e da responsabilidade dependem de um indiviacuteduo que tem acesso e participa da construccedilatildeo de argumentos e chega a crenccedilas pessoais

Enquanto alguns veem o engajamento a um argumento como um fenocircmeno oral a capacidade de confrontar pontos de vista opostos na escrita transformou o alcance e a profundidade dos argumentos as evidecircncias disponiacuteveis e as situ-accedilotildees em que os argumentos ocorrem Assim como os argumentos usados nos tribunais tenham se convertido em leis escritas textos com jurisprudecircncias resumos de audiecircncias depoimentos tratados fizeram do Direito uma profissatildeo liberal Muitos domiacutenios de letramento escrito que facilitam o contato agrave distacircncia na sociedade moderna dependem do argumento a exemplo de um investimento financeiro um projeto eficaz de preservaccedilatildeo do meio ambiente ou um projeto beneficente sem fins lucrativos No mundo acadecircmico da escrita argumentar facilita a aprendizagem de maneira clara inteligente bem fundamentada disci-plinada e articulada

Este Refere guides to Rhetoric and Compositionc (Guia de referecircncia para a Retoacuterica e a Escrita) fornece uma ampla gama de recursos para o ensino da es-crita As ideias dos principais teoacutericos da Retoacuterica claacutessica e contemporacircnea de Aristoacuteteles a Burke Toulmin e Perelman e sua relevacircncia para a instruccedilatildeo satildeo apresentadas sucintamente Os autores classificam de forma clara e expotildeem suas posiccedilotildees sobre a pedagogia das falaacutecias informais da propaganda e apresentam as razotildees para preferir uma abordagem a outra entre as disponiacuteveis para o en-sino da escrita Os autores igualmente destacam o papel da argumentaccedilatildeo em abordagens que natildeo satildeo diretamente vinculadas ao tema como as que destacam o movimento feminista a retoacuterica da libertaccedilatildeo os estudos culturais criacuteticos o movimento escrita atraveacutes do curriacuteculo as novas tecnologias e a retoacuterica visual A relaccedilatildeo de leituras suplementares e as referecircncias bibliograacuteficas datildeo a opor-tunidade de aprender mais sobre essas abordagens

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Grande parte do livro ilustra o valor de uma perspectiva e defende aberta-mente seu uso no ensino da escrita em relaccedilatildeo a outras Dessa forma o livro con-vida os leitores a tirar suas proacuteprias conclusotildees sobre o valor da argumentaccedilatildeo e sobre como melhor incorporaacute-la em sua didaacutetica Eu particularmente recomendo aos leitores considerar o raciociacutenio contra o engessamento dos sistemas argu-mentativos e as situaccedilotildees especiacuteficas em que cada argumento ocorre

Charles Bazerman

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prefaacuteCio1

A construccedilatildeo do argumento eacute um livro direcionado a todos os professores in-cluindo os que natildeo satildeo exatamente professores de produccedilatildeo de textos que desejam incorporar o ensino do argumento em suas aulas Ao delineaacute-lo tentamos atingir um niacutevel de generalidade entre um livro didaacutetico sobre argumento e uma teoria do argumento Ou nos termos de Kenneth Burke nossa abordagem estaacute situada em um niacutevel de ldquofalar sobrerdquo o argumento em oposiccedilatildeo ao argumento ldquoque falardquo ou ldquofalar sobrerdquo o argumento ldquoque falardquo

Os leitores que desejam uma discussatildeo mais especiacutefica devem consultar quais-quer dos inuacutemeros bons livros didaacuteticos dedicados ao assunto Os que buscam uma compreensatildeo mais restrita e mais profunda sobre o argumento podem consultar as muitas fontes agraves quais nos referimos ao longo do livro Nossa ecircnfase no niacutevel da generalidade mediana decorre de nosso propoacutesito ajudar professores a traduzir a teoria em praacutetica de ensino e fazer escolhas conscientes de livros didaacuteticos sobre o argumento (caso existam) que fazem mais sentido para suas aulas Esperamos que os trecircs primeiros capiacutetulos de A construccedilatildeo do argumento subsidiem nossos leitores para formular suas proacuteprias abordagens do argumento em sala de aula e a ler mais criticamente o material apresentado no restante do livro

Como a alusatildeo anterior agrave Kenneth Burke pode sugestionar A construccedilatildeo do argumento eacute profundamente influenciado pela abordagem retoacuterica desse autor Embora a teoria de Burke tenha recebido pouca ou nenhuma atenccedilatildeo na maioria dos livros didaacuteticos que abordam o argumento (aleacutem do tratamento muitas vezes simplificado do seu esquema pentagonal) noacutes acreditamos que ela eacute a estrutura mais coerente e compreensiacutevel disponiacutevel para unificar as diversas abordagens do argumento ndash o esquema de Toulmin a Stasis Theory as falaacutecias informais a situa-ccedilatildeo retoacuterica etc ndash que compotildeem a espinha dorsal da maioria dos livros didaacuteticos

1 Traduccedilatildeo Siacutelvio Luis da Silva

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atuais Uma vez que Burke serve como as primeiras lentes ou ldquotela finardquo atraveacutes das quais noacutes enxergamos o argumento alguns termos comumente utilizados natildeo satildeo detalhados no corpo principal do texto Em alguns casos esses termos sem que sejam problemaacuteticos em si mesmos satildeo incongruentes ou perifeacutericos agrave nossa abordagem Natildeo damos atenccedilatildeo demasiada por exemplo ao entimema Noacutes citamos em nosso glossaacuterio e mais importante citamos as anaacutelises racionais dos termos feitas por John Gage Certamente reconhecemos o lugar de destaque da noccedilatildeo de entimema na histoacuteria do ensino do argumento e seu potencial de utilidade para alguns professores em sala de aula Apenas tivemos problemas de encaixaacute-lo na nossa abordagem Outros termos natildeo satildeo especialmente discutidos porque senti-mos que jaacute estatildeo contemplados nos diferentes termos de nossa proacutepria rubrica No caso da situaccedilatildeo retoacuterica por exemplo discutimos a noccedilatildeo de exigecircncia de Lloyd Bitzer porque acreditamos que ela descreve perfeitamente um conceito funda-mental para os estudantes do argumento Por outro lado natildeo mencionamos outro elemento da situaccedilatildeo retoacuterica de Bitzer as limitaccedilotildees e restriccedilotildees (constraints) pela crenccedila de que alguns outros elementos que discutimos notadamente a Stasis Theory cumprem mais clara e adequadamente o papel desempenhado pelas limi-taccedilotildees e restriccedilotildees de Bitzer

A construccedilatildeo do argumento eacute inevitavelmente em si mesmo tanto um argu-mento como um compecircndio de abordagens sobre argumentaccedilatildeo Tentamos apresen-tar nosso argumento sem sermos muito argumentativos Ao mesmo tempo somos os primeiros a reconhecer que nosso campo ldquoretoacuterica e escritardquo estaacute longe de ser claramente definido De fato haacute argumentos a serem traccedilados a favor e contra a inclusatildeo da escrita expressiva nas aulas de argumento (noacutes tentamos apresentar um argumento a favor da inclusatildeo) Haacute ainda argumentos a favor e contra a inclusatildeo do argumento visual nessas aulas No caso do argumento visual nossa posiccedilatildeo eacute mais complexa Aplaudimos os objetivos e reconhecemos a importacircncia do argumento visual Citamos os trabalhos que estatildeo sendo feitos na aacuterea mas criticamos a falta de ferramentas utilizaacuteveis ndash ou um vocabulaacuterio comum para esse propoacutesito ndash que torne esse trabalho acessiacutevel para graduandos Por hora sugerimos aos professores

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a esperar que as melhores ferramentas sejam disponibilizadas ou desenvolvam as suas proacuteprias Enquanto isso vemos o argumento visual como aqueles sites da web intrigantes que nos recebem com a mensagem na tela ldquoem construccedilatildeordquo

sumaacuterio

19 introduccedilatildeo por que argumentar eacute importante

22 um entendimento sobre o argumento 24 Discussatildeo de Leo e fish ndash parte i perspectiva teoacuterica 35 Discussatildeo de Leo e fish ndash parte ii passando da dualidade ao compromisso 38 Leo e fish ndash parte iii os elementos do argumento 47 Argumento e a ldquopurificaccedilatildeo da guerrardquo 54 Por que os estudantes precisam argumentar 55 argumento e letramento criacutetico 61 argumento e identidade 67 Eacutetica e argumento

77 CapIacutetulo 1 a histoacuteria da argumentaccedilatildeo 78 Filosofia versus Retoacuterica 93 o problema do engessamento da Retoacuterica 99 figuras-chave da teoria moderna da argumentaccedilatildeo 99 introduccedilatildeo a Kenneth Burke 102 o realismo de Burke 107 introduccedilatildeo a Chaim Perelman e Lucie olbrechts-Tyteca 109 um panorama de a nova Retoacuterica 113 a Stasis Theory e a nova Retoacuterica 124 introduccedilatildeo a Stephen Toulmin 125 o esquema de Toulmin ndash o natildeo silogismo 128 a aplicaccedilatildeo do modelo de Toulmin 134 Resumo

137 CapIacutetulo 2 Questotildees sobre argumentaccedilatildeo 137 o debate sobre a falaacutecia 143 a abordagem pragma-dialeacutetica das falaacutecias 147 alternativas para focalizar a argumentaccedilatildeo em uma aula de escrita estudos criacutetico-culturais 151 Pedagogia expressivista 163 Retoacuterica processual 168 ensinar ou natildeo ensinar propaganda 170 o que eacute propaganda Burke e ellul 186 a propaganda em resumo

191 CapIacutetulo 3 introduccedilatildeo a algumas boas praacuteticas 191 o que funciona no ensino de escrita 196 Boas praacuteticas 200 Retoacuterica da libertaccedilatildeo 206 feminismo e argumento 211 aprendizagem-serviccedilo e argumentaccedilatildeo 215 escrita atraveacutes do curriacuteculo (writing across the curriculum ndash WaC) e escrita nas disciplinas (writing in the disciplines ndash WiD) 219 Computador e escrita 223 Retoacuterica visual

229 glossaacuterio

249 referecircnCias

263 sobre os autores

264 sobre os tradutores

a x b x C

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introduccedilatildeopor Que argumentar eacute importante1

Qualquer um que hoje ainda eacute ceacutetico sobre a importacircncia do argumento nos curriacuteculos dos cursos de escrita das faculdades do paiacutes precisa apenas olhar a abundacircncia de livros dedicados ao assunto Cada grande editora possui pelo menos trecircs ou quatro obras sobre o tema Aleacutem disso a qualidade da atual geraccedilatildeo de textos sobre argumento certamente excede o padratildeo ndash embora natildeo tenha sido eacute verdade um padratildeo particularmente alto ndash estabelecido por geraccedilotildees dos textos antes de meados da deacutecada de 1980 Enquanto uma seacuterie de livros de pensamento criacutetico escritos por filoacutesofos foram adaptados com sucesso para cursos de escrita durante os anos setenta os textos padratildeo sobre argumento compreendem um grupo bastante significativo

Na verdade o tema foi pouco ensinado de forma autocircnoma em aulas de escrita antes da deacutecada de 1980 Normalmente era ensinado como parte de algum esque-ma taxonocircmico comum no chamado curriacuteculo ldquotradicional correnterdquo O curriacuteculo tradicional corrente ou cursos de escrita baseados em modelos que dominaram os curriacuteculos universitaacuterios durante deacutecadas era organizado em torno de categorias supostamente funcionais de escrita como narraccedilatildeo descriccedilatildeo cada uma das quais concebida com um formato prescritivo

A caracteriacutestica mais marcante desses modelos era o caraacuteter retoacuterico Os alunos tinham pouca ideia sobre a razatildeo de algueacutem precisar de uma descriccedilatildeo de um animal de estimaccedilatildeo ou de um professor favorito bem como de um resumo detalhado de uma receita de sanduiacuteche A principal coisa dita sobre audiecircncia era em geral a suposiccedilatildeo de que as pessoas satildeo desinformadas e precisavam ler enunciados claros e detalhados Os alunos progrediam ao longo do semestre de

1 Traduccedilatildeo Clemilton Lopes Pinheiro e Karine alves David

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A construccedilatildeo do argumento

tarefas simples a tarefas complexas com base em uma teoria de aprendizagem essencialmente behaviorista Por ser considerado o mais complexo dos modelos o argumento era o uacuteltimo ponto do programa do curso Dessa forma recebia pouca atenccedilatildeo ou era mesmo totalmente esquecido

Muitos professores ficavam de fato aliviados por natildeo precisarem ensinar sobre argumento jaacute que seus alunos tinham muita dificuldade no contexto do en-sino tradicional Em siacutentese essas dificuldades natildeo eram surpreendentes Embora a relaccedilatildeo entre modelo e objetivo fosse bastante expliacutecita quando se tratava de descrever o processo de fazer um sanduiacuteche essa mesma relaccedilatildeo se complicava por vaacuterias razotildees quando se pretendia persuadir um puacuteblico sobre a proibiccedilatildeo constitucional do casamento entre pessoas do mesmo sexo ser ou natildeo uma grande ideia Qualquer mudanccedila que ocorresse nessas tarefas parecia parar abruptamente quando se tratava de argumentar Como se sabe quando as demandas cognitivas de uma tarefa ficam fora da ldquozona de desenvolvimento proximalrdquo dos alunos todos os outros problemas ndash ortografia gramaacutetica sintaxe e estilo ndash despontam como uma virose Muitos professores de escrita relutantemente concluiacuteram com base em suas tristes experiecircncias que o argumento deve ser ensinado mais tarde ou em qualquer outro momento na universidade

Assim muitos dos problemas enfrentados pelos alunos ao aprenderem a construir argumentos em um curso de escrita tradicional poderiam ser atribuiacutedos agrave abordagem de ensino Era como se tentaacutessemos preparar os alunos para o caacutel-culo atribuindo-lhes uma seacuterie de problemas aritmeacuteticos prevendo que a tarefa de resolver problemas de adiccedilatildeo subtraccedilatildeo multiplicaccedilatildeo e divisatildeo os preparasse para resolver equaccedilotildees de segundo grau

Nem todos os cursos de escrita eram no entanto organizados em torno dos princiacutepios tradicionais Poucos textos aparentemente destinados a ser usados em cursos independentes sobre argumento eram mais promissores Eles eram constituiacutedos principalmente de antologias de argumentos canocircnicos interligados

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A construccedilatildeo do argumento

a conselhos inuacuteteis e apontamentos vagos Os prefaacutecios e introduccedilotildees geralmente breves ndash e raramente se desejava que fossem mais longos ndash ensaiavam alguns ter-mos claacutessicos falaacutecias informais e modelos de silogismos e convidavam os alunos a aplicar o material de alguma forma aos ensaios que se seguiam Eacute desnecessaacuterio dizer que as complexidades dos ensaios natildeo esclareciam as duacutevidas do capiacutetulo de abertura deixando estudantes e professores se perguntarem se talvez o ar-gumento natildeo estava aleacutem do alcance dos meros mortais

O que fez tudo isso mudar nos uacuteltimos vinte anos Aqui noacutes enfrentamos uma questatildeo do tipo quem vem primeiro o ovo ou a galinha Nossas abordagens sobre o argumento ganharam em sofisticaccedilatildeo e em utilidade por causa de um reconhe-cimento crescente da sua importacircncia no mundo ou a sofisticaccedilatildeo e a utilidade crescentes de nossas abordagens nos tornam progressivamente mais conscientes dessa importacircncia no mundo Provavelmente os dois fenocircmenos ocorreram mais ou menos simultaneamente e se reforccedilaram mutuamente Ou mais precisamente nossa tardia consciecircncia das muitas boas ferramentas disponiacuteveis para os estu-dantes de argumento as quais foram em muitos casos adaptaccedilotildees das usadas haacute dois mil anos tornou o seu estudo mais fecundo e a transmissatildeo de habilidades de argumentar mais confiaacuteveis Por qualquer que seja a razatildeo nos encontramos hoje em meio a uma espeacutecie de era de ouro da histoacuteria do ensino do argumento

Mais adiante examinaremos o passado para ver como isso aconteceu e como situar a eacutepoca atual na histoacuteria do ensino desse tema Por enquanto queremos nos concentrar em nossa compreensatildeo atual do argumento e na nossa motivaccedilatildeo para ensinaacute-lo

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A construccedilatildeo do argumento

um entendimento sobre o argumento

Em nossas aulas pretendemos fazer uma abordagem inicial sobre o argumen-to de forma direta e indutiva pelo exame de dois ou mais argumentos sobre uma mesma questatildeo treinando com nossos alunos quais satildeo as caracteriacutesticas de nossos exemplos mais provaacuteveis de serem aplicadas a outros casos Essa abordagem de ensino eacute ilustrativa de outra mais geral que defendemos bottom-up a aprendiza-gem baseada em problemas fundamentada na aplicaccedilatildeo e ascensatildeo de princiacutepios em oposiccedilatildeo ao modo tradicional top-down modo expositivo de transmissatildeo de conhecimento (isto eacute aulas expositivas)

Haacute com certeza vantagens e desvantagens na nossa abordagem indutiva de aprendizagem Em nome da aprendizagem ativa de importantes elementos do argumento perdemos de vista embora de forma passiva a ldquocoberturardquo de nosso toacutepico O melhor que podemos esperar de nosso exame inicial do argumento eacute uma melhor compreensatildeo de algumas de suas caracteriacutesticas mais proeminentes e um senso mais eficaz de como pensar criticamente sobre o toacutepico Esse eacute um dos pontos do exerciacutecio e do nosso curso os significados de termos complexos como argumento satildeo sempre contestaacuteveis porque eles satildeo de fato inesgotaacuteveis

Qualquer que seja o perigo que os alunos possam encontrar com a seleccedilatildeo de partes do todo os benefiacutecios de nossa abordagem na nossa opiniatildeo superam sig-nificativamente os potenciais custos Embora pudeacutessemos transmitir muito mais conhecimento assertivo sobre o argumento atraveacutes da exposiccedilatildeo natildeo haacute garan-tia de que o conhecimento que transmitimos chegaria ao seu destino ou que se chegasse seria suficientemente livre de ruiacutedo para natildeo confundir nosso sinal ou que os alunos teriam uma noccedilatildeo clara do que ldquofazerrdquo com o conhecimento retido durante a transmissatildeo Nossa experiecircncia com exposiccedilotildees sobre a definiccedilatildeo de argumento sugere que a pergunta mais comum que conseguimos provocar sobre o material apresentado eacute a seguinte O que vai cair na prova Natildeo consideramos que isso seja positivo Definir os problemas sobre os quais haacute um consenso eacute entre

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A construccedilatildeo do argumento

outras coisas chato Definir problemas que satildeo incertos e contestaacuteveis eacute conside-ravelmente mais interessante

Em nossas discussotildees iniciais sobre argumentos queremos que nossos alu-nos percebam que a definiccedilatildeo de qualquer noccedilatildeo complexa como a de argumento eacute contestaacutevel que os valores e crenccedilas que trazemos para o exerciacutecio de definir o termo influenciam nossa forma de definir e que a forma como definimos por sua vez determina a maneira de analisar

A cada semestre no final de nosso exerciacutecio indutivo de definiccedilatildeo natildeo che-gamos ao mesmo conjunto de conclusotildees sobre o significado de argumento que ensaiamos em nossas aulas mas a conclusotildees diferentes muitas vezes inesperadas decorrentes de conversas livres Com certeza dirigimos essa conversa o suficiente para assegurar que pelo menos alguma coisa sobre argumento seja feita e que nem todos os pontos abordados em nossas aulas sobrevivam agraves questotildees agraves quais os submetemos (como disse o antigo mestre da dialeacutetica Soacutecrates agraves vezes natildeo estamos acima das correccedilotildees) Mas cada semestre produz novos insights sobre o significado do argumento Um ponto importante para lembrar eacute o fato de que depois haveraacute muito tempo para abordar as questotildees mais cruciais da questatildeo deixada sem resposta Ao esperar os alunos estatildeo mais propensos a se envolve-rem e mais preparados para aplicar as ideias que eles tecircm na matildeo quando tiverem que produzir

Os argumentos que se seguem (textos 01 e 02) natildeo satildeo os que usariacuteamos em uma classe de graduaccedilatildeo tiacutepica As questotildees que eles levantam satildeo apropriadas para uma discussatildeo mais teoacuterica do argumento do que a que buscamos promover no iniacutecio de uma aula de graduaccedilatildeo Certamente natildeo os consideramos exemplos de argumento Mas tampouco satildeo escolhidos aleatoriamente Satildeo meta-argumentos de um tipo que levanta questotildees sobre a natureza do argumento central para a nossa abordagem e preveem as questotildees que se repetem nas paacuteginas que se seguem Os dois argumentos e a discussatildeo subsequente obviamente natildeo podem ser reproduzi-dos em uma aula pois as discussotildees seratildeo sempre abertas Para se ter pelo menos

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A construccedilatildeo do argumento

uma ideia sobre essa experiecircncia convidamos ao leitor a ler esse material da ma-neira como pedimos aos nossos alunos Antes de analisar nossa discussatildeo conveacutem observar como as duas coisas satildeo diferentes e semelhantes tanto na discussatildeo quanto nas conclusotildees a que chegam As conclusotildees podem entatildeo ser usadas para interrogar nossas proacuteprias conclusotildees sobre os dois argumentos

disCussatildeo de leo e fish parte i perspeCtiva teoacuteriCa

texto 01O relativismo cultural deixa algumas pessoas cegas para o mal

(John Leo universal Press Syndicate 15102001)

o governo episcopal da igreja episcopal emitiu uma declaraccedilatildeo vergo-

nhosa sobre os ataques terroristas Depois de estimular os crentes agrave recon-

ciliaccedilatildeo (isto eacute a dizer natildeo agrave guerra) os bispos disseram ldquoA afluecircncia de

naccedilotildees como a nossa contrasta com outras partes do mundo arruinadas

pela esmagadora pobreza que causa a morte de 6000 crianccedilas durante

uma manhatilderdquo O nuacutemero 6000 e a referecircncia a uma uacutenica manhatilde eacute claro

evocam o dia 11 de setembro em um espiacuterito de equivalecircncia moral

De forma clara os bispos parecem pensar que os americanos natildeo estatildeo

em posiccedilatildeo de queixar-se do massacre de Manhattan jaacute que 6000 crian-

ccedilas em todo o mundo podem morrer em um uacutenico dia os bons bispos

aparentemente estatildeo dispostos a tolerar 6 mil assassinatos em nova york2

porque o ocidente natildeo conseguiu eliminar a pobreza mundial e talvez de-

vesse ser culpado por causaacute-la Mas o ataque terrorista natildeo tem nada a ver

com a fome ou a doenccedila no mundo e a declaraccedilatildeo dos bispos eacute um enga-

2 O nuacutemero de viacutetimas dos atentados de 11 de setembro natildeo havia ainda sido fixado em 3000 quando Leo escreveu este texto

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A construccedilatildeo do argumento

no moral Quantos assassinatos o episcopado pode ignorar por causa da

existecircncia de uma esmagadora pobreza Se 6000 por que natildeo 60000

Esse eacute um pequeno exemplo do que poderia ser um grande problema a

longo prazo um grande nuacutemero de nossos liacutederes culturais e morais satildeo

incapazes de dizer claramente que o mal existe no mundo e que ele deve

ser desafiado Em vez disso eles se contentam em falar sobre ldquociclos de

violecircnciardquo e sobre como a praacutetica do ldquoolho por olho dente por denterdquo torna

o mundo cego como se o policial que prende o criminoso violento eacute de

alguma forma tambeacutem culpado pelo crime

Parte dessa filosofia surge da cultura terapecircutica Acusar algueacutem de ser

mau eacute uma forma ruim de pensar natildeo haacute mal nem certo e errado soacute mal-

-entendidos que podem desaparecer se retermos o julgamento e formos

tocados emocionalmente pelos outros Tudo pode ser mediado e discutido

Outras coisas se originam no relativismo moral que foi cerne da filosofia

multicultural dominante nas nossas escolas durante toda uma geraccedilatildeo o

multiculturalismo vai muito aleacutem da toleracircncia e apreciaccedilatildeo de outras cultu-

ras e naccedilotildees Ele prega que todas as culturas e todas as expressotildees culturais

satildeo igualmente vaacutelidas Isso elimina as normas morais Toda cultura (exceto

a americana eacute claro) estaacute correta segundo suas proacuteprias normas e natildeo

pode ser julgada pelos outros

Professores de todos os niacuteveis advertiram durante anos para onde isso se

dirigia estamos vendo um grande nuacutemero de jovens incapazes ou indis-

postos a fazer as distinccedilotildees mais simples entre o certo e o errado Mesmo

atos horrendos ndash o sacrifiacutecio humano em massa pelos astecas e genociacutedio

pelos nazistas ndash satildeo declarados indiscutiacuteveis ldquoEacute claro que eu natildeo gosto

dos nazistasrdquo disse um estudante do estado de Nova York a seu professor

ldquoMas quem pode dizer que eles estatildeo moralmente erradosrdquo O mesmo

argumento ou natildeo argumento pode tambeacutem se aplicar aos terroristas de

11 de setembro

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A construccedilatildeo do argumento

apenas uma minoria dos estudantes pensa dessa maneira mas o mul-

ticulturalismo com seu relativismo cultural radical estaacute se tornando um

problema seacuterio Isso deixa muitos estudantes em duacutevida sobre os valores

americanos tradicionais e desinteressados em qualquer sentimento de sen-

so comum ou solidariedade Eacute particularmente o caso do acreacutescimo a tudo

isso do mantra de que a esquerda cultural americana eacute ldquoracista-sexista-

-homofoacutebicardquo

Essa filosofia hiacutebrida ndash nenhum julgamento de outras culturas mas um jul-

gamento severo ndash jaacute estaacute comeccedilando a colorir muitas respostas aos ataques

terroristas Ela olha para o lado de fora do argumento das ldquocausas-raizrdquo e

da necessidade de ldquoentenderrdquo os terroristas e ver seus atos ldquono contextordquo

Muitas vezes o que as pessoas entendem por causa-raiz eacute o fato de que a

impiedosa e imperialista Ameacuterica trouxe os ataques contra si mesma

A filosofia tambeacutem brilha atraveacutes de muitas declaraccedilotildees de preocupaccedilatildeo

com o vieacutes contra os muccedilulmanos americanos naturalmente os muccedilulma-

nos natildeo devem ser escolhidos para o ataque ou o desprezo Mas muitas

declaraccedilotildees oficiais sobre o 11 de setembro fizeram apenas uma breve refe-

recircncia ao horror dos ataques antes de lanccedilar uma longa e desigual atenccedilatildeo

agrave possibilidade de um vieacutes anti-muccedilulmano

o terrorismo eacute a pior ameaccedila que a naccedilatildeo jaacute enfrentou e no momento os

americanos estatildeo solidamente unidos para enfrentaacute-lo a esquerda multi-

cultural-terapecircutica eacute pequena mas concentrada em instituiccedilotildees que fazem

a maior parte da pregaccedilatildeo para a ameacuterica ndash as universidades a imprensa

as principais igrejas e a induacutestria do entretenimento eles teratildeo de ser em-

purrados para afastar-se do multiculturalismo desleixado e do relativismo

universal Deixem a empurratildeo comeccedilar

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A construccedilatildeo do argumento

texto 02Condenaccedilatildeo sem absolutos

(Stanley fish new york Times 15102001)

Durante o intervalo entre os ataques terroristas e a resposta dos estados

unidos um repoacuterter telefonou para me perguntar se os acontecimentos de

11 de setembro significavam o fim do relativismo poacutes-modernista Parecia

bizarro que eventos tatildeo seacuterios tivessem alguma relaccedilatildeo causal com uma

forma rara de discurso acadecircmico Mas nos dias que se seguiram um nuacute-

mero crescente de comentaristas apresentou importantes variaccedilotildees sobre

o mesmo tema as ideias apresentadas pelos intelectuais poacutes-modernos

enfraqueceram a soluccedilatildeo do paiacutes o problema de acordo com os criacuteticos

eacute o fato de que como os poacutes-modernistas negam a possibilidade de des-

crever objetivamente as questotildees eles natildeo nos deixam bases firmes para

condenar os ataques terroristas ou lutar contra eles

Natildeo eacute exatamente assim O poacutes-modernismo sustenta apenas que natildeo

pode haver um padratildeo independente para determinar qual das muitas in-

terpretaccedilotildees diferentes de um evento eacute a verdadeira a uacutenica coisa contra a

qual o pensamento poacutes-moderno se opotildee eacute a esperanccedila de justificar nossa

resposta aos ataques em termos universais que seriam convincentes para

todos inclusive para nossos inimigos invocar as noccedilotildees abstratas de justiccedila

e verdade para apoiar nossa causa natildeo seria de qualquer forma eficaz

porque nossos adversaacuterios reivindicam a mesma coisa (ningueacutem se declara

apoacutestolo da injusticcedila)

em vez disso podemos e devemos invocar os valores particulares vividos

que nos unem e satildeo assumidos pelas instituiccedilotildees que valorizamos e dese-

jamos defender

em momentos como esses a naccedilatildeo retoma com razatildeo o registro de as-

piraccedilatildeo e realizaccedilatildeo que compotildee nossa compreensatildeo coletiva do que vi-

vemos Esse entendimento eacute suficiente e longe de minar sua suficiecircncia o

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A construccedilatildeo do argumento

pensamento poacutes-moderno nos diz que temos bases suficientes para a accedilatildeo

e condenaccedilatildeo justificadas nos ideais democraacuteticos que abraccedilamos sem

entender a retoacuterica vazia de absolutos universais a que todos subscrevem

mas que todos definem diferentemente

Mas eacute claro que natildeo eacute realmente com o poacutes-modernismo que as pessoas se

incomodam Eacute a ideia de que nossos adversaacuterios natildeo emergiram de algu-

ma antiga escuridatildeo mas de uma histoacuteria que os dotou de razotildees e motivos

e ateacute mesmo de uma versatildeo pervertida de algumas virtudes Bill Maher

Dinesh DrsquoSouza e Susan Sontag comeccedilaram a ter problemas ao assinalar

que ldquocovarderdquo natildeo eacute a palavra para descrever os homens que se sacrificam

por uma causa em que acreditam a Sra Sontag lhes daacute a coragem e tem

o cuidado de dizer que eacute um termo ldquomoralmente neutrordquo uma qualidade

que algueacutem pode exibir na execuccedilatildeo de um ato ruim (Satanaacutes de Milton eacute o

melhor exemplo literaacuterio) Vocecirc natildeo tolera esse ato porque o descreve com

precisatildeo Na verdade vocecirc se posiciona melhor para responder a ele to-

mando sua verdadeira medida Tornar o inimigo menor do que ele eacute cega

para o perigo que ele apresenta e daacute-lhe a vantagem que vem junto por ter

sido subestimado

Eacute por isso que o que Edward Said chamou de ldquofalsos universaisrdquo deve ser re-

jeitado eles estatildeo no caminho do pensamento uacutetil Quantas vezes ouvimos

estes novos mantras ldquoVimos a face do malrdquo ldquoEstes satildeo loucos irracionaisrdquo

ldquoEstamos em guerra contra o terrorismo internacionalrdquo Cada um eacute impre-

ciso e inuacutetil natildeo vimos o rosto do mal noacutes vimos a cara de um inimigo

que nos apresenta uma lista cheia de queixas de objetivos e de estrateacutegias

Se reduzimos esse inimigo ao ldquomalrdquo evocamos um democircnio que muda de

forma um anarquista moral de caraacuteter selvagem aleacutem de nossa compreen-

satildeo e portanto fora do alcance de qualquer contra estrateacutegia

A mesma reduccedilatildeo ocorre quando imaginamos o inimigo como ldquoirracionalrdquo

Os atores irracionais por definiccedilatildeo natildeo tecircm um objetivo claro e natildeo haacute ra-

zatildeo para raciocinar sobre a forma de combatecirc-los O melhor eacute pensar nes-

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A construccedilatildeo do argumento

ses homens como portadores de uma racionalidade que rejeitamos porque

seu objetivo eacute a nossa destruiccedilatildeo Se tomarmos o trabalho de entender essa

racionalidade poderiacuteamos ter uma melhor chance de descobrir o que seus

adeptos faratildeo a seguir e prevenir

E o ldquoterrorismo internacionalrdquo natildeo descreve adequadamente o que en-

frentamos o terrorismo eacute o nome de um estilo de guerra a serviccedilo de

uma causa Eacute a causa e as paixotildees que a informam que nos confrontam

Concentrar-se em algo chamado terrorismo internacional ndash destacado de

qualquer agenda especiacutefica ndash soacute confunde as coisas Isto deveria ter sido

evidente quando o presidente vladimir Putin da Ruacutessia insistiu que qualquer

guerra contra o terrorismo internacional deve ter como um dos seus objeti-

vos a vitoacuteria contra os rebeldes na Chechecircnia

Quando a Reuters decidiu tomar cuidado ao usar a palavra ldquoterrorismordquo

porque segundo seu diretor de notiacutecias o terrorista de um homem eacute o luta-

dor pela liberdade de outro homem Martin Kaplan decano associado da

escola annenberg de Comunicaccedilatildeo da universidade do Sul da Califoacuternia

criticou o que ele viu como mais um exemplo de relativismo cultural Mas

a Reuters estaacute simplesmente reconhecendo quatildeo inuacutetil eacute a palavra porque

nos impede de fazer distinccedilotildees que nos permitem ter uma imagem melhor

de onde estamos e o que poderiacuteamos fazer Se vocecirc pensa em si mesmo

como o alvo do terrorismo com um T maiuacutesculo seu oponente estaacute em toda

parte e em nenhuma parte Mas se vocecirc pensa em si mesmo como o alvo

de um terrorista que vem de algum lugar mesmo que ele opere interna-

cionalmente vocecirc pode pelo menos tentar antecipar seus futuros ataques

Eacute este o fim do relativismo Se pelo relativismo se entende um elenco de

opiniotildees que torna vocecirc incapaz de preferir suas proacuteprias convicccedilotildees agraves do

seu adversaacuterio entatildeo o relativismo dificilmente poderia terminar porque

nunca comeccedilou Nossas convicccedilotildees satildeo por definiccedilatildeo preferidas Isso eacute o

que as torna nossas convicccedilotildees Relativizaacute-las natildeo eacute nem uma opccedilatildeo nem

um perigo

30

A construccedilatildeo do argumento

Mas se pelo relativismo se entende a praacutetica de se colocar no lugar do ad-

versaacuterio natildeo para se tornar igual a ele mas para ter alguma compreensatildeo

(muito longe da aprovaccedilatildeo) sobre o porquecirc de algueacutem mais querer ser

entatildeo o relativismo natildeo vai e natildeo deve terminar porque eacute simplesmente

outro nome para o pensamento fundamentado

Comeccedilamos com o elemento mais controverso da nossa discussatildeo nossa cren-ccedila de que o argumento de Fish eacute o mais forte e que nossos motivos para o preferir natildeo satildeo apenas ideoloacutegicos mas tambeacutem profissionais e teacutecnicos A primeira parte dessa afirmaccedilatildeo eacute provavelmente menos surpreendente para a maioria do que a segunda Muitos leitores deste livro acharatildeo o argumento de Leo menos persua-sivo assim como muitos leitores do digamos jornal conservador The Washington Times provavelmente achariam o argumento de Fish menos convincente A base para essa divisatildeo eacute congruente com as diferentes suposiccedilotildees sobre os argumentos colocados pelos dois autores Leo certamente afirmaria que nossos leitores leram mal seu artigo e foram enganados por Fish porque eles ndash isto eacute ldquovocecircrdquo ndash estatildeo presos ao ldquorelativismo moralrdquo

Da mesma forma Leo natildeo teria duacutevida de achar os leitores do The Washington Times mais perspicazes em grande parte porque eles conseguiram de alguma forma evitar a doutrinaccedilatildeo por uma ldquocultura terapecircuticardquo supervisionada pela elite intelectual ndash ou seja mais uma vez ldquovocecircrdquo Nossas duas leituras hipoteacuteticas tecircm diferenccedilas tanto de interpretaccedilatildeo quanto de significado Leitores competentes e natildeo corrompidos encontraratildeo o significado correto em cada um dos textos os leitores incompetentes e corrompidos natildeo Natildeo haacute espaccedilo no mundo de Leo para as ldquointerpretaccedilotildees rivaisrdquo de Fish sobre textos eventos porque no final haacute apenas uma leitura correta

Fish entretanto iria achar as diferenccedilas nas duas leituras insignificantes e certamente natildeo veria motivo para querelas Enquanto ele estaria preparado para se pronunciar contra uma leitura que julga seu argumento inferior ao de Leo ndash na

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A construccedilatildeo do argumento

verdade imagina-se que ele seria muito influenciado por tal julgamento ndash ele natildeo deixaria de relutar em reconhecer a superioridade de sua posiccedilatildeo como um sinal de corrupccedilatildeo moral

Os leitores do The Washington Times simplesmente constituem uma comuni-dade de leitores que compartilham crenccedilas diferentes e atribuem diferentes signi-ficados a termos como ldquoverdaderdquo e ldquojusticcedilardquo Ele estaria preparado para apresentar argumentos que mostram por que esses leitores estatildeo errados e ele certo ndash na verdade ele faz isso em seu texto ndash mas ele aceitaria desde o iniacutecio que em seus argumentos ele natildeo poderia apelar para qualquer conjunto de padrotildees univer-sais defendidos pelos seus apoiantes e pelos apoiantes de Leo que confirmariam suas conclusotildees e fortaleceria as de Leo aos olhos de todas as partes da discussatildeo (Porque Fish vecirc os limites entre as comunidades muito menos permeaacuteveis ele eacute menos otimista quanto agraves perspectivas do diaacutelogo intercomunitaacuterio do que noacutes) Leo entretanto assume que esses universais conhecidos de todos e ignorados perversamente por alguns existem embora ele tenha o cuidado de natildeo nomeaacute--los ou falar sobre suas relaccedilotildees Os extremos de Leo a ser nomeados mais tarde como divindades religiosas cujos nomes nunca devem ser citados impressionam mais na ausecircncia do que na realidade

Nossa proacutepria visatildeo nos inclina menos para Leo e mais para Fish por vaacuterias razotildees Em primeiro lugar as hipoacuteteses de Leo sobre a natureza da verdade e do significado satildeo incompatiacuteveis com as hipoacuteteses compartilhadas pela maioria dos membros de nossa proacutepria comunidade O mais importante dessas hipoacuteteses eacute a crenccedila de que o argumento tem poder heuriacutestico realizado pelo diaacutelogo com noacutes mesmos ou com outras pessoas fazendo o que Aristoacuteteles chamou de ldquoprovar opostosrdquo Noacutes natildeo apenas defendemos a verdade e vencemos o erro modificamos as verdades aceitas e descobrimos novas Nessa visatildeo estaacute impliacutecita a crenccedila de que a verdade natildeo pode ser como Leo parece assumir que eacute independente do jul-gamento humano ou da linguagem que usamos para formar esse julgamento Se a verdade eacute absoluta independente de noacutes e incorrigiacutevel por noacutes e se a linguagem eacute

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A construccedilatildeo do argumento

meramente um meio de expressatildeo transparente natildeo o que Burke chama de ldquotela terminoloacutegicardquo que molda o que revela a retoacuterica eacute um negoacutecio trivial merecedor do tipo de indignaccedilatildeo que o primeiro absolutista adepto ao platonismo sentiu pelo primeiro de nossa raccedila os sofistas

Embora a nossa posiccedilatildeo aqui uma posiccedilatildeo consistente se natildeo idecircntica agrave da maioria dos membros de nossa comunidade possa parecer com a posiccedilatildeo que Leo caracteriza como ldquorelativismo moralrdquo natildeo acreditamos que ela seja Dizer que noacutes mesmos ou Fish somos relativistas morais eacute mais uma caricatura do que uma re-presentaccedilatildeo de nossa posiccedilatildeo O fato de aceitarmos a inevitabilidade de posiccedilotildees muacuteltiplas sobre qualquer questatildeo de significado natildeo quer dizer que aceitamos ndash como o aluno desafortunado de Leo que ldquonatildeo gostardquo dos nazistas mas natildeo pode se denunciar ndash a equivalecircncia moral ou cognitiva de todas as posiccedilotildees sobre uma questatildeo Como retoacutericos natildeo podemos pedir a adesatildeo ao ldquoEu estou bemrdquo ldquoVocecirc estaacute OKrdquo quando debatemos relaccedilotildees humanas

De fato se isso prevalecesse os retoacutericos ficariam sem trabalho A retoacuterica e o argumentaccedilatildeo natildeo tecircm lugar em nenhum dos dois mundos que para Leo repre-sentem a soma de todas as possibilidades o mundo da Uma Verdade ou o mundo onde ele imagina habitar onde existem inuacutemeras verdades equivalentes No mundo da Uma Verdade a retoacuterica e a argumentaccedilatildeo podem servir tanto para propagar uma uacutenica feacute verdadeira como para levar as pessoas para longe dessa feacute mas natildeo poderia ter efeito legiacutetimo nas verdades que fundamentam a feacute Em um mundo de muacuteltiplas verdades equivalentes natildeo somente seriacuteamos impotentes para mudar a posiccedilatildeo uns dos outros tambeacutem natildeo haveria nenhuma razatildeo para querer ter boas razotildees para assumir uma posiccedilatildeo e natildeo outra

Nossa posiccedilatildeo portanto natildeo eacute absolutista nem relativista Preferimos consi-deraacute-la como ldquorealistardquo tal como Kenneth Burke usa esse termo Em um mundo re-alista a retoacuterica e a argumentaccedilatildeo satildeo atividades essenciais precisamente porque eacute um mundo que reconhece o papel significativo embora natildeo limitado que a accedilatildeo humana desempenha na soluccedilatildeo dos problemas do mundo e a parte importante

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A construccedilatildeo do argumento

que a linguagem desempenha para permitir ao ser humano atingir seus objetivos Em particular a linguagem tem a capacidade real de ldquofavorecer a cooperaccedilatildeordquo en-tre os seres humanos mesmo se falta o poder maacutegico de ldquoprovocar o movimento nas coisasrdquo (BURKE 1966) Embora Burke (1966) reconheccedila o enorme poder da linguagem para efetuar a mudanccedila seu realismo tambeacutem exige a crenccedila em um mundo independente do poder de formaccedilatildeo da linguagem

Nosso conhecimento desse domiacutenio extra verbal eacute adquirido negativamente atraveacutes do poder das coisas eventos e corpos para resistir a nossas afirmaccedilotildees e reivindicaccedilotildees e frustrar nossos projetos Esse poder de ldquodesobediecircnciardquo no mundo encoraja uma atitude de humildade como a que Burke (1996) encontra no pragmatista William James a quem ele se refere como ldquoum especialista no grau comparativo de adjetivos de valorrdquo James rejeitou o absolutismo (que eacute realmente o superlativo identificando o Um como o Melhor) e preferiu pensar ldquo[] em termos de mais e natildeo de todosrdquo Entre otimismo ou pessimismo ele preferia o ldquomelio-rismordquo (BURKE 1984) Enquanto os absolutistas como Leo agraves vezes permitem que o perfeito se torne o inimigo do bem julgando qualquer coisa menos do que tudo insuficiente e corrupta os realistas procuram melhorar as coisas por grau induzindo a cooperaccedilatildeo entre as pessoas e trabalhando em direccedilatildeo a finalidades coletivamente definidas que satildeo constantemente redefinidas Nesse mundo a re-toacuterica e as artes da persuasatildeo natildeo satildeo ferramentas insignificantes para distrair as massas satildeo ldquoequipamentos para viverrdquo

No mundo que descrevemos a justiccedila e a verdade satildeo termos importantes ainda que pouco presentes em nosso vocabulaacuterio O que as palavras significam para um determinado grupo de pessoas em um dado momento pode natildeo ser exatamen-te o mesmo em outro momento em circunstacircncias diferentes ou para um grupo diferente de pessoas em um mesmo tempo e um mesmo lugar Mas cada grupo em todas as circunstacircncias imagina que estaacute em busca da justiccedila e da verdade Ou como diz Fish de maneira mais marcante ldquoNingueacutem se declara apoacutestolo da injusticcedilardquo mesmo aqueles cujos meacutetodos nos podem parecer hediondos Diferentes

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A construccedilatildeo do argumento

grupos podem usar diferentes meios para chegar a significados diferentes para termos importantes como verdade e justiccedila mas essas diferenccedilas natildeo satildeo mais ldquosubjetivasrdquo do que o significado de Leo para ldquoobjetivordquo Apenas o fracasso de Leo em articular um significado especiacutefico para sua noccedilatildeo de verdade pode preservar sua aura de universalidade

Tanto a comunidade de Leo como a de Fish elaboraram uma definiccedilatildeo do termo consistente com seus proacuteprios princiacutepios Mas ao contraacuterio de Fish Leo e os membros de sua comunidade parecem rejeitar em primeiro lugar o processo que produziu sua versatildeo da verdade Ao chegarem ao reino dos Absolutos eles desfazem o caminho que percorreram e impendem outros de chegar Como o mundo platocircnico das Formas Puras a Verdade de Leo parece existir separada do mundo natildeo afetada pelas interaccedilotildees dos mortais As almas excepcionais podem ocasionalmente perceber uma essecircncia em meio aos acidentes da vida e depois de experimentar essas epifanias podem tentar compartilhaacute-las com os outros mas aleacutem disso os seres humanos natildeo tecircm nenhum papel na construccedilatildeo da verdade A diferenccedila entre as duas posiccedilotildees foi bem capturada pelo filoacutesofo Richard Rorty

Se vemos o conhecimento natildeo como uma essecircncia descrita por cien-tistas ou filoacutesofos mas como um direito segundo os padrotildees atuais de acreditar estamos no caminho para ver a conversaccedilatildeo como o uacuteltimo contexto a partir do qual o conhecimento pode ser entendido Nosso foco se desloca da relaccedilatildeo entre os seres humanos e os objetos de sua inves-tigaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre padrotildees alternativos de justificaccedilatildeo e daiacute para as mudanccedilas reais nesses padrotildees que compotildeem a histoacuteria intelec-tual (RORTY 1979 p 389-90)

Nos termos de Rorty (1979) o debate entre Leo e Fish pode ser enquadrado como um debate entre aqueles que representam o conhecimento como uma descri-ccedilatildeo precisa da essecircncia versus aqueles que o entendem como ldquoum direito segundo

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A construccedilatildeo do argumento

os nossos padrotildees atuais de acreditarrdquo Aqueles que defendem a primeira posiccedilatildeo relegam a retoacuterica e a persuasatildeo a um status decididamente secundaacuterio A desco-berta do conhecimento deve ser deixada para cientistas e filoacutesofos especializados na ldquorelaccedilatildeo entre os seres humanos e os objetos de sua investigaccedilatildeordquo Aqueles que defendem a segunda posiccedilatildeo colocam retoacuterica e persuasatildeo no centro da produccedilatildeo do conhecimento Atraveacutes da ldquoconversaccedilatildeordquo eles elaboram ldquoa relaccedilatildeo entre padrotildees alternativos de justificaccedilatildeordquo Isso eacute o que mais ou menos os retoacutericos tecircm feito haacute mais de dois milecircnios

disCussatildeo de leo e fish parte ii passando da dualidade ao Compromisso

Nesta segunda parte da nossa discussatildeo sobre os artigos de Fish e Leo que-remos voltar nosso foco para a sala de aula e mostrar como professores de que forma poderiacuteamos usar esses artigos para elaborarmos uma definiccedilatildeo provisoacuteria de argumento e aplicar as liccedilotildees do debate ao ensino Do ponto de vista do ensino o que eacute especialmente interessante sobre o argumento de Leo eacute quatildeo perfeitamente sua posiccedilatildeo e o status atribuiacutedo a ela reproduzem a mentalidade de dois grupos problemaacuteticos de estudantes que encontramos frequentemente em nossas aulas A partir do esquema de desenvolvimento cognitivo e moral de William Perry de-nominamos essas duas posiccedilotildees de ldquodualidade e multiplicidaderdquo Essas posiccedilotildees correspondem a dois dos primeiros estaacutegios do esquema de desenvolvimento de Perry (1999) e representam desafios marcadamente diferentes na sala de aula

Um aluno em dualidade supotildee que haacute respostas certas e erradas para cada pergunta e que o trabalho do professor eacute apresentar essas respostas de forma clara e depois testar os alunos para saber se eles lembram a resposta correta Nessa posiccedilatildeo os problemas surgem quando a) desafiamos os alunos a apresen-tarem as suas proacuteprias respostas eou b) os alunos acreditam que estamos dando

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A construccedilatildeo do argumento

respostas conflituosas em relaccedilatildeo as respostas anteriormente dadas por outros professores Se fizermos o nosso trabalho aconteceratildeo as duas coisas o que faraacute que os alunos retornem para suas antigas convicccedilotildees ou arrisquem a colocar suas crenccedilas ndash religiosa poliacutetica ou ideoloacutegica ndash em duacutevida Estudantes em dualidade podem muito bem nos ver como ameaccedilas agrave sua proacutepria identidade assim como sombrios e desconhecidos como os terroristas de Leo em nossas tentativas de desestabilizar sua visatildeo de mundo Eacute importante portanto ter em mente o quatildeo alto as apostas e os grandes riscos podem ser para esses estudantes quando lhes pedimos para ldquoprovar o que estaacute em contradiccedilatildeordquo e verdadeiramente ouvir argumentos opostos

Os alunos que estatildeo na multiplicidade entretanto adotam o laissez-faire vivem e deixam viver as diferenccedilas intelectuais tudo o que Leo atribui aos ldquomulticultu-ralistasrdquo Como os alunos em dualidade os em multiplicidade tambeacutem subvertem o processo dialeacutetico mas por meios diferentes Os em dualidade subvertem o processo dialeacutetico pronunciando Uma Tese Verdadeira e descartando todas as al-ternativas possiacuteveis Os que estatildeo na multiplicidade entretanto proclamam todas as teses alternativas igualmente vaacutelidas e as veem como possibilidades paralelas que nunca se cruzam Em nenhum dos casos uma tese pode engendrar uma antiacute-tese para produzir qualquer tipo de siacutentese Os que estatildeo na multiplicidade estatildeo abertos a novas ideias mas satildeo incapazes de engajar criticamente essas ideias de escolher as que fazem melhor sentido em um dado conjunto de circunstacircncias ou de combinar elementos de vaacuterias ideias para construir uma melhor

Na medida em que a faculdade eacute um lugar onde os estudantes abandonam a dualidade pela multiplicidade ndash embora na verdade poucos parecem entrar na faculdade na dualidade ndash Leo estaacute em parte certo ao afirmar que as faculdades encorajam os alunos a adotar algo como uma ldquoeacutetica difusardquo como visatildeo de mundo Provavelmente em um momento ou outro a maioria dos estudantes universitaacute-rios ndash incluindo alguns de noacutes ndash abraccedilaram um tipo de toleracircncia fraca a ideias diferentes a que Leo ironicamente se refere como ldquorelativismo moralrdquo como uma

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A construccedilatildeo do argumento

alternativa agraves formas mais maleacuteficas de intoleracircncia intelectual produzidas por dualismo Mas ao contraacuterio de Leo a maioria de noacutes vecirc nossa tarefa como estu-dantes em deslocamento das duas etapas para uma de raciociacutenio moral de ordem superior que abrange a complexidade e a contrariedade sem cair na indiferenccedila

Perry (1999) chama esse uacuteltimo estaacutegio de ldquocompromisso no relativismordquo Trata-se de uma posiccedilatildeo natildeo muito diferente da que Fish assume no seu artigo Embora permaneccedila um ideal mais do que uma possibilidade realista para a maio-ria das pessoas eacute uma aspiraccedilatildeo interessante de argumento para os professores levarem para seus alunos Aqueles que alcanccedilam o compromisso no relativismo reconhecem a impossibilidade de uma certeza perfeita equilibrada pela sua neces-sidade de agir sobre o conhecimento imperfeito Eles estatildeo firmemente compro-metidos com seus princiacutepios e conscientes de que nenhum conjunto de princiacutepios eacute infaliacutevel ou incorrigiacutevel O conhecimento eles passaram a entender eacute um processo infinito natildeo uma posse definitiva e o preccedilo que se paga por esse conhecimento eacute a duacutevida e o questionamento

Ao afastarem-se do que eacute absoluto aceitarem a necessidade de escolher a me-lhor entre alternativas imperfeitas e assumirem que a responsabilidade por essas escolhas as faz prosseguir pelo mundo aqueles do compromisso no relativismo satildeo perfeitamente capazes de natildeo apenas condenar posiccedilotildees contraacuterias aos seus proacuteprios princiacutepios mas de se colocarem no lugar de seus adversaacuterios e alcanccedilarem algum niacutevel de identificaccedilatildeo com eles

Eacute claro que natildeo haacute uma maneira clara de atrair os estudantes que estatildeo envol-vidos no relativismo (estaacutegio em que a maioria dos estudantes universitaacuterios de niacutevel baacutesico se encontra de acordo com Perry 1999) para a classe do compromisso no relativismo Poucos alunos se aproximaratildeo desse uacuteltimo estaacutegio ao concluiacuterem a carreira universitaacuteria Mas desde que o objetivo seja claro e nossos meacutetodos de ensino e nossa maneira de interagir com nossos alunos sejam congruentes com esse objetivo temos mais chance de levar aos alunos alguma coisa mais satisfatoacuteria para

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A construccedilatildeo do argumento

eles e para noacutes mesmos3 Se preferimos o argumento de Fish ao de Leo e se nossas preferecircncias estatildeo fundamentadas nos imperativos de nossa disciplina e de nosso modelo pedagoacutegico deveriacuteamos ser livres para compartilhar essa preferecircncia e o motivo de escolhecirc-la com nossos alunos

leo e fish parte iii os elementos do argumento

Um dos primeiros desafios que enfrentamos ao apresentar nossa noccedilatildeo de argumento para os alunos eacute dissipar as suposiccedilotildees erradas sobre o argumento que eles trazem para nossas salas de aula Afinal de contas eles adquiriram suas proacuteprias noccedilotildees de argumento muito antes de comeccedilarem o estudo formal do as-sunto Eles tiveram contato com argumentos em casa e na escola leram sobre isso em livros e jornais viram na televisatildeo escutaram no raacutedio e assistiram nos filmes incontaacuteveis vezes antes de entrarem na sala de aula onde pretendemos ensinar-lhes a escrever Dada a maneira natildeo sistemaacutetica como os alunos adquirem muito cedo o conhecimento sobre o argumento natildeo surpreende que eles possam precisar ser ldquodesatadosrdquo de algumas suposiccedilotildees antes de comeccedilar o ensino

No caso dos ensaios de Leo e Fish a primeira coisa que pode surpreender os alunos eacute o fato de que os dois ensaios natildeo dialogam entre si natildeo estatildeo em condiccedilatildeo de debate de ideias Embora os artigos de Leo e Fish tenham sido publicados no

3 ao usar o quadro de Perry (1999) para essa discussatildeo sobre o desenvolvimento do aluno natildeo queremos dizer que isso implica uma aceitaccedilatildeo sem criacutetica de sua teoria uma seacuterie de criacuteticas incisivas ao esquema de Perry foi feita nos anos setenta e oitenta particularmente por estudiosos feministas (por exemplo Gilligan Belenky e outros) que observaram o forte vieacutes masculino da pesquisa de Perry e sua incapacidade de explicar as diferenccedilas de gecircnero As formas de conhecimento das mulheres devemos reconhecer satildeo de fato diferentes das dos homens particularmente quando se trata de questotildees eacuteticas Dito isso as reaccedilotildees dos estudantes universitaacuterios em especial os estudantes de niacutevel inicial tanto do sexo masculino como feminino aos desafios colocados pelas aulas focadas no argumento parecem semelhantes agraves do esquema de Perry o que nos permite usaacute-las como um suporte para a presente discussatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

mesmo dia 15 de outubro de 2001 tratem do mesmo assunto e chegem a conclu-sotildees completamente diferentes por meio de raciociacutenios tambeacutem completamente diferentes parecem ter sido escritos sem alusatildeo de um ao outro Um artigo natildeo refuta ponto a ponto a ideia do outro e quando se contradizem o fazem pela inter-seccedilatildeo aleatoacuteria de ideias contraacuterias sem intenccedilatildeo de assumir uma postura oposta

Quando afirmamos que os argumentos mais importantes do dia satildeo cons-truiacutedos de maneira semelhante muitos estudantes surpreendentemente natildeo acham estranho As experiecircncias pessoais desses estudantes os levam a entender o argumento segundo um ldquomodelo de debaterdquo em que duas (ou algumas) pessoas inclinadas a ganhar disputam diretamente ideias opostas Alguns se atentam a tais argumentos pelo lado divertido ndash a possibilidade de que eles podem acabar violentamente lhes daacute vantagem ndash ou para apostar em um dos lados da disputa Outros natildeo se engajariam em tais argumentos ndash ou em versotildees falsas de um mesmo programa de TV ou raacutedio ndash para avaliaacute-los com cuidado observar os menos persu-asivos e criar novos a partir do confronto O modelo dominante de argumento natildeo eacute em suma um modelo dialeacutetico pois trata-se de algo semelhante a um jogo cujo resultado eacute zero a zero um esporte em equipe que natildeo possibilita a participaccedilatildeo ativa dos que assistem ou a busca das verdades mais criacuteveis4

Nosso modelo preferido de argumentaccedilatildeo permite a busca por melhores ideias a partir do que Burke chama de ldquobusca de vantagensrdquo Mas como Burke reconhe-cemos que pelo menos algum elemento da busca de vantagens pode ser encontrado em todos os argumentos por mais civilizado que seja o tom natildeo importa o grau de flexibilidade em relaccedilatildeo agrave oposiccedilatildeo de opiniotildees Ningueacutem discute simplesmente

4 No caso do debate entre Fish e Leo parece que estamos nos contradizendo e declarando nossa preferecircncia pelo argumento de fish Mas eacute preciso lembrar que o seu desacordo tem mais natureza de um meta-argumento do que de um argumento regular e como tal a razatildeo de nossa preferecircncia remonta ao fato de que Leo natildeo oferece nenhuma razatildeo para ouvir argumentos opostos enquanto Fish especificamente apela a uma abordagem dialeacutetica para o desacordo como a que estamos apoiando aqui

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A construccedilatildeo do argumento

para encontrar as melhores ideias Eacute importante no iniacutecio do semestre desacos-tumar os alunos de suas ideias de argumento excessivamente violentas para natildeo exagerar no teor da nossa proacutepria empreitada e assim deixaacute-los mais desiludi-dos O argumento afinal normalmente envolve algum investimento do ego e do coraccedilatildeo bem como da mente e do julgamento A maioria de noacutes assume os riscos do argumento ndash o risco de alienar as pessoas de suscitar a oposiccedilatildeo de perder o ponto e de ter isso apontado nem sempre gentilmente em um ambiente puacuteblico ndash somente se nossas crenccedilas ou interesses mais caros estatildeo em jogo Ateacute mesmo o mais altruiacutesta dos argumentadores deseja se natildeo ganhar um argumento pelo menos ldquoacertarrdquo Perder um argumento ou mesmo ter um argumento colocado em duacutevida pode muito bem exigir que voltemos e reexaminemos as crenccedilas que ancoram nossa identidade

Portanto o argumento eacute arriscado em parte porque estamos buscando vanta-gem para nossos interesses e crenccedilas ou estamos lutando para impedir que outros tirem vantagem em relaccedilatildeo aos seus interesses e crenccedilas No entanto dito isso a maioria de noacutes mesmos ndash ou talvez sobretudo os terroristas ndash acredita verdadei-ramente que a serviccedilo de nossos proacuteprios interesses satildeo mobilizados interesses maiores e que a transmissatildeo de nossas crenccedilas direciona a verdade e justiccedila para os outros Certamente todos noacutes nos encontramos agraves vezes na posiccedilatildeo de apoacutes-tolos de senatildeo da injusticcedila de ideias que satildeo pelo menos as injustas de conjunto ruim No entanto mesmo nessa busca haacute uma certa nobreza e os alunos devem ser lembrados disso no iniacutecio do semestre

O que gerou os argumentos de Fish e Leo foi um evento o 11 de setembro que levou muitos americanos a mudar suas percepccedilotildees e hipoacuteteses sobre o mundo Ateacute 11 de setembro de 2001 haacute seacuteculos nenhum poder estrangeiro conseguiu invadir os Estados Unidos ou matar um nuacutemero significativo de cidadatildeos americanos em solo americano Apoacutes o 11 de setembro nosso senso de invulnerabilidade e do nos-so papel no mundo exigiu um reexame enquanto nossas crenccedilas sobre a atitude do resto do mundo em relaccedilatildeo a noacutes tiveram que ser radicalmente revisadas Em

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A construccedilatildeo do argumento

suma os acontecimentos do 11 de setembro representam um exemplo claacutessico do que na retoacuterica eacute referido como uma ldquoexigecircnciardquo De acordo com Bitzer (1995 p 304) que cunhou o termo haacute quarenta anos como parte de seu olhar revisionista sobre a situaccedilatildeo retoacuterica ldquoqualquer exigecircncia eacute uma imperfeiccedilatildeo marcada pela urgecircncia Eacute um defeito um obstaacuteculo algo que espera ser feito algo que eacute diferente do que deveria serrdquo Uma exigecircncia natildeo pode ser na linguagem do debate um pro-blema ldquoinerenterdquo um aspecto imutaacutevel da condiccedilatildeo humana digamos que desfia a soluccedilatildeo e natildeo pode ser um problema que possa ser resolvido diretamente por meios extra verbais ldquoUma exigecircncia eacute retoacuterica quando eacute capaz de ser modificada positivamente e quando essa modificaccedilatildeo requer um discurso ou pode ser assistida pelo discursordquo (BITZER 1995 p 304)

O ataque terrorista de 11 de setembro exigia um ldquodiscursordquo de cada um de noacutes quer em nossas respostas em silenciosos soliloacutequios quer em voz alta ou impressas para conhecimento puacuteblico O que noacutes fizemos do ataque Como deve-mos responder como naccedilatildeo e como indiviacuteduos A maioria dos americanos tentou articular seus sentimentos sobre o ataque e encontrar algum modo de formar um julgamento eacutetico sobre ele Muitas vezes olhaacutevamos para especialistas de confian-ccedila como Leo e acadecircmicos como Fish que compartilhavam seus pensamentos na miacutedia em busca de ajudar para encontrar a expressatildeo dos pensamentos que nos iludiram e das ideais que poderiam nos guiar

Tanto Fish quanto Leo compartilham o necessaacuterio senso de urgecircncia sobre o que precisa ser feito em resposta ao problema Para Leo a liccedilatildeo do 11 de setembro eacute a de que chegou o momento de comeccedilar a empurrar a ldquoesquerda multicultural--terapecircuticardquo para longe de seu relativismo superficial e oferecer uma frente unida presumivelmente ldquomonoculturalrdquo em oposiccedilatildeo agrave ameaccedila terrorista Eacute uma linha de pensamento que parece antecipar algumas linhas de pensamento seguidas posteriormente por nossa lideranccedila poliacutetica o mundo mudou em 11 de setembro atraveacutes de um chamado para uma revisatildeo de nossas prioridades poliacuteticas e de nosso sistema de valores (ou um retorno aos nossos valores fundamentais) incluindo o

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A construccedilatildeo do argumento

sacrifiacutecio de algumas liberdades em troca de uma melhor seguranccedila Nosso inimigo eacute o ldquoterrorismordquo ou alguma variaccedilatildeo dele (ldquofascismo islacircmicordquo ldquomovimento ter-rorista internacionalrdquo ldquoextremistas muccedilulmanosrdquo) que tem natureza monoliacutetica sombria e niilista Em oposiccedilatildeo a esse inimigo noacutes devemos ser intransigentes mesmo sozinhos se outros membros da comunidade internacional natildeo compar-tilham de nossa visatildeo

Da mesma forma o ensaio de Fish parece antecipar muitos dos argumentos apresentados por eventuais criacuteticos da guerra no Iraque depois que o Iraque se tornou de fato um campo de testes para ideias muito parecidas com as apoiadas por Leo O que resultou eacute um exemplo claacutessico do que aconteceu ao longo da histoacuteria quando as ideias absolutistas foram testadas na realidade O modelo monoliacutetico do mal correu contra a natureza heterogecircnea de uma sociedade profundamente dividida Embora os grupos terroristas tenham entrado na briga depois da ocu-paccedilatildeo americana a maior parte da violecircncia apoacutes 2003 foi a sectaacuteria infligida por grupos especiacuteficos cada qual ldquocom uma lista completa de queixas metas e estrateacutegiasrdquo buscando vantagem para seus interesses

Uma das questotildees interessantes levantadas pela noccedilatildeo de exigecircncia eacute o grau em que o ldquodefeitordquo ou o ldquoobstaacuteculordquo estaacute no mundo em relaccedilatildeo ao que eacute percebido Nossa proacutepria leitura ldquorealistardquo dos dois artigos imporia uma exigecircncia nos dois lugares Ou seja os artigos de Fish e Leo satildeo ao mesmo tempo respostas a um acontecimento no mundo independente do poder da linguagem para mudaacute-lo ou invertecirc-lo e continuaccedilotildees da formaccedilatildeo dos dois escritores para a vida a partir dos seus sistemas de crenccedilas Enquanto Leo sugere que o 11 de setembro mudou o mundo (o mundo que ele descreve no rastro do que houve em 11 de setembro eacute um mundo que tem muito em comum com a distopia que ele descreveu por mui-tos anos) e sua receita para lidar com o poacutes 11 de setembro eacute consistente com as propostas de reforma que ele realizou desde os anos de 1960

Da mesma forma a resposta liberal de Fish (embora Fish normalmente esca-pa a roacutetulos como liberalconservador sua posiccedilatildeo sobre essa questatildeo particular

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A construccedilatildeo do argumento

alinha-se com a posiccedilatildeo que muitos liberais finalmente tomaram sobre a questatildeo) ao problema do 11 de setembro ecoa ideias que ele tem articulado por mais de trinta anos nos domiacutenios da teoria literaacuteria e juriacutedica Sua insistecircncia de que de-vemos atender agraves particularidades das queixas de nossos inimigos para entender suas motivaccedilotildees as quais somos confrontados eacute uma parte da sua insistecircncia de que devemos ficar atentos aos detalhes dos textos para elaborar seu sentido no contexto das intenccedilotildees dos autores Sua afirmaccedilatildeo de que ao justificar nossas res-postas ao 11 de setembro soacute podemos apelar para aquelas verdades contingentes que compartilhamos com outros membros de uma comunidade que compartilha nossas crenccedilas - ldquoo registro de aspiraccedilatildeo e realizaccedilatildeo que compotildee nossa compre-ensatildeo coletiva do que vivemosrdquo - eacute uma parte da sua crenccedila de que as comunidades de leitores elaboram padrotildees de sentido e interpretaccedilatildeo entre si

Nosso interesse em relacionar os argumentos de Leo e Fish sobre o 11 de setembro com a visatildeo de mundo mais ampla deles vai aleacutem de qualquer interesse em rotular corretamente suas posiccedilotildees poliacuteticas Entender a fonte de suas rei-vindicaccedilotildees eacute diriacuteamos fundamental para entender o tom que os dois escritores assumem ao se expressarem Estabelecer cedo uma maneira razoavelmente clara de falar sobre questotildees de tom nas aulas de argumento eacute fundamental em virtude das dificuldades que muitos estudantes enfrentam para encontrar uma tonalida-de apropriada para seus argumentos Parte dessa dificuldade ocorre em funccedilatildeo dos diferentes estaacutegios de desenvolvimento nos quais os estudantes chegam em nossas aulas

Os estudantes inclinados para o dualismo por exemplo podem adotar um tom excessivamente agressivo em seus argumentos (embora poucos dualistas com-pletos apareccedilam no primeiro dia em nossas aulas eacute uma posiccedilatildeo da qual alguns estudantes particularmente os de primeiro ano se retiram quando se sentem ameaccedilados intelectualmente) Eacute importante lembrar que muita coisa estaacute em jogo para um dualista quando precisa justificar ideias que ele julga injustificaacuteveis Um sintoma dessa ansiedade seraacute uma certeza com tom agressivo mas sem convicccedilatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

As posiccedilotildees independente do grau seratildeo pouco defendidas pouco qualificadas e sem convicccedilatildeo absoluta Os julgamentos categoacutericos controversos particularmente os julgamentos morais seratildeo respondidos como se fossem ordens Os argumentos opostos seratildeo descartados mesmo que pareccedilam fortes para uma terceira pessoa Qualquer leitor que natildeo esteja totalmente de acordo com o autor de um argumento pode se sentir mais intimidado do que persuadido

Os estudantes que estatildeo no estaacutegio da multiplicidade entretanto tambeacutem tendem a ver suas posiccedilotildees e julgamentos como evidentes natildeo porque eles satildeo a Uacutenica Verdade mas porque todo mundo acreditar em tudo o que quer O tom ado-tado pelos estudantes em multiplicidade seraacute consideravelmente menos belicoso do que o dos seus pares em dualismo Eles natildeo satildeo ameaccedilados pelo desacordo afinal as pessoas inevitavelmente veem as coisas de forma diferente Um argu-mento para eles eacute apenas uma maneira de deixar as pessoas saber ldquode onde elas vecircmrdquo Na verdade muitas vezes eacute difiacutecil discordar de suas posiccedilotildees Quanto mais abstrata a posiccedilatildeo que assumem no final das contas mais difiacutecil eacute contestar sua premissa baacutesica a de que natildeo haacute necessidade real de diferenciar posiccedilotildees Se o dualista tende para um tom excessivamente belicoso o adepto da multiplicidade tende para um tom excessivamente brando

Para ajudar os alunos a reconhecer as origens intelectuais do tom e as limi-taccedilotildees que enfrentam se eles satildeo incapazes de moderar o tom eacute uacutetil analisar as questotildees de tom em artigos como os de Fishs e Leo Como esses escritores satildeo consideravelmente mais sofisticados do que a maioria dos escritores aprendizes suas diferenccedilas de tom embora significativas satildeo menos riacutegidas do que as que vemos em nossas aulas O tom de Fish pode ser atribuiacutedo agrave sua crenccedila de que a verdade deve ser redescoberta e renegociada agrave medida que os textos mudam e a de que a verdade natildeo consiste em uma correspondecircncia entre seu vocabulaacuterio e o estado de coisas do mundo mas da justificativa mais persuasiva entre as versotildees concorrentes de verdade O tom de Leo por sua vez deriva de sua crenccedila de que existe uma verdade universal que natildeo eacute alterada pelas circunstacircncias Aqueles que

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A construccedilatildeo do argumento

pensam em linha reta como Leo possuem a verdade e o bem absolutos Os que pensam como os bispos obscurecem nossa visatildeo de verdade e de bem e permitem que o erro e o mal penetrem no mundo

Correndo o risco de exagerar nessas diferenccedilas descreveriacuteamos o tom de Fish como o mais proacuteximo do de um mentor ou guia algueacutem preocupado simultanea-mente em esclarecer duacutevidas e complicar a compreensatildeo de seus leitores sobre as coisas Trata-se de uma relaccedilatildeo assimeacutetrica para ser mais preciso Fish eacute o pro-fessor e noacutes somos seus alunos mas agrave medida que ele parece acreditar que somos capazes de seguir uma linha complexa de raciociacutenio ele natildeo eacute condescendente O tom de Leo ao contraacuterio parece mais com o de um avaliador ou julgador raacutepido e criacutetico Sua preocupaccedilatildeo eacute esclarecer questotildees simplificando-as a fim de facilitar um julgamento moral soacutelido

O tom de Leo se estabelece no iniacutecio de sua primeira frase ao usar a expressatildeo ldquovergonhosardquo antes mesmo de nos informar sobre a declaraccedilatildeo dos bispos Depois apoacutes retomar dois trechos da declaraccedilatildeo ele diz aos seus leitores o que os bispos dizem ldquode forma clarardquo antes de concluir que eacute ldquoum engano moralrdquo A clareza moral e linguiacutestica satildeo uma peccedila importante para Leo Ele se preocupa pouco portanto com aqueles que se interessam pelas ldquocausas-raizrdquo e pela compreensatildeo dos atos ldquono contextordquo Para fixar a histoacuteria ele oferece uma traduccedilatildeo ldquode forma clarardquo dessa conversa moral e linguisticamente absurda Os bispos realmente querem dizer que ldquoa impiedosa e imperialista Ameacuterica trouxe os ataques contra si mesmardquo Ao longo de sua criacutetica Leo oferece pouca evidecircncia para suas generalizaccedilotildees e poucos detalhes para ajudar seu puacuteblico a identificar os multiculturalistas os relativistas morais e os cidadatildeos de cultura terapecircutica

A citaccedilatildeo de ldquoum estudante de Nova Yorkrdquo eacute a uacutenica que apoia uma ampla generalizaccedilatildeo sobre as praacuteticas educacionais lastimaacuteveis da educaccedilatildeo superior americana enquanto a declaraccedilatildeo dos bispos eacute apresentada como ldquoum pequeno exemplo do que poderia ser um grande problemardquo a incapacidade dos liacutederes mo-rais ldquopara dizer claramente que o mal existerdquo

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A construccedilatildeo do argumento

Se a opiniatildeo de Leo sobre a declaraccedilatildeo dos bispos eacute na verdade acurada e justa o tom de seu artigo pode ser atribuiacutedo mais agrave indignaccedilatildeo moral legiacutetima do que aos costumes concernentes ao seu sistema de crenccedilas No entanto mesmo um simpatizante do ponto de vista de Leo teria problemas para alinhar o resumo da declaraccedilatildeo dos bispos com o texto integral dessa declaraccedilatildeo Comeccedila-se de fato anunciando que ldquo[] uma nova solidariedade com aqueles de outras partes do mundo para quem as forccedilas malignas do terrorismo satildeo um medo e uma realidade contiacutenuosrdquo (bispos) Para ter certeza de que Leo e os bispos natildeo parecem definir o mal da mesma maneira os bispos natildeo parecem satisfeitos em deixar o epiacuteteto ldquomalrdquo servir de explicaccedilatildeo completa para a motivaccedilatildeo do ato dos terroristas No entanto eles dizem que ldquoclaramente o mal existerdquo e que atos terroristas como o de 11 de setembro satildeo qualificados como atos malignos

Nossa preocupaccedilatildeo aqui natildeo eacute desconsiderar a criacutetica que Leo faz aos bispos Nossa preocupaccedilatildeo eacute enfatizar ateacute que ponto o tom do artigo de Leo natildeo deriva de uma consciecircncia ldquoobjetivardquo de um mundo independente de suas percepccedilotildees mas do sistema de crenccedilas atraveacutes do qual ele percebe esse mundo Enquanto Leo sem duacutevida consideraria essa controveacutersia excessiva uma bobagem relativa Fish natildeo As diferenccedilas de tom entre os dois escritores diriacuteamos natildeo eacute uma consequecircncia do fato de um ser menos objetivo do que o outro mas de um ser mais conscien-te do que o outro de que a objetividade total eacute atrativa e enganosa Em lugar da verdade absoluta e da objetividade Fish abraccedila alguma coisa da ordem da inter-subjetividade Em sua opiniatildeo estamos unidos por ldquovalores particulares vividosrdquo e compartilhamos ldquoo registro de aspiraccedilatildeo e realizaccedilatildeo que compotildee nosso enten-dimento coletivo do que vivemosrdquo A visatildeo pragmaacutetica de Fish da verdade como faliacutevel e particular reflete-se em seu tom que rivaliza com o dinamismo de Leo mas eacute menos julgador e mais cauteloso quanto agrave nomeaccedilatildeo das coisas No cerne de seu artigo de fato reside sua rejeiccedilatildeo da rotulagem redutora sua preocupaccedilatildeo em complicar as versotildees do poacutes-modernismo do relativismo e do terrorismo En-quanto Fish diz que ele encontra a pergunta do repoacuterter sobre ldquoo fim do relativismo

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poacutes-modernordquo que comeccedila seu artigo ldquobizarrordquo ele passa a oferecer uma resposta cuidadosa atribuindo a interpretaccedilatildeo errocircnea que o repoacuterter faz do termo natildeo a algum lapso moral mas como ldquouma forma rarefeita de conversa acadecircmicardquo com a qual o repoacuterter natildeo eacute normalmente acostumado

Ao expressar nossa preferecircncia pelo estilo de Fish estamos evidentemente reafirmando nossa simpatia pela sua visatildeo de mundo Essa preferecircncia no entanto natildeo eacute simplesmente ldquosubjetivardquo no mesmo sentido que algueacutem como Leo usaria esse termo Nossa simpatia com o ponto de vista de Fish e seu modo de expressatildeo eacute profissional e pessoal As ideias que ele expressa e a forma como expressa estatildeo mais em harmonia com nossos propoacutesitos disciplinares do que as de Leo Os pen-samentos e o tom de Fish satildeo em nossa opiniatildeo mais propensos a oferecer uma melhor abordagem sobre o assunto em questatildeo do que os pensamentos e o tom de Leo A hipoacutetese de um argumento valer mais que o outro no mercado de ideias eacute outra questatildeo Esses julgamentos satildeo mais difiacuteceis de fazer e mais especiacuteficos para o puacuteblico do que o julgamento dos efeitos dos argumentos sobre a compre-ensatildeo da questatildeo Para entender melhor essa relaccedilatildeo complexa muitas vezes mal compreendida entre os argumentos preferidos em um dia pelo puacuteblico e os que levam o puacuteblico a reexaminar os problemas passamos agora a considerar um continuum de praacuteticas de argumento e a medida usada para organizaacute-los ao longo desse continuum

argumento e ldquoa purifiCaccedilatildeo da guerrardquo

O subtiacutetulo para esta seccedilatildeo foi tirado da epiacutegrafe latina da A Grammar of Motives (Uma Gramaacutetica dos Motivos) de Burke (1966) ndash Ad bellum purificandum Trata-se ao mesmo tempo de um sentimento muito modesto ndash afinal muito cedo viu-se a guerra acabar completamente ndash e um muito ambicioso ndash agrave medida que a guerra cresceu exponencialmente de forma mais selvagem no novo seacuteculo desejamos o que pudesse atenuar seus terriacuteveis efeitos Eacute tambeacutem uma epiacutegrafe que poderia servir

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para introduzir a obra inteira de Burke pois capta claramente o objetivo primaacuterio da retoacuterica como ele imagina a transformaccedilatildeo de impulsos destrutivos em atos criativos e cooperativos da inimizade em identificaccedilatildeo da guerra em argumento

Como observamos anteriormente Burke eacute bastante realista para sustentar que essa transformaccedilatildeo nunca poderaacute ser completa em todos os argumentos permaneceraacute um elemento residual de agressatildeo e busca de vantagens por mais nobre que seja a causa em nome da qual o argumento eacute feito No entanto Burke eacute tambeacutem muito idealista para acreditar que outros interesses de quem argumenta satildeo sempre servidos pelo argumento O uacutenico caso em que as necessidades e cren-ccedilas de um puacuteblico podem ser ignoradas eacute o do argumentador que se convence de que sua cooperaccedilatildeo seraacute garantida pela forccedila se o seu argumento falhar e passa a argumentar praticamente pelas mesmas razotildees pelas quais os ditadores realizam eleiccedilotildees Joseph Heller capta perfeitamente o espiacuterito do ldquopoder da forccedilardquo disfar-ccedilado de argumento uma praacutetica hegemocircnica muito familiar para o puacuteblico do seacuteculo XXI em um diaacutelogo do romance Catch-22 O diaacutelogo apresenta a conversa entre o protagonista do romance Yossarian com seu inimigo Milo Minderbinder sobre o fato de Milo ter oferecido a um ladratildeo italiano algumas tacircmaras em troca de um lenccedilol e depois ter se recusado a entregar as tacircmaras quando o ladratildeo lhe deu o lenccedilol

ldquoPor que vocecirc natildeo bateu na cabeccedila dele e tomou o lenccedilolrdquo Yossarian per-guntouPressionando os laacutebios com dignidade Milo balanccedilou a cabeccedila ldquoIsso te-ria sido muito injustordquo Repreendeu com firmeza ldquoUsar a forccedila eacute errado e dois erros nunca formam um acerto Foi muito melhor a maneira como eu agi Quando eu segurei as tacircmaras para ele e peguei o lenccedilol ele pro-vavelmente pensou que eu queria negociarrdquoldquoO que vocecirc estava fazendordquoldquoNa verdade eu estava negociando mas como ele natildeo entende inglecircs eu posso negar semprerdquo

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ldquoSupomos que ele estaacute bravo e quer as tacircmarasrdquo ldquoPor que vamos bater na cabeccedila dele e tomar as tacircmarasrdquo Milo respon-deu sem hesitar (HELLER 1961 p 68)

Esse eacute entatildeo o argumento que aparece na extremidade esquerda do continuum onde a forccedila aparece de forma ameaccediladora por traacutes de cada artimanha persuasiva Quais os tipos de praacuteticas argumentativas se encontram no final desse continuum A propaganda e a publicidade vecircm imediatamente agrave mente Os argumentos dos pais que terminam com aquela frase honrosa que anuncia simultaneamente a vitoacuteria e admite a derrota (Porque eu disse) certamente caem em qualquer lugar do lado esquerdo das coisas Entatildeo agrave medida que se avanccedila para a direita em direccedilatildeo a formas mais ldquopurificadasrdquo de combate encontra-se a praacutetica do direito da nego-ciaccedilatildeo do trabalho e da educaccedilatildeo Por fim na posiccedilatildeo mais distante da forccedila haacute as mais puras praacuteticas persuasivas que parecem natildeo ser persuasivas O exemplo que Burke usa eacute a escrita de um livro Vamos examinar mais de perto as caracteriacutesticas dessas diferentes praacuteticas mas antes disso precisamos articular o princiacutepio usado para distinguir entre essas vaacuterias formas de persuasatildeo um princiacutepio a que Burke se refere de vaacuterias maneiras ldquointerferecircnciardquo ou ldquoautointerferecircnciardquo

Para entender esse princiacutepio eacute uacutetil ter em mente uma das metaacuteforas favoritas de Burke para a persuasatildeo responsaacutevel a praacutetica do namoro que eacute em si uma versatildeo ldquopurificadardquo de praacuteticas consideravelmente menos aparentes Se o namoro reina no extremo direito do continuum espera-se encontrar o equivalente persuasivo a algo como asseacutedio sexual na extremidade esquerda O asseacutedio sexual eacute uma relaccedilatildeo predatoacuteria baseada na assimetria atraveacutes da qual uma das partes usa seu poder sobre o outro para coagir o afeto No entremeio as artes da seduccedilatildeo entram em jogo como o sedutor finge ser o que sua presa deseja que ele seja e diz a ela o que quer ouvir a fim de alcanccedilar sua proacutepria gratificaccedilatildeo No lado direito do continuum entretanto haacute um casal de namorados com uma relaccedilatildeo respeitosa baseada na mutualidade que inevitavelmente inclui o sexo e muitos outros desejos Com cer-

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teza cada pessoa em um namoro faraacute o que puder para se tornar desejaacutevel para a outra para persuadi-la como base na sua melhor caracteriacutestica como parceiro Certamente a atraccedilatildeo sexual desempenharaacute um papel na relaccedilatildeo mas cada um estaacute disposto no momento a adiar sua satisfaccedilatildeo em nome do aumento do seu senso de identificaccedilatildeo com a outra pessoa superando os distanciamentos de classe gecircnero nacionalidade religiatildeo ou qualquer categoria que possamos usar para classificar a raccedila humana Enquanto que nos casos anteriores as relaccedilotildees satildeo apenas um meio para a satisfaccedilatildeo sexual de um dos parceiros ndash na formulaccedilatildeo de Martin Buber uma claacutessica relaccedilatildeo ldquoEu-Issordquo (BURBER 2001) ndash no namoro a relaccedilatildeo eacute um fim em si (ldquoEu-Turdquo) para ambos os parceiros Se algueacutem estender a metaacutefora do namoro para aleacutem da extremidade esquerda do continuum encontrar-se-ia no escuro reino do estupro e da agressatildeo sexual No extremo direito do continuum encontrar-se-ia no reino luminoso do celibato quando uma freira se declara noiva de Cristo Todas as praacuteticas que encaixam ao longo do continuum entretanto satildeo uma combinaccedilatildeo de interesse proacuteprio e desejo fiacutesico e uma vontade de interferir nos impulsos naturais de uma pessoa para outros fins

Voltando agora agraves praacuteticas reais de persuasatildeo que se inscrevem no continuum da autointerferecircncia comeccedilamos pela propaganda e pela publicidade Essas praacuteticas satildeo diz Burke muito ldquoendereccediladasrdquo jaacute que satildeo obsessivamente focadas no puacuteblico Trata-se de uma relaccedilatildeo assimeacutetrica com o anunciante ou publicitaacuterio que tem pelo menos algum controle no caso de alguns publicitaacuterios um monopoacutelio virtual sobre o acesso do puacuteblico agrave informaccedilatildeo e agrave compreensatildeo Embora os anunciantes e os pu-blicitaacuterios sejam raacutepidos no elogio ao seu puacuteblico especialmente agrave sua inteligecircncia seus conselhos sobre como conquistar o puacuteblico demonstram pouca importacircncia agrave inteligecircncia das pessoas Eles gastam muito tempo e quantidades extraordinaacuterias de dinheiro para explorar a psique e os pontos fracos emocionais de seu puacuteblico Nenhum outro grupo entre aqueles que praticam a arte da persuasatildeo se preocupa em gastar tanto tempo para descobrir maneiras de explorar a vulnerabilidade do puacutebico como os anunciantes e os publicitaacuterios O livro Mein Kampf (Minha Luta) de

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Hitler por exemplo eacute um claacutessico da teoria da propaganda e uma anaacutelise completa da psicologia do puacuteblico Observando a habilidade de Hitler na manipulaccedilatildeo de seu puacuteblico Burke chama a atenccedilatildeo para a maneira muito calculada como ldquoele mede resistecircncias e oportunidades com a lsquoracionalidadersquo de um profissional qualificado que planeja uma nova campanha de vendas A poliacutetica diz ele deve ser vendida como sabatildeo ndash e o sabatildeo natildeo eacute vendido em transerdquo (BURKE 1941 p 216) Os publi-citaacuterios contemporacircneos durante esse tempo satildeo implacaacuteveis quando buscam as conexotildees entre informaccedilatildeo demograacutefica e psicograacutefica (haacute sessenta e quatro grupos distintos de consumidores dispostos em uma grade psicograacutefica usada por anunciantes) e haacutebitos de compra do consumidor

Enquanto os estilos antigos de teorias comportamentais estatildeo fora de moda entre a maioria dos psicoacutelogos acadecircmicos nos dias de hoje os anunciantes e pu-blicitaacuterios ainda trabalham com a manipulaccedilatildeo de estiacutemulos para obter a resposta desejada Como engenheiros que ainda se baseiam no antigo paradigma newtoniano para construir pontes e arranha-ceacuteus os publicitaacuterios e os behavioristas parecem achar que o paradigma mecanicista ultrapassado funciona muito bem quando se trata de vender sabatildeo e poliacutetica

Embora toda a propaganda seja por definiccedilatildeo predatoacuteria como sugerimos anteriormente vamos considerar mais adiante os usos recentes da propaganda que abrange uma gama mais ampla de praacuteticas algumas das quais satildeo bastante benignas A publicidade por exemplo eacute usada para promover as contribuiccedilotildees tanto de obras de caridade como as utilidades de uma marca de sabatildeo De fato dentro de cada categoria de praacuteticas persuasivas encontrar-se uma seacuterie de praacuteticas que em vaacuterios graus satildeo uacuteteis por um lado ou ldquonegativasrdquo por outro

Alguns anuacutencios podem fazer pouco mais do que apresentar referecircncias po-sitivas sobre seu produto para pessoas desinteressadas Agraves vezes a propaganda pode servir a um objetivo de poliacutetica puacuteblica altruiacutesta e em vez de contar ldquoa Grande Mentirardquo como Goebbels (o Ministro da Propaganda na Alemanha Nazista entre 1933 e 1945) recomenda pode simplesmente reter informaccedilotildees que complicariam

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seu argumento No entanto tomadas como um todo essas praacuteticas natildeo promovem a auto interferecircncia de forma grave apenas na medida em que algueacutem altera o seu proacuteprio roteiro em reconhecimento de que um roteiro diferente favorece mais a aceitaccedilatildeo do seu puacuteblico e interfere nas proacuteprias vontades Mas isso eacute mais uma questatildeo de subordinar uma forma de satisfaccedilatildeo agrave outra No final seu puacuteblico eacute sempre um meio para atingir seus fins

Agrave medida que se avanccedila para o centro do continuum as praacuteticas juriacutedicas persuasivas servem como modelo Embora muitos colocariam a arte dos juristas mais agrave esquerda em nosso continuum o argumento legal eacute consideravelmente mais limitado em sua capacidade de seduzir ou enganar seu puacuteblico do que a propaganda e o anuacutencio Haacute aliaacutes consideravelmente mais paridade entre argumento e puacuteblico na arena legal do que na arena da poliacutetica e do consumo A retenccedilatildeo de informaccedilotildees por exemplo que pode ser bem vista como elemento de uma campanha virtuosa para mudar o rumo das coisas no domiacutenio da poliacutetica e da publicidade pode ser uma infraccedilatildeo puniacutevel no acircmbito da lei Devido ao caraacuteter contraditoacuterio do sistema juriacutedico os lapsos de seus argumentos satildeo vulneraacuteveis agrave divulgaccedilatildeo e agrave exploraccedilatildeo (nosso sistema poliacutetico eacute nominalmente contraditoacuterio mas haacute poucas regras para controlar o discurso poliacutetico e a toleracircncia puacuteblica para o raciociacutenio falacioso e ateacute mesmo para a hipocrisia quase serve para encorajar a interferecircncia entre poliacuteticos) A lei oferece todo tipo de restriccedilotildees formais para os advogados que manipulam seu puacuteblico Os advogados mais atentos podem usar informaccedilotildees demograacuteficas e psicograacuteficas para defender seu ponto de vista quando conhecem os criteacuterios de escolha dos jurados Apesar de todas as suas falhas o raciociacutenio juriacutedico impotildee vaacuterias formas de ingerecircncia aos participantes ao logo de todo o sistema de julga-mento ateacute o topo em que os juiacutezes da Suprema Corte esperam escrever opiniotildees para a posteridade

Burke usa a curiosa metaacutefora da escrita de um livro para explicar a forma ldquomais purardquo de persuasatildeo o equivalente a um grande namoro Aqui o princiacutepio da auto-interferecircncia natildeo eacute imposto por preocupaccedilotildees com o puacuteblico nem por

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regras convenccedilotildees e receios de puniccedilatildeo ou exposiccedilatildeo A restriccedilatildeo exigida da pura persuasatildeo eacute inteiramente auto imposta A auto interferecircncia de um autor responde agraves exigecircncias do livro que estaacute criando ldquo[] as exigecircncias satildeo condicionadas pelas partes jaacute escritas de modo que o livro se torna de certa forma algo natildeo previsto pelo autor e exige que ele interfira nas suas intenccedilotildees originaisrdquo (BURKE 1969 p 269) Essa interferecircncia natildeo eacute mais esteacutetica do que eacutetica e a pureza da persuasatildeo pura eacute mais a pureza formal da ldquoarte por causa da arterdquo do que a pureza moral da santidade

Dito isso Burke (1969 p 271) atribui agrave pura persuasatildeo ldquoum alto valor eacuteticordquo na medida em que impotildee uma ordem diferente de obrigaccedilotildees agravequeles que a ex-perimentam algo como ldquoverdade pelo amor agrave verdaderdquo As formas mais puras de argumentaccedilatildeo satildeo de natureza dialeacutetica uma abordagem de ideias com um mo-vimento e uma integridade proacuteprios que natildeo leva em conta as necessidades e os desejos de um puacuteblico Assim como a arte pela arte que produz arte frequentemen-te arte de forma a tocar o puacuteblico sem criar expectativas de reaccedilatildeo o argumento da extrema direita do continuum pode ter pouco sucesso escasso no mercado No entanto como as melhores obras que surgem do movimento da arte pela arte os argumentos puramente persuasivos podem eventualmente ter uma aceitaccedilatildeo tar-dia pelo puacuteblico em parte porque eles mudam a forma como as pessoas pensam sobre um dado assunto

No fim claro a persuasatildeo pura desse tipo natildeo eacute uma meta para os estudantes de mas eacute uma tendecircncia dentro do argumento um contrapeso agraves tendecircncias opos-tas para um foco exclusivo ndash e muitas vezes predatoacuterio ndash no puacuteblico Ao apresentar os alunos o conceito de persuasatildeo pura eacute bom lembrar um sentido alternativo para o termo argumento ndash o ldquocernerdquo ou a ldquoessecircnciardquo de uma parte de um grande discurso Procurar o cerne de qualquer que seja o discurso eacute um haacutebito comum a todos os leitores criacuteticos Quanto mais complexo eacute o discurso que estamos lendo mais provaacutevel seraacute a identificaccedilatildeo de argumentos opostos menos encontraremos uma tese inequiacutevoca ou uma afirmaccedilatildeo principal na uacuteltima frase do primeiro pa-

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raacutegrafo ndash onde muitos de nossos alunos foram ensinados a procurar ndash A essecircncia eacute uma siacutentese de ideias diacutespares e um produto comum aos poderes interpretativos do leitorouvinte e agraves propriedades do discurso que eacute interpretado Natildeo eacute o que resta quando uma ideia supera a outra um trofeacuteu ou os louros para o vencedor eacute um ato criativo uma versatildeo retoacuterica da essecircncia no sentido ontoloacutegico No final das contas ensinamos argumento para isto para estimular o pensamento dos nossos alunos sobre o mundo para ajudaacute-los a aprender a compreender o julga-mento (para cultivar a arte do debate) de suas proacuteprias ideias bem como das dos outros para testaacute-lo de forma suficiente no rebate de ideias opostas e respeitar o resultado dessa combinaccedilatildeo

por Que os alunos preCisam argumentar

Ateacute aqui apresentamos uma definiccedilatildeo de argumento congruente com nossos propoacutesitos disciplinares e crenccedilas pessoais Nesta proacutexima seccedilatildeo mudamos nosso foco para as habilidades que podem ser esperadas dos alunos que fazem um curso baseado no argumento Qual o papel do estudo do argumento no curriacuteculo e na vida dos alunos Agrave medida que projetamos nossos cursos e nossos objetivos precisamos ter em mente esse papel e moldar nossa pedagogia em torno dele A seguir vamos nos concentrar em trecircs funccedilotildees particularmente importantes do argumento um meio de ensinar mais facilmente o conjunto de competecircncias que se pode aprender em um curso de escrita um meio de construccedilatildeo e defesa da identidade e um meio para o desenvolvimento do raciociacutenio eacutetico

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argumento e letramento CrIacutetiCo

Embora natildeo haja um uacutenico nome para o grupo altamente heterogecircneo de habi-lidades que os alunos podem aprender em um curso de escrita focado no argumento vamos nos referir a esse conjunto aqui como ldquoletramento criacuteticordquo um conceito que apresenta diferentes contornos e como veremos em breve eacute um pouco contro-verso Tentaremos precisar uma definiccedilatildeo proacutexima da forma como vamos usar e que minimize alguns de seus aspectos mais controversos Ao definir o letramento criacutetico conveacutem dizer que sabemos mais sobre o que natildeo eacute do que sobre o que eacute Certamente natildeo eacute o que era feito com a escrita na escola tradicional a ecircnfase em formas preacute-fabricadas e em leitores passivos O curriacuteculo tradicional natildeo soacute natildeo encorajava os alunos a pensar ldquofora da caixardquo como tambeacutem os encorajava a pensar em tudo como robocircs ateacute mesmo no que diz respeito agrave escrita que eacute um fenocircmeno inerentemente complexo e singular Seu objetivo aparente era o letramento no sentido mais antigo de competecircncia miacutenima embora fosse sendo ampliada ateacute a faculdade Natildeo encorajava o engajamento ou a reflexatildeo pessoal Certamente natildeo oferecia aos alunos muitas habilidades de compreensatildeo que pudessem ser usa-das fora da escola Poucos cursos de Filosofia na universidade exigem a escrita de narraccedilatildeo assim como cursos de Sociologia enfatizavam a funccedilatildeo da descriccedilatildeo (alguns outros cursos aboliram as aulas de escrita do primeiro ano exatamente porque acreditam que o modelo tradicional de escrita ou alguma variante dele eacute o modelo usado na vida profissional Se algueacutem acredita na existecircncia desse modelo estaacute certo)

Talvez a principal caracteriacutestica distinta do letramento criacutetico tal como o compreendemos e a que mais claramente o diferencia de sua versatildeo mais antiga e minimalista eacute sua ecircnfase no conhecimento reflexivo a capacidade que o poeta criacutetico e ensaiacutesta inglecircs Samuel Taylor Coleridge chama de ldquoconhecer seu conheci-mentordquo em relaccedilatildeo ao simplesmente possuir o conhecimento Isso significa dizer que em vez de focalizar as exigecircncias para a escrita de um bom artigo eacute preferiacutevel

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considerar as dificuldades enfrentados pelos alunos para construir um bom ar-gumento Eles devem ser capazes de imaginar os contra-argumentos antecipar a resposta do puacuteblico em particular o ceticismo e o desconhecimento e mover-se habilmente entre as pretensotildees de verdade as razotildees que justificam as alegaccedilotildees e as evidecircncias que apoiam as razotildees

Os alunos devem avaliar a adequaccedilatildeo da defesa agrave sua reivindicaccedilatildeo e analisar seu grau de conformidade Eles devem aprender a avaliar os elementos das provas resumir e questionar a autoridade a partir de pontos de vista diferentes Talvez o mais importante eacute preparar os alunos para arriscar suas crenccedilas e suposiccedilotildees sobre o mundo Natildeo eacute possiacutevel na arena do argumento simplesmente ldquoconectar [em uma foacutermula] e arriscar [uma resposta]rdquo Os alunos precisam entender as questotildees no contexto de uma conversa aceitando desde cedo que como Stanley Fish sugere nem todas as partes dessa conversa compartilharatildeo as mesmas crenccedilas e hipoacuteteses

No intuito de esclarecer ainda mais o conceito de letramento criacutetico pode ser uacutetil comparaacute-lo com outra abordagem de ensino de escrita que sucede ao modelo tradicional O movimento de reflexatildeo criacutetica na escrita foi proposto por Hayes e Flower (1980) Os autores mostram como os meacutetodos de resoluccedilatildeo de problemas podem ser aplicados na sala de aula para o ensino de escrita Eles estatildeo entre os primeiros no campo dos estudos sobre a escrita que tratam de forma plenamen-te desenvolvida a escrita como um ldquomodo de pensarrdquo e veem que a aquisiccedilatildeo da escrita implica um raciociacutenio de ordem superior Poreacutem enquanto o movimento de reflexatildeo criacutetica foi uacutetil para ajudar a disciplina a superar as abordagens tradi-cionais natildeo possibilitou uma reflexatildeo sobre a capacidade de compreensatildeo como o letramento criacutetico se propotildee a fazer Aleacutem disso as habilidades de resoluccedilatildeo de problemas focalizadas eram ensinadas sem um juiacutezo de valor como um conjunto de habilidades natildeo muito diferentes das que satildeo necessaacuterias para resolver um quebra-cabeccedila Isso limitou sua aplicabilidade ao ensino do argumento um gecirc-nero que muitas vezes nos leva longe em problemas que satildeo carregados de valor e emoccedilatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

Uma das maneiras mais faacuteceis de distinguir a abordagem da reflexatildeo criacutetica de ensino de escrita da abordagem do letramento criacutetico eacute focar na noccedilatildeo de re-soluccedilatildeo de problemas Dito de maneira simples os proponentes da reflexatildeo criacutetica se concentram na maneira de resolver problemas enquanto os proponentes do letramento criacutetico se concentram na maneira de descobrir problemas Uma das figuras mais importantes ligadas ao letramento criacutetico nos anos 80 o filoacutesofo brasileiro Paulo Freire cunhou o termo ldquoproblematizaccedilatildeordquo para descrever o que ele pretendia fazer com seu programa educacional na Ameacuterica do Sul

O trabalho de Freire com as populaccedilotildees do campo provou ser tatildeo polecircmico que o governo resolveu interditaacute-lo No processo de alfabetizaccedilatildeo baacutesica Freire ensinava a poliacutetica revolucionaacuteria fazendo que o pensamento ldquomiacuteticordquo da preacute--alfabetizaccedilatildeo desse lugar ao letramento criacutetico O poder de nomear situaccedilotildees que os camponeses de Freire cedo descobriram conteacutem as sementes para desafiar e redefinir essas situaccedilotildees Em um niacutevel as experiecircncias pedagoacutegicas de Freire confirmaram uma das ideias mais importantes de Kenneth Burke os proveacuterbios que constituem uma espeacutecie de enunciado com poucas palavras para nomear situaccedilotildees recorrentes constituem ldquoestrateacutegias para lidar com essas situaccedilotildeesrdquo (BURKE 1941 p 296) Para Burke e Freire as palavras nunca satildeo neutras Antes de dizer qualquer coisa devemos primeiro dimensionaacute-la ldquodiscernir o geral que estaacute atraacutes do particularrdquo (BURKE 1941 p 301) e a palavra que escolhermos por sua vez implica uma atitude em relaccedilatildeo a ela Na medida em que uma atitude eacute um ato incipiente a linguagem e a poliacutetica estatildeo indissoluvelmente ligadas

Os educadores tecircm relutado em abraccedilar a dimensatildeo poliacutetica do letramento criacutetico por razotildees oacutebvias Conforme testemunhou a antipatia de John Leo pelas simpaacuteticas poliacuteticas ldquoterapecircuticasrdquo ldquomulticulturalistasrdquo da faculdade jaacute existe um grande receio sobre a possibilidade de as escolas serem doutrinadoras em vez de educar os alunos O fato de o letramento criacutetico pertencer a uma antiga tradiccedilatildeo de educaccedilatildeo que defende que ldquoa vida sem consciecircncia natildeo vale a pena ser vividardquo e que encoraja as virtudes natildeo partidaacuterias como autorreflexatildeo e autoquestionamento

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A construccedilatildeo do argumento

natildeo desencorajou criacuteticos conservadores de denunciaacute-la como uma ferramenta de propaganda Enquanto alguns dos mais fervorosos defensores do letramento criacutetico como os mais verdadeiros crentes de alguma causa parecem agraves vezes acreditar que a uacutenica verdadeira feacute eacute a sua e os natildeo crentes estatildeo em alianccedila com os ldquoJohn Leordquo do mundo muitos dos nossos mais reflexivos praticantes e professores inovadores professam lealdade ao letramento criacutetico em bases essencialmente pedagoacutegicas

Aleacutem disso aqueles que satildeo tentados a acreditar que ao ensinar os alunos a desafiarem o status quo ao questionar a tradiccedilatildeo e a autoridade e ao refletir dia-leticamente sobre o mundo asseguram a formaccedilatildeo de uma geraccedilatildeo de estudantes comprometida com poliacuteticas progressistas se sentiratildeo orgulhosos O letramento criacutetico eacute um instrumento muito complexo para servir simplesmente como uma ferramenta eficiente de doutrinaccedilatildeo A ecircnfase na forma de pensar nos processos de primeiro plano e de compreensatildeo taacutecita combinada com sua atitude ceacutetica em relaccedilatildeo ao conteuacutedo e agrave sua abordagem deixa inteiramente aberta a questatildeo sobre o que os estudantes podem fazer com sua formaccedilatildeo As muitas qualidades desenvolvidas atraveacutes do letramento criacutetico que podem ser prontamente aplicadas a outros cursos e o torna bastante adaptaacutevel aos cursos de Histoacuteria Economia e Sociologia satildeo as mesmas que o tornam um mal instrumento de doutrinaccedilatildeo Como lembra Michael Berude citando o que ele chama de ldquoreversibilidaderdquo natildeo haacute como garantir que a formaccedilatildeo de estudantes em letramento avanccedilado possa ser ldquo[] um veiacuteculo unidirecional para a mudanccedila poliacuteticardquo (BERUDE 1998 p 145) Nossos pensadores mais criacuteticos podem se ser tanto grandes conhecedores de Hedge Fund (Fundo de multimercado) como certamente revolucionaacuterios poliacuteticos

Para aleacutem do medo de parecermos partidaacuterios em nossa abordagem de ensino de escrita haacute um estiacutemulo mais profundo para o ensino reflexivo que natildeo o super-ficial papel poliacutetico O filoacutesofo Hans Blumenberg por exemplo observa a crescente pressatildeo sobre os educadores para deixar de lado o objetivo de vida consciente e ldquoabandonar a ideia que eacute governada pela norma de que o homem deve saber o que estaacute fazendordquo (BLUMENBERG 1987 p 446) em nome da busca de meios cada vez

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A construccedilatildeo do argumento

mais parcimoniosos de resolver os problemas Em resposta Blumenberg (1987 p 446) pede uma volta agrave Retoacuterica alegando que ela representa ldquo[] um modo de re-alizaccedilatildeo consumada do atraso [do tempo] A circunstancial idade a inventividade processual a ritualizaccedilatildeo implicam uma duacutevida na maneira de saber se o ponto mais curto para ligar dois pontos eacute tambeacutem o caminho humano de um para o outrordquo

O motivo que explica a volta de Blumenberg para a retoacuterica ressoa aqui um tema abordado por Burke que frequentemente expressa uma atitude ceacuteptica em relaccedilatildeo agrave Lei da Parcimocircnia e ao nonsense de Occam (por exemplo o behaviorismo e o monetarismo) que resulta na seguinte conclusatildeo

[] se uma grande parte do serviccedilo foi obtido seguindo a lei de Occam segundo a qual ldquoas entidades natildeo deveriam ser multiplicadas para aleacutem da necessidaderdquo uma falta de serviccedilo surgiu na ignoracircncia de uma lei que ser enunciada da seguinte maneira as entidades natildeo devem ser re-duzidas para aleacutem da necessidade (BURKE 1966 p 324)

Para Burke (1966) a idade moderna eacute caracterizada muito mais por crimes contra a segunda lei do que contra a primeira Se o pensamento criacutetico implica uma capacidade de resolver problemas de forma eficiente atraveacutes da simplificaccedilatildeo o letramento criacutetico implica uma capacidade de gerar complexidade atraveacutes da reflexatildeo Aleacutem disso implica tambeacutem a capacidade de natildeo soacute escrever com clare-za quando se pode mas de maneira complexa quando eacute preciso de se referir aos limites de um puacuteblico quando conveacutem e desafiar e expandir esses limites quando a deferecircncia vence os objetivos Embora os objetivos que buscamos no letramento criacutetico sejam de fato altos e embora natildeo tenhamos chegado a um consenso sobre a melhor maneira de alcanccedilaacute-los eacute claro que ensinar os alunos a escrever argu-mentos eacute uma dessas maneiras Nesse processo as liccedilotildees que os alunos aprendem em um curso sobre argumento com base nos princiacutepios do letramento criacutetico satildeo mais faacuteceis de serem levadas para outras aacutereas do curriacuteculo

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A construccedilatildeo do argumento

Essa uacuteltima afirmaccedilatildeo eacute corroborada pela experiecircncia de muitos de noacutes que trabalham na aacuterea da escrita atraveacutes do curriacuteculo (WAC ndash writing across the curri-culum ndash escrita atraveacutes do curriacuteculo) O que muitos de noacutes descobrimos quando am-pliamos nossa atuaccedilatildeo para ajudar os professores de outras disciplinas a melhorar a escrita de seus alunos foi o fato de que realmente estaacutevamos ajudando seus alunos a escrever melhores argumentos Ou para dizer de forma mais precisa estaacutevamos ajudando os professores de outras disciplinas a ensinar seus alunos tanto a argu-mentar sobre um assunto de uma disciplina como a escrever sobre esse assunto Ensinar os formatos de textos em Psicologia ou Fiacutesica era relativamente simples Ao contraacuterio ao sensibilizar os alunos sobre os pressupostos desses formatos as hipoacuteteses sobre o peso relativo da evidecircncia relativa os diferentes formatos em concordacircncia agraves fontes primaacuterias e secundaacuterias aos dados experimentais agrave teoria agrave anomalia etc provaram ser uma tarefa consideravelmente mais desafiadora

Noacutes os agentes do movimento WAC estaacutevamos retomando o papel de nossos ancestrais sofistas noacutes eacuteramos os metecos os estrangeiros que passeiam por um lugar simultaneamente incapacitados e capacitados por nosso status de estrangeiro O que pareceu talvez para um membro de uma comunidade disciplinar como uma demonstraccedilatildeo de verdade para muitos de noacutes sob nosso olhar foi uma artimanha persuasiva Como o Senhor Jourdain de Moliegravere que se surpreende ao saber que falava sempre em forma de sermatildeo muitos de nossos colegas de outras disciplinas ficaram surpresos ao saber que eles estavam usando e ensinando retoacuterica o tempo todo Quando alcanccedilaram essa consciecircncia muitos desses colegas se tornaram grandes defensores do foco no argumento natildeo apenas em seus proacuteprios cursos mas tambeacutem nos cursos de escrita nos quais preparamos os alunos para suas dis-ciplinas Como demonstraremos no capiacutetulo dois as abordagens usadas nos cursos de argumento contemporacircneos satildeo perfeitamente adaptaacuteveis a outras disciplinas

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A construccedilatildeo do argumento

argumento e identidade

Um dos aspectos mais controversos do letramento criacutetico diz respeito agraves conexotildees que ele estabelece entre pensamento criacutetico e identidade Ao incentivar os alunos a se tornarem pensadores mais reflexivos os defensores do letramento criacutetico chamam a atenccedilatildeo para vaacuterias forccedilas no mundo que minam o senso de ca-pacidade de accedilatildeo das pessoas e os incitam a querer atingir seus propoacutesitos Eles chamam tambeacutem a atenccedilatildeo para o fato de que as formas como tomamos decisotildees como consumidores trabalhadores e cidadatildeos decisotildees sobre o que comer sobre como progredir no trabalho sobre em quem votar revelam quem somos e refor-ccedilamos para o bem ou para o mal nossa autocompreensatildeo Vendedores de sabatildeo gurus de gestatildeo e consultores poliacuteticos tecircm um interesse natildeo soacute de compreender quem somos mas em formar uma identidade compatiacuteveis com seus interesses Os alunos precisam portanto ser reflexivos sobre essas escolhas conscientes das implicaccedilotildees de algumas de suas escolhas e alertas para as artimanhas persuasivas comuns agravequeles que os encorajam a assumir essas identidades

Isso pode revelar-se uma tarefa desafiadora Os alunos satildeo muitas vezes fortemente resistentes a estabelecer relaccedilatildeo entre quem eles satildeo e as escolhas diaacuterias que eles fazem Eles natildeo gostam da sugestatildeo impliacutecita de que eles podem ser as viacutetimas de algum grupo sombrio de ldquoperseguidores ocultosrdquo nem da ideia de ter que prestar atenccedilatildeo tanto nas escolhas como nas decisotildees que ateacute entatildeo tecircm feito de forma simples Natildeo estamos fazendo uma montanha de um pequeno morro dizem eles para que essa intensa atenccedilatildeo criacutetica para um simples anuacutencio ou para escolher um livro de negoacutecios pop

Qualquer um que tenha ensinado em um curso de literatura reconheceraacute a resposta Eles satildeo ceacuteticos quanto ao fato de uma coisa tatildeo simples superficialmen-te poder ter toda essa profundidade de significado As vaacuterias preocupaccedilotildees que os alunos expressam sobre a aplicaccedilatildeo das liccedilotildees de letramento criacutetico para sua vida cotidiana precisam ser levadas em conta Por um lado eles tecircm o direito de

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A construccedilatildeo do argumento

insistir na sua proacutepria maneira de resolver as coisas e na sua proacutepria capacidade de se distanciar das influecircncias de grupos de interesses diferentes Muitos deles tecircm pensado criticamente sobre pelo menos algumas dessas escolhas e sempre encontramos alguns em cada classe que estatildeo de fato militantemente atentos contra os ataques externos agrave sua identidade Por outro lado muitos subestimam a haacutebil capacidade dos que criam identidades ldquoprontas para o usordquo de utilizar do hu-mor da ironia da autodeclaraccedilatildeo depreciaccedilatildeo e autorrevelaccedilatildeo e de muitos outros recursos para desarmaacute-los Ao abordar a relaccedilatildeo entre argumento e identidade portanto eacute importante respeitar a posiccedilatildeo e experiecircncia dos alunos nessa aacuterea e conduzi-los lentamente ateacute o final Noacutes gostamos de comeccedilar a discussatildeo da iden-tidade com um olhar sobre algumas das teacutecnicas mais comuns usadas por aqueles que vendem identidades ldquopronta para o usordquo agraves quais todos somos vulneraacuteveis

Consideremos por exemplo um dos recursos mais eficazes usados por publici-taacuterios consultores poliacuteticos e gurus de gestatildeo para desarmar o puacuteblico americano o apelo ao individualismo poderoso Seja como poliacutetico que ignora as pesquisas e segue seu instinto como gestor que desdenha a sabedoria convencional e ousa ser genial ou como o modelo masculino em traje de vaqueiro que acende um cigarro e ri da morte os americanos tecircm sido muito suscetiacuteveis aos encantos do indiviacuteduo poderoso em todos os seus muitos disfarces Na verdade a maneira mais faacutecil de vender a um grande puacuteblico americano comportamentos ou escolhas que tecircm consequecircncias duvidosas eacute apresenta-los como uma expressatildeo de individualis-mo poderoso Esse individualismo constitui o que Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969 p 84) chamam de loci ldquo[] premissas de natureza geral que podem servir de base para valores e hierarquiasrdquo A premissa representada por esse modelo de indiviacuteduo eacute talvez sintetizada pelo imperativo categoacuterico do coacutedigo do heroacutei ldquoUm homem tem que fazer o que um homem tem que fazerrdquo Ouve-se a masculinidade interior para intuir o melhor plano de accedilatildeo e segue-se esse plano orientaccedilatildeo face agrave convenccedilatildeo agrave popularidade agrave legalidade e ao risco pessoal

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A construccedilatildeo do argumento

Como todos os loci o modelo de indiviacuteduo poderoso se desenha em muitos caminhos em particular na histoacuteria americana e na cultura popular americana Um paiacutes nascido da revoluccedilatildeo e nutrido da ldquoconquistardquo de uma fronteira recuada um paiacutes cujo sistema econocircmico eacute baseado no risco econocircmico e na competiccedilatildeo um paiacutes cuja induacutestria de entretenimento forneceu um fluxo constante de cowboys bandidos misteriosos ricos e influentes empresaacuterios e gangsters em todos os meios eacute um paiacutes com o individualismo poderoso profundamente marcado no seu DNA Por isso o simples ato de associar uma marca um produto uma escolha uma pessoa um candidato ou uma proposta a esse modelo de individualismo aacutespero tem sido tatildeo eficaz ao longo dos anos na transmissatildeo dos interesses de seus patrocinadores Atraveacutes do ato de escolher o que quer que seja que o patrocinador deseja que esco-lhamos reforccedilamos o imaginaacuterio nacional asseguramos sua repeticcedilatildeo contiacutenua e o status do indiviacuteduo poderoso como um modelo de comportamento

No entanto eacute sabido que essa visatildeo de indiviacuteduo ndash a versatildeo John Wayne ndash tem um apelo limitado para os diferentes grupos de compradores da segmentaccedilatildeo psi-cograacutefica Assim elaboram-se variaccedilotildees no modelo central para atingir de forma mais especiacutefica o grupo para o qual um produto eacute lanccedilado Para alguns a versatildeo ldquomachordquo natildeo cai muito bem por isso exigem uma versatildeo mais gentil mais suave Consideremos por exemplo a campanha publicitaacuteria encantadora e divertida da Apple Computing que exibe personificaccedilotildees das linhas de computador MAC e PC Enquanto o PC eacute apresentado com um homem gordo vestido de terno escuro com uma visatildeo estreita do seu trabalho que reclama das muitas demandas dos seus usuaacuterios o MAC eacute personificado como um homem magro jovem vestido de forma despojada aberto a novas possibilidades intrigado com as queixas de PC sobre as demandas de seus usuaacuterios e perplexo com essa personalidade Trata-se de um conflito claacutessico ainda que suavizado entre o ldquohomem de negoacuteciosrdquo e o rebelde o burocrata e o inovador

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A construccedilatildeo do argumento

Esse anuacutencio eacute uma versatildeo muito mais marcante do claacutessico anuacutencio da Apple Super Bowl de 1984 da linha Mac de computadores em que uma mulher escapa de uma guerra para quebrar uma enorme tela de televisatildeo onde o Big Brother eacute enaltecido diante de um auditoacuterio cheio de figuras curvadas (embora seja tentador pensar que a escolha dos anunciantes por uma figura feminina para o papel de um indiviacuteduo forte como um sinal de avanccedilada consciecircncia social eacute mais provaacutevel que isso seja um reflexo da preocupaccedilatildeo para atingir um determinado grupo de consu-midor) A versatildeo do anuacutencio com a oposiccedilatildeo entre conservadores e rebeldes sugere que estaacute muito mais em jogo a escolha entre conformismo e individualidade e por implicaccedilatildeo entre a escolha da Apple e qualquer outra marca de computadores A escolha do computador eacute uma escolha poliacutetica natildeo somente praacutetica ou de estilo de vida Como a marca Apple em 1984 era pouco conhecida quando a IBM domi-nou o mercado a diferenccedila de tom eacute compreensiacutevel As implicaccedilotildees ideoloacutegicas do estereoacutetipo do individual poderoso na publicidade tendem a ser cada vez mais precisas quanto mais inesperadas satildeo as escolhas que os consumidores podem fazer (vejamos o exemplo do Homem Marlboro)

Natildeo haacute nada inerentemente ruim sobre a criatividade da Apple de mobilizar os personagens do imaginaacuterio americano para vender seu produto Como toda simplificaccedilatildeo miacutetica ela exagera nas diferenccedilas entre os dois produtos para natildeo mencionar as diferenccedilas entre as duas grandes empresas americanas mas toda propaganda eacute para ser entendida em um piscar de olhos e o exagero natildeo eacute um pe-cado O mal estaacute em dar a uma premissa questionaacutevel o status de hipoacutetese inques-tionaacutevel e a um papel que todos noacutes ocasionalmente podemos querer interpretar o status de ideal essencialista a que todos deveriam aspirar O mal tambeacutem reside no constante reforccedilo dos valores individualistas sobre os coletivos Se os valores representados por MAC parecem irrelevantes no contexto do anuacutencio podem natildeo parecer se ampliados para o domiacutenio das virtudes das pessoas Indiviacuteduos pode-rosos no final das contas natildeo se relacionam bem com os outros Seu questiona-

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A construccedilatildeo do argumento

mento da autoridade raramente se estende ao questionamento da autoridade de seus proacuteprios sistemas de valores

Qualquer quer seja a razatildeo pela qual usem o adesivo ldquoQuestione a autoridade (Question authority)rdquo eles na verdade acreditam na sua proacutepria autoridade e natildeo estatildeo preparados para questionar a sua finalidade de promover uma accedilatildeo coletiva que assegura um bem comum De toda maneira a capacidade ou incapacidade dos poliacuteticos de se venderem de maneira plausiacutevel como indiviacuteduos poderosos tem sido decisiva no seu sucesso no paiacutes durante grande parte das uacuteltimas trecircs deacutecadas

Na anaacutelise do anuacutencio noacutes mesmos estamos levantando uma hipoacutetese sobre a identidade com a qual nem todos certamente nem todos os nossos alunos po-dem estar satisfeitos Assumimos o sentido de identidade conforme Burke (1989) chama de ldquoparlamentarrdquo uma identidade variaacutevel natildeo unitaacuteria natildeo essencial e reparaacutevel Conforme essa visatildeo de identidade desempenhamos muitos papeacuteis e a autenticidade natildeo eacute tanto uma questatildeo de permanecer fiel a um eu central mas uma questatildeo de selecionar conscientemente os papeacuteis que desempenhamos e se envolver totalmente nesses papeacuteis As hipoacuteteses dos retoacutericos sobre a identidade humana satildeo tatildeo fundamentais para a praacutetica de sua arte quanto as dos economistas neoclaacutessicos ndash personificadas no modelo de identidade seletiva dos economistas neoclaacutessicos o do homo economicus ndash para a fundamentaccedilatildeo da sua proacutepria praacute-tica A verdade literal da hipoacutetese de uma ou outra disciplina eacute sempre aberta agrave conjectura ainda que as hipoacuteteses da retoacuterica contemporacircnea sobre a identidade pareccedilam se ajustar melhor as atualmente dominantes nos campos da Psicologia e da Filosofia A hipoacutetese dos economistas de que os agentes humanos tomam deci-sotildees apenas com base no interesse pessoal racional combina bem com as hipoacuteteses utilitaacuterias do seacuteculo XIX sobre a natureza humana mas parece muitas vezes estar em desacordo com o comportamento humano real Ainda assim apesar de todas as suas falhas o modelo continua a funcionar bem o suficiente para servir de ponto de partida para a anaacutelise microeconocircmica e continua a ser usado ateacute pelos mais ceacuteticos mesmo com alteraccedilotildees e modificaccedilotildees crescentes

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A construccedilatildeo do argumento

Embora estejamos preparados para defender a validade do modelo remanes-cente da retoacuterica de identidade humana natildeo devemos pensar que temos de provar aos nossos alunos ou colegas de outras disciplinas que eacute inquestionaacutevel Como o modelo muito mais simplificado dos economistas ele serve para explicar uma seacuterie de comportamentos observados na anaacutelise retoacuterica e fornecer um quadro claro para a teoria retoacuterica

Entatildeo quais satildeo algumas das implicaccedilotildees do modelo ldquoparlamentarrdquo natildeo es-sencialista de identidade Primeiro e acima de tudo o modelo implica um forte senso de agente por parte de cada ator retoacuterico

O modelo supotildee que as pessoas tecircm a liberdade de fazer escolhas natildeo apenas escolhas de comportamento mas de identidade e a retoacuterica eacute uma forma principal pela qual essas escolhas podem ser sistematicamente examinadas realizadas e defendidas A liberdade assumida pela retoacuterica pode ser vista de um ponto de vista essencialista como uma maldiccedilatildeo na medida em que nunca eacute ldquoacabadardquo e segura Como o heroacutei existencialista de Sartre o homo rhetoricuseacute ldquocondenado agrave liberdaderdquo Nesse sentido Blumenberg (1987) compara os seres humanos a outros animais e observa que ao contraacuterio de outros membros do reino animal estamos privados de instintos que nos permitem saber ou ser qualquer coisa im-mediately Ateacute mesmo o autoconhecimento ou autocompreensatildeo tem a estrutura da ldquoautoexternalidaderdquo Um ldquodesviordquo eacute necessaacuterio para adquirir esse conhecimento um ato de mediaccedilatildeo para o outro ndash o phoros de uma analogia o veiacuteculo de uma metaacutefora o segundo termo de uma relaccedilatildeo as relaccedilotildees que mantemos com outros seres humanos Em alguns casos iniciamos esse processo de construccedilatildeo da identidade Em outros nos encontramos selecionando ou resistindo opccedilotildees que nos satildeo oferecidas ou impostas

Nesse uacuteltimo caso a retoacuterica desempenha um papel particularmente crucial na medida em que ldquo[] natildeo eacute apenas a teacutecnica de produccedilatildeo um efeito eacute sempre tambeacutem um meio de manter o efeito transparenterdquo (BLUMENBERG 1987 p 435-36) Essa segunda capacidade a capacidade de interpretar os efeitos sobre noacutes mesmos bem como de produzir efeitos sobre os outros faz que o domiacutenio da retoacute-

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A construccedilatildeo do argumento

rica seja particularmente crucial para nossos alunos neste momento da histoacuteria quando tantas forccedilas atuam fazem circular identidades disfuncionais para eles e negativizam processos perfeitamente funcionais

eacutetiCa e argumento

O modelo de identidade que prevalece na retoacuterica na medida em que enfatiza a accedilatildeo e a escolha do ser humano assegura a centralidade da eacutetica na nossa tarefa Como o filoacutesofo Charles Taylor (1989) observou ldquo[] a individualidade e o bem ou de outro modo a individualidade e a moralidade se tornam temas inextricavelmente interligadosrdquo (TAYLOR 1989 p 3) Ainda segundo Taylor (1989) falhamos ao levar formalmente em conta essa conexatildeo principalmente por causa do fasciacutenio da filoso-fia moral em ldquo[] definir o conteuacutedo da obrigaccedilatildeo em vez da natureza da boa vidardquo (TAYLOR 1989 p 3) A vida boa conforme entende o autor eacute fundamentalmente social na medida em que o eu eacute fundamentalmente uma construccedilatildeo social Eu sou quem eu sou em virtude de meus relacionamentos com outros seres humanos e a felicidade natildeo pode ser entendida para aleacutem desses relacionamentos Trata-se de uma visatildeo que contrasta com aquelas visotildees que equiparam a felicidade ao prazer ou maximizaccedilatildeo da utilidade ou no caso do individualista poderoso agrave completa autossuficiecircncia Ao contraacuterio do modelo dos economistas neoclaacutessicos de vida boa modelo que domina o imaginaacuterio popular americano o benefiacutecio social natildeo eacute um subproduto acidental da ganacircncia individual Para que um benefiacutecio social tenha um significado eacutetico ou retoacuterico deve ser um produto da intenccedilatildeo A vida boa eacute na simpaacutetica caseira de Kenneth Burke ldquo[] um projeto para se dar bem com as pessoasrdquo (BURKE 1984 p 256) Entender-se uns com os outros implica a identificaccedilatildeo coletiva desses ldquovalores particulares vividos que nos unem e satildeo assumidos pelas instituiccedilotildees que valorizamos e desejamos defenderrdquo como disse Stanley Fish Natildeo existe um padratildeo universal que dita esses valores e funda essas instituiccedilotildees ndash ou mais precisamente nenhuma das vaacuterias normas defendidas por

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A construccedilatildeo do argumento

seus adeptos como universais satildeo universalmente subscritas ndash daiacute a necessidade de articulaacute-las e estabelecer as diferenccedilas entre elas atraveacutes do uacutenico meio mais faacutecil ou como alguns filoacutesofos preferem o ldquodiaacutelogordquo

Quanto mais se considera a eacutetica natildeo apenas em termos das escolhas corretas dos indiviacuteduos mas em termos de uma determinaccedilatildeo coletiva sobre essas esco-lhas individuais mais o estudo da retoacuterica equivale ao estudo da eacutetica Dito isso qualquer um que ensinou argumento reconheceraacute a ligaccedilatildeo fundamental entre retoacuterica e eacutetica As questotildees eacuteticas surgem de todo tipos de argumento ateacute mesmo de alguns que parecem agrave primeira vista muito distantes da esfera do pensamento eacutetico A questatildeo natildeo eacute se devemos abordar a dimensatildeo eacutetica do argumento mas saber a melhor maneira de estudar a eacutetica em classe de argumentos Falaremos mais tarde de argumentos eacuteticos em si quando discutiremos uma teoria dos tipos de argumento conhecida como Stasis Theory Trataremos agora dos argumentos eacuteticos ou seja daqueles cujos princiacutepios gerais constituem um julgamento eacutetico um argumento especial de avaliaccedilatildeo que utiliza uma parte da linguagem tradicio-nalmente usada pelos filoacutesofos quando determinam o ldquoconteuacutedo da obrigaccedilatildeordquo em uma dada circunstacircncia e sistematizam os meios para se chegar a decisotildees eacuteticas Agora interessa-nos mais amplamente a relaccedilatildeo entre eacutetica e retoacuterica A seguir nos deteremos nas caracteriacutesticas comuns do raciociacutenio eacutetico e retoacuterico e da eacutetica do debate

Uma maneira de ressaltar o quanto tecircm em comum a retoacuterica e a eacutetica eacute considerar a questatildeo da melhor forma de se inserir a eacutetica em um curriacuteculo O processo que consiste em provar a eacutetica da eacutetica em um curso de escrita focado no argumento mostra o quanto as duas atividades estatildeo intimamente relaciona-das Tradicionalmente a eacutetica tem sido ensinada na faculdade seja nos cursos de Filosofia dedicados agrave consideraccedilatildeo das teorias eacuteticas sua histoacuteria e aplicaccedilatildeo seja nos seminaacuterios de teologia nas aulas de religiatildeo focadas na aplicaccedilatildeo dos princiacutepios e crenccedilas das religiotildees Taylor (1989) apontou algumas das limitaccedilotildees da eacutetica ensinada nos cursos de Filosofia porque ela se concentra no ldquoconteuacutedo

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da obrigaccedilatildeordquo em vez de determinar em que consiste uma boa vida Ao analisar vaacuterias ldquoexperiecircncias de pensamentordquo construiacutedas em torno de problemas morais os filoacutesofos tendem a ajudar os alunos a compreender mais as limitaccedilotildees de teorias morais existentes do que ajudaacute-los a definir para si uma vida digna de ser vivida Como os cursos de argumento natildeo tecircm a obrigaccedilatildeo de ldquocobrirrdquo nenhum conjunto particular de teorias morais estamos livres para oferecer aos alunos a oportuni-dade de buscar suas proacuteprias definiccedilotildees

Uma das maneiras mais eficazes de iniciar uma conversa entre os alunos sobre sua proacutepria concepccedilatildeo de vida boa ndash ao contraacuterio da maneira como vaacuterios filoacuteso-fos definiram essa concepccedilatildeo ndash eacute fazecirc-los discutir o belo conto de Ursula LeGuin (Aqueles que caminham longe de Omelas) Omelas eacute um reino utoacutepico imaginaacuterio onde pareceria que a vida boa conforme todas as medidas tradicionais foi atingi-da O uacutenico problema eacute o fato de que a felicidade constante de toda a comunidade depende do sofrimento constante de uma crianccedila que vive em um poratildeo e nunca deve ver nenhum gesto de bondade Toda crianccedila em Omelas entre oito e doze anos tomam conhecimento da existecircncia da crianccedila que sofre Aqueles que poste-riormente vatildeo embora muitas vezes perplexos pela histoacuteria para a perplexidade do narrador ndash aparentemente decidiram que a grande felicidade da comunidade natildeo justifica o sofrimento de uma crianccedila Sua escolha por sua vez reflete a cren-ccedila na natureza parlamentar da identidade ou seja a identidade eacute relacional e natildeo essencial Portanto todos os que vivem em Omelas e conhecem o sofrimento da crianccedila estatildeo implicados nesse sofrimento e sua vida boa aparente eacute tatildeo imperfeita como sua individualidade

Nesses dias eacute claro os cursos de Filosofia estatildeo longe de ser o uacutenico lugar onde a crescente demanda em mateacuteria de eacutetica estaacute sendo respeitada Como alternati-va aos cursos de Filosofia muitos cursos hoje oferecem suas proacuteprias disciplinas de eacutetica que enfatizam as questotildees eacuteticas recorrentes na aacuterea e os cacircnones de comportamento derivados das normas da profissatildeo Por mais bem intencionados que sejam esses cursos e embora claramente constituam um reconhecimento

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da necessidade de instruccedilatildeo eacutetica dentro da academia eles satildeo diriacuteamos espaccedilos problemaacuteticos de instruccedilatildeo eacutetica precisamente porque natildeo haacute conexatildeo funda-mental entre os objetivos da disciplina e objetivos eacuteticos Por outro lado tudo o que pudesse haver nos cursos de eacutetica para o equiliacutebrio dos estudantes em relaccedilatildeo agraves formas taacutecitas de eacutetica pode ser ofertado em outros cursos Como os alunos de muitas faculdades de artes liberais filiadas agrave igreja resistiram ao longo do uacuteltimo seacuteculo agrave frequecircncia obrigatoacuteria agrave ldquocapelardquo esses cursos apresentam uma infeliz tendecircncia para tocar esses alunos da melhor maneira como um conselho paternal para uma correccedilatildeo moral ou da pior maneira para se distraiacuterem do seu verdadeiro caminho acadecircmico

O campo dos negoacutecios por exemplo eacute o mais publicamente lembrado quando se fala de eacutetica nos uacuteltimos anos graccedilas a uma seacuterie de escacircndalos empresariais altamente divulgados na miacutedia Considerando as teorias econocircmicas de maior influecircncia na Ameacuterica hoje eacute provaacutevel que os estudantes sejam ensinados direta e indiretamente em muitos cursos diferentes supervisionados por pessoas dife-rentes que os mercados satildeo mais saacutebios do que os agentes humanos Se algueacutem pretende tomar uma decisatildeo prudente sobre as possiacuteveis consequecircncias de uma poliacutetica eacute aconselhaacutevel estudar o desempenho do mercado em situaccedilotildees seme-lhantes no passado Se algueacutem quer saber o que funcionou e estaacute funcionando a uacutenica opiniatildeo que realmente conta eacute a do mercado Um preccedilo ldquojustordquo portanto eacute o que o mercado suportaraacute enquanto um salaacuterio ldquojustordquo eacute o miacutenimo que o mer-cado permite pagar No contexto desse respeito quase onisciente pelo mercado qualquer curso de eacutetica que introduza criteacuterios estranhos agrave dinacircmica do mercado dinacircmico no processo de tomada de decisatildeo provavelmente teraacute pouco efeito sobre as prioridades ou os comportamentos dos alunos

O que falta em um curso de eacutetica empresarial eacute a ligaccedilatildeo clara entre ldquoindi-vidualidade e moralidaderdquo Qualquer curso que comece com um sentimento de individualidade um tipo de ldquoauto personal businessrdquo inevitavelmente deixaraacute uma

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A construccedilatildeo do argumento

visatildeo enviesada de obrigaccedilatildeo eacutetica Burke (1968) aborda a natureza da relaccedilatildeo entre identidade e obrigaccedilatildeo eacutetica no processo de definiccedilatildeo de sua noccedilatildeo central de ldquoidentificaccedilatildeordquo

O ser humano como agente que eacute natildeo eacute motivado unicamente pelos princiacutepios de uma atividade especializada mas esse poder especiali-zado em seu papel de sugerir imagem eacute capaz de afetar seu caraacuteter Qualquer atividade especializada participa de uma unidade de accedilatildeo maior ldquoIdentificaccedilatildeordquo eacute uma palavra usada no lugar de atividade au-tocircnoma nesse contexto mais amplo um lugar em que o agente pode ser indiferente O pastor enquanto pastor age para o bem das ovelhas para protegecirc-las do perigo e do mal Mas ele pode ser ldquoidentificadordquo com um projeto que estaacute criando as ovelhas para o mercado (BURKE 1968 p 27)

Da mesma maneira a administraccedilatildeo corporativa pode agir de forma conscien-te no interesse de seus acionistas para aumentar o retorno de seu investimento realizando accedilotildees que simultaneamente ldquoos identificamrdquo tanto com a degradaccedilatildeo quanto com a necessidade de preservar o meio ambiente

Mesmo uma consideraccedilatildeo breve das conexotildees entre os modos de pensar promovidos ao mesmo tempo tanto pela eacutetica como pela retoacuterica ressalta as vantagens de integrar o ensino da eacutetica em uma aula de argumentos Uma das caracteriacutesticas mais importantes compartilhadas pela eacutetica e pela retoacuterica eacute o foco no processo e na compreensatildeo do processo ndash ldquocomo fazerrdquo ndash mais que o conhe-cimento declarativo ndash ldquoo que eacuterdquo Eacute essa preocupaccedilatildeo com o processo que permite que tanto eacutetica como retoacuterica envolvam ldquoatividades especializadasrdquo de qualquer espeacutecie e se movam facilmente entre os campos pessoal e profissional Em ambos os casos os processos que envolvem a eacutetica e a retoacuterica envolvem duas etapas um processo de seleccedilatildeo ndash que identifica o melhor argumentoa escolha mais de-fensiacutevel e um processo de comunicaccedilatildeo ndash a formulaccedilatildeo de uma justificativa para

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A construccedilatildeo do argumento

o argumento ou escolha eou a promoccedilatildeo de uma forma mais ampla de adotar De acordo os pontos de vista mais comuns da retoacuterica o primeiro processo que termina na escolha eacute o uacutenico necessaacuterio Natildeo haacute obrigaccedilatildeo de explicar as razotildees para se fazer a escolha ou de compartilhar o processo pelo qual se chegou a ela No entanto como haacute argumentos para determinadas escolhas eacuteticas haacute uma eacutetica do argumento que exige que se crie uma situaccedilatildeo para as escolhas A diferenccedila aqui entre argumentos eacuteticos e outros tipos de argumentos eacute o grau natildeo o tipo Embora seja sempre uacutetil explicar as razotildees de se fazer escolhas e embora seja prudente fazer sempre que algueacutem quer contar com o apoio de outrem eacute neces-saacuterio optar pela escolha eacute eacutetica

A fonte dessa restriccedilatildeo eacute a natureza das escolhas eacuteticas Ao opinarmos por exemplo sobre uma faculdade para as pessoas que precisam escolher uma expli-camos nossos criteacuterios para ajudaacute-las a se decidirem sobre a escolha da faculdade No entanto se estamos fazendo uma escolha eacutetica sobre digamos justificativas para a tortura estamos falando sobre alguma coisa muito mais forte Ao reali-zarmos escolhas eacuteticas a escolha natildeo eacute apenas para noacutes mesmos no aqui e agora mas para os outros e para noacutes mesmos em situaccedilotildees futuras semelhantes Quando qualificamos um ato como eacutetico natildeo estamos simplesmente dizendo Eu fiz isso mas tambeacutem Isso deve ser feito

Se algueacutem eacute de iniacutecio obrigado sob a eacutetica do argumento a explicar um raciociacutenio sobre suas escolhas eacuteticas tambeacutem eacute obrigado a assegurar que seus motivos satildeo verdadeiros Isso significa dizer que a justificativa do raciociacutenio para que sirva de guia para outros atos eacuteticos natildeo deve ser apenas verdadeira mas extensiva Eacute preciso estar preparado para reconhecer toda a gama de esco-lhas ndash natildeo necessariamente todas mas todas que possam parecer plausiacuteveis ou provaacuteveis para a quem interessa ndash possiacuteveis antes de se fazer a seleccedilatildeo As razotildees para descartar ou hierarquizar alternativas provaacuteveis e selecionar a accedilatildeo final devem ser claramente indicadas

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A construccedilatildeo do argumento

Os princiacutepios que orientaram a avaliaccedilatildeo dessas escolhas e as evidecircncias que apoiam essa avaliaccedilatildeo devem ser claramente explicados O grau de certeza sobre a melhor escolha de uma pessoa deve ser explicitamente registrado (essas condiccedilotildees assim como o termo ldquolegitimidaderdquo que derivam do modelo de Stephen Toulmin seratildeo discutidos mais detalhadamente no proacuteximo capiacutetulo) Embora natildeo haja um coacutedigo formal de comportamento retoacuterico que obriga algueacutem a oferecer uma justificativa simultaneamente honesta e legiacutetima para o argumento presume-se a obrigaccedilatildeo de fazer caso seja solicitado Aleacutem disso a falha na condiccedilatildeo de legiti-midade de um argumento pode potencialmente tornaacute-lo menos eficaz Um argu-mento que tende a revelar o que se deixou de dizer ou que chama a atenccedilatildeo para as questotildees ignoradas pelo opositor pode enfraquecer a adesatildeo do puacuteblico a esse argumento tatildeo prontamente como se ele tivesse mostrado sua proacutepria falsidade

O processo de seleccedilatildeo em eacutetica eacute homoacutelogo ao que os retoacutericos chamam agraves vezes de estaacutegio de invenccedilatildeo O processo de descoberta e avaliaccedilatildeo das escolhas compreende grande parte da teacutecnica da retoacuterica e da eacutetica Como vimos ante-riormente Blumenberg (1987) associou esse processo ao ldquoatrasordquo do tempo que compreende a preocupaccedilatildeo de explicar a ldquocircunstancialidaderdquo as diferenccedilas particulares entre a situaccedilatildeo dada e outras para as quais se procura orientaccedilatildeo Enquanto enfatizamos anteriormente as recompensas cognitivas associadas a essa rejeiccedilatildeo de meios parcimoniosos de compreensatildeo destacamos aqui as restriccedilotildees eacuteticas para tal movimento Onde prevalece a automaticidade natildeo haacute lugar para a eacutetica ou para a retoacuterica Pode-se apenas fazer ou dizer ldquoo que algueacutem precisa fazer ou dizerrdquo sem hesitaccedilatildeo A eacutetica e a retoacuterica exigem escolha e escolha implica deli-beraccedilatildeo Ao chegar a essa conclusatildeo natildeo rejeitamos a ideia de que o fim apropriado da instruccedilatildeo eacutetica eacute o de tornar a virtude um haacutebito Os haacutebitos eacuteticos da mente por oposiccedilatildeo ao mero conhecimento da teoria eacutetica e da histoacuteria satildeo certamente os limites apropriados da instruccedilatildeo eacutetica Isso natildeo quer dizer todavia que esses haacutebitos sejam melhor expostos pela forma como as pessoas fazem suas escolhas eacuteticas Pode-se interpretar a noccedilatildeo de haacutebito de uma forma ampla rejeitando um

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A construccedilatildeo do argumento

acento behaviorista como resposta imediata a um estiacutemulo familiar Pode-se in-cluir nos haacutebitos eacuteticos da mente a inclinaccedilatildeo para buscar a dimensatildeo eacutetica das escolhas a consideraccedilatildeo de tantas alternativas plausiacuteveis quanto possiacuteveis e a avaliaccedilatildeo cuidadosa dessas escolhas

Combinando a instruccedilatildeo eacutetica e a instruccedilatildeo retoacuterica com ecircnfase nessa uacuteltima na ldquoinventividade processualrdquo e no exame disciplinado das alternativas podemos esperar melhorar as escolhas eacuteticas tornando mais complexas e aumentando o nuacutemero de escolhas para os nossos alunos Em vez de se concentrar na adequaccedilatildeo da escolha final uma eacutetica retoricamente influenciaacutevel enfatizaria as alternativas inventadas ou descobertas no processo de seleccedilatildeo e nas respostas uacutenicas da escolha final agraves particularidades do seu dilema eacutetico Eacute aiacute onde a natureza controversa da retoacuterica eacute mais evidente

Para alguns a medida da instruccedilatildeo eacutetica eacute exatamente ajudar os alunos a che-gar da maneira mais parcimoniosa possiacutevel agrave boa escolha que estaacute posta agrave espera deles Qualquer coisa que possibilita uma pessoa reconhecer e fazer essa escolha resulta de lacunas no seu caraacuteter Somente se se acredita que a melhor escolha pode ser um produto das deliberaccedilotildees antes de algo que existia a priori dessas deliberaccedilotildees pode ser um ldquoatrasordquo do tempo a recusa de reduzir ldquoas entidades para aleacutem da necessidaderdquo eacute justificaacutevel Nesse ponto aqueles que equiparam a virtude a uma injusta e raacutepida rejeiccedilatildeo da tentaccedilatildeo acusaratildeo algueacutem de relativista Para os absolutistas morais ndash e certamente o absolutismo moral eacute uma posiccedilatildeo eacutetica que um nuacutemero significativo de pessoas adota por mais diferentes que sejam os absolutismos ndash as provas de Satanaacutes devem ser respondidas com uma questatildeo dis-cursiva com o verdadeiro ou o falso Preparar-se para essa prova familiarizando-se com as respostas certas repetindo-as memorizando-as e depois recordando-as instantaneamente quando os desafios se apresentam Somente os inimigos devem deliberar e soacute os infieacuteis imaginam que poderiam por seu proacuteprio poder da razatildeo chegar a uma escolha melhor do que a prescrita pelos absolutos transmitidos pela leitura literal de alguns sacerdotes da sagrada escritura

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A construccedilatildeo do argumento

O fracasso do absolutismo a partir da perspectiva da eacutetica como retoacuterica eacute um fracasso da imaginaccedilatildeo5 Eacute a incapacidade de imaginar qualquer outra leitura de escritos sagrados diferente da que eacute sugerida por quem estaacute no puacutelpito Eacute a incapacidade de imaginar uma maneira de identificaccedilatildeo entre si e qualquer outra forma de realismo O fracasso do absolutismo tambeacutem envolve o simples equiacutevoco em observar coisas o equiacutevoco de natildeo observar que as respostas derivadas da es-critura sagrada ao longo dos seacuteculos mudam de tempos em tempos e de lugar para lugar e o equiacutevoco de natildeo constatar que natildeo haacute um tribunal com o poder de julgar as diferenccedilas entre os absolutismos nem de anular os recursos dos relativistas O problema principal que surge do fracasso dos absolutismos eacuteticos eacute o fato de que em uacuteltima instacircncia eles acabam por se fazer ouvir e nos fazem voltar ao lugar onde a eacutetica e a retoacuterica surgem o lugar onde o poder eacute certo Acima de tudo a eacutetica e a retoacuterica compartilham a rejeiccedilatildeo da forccedila como meio de resolver a diferenccedila

A retoacuterica comeccedila como Burke (1969) argumenta como um namoro na cria-ccedilatildeo de um senso de identificaccedilatildeo entre pessoas pertencentes a diferentes classes seja de gecircnero grupo socioeconocircmico posiccedilatildeo poliacutetica etc As obrigaccedilotildees da eacutetica surgem do reconhecimento do eu nos outros da capacidade de assumir a posiccedilatildeo do outro O absolutismo cria um mundo binaacuterio (NoacutesEles BomMal CorretoErrado) ndash e natildeo oferece meios civilizados para superar esses binarismos De fato o absolutismo aconselha a natildeo falar com o Outro nem mesmo identificaacute-lo Para ser fiel agrave visatildeo absolutista do mundo eacute preciso permanecer sempre no interior das suas fronteiras Deixar o reino dos absolutos eacute ser desafiado a cada passo por ideias e costumes diferentes e ter poucos recursos para negociar essas diferenccedilas Noacutes aprendemos todavia desde muito tempo com os sofistas a atravessar vaacuterios

5 Empregamos o termo Absolutismo para expressar uma mentalidade natildeo uma ideologia ou sistema de crenccedila Dentro de qualquer religiatildeo portanto haacute absolutistas que praticamente atuam dessa forma Haacute tambeacutem pessoas com mais imaginaccedilatildeo que conseguem conciliar suas crenccedilas religiosas com uma preocupaccedilatildeo pelo bem-estar dos que natildeo compartilhar suas crenccedilas

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A construccedilatildeo do argumento

reinados no processo de muacuteltiplas realidades sempre amarrados agrave nossa sanidade e seguranccedila Se esse antepassado mais benigno dos absolutistas Platatildeo venceu os sofistas em seus diaacutelogos Ele de fato sobreviveu para discutir novamente e nos ensinar a fazer o mesmo Em um mundo acometido por muita certeza sobre muitas ideias irreconciliaacuteveis e pouca vontade de natildeo usar forccedila e tentar a conciliaccedilatildeo nossos alunos se serviriam bem da instruccedilatildeo eacutetica influenciada pelo espiacuterito dos sofistas

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caPiacutetulO 1a histoacuteria da argumentaccedilatildeo6

Nosso objetivo neste capiacutetulo natildeo eacute o de apresentar uma histoacuteria exaustiva da argumentaccedilatildeo mas o de construir essa histoacuteria que possa ser bem usada por professores na contemporaneidade Eacute certo que nosso esboccedilo contempla algumas boas histoacuterias da Retoacuterica e do ensino da escrita e nossos leitores podem consultar nossas referecircncias caso desejem explorar essas histoacuterias com maior profundidade Mas no breve espaccedilo disponiacutevel para essa discussatildeo preferimos a economia ao detalhamento e a utilidade agrave novidade De modo a deixar o texto o mais utilizaacute-vel possiacutevel o dividimos em duas partes Na primeira apresentamos uma ldquofatiardquo ou amostra representativa da Retoacuterica preacute-moderna sob a forma de dois temas recorrentes ndash ou mais precisamente duas tensotildees recorrentes ndash que marcam a evoluccedilatildeo da teoria do argumento Tais tensotildees sobrevivem ateacute hoje e continuam a promover controveacutersias A primeira tensatildeo centra-se sobre o antigo antagonismo entre a Retoacuterica e a Filosofia enquanto a segunda estaacute focada na resistecircncia da Retoacuterica ao engessamento nem sempre bem-sucedido Apoacutes revisar essas tensotildees destacando sua aplicabilidade agraves escolhas que os professores ainda enfrentam realizamos na segunda parte uma discussatildeo mais aprofundada sobre as teorias modernas da argumentaccedilatildeo responsaacuteveis por alterar ndash ou que tecircm potencial para alterar ndash a maneira como eacute ensinada

Em funccedilatildeo da pequena mudanccedila nos uacuteltimos 50 anos de nossa compreensatildeo sobre o argumento e nos uacuteltimos 25 das nossas abordagens para o ensino dedi-camos maior tempo agrave histoacuteria mais recente da argumentaccedilatildeo Ao fazer isso natildeo temos a intenccedilatildeo de deixar de lado as contribuiccedilotildees dos sofistas de Aristoacuteteles de Ciacutecero de Erasmo de Santo Agostinho de Campbell entre outros De fato como

6 Traduccedilatildeo erik fernando Martins

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A construccedilatildeo do argumento

a maioria dos teoacutericos contemporacircneos aqui citados admite o conhecimento de nossos antepassados ainda resplandece nos melhores trabalhos desenvolvidos recentemente Na medida em que nosso objetivo eacute criar um passado utilizaacutevel ao indicar as fontes de nossa abordagem para o argumento o que segue compreende o coraccedilatildeo deste livro

filosofia versus retoacuteriCa

Em certo sentido tudo que eacute discutido neste capiacutetulo pode ser compreendido atraveacutes das lentes da oposiccedilatildeo entre Filosofia e Retoacuterica Eacute por meio dessa velha briga que muitas de nossas batalhas antigas e recentes surgiram Se antigamente muitos filoacutesofos definiam a si proacuteprios atraveacutes de suas diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave Retoacuterica atualmente muitos filoacutesofos e criacuteticos como Hans Blumenberg Hayden White Richard Rorty Charles Taylor Stanley Fish Terry Eagleton entre outros definem-se e distinguem-se de seus pares ao abraccedilar em alguns casos explicita-mente a Retoacuterica e em outros ao abraccedilar ideias consoantes agrave Retoacuterica contempo-racircnea Na segunda parte deste capiacutetulo na qual destacamos as contribuiccedilotildees dos retoacutericos modernos veremos que um nuacutemero consideraacutevel delas possui raiacutezes na Filosofia Abordaremos essas tentativas recentes de redefinir a Filosofia em um momento posterior deste capiacutetulo No entanto na presente discussatildeo sobre a divisatildeo FilosofiaRetoacuterica vamos nos limitar aos temas principais que emergem da antiga ruptura entre essas duas disciplinas

A antiga batalha entre Filosofia e Retoacuterica se reveste de muitas tensotildees mas nosso foco aqui eacute a tensatildeo principal entre elas e a ousada reivindicaccedilatildeo dos filoacuteso-fos de oferecer demonstraccedilotildees irrefutaacuteveis sobre a verdade para audiecircncias ideais contra a mais modesta reivindicaccedilatildeo dos retoacutericos para persuadir uma audiecircncia especiacutefica de que uma conclusatildeo particular garante anuecircncia O fato de que mesmo hoje dois mil e quinhentos anos depois do iniacutecio desse debate o prestiacutegio recai sobre aqueles que reivindicam demonstrar a verdade aos especialistas contra

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A construccedilatildeo do argumento

aqueles que reivindicam persuadir audiecircncias gerais enfatiza a difiacutecil batalha que a Retoacuterica encontra em sua luta com a Filosofia para garantir um nicho legiacutetimo dentro das ciecircncias humanas Parte do problema reside no fato de que a Filosofia foi declarada vencedora da batalha haacute muito tempo e consequentemente de que a histoacuteria desse debate foi escrita desse ponto de vista Como nos aponta Jarratt (1991) uma teoacuterica da Retoacuterica eacute difiacutecil entender os primeiros retoacutericos os Sofis-tas atraveacutes das lentes dos filoacutesofos antigos em particular Platatildeo e Aristoacuteteles com quem a histoacuteria alinhou-se por dois milecircnios (JARRATT 1991) A histoacuteria recente tem sido mais gentil com a Retoacuterica em parte graccedilas a intelectuais como Jarratt Assim tornou-se possiacutevel entendecirc-la em outros termos que os impostos pela Fi-losofia Isso natildeo significa dizer que as tensotildees desapareceram Elas simplesmente foram reconfiguradas dentro do campo da Retoacuterica Uma manifestaccedilatildeo particular dessa batalha por exemplo pode ser vislumbrada na tentativa de ldquoprofissionalizarrdquo a disciplina Retoacuterica de transformaacute-la em uma ciecircncia social capaz de apresentar se natildeo demonstraccedilotildees irrefutaacuteveis conclusotildees confiaacuteveis sobre o mundo baseadas em dados e de tornar-se mais ldquoautocircnomardquo ou menos parasitaacuteria de outras disci-plinas A resistecircncia a essas tentativas envolve a jaacute mencionada observaccedilatildeo de filoacutesofos contemporacircneos ndash em sua maioria rejeitam as tradiccedilotildees filosoacuteficas que demonizam a Retoacuterica ndash que casam perspectivas pragmaacuteticas e construtivistas como uma atividade transdisciplinar e sem apologias

A tensatildeo entre Filosofia e Retoacuterica ou entre demonstraccedilatildeo e persuasatildeo agraves vezes eacute caracterizada como uma tensatildeo entre verdade e efeito Em termos mais simples eacute o conflito entre aqueles que veem a verdade como independente da per-cepccedilatildeo humana e aqueles que entendem a anuecircncia da audiecircncia como condiccedilatildeo necessaacuteria para tornar algo verdadeiro Em nossa discussatildeo sobre os artigos de Fish e Leo cujo meta-argumento eacute com efeito uma retomada contemporacircnea da disputa aqui considerada cunhamos a visatildeo antiga como ldquoabsolutistardquo no sentido de que era natildeo contingente e natildeo relacional O filoacutesofo Hans Blumenberg (1987) rejeita essa visatildeo nos seguintes termos

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No relacionamento dos gregos com os gregos diz Isoacutecrates o meio apro-priado eacute a persuasatildeo enquanto no trato com os baacuterbaros eacute o uso da for-ccedila Essa diferenccedila eacute compreendida como sendo entre linguagem e edu-caccedilatildeo porque a persuasatildeo pressupotildee a partilha de horizontes alusotildees a materiais prototiacutepicos e uma orientaccedilatildeo providenciada por metaacuteforas e siacutemiles A antiacutetese entre verdade e efeito eacute superficial porque o efeito retoacuterico natildeo eacute uma alternativa a ser escolhida em oposiccedilatildeo a um insight que pode ser tido mas uma alternativa agrave evidecircncia definitiva que natildeo pode ser obtida que ainda natildeo pode ser obtida ou que em nenhuma me-dida pode ser obtida aqui e agora (BLUMENBERG 1987 p 435-6)

O que os filoacutesofos sugeriram por seacuteculos ser possiacutevel eacute justamente o que Blu-menberg (1987) estaacute aqui dizendo ser impossiacutevel ndash evidecircncias definitivas para a veracidade de asserccedilotildees no aqui e agora A recusa de Blumenberg (1987) em separar verdade de efeito aponta para uma aceitaccedilatildeo do fato de que como coloca Burke (1969) vivemos na ldquoBabel depois a quedardquo onde a uacutenica alternativa agrave forccedila eacute estabelecer uma identificaccedilatildeo entre falantes uma condiccedilatildeo que eacute conquistada atraveacutes de consideraacutevel exerciacutecio e astuacutecia graccedilas a todas as barreiras impostas pela linguagem pelo gecircnero pelas classes etc que sempre existiram

Tanto para Blumenberg (1987) quanto para Burke (1969) apenas quando falantes partilham um horizonte a conversaccedilatildeo e ainda menos a persuasatildeo e a identificaccedilatildeo se tornam possiacuteveis Em um mundo poacutes-lapsaacuterio (depois do lapso da entrada do pecado) a verdade eacute social Algueacutem eacute certamente livre para afirmar que as ldquoevidecircncias definitivasrdquo para seu ponto de vista existem fora da consciecircncia ou do entendimento das almas perdidas com quem se conversa mas essa afirmaccedilatildeo em si natildeo carrega a forccedila da disposiccedilatildeo dos outros em concordar Uma verdade sem efeito no mundo natildeo eacute bem uma verdade Um nuacutemero consideraacutevel de debates contemporacircneos confirma a inutilidade de se apelar para fontes natildeo autorizadas pelos objetivos do argumento de algueacutem O debate entre criacionistas (ou os pro-ponentes do intelligent design ndash projeto inteligente) e evolucionistas por exemplo

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eacute um choque entre linguagens incomensuraacuteveis e entre horizontes incongruen-tes Natildeo apenas a resoluccedilatildeo da questatildeo eacute inimaginaacutevel como uma conversaccedilatildeo significativa entre esses adversaacuterios eacute de difiacutecil visualizaccedilatildeo Se a minha verdade baseada em uma teoria coerente apoiada durante um seacuteculo por dados empiacutericos ou por uma poesia do texto sagrado ela natildeo seraacute vista como verdade se a audiecircn-cia natildeo partilhar desse mesmo horizonte Ateacute as provas geomeacutetricas podem ser ldquodemonstradasrdquo apenas se os axiomas nas quais se apoiam estejam garantidos A natureza incomensuraacutevel das vaacuterias verdades e vocabulaacuterios tem dado origem recentemente natildeo apenas a debates puacuteblicos rancorosos e inuacuteteis mas a violentos e sanguinaacuterios conflitos entre sistemas de crenccedila incomensuraacuteveis

O primeiro grande nome da perspectiva agrave que Blumenberg e Burke se opotildeem aqui foi Platatildeo que obviamente criticou a mais antiga escola retoacuterica a dos so-fistas Ironicamente a postura de Platatildeo em relaccedilatildeo aos filoacutesofos estaacute articulada a uma seacuterie de conjuntos de peccedilas oratoacuterias nas quais ele propaga uma gama de praacuteticas retoacutericas um pouco semelhantes agraves de seus adversaacuterios Para piorar as coisas as praacuteticas de Platatildeo satildeo menos respeitaacuteveis do que as dos filoacutesofos alvos de sua criacutetica Em particular a retoacuterica de Platatildeo eacute marcadamente assimeacutetrica para adotarmos um termo cunhado por Conley (1990) na medida em que o locutor Soacutecrates eacute ativo versado e possui uma agenda enquanto o interlocutor especial-mente os poetas ou os sofistas satildeo tipicamente passivos ingecircnuos e prenhes de conhecimento falso De maneira claramente ostensiva o Soacutecrates de Platatildeo possui no coraccedilatildeo os interesses mais nobres de seus interlocutores e o objetivo de suas perguntas eacute educaacute-los salvaacute-los dos erros de percurso tal como uma parteira que arranca a verdade de suas consciecircncias agastadas Em teoria Platatildeo natildeo possui um modelo de sua audiecircncia e eacute o mais puro dos persuasores Mesmo assim ele natildeo consegue persuadir sua audiecircncia a reconhecer as verdades que vatildeo aleacutem de seus horizontes A conversa natildeo pode transportar sua audiecircncia para as verdades inquestionaacuteveis que ele deseja compartilhar Ele precisa recorrer ao mesmo tipo de praacuteticas manipuladoras que ele atribui a seus adversaacuterios A genialidade de Platatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

natildeo estaacute na habilidade em compor argumentos logicamente hermeacuteticos mas em sua inigualaacutevel habilidade de disfarccedilar sua retoacuterica assimeacutetrica como diaacutelogo

Em oposiccedilatildeo agrave dependecircncia de Platatildeo a retoacuterica assimeacutetrica atribui-se a Protaacutegoras o desenvolvimento de uma forma de ldquoantiloacutegicardquo que torna o diaacutelogo aberto o que permite que as crenccedilas (doxa) de cada locutor exerccedila um papel na resoluccedilatildeo de um problema

A visatildeo de Protaacutegoras parece ser bilateral no sentido de que os dois la-dos de uma questatildeo devem exercer pressatildeo umas sobre as outras para que se atinja uma resoluccedilatildeo agrave questatildeo em voga Como nenhum lado eacute privilegiado a priori e ambos estatildeo fundamentados na doxa dos ou-vintes podemos caracterizar a relaccedilatildeo entre orador e audiecircncia como ldquosimeacutetricardquo (CONLEY 1990 p 6-7)

A manipulaccedilatildeo de Platatildeo dessa forma de diaacutelogo deixa clara a dificuldade de conciliar uma feacute absolutista em uma crenccedila e um diaacutelogo genuiacuteno Caso sejam privilegiadas a priori algumas crenccedilas em detrimento de outras antes do iniacutecio de um diaacutelogo eacute impossiacutevel garantir que essas crenccedilas transcendentais possam ser alteradas no curso desse diaacutelogo A uacutenica maneira pela qual um diaacutelogo pode subs-tituir crenccedilas privilegiadas a priori por outras eacute criar um tipo de barreira Todas essas questotildees nos levam de volta ao debate entre Fish e Leo do capiacutetulo anterior Apenas os ldquorelativistasrdquo e os inclinados perigosamente aos ldquomulticulturalistasrdquo podem acreditar na possibilidade de que um diaacutelogo genuiacuteno entre adversaacuterios possa ser um evento positivo ou na de algueacutem poderia mudar de opiniatildeo nesse tipo de discussatildeo O fato de que o ldquoabsolutismordquo na versatildeo moderna do debate entre platocircnicos e sofistas natildeo defende universais absolutos e especiacuteficos eacute sintomaacutetico da diferenccedila entre o mundo de nossos antepassados e o nosso

Os absolutismos de hoje como nota de maneira irocircnica o criacutetico americano M H Abrams carecem de absolutos Como Leo a maioria dos platocircnicos recentes tende a apoiar-se em lamentaccedilotildees como principal veiacuteculo de persuasatildeo Ao focar o

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ataque ndash e a atenccedilatildeo da audiecircncia ndash em tudo que deu errado desde 1968 quando os relativistas tomaram conta do asilo Leo e sua personagem podem evitar referecircn-cias a outros absolutos aleacutem dos que desapareceram O tratamento desses valores universais eacute muito mais um exerciacutecio nostaacutelgico do que uma anaacutelise

Impliacutecitas agrave oposiccedilatildeo entre os antigos filoacutesofos e retoacutericos e suas versotildees atuais estatildeo diferentes assunccedilotildees sobre as finalidades da razatildeo A rejeiccedilatildeo pelos antigos filoacutesofos do efeito como um aspecto da verdade eacute parte da mais significativa diferenccedila entre as duas abordagens O fim da razatildeo para a filosofia eacute algum tipo de descoberta ndash da verdade da realidade ou do bem ndash que seraacute entatildeo conhecida e partilhaacutevel Por outro lado para a retoacuterica o fim da razatildeo eacute uma escolha eacute ter a certeza de que a escolha pode nos aproximar da verdade da realidade ou do bem (e se alguns dos trecircs eacute privilegiado pela retoacuterica seria o bem como indicamos) mas eacute o ato em si executado em um lugar e hora especiacutefica e com um resultado par-ticular e natildeo o conhecimento em si que motiva o processo De fato como propotildee Blumenberg (1987 p 441) a situaccedilatildeo retoacuterica eacute como ldquo[] uma (falta) de provas e (eacute) compelido agrave accedilatildeordquo ao contraacuterio de Platatildeo que ldquoinstitucionalizourdquo a noccedilatildeo de que o ldquoconhecimento eacute a virtuderdquo desse modo tornando ldquo[] o que eacute evidente em norma de comportamentordquo (BLUMENBERG 1987 p 431) Agrave luz de Platatildeo quando algueacutem deteacutem o conhecimento correto eacute compelido a accedilotildees virtuosas enquanto os retoacutericos entendem que a virtude deve ser compelida outra vez em cada situaccedilatildeo nova usando informaccedilotildees incompletas e meios especiacuteficos para essa situaccedilatildeo

Uma das principais vantagens dos filoacutesofos ao promover o conhecimento em detrimento da accedilatildeo jaacute que o fim da razatildeo em muitos casos reduz as escolhas a duas eacute o fato de que a escolha recomendaacutevel se aplica a todas as situaccedilotildees Como aponta Crosswhite (1996 p 36) esse processo pode gerar uma ideia redutora dos produtos da retoacuterica ldquoA necessidade da accedilatildeo de onde vem a necessidade de uma escolha agraves vezes forccedila a uma bivalecircncia ndash isto eacute demanda um sim ou natildeo agraves reivindicaccedilotildees colocadas nos argumentos ndash mas isso natildeo deve ser confundido com as demandas da razatildeordquo O que a razatildeo demanda e o que a retoacuterica eacute destinada a

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produzir eacute um campo amplo de escolhas selecionaacuteveis e um senso de criteacuterio claro e transparente para realizar a escolha Isso ocorre porque os filoacutesofos natildeo pre-cisam necessariamente agir sobre o conhecimento descoberto porque o maacuteximo que eles se aproximam do par escolha-accedilatildeo eacute a traduccedilatildeo ocasional de princiacutepios em regras (caso da eacutetica aplicada) eles estatildeo a salvo do consideraacutevel luto que vem apoacutes as escolhas errocircneas Enquanto isso a Histoacuteria apresenta diversos casos de argumentos retoricamente brilhantes e vencedores que levaram a consequecircncias malsucedidas natildeo intencionais ou ateacute mesmo desastrosas

Da perspectiva dos retoacutericos filoacutesofos como Platatildeo rotineiramente despreza a injunccedilatildeo proverbial que natildeo permite o perfeito ser inimigo do bem Enquanto os filoacutesofos tradicionais conjuraram respostas perfeitas agraves perguntas mais pro-fundas da vida eles precisaram colocar o peacute fora da histoacuteria para consegui-lo e suas respostas raramente satildeo retomadas de maneira intacta Os retoacutericos por outro lado sempre se restringiram a respostas imperfeitas poreacutem viaacuteveis para o aqui e agora Ao recusar o passo em direccedilatildeo a um passado dourado um futuro transcendente ou a algum paradigma novo e inimaginaacutevel os retoacutericos tornam a si proacuteprios uacuteteis agrave esfera puacuteblica

De fato muitos retoacutericos antigos eram figuras puacuteblicas dignas de nota que arguiram em casos legais ajudaram a passar leis e a definir os valores da proacutepria sociedade O soacutelido sistema dos filoacutesofos antigos ofereceu frameworks compreensi-vos e capazes de explicar inteiramente os sentidos do mundo e antecipou todas as perguntas importantes sobre a vida apesar de raramente apresentarem impacto significativo (com exceccedilatildeo poreacutem dos filoacutesofos morais) das atividades cotidianas do mundo em que viviam Hoje em dia poucos filoacutesofos arriscam-se a oferecer teorias unificadas das coisas Mas isso natildeo significa que seu papel tradicional no debate entre filosofia e retoacuterica desapareceu Hoje em dia esse papel eacute preenchido por uma classe de pensadores um subconjunto de absolutistas agraves vezes referidos como ideoacutelogos

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Enquanto ldquoideoacutelogordquo eacute um termo muitas vezes usado para designar uma pessoa radical tendenciosa em oposiccedilatildeo a uma pessoa racional desprovida de caracte-riacutesticas subjetivistas empregamos esse termo de maneira mais restrita Noacutes natildeo equacionamos racionalidade com objetividade e admitimos que todos possuem preconceitos pontos de vista e crenccedilas que constroem e suas percepccedilotildees ldquoUma maneira de verrdquo como nos lembra Burke (1984 p 49) ldquo[] eacute tambeacutem uma maneira de natildeo verrdquo Tambeacutem admitimos que nossas crenccedilas e assunccedilotildees satildeo corrigiacuteveis que elas podem e iratildeo mudar e que agraves vezes uma mudanccedila na crenccedila eacute um epi-fenocircmeno que segue uma mudanccedila na experiecircncia outras vezes eacute um resultado previsiacutevel de uma busca disciplinada e intencional de novas perspectivas ou de evidecircncias de provas e de intercacircmbio com os outros

Assumimos que a uacuteltima possibilidade representa uma condiccedilatildeo necessaacuteria agrave retoacuterica Tambeacutem nos juntamos a Aristoacuteteles ao admitirmos que eacute mais faacutecil mudar as mentes aos poucos e que a maneira mais praacutetica de mover as pessoas em direccedilatildeo a crenccedilas natildeo familiares eacute atraveacutes de crenccedilas familiares

Isto posto tambeacutem admitimos a existecircncia daqueles que deteacutem firmemente suas proacuteprias crenccedilas e satildeo tatildeo resistentes agrave mudanccedila que merecem uma de-signaccedilatildeo especial Em casos extremos podem ser conhecidos como fanaacuteticos No entanto dentro do esquema ordinaacuterio das coisas o termo ideoacutelogo parece bastante aplicaacutevel Os ideoacutelogos detecircm com notaacutevel tenacidade um bocado de ideias suficientes para explicar exaustivamente algum aspecto do mundo ou uma semente de uma explicaccedilatildeo universal Eles satildeo raramente afetados por ar-gumentos a que se opotildeem ou por evidecircncias que invalidam suas crenccedilas Face a fatos pouco cooperativos ou a contra-argumentos fatais eles podem optar por descaracterizar ou ignorar a oposiccedilatildeo Enquanto aceitam a remota possibilidade de que suas crenccedilas possam ser em um momento posterior estremecidas o ocircnus da prova imposto aos criacuteticos eacute quase inalcanccedilaacutevel A crenccedila em Deus (o deles natildeo o seu) no Livre Mercado no Indecidiacutevel ou no Novo Paradigma eacute completa e quaisquer consequecircncias maleacuteficas que possam resultar do agir em nome de sua

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forccedila-motriz satildeo postas de lados ou racionalizadas Eles enxergam quem prati-ca a ldquoantiloacutegicardquo e promovem a retoacuterica simeacutetrica como fracos e perigosamente vulneraacuteveis a ideias que ameaccedilam o nosso ndash vale dizer o deles ndash estilo de vida

Eacute por isso que ensaiar alguns dos principais argumentos de Platatildeo contra a retoacuterica prova ser uma importante preparaccedilatildeo para o debate com os ideoacutelogos de hoje e para antecipar argumentos que nossos estudantes incorporaram das inuacutemeras e bem divulgadas ideologias disponiacuteveis hoje em dia no mercado de ideias Enquanto alguns dos ideoacutelogos mais poderosos da atualidade defendem suas convicccedilotildees com a mesma sinceridade que Platatildeo usava ao defender as suas outros criaram nichos lucrativos em mercados midiaacuteticos ao se tornarem o que designamos ldquoideo-treinadoresrdquo (ideo-trainers) oradores profissionais que fazem declaraccedilotildees rigorosas geralmente extravagantes mais uacuteteis para a venda de li-vros e para ganhar tempo de exposiccedilatildeo na miacutedia do que para expor uma posiccedilatildeo legiacutetima ou ateacute mesmo coerente Nos anos recentes com o crescimento de canais pagos de notiacutecias e blogs de Internet a linha que separa entretenimento e notiacutecia quase desapareceu transformando em estrelas pessoas que atendem aos anseios de determinados grupos O tipo de ideoacutelogos artificiais que emergem nesse mer-cado e os diferentes crentes verdadeiros que operam principalmente no mercado impresso oferecem um modelo de argumento profundamente assimeacutetrico para nossos estudantes Por isso dedicar-se agrave antiga habilidade da ldquoantiloacutegicardquo ou dia-leacutetica pode ser uma habilidade crucial de sobrevivecircncia

Uma figura da retoacuterica antiga a quem vale a pena dedicar um pouco mais de espaccedilo na nossa histoacuteria eacute Aristoacuteteles Pode-se alegar que tudo o que eacute ne-cessaacuterio agrave compreensatildeo do argumento estaacute em Aristoacuteteles O resto eacute nota de rodapeacute Embora nossa admiraccedilatildeo por esse pensador seja enorme reconhecemos a necessidade de ldquodar um descontordquo ao tratamento aristoteacutelico do argumento para os estudantes de hoje em dia Aleacutem disso achamos que um bom nuacutemero de intelectuais recentes citados neste capiacutetulo fez exatamente isto expandiram a compreensatildeo aristoteacutelica sobre o argumento deixando de lado alguns de seus

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A construccedilatildeo do argumento

julgamentos pontuais sobre a audiecircncia e revendo suas ideias afim de dar conta de perspectivas sobre o efeito da miacutedia na comunicaccedilatildeo e sobre o papel ativo que a linguagem desempenha na compreensatildeo

Aristoacuteteles transcende a eterna batalha entre filosofia e retoacuterica e torna a retoacuterica uma ferramenta respeitaacutevel embora de segundo niacutevel para realizar nos-sos trabalhos sobre o mundo Ele eacute o primeiro grande sistematizador da retoacuterica o primeiro a oferecer uma anaacutelise profunda de sua dinacircmica bem como sobre a taxonomia de seus elementos Evita tambeacutem o problema crocircnico do filoacutesofo de permitir a busca pela perfeiccedilatildeo ndash representada pela ciecircncia e pela filosofia ndash para esconder a busca da retoacuterica pelo que eacute uacutetil Cria um espaccedilo intelectual para a retoacuterica apontando para o reconhecimento de verdades provaacuteveis e para o reconhecimento do impacto das circunstacircncias sobre a verdade Ele deixa claro ainda que o maior poder da retoacuterica natildeo reside apenas na concepccedilatildeo dos argumentos vencedores mas tambeacutem na capacidade de ldquose enxergar os meios de persuasatildeo disponiacuteveisrdquo Um elemento importante dessa capacidade reside na habilidade de argumentar de maneira persuasiva em qualquer um dos lados de uma discussatildeo Natildeo que isso seja um ensinamento jaacute que natildeo se deve persuadir sobre o que estaacute aviltado mas para que natildeo nos escape o real estado de coisas e para que possamos ser capazes de evitar que outra pessoa use o discurso de forma injusta (Retoacuterica Livro I)

Aristoacuteteles fez tambeacutem do estudo da audiecircncia uma ciecircncia rudimentar En-quanto sua psicologia da audiecircncia atinge provavelmente um leitor contemporacircneo imperfeito e estereotipado a precursora da ldquopsicologia dos humoresrdquo ele define um caso claro e convincente sobre a importacircncia de se estabelecer uma base comum com a audiecircncia considerando suas crenccedilas e convicccedilotildees Quaisquer que sejam as limitaccedilotildees de visatildeo de Aristoacuteteles sobre a psicologia da audiecircncia seu desejo em tomar a audiecircncia como elemento relevante representa um grande avanccedilo em relaccedilatildeo agrave posiccedilatildeo de Platatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

Aristoacuteteles portanto privilegiou a arte da dialeacutetica e da demonstraccedilatildeo sobre a arte da persuasatildeo e foi consideravelmente menos igualitaacuterio do que boa parte dos sofistas Ele tambeacutem suspeitava das dimensotildees emocionais e natildeo racionais da verdade Parece que ele partilhou da desconfianccedila popular da tendecircncia dos sofistas de que ldquotornar-se fraco parece ser a melhor causardquo (Retoacuterica Livro II) Nesse uacuteltimo caso ele claramente tinha em mente o ldquoequivocadordquo uso da antiloacutegica pelos sofistas que apoacutes argumentar de maneira persuasiva em qualquer um dos lados de uma discussatildeo elege o lado mais fraco porque serve a seus interesses natildeo aos da verdade Poreacutem a quem cabe julgar qual eacute o lado mais forte e o mais fraco Evidentemente qualquer argumento que frustre ou enfraqueccedila os nossos nos pareceraacute mais fraco O argumento de Aristoacuteteles nesse ponto pode ser circular ele presume conhecer o que pode apenas ser determinado ao testar os argumentos de um lado contra o outro Deixando de lado alguns pontos fracos de Aristoacuteteles no tocante aos sofistas dedicamos nossa atenccedilatildeo a algumas das razotildees pelas quais ele continua importante e ainda mais agrave adaptaccedilatildeo do seu pensamento ao ensino do argumento na atualidade

A descrenccedila aristoteacutelica sobre os meios natildeo racionais de persuasatildeo eacute certa-mente compreensiacutevel no contexto de sua eacutepoca Assim como Platatildeo ele via a filo-sofia como um meio de substituir as formas retroacutegradas de raciociacutenio herdadas dos mitos gregos sob os quais os sofistas debruccedilaram-se enquanto fonte de doxa Como defendeu Jarratt (1991) a hostilidade dos filoacutesofos antigos em relaccedilatildeo agrave re-toacuterica pode ser entendida como uma hostilidade a qualquer forma natildeo racional de persuasatildeo Sobre Platatildeo por exemplo a autora aponta que ele temia ldquo[] a trans-ferecircncia poeacutetica de informaccedilatildeo cultural crucial por conta dos efeitos hipnoacuteticos e defendeu que ela abrigava uma absorccedilatildeo acriacutetica da ideologia dominanterdquo (1991 p xxi) Embora a oposiccedilatildeo de Aristoacuteteles tenha sido mais silenciosa que a de Platatildeo e embora ele certamente reconhecesse um lugar para as emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo ndash desde que pelo menos essas emoccedilotildees sejam categorizadas de maneira apropriada e exaustiva e triadas em pares opostos com a virtude na posiccedilatildeo medial ndash parece

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que ele nunca esteve completamente confortaacutevel com a emoccedilatildeo e o espetaacuteculo duas das ferramentas primaacuterias dos bardos e sofistas e apenas hesitou a reconhecer explicitamente seu valor Ele inclui o espetaacuteculo nessas condiccedilotildees como um dos seis elementos do drama na Poeacutetica mas relega a ele a menor importacircncia entre esses elementos incluindo-o mais como trabalho do operador de palco do que como arte do poeta Aleacutem disso discorda de quem atribui mais valor ao espetaacuteculo do que ao funcionamento interno da trama na criaccedilatildeo de efeitos dramaacuteticos

Na Retoacuterica ele atribui aos autores de manuais isto eacute os sofistas a ecircnfase demasiada na retoacuterica forense ou de tribunal ldquo[] ataque verbal a prece a raiva e outras emoccedilotildees da alma natildeo estatildeo relacionadas ao fato mas satildeo apelos ao juacuterirdquo (Retoacuterica Livro I) Ao contraacuterio propotildee maior ecircnfase sobre a retoacuterica deliberativa com seus apelos mais racionais Impliacutecita agrave criacutetica de Aristoacuteteles ao espetaacuteculo e agrave emoccedilatildeo estaacute a desconfianccedila sobre as opiniotildees populares desconfianccedila potenciali-zada por sua tendecircncia nas palavras de Burke (1969 p 64) em ver a ldquo[] audiecircncia como algo puramente dadordquo ao inveacutes de em arte uma construccedilatildeo do orador De modo particular ele lembra em diversos momentos as habilidades limitadas desse tipo de audiecircncia de compreender cadeias complexas de raciociacutenio

O segredo para ajudar a superar a descrenccedila de Aristoacuteteles com o natildeo racional eacute olhar para aleacutem da tendecircncia de desprezar a opiniatildeo puacuteblica Enquanto a audiecircn-cia for associada a pessoas preconceituosas e emotivas as opiniotildees natildeo racionais na construccedilatildeo do argumento seratildeo vistas com ressalva Os estudantes precisam ser expostos a um entendimento mais complexo de audiecircncia De modo particular precisam entender que a audiecircncia como vaacuterios teoacutericos reconhecem eacute ao mesmo tempo direcionada suplicada servida e criada Por isso gostamos de dar iniacutecio a nossas aulas desde o primeiro dia ressaltando a metaacutefora do argumento como uma conversa e o processo de invenccedilatildeo colaborativa Essa noccedilatildeo da plasticidade da audiecircncia como conceito puramente intelectual que pode ser difiacutecil para os estudantes compreender eacute mais acessiacutevel no niacutevel da interaccedilatildeo entre pares

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Um segundo elemento uacutetil das ideias de Aristoacuteteles que precisa ser destacado em sala de aula diz respeito agraves situaccedilotildees de uso do argumento Parece que ele ima-gina um nuacutemero limitado de eventos e ocasiotildees em que o argumento eacute utilizado (sessotildees legislativas tribunais ocasiotildees solenes) mas o argumento atualmente estaacute muito mais difundido Pode-se ter contato com ele atraveacutes da televisatildeo do raacutedio dos jornais impressos ou on line Ele pode durar um longo periacuteodo de tempo e pode se consolidar aos poucos atraveacutes de chavotildees reacuteplicas e anuacutencios de ataque e contra-ataques Agraves vezes os argumentos na esfera puacuteblica tomam formas fluidas e expressam apoio ou criacutetica a uma posiccedilatildeo fazendo alusatildeo a outra e defendem uma alternativa sem designar a outra agrave qual ela se opotildee Os argumentos polecircmicos natildeo evoluem como evolui uma metaacutestase ou os interessados nas disputas dos talk shows nos noticiaacuterios blogs propagandas editoriais no vazamento de insinuaccedilotildees maldosas e assim por diante que oferecem novas nem sempre confiaacuteveis revela-ccedilotildees ldquofactuaisrdquo e linhas de raciociacutenio Geralmente esses tipos de argumento incluem mais de duas posiccedilotildees possiacuteveis agraves vezes mais de duas Nesse sentido considera-mos uacutetil que os estudantes conservem jornais nos quais observem controveacutersias em andamento em vez de se concentrarem estritamente em argumentos escritos descontextualizados Eacute interessante a propoacutesito observar como novas linhas de argumentaccedilatildeo que aparecem em seccedilotildees de revistas e editoriais satildeo retiradas da Internet e reproduzidas sem a identificaccedilatildeo da fonte Um dos nossos estudantes deu um exemplo recente a esse respeito Ele observou que a controveacutersia sobre a guerra no Iraque foi comparada ao Vietnatilde ndash que natildeo eacute um fato comumente evocado pelos apoiadores da guerra ndash nos argumentos de diversos conservadores proacute-guerra que apontaram o colapso quase imediato do exeacutercito Sul-Vietnamita apoacutes a saiacuteda dos americanos Como todas as analogias essa sugere possibilidades muacuteltiplas de conclusatildeo incluindo a de que mesmo se permanececircssemos no Iraque ou no Viet-natilde ou mesmo se perdecircssemos todas as vidas como as que perdemos ainda assim isso natildeo garantiria a soberania do governo iraquiano Os apoiadores da guerra de

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maneira unacircnime rejeitaram essa possibilidade ao favorecer a sugestatildeo de que a retirada das tropas seria responsaacutevel por todas as cataacutestrofes ocorridas no Iraque

Por fim a argumentaccedilatildeo de hoje em dia se comparado ao da eacutepoca de Aris-toacuteteles debruccedila-se mais fortemente sobre elementos visuais Particularmente no domiacutenio da publicidade e do marketing o apelo argumentativo pode ser puramen-te visual Em muitos domiacutenios o suporte visual provecirc um contexto criacutetico para a mensagem textual Em parte eacute evidente isso tudo tem a ver com o ambiente alta-mente midiaacutetico em que vivemos Raramente presenciamos um debate ou ouvimos um argumento de primeira matildeo Estamos muito mais inclinados a apreender as coisas atraveacutes de uma maneira que trata e filtra intencionalmente a mensagem Algueacutem pode passar um dia inteiro no Youtube e ver incontaacuteveis postagens sobre controveacutersias atuais versotildees editadas de viacutedeos de figuras puacuteblicas que apresen-tam argumentos Esses viacutedeos amadores podem ser ao mesmo tempo partidaacuterios e divertidos Outro motivo pelo qual o visual suplanta o textual na apresentaccedilatildeo do argumento atualmente tem a ver com um fenocircmeno jaacute percebido por Aristoacutete-les os argumentos que natildeo parecem ser tecircm maior chance de passarem desper-cebidos por nossos filtros cognitivos do que os apelos racionais expliacutecitos Esses argumentos podem apoiar-se substancial ou inteiramente no proacuteprio ldquoespetaacuteculordquo criticado por Aristoacuteteles no cenaacuterio no pano de fundo nos recursos visuais nos acircngulos da cacircmera e assim por diante e oferecem pouca ou nenhuma proposiccedilatildeo argumentativa A maioria dos manuais atuais sobre argumento dedica alguma atenccedilatildeo aos seus elementos visuais particularmente na propaganda impressa

Assim recomendamos fortemente a dedicaccedilatildeo de tempo da aula para discutir e aplicar algumas dessas liccedilotildees Dito isso o vocabulaacuterio especializado necessaacuterio agrave anaacutelise seacuteria dos argumentos visuais em suas diferentes modalidades eacute tatildeo grandioso que nas aulas de escrita focadas na argumentaccedilatildeo podemos esperar fazer um pouco mais que sensibilizar os estudantes para as dimensotildees visuais dos argumentos

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Em suma a retoacuterica de Aristoacuteteles permanece como uma excelente fonte para o entendimento da produccedilatildeo de textos e discursos persuasivos embora ofereccedila pouca ajuda para compreender como os eventos e os comportamentos natildeo pro-posicionais funcionam de forma persuasiva Aristoacuteteles privilegia os elementos racionais ocasionais e textuais da argumentaccedilatildeo e certamente esses elementos continuam importantes para qualquer discussatildeo contemporacircnea sobre persuasatildeo ndash em detrimento das dimensotildees visuais midiaacuteticas e natildeo racionais Se considerar-mos o assunto a partir da proacutepria terminologia de Aristoacuteteles (Retoacuterica Livro II) o equiliacutebrio entre os trecircs modos ldquoartiacutesticosrdquo de persuasatildeo (em oposiccedilatildeo aos modos natildeo artiacutesticos como a tortura) mudou radicalmente nos uacuteltimos anos do logos para o ethos e para o pathos Na apresentaccedilatildeo aristoteacutelica sobre a forma como interagem esses modos o ethos ou o caraacuteter do orador ndash a situaccedilatildeo retoacuterica eacute invariavelmente oral para Aristoacuteteles ndash eacute empregado para a elaboraccedilatildeo das observaccedilotildees da forma mais clara possiacutevel e desse modo chamar a atenccedilatildeo da audiecircncia Ao despertar as emoccedilotildees da audiecircncia (pathos) o orador possibilita a accedilatildeo ou uma boa recepccedilatildeo das decisotildees dessa audiecircncia O logos ou o argumento loacutegico eacute por sua vez empre-gado para tornar provaacutevel a causa do orador e as alternativas improvaacuteveis Ethos e pathos cumprem aqui uma funccedilatildeo importante mas suplementar nesse esquema

O cerne da questatildeo eacute a concepccedilatildeo da estrutura argumentativa e a seleccedilatildeo das razotildees e evidecircncias que iratildeo ter maior peso para a audiecircncia O logos atua de ma-neira central na retoacuterica de Aristoacuteteles assim como o enredo na sua poeacutetica por razotildees similares Eacute a alma da peccedila a forccedila-motriz do argumento No entanto como hoje em dia o ethos pode ser derivado da celebridade assim como da experiecircncia ou da virtuosidade linguiacutestica e como o pathos pode ser evocado por uma muacutesica ou uma imagem forte a persuasatildeo pode ser alcanccedilada com muito menos esforccedilo pelo logos como nos tempos de Aristoacuteteles Assim os estudantes precisam estar mais atentos a essas dimensotildees natildeo racionais do argumento

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o problema do engessamento da retoacuteriCa

A eterna batalha entre Retoacuterica e Filosofia apresenta implicaccedilotildees importantes para o nosso segundo tema da histoacuteria da Retoacuterica a transformaccedilatildeo recorrente dos poderes imaginativos da Retoacuterica em foacutermulas e sistemas riacutegidos A questatildeo colocada pelo engessamento contiacutenuo da Retoacuterica eacute a seguinte em que medida a Retoacuterica pode ser metoacutedica sem se tornar inerte Burke (1984 p 225) considera essa questatildeo agrave luz da ldquoburocratizaccedilatildeo da imaginaccedilatildeordquo entendida como um ldquopro-cesso histoacuterico baacutesicordquo que pode apenas ser desacelerado mas nunca paralisado ou superado Esse processo emerge quando uma das possibilidades geradas por um princiacutepio ou insight eacute colocada de lado em detrimento de outras Eacute evidente que para qualquer possibilidade se tornar factual outras devem ser ignoradas ou me-nos exploradas Todos passamos por experiecircncias desse tipo Quando precisamos escolher uma pessoa com quem iremos ficar ou o que fazer isso nos forccedila a colocar de lado outras escolhas Se sonhos devem tornar-se realidade se as promessas dos poliacuteticos devem tornar-se poliacuteticas puacuteblicas se os projetos devem tornar-se insti-tuiccedilatildeo ou produtos se crenccedilas filosoacuteficas e religiosas devem tornar-se leis outras possibilidades devem ser superadas ou abandonadas Assim como toda maneira de ver eacute tambeacutem uma maneira de natildeo ver toda maneira de atualizar uma perspectiva eacute tambeacutem uma maneira de natildeo atualizar outra

No entanto por mais inevitaacutevel que seja esse processo ele pode com o tempo apresentar implicaccedilotildees negativas Ideias originais tornam-se gradualmente em ortodoxia e os sistemas que elas nos oferecem engendram hierarquias que definem e datildeo prioridades a elementos nela presentes de acordo com o princiacutepio originaacuterio

Eventualmente a hierarquia muitas vezes problemaacutetica torna-se um peso burocraacutetico dedicada mais agrave autoperpetuaccedilatildeo do que agrave realizaccedilatildeo do princiacutepio de origem e agraves possibilidades sobre as quais a estrutura foi fundada Os que estatildeo no topo da burocracia reivindicam a ortodoxia como a posse de um tiacutetulo que lhes eacute proacuteprio e oferecem-se como personificaccedilatildeo do princiacutepio subordinante a tal ponto

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que ldquoos subprodutos natildeo intencionaisrdquo (BURKE 1984 p 226) de suas accedilotildees sobre-potildeem-se agraves gloriosas possibilidades que deram suporte ao princiacutepio originaacuterio Um exemplo claacutessico de burocratizaccedilatildeo diz respeito agrave inversatildeo da doutrina puritana da eleiccedilatildeo cujos sinais satildeo convertidos em causas e simultaneamente os ldquoeleitosrdquo quem quer que seja a empregam para herdar seus benefiacutecios tidos como presentes divinos enquanto o fracasso dos natildeo eleitos eacute atribuiacutedo agrave falta de piedade divina Um programa religioso destinado a encorajar a humildade e a abnegaccedilatildeo eacute assim transformado em apologia do status quo e um exerciacutecio insiacutepido de melhoria de posiccedilatildeo social A loacutegica baacutesica por traacutes dessa enganaccedilatildeo de trezentos anos ainda pode ser observada em argumentos presentes no discurso poliacutetico americano atual Como aponta Burke (1984) todos os sistemas designados para transformar ideais em accedilatildeo eventualmente atingem um ponto de rendimento decrescente quando a manutenccedilatildeo do status dentro do sistema torna-se a razatildeo de ser do proacuteprio sistema

Infelizmente as observaccedilotildees de Burke (1984) sobre a burocratizaccedilatildeo tornam--se verdade em todas as tentativas de sistematizaccedilatildeo ateacute mesmo em tentativas de sistematizar o entendimento retoacuterico Adotar uma metodologia da invenccedilatildeo significa ldquo[] que os desenvolvimentos satildeo treinados pela rotina Ciecircncia conhe-cimento eacute a burocratizaccedilatildeo do saberrdquo (BURKE 1984 p 228) A rotina para ser uacutetil deve apresentar um caraacuteter axiomaacutetico Ou nas palavras simples de Burke a rotina torna-se o ldquocaminho da roccedilardquo que foi ldquoconservado natildeo porque foi criticado avaliado e julgado como o melhor processo possiacutevel mas simplesmente porque nunca foi questionadordquo (BURKE 1984 p 228) Nem mesmo a metodologia de Burke estaacute excluiacuteda dessa criacutetica

Nossa foacutermula ldquoa perspectiva pela incongruecircnciardquo eacute uma ldquometodologia da invenccedilatildeordquo paralela em uma esfera puramente conceitual Ela buro-cratiza um recurso confinado a uma escolha de alguns de nossos pen-sadores ldquoreaisrdquo Ela torna a perspectiva barata e faacutecil (BURKE 1984 p 228-29)

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Embora esse movimento acarrete alguma deterioraccedilatildeo de ideias produzidas pelo meacutetodo tambeacutem resulta em ldquo[] um desenvolvimento correspondente na qualidade da sofisticaccedilatildeo popularrdquo (BURKE 1984 p 229) que para Burke (1984) justifica a mudanccedila Talvez o exemplo mais conhecido da metodologia desse au-tor em sala de aula de escrita eacute a difundida abordagem dramaacutetica na forma de pentaacutegono como um dispositivo heuriacutestico accedilatildeoato agente agecircncia propoacutesito cenaacuterio e agraves vezes atitude De nosso ponto de vista muitas tentativas de adaptar a abordagem dramaacutetica de Burke (1984) agraves aulas de escrita resultam em um mal uso das ideias e perda de conexatildeo com o contexto mais amplo no qual ela se ori-gina Dissociado do conceito de ratio (a relaccedilatildeo entre os conceitos do pentaacutegono) o sistema proposto por Burke funciona de maneira similar agraves perguntas tiacutepicas do lead no campo do jornalismo O que Quem Quando Onde Por quecirc e agraves ve-zes Como Poreacutem no final das contas cada professor deve pesar os ganhos com a compreensatildeo em oposiccedilatildeo agraves perdas com ldquosabedoriardquo na adoccedilatildeo de qualquer metodologia em sala de aula

Esse prefaacutecio estendido das ideias de Burke sobre o engessamento da retoacuterica tem por funccedilatildeo colocar o assunto em perspectiva jaacute que ele estaacute ausente quando o tema do meacutetodo eacute levantado no contexto do ensino do argumento No campo da escrita o processo pelo qual os insights satildeo convertidos em rotina e as heuriacutesticas em foacutermula eacute tipicamente visto como injustificado desnecessaacuterio e negativo A importacircncia de democratizar um recurso eacute consequentemente omitida e a mera presenccedila de uma rotina em um sistema levaraacute alguns a demonizaacute-la enquanto uma ldquocorrente tradicionalrdquo Para ser justo em nossa histoacuteria haacute uma abundacircncia de casos nos quais pedagogias desenhadas para ajudar iniciantes a dominar a arte da retoacuterica metamorfoseiam-se em sistemas que sufocam a imaginaccedilatildeo das pessoas deformam a prosa e afastam os assuntos que nos interessam

No entanto se natildeo aprendermos a tolerar um certo elemento de burocratiza-ccedilatildeo em nossas aulas corremos o risco de tornar a retoacuterica em uma arte elitista (e

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essencialmente incompreensiacutevel) dependente em grande parte do olhar aguccedilado de cada indiviacuteduo para a representaccedilatildeo ndash o que no seacuteculo XVII seria referido como ldquopreferecircnciardquo ndash ao inveacutes de uma maneira racional social e replicaacutevel de construir sentido O problema do engessamento ao cabo levanta questotildees fundamentais para o ensino do argumento incluindo a mais fundamental de todas o que de fato ensinamos quando ensinamos estudantes a produzir argumentos

Algumas evidecircncias desse engessamento jaacute aparecem nas referecircncias depre-ciativas aos primeiros manuais de retoacuterica precursores dos atuais livros didaacuteticos Apesar de parte dessa criacutetica ocorrer em funccedilatildeo do desdeacutem geral dos filoacutesofos pela retoacuterica uma parte dela parece ter meacuterito Depois de Aristoacuteteles de acordo com Kennedy (1999) a urgecircncia em codificar e sistematizar a Retoacuterica cresceu junto ao decliacutenio intelectual que atingiu o mundo antigo

A aceitaccedilatildeo de regras para a arte de respostas certas e erradas signifi-cou o iniacutecio de um processo de engessamento que sufocou toda a criati-vidade antiga A praacutetica dentro das artes foi controlada mais e mais por regras restritas O artista era cada vez mais um virtuoso exultante no jogo e nas regras O uacutenico lugar para o crescimento estava dentro das proacuteprias regras de modo que podemos encontrar a execuccedilatildeo dos temas desenhada nos primeiros manuais [] O desenvolvimento da retoacuterica em um sistema fechado foi preluacutedio para o conceito de vida e pensamen-to enquanto sistemas fechados (KENNEDY 1999 p 124)

Enquanto Aristoacuteteles elaborava os elementos da Retoacuterica explicava sua di-nacircmica e a situava no contexto de outras abordagens para o entendimento seus sucessores geralmente se contentavam com a enumeraccedilatildeo de elementos ignoran-do as preocupaccedilotildees mais importantes Por consequecircncia geraram terminologias elaboradas e cada vez mais distantes da linguagem cotidiana pouco aplicaacuteveis agraves preocupaccedilotildees praacuteticas enfatizadas pelos primeiros retoacutericos Tudo o que era necessaacuterio saber para argumentar com ecircxito eram as regras do argumento e as

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partes de um discurso persuasivo Cada caso era previsto pelas regras e catego-rias da retoacuterica enquanto as ldquocircunstacircncias mitigadas da vidardquo (KENNEDY 1999 p 267) eram ignoradas em prol do encaixe dos casos nas devidas categorias e do encontrar uma soluccedilatildeo ditada pela categoria Assim quando a Retoacuterica abandona as circunstacircncias mitigadas e particulares de uma situaccedilatildeo deixa de ser Retoacuterica em qualquer sentido vaacutelido

Em outras palavras esse foco que a Retoacuterica atribui agraves regras se daacute em funccedilatildeo da atenccedilatildeo agrave unicidade de cada situaccedilatildeo retoacuterica uma preocupaccedilatildeo que os pri-meiros gregos chamavam de kairos (oportunidade) O kairos era particularmente importante porque servia como ferramenta para resolver antinomias aparentes geradas pela abordagem antiloacutegica de compreensatildeo dos sofistas A propoacutesito da preocupaccedilatildeo de Goacutergias com o kairos Kennedy (1999 p 66) assinala ldquo[] qualquer problema posto envolve escolha ou compromisso entre duas antiacuteteses de modo que a consideraccedilatildeo do kairos isto eacute do tempo lugar e circunstacircncia [] pode resolver o dilema e levar agrave escolha da verdade relativa e agrave accedilatildeordquo Quando as leis e princiacute-pios (ou regras dos retoacutericos) se contradizem a loacutegica e os sistemas engessados deixam de ajudar a soluccedilatildeo do impasse As hierarquias cujos valores satildeo dados a priori natildeo poderatildeo ajudar a decidir qual regra legiacutetima entre duas ou mais eacute mais apropriada para um conjunto particular de circunstacircncias A menos que se possa tomar tais decisotildees natildeo se pode agir e a Retoacuterica torna-se uma atividade cerimo-nial virtualmente inuacutetil na esfera puacuteblica exceto enquanto forma degradada de entretenimento Algo que aprendemos a partir de praacuteticas derivadas das vaacuterias versotildees histoacutericas do problema do engessamento diz respeito ao entendimento de que a Retoacuterica eacute a ldquociecircncia das instacircncias particularesrdquo e de que ao cabo os meacutetodos devem acomodar as circunstacircncias

Nossa tendecircncia em esquecer a centralidade da circunstacircncia para o entendi-mento na Retoacuterica eacute literalmente visiacutevel em aulas de escrita haacute seacuteculos Qualquer um que tenha ensinado escrita na faculdade por mais de vinte anos iraacute reconhecer

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A construccedilatildeo do argumento

na pedagogia dos modelos tradicionais de escrita um resquiacutecio do ldquosistema fechadordquo da Retoacuterica que prevalece haacute mais de dois mil anos O argumento recebeu pouca atenccedilatildeo nesses cursos em grande parte porque a partir do momento em que se atribui as questotildees sobre letramento criacutetico a outros campos restou pouco material interessante para falar sobre persuasatildeo exceto dizer que a estrutura organiza-cional composta por cinco eacute a essecircncia de um bom argumento Os estudantes natildeo eram estimulados a trabalhar uns com os outros porque os modelos e estruturas dos cursos eram visuais e portanto prontamente disponiacuteveis para reproduccedilatildeo Aleacutem disso os aspectos inferiacuteveis da escrita da conversaccedilatildeo e todos os processos precedentes ao produto eram abolidos e o processo de criaccedilatildeo ficava reduzido a exerciacutecios de estruturaccedilatildeo de sentenccedilas

Para os professores de hoje a liccedilatildeo a ser aprendida a partir dessa batalha centenaacuteria tem duas faces De um lado devemos tomar grande cuidado em nossas aulas para salvaguardar contra a adoccedilatildeo ou o desenvolvimento de meacutetodos de en-sino que transformam a construccedilatildeo do argumento em processo muito ldquosimples e raacutepidordquo reduzindo-a a algo um pouco mais que o exerciacutecio de ldquoespremer e encaixarrdquo De outro lado devemos encontrar maneiras de materializar e tornar disponiacuteveis aos iniciantes as ferramentas para produzir insights e sentidos Se falharmos de um lado nossa disciplina continuaraacute como um formalismo inuacutetil se falharmos do outro nossos estudantes natildeo teratildeo acesso ao mais poderoso e menos misterioso ldquoinstrumento de sobrevivecircnciardquo disponiacutevel agraves pessoas comuns

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figuras-Chave da teoria moderna da argumentaccedilatildeo

Introduccedilatildeo a Kenneth Burke

A influecircncia de Kenneth Burke em nossa abordagem sobre o ensino do ar-gumento como jaacute deve estar claro eacute enorme Valemo-nos bastante de sua termi-nologia e de seu vocabulaacuterio agraves vezes peculiar para articular as ideias centrais em torno de teorias retoacutericas e pedagoacutegicas Burke eacute a lente que nos permite uma visatildeo tanto estreita quanto ampla do empreendimento retoacuterico e do papel da argumentaccedilatildeo nesse empreendimento Ele eacute podemos dizer o uacutenico desde Aris-toacuteteles a circunscrever o escopo da teoria retoacuterica dentro do contexto mais amplo das preocupaccedilotildees filosoacuteficas Ao mesmo tempo tambeacutem podemos dizer ele natildeo eacute um ldquosistematizadorrdquo filosoacutefico dada a inabalaacutevel atenccedilatildeo agrave relaccedilatildeo entre o geral e o particular a concepccedilatildeo e a percepccedilatildeo a cena e o ato

Essa eacute basicamente a maneira como temos usado suas ideias ateacute o momen-to Noacutes utilizamos o conceito de ldquoautointerferecircnciardquo para esboccedilar uma escala de praacuteticas argumentativas em curso focadas na audiecircncia de anunciantes e publi-citaacuterios centrados nos atos e de conselheiros que visam seus proacuteprios interesses Admitindo que no mundo haacute sempre a busca de vantagens em cada argumento a visatildeo geral de Burke sobre as praacuteticas argumentativas daacute menos importacircncia a conquista da audiecircncia do que a busca por verdades mais soacutelidas capazes de en-globar as posiccedilotildees inicialmente antagocircnicas e a guerra ldquopurificadardquo na dialeacutetica Reiteramos a ideia de que uma maneira de ver eacute tambeacutem uma maneira de natildeo ver e de que nossos instrumentos para ver satildeo terministic screens (enquadramento de termos) filtros linguiacutesticos que tornam a percepccedilatildeo e a avaliaccedilatildeo simultacircneas Eacute esse foco na linguagem enquanto instrumento do conhecimento que nos leva a colocaacute-lo ao lado de filoacutesofos chamados de ldquoedificantesrdquo por Rorty (1979 p 12)

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ou seja aqueles cujo foco eacute ldquo[] ajudar os leitores ou a sociedade como um todo a se livrar de vocabulaacuterios e atitudes ultrapassadas ao inveacutes de prover uma base para as intuiccedilotildees e costumes do presenterdquo

A principal questatildeo colocada por esses filoacutesofos edificantes eacute a de saber como evitar que nos tornemos viacutetimas da proacutepria linguagem da qual precisamos para ter acesso ao mundo Ou como o Lord de Burke lembra ao diabo no diaacutelogo con-clusivo de The Rhetoric of Religion (A Retoacuterica da Religiatildeo) ldquoOnde as pessoas satildeo implicadas qualquer terminologia eacute suspeita na medida em que ela natildeo permite a criacutetica dela mesmardquo (BURKE 1970 p 303) Para Burke (1970) o segredo para atingir esse tipo de autoconsciecircncia autocriacutetica eacute a sua abordagem dramaacutetica da compreensatildeo por ele alcunhada nos primeiros trabalhos como ldquoperspectiva por incongruecircnciardquo Hans Blumenberg (1987 p 439) refere-se a algo muito parecido com a perspectiva por incongruecircncia quando cita ldquo[] o procedimento de entender uma coisa por meio de outrardquo

Para Burke (1970) entender algo natildeo significa entender enquanto algo um membro de uma categoria mas significa ver uma coisa nos termos de outra Disso decorrem os ratios do seu meacutetodo chamado dramatismo De acordo com o drama-tismo haacute cinco (eventualmente seis) elementos que contribuem para um entendi-mento bem definido das motivaccedilotildees humanas ato cena agente meios propoacutesito e por uacuteltimo atitude (que eacute um ato incipiente) Ao analisar um discurso para entender por que algo foi feito ou por que deveria ser feito considerar-se idealmente todas as combinaccedilotildees possiacuteveis dos elementos ato-cena cena-ato agente-cena e assim por diante A relaccedilatildeo entre quaisquer dois elementos eacute expressa como um ratio Em qualquer ratio o segundo termo funciona como um tipo de parte essencial provi-soacuteria para o par Assim por exemplo em um ratio ato-cena o ato eacute entendido ldquonos termos dardquo cena que de fato eacute a lente atraveacutes da qual o ato eacute compreendido Vaacuterias escolas filosoacuteficas se caracterizam pela tendecircncia de privilegiar um dos termos continuamente enxergando todos os outros elementos ldquonos termosrdquo do elemento

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privilegiado Assim o naturalismo privilegia a cena de modo que os atos humanos satildeo entendidos como consequecircncias das condiccedilotildees cecircnicas

O ldquoparadoxo da substacircnciardquo proposto por Burke (1966 p 23) segundo o qual uma palavra ldquo[] usada para designar o que algo eacute deriva da palavra para designar o que algo natildeo eacuterdquo nos distancia da Lei da Identidade (A eacute A) e nos aproxima de um modo mais metafoacuterico de entendimento Por fim haacute ainda a noccedilatildeo de ldquoanedota representativardquo ldquo[] preocupaccedilatildeo tatildeo dramaacutetica que pode ser definida como abor-dagem dramaacutetica do dramatismordquo (BURKE 1966 p 60) atraveacutes da qual o todo eacute representado por uma de suas partes Para entender qualquer coisa devemos entendecirc-la em contexto agrave luz de assuntos extriacutensecos e de termos apropriados que natildeo satildeo idecircnticos agrave essa coisa mas estatildeo identificados com ela A relaccedilatildeo elementar representada na linguagem eacute portanto metafoacuterica (categoria Y eacute melhor entendida atraveacutes da Parte X) ao inveacutes de categoacuterica (tudo que precisamos saber eacute que Parte X eacutepertence agrave Categoria Y)

Quando nossas terminologias natildeo nos permitem fazer criacuteticas progressivas delas mesmas quando desistimos de buscar a perspectiva por incongruecircncia tornamo-nos presas entre outras coisas da tendecircncia jaacute discutida anteriormen-te de burocratizar a imaginaccedilatildeo Embora a burocratizaccedilatildeo da imaginaccedilatildeo seja um processo necessaacuterio em Burke nossa capacidade de autocriacutetica nos permite evitaacute-la e manter viva o maior tempo possiacutevel nossa consciecircncia imaginativa dos princiacutepios originais que definem a boa vida e nos animam a buscar realizaacute-la Se tudo isso parece distante do ensino retornemos aos ensaios de Fish e Leo discu-tidos no primeiro capiacutetulo Nossa criacutetica agrave posiccedilatildeo de Leo e a preferecircncia pela de Fish podem ser diretamente traccediladas a partir das posiccedilotildees tomadas em direccedilatildeo agrave autocriacutetica progressiva A rejeiccedilatildeo de Leo ao ldquomulticulturalismordquo como uma frente ao antiamericanismo eacute parte da rejeiccedilatildeo geral agraves tentativas de entender os eventos do 11 de setembro nos termos de ldquocausas-raizrdquo ou ldquoda necessidade de entender o terrorismo e ver seus atos em contextordquo Qualquer alternativa agrave visatildeo do 11 de se-

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tembro ldquonos termosrdquo de outra coisa ameaccedila a visatildeo de mundo de Leo que passa a ser desconsiderada Fish por outro lado vecirc que a tarefa diante de noacutes ultrapassa os vaacuterios ldquofalsos universaisrdquo que nos impedem de ver o mundo que eles nomeiam e de nos ldquocolocar no lugar do adversaacuteriordquo Apenas com essa maneira de desconstruir uma visatildeo de mundo eacute possiacutevel manter-se atento aos princiacutepios fundantes dessa visatildeo ldquoos valores particulares vividos que nos unem e satildeo assumidos pelas insti-tuiccedilotildees que valorizamos e desejamos defenderrdquo O argumento de Fish contra Leo em suma ilustra muitos dos princiacutepios baacutesicos do argumento que Burke delineou tatildeo eloquentemente em sua longa carreira

o realismo de burke

Burke (1969) oferece talvez a caracterizaccedilatildeo mais econocircmica de sua aborda-gem da retoacuterica na conclusatildeo da seccedilatildeo de abertura do livro A Rhetoric of Motives (The Range of Rhetoric ndash O alcance da retoacuterica) Para ele a Retoacuterica estaacute ldquoarraigada a uma funccedilatildeo proacutepria da linguagem uma funccedilatildeo totalmente realista e em contiacutenua renovaccedilatildeo o uso da linguagem como meio simboacutelico de induzir a cooperaccedilatildeo entre seres que por natureza respondem aos siacutembolosrdquo (BURKE 1969 p 43) O ldquorealismordquo de Burke refere-se aqui ao realismo filosoacutefico entendido agrave luz do debate medieval entre nominalistas e realistas O mais destacado proponente do nominalismo nesse debate Willian de Occam Segundo a proposiccedilatildeo hoje conhecida como Navalha de Occam as ldquoentidades natildeo devem ser multiplicadas aleacutem do necessaacuteriordquo (BURKE 1966 p 324) O realismo de Burke enquanto isso requer igualmente que ldquo[] en-tidades natildeo devem ser reduzidas aleacutem do necessaacuteriordquo No tocante agrave desnecessaacuteria multiplicaccedilatildeo de entidades o alvo primaacuterio de Occam eacute a linguagem empregada para aleacutem da nomeaccedilatildeo do assunto imediato Todos os termos geneacutericos e abstraccedilotildees satildeo responsaacuteveis por nomear toda sorte de entidades supeacuterfluas Esses termos satildeo vistos pelos nominalistas como ldquoconveniecircncias da linguagemrdquo e natildeo ldquosubstacircncias reaisrdquo (BURKE 1966 p 248) No entanto o paradoxo da substacircncia definido por

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Burke sugere que natildeo se pode usar a linguagem simplesmente para nomear um assunto imediato Toda palavra que designa o que algo eacute necessariamente designa o que algo natildeo eacute Consequentemente a conotaccedilatildeo de uma palavra eacute tatildeo crucial para Burke quanto o que ela denota

De fato natildeo temos acesso ao que eacute individual exceto atraveacutes do que eacute simboacutelico ou categoacuterico ldquo[] homem qua homem eacute um usuaacuterio de siacutembolo A esse respeito qualquer aspecto de sua lsquorealidadersquo eacute possiacutevel ser visto atraveacutes de uma neacutevoa de siacutembolos (BURKE 1969 p 136) Enquanto animais usuaacuterios de siacutembolos os huma-nos experienciam ldquo[] diferenccedilas entre esse fato e o que constitui uma diferenccedila entre um tipo de ser e outrordquo (BURKE 1969 p282) Essa tensatildeo entre o particular e o geral entre a funccedilatildeo denotativa e a conotativa da linguagem precisamente nos leva agrave ressonacircncia simboacutelica e nos permite ver uma coisa ldquonos termosrdquo de outra Sem essa ressonacircncia e a capacidade de ldquomultiplicar entidadesrdquo aleacutem do aqui e agora seria impossiacutevel a linguagem induzir agrave cooperaccedilatildeo entre indiviacuteduos marcados simultaneamente por similaridades e diferenccedilas

Outra vez essa discussatildeo sobre o realismo filosoacutefico de Burke pode parecer distante do ensino Certamente natildeo eacute Tomemos por exemplo a noccedilatildeo de politi-camente correto Como termo ostensivamente neutro tem sido manejado recen-temente de maneira mais eficaz pelos conservadores no debate puacuteblico nacional Liberais reticentes assim argumenta-se satildeo incapazes de ldquodizer como as coisas satildeordquo Estatildeo sempre a inventar expressotildees eufemiacutesticas para encobrir suas vaacuterias ldquoagendasrdquo Em tom rude os saacutebios conservadores ldquode fala simplesrdquo passam a atingir o verbalismo pretensioso dos liberais e a substituiacute-lo por uma linguagem ldquoclara e simples como a verdaderdquo transformando ldquoaccedilotildees afirmativasrdquo em ldquodiscriminaccedilatildeo reversardquo e assim por diante (o comediante Steven Colbert do programa ldquoColbert Reportrdquo faz paroacutedias sobre a franqueza do comentarista conservador Bill OrsquoReilly no quadro ldquoPalavra do diardquo

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Nesse quadro as palavras e expressotildees aparentemente inofensivas satildeo desvir-tuadas para aleacutem do reconhecimento de Colbert enquanto um contraponto textual acompanhada silenciosamente os esforccedilos de Colbert para defini-las e expotildee suas proacuteprias intenccedilotildees) Essas pessoas estatildeo operando na tradiccedilatildeo de Occam ansiosos em reduzir a multiplicaccedilatildeo desnecessaacuteria de sentidos e tambeacutem na tradiccedilatildeo mais recente de Jeremy Bentham que se dedicou a desarraigar a insidiosa ldquopergunta apelativardquo (BURKE 1969 p 92) que nomeia mais de uma coisa colocando o assunto sob uma luz ldquoelogiosardquo ou ldquopejorativardquo e prejudicando-o da mesma maneira que os arrazoados circulares antecipam a premissa principal da conclusatildeo

Subjacente ao uso politicamente correto e ao pensamento de Occam e Bentham estaacute a crenccedila em uma linguagem neutra e puramente denotativa que nomeia a rea-lidade ldquoobjetivardquo e que de fato diz como as coisas satildeo sem apontar o que elas natildeo satildeo O que a definiccedilatildeo de Retoacuterica proposta por Burke deixa imediatamente claro eacute a inexistecircncia dessa linguagem7 Toda palavra porta indiacutecios de sentidos ldquopositivosrdquo e ldquonegativosrdquo e para se entender um termo deve-se entendecirc-lo em uso dentro de um contexto e apropriadamente atualizado Como diz Burke ateacute o vocabulaacuterio utilitaacuterio de Bentham garante a certos termos nuanccedilas ldquopositivasrdquo independente do uso escapando ao mito da linguagem neutra que ele proacuteprio promovia

O realismo de Burke natildeo eacute apenas filosoacutefico mas tambeacutem um realismo cotidia-no Para todo poder atribuiacutedo agrave linguagem ele tambeacutem reconhece o consideraacutevel poder de veto que a realidade extralinguiacutestica possui sobre as palavras Qualquer que seja nossa visatildeo e quatildeo persuasivo seja nosso vocabulaacuterio a falha do mundo material em ratificar nossos argumentos eacute fatal para Burke A esse respeito o rea-lismo linguiacutestico de Burke deve ser distinguido de solipsismo e de visotildees maacutegicas

7 Burke (1969 p 183-4) assinala uma ldquoordem positiva dos termosrdquo capaz de nomear as coisas no aqui e agora e recomenda manter-se nessa ordem sempre que possiacutevel Mas aleacutem de terminologias altamente convencionalizadas como nas ciecircncias que evitam a linguagem natural e estipula termos nativos para o discurso as oportunidades para limitarmo-nos na ordem positiva satildeo extremamente limitadas

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sobre a linguagem O autor explicitamente rejeita a crenccedila de que o ldquo[] universo eacute mero produto de nossas interpretaccedilotildeesrdquo precisamente porque ldquo[] as interpre-taccedilotildees em si mesmas devem ser alteradas enquanto o universo apresenta a elas vaacuterios tipos de recorrecircnciardquo (BURKE 1984 p 256) Enquanto a linguagem nossa ldquoneacutevoa de siacutembolosrdquo recobre tudo o que positivamente sabemos o universo deteacutem o poder de negar e reformar nossas interpretaccedilotildees De fato para Burke (1966) a diferenccedila primaacuteria entre a falsa e a verdadeira magia da retoacuterica eacute o fato de que os praticantes da falsa usam os siacutembolos para induzir movimentos na natureza enquanto os praticantes da verdadeira usam os siacutembolos para induzir atos coope-rativos entre as pessoas O julgamento sobre a adequaccedilatildeo de instituiccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas para Burke natildeo estaacute baseado em um padratildeo ideal e fixo mas na sua capacidade de atender agraves demandas materiais das pessoas a quem servem De acordo com a meacutetrica realista de Burke tais instituiccedilotildees apresentam um ldquo[] valor relativo pragmaticamente dependente no sentido darwinista da capacidade de dar conta de problemas de produccedilatildeo distribuiccedilatildeo e consumo atinentes agraves condiccedilotildees temporais e espaciais peculiaresrdquo (BURKE 1969 p 279)

Como apontamos em nossa discussatildeo sobre a ldquoburocratizaccedilatildeo da imaginaccedilatildeordquo o papel social mais importante da Retoacuterica eacute resistir agrave conversatildeo de possibilidades imaginativas que transformam as instituiccedilotildees em dogmas resistentes agrave realizaccedilatildeo dessas possibilidades Enquanto ideoacutelogos fazem vista grossa agraves falhas de seus programas de dar conta de problemas de produccedilatildeo distribuiccedilatildeo e consumo no aqui e agora a tarefa da Retoacuterica eacute adaptar o programa agrave situaccedilatildeo debruccedilando-se sobre os princiacutepios originadores para delinear novas estrateacutegias

Por fim o realismo de Burke natildeo eacute apenas um realismo filosoacutefico ou atrelado ao senso comum eacute tambeacutem um realismo no sentido que eacute agraves vezes empregado em ciacuterculos de poliacuteticas internacionais Eacute um tipo de realismo que nos encoraja a selecionar e escolher nossas lutas pesando as consequecircncias de nossas escolhas umas em relaccedilatildeo agraves outras em vez dos nossos princiacutepios independente de para onde nos levem Eacute um realismo que reconhece escolhas duras difiacuteceis Eacute esse aspecto do

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seu realismo que o leva a valorizar algueacutem como Willian James considerado um ldquomelioristardquo (BURKE 1984 p 3) algueacutem famoso por escolher em aceitar o universo ao inveacutes de contestar e que prefere acreditar em bases bastante pragmaacuteticas cuja feacute ldquoo permitiu ter o senso de mover-se em direccedilatildeo a algo melhorrdquo (BURKE 1984 p 5) Com frequecircncia o expresso ceticismo de Burke em relaccedilatildeo ao perfeccionismo eacute a contraparte de sua admiraccedilatildeo pelo meliorismo Da mesma forma sua destituiccedilatildeo como um ldquoperfeccionismo reversordquo (BURKE 1966 p 100) uma criacutetica bastante dura que extirpa as bases de uma posiccedilatildeo tomada eacute sintomaacutetica de um realismo balanceado que sempre encontra elementos das pessoas e sistemas que ele critica em sua proacutepria pessoa e crenccedilas Natildeo haacute oposiccedilotildees simples no realismo de Burke natildeo haacute certos ou errados absolutos natildeo haacute diferenccedilas categoacutericas Toda substacircncia conteacutem elementos de substacircncias extriacutensecas a ela mesma Em todos os pontos dos vaacuterios contiacutenuos que Burke supotildee residem elementos de ambos os extremos do contiacutenuo Burke (1969 p 23) aceita o fato de que vivemos em um mundo poacutes--Babel e que por consequecircncia a Retoacuterica deve perseguir seus temas ldquo[] dentro da luacutegubre regiatildeo da maliacutecia e da mentirardquo Dado que as soluccedilotildees perfeitas nunca estatildeo disponiacuteveis

[] a pessoa escrupulosa nunca abandonaraacute um propoacutesito que ela consi-dera absolutamente bom Poreacutem iraacute escolher os meios mais ideias dis-poniacuteveis na situaccedilatildeo Assim como na retoacuterica ideal de Aristoacuteteles ela iraacute considerar uma gama de meios mas escolheraacute o melhor permitido por um conjunto particular de circunstacircncias (BURKE 1969 p 155)

Todos que ensinam argumentaccedilatildeo deveriam saber um pouco sobre Burke no miacutenimo para ajudar a entender o lugar da argumentaccedilatildeo e da retoacuterica na or-dem mais ampla dos empreendimentos intelectuais e para lembrar o que entra em jogo para ensinar bem Ele nos oferece tanto uma teoria da Retoacuterica como um ldquocaminhordquo para se fazer retoacuterica como haacutebitos mentais que nos ajudam a evitar

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modos simplistas de pensar e modos agressivos de argumentar Brummett (1984 p 103) em ensaio fortemente apoiado sobre o pensamento de Burke sumariza com precisatildeo nossa tarefa

Se levarmos em consideraccedilatildeo as pessoas comuns (estudantes) como au-diecircncia primaacuteria da teoria retoacuterica e suas criacuteticas entatildeo o objetivo final e a justificativa satildeo pedagoacutegicos ensinar as pessoas a experienciar seus proacuteprios ambientes retoacutericos de maneira mais ricardquo

Certamente tambeacutem ensinamos a nossos estudantes a ldquotirar vantagemrdquo dos seus proacuteprios argumentos e que sempre haacute um elemento vantajoso para buscar o mais claro dos argumentos No entanto ao desafiaacute-los constantemente a submeter sua terminologia ndash ou ideologia se preferirmos ndash a ldquouma criacutetica progressiva de sirdquo estamos desafiando-os a reconsiderar sobre o que e para que eles deveriam buscar A Retoacuterica lembra-nos Burke (1984 p 102) eacute um domiacutenio no qual os ldquotestes de sucesso existem para serem testadosrdquo Ao cabo quando alargamos a capacidade dos estudantes de encontrar os modos disponiacuteveis de persuasatildeo em uma dada situaccedilatildeo e os encorajamos a escolher o meio mais claro estamos ensinando a argumentar tanto de maneira eacutetica como eficiente

introduccedilatildeo a Chaim perelman e luCie olbreChts-tyteCa

A Nova Retoacuterica (PERELMAN OLBRECHTS-TyTECA 1969) eacute um compecircndio enciclopeacutedico de pequenas histoacuterias retoacutericas citaccedilotildees exemplos e estratagemas organizados segundo um sistema extremamente fluido e flexiacutevel por um lado e extremamente confuso por outro Gage (1996 p 13) liga esse sistema ao de Burke na medida em que compreende uma ldquoperspectiva das perspectivasrdquo tratando a argumentaccedilatildeo natildeo como uma coleccedilatildeo a priori de partes de silogismos mas como

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um sistema cujas partes satildeo ldquo[] derivadas de processos de associaccedilatildeo e disso-ciaccedilatildeo ligamento e desligamento que torna o argumento uma rede de partes em relaccedilatildeo de variedade infinitardquo Do lado negativo Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969) parecem muitas vezes nomear cada uma das infinitas relaccedilotildees possiacuteveis do sistema atraveacutes de um sem-nuacutemero de termos ndash agraves vezes inventados agraves vezes emprestados de fontes desconhecidas ndash que dificultam mais do que facilitam um acesso raacutepido ao sistema Para o termo locus por exemplo pode-se encontrar vinte e quatro variedades listadas no iacutendice e sessenta e oito figuras ldquotradicionaisrdquo satildeo mencionadas a maioria de passagem em adiccedilatildeo a quinze tipos diferentes presu-midamente natildeo tradicionais

A versatildeo reduzida do tratado de Perelman ao tratado (The Realm of Rhetoric) (PERELMAN 1982) transforma o sistema em algo ligeiramente mais acessiacutevel e oferece uma versatildeo esquemaacutetica do corpus mas em detrimento da profundidade e da grande diversidade do original8 A utilidade da NR se deve sobretudo ao fato de que eacute um livro de sabedoria de razatildeo praacutetica ou phroacutenesis Assim eacute um livro para ser lido consultado mais do que um tratado para ser estudado Por outro lado The Realm of Rhetoric eacute muito mais uacutetil apoacutes a leitura de A Nova Retoacuterica e natildeo deve ser lido em substituiccedilatildeo ao seu extenso e complexo progenitor

Assim como o sistema de Burke o sistema de Perelman e Olbrecht-Tyteca empresta-se ao uso parcial mas de maneira muito distinta Apesar de toda comple-xidade do pensamento de Burke muito pode ser feito com algumas poucas grandes ideias que constituem uma ldquoperspectiva por incongruecircnciardquo No caso de A Nova Retoacuterica entretanto a obra pode ser melhor usada e de fato pode-se exploraacute-la extraindo ideias uacuteteis estrateacutegias e citaccedilotildees da mesma forma que alunos tiram ideia promissoras de livros comuns

8 o ensaio de Perelman publicado em 1970 The New Rhetoric A Theory of Practical Reasoning reimpresso em 2001 (PERELMAN 2001) representa uma siacutentese ainda mais eficiente do sistema

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De maneira a tornar uacutetil a nova retoacuterica aos professores noacutes seguiremos dois passos Primeiro faremos um breve panorama dessa abordagem e de seu lugar no campo das teorias modernas da argumentaccedilatildeo Em seguida de modo a apresentar tais ideias de maneira coerente apesar de menos ortodoxa adap-taremos alguns dos seus insights a uma abordagem consideravelmente menos pesada a Stasis Theory

um panorama de a nova retoacuteriCa

Assim como a maioria dos filoacutesofos que romperam barreiras e se voltaram para a Retoacuterica em meados do seacuteculo XX Perelman e Olbrechts-Tyteca basearam sua dissidecircncia na rejeiccedilatildeo ao modelo loacutegico-formal de argumento tradicional-mente privilegiado pelos filoacutesofos particularmente pelos positivistas loacutegicos da eacutepoca Ao citar a fusatildeo da dialeacutetica de Petrus Ramus com a loacutegica e o subsequente rebaixamento da Retoacuterica a uma arte ornamental Perelman (2001) reivindica a Dialeacutetica para a Retoacuterica e a declara complementar agrave demonstraccedilatildeo definida como

[hellip] um caacutelculo feito de acordo com as regras previamente dispostas [hellip] Uma demonstraccedilatildeo eacute considerada correta ou incorreta de acordo com sua conformidade ou natildeo agraves regras Uma conclusatildeo eacute tida como comprovada se ela pode ser atingida por meio de uma seacuterie de opera-ccedilotildees corretas e iniciadas nas premissas aceitas como axiomas Se tais axiomas satildeo considerados evidentes necessaacuterios verdadeiros ou hipo-teacuteticos a relaccedilatildeo entre eles e o que eacute demonstrado permanece intacta Para passar da inferecircncia correta agrave verdade ou agrave probabilidade com-putaacutevel da conclusatildeo deve-se admitir tanto a verdade das premissas como a coerecircncia do sistema axiomaacutetico (PERELMAN 2001 p 1390)

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Ao distinguir a argumentaccedilatildeo retoacuterica da demonstraccedilatildeo formal Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969 p 5) sublinham as seguintes caracteriacutesticas O ponto de iniacutecio de um argumento natildeo eacute um axioma invariante e universal mas uma premissa ou ldquoopiniatildeo geralmente aceitardquo Os autores entatildeo distinguem dois tipos de premissas ldquoa primeira concernente ao real que compreende fatos verdades e presunccedilotildees e a segunda concernente ao preferiacutevel que compreende valores hie-rarquias e linhas de argumentaccedilatildeo (ou loci) relativas ao preferiacutevelrdquo (PERELMAN OLBRECHTS-TYTECA 1969 p 66) As premissas natildeo satildeo objetivas ou impessoais como eacute o caso dos axiomas loacutegicos mas intersubjetivos ou pessoais na medida em que sua forccedila depende do grau de verdade coerecircncia plausibilidade e assim por diante a partir do qual a audiecircncia o aceita Por conta da natureza contingente das premissas distintas audiecircncias ofereceratildeo diferentes graus de aprovaccedilatildeo em mo-mentos distintos sob condiccedilotildees distintas Trata-se de um estado de coisas que quem argumenta deve levar em consideraccedilatildeo Enquanto o movimento de demonstraccedilatildeo eacute o de estender o alcance de verdades axiomaacuteticas a uma verdade particular e com-pelir o consentimento em direccedilatildeo a essa verdade o movimento de um argumento eacute o de aumentar a ldquointensidade da adesatildeordquo (PERELMAN OLBRECHTS-TyTECA 1969 p 45) de uma audiecircncia a uma conclusatildeo ao enviar as premissas para ldquo[] dentro de um conjunto de processos associativos e dissociativosrdquo (PERELMAN OLBRECHTS-TyTECA 1969 p 65) responsaacutevel por dar forma ao entendimento da audiecircncia sobre a relaccedilatildeo entre as premissas e a conclusatildeo O argumento pode aumentar o grau em que uma audiecircncia aceita uma conclusatildeo mas ela natildeo conse-gue compelir o consentimento da mesma maneira que a demonstraccedilatildeo Enquanto a finalidade da demonstraccedilatildeo eacute a descoberta de uma verdade a finalidade de um argumento eacute a de construiacute-la na ldquocomunidade de mentesrdquo (PERELMAN 2001 p 1388) de modo a ldquo[] colocar em movimento a accedilatildeo intencionada [] ou ao menos criar nos ouvintes um desejo de agir que apareceraacute no momento certordquo (PEREL-MAN OLBRECHTS-TyTECA 1969 p 45)

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O ponto de partida da abordagem presente em A Nova Retoacuterica agrave argumen-taccedilatildeo natildeo foi uma teoria tomada da Filosofia mas uma questatildeo sobre a forma como as pessoas de fato discutem os valores no mundo real Consequentemen-te os autores examinaram milhares de exemplos de argumentos sobre valores extraiacutedos de uma infinidade de fontes incluindo trabalhos poliacuteticos juriacutedicos filosoacuteficos religiosos e cientiacuteficos de diferentes eacutepocas Se o exame dessas fon-tes tornou a teoria mais potente eacute algo contestaacutevel mas natildeo haacute duacutevidas de que a enriqueceu9 Em certo sentido os exemplos sobrepotildeem-se ao quadro teoacuterico de modo a impossibilitar a reduccedilatildeo da teoria a um conjunto de preceitos Por conseguinte a linguagem da nova retoacuterica eacute decididamente natildeo categoacuterica mais nuanccedilada e metafoacuterica que a linguagem tiacutepica da retoacuterica da metade do seacuteculo Algumas ideias-chave demonstram esse fato Ao inveacutes de acarretamento loacutegico os autores falam em ldquoligaccedilotildeesrdquo entre ideias em vez de contradiccedilotildees preferem ldquoincompatibilidadesrdquo em vez da certeza ou ateacute de probabilidade da conclusatildeo preferem mencionar a ldquorazoabilidaderdquo em vez de falar em concordacircncia ou discor-dacircncia da audiecircncia sobre uma conclusatildeo falam sobre o aumento ou diminuiccedilatildeo da intensidade da adesatildeo a um argumento

Talvez o mais interessante dos possiacuteveis efeitos dessa metodologia eacute o lugar privilegiado da noccedilatildeo de ldquopresenccedilardquo na teoria a importacircncia de trazer ideias agraves audiecircncias em todo seu imediatismo De forma muito conveniente a maior vir-tude da Nova Retoacuterica eacute a abundacircncia de exemplos de ldquopresenccedilardquo que ilustram o quadro teoacuterico

9 Eacute claro que Lucie Olbrechts-Tyteca como pessoa ldquoerudita em ciecircncias sociais e literatura europeiardquo (BiZZeLL HeRZBeRg 2001 p 1371) merece um creacutedito especial por encontrar e selecionar exemplos pertinentes que tornam a teoria de Perelman significativamente mais uacutetil e mais atrativa

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A construccedilatildeo do argumento

Em muitos aspectos o movimento de Perelman e Olbrechts-Tyteca da Loacute-gica tradicional em direccedilatildeo agrave Dialeacutetica segue o percurso tomado por Burke que tambeacutem entende a Retoacuterica como expressatildeo do pensamento dialeacutetico O proacuteprio Perelman assinala essa conexatildeo ao citar a noccedilatildeo de identificaccedilatildeo proposta por Burke como o modelo para que o uso da Retoacuterica forme uma ldquocomunidade de mentesrdquo e assim ldquodespertar a disposiccedilatildeo para a accedilatildeordquo (PERELMAN 2001 p 1388) de uma audiecircncia Aleacutem disso a tensatildeo essencial na Nova Retoacuterica entre parte (exemplos) e todo (teoria) eacute como vimos uma peccedila criacutetica da abordagem de Burke agrave Retoacuterica Entender uma coisa ldquoem termos derdquo outra em vez de ldquocomordquo outra leva Burke a procurar ldquopequenas histoacuterias representativasrdquo (BURKE 1966 p 523) em vez de regras leis ou narrativas que exaustivamente datildeo conta do todo Esse mesmo modo sinedoacutequico de entendimento leva Burke (1996) a rejeitar contra-diccedilotildees aparentes entre ideias e a favorecer algo como as incompatibilidades que ele deseja superar atraveacutes de acordos em vez de aboli-las atraveacutes do desmonte

Aleacutem disso Burke assim como Perelman e Olbrechts-Tyteca tambeacutem en-fatiza a dimensatildeo inventiva da Retoacuterica em detrimento da funccedilatildeo ornamental Enquanto Burke subordina a funccedilatildeo persuasiva agrave inventiva Perelman e Olbrechts--Tyteca apoacutes reconhecerem a importacircncia da invenccedilatildeo continuam a assinalar a funccedilatildeo persuasiva Tanto na Nova Retoacuterica quanto na A Rhetoric of Motives de Burke somos sempre lembrados do contexto mais amplo que define as ativida-des de uma pessoa Para Burke o dever de uma pessoa enquanto cidadatilde precede o dever de uma pessoa enquanto especialista natildeo importando quanta ldquopsicose ocupacionalrdquo nos leve a confundir obrigaccedilotildees eacuteticas e profissionais Jaacute Perelman e Olbrechts-Tyteca baseiam seu estudo sobre retoacuterica na noccedilatildeo de justiccedila social e a enfatizam em todo o tratado

Por fim a controversa noccedilatildeo de ldquoaudiecircncia universalrdquo empregada na Nova Retoacuterica pode ser melhor entendida no contexto da noccedilatildeo burkeana de ldquopersuasatildeo purardquo Assim como natildeo existe uma instacircncia da persuasatildeo pura natildeo existe de

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A construccedilatildeo do argumento

fato uma audiecircncia universal Ambas satildeo ideais que norteiam quem argumenta para aleacutem da persuasatildeo ldquodirecionadardquo ndash ldquoo que me faraacute trazer essa audiecircncia para minha posiccedilatildeo rdquo ndash em direccedilatildeo ao trabalho de um entendimento completo do tema A audiecircncia universal natildeo eacute necessariamente uma audiecircncia mais po-pulosa que a particular Quando escrevemos para audiecircncias eruditas e criacuteticas em nossas especialidades presumimos seu ceticismo e sua perspicaacutecia que nos leva aos melhores e mais razoaacuteveis argumentos Os publicitaacuterios que empurram cerveja suave para homens brancos na faixa dos 18 aos 29 anos querem sem duacutevida atingir faixas menores

a stasis theory e a nova retoacuteriCa

Ao adaptar a Nova Retoacuterica agraves nossas aulas tentamos identificar esquemas simples que servem como veiacuteculos para selecionar e organizar os ricos insights do livro em um todo coerente de alcance razoaacutevel De nosso ponto de vista o esque-ma que melhor serve a essa funccedilatildeo eacute a Stasis Theory Originalmente essa teoria emergiu na Greacutecia antiga como uma categoria do discurso juriacutedico (ou forense) que junto ao discurso epidiacutetico (ou cerimonial) e ao deliberativo (ou legislativo) compreendem as trecircs formas do discurso Nos anos recentes a ideia de Stasis tem sido retomada e modificada para uso em aulas de argumento em reconhecimen-to ao fato de que como aponta Fulkerson (1996 p 40) eacute ldquo[] incrivelmente uacutetil [] porque natildeo se sobrepotildee e eacute sequencialmente progressiva e [] porque pode funcionar como uma heuriacutestica geradora que pode ajudar os estudantes a criar os argumentos necessaacuterios em um artigordquo Os dois estudiosos mais responsaacuteveis pelo renascimento da Stasis como uma caracteriacutestica integral da instruccedilatildeo argumenta-tiva satildeo Jeanne Fahnestock e Marie Secor O artigo Teaching Argument A Theory of Types (FAHNESTOK SECOR 1983) levou muitos professores de escrita a integrar a Stasis agraves aulas e muitos autores a incluir a discussatildeo em livros O artigo representa

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A construccedilatildeo do argumento

um caso exemplar de acadecircmicos contemporacircneos que adaptaram teorias antigas da Retoacuterica em aulas de escrita10

Antes de demonstrarmos como usar a ideia de Stasis para organizar estrateacute-gias narrativas e princiacutepios da Nova Retoacuterica apresentaremos um breve panorama dessa ideia

De acordo com Aristoacuteteles cada uma das trecircs categorias originais do discurso que antecipam as categorias da Stasis possuem um foco temporal distinto O discurso deliberativo lidava com propostas para o futuro particularmente as propostas legis-lativas o epidiacutetico lidava com o elogio e a culpa e apresentava ao puacuteblico ocasiotildees para reforccedilar os valores comunitaacuterios no presente o forense ndash de onde vecircm a Stasis ndash lidava com vereditos atribuiacutedos a eventos passados tipicamente na esfera legal Por conta da associaccedilatildeo primaacuteria com a lei a antiga Stasis tendia a seguir o modelo procedimental dos tribunais Desse modo o promotor em um caso era requerido a fazer trecircs tipos de teses reivindicatoacuterias representando trecircs pontos em questatildeo ou Stasis que a pessoa acusada cometeu o crime em questatildeo (reivindicaccedilatildeo do fato) que o ato cometido constitui um crime (reivindicaccedilatildeo da definiccedilatildeo) e que o ato natildeo pode ser mitigado pelas circunstacircncias (reivindicaccedilatildeo de valores)11

10 a contribuiccedilatildeo do ensaio produzido por fahnestock e Secor (1983) agraves teorias contemporacircneas do argumento eacute exemplar tanto em termos do importante impacto no campo quanto da abordagem particular sobre a teoria Boa parte dos melhores trabalhos recentes sobre retoacuterica e escrita se desenvolveu como adaptaccedilatildeo de abordagens antigas ou como uma adaptaccedilatildeo de abordagens de outros campos agraves necessidades do argumento contemporacircneo aleacutem do trabalho de fahnestock e Secor (1983) o criativo trabalho de John gage (1983) sobre o entusiasmo dos estudantes com a escrita exemplifica o primeiro tipo de contribuiccedilatildeo enquanto a adaptaccedilatildeo da psicanaacutelise ao domiacutenio da retoacuterica promovida por Richard Young Alton Becker e Kenneth Pike eacute um exemplo da segunda um grande nuacutemero de livros e artigos interessantes e uacuteteis sobre retoacuterica e escrita vem sendo escrito nos uacuteltimos anos por intelectuais do campo mas ainda natildeo presenciamos o desenvolvimento pleno de teorias do argumento para confrontar com as que satildeo desenvolvidas no campo da comunicaccedilatildeo e da Filosofia Agrave medida que consideramos essas uacuteltimas de utilidade limitada agrave sala de aula apreciamos o intercacircmbio rico e apaixonado sobre argumento regularmente desenvolvido nesses campos

11 A taxonomia da Stasis aqui utilizada proveacutem em grande parte de Ramage Bean e Johnson (2007)

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A construccedilatildeo do argumento

O esquema desenhado por Ramage Bean e Johnson (2007) possui cinco ele-mentos e inclui definiccedilatildeo (X eacutenatildeo eacute uma instacircncia de y) semelhanccedila (X eacutenatildeo eacute como y ndash os autores definem duas variedades de semelhanccedilas as precedentes e as analogias) causa (X eacutenatildeo eacute a causa de Y) avaliaccedilatildeo (X eacutenatildeo eacute um bom Y) e eacutetica (X eacutenatildeo eacute bom)12 As trecircs uacuteltimas Stasis satildeo derivadas dos dois primeiros tipos de discurso o deliberativo e o epidiacutetico enquanto as duas primeiras satildeo derivadas do juriacutedico Os autores enfatizam que cada uma eacute um tipo de reivin-dicaccedilatildeo oposto a um tipo de argumento (apesar de dispor de uma reivindicaccedilatildeo maior que pode ser usada para caracterizaacute-lo como um todo) e isso tipicamente inclui inuacutemeras reivindicaccedilotildees dos mais variados tipos O objetivo das Stasis natildeo eacute servir como uma taxonomia dos argumentos mas ajudar os estudantes a entender as demandas peculiares dos arrazoados e das evidecircncias geradas por um tipo de reivindicaccedilatildeo

Entender isso pode ser usado para antecipar as necessidades persuasivas dentro dos proacuteprios argumentos e para reconhecer os lugares dos outros nos quais tais demandas satildeo ou natildeo satildeo atendidas Os breves traccedilos associados a cada tipo de reivindicaccedilatildeo servem para representar o impulso geral das proposiccedilotildees incluiacutedas na categoria Nos argumentos reais tais reivindicaccedilotildees geralmente to-mam diferentes formas exigindo em alguns casos uma interpretaccedilatildeo significativa

Como foi dito em nossa discussatildeo sobre o possiacutevel engessamento da Retoacuterica sempre haacute um tipo de troca entre a facilidade com a qual uma metodologia pode ser aplicada e o perigo de que as conclusotildees dessa aplicaccedilatildeo sejam simplificadas em excesso Defendemos que o benefiacutecio de oferecer aos estudantes uma abor-dagem coerente ao argumento supera os perigos do engessamento mas deve-se

12 em versotildees mais recentes das Stasis Ramage Bean e Johnson tambeacutem esboccedilam uma distinccedilatildeo entre Stasis categoriais e definidoras a depender se os criteacuterios compotildeem a categoria Y ou se a correspondecircncia entre criteacuterios e caracteriacutesticas de um x particular constituem o foco do debate aqui continuamos a tratar ambos os casos sob a rubrica de definiccedilatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

ter em mente o imperativo metodoloacutegico de Burke (1970 p 303) segundo o qual ldquo[] qualquer terminologia eacute suspeita na medida em que ela natildeo permite a criacutetica dela mesmardquo A esse respeito um papel importante da Nova Retoacuterica em relaccedilatildeo ao esquema das Stasis diz respeito a sua capacidade de nos lembrar os contextos argumentativos mais importantes dos argumentos bem como sua capacidade de complicar nosso entendimento da tarefa ao identificar o ocircnus da prova associado a cada uma das Stasis Sem duacutevida muitos dos princiacutepios e estrateacutegias da Nova Retoacuterica podem ser utilmente aplicados em conjunccedilatildeo com as Stasis

Na sequecircncia no entanto dispomo-nos a ilustrar o papel que a Nova Retoacuteri-ca pode assumir para evitar que as Stasis se transformem em foacutermula ao focar em um pequeno nuacutemero de questotildees centradas nas reivindicaccedilotildees de definiccedilatildeo e semelhanccedila por um lado e por outro nas reivindicaccedilotildees eacuteticas e avaliativas

As distinccedilotildees cuidadosamente esboccediladas na Nova Retoacuterica entre valores argumentativos e demonstraccedilatildeo loacutegica nos lembram do limite entre a reivin-dicaccedilatildeo da definiccedilatildeo e da semelhanccedila e reforccedilam a importacircncia de qualificar com cuidado tais reivindicaccedilotildees e de suportar as conexotildees mais tecircnues aqui realizadas A seccedilatildeo da Nova Retoacuterica que introduz a regra da justiccedila (seres ou situaccedilotildees do mesmo tipo devem ser tratadas de maneira idecircntica) eacute dedicada aos ldquoargumentos Quase-loacutegicosrdquo um tiacutetulo que chama a atenccedilatildeo tanto para as simi-laridades aparentes como para as diferenccedilas importantes entre a demonstraccedilatildeo formal e a argumentaccedilatildeo substantiva A regra da justiccedila adapta-se agrave descriccedilatildeo ldquoquase-loacutegicardquo na medida em que eacute uma regra formal ou equaccedilatildeo na qual pode-se substituir muitos valores particulares Poreacutem os argumentos dessa natureza satildeo menos rigorosos como classe de argumentos loacutegicos na medida em que a classe requer que ldquo[] os objetos aos quais se aplica devem ser idecircnticos isto eacute comple-tamente intercambiaacuteveisrdquo (PERELMAN e OLBRECHTS-TyTECHA 1969 p 219) Esse nunca eacute entretanto o caso no domiacutenio dos valores humanos nos quais a igualdade ldquosubstancialrdquo como quis Burke eacute o maacuteximo que podemos esperar Ao cabo deve-se fazer a mais retoacuterica das determinaccedilotildees o quanto os objetos em

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A construccedilatildeo do argumento

questatildeo satildeo parecidos e o quanto desse parentesco eacute suficiente para justificar a evocaccedilatildeo da regra da justiccedila

De fato assim todas as reivindicaccedilotildees de definiccedilatildeo na Nova Retoacuterica po-dem ser consideradas reivindicaccedilotildees de semelhanccedila Agrave media que aceitamos em princiacutepio essa equaccedilatildeo ndash se a linguagem eacute fundamentalmente metafoacuterica todas as relaccedilotildees assumidas de identidade tornam-se em um exame detalhado rela-ccedilotildees de identificaccedilatildeo ndash retemos a distinccedilatildeo entre a reivindicaccedilatildeo de definiccedilatildeo e de semelhanccedila por razotildees pragmaacuteticas (o que Burke chamaria de ldquorealistardquo) A distinccedilatildeo entre definiccedilatildeo e semelhanccedila eacute parte da linguagem ordinaacuteria e nomeia uma distinccedilatildeo real de graus ou como implicado de parentesco Enquanto as reivindicaccedilotildees de definiccedilatildeo obliteram as diferenccedilas entre os termos definidos as reivindicaccedilotildees de semelhanccedila colocam-nas em primeiro plano

Consequentemente a relaccedilatildeo entre ldquoseres ou situaccedilotildeesrdquo para quem reivin-dica semelhanccedilas eacute mais tentadora e o ocircnus da prova eacute mais fraco no tocante agraves relaccedilotildees estabelecidas sob as reivindicaccedilotildees de definiccedilatildeo De modo inverso quanto mais relaccedilatildeo reivindicada dos termos for definida ou comparada menos uma exceccedilatildeo ou um contraexemplo seratildeo inferiores agrave versatildeo da regra da justiccedila Eacute pragmaacutetico reter essa distinccedilatildeo aos estudantes desse modo tanto porque a distinccedilatildeo eacute significativa no cotidiano da linguagem natural como porque assina-lar essa distinccedilatildeo leva os estudantes a reconhecer as significativas diferenccedilas no ocircnus da prova decorrentes do tipo de Stasis adotado

Outra distinccedilatildeo do mesmo tipo pode ser esboccedilada entre os dois diferentes tipos de reivindicaccedilatildeo de semelhanccedila os precedentes e os analoacutegicos No pri-meiro caso a conexatildeo entre os termos eacute sequencial e ldquo[] os termos reunidos estatildeo no mesmo plano fenomecircnicordquo (PERELMAN OLBRECHTS-TyTECHA 1969 p 293) Assim por exemplo quando pensamos em precedentes temos em mente dois ou mais casos legais duas ou mais situaccedilotildees histoacutericas e assim por diante Assim que um precedente eacute estabelecido a extensatildeo da regra da justiccedila no caso em questatildeo eacute desse modo razoavelmente clara Jaacute no caso das analogias natildeo haacute

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A construccedilatildeo do argumento

clareza que pode equacionar entidades radicalmente diferentes De acordo com Perelman e Olbrechts-Tytecha (1969 p 381) analogias compreendem ldquotrans-ferecircncia de valoresrdquo de um termo a outro ou ldquodo phoros ao temardquo mas quando se clama que dois termos como ldquoamorrdquo e ldquorosas vermelhasrdquo apresentam valor aproximadamente igual isso natildeo implica estender a regra da justiccedila de um para outro e concluir que se deve por exemplo fertilizar o companheiro de algueacutem ou ter um encontro com uma rosa

Em suma ao escolher entre reivindicaccedilotildees de definiccedilatildeo de precedecircncia ou de analogia para preparar a extensatildeo da regra da justiccedila de um termo a ou-tro deve-se considerar o niacutevel de suporte disponiacutevel para uma reivindicaccedilatildeo e determinar o grau de qualificaccedilatildeo apropriado para uma conclusatildeo Enquanto a reivindicaccedilatildeo por definiccedilatildeo que implica igualdade substancial entre termos requer suporte maior analogias que implicam valores partilhados entre termos requer menor suporte

Eacute importante que os estudantes entendam essas distinccedilotildees entre os tipos de reivindicaccedilatildeo e as suas implicaccedilotildees para a regra da justiccedila Muitas das con-troveacutersias atuais de fato sustentam-se em termos de definiccedilatildeo e semelhanccedila e nas diferenccedilas entre ambas Talvez a ilustraccedilatildeo mais expressiva e clara da importacircncia de se distinguir entre reivindicaccedilotildees de identidade e de semelhan-ccedila eacute o conflito entre os juiacutezes da Suprema Corte quando a partir de uma regra da justiccedila aplicaacutevel na sociedade norte-americana atual Boa parte dos debates da Suprema Corte podem ser caracterizados como ruminaccedilotildees sobre o grau de similaridade entre casos variados ldquoseres e situaccedilotildeesrdquo e sobre como determinar que satildeo suficientemente similares para evocar a regra da justiccedila Entre os juiacutezes alguns ndash conhecidos como originalistas ou strict constructionists ndash concordam com o papel de destaque das reivindicaccedilotildees por definiccedilatildeo e sustentam que as diferenccedilas com as reivindicaccedilotildees por semelhanccedila natildeo satildeo apenas de grau mas

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A construccedilatildeo do argumento

de natureza Para eles a definiccedilatildeo original do termo como foi entendido pelos que pensaram a Constituiccedilatildeo eacute imanente ao texto que eacute a uacutenica fonte legiacutetima de sentido13

Historicamente as posiccedilotildees mais literais sobre a interpretaccedilatildeo juriacutedica satildeo difiacuteceis quando natildeo impossiacuteveis de serem mantidas daiacute ser frequente juiacutezes ldquode esquerdardquo defenderem uma visatildeo menos riacutegida da interpretaccedilatildeo durante anos sobre assuntos extremamente complexos de reivindicaccedilatildeo de definiccedilatildeo e de se-melhanccedila14 Entre os fatores que claramente influenciam os juiacutezes a tornarem-se mais flexiacuteveis em procedimentos interpretativos em face ao protesto de pares ori-ginalistas satildeo as mudanccedilas das circunstacircncias histoacutericas que envolvem os casos Aqui o axioma de Burke ldquoas circunstacircncias alteram os argumentosrdquo eacute um guia uacutetil Por exemplo muitos anos apoacutes a Corte ter rejeitado as leis de Jim Crow e outras que previam diferenccedilas categoacutericas entre afro-americanos e brancos e assim natildeo contemplados pelos mesmos direitos e garantias leis contraacuterias ao casamento entre raccedilas continuaram ativas Finalmente no despertar do movimento dos Direitos Civis dos anos sessenta a uacuteltima dessas leis foi derrubada Enquanto o princiacutepio de igualdade racial foi abraccedilado um seacuteculo antes a lei foi mais lenta para estender a regra da justiccedila a praacuteticas como a miscigenaccedilatildeo pois os haacutebitos tornavam as leis antimiscigenaccedilatildeo parecerem ldquonaturaisrdquo e foi necessaacuterio um levante histoacuterico para ajudar a Corte a elaborar uma nova perspectiva sobre o assunto

13 em mais de uma ocasiatildeo alguns juiacutezes citaram o Dicionaacuterio de Sam Johnson publicado em 1756 o uacutenico dicionaacuterio de liacutengua inglesa existente quando a Constituiccedilatildeo foi esboccedilada como uma tentativa de divinizar como os constituintes estavam empregando determinado termo Presumivelmente esses mesmos juiacutezes optaram por natildeo citar a definiccedilatildeo de ldquodemocraciardquo de Johnson presente nesse dicionaacuterio e ilustrada com uma citaccedilatildeo do Dr arbuthnot ldquoComo o governo britacircnico possui uma mistura democraacutetica dentro de si o direito de inventar tensotildees poliacuteticas reside parcialmente no povordquo

14 Talvez sem surpresa a mais notaacutevel exceccedilatildeo a essa regra o juiz Antonin Scalia que apoacutes mais de duas deacutecadas na Suprema Corte mantem-se um originalista ardente eacute o filho de um criacutetico formalista a versatildeo literal da teoria strict constructionism

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A construccedilatildeo do argumento

O processo continua Quando a Suprema Corte derrubou posteriormente as leis estaduais que criminalizam as praacuteticas homossexuais argumentou-se citando a lei preacutevia do casamento entre raccedilas que a decisatildeo constituiacutea precedentes para derrubar o banimento do casamento gay Enquanto alguns tribunais estaduais ndash e diversos tribunais estrangeiras ndash de fato decidiram que as similaridades entre os dois fenocircmenos eram suficientes para estender a regra da justiccedila da diversidade racial agrave diversidade sexual a Corte Suprema natildeo fez o mesmo De maneira suficien-temente apropriada oponentes dessa extensatildeo mas sofisticados o suficiente para reconhecer as incompatibilidades de suas proacuteprias posiccedilotildees valem-se de outras das vaacuterias ferramentas disponiacuteveis na Nova Retoacuterica para o trabalho de ldquovinculaccedilatildeo e desvinculaccedilatildeordquo de argumentos que servem a determinados propoacutesitos Nesse caso o dispositivo empregado por aqueles que delimitam uma linha niacutetida entre casamento inter-racial e o casamento gay eacute o ldquopar filosoacuteficordquo Enquanto dispositivo para categorizar fenocircmenos similares os pares filosoacuteficos inevitavelmente elevam um em detrimento do outro O mais notaacutevel desses pares ldquoaparecircnciarealidaderdquo ndash originalmente designado a desconectar a percepccedilatildeo sensorial da busca pela ver-dade ndash serve aos oponentes do casamento gay ao diminuiacute-lo a uma versatildeo falsa da coisa real o casamento heterossexual

Reivindicaccedilotildees avaliativas (X eacutenatildeo eacute bom) e reivindicaccedilotildees eacuteticas (X eacutenatildeo eacute um bom Y) podem ser enriquecidas ao valer-se da Nova Retoacuterica Muito da obra de fato eacute tomado por discussotildees sobre o valor e os autores satildeo particularmente eficientes em articular distinccedilotildees entre reivindicaccedilotildees por valores eacuteticos e por avaliaccedilotildees Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969) discutem inicialmente os valores no contexto dos ldquotipos de acordordquo entre os membros de um auditoacuterio que podem ser empregados como premissas argumentativas De maneira interessante os au-tores identificam as caracteriacutesticas uacutenicas dos valores e as que os distinguem de outros tipos de premissas ndash fatos verdades e presunccedilotildees ndash como sendo de natureza local rejeitando desse modo a noccedilatildeo de valores universais do tipo que pessoas como John Leo nos garantem que existem Em reveacutes direto agrave Loacutegica adotada por

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A construccedilatildeo do argumento

Leo os autores da Nova Retoacuterica afirmam que enquanto outros tipos de premissa apelam a uma audiecircncia universal os valores reclamam ldquoapenas a adesatildeo a gru-pos particularesrdquo (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTEXA 1969 p 74) No tocante agraves reivindicaccedilotildees da universalidade de valores como ldquoo Verdadeiro o Bom o Belo e o Absolutordquo os autores datildeo a seguinte resposta

A alegaccedilatildeo de um acordo universal [] parece-nos devido apenas agrave sua generalidade Eles podem ser tratados como vaacutelidos por uma audiecircncia universal apenas sob a condiccedilatildeo de que o conteuacutedo natildeo seja especificado assim que entramos nos detalhes temos contato apenas com a adesatildeo de audiecircncias particulares (PERELMAN OLBRECHTS-TyTECHA 1969 p 76)

De modo a ilustrar como a Nova Retoacuterica pode nos ajudar a articular a diferenccedila entre reivindicaccedilotildees avaliativas e reivindicaccedilotildees eacuteticas consideraremos o papel do meacutedico e ex-senador Bill Frist no caso Terry Schaivo Cumpre lembrar que esse caso ocorreu na Floacuterida e envolveu um conflito entre os pais da mulher e o marido sobre a remoccedilatildeo de tubos de alimentaccedilatildeo que a levaram agrave morte Um nuacutemero de meacutedicos responsaacuteveis por Schaivo declarou seu ldquoestado vegetativo permanenterdquo condiccedilatildeo sob a qual as leis da Floacuterida permitem a eutanaacutesia O estado interveio a favor dos pais e os tribunais deram decisatildeo contraacuteria a tal ponto que membros do Congresso Norte-Americano tentaram intervir em favor dos pais O senador Frist chegou a alegar que Schaivo natildeo estava em estado vegetativo permanente ao assistir a um breve viacutedeo

Com esse pano de fundo consideremos as diferenccedilas entre um julgamento avaliativo das habilidades meacutedicas de Frist e o julgamento eacutetico de sua interven-ccedilatildeo no caso A excelecircncia de Frist como meacutedico eacute melhor mensurada por padrotildees gerais da profissatildeo meacutedica e pelos padrotildees de sua especialidade (cirurgia cardiacutea-ca) dentro dessa profissatildeo ldquoComparado a quemrdquo ele eacute um excelente cirurgiatildeo Os julgamentos impliacutecitos em reivindicaccedilotildees avaliativas satildeo sempre condicionados

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A construccedilatildeo do argumento

a esse tipo de perguntas Ao formar uma resposta para essas questotildees eacute nossa incumbecircncia selecionar o menor grupo de referecircncia aplicaacutevel e tirar daiacute nossos criteacuterios e agirmos com prudecircncia para que esses criteacuterios cumpram sua funccedilatildeo no grupo a que servem Desse modo enquanto todos os meacutedicos deveriam possuir uma confortante relaccedilatildeo meacutedico-paciente e um grau razoaacutevel de destreza manual os meacutedicos de famiacutelia devem ser julgados mais pela relaccedilatildeo meacutedico-paciente do que pela destreza manual Na medida em que as pessoas se opotildeem agraves funccedilotildees da classe e aos pesos atribuiacutedos por diferentes criteacuterios o debate ultrapassa o domiacutenio meacutedico e sua avaliaccedilatildeo Quem discorda tem de apresentar valores de seu repertoacuterio pessoal e fazecirc-los valer na profissatildeo meacutedica

Em relaccedilatildeo agrave oposiccedilatildeo de Frist de remover os tubos de alimentaccedilatildeo de Ter-ry Schaivo por outro lado o julgamento dessa accedilatildeo natildeo eacute condicional na mesma medida em que as reivindicaccedilotildees de avaliaccedilatildeo do tipo precedente costumam ser A accedilatildeo tomada por ele natildeo pertence agrave classe mais ampla de accedilotildees portadoras de criteacuterios derivados da funccedilatildeo da classe Os criteacuterios para julgamento da qualidade da accedilatildeo devem vir de crenccedilas pessoais e valores de quem julga Essa eacute a dimensatildeo ldquolocalrdquo do julgamento eacutetico aludida pelos autores da Nova Retoacuterica A fonte do jul-gamento eacute local mas as implicaccedilotildees do julgamento satildeo universais Certamente haacute casos como o do dos Nazistas citado por John Leo no qual a proporccedilatildeo dos que concordam com o julgamento eacute tatildeo ampla que chega a ser virtualmente universal Poreacutem poucas questotildees eacuteticas seriam pertinentes se a concordacircncia com todos os julgamentos fosse tatildeo assimeacutetrica

Desse modo enquanto apenas uma parcela de pessoas pode concordar com Frist no que diz respeito agrave remoccedilatildeo do tubo de alimentaccedilatildeo de uma pessoa em permanente estado vegetativo por quatorze anos a reivindicaccedilatildeo implica que to-dos devem concordar com o julgamento O fato de ele ser meacutedico nesse tempo daacute a ele pouco poder no debate moral sobre eutanaacutesia Qualquer argumento por ele oferecido agrave populaccedilatildeo norte-americano da qual trecircs quartos discordaram quando ele se opocircs agrave morte de Schaivo teria fundamento moral Enquanto em um niacutevel

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A construccedilatildeo do argumento

geral todos podem concordar com esse meacutedico de que uma ldquocultura da vidardquo eacute uma boa ideia o caso de Schaivo compeliu o puacuteblico a ldquoentrar em detalhesrdquo sobre o significado desse princiacutepio e quando assim o fizeram houve muita dissidecircncia Esse resultado eacute previsiacutevel por qualquer leitor da Nova Retoacuterica

No contexto da teoria proposta por Perelman e Olbrechts-Tyteca o que po-deria parecer agrave primeira vista ser uma tarefa simples no contexto da teoria das Stasis eacute ao fim bastante complicado De acordo com a Nova Retoacuterica as pessoas natildeo subscrevem monoliticamente a valores Indiviacuteduos e grupos hierarquicamente mantecircm valores e eacute por isso que dois indiviacuteduos que pertencem nominalmente ao mesmo grupo e admitem os mesmos valores podem ranqueaacute-los de maneiras significativamente diferentes Duas pessoas desse modo que admitem os valores sobre a ldquocultura da vidardquo podem concordar que o aborto eacute algo muito ruim e ao mesmo tempo se dividir sobre o papel da pesquisa com ceacutelulas-tronco Por sua vez tais diferenccedilas sobre a questatildeo do uso de ceacutelulas-tronco podem refletir outra distinccedilatildeo de tipos de valores discutida por Perelman e Olbrechts-Tyteca a distinccedilatildeo entre valores concretos e abstratos Natildeo importa o quatildeo ardentemente algueacutem se oponha ao sacrifiacutecio de vidas humanas em termos abstratos pode-se abrir uma exceccedilatildeo para o caso da pesquisa com ceacutelulas-tronco quando algum ente querido eacute atingido por uma doenccedila grave cuja possibilidade de cura eacute aumentada por esse tipo de pesquisa Novamente o que a Nova Retoacuterica nos ensina sobre a reivindica-ccedilatildeo por valores eacute que o julgamento sobre o niacutevel de bondade ou maldade eacute guiado pela natureza local dos valores em questatildeo Os valores em questatildeo raramente satildeo tomados como simplesmente bons ou maus Eles satildeo melhores ou piores que outros e a interaccedilatildeo entre eles pode atenuar ou intensificar os julgamentos baseados neles mesmos Por isso a probabilidade de algueacutem diminuir a adesatildeo da audiecircncia a um valor ao evocar uma alternativa mais estimada eacute maior se comparada agrave tentativa de desacreditar e desmerecer o valor contestado

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A construccedilatildeo do argumento

introduccedilatildeo a stephen toulmin

A uacuteltima de nossas figuras da Retoacuterica contemporacircnea o filoacutesofo britacircnico Stephen Toulmin talvez seja o mais controverso A abordagem desse autor jaacute foi considerada a-retoacuterica ndash e certamente sua escolha infeliz de casos ilustrativos datildeo suporte a essa acusaccedilatildeo ndash e com frequecircncia a aplicaccedilatildeo em sala de aula eacute evitada Alguns professores descrevem tal abordagem como muito limitada outros recla-mam que eacute confusa Da mesma forma que as outras figuras discutidas neste capiacutetulo deve-se estar atento agraves expectativas para a aplicaccedilatildeo desse autor O que se espera da sua abordagem Quando se responde a essa pergunta de maneira especiacutefica e com expectativas modestas em mente em geral natildeo haacute frustraccedilatildeo Comumente problemas com essa abordagem decorrem de expectativas natildeo realistas Os autores deste livro nunca se apoiam primariamente e menos ainda exclusivamente na abordagem de Toulmin ndash muito tempo de aula dedicado a analisar argumentos a partir do esquema desse autor pode ser uma experiecircncia enlouquecedora Sempre lembramos nossos estudantes de que essas anaacutelises acarretam uma boa interpre-taccedilatildeo e que assim como os comerciais confessam suas mentiras discretamente no canto da tela ldquoos resultados apresentados podem natildeo ser tiacutepicosrdquo quando deixam de ser ilustraccedilotildees ad hoc para ser casos reais Essa abordagem eacute melhor utilizada em conjunccedilatildeo com a reivindicaccedilatildeo mais importante de um argumento como meio de ldquochecarrdquo e ter certeza de que essa reivindicaccedilatildeo diz algo muito similar agravequilo que algueacutem tem por intenccedilatildeo deixar claro aleacutem de clarificar as obrigaccedilotildees impos-tas a si ao realizaacute-la Por consequecircncia geralmente pedimos a nossos estudantes que submetam a reivindicaccedilatildeo mais importante agrave anaacutelise de Toulmin depois de completados os rascunhos Assim como na Nova Retoacuterica funciona bem em com-binaccedilatildeo com a abordagem sobre as Stasis em parte porque ambas enfatizam a reivindicaccedilatildeo Enquanto as Stasis satildeo eficazes para a expansatildeo das reivindicaccedilotildees a proposta de Toulmin eacute particularmente eficaz para refinaacute-las e delimitaacute-las Ao fim a forccedila peculiar da abordagem de Toulmin o acesso que ela permite ao fun-

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A construccedilatildeo do argumento

cionamento interno do argumento e a consciecircncia sobre as nuances linguiacutesticas do argumento fazem valer a pena evocaacute-la Isso posto vejamos as origens dessa abordagem e seus princiacutepios fundamentais

o esQuema de toulmin ndash o natildeo silogismo

Assim como na Nova Retoacuterica o ponto de partida de Toulmin em Os usos do argumento eacute a demonstraccedilatildeo loacutegico-formal (TOULMIN 1958) O que distingue a abordagem desse autor eacute o fato de que ele se manteacutem proacuteximo ao modelo loacutegico inventando uma variaccedilatildeo do silogismo categorial para apontar as deficiecircncias do arrazoado silogiacutestico ndash em particular a natildeo atenccedilatildeo dada agraves circunstacircncias e agrave in-diferenccedila sobre verdades substantivas e analiacuteticas ndash enquanto preserva algumas caracteriacutesticas especialmente a habilidade de tornar os argumentos mais trans-parentes A abordagem de Toulmin mais estreita que as outras tratadas neste capiacutetulo supre sua falta de riqueza com a capacidade de tornar os argumentos mais coerentes e mais transparentes

Em oposiccedilatildeo ao silogismo categorial e seus trecircs elementos (premissa maior premissa menor e conclusatildeo) Toulmin evoca seis (1) dado (2) garantia (3) tese (4) reforccedilo (5) reserva (6) qualificador Para ilustrar um esquema tiacutepico de Toul-min tomaremos emprestado um dos famosos exemplos ldquoa-retoacutericosrdquo Em poucas palavras o ldquoargumentordquo tal como eacute segue este caminho Petersen eacute sueco e como sueco pode ser considerado quase certamente como natildeo catoacutelico Petersen eacute quase certamente natildeo catoacutelico O argumento inclui quatro dos seis elementos ldquoPetersen eacute suecordquo eacute o dado ou ldquoo que permanecerdquo ldquoUm sueco pode ser considerado quase certamente como natildeo catoacutelicordquo eacute a garantia a generalizaccedilatildeo ou a regra que licen-cia as inferecircncias sobre o dado e leva agrave tese ldquoPetersen natildeo eacute catoacutelicordquo O ldquoquase certamenterdquo representa o qualificador ou medida de confianccedila que se pode ter na conclusatildeo baseada na forccedila da garantia e no poder do dado Um argumento pode tambeacutem incluir os outros dois elementos ldquoreservardquo e ldquoreforccedilordquo O primeiro

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aponta para exceccedilotildees agrave regra implicada pela garantia No caso de nosso amigo sueco a possibilidade digamos de ter passado feacuterias na Itaacutelia ter-se apaixonado por uma catoacutelica e converter-se para poder casar na igreja Jaacute o ldquoreforccedilordquo inclui todas as certezas de que a garantia por noacutes usada eacute aceitaacutevel Nesse caso podem ser dados estatiacutesticos que apontam para a pequena proporccedilatildeo de suecos adeptos do catolicismo

Eacute usual encontrar o esquema de Toulmin reduzido a apenas trecircs dos elemen-tos dado-garantia-tese ou como proposto em alguns livros didaacuteticos evidecircncia--razatildeo-conclusatildeo Esse trio eacute provavelmente menos difiacutecil para os novatos mas quando se simplifica o esquema dessa maneira perde-se muita da precisatildeo da abordagem do autor muitas garantias podem ser definidas como razotildees mas eacute impossiacutevel converter razotildees em garantias Aleacutem disso razotildees tambeacutem servem como motivaccedilatildeo A simplificaccedilatildeo do esquema acarreta igualmente uma perda de transparecircncia ou aquilo que o autor cunhou como a ldquosinceridaderdquo A funccedilatildeo primaacuteria desses elementos afinal eacute extrair informaccedilotildees das partes de um argumento que podem passar despercebidas Quando solicitamos aos estudantes para indicarem o qualificador e o reforccedilo conveacutem lembrar que esses elementos operaram no do-miacutenio das probabilidades e das contingecircncias e natildeo satildeo categoacutericos forccedilando-os a calibrar cuidadosamente o grau de confianccedila na tese e assinalar as possibilidades sob as quais ela natildeo se sustenta

Indo mais ao ponto o esquema de Toulmin pode ldquosubstituirrdquo um auditoacuterio ceacutetico ou aquilo que o autor se refere como um ldquodesafianterdquo A esse respeito Os Usos do Argumento assim como a Nova Retoacuterica eacute fortemente influenciado pelo modelo juriacutedico de argumento Ao passo que o silogismo categorial representa em uacuteltima instacircncia um argumento por autoridade ndash o sistema da loacutegica natildeo oferece uma maneira de questionar a veracidade dos termos ou de desafiar suposiccedilotildees ndash o esquema de Toulmin antecipa questotildees sobre a veracidade levantadas por um ldquoconselho opositivordquo em cada circunstacircncia Dito de outra forma os slots no esque-

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A construccedilatildeo do argumento

ma de Toulmin representados pela reserva e pelo qualificador antecipam desafios que podem ser postos em relaccedilatildeo agrave adequaccedilatildeo das motivaccedilotildees e da relevacircncia da garantia Jaacute o reforccedilo antecipa o desafio agrave legitimidade da garantia Dada a dificul-dade que muitos de noacutes ndash especialmente os estudantes ndash apresentam para desafiar os proacuteprios argumentos Toulmin provecirc uma maneira sistemaacutetica de antecipar desafios reforccedilando nosso argumento de acordo com eles (Sem mencionar oacutebvio a criacutetica aos argumentos alheios)

No entanto Toulmin tambeacutem eacute cuidadoso ao delimitar os desafios que podem ser colocados aos argumentos Se em teoria todos os elementos de um argumento estatildeo abertos a desafios de fato a vulnerabilidade dos seis elementos eacute a limitaccedilatildeo pela convenccedilatildeo Ou seja Toulmin aceita que diferentes campos do argumento apre-sentam acordos ndash alguns taacutecitos outros expliacutecitos ndash sobre o que constitui dados suficientes e relevantes reforccedilos legiacutetimos e o que tornam irrelevantes muitos dos desafios colocados ao argumento De fato em alguns casos nomear as garantias e os reforccedilos pode ser um insulto agrave audiecircncia Por convenccedilatildeo os elementos do modelo de Toulmin satildeo menos questionaacuteveis do que parece agrave primeira vista Aleacutem disso o autor impotildee um padratildeo rigoroso ao reforccedilo exigindo um status de ldquocomo um fatordquo a ele presumidamente para evitar o prospecto inapropriado de um infinito regresso de justificativas de reforccedilos empilhados Mesmo dentro da mais rigoro-sa das convenccedilotildees disciplinares entretanto a loacutegica do modelo de Toulmin estaacute longe de ser utilitarista e estreita como a imposta pelo silogismo categorial Como mostram os trabalhos de pessoas como a economista Deirdre McCloskey em anos recentes ateacute os argumentos quantitativos da economia e de outros campos das ciecircncias sociais satildeo menos objetivos e convincentes do que faz crer as estruturas pseudo-logiacutesticas

Por fim o modelo de Toulmin tem sido aplicado e usado livremente a argu-mentaccedilatildeo sobre eacutetica e poliacuteticas puacuteblicas nas quais poucos elementos carregam definiccedilotildees aceitas por todas ou quase todas as partes do debate De fato nessas

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A construccedilatildeo do argumento

instacircncias o valor principal do modelo reside no poder de revelar a vulnerabili-dade das premissas (garantias e reforccedilo) sobre as quais se assenta o argumento e na capacidade em oferecer uma ideia mais clara do quanto pode ser provaacutevel uma conclusatildeo

a apliCaccedilatildeo do modelo de toulmin

Para ilustrar a abordagem de Toulmin eacute preciso que nos movamos das teses diretas e pouco controversas de que ele se vale em direccedilatildeo a teses mais contro-versas e abertas que os estudantes podem de fato empregar ou encontrar em um discurso persuasivo Para tomarmos emprestada uma controveacutersia recente no discurso poliacutetico norte-americano consideremos a seguinte ldquouma parte da contribuiccedilatildeo dos trabalhadores norte-americanos agrave seguridade social deve ser colocada em contas de investimento pessoalrdquo Como geralmente eacute o caso essa tese aparece com o miacutenimo de reserva ou qualificaccedilatildeo De maneira a acessar a validade da tese devemos perguntar o que o orador pode ter em mente para servir de dado garantia reforccedilo qualificador ou reserva Em outros casos como nesse devemos supri-las ou inferi-las de outras declaraccedilotildees feitas pelo mesmo orador

O mais proeminente dos dados aduzidos para justificar a tese eacute algo da se-guinte ordem ldquoo sistema de seguridade social estaraacute falido em breverdquo A primeira coisa a ser notada sobre esse dado em particular eacute o fato de que ele proacuteprio eacute uma tese De fato as bases para os argumentos do mundo real satildeo geralmente reivindicaccedilotildees natildeo imunes a questionamentos particularmente quando se estaacute engajado em temas relativos a poliacuteticas puacuteblicas diferente das controveacutersias de outros campos bem definidos cujas regras satildeo expliacutecitas e acordadas por con-venccedilatildeo Os dados raramente sobem ao niacutevel dos ldquofatosrdquo (mantendo-se em mente que ldquofatosrdquo satildeo aqui entendidos como medida de concordacircncia de uma audiecircncia e natildeo da correspondecircncia entre uma proposiccedilatildeo e a realidade extralinguiacutestica) e satildeo suscetiacuteveis a desafios Satildeo para ficarmos seguros uma reivindicaccedilatildeo mais

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A construccedilatildeo do argumento

amplamente aceita do que a que serve como conclusatildeo do argumento No entanto muitas pessoas questionaram esses dados levando em conta as definiccedilotildees qual o significado de ldquoem breverdquo e de ldquofalirrdquo

Ambas as perguntas poderiam ser respondidas por prediccedilotildees econocircmicas de longo prazo que satildeo notoriamente instaacuteveis Isso posto um consenso sobre opiniotildees econocircmicas concluiu que se nada fosse feito o sistema comeccedilaria a gas-tar mais do que recebe a partir de 2017 e que teria de reduzir os benefiacutecios entre 20 a 30 em algum momento entre os anos de 2042 e 2052 Outra previsatildeo mais terriacutevel dos defensores da mudanccedila foi rejeitada com base no fato de que eles se valeram de um conjunto de suposiccedilotildees diferentes se comparadas a outras previsotildees econocircmicas para chegar agrave conclusatildeo O sistema nunca foi projetado para falir De fato diversas anaacutelises econocircmicas das propostas mais severas que envolvem contas pessoais indicaram que em 2042 os beneficiaacuterios receberiam quantia similar ou inferior ao pior caso o cenaacuterio do ldquonada a fazerrdquo O termo ldquofali-dordquo desse modo revelou relativo em oposiccedilatildeo ao julgamento categorial Na mesma moeda oponentes da proposta enfatizaram que ldquoem breverdquo tambeacutem eacute um termo relativo e perguntaram ldquocomparado a quecircrdquo a seguridade social estaacute em um beco sem saiacuteda e ldquocomparado a quecircrdquo essa ameaccedila eacute urgente Como vimos em nossa discussatildeo sobre a Nova Retoacuterica o valor de uma reivindicaccedilatildeo seraacute afetado pelas reivindicaccedilotildees associadas por questotildees como essas Por consequecircncia quando os oponentes da privatizaccedilatildeo da seguridade social mediram os perigos que ela enfrenta face ao seguro de sauacutede o puacuteblico considerou esse uacuteltimo muito mais preocupante Comparado ao impacto da crise do sistema de sauacutede os problemas da seguridade social pareceram eminentemente mais administraacuteveis

Quaisquer que sejam os problemas com a adequaccedilatildeo dos dados agrave urgecircncia e magnitude da tese os problemas mais interessantes com a proposta segundo a perspectiva assumida no esquema de Toulmin concernem ao ato que poderia justificar a passagem do dado tese movimento que vai das bases ndash iremos assu-mir por ora a adequaccedilatildeo dos dados para justificar a instaacutevel condiccedilatildeo financeira

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do sistema de seguridade social ndash agrave tese Como algueacutem pode ir da afirmaccedilatildeo ldquoo sistema de seguridade social em breve estaraacute falidordquo agrave tese ldquoparte da contribui-ccedilatildeo dos trabalhadores norte-americanos agrave seguridade social deve ser colocada em contas de investimento pessoalrdquo Como eacute geralmente o caso em questotildees de poliacuteticas puacuteblicas nenhuma garantia foi articulada deixando a tarefa agravequeles que questionam a tese Ao imaginar uma garantia adequada agrave tarefa o desafiador precisa discernir o grau de certeza dos que fazem as reivindicaccedilotildees em relaccedilatildeo agrave sua adequaccedilatildeo No caso da tese em questatildeo o fato de que natildeo foi acompanhada por qualificadores ou reservas sugere a necessidade de uma garantia de forccedila consideraacutevel Ou seja qualquer regra ou princiacutepio aduzido deve fazer a conclusatildeo ser altamente provaacutevel ou certa

Para alguns inferir uma garantia eacute uma questatildeo muito simples uma vez que jaacute se estimou o grau de certeza que ela deve possuir Basicamente deve-se reafir-mar em niacutevel mais geral a relaccedilatildeo entre os dados e a tese algo como ldquosempre que dado entatildeo teserdquo ou ldquosempre que dado frequentemente teserdquo No exemplo prosaico de Toulmin em Os usos do argumento a garantia parece autoevidente a ponto de ser supeacuterflua No caso em questatildeo poreacutem a declaraccedilatildeo da garantia pode ser ao mesmo tempo autoevidente e controversa Haacute como esperado boas razotildees para natildeo declarar o oacutebvio No caso da proposta sobre a seguridade social um candidato oacutebvio para a garantia eacute algo do tipo ldquoquando um programa puacuteblico estaacute com pro-blemas privatizar ao menos parte dele eacute a melhor soluccedilatildeordquo Tudo o que fizemos foi converter os dados (o sistema social em breve estaraacute falido) e a tese (uma parte da contribuiccedilatildeo deve ser colocada em contas de investimento pessoal) em versotildees um pouco mais gerais e combinaacute-las Os proponentes do plano abandonaram os termos ldquoprivadordquo e ldquoprivatizarrdquo porque os julgaram demasiado controversos Mas quando o fizeram jaacute empregavam-no por mais de duas deacutecadas para descrever a proposta que promoviam e os sinocircnimos que julgavam ultrapassados

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A vantagem de reafirmar as coisas agrave moda de uma garantia eacute tornar o racio-ciacutenio subjacente ao argumento muito mais transparente Nesse processo eacute inevi-taacutevel o surgimento de questotildees que podem passar despercebidas desde que o foco seja o caso particular em apreccedilo Assim garantias para teses propositivas como a proposta da seguridade social implicam uma relaccedilatildeo causal entre um problema e uma soluccedilatildeo (problema X portanto soluccedilatildeo Y) Estabelecer tais relaccedilotildees de forma tipicamente requer o recurso a precedentes histoacutericos (soluccedilatildeo Y eacute muito parecida com soluccedilatildeo Z que jaacute funcionou em situaccedilatildeo similar) e conexotildees fiacutesicas (soluccedilatildeo y funciona do seguinte modo A entatildeo B entatildeo C) Essas preocupaccedilotildees empiacutericas estatildeo ausentes nos exemplos pouco problemaacuteticos de Toulmin nos quais o reforccedilo eacute uma simples questatildeo de conferir dados censitaacuterios No caso da seguridade social o reforccedilo agrave garantia implicada de que a privatizaccedilatildeo iraacute resolver os problemas eacute necessariamente menos ldquofactualrdquo e mais aproximado de uma reivindicaccedilatildeo por semelhanccedila (nos casos em os programas X tiveram problemas a privatizaccedilatildeo os salvou) Os exemplos de Toulmin natildeo requerem muito reforccedilo empiacuterico em parte pela similaridade com os silogismos categoriais Nesses a premissa maior simplesmente afirma pertencimento a uma categoria No exemplo de Toulmin a garantia ndash ldquoSuecos raramente satildeo catoacutelicosrdquo ndash serve agrave funccedilatildeo prosaica Apesar de natildeo ser estritamente falando uma proposiccedilatildeo categoacuterica a garantia eacute suficien-temente similar a um fato para tornar o reforccedilo algo supeacuterfluo A garantia para o argumento sobre a seguridade social eacute consideravelmente menos factual e requer reforccedilo significante para garantir a adesatildeo Em que casos a privatizaccedilatildeo foi tentada no passado onde funcionou ou natildeo e por quecirc Como a privatizaccedilatildeo da seguridade social eacute parecida com esses casos precedentes Exatamente como passo a passo a privatizaccedilatildeo levaraacute agrave salvaccedilatildeo do programa

As vaacuterias tentativas de responder tais questotildees se mostraram pouco convin-centes para a grande maioria do puacuteblico norte-americano De fato criaram mais questotildees do que respostas Como as contas privadas teriam apoio sem cortar con-

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A construccedilatildeo do argumento

tribuiccedilotildees aos benefiacutecios a que eram destinadas Qual o efeito da perda de trilhotildees de doacutelares em contribuiccedilotildees para a sauacutede financeira dos programas de seguridade social existentes Ao cabo proponentes das contas privadas recuaram na alegaccedilatildeo de que resolveriam os problemas da seguridade social e as recomendaram por razotildees distintas

Ter garantias expliacutecitas significa que podemos ser mais especiacuteficos sobre os requisitos para um reforccedilo apropriado Quais evidecircncias haacute de fato de que a pri-vatizaccedilatildeo eacute um meio eficaz para solucionar problemas com programas puacuteblicos Aqui os proponentes poderiam se voltar para um conjunto misto de evidecircncias os casos nos quais a privatizaccedilatildeo foi ou natildeo eficaz Um precedente frequentemente citado que pode servir de reforccedilo agrave nossa garantia eacute o caso do Chile que privatizou integralmente o sistema no final da deacutecada de 1970 No entanto mesmo esse pre-cedente falhou em prover um reforccedilo soacutelido agrave garantia que a tese desqualificada parecia apelar No geral o sistema chileno funcionou bem mas muitas anaacutelises sugerem que funcionou melhor para a classe meacutedia e para a classe alta do que para os mais pobres cuja maioria teria se beneficiado mais com o programa social Considerando que a seguridade social eacute um instrumento para diminuir a margem de pobreza entre idosos norte-americanos a mais ou menos dois terccedilos (de cerca de 30 para 10) desde a deacutecada de 1970 esse foi um aspecto preocupante da experiecircncia chilena Aleacutem disso a vida do programa chileno em paralelo ofere-ceu condiccedilotildees para o maior aumento de preccedilo de accedilotildees na histoacuteria da negociaccedilatildeo de bens puacuteblicos o que levou algumas pessoas a questionarem o valor preditivo dessa accedilatildeo O programa chileno estaacute neste momento sendo reformulado de modo a tentar atenuar a tendecircncia de encurtamento de benefiacutecios aos mais pobres

Hoje em dia a proposta de privatizaccedilatildeo do sistema de seguridade social nos Estados Unidos estaacute parada em funccedilatildeo do crescente volume de criacuteticas mas ainda permanece como uma possibilidade no horizonte das poliacuteticas puacuteblicas As reivin-dicaccedilotildees ousadas e natildeo modificadas que defendem as contas privadas falharam na tarefa de ganhar amplo apoio puacuteblico apesar do grande volume de capital financeiro

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e poliacutetico investido Quanto mais o puacuteblico ouvia os argumentos dos proponentes menor era o apoio agrave proposta A fraqueza dos argumentos poderia ser facilmente expressa sem o modelo de Toulmin No entanto a linguagem do autor oferece uma maneira precisa de expressar problemas de articulaccedilatildeo entre aacutereas distintas Retroceder agrave falha geral da qualificaccedilatildeo da tese maior serve para se reconhecer o ocircnus da prova assumido pelo argumento No contexto dessa certeza os dados que reforccedilam tanto a urgecircncia quanto a magnitude do problema parecem insu-ficientes Aleacutem disso a incompatibilidade entre o problema (a seguridade social estaacute falindo) e a soluccedilatildeo (investir parte da contribuiccedilatildeo em contas privadas) pode ser mais visiacutevel apoacutes a desconstruccedilatildeo do argumento Mais do que isso a falta de qualquer elemento proacuteximo a um fato para a garantia erodiu a confianccedila puacuteblica no argumento

Apesar dos pesares o sucesso ou fracasso de um argumento correlaciona-se com a sonoridade tal qual estabelecida por Toulmin Ao final da anaacutelise o contex-to mais amplo as circunstacircncias nas quais os proponentes deveriam ldquoencontrar meios disponiacuteveis para a persuasatildeordquo provavelmente estaacute associado ao fracasso do argumento Um sem nuacutemero de eventos recentes levaram as pessoas a serem mais adversas aos riscos em particular no que toca agrave renda da aposentadoria As quedas dos mercados de accedilotildees em 2002 seguidas de trecircs anos de fraca recupe-raccedilatildeo deixaram as pessoas muito preocupadas em relaccedilatildeo a qualquer proposta que transferissem renda para esse mercado Mais do que isso ao longo da deacutecada anterior muitos descobriram que os planos privados de aposentadoria eram insol-ventes ou severamente subfinanciados quase ao ponto de serem abolidos ou ainda o silencioso fato de que os benefiacutecios definidos foram convertidos em benefiacutecios flutuantes dependentes da performance das accedilotildees no mercado Por fim entre os fatores que levaram aos problemas do mercado em 2002 estava o relaxamento de poliacuteticas regulatoacuterias do governo federal que levaram agrave falecircncia da Enron e de muitas outras operadoras de serviccedilos financeiros A maioria dos argumentos emerge ou afunda com base em assuntos ldquosubstanciaisrdquo como esses em oposiccedilatildeo

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agrave fraqueza ldquoanaliacuteticardquo ou formal dentro de um argumento Poreacutem ao assumir que se pode recorrer ao contexto mais amplo e a familiaridade com circunstacircncias re-levantes a proposta de Toulmin permanece uma ferramenta poderosa para checar se um argumento eacute a melhor expressatildeo desses elementos

resumo

Em siacutentese o que os professores podem extrair dessa breve histoacuteria Das anti-gas contendas com a Filosofia podemos aprender a abraccedilar as bases ldquorealistasrdquo de nosso empreendimento a aceitar o fato de que natildeo podemos prometer certezas ou verdades com ldquovrdquo maiuacutesculo como efeito da argumentaccedilatildeo Podemos entretanto oferecer meios para atingir um entendimento mais completo e mais complexo do mundo e uma probabilidade maior de que esse entendimento seraacute traduzido em accedilotildees e decisotildees Podemos lembrar o fato de que o primeiro livro abrangente de teoria retoacuterica A Retoacuterica de Aristoacuteteles eacute um manual para a participaccedilatildeo cidadatilde na democracia grega e que de iniacutecio precisamos preparar natildeo especialistas a cumprir com suas obrigaccedilotildees como cidadatildeos Podemos oferecer sem desculpas meios sistemaacuteticos para a formulaccedilatildeo e teste de argumentos mesmo se nos man-temos cautelosos de que esses meios natildeo oferecem soluccedilotildees baratas e raacutepidas Podemos na aurora da ldquovirada linguiacutesticardquo da Filosofia em que o poder da lingua-gem em construir e tambeacutem representar a realidade eacute algo reconhecido aceitar a responsabilidade em ajudar as pessoas a ldquoquebrar as correntes de um vocabulaacuterio desgastadordquo e assegurar que qualquer terminologia por noacutes empregada eacute capaz de um ldquoprogresso criacutetico de si mesmardquo Quando a linguagem eacute entendida como funda-mentalmente metafoacuterica e carregada de valor em vez de literal e neutra quando o entendimento eacute compreendido como maneira de ver uma coisa em termos de outra (identificaccedilatildeo) e natildeo como consciecircncia de que uma coisa eacute outra (identidade) a interpretaccedilatildeo deixa de ser um exerciacutecio de desambiguaccedilatildeo de linguagem pouco

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elaborado e passa a ser um requisito baacutesico de todo o entendimento uma traduccedilatildeo de uma compreensatildeo geral para algo especiacutefico e circunstanciado

Na mesma moeda a relaccedilatildeo entre regras ou princiacutepios gerais e casos particu-lares eacute tal que os princiacutepios natildeo satildeo assumidos para explicar os casos no modelo de conversatildeo de leis para a explicaccedilatildeo de fenocircmenos fiacutesicos Na Retoacuterica a relaccedilatildeo entre princiacutepios e casos eacute de matildeo dupla Agrave medida que os princiacutepios oferecem meios para interpretar os casos esses desafiam e alteram os princiacutepios Em suma as mudanccedilas recentes na Filosofia moveram a Retoacuterica das margens em direccedilatildeo ao centro e transformaram os focos maiores da disciplina argumentaccedilatildeo e interpre-taccedilatildeo em operaccedilotildees essenciais e natildeo mais acessoacuterias

Em termos das praacuteticas em sala de aula a Retoacuterica nos ensina que as liccedilotildees da histoacuteria satildeo muito uacuteteis para irmos aleacutem da proacutepria histoacuteria Os antigos e os primeiros modernos os grandes sistematizadores dos seacuteculos passados podem nos levar longe mas temos de adaptar seus princiacutepios gerais agraves circunstacircncias que enfrentamos A Retoacuterica tradicional era vista ndash atraveacutes das lentes distorcidas da Filosofia ndash como versatildeo de baixa qualidade da demonstraccedilatildeo loacutegica um inqueacuterito para obtenccedilatildeo de provas A esfera do argumento foi cuidadosamente delimitada e o modelo de persuasatildeo era a ocasiatildeo uma apresentaccedilatildeo oral e formal operada em poucos locais Pouca atenccedilatildeo era dada aos meios atraveacutes dos quais as mensagens eram transmitidas e os seus possiacuteveis efeitos As audiecircncias eram tratadas como dadas como algo a ser estrategicamente endereccedilado seguindo um modelo de com-preensatildeo da natureza humana que lembra uma versatildeo crua das grades psicoloacutegicas aplicadas por publicitaacuterios para a manipulaccedilatildeo da audiecircncia

Ao transmitirmos as liccedilotildees da histoacuteria em sala de aula muitas generalizaccedilotildees uacuteteis satildeo aplicaacuteveis A argumentaccedilatildeo contemporacircnea raramente eacute operada em apenas um lugar ou miacutedia Ela avanccedila em muitas frentes atraveacutes de meios diver-sos cada qual responsaacutevel por colocar demandas uacutenicas a quem argumenta Em particular os efeitos dessas miacutedias vatildeo do texto escrito ou falado ao modo de apre-

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sentaccedilatildeo aos filtros atraveacutes dos quais as mensagens satildeo direcionadas ao puacuteblico agrave maneira pela qual cacircmeras microfones iluminaccedilatildeo e cenaacuterios prendem a atenccedilatildeo em determinadas caracteriacutesticas em detrimento de outras Devemos atentar agraves maneiras pelas quais os gecircneros ndash discurso poliacutetico editorial carta ao editor talk shows anuacutencios impressos e televisionados etc ndash afetam nossa percepccedilatildeo do texto Muitas vezes as dimensotildees natildeo racionais ndash natildeo confundir com ldquoirracionaisrdquo ndash do argumento satildeo mais importantes do que os fatores racionais para determinar a eficaacutecia de um dado argumento Por isso devemos aprender uma maneira de ler isso Devemos oferecer oportunidades aos nossos estudantes para trabalharem com os argumentos em suas diferentes facetas e natildeo limitaacute-los a operar com coleccedilotildees antoloacutegicas de argumentos muito longos geralmente direcionados a audiecircncia de escopo muito limitado

Ao adaptar as teorias contemporacircneas para a sala de aula nossos desafios satildeo mais especiacuteficos Como organizar uma aula focalizada em torno das diversas abordagens aqui discutidas Sem sermos muito doutrinaacuterios encorajamos algo da seguinte ordem Ler profundamente a obra de Burke em especial A Rhetoric of Motives e Perelman e Olbrechts-Tyteca especialmente o Tratado da Argumentaccedilatildeo ndash A Nova Retoacuterica de forma a desenvolver um quadro conceitual a partir do qual se ensina a argumentar Entretanto a abordagem mais adaptaacutevel e uacutetil para o ensino a nosso ver eacute a abordagem da Stasis Theory Ela tem espaccedilo de sobra para acomodar qualquer assunto funciona bem para a formulaccedilatildeo e anaacutelise do argumento e ofe-rece aos novatos uma linguagem razoavelmente simples para discutir argumento Por fim recomendamos o uso cuidadoso e limitado de Toulmin em conjunccedilatildeo com a leitura profunda das reivindicaccedilotildees maiores nos argumentos dos estudantes A aplicaccedilatildeo das ideias desse autor pode ser muito uacutetil para o segundo estaacutegio do esboccedilo na escrita quando os estudantes conhecem o argumento o suficiente para perceber os pontos fortes e fracos e estatildeo suficientemente comprometidos a ponto de serem desafiados mas natildeo derrotados pelas severas interrogaccedilotildees advindas do esquema proposto por Toulmin

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caPiacutetulO 2 Questotildees sobre argumentaccedilatildeo15

Neste capiacutetulo vamos examinar quatro questotildees conexas que delineiam nosso entendimento sobre o argumento e seu valor em sala de aula Primeiro criticamos a praacutetica tradicional de ldquofalaacutecias informaisrdquo dando especial atenccedilatildeo agrave lacuna entre os modelos formais de falaacutecias e sua aplicaccedilatildeo atual Segundo vamos estender essa criacutetica agrave pragma-diaacuteletica influente escola de teoria do argumento e seu esforccedilo para construir um paradigma em que as falaacutecias podem ser mais precisamente definidas e avaliadas Terceiro usando a taxionomia das praacuteticas composicionais de Fulkerson (1996) recentemente atualizada vamos verificar as principais al-ternativas para o ensino do argumento em aulas de escrita e situar o ensino do argumento entre essas praacuteticas Finalmente vamos considerar os proacutes os contras e os desafios do ensino da propaganda em uma aula dedicada agrave construccedilatildeo do argumento

o debate sobre a falaacuteCia

O tratamento de falaacutecias informais nas aulas de escrita sobre argumento eacute muito frequente Apesar dos esforccedilos de muitos da aacuterea em pocircr fim a essa praacutetica e a despeito de alguns autores de livros didaacuteticos que gostariam de bani-las de seus livros as falaacutecias permanecem Haacute aparentemente uma espeacutecie de apelo inerente agraves falaacutecias como eacute o apelo agrave gramaacutetica prescritiva nas aulas de escrita Em uma aacuterea tatildeo fluiacutedica e complexa as falaacutecias satildeo finitas concretas e oferecem

15 Traduccedilatildeo Siacutelvio Luis da Silva

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aos praticantes a perspectiva perturbadora de permitir um julgamento positivo ou negativo de ser capaz de proclamar argumentos natildeo simplesmente fracos ou fortes mas completamente errados ou certos Assim exatamente como o professor de escrita solitaacuterio e preocupado em justificar uma nota ao estudante pode achar pertinente a chance de apontar a ocorrecircncia de concordacircncia verbal inadequada ou construccedilotildees sem paralelismo (natildeo discuta com o livro meu amigo) a criacutetica distraiacuteda de um argumento inconsistente do aluno pode igualmente apontar a pre-senccedila absolutamente inequiacutevoca do argumento ad hominem tu quoque (natildeo discuta com o latim meu amigo) Ao passo que ajudar os alunos a entender que uma tese eacute evidente ou vaga ou que as suas evidecircncias satildeo irrelevantes para o que pretende pode ser difiacutecil e levar tempo penalizaacute-los pelas falaacutecias e erros gramaticais gasta menos tempo e exige menos justificativas

Por certo aqueles que usam as falaacutecias informais no ensino do argumento tecircm um motivo mais nobre Haacute uma longa tradiccedilatildeo na maneira de ensinar as falaacutecias que remonta aos seus primoacuterdios A gecircnese da abordagem das falaacutecias pode ser atribuiacuteda a Aristoacuteteles que primeiramente em De Sophisticis Elenchis (e tambeacutem em Prior Analytics e Rhetoric) tratou das falaacutecias como uma coleccedilatildeo de argumentos intencionalmente enganadores propostos pelos sofistas para confundir e cativar seus oponentes Algumas das treze falaacutecias enumeradas por ele satildeo completamente dependentes de artimanhas linguiacutesticas mas outras satildeo independentes da lin-guagem Contudo os problemas de obscuridade que envolvem as falaacutecias atraveacutes dos seacuteculos estatildeo presentes desde a primeira vez que se fez essa distinccedilatildeo Como mencionado por Eemeren et al (1996) os exemplos de falaacutecias linguiacutesticas e natildeo linguiacutesticas de Aristoacuteteles natildeo satildeo particularmente esclarecedores Na verdade muitos estudantes atuais de falaacutecia satildeo pressionados a encontrar algumas que natildeo sejam dependentes do uso evasivo alterado ou ambiacuteguo da linguagem Con-sideremos o seguinte argumento sofiacutestico retirado do Euthydemus de Platatildeo que eacute mencionado como um exemplo de falaacutecia dependente da linguagem vocecirc tem um cachorro seu cachorro eacute pai dos filhotes seu cachorro eacute seu pai (citado por

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A construccedilatildeo do argumento

Eemeren et al 1996 p 58-59) Posto dessa forma o argumento pareceria ser o mais completo absurdo e incapaz de enganar o mais creacutedulo dos interlocutores Ateacute em seu formato original de diaacutelogo parece ser completamente evidente Agrave luz do pensamento de Aristoacuteteles essa eacute uma falaacutecia dependente da linguagem ba-seada em ldquouma mudanccedila ilegiacutetima de um atributo de uma propriedade acidental de um sujeito [] ao proacuteprio sujeito ou vice-versa O que Aristoacuteteles entende aqui por lsquoacidentalrsquo natildeo eacute clarordquo (EEMEREN et al 1996 p 59) Mesmo se pudeacutessemos imaginar o que precisamente Aristoacuteteles tinha em mente ao designar um atributo ldquoacidentalrdquo a maioria de noacutes acharia a sua explicaccedilatildeo desnecessariamente tortuosa e complexa O simples fato de um cachorro ser o pai de alguns filhotes natildeo o faz pai de toda pessoa no mundo assim como designar algueacutem como esposa natildeo implica designar todo o resto no mundo como seu marido Essa eacute uma grande categoria de erro do tipo que pessoas na vida real simplesmente natildeo cometem

A uacutenica razatildeo para classificar isso como uma ldquofalaacutecia dependente da lingua-gemrdquo eacute o fato de que eacute tatildeo absurdamente grosseira que poucas pessoas satildeo passiacuteveis de serem enganadas pela artimanha linguiacutestica que transforma ldquoseurdquo e ldquopairdquo em propriedades universalmente aplicaacuteveis De fato muitos dos exemplos de falaacutecias paradigmaacuteticas de hoje satildeo por si mesmos mal engendrados como os exemplos antigos Isso natildeo surpreende uma vez que muitos deles parecem ter sido retirados de exemplos de falaacutecias de livros didaacuteticos tambeacutem antigos

Mesmo assim as falaacutecias continuam a ser um ponto essencial nas aulas de escrita dedicadas ao argumento a despeito do fato de que como Fulkerson (1996 p 96) ressaltou ldquo[] nunca houve uma definiccedilatildeo consensual ou uma classificaccedilatildeo utilizaacutevel de falaacuteciasrdquo e o nuacutemero atual de falaacutecias mencionado nos livros didaacuteticos varia demais inclusive com nomes diferentes Na tentativa de tornar o estudo das falaacutecias mais uacutetil para os professores de escrita Fulkerson (1996) cita o trabalho da loacutegica informal em especial uma definiccedilatildeo de falaacutecia desenvolvida por Kahane (1971) De acordo com a anaacutelise de Fulkerson (1996 p 97) dessa definiccedilatildeo existe uma falaacutecia se algueacutem natildeo puder responder ldquosimrdquo para as seguintes questotildees

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A construccedilatildeo do argumento

1 As premissas ndash tanto as expliacutecitas quanto as impliacutecitas ndash satildeo aceitaacuteveis2 Todas as informaccedilotildees relevantes e importantes satildeo levadas em con-sideraccedilatildeo3 A forma do argumento satisfaz as regras relevantes da loacutegica

Fulkerson (1996) deixa de lado a terceira questatildeo com base no fato de que ela trata das regras de deduccedilatildeo formal que a torna difiacutecil de ser aplicada sem se dispensar um tempo extenso com o ensino de loacutegica tempo que poderia ser melhor utilizado em questotildees mais relevantes Aleacutem disso problemas de loacutegica formal ra-ramente ocorrem em argumentos do mundo real Ele entatildeo passa a citar as onze maiores falaacutecias que define como ldquorelevanterdquo no sentido de que elas satildeo natildeo formais e enquadram-se nas duas questotildees apresentadas pela definiccedilatildeo de Kahane (1971)

A discussatildeo de Fulkerson (1996) eacute uacutetil e clara e qualquer pessoa determinada a ensinar falaacutecias nos argumentos deveria se referir a ela Como o autor esclarece desde o iniacutecio e ao longo de sua discussatildeo que ldquoa falaacutecia das falaacuteciasrdquo por assim dizer eacute confundir um defeito relevante com um defeito formal Pressupotildee-se como muitos fazem que ldquo[] qualquer argumento cuja falaacutecia natildeo eacute identificaacutevel seja um bom argumentordquo (FULKERSON 1996 p 15) eacute semelhante a presumir que qualquer argumento sem erros factuais seja aceitaacutevel A ausecircncia de falaacutecia natildeo garante um argumento persuasivo da mesma maneira que a ausecircncia de erros formais na deduccedilatildeo garante um argumento aceitaacutevel Da mesma forma encontrar um argu-mento particular apresentado da mesma maneira que um argumento falacioso natildeo garante que seja falacioso No caso de um argumento ldquoem cadeiardquo se algueacutem argumenta que fazer A leva a B que levaraacute a C e assim por diante esse argumento pode ou natildeo ser defeituoso Algumas cadeias satildeo afinal de fato escorregadias e algumas cadeias casuais mesmo as muito longas satildeo hermeacuteticas

O simples fato de um argumento seguir um padratildeo que geralmente eacute seguido por argumentos que acabam por ser falaciosos natildeo garante que o argumento em questatildeo seja falacioso O erro que alguns cometem ao pensar assim eacute o mesmo da

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A construccedilatildeo do argumento

falaacutecia de post horc ergo proper hoc (depois disso portanto por causa disso) Even-tos conectados em ordem sequencial satildeo apenas um indiacutecio de causalidade e ateacute que algueacutem possa realmente mostrar a relaccedilatildeo causal natildeo se tem nada provado O mesmo acontece com argumentos falaciosos Ao final deve-se sempre mostrar com bases soacutelidas exatamente por que eles satildeo falaciosos Uma vez mostrado conclusivamente que uma linha especiacutefica de raciociacutenio eacute falaciosa tipicamente apenas se enfraqueceu um argumento geral natildeo o anulou

Poreacutem como as objeccedilotildees anteriores agrave abordagem das falaacutecias sugerem alguns insights uacuteteis podem surgir ao se observarem os argumentos com as lentes das falaacutecias Vista como heuriacutestica ou como sintoma que levanta as questotildees aponta-das sobre dado argumento ao inveacutes de um algoritmo que classifica ou avalia um argumento a falaacutecia pode nos levar a uma linha de investigaccedilatildeo frutiacutefera Muitas falaacutecias realmente aparecem em argumentos do mundo real sob formas reconhe-ciacuteveis Por exemplo as falaacutecias mencionadas na conjunccedilatildeo com causalidade as veneraacuteveis post hoc ergo propter hoc e as falaacutecias ldquoem cadeiardquo aparecem frequen-temente especialmente em conjunccedilatildeo com argumentos poliacuteticosincitativos De forma diferente os argumentos nas ciecircncias por causa das regras mais riacutegidas de evidecircncia e dos meios mais precisos de se medir e por causa de uma tradiccedilatildeo de se fazerem afirmaccedilotildees cuidadosamente qualificadas tendem a produzir afirma-ccedilotildees menos controversas (ou pelo menos em relaccedilatildeo agraves do domiacutenio puacuteblico) Os argumentos de causalidade no cenaacuterio poliacutetico puacuteblico tendem a ser tanto mais difiacuteceis de qualificar quanto mais faacuteceis de manipular para fins poliacuteticos No caso das provas escolares por exemplo o estabelecimento de provas mais elaboradas nas escolas primaacuterias e secundaacuterias eacute tido como uma evidecircncia de que algo estaacute sendo feito para melhorar o sistema escolar e ainda melhor para garantir que ldquonenhuma crianccedila [seja] deixada para traacutesrdquo Nesse contexto o aumento de dois ou trecircs pontos nas notas escolares eacute entendido como uma validaccedilatildeo de um ldquomovimen-to de prestaccedilatildeo de contasrdquo No entanto um aumento na nota que vem ldquodepois das provasrdquo natildeo garante nem que as melhores notas sejam ldquopor causa da provardquo nem

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A construccedilatildeo do argumento

mais importante que a prova meccedila aprendizagem e proficiecircncia reais O resultado da prova pode muito bem indicar que os professores estatildeo ensinando melhor para a prova e que os estudantes estatildeo indo melhor nas provas ou que estatildeo sendo faacuteceis

Quando os resultados das provas estaduais usados para medir o progresso do aluno satildeo contestados pelos resultados de provas nacionais projetados para medir a proficiecircncia do aluno sem viacutenculos com o financiamento ou o credenciamento escolar o ldquoprogressordquo na prova estadual precisa ser reexaminado Como um nuacutemero consideraacutevel de criacuteticos do movimento das avaliaccedilotildees educacionais tem mostrado as provas por si mesmas nada fazem para melhorar a aprendizagem dos alunos Ou como alguns criacuteticos tecircm ilustrado ldquonatildeo se engorda um porco pesando-ordquo

Exemplos desse raciociacutenio falacioso podem ser encontrados em vaacuterios deba-tes puacuteblicos e para dizer a verdade natildeo satildeo desconhecidos pela impressa Ter em mente padrotildees falaciosos pode potencialmente ajudar as pessoas a reconhecer os sinais de raciociacutenio falacioso quando se deparam com eles e a organizar a resposta para os argumentos que eles trazem nas entrelinhas A decisatildeo de se discutir ou natildeo as falaacutecias informais em uma aula de escrita tem menos a ver com a prevalecircncia do problema que elas engendram ou da utilidade das falaacutecias para detectar tais problemas do que com os desafios pedagoacutegicos que elas trazem Para os conhece-dores de falaacutecias as que satildeo reais satildeo facilmente distinguiacuteveis das aparentes Por outro lado a forma eacute facilmente confundida com a substacircncia pelos inexperientes Algueacutem que procura argumentos post hoc ergo propter hoc pode achar um que faz adequadamente uma alegaccedilatildeo tiacutemida de relaccedilatildeo causal baseada em correlaccedilotildees es-tatiacutesticas altamente persuasivas e ainda assumir que todo o argumento eacute falacioso

Haacute mais problemas pedagoacutegicos com a abordagem das falaacutecias O filoacutesofo Michael Scriven um antigo liacuteder do movimento do pensamento criacutetico opocircs de acordo com Eemeren et al (1996 p 182) ldquo[] o uso de falaacutecias com o objetivo de criticar o argumento alegando que fazer isso requer construir durante o processo de identificaccedilatildeo do argumento todas as habilidades necessaacuterias para a anaacuteliserdquo Por que ensinar os estudantes o vocabulaacuterio ldquoteacutecnico das falaacuteciasrdquo Scriven ques-

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A construccedilatildeo do argumento

tiona se determinar o estado real do argumento pode ser feito da mesma maneira na ldquolinguagem naturalrdquo de alegaccedilatildeo evidecircncia razatildeo e assim por diante usada na anaacutelise retoacuterica tradicional Aprender a terminologia latina das falaacutecias eacute na visatildeo de Scriven um passo desnecessaacuterio A ldquoprecipitada generalizaccedilatildeordquo universal das falaacutecias por exemplo natildeo oferece nada de novo no sentido de fornecer uma ferramenta para se saber o quatildeo bem embasado um argumento eacute Evidecircncia fraca natildeo eacute apenas uma falaacutecia eacute a base de enfraquecimento de muitos argumentos Eacute prudente julgar a adequaccedilatildeo de uma sustentaccedilatildeo no acircmbito da compreensatildeo e no grau de ceticismo que uma determinada audiecircncia empresta ao argumento

Em linhas gerais entatildeo noacutes partilhamos do ceticismo de Scriven a respeito da utilidade da terminologia das falaacutecias em nossas aulas Da mesma forma sem-pre tentamos oferecer pelo menos uma breve exposiccedilatildeo de um grupo selecionado de falaacutecias como aquelas que lidam com a causalidade que realmente surgem no mundo real e que podem se tornar mais reconheciacuteveis com o uso do vocabulaacuterio das falaacutecias Na nossa experiecircncia pelo menos alguns alunos acreditam que a abordagem eacute uacutetil

a abordagem pragma-dialeacutetiCa das falaacuteCias

A criaccedilatildeo da Sociedade Internacional para o Estudo do Argumento (ISSA) com sede na Universidade de Amsterdatilde e composta majoritariamente por linguistas europeus e canadenses filoacutesofos retoacutericos e teoacutericos da comunicaccedilatildeo eacute um tema que merece atenccedilatildeo apenas porque os principais membros publicaram muito sobre o assunto e satildeo frequentemente citados por estudantes americanos de argumento16 Em certa medida a pragma-dialeacutetica (P-D) representa uma tentativa de resgatar a

16 O extremamente uacutetil Fundamentals of Argumentation Theory que temos citado tem a participaccedilatildeo de dez membros do iSSa e os dois autores principais van eemeren e grootendorst satildeo os fundadores da abordagem

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A construccedilatildeo do argumento

abordagem das falaacutecias das vaacuterias criacuteticas apresentadas anteriormente e daacute con-tinuidade ao trabalho promissor iniciado pela loacutegica informal e os movimentos do pensamento criacutetico dos anos 1970 e 1980

A maioria dos estudantes americanos de argumentaccedilatildeo vai achar o nome dessa abordagem no miacutenimo um pouco intrigante A tradiccedilatildeo pragmaacutetica da filo-sofia americana que inspira o trabalho de muitos retoacutericos americanos e muitos filoacutesofos americanos contemporacircneos que apoiam as abordagens retoacutericas do argumento vai muito aleacutem do que os defensores da P-D parecem ter em mente Para os pragmatistas americanos a adoccedilatildeo de uma abordagem pragmaacutetica impli-ca certas assunccedilotildees a respeito da centralidade da linguagem para a compreensatildeo do mundo e consequentemente modelos de construccedilatildeo do conhecimento como a ldquoconversa da humanidaderdquo de Oakeshott (1975) e Rorty (1979) e a metaacutefora da ldquosalardquo de Burke (1941)17 Isso implica uma rejeiccedilatildeo agraves abordagens formalistas e sis-temaacuteticas da Filosofia em favor de uma abordagem ldquoedificanterdquo e interativa O fim da Filosofia em favor do pragmatismo se repousa natildeo em uma maior quantidade de conhecimento ou maiores certezas a respeito da Verdade mas em decisotildees e atos que levam algueacutem substancialmente para mais perto de uma visatildeo da ldquoboa vidardquo uma visatildeo que pragmatistas continuamente questionam e modificam em respostas agraves mudanccedilas na base O movimento P-D entretanto parece identificar ldquopragmaacuteticardquo principalmente com o ato de considerar premissas natildeo expressas de argumentos de acordo com ldquopadrotildees de discurso fundamentadordquo (EEMEREN et al 1996 p 14) A parte pragmaacutetica da P-D portanto licencia as pessoas a consultar ldquoinformaccedilotildees contextuais e conhecimento preacuteviordquo (EEMEREN 1966 p 15) para a avaliaccedilatildeo da validade de um argumento e a teoria dos atos de fala para determinar a funccedilatildeo de uma dada afirmaccedilatildeo

17 Burke (1941) se utiliza da metaacutefora da ldquosalardquo para esclarecer que quando entramos em uma sala na qual haacute outras pessoas e tentamos participar da conversa precisamos ouvir e tentar compreender o que estaacute acontecendo e que soacute conseguimos participar da conversa depois de termos informaccedilotildees suficientes a respeito do assunto

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A construccedilatildeo do argumento

Essa compreensatildeo mais modesta da Pragmaacutetica pode ser levada ao ponto de partida para a abordagem P-D a abordagem dedutivista tradicional do argumen-to baseada inteiramente em regras internas para os argumentos bem formados Comparada agrave essa uacuteltima abordagem o desejo dos analistas de P-D de consultar o extraverbal os elementos natildeo formais do argumento e considerar os motivos e propoacutesitos pode ser visto como significativo poreacutem a sua semelhanccedila eacute miacutenima com compreensotildees mais robustas de pragmatismo por estudantes americanos de argumento

Da mesma forma a parte ldquodialeacuteticardquo da anaacutelise P-D eacute quando comparada com os usos americanos do termo igualmente modesta A abordagem dialeacutetica de Burke para a compreensatildeo como exemplificado em seu meacutetodo dramaacutetico eacute por exem-plo um grande instrumento de compreensatildeo Enxergar algo ndash leia-se ldquoatordquo ndash em termos de outra coisa ndash leia-se ldquoagenterdquo ndash resulta em uma uacutenica compreensatildeo do fenocircmeno em questatildeo A inversatildeo do par em questatildeo ou a substituiccedilatildeo por termos diferentes resulta em uma compreensatildeo radicalmente diferente Isso eacute um meio de compreensatildeo do mundo que resiste agrave conclusatildeo e certeza o que eacute acima de tudo heuriacutestico A compreensatildeo do termo P-D entretanto se baseia na assunccedilatildeo de que ldquo[] toda argumentaccedilatildeo se daacute entre dois (ou mais) participantes que estatildeo engajados em uma interaccedilatildeo muacutetua e sincrocircnica com o objetivo de solucionar um problemardquo (FULKERSON 1996 p 15) Eacute uma compreensatildeo entusiasmada de argumentaccedilatildeo ndash de acordo com EEMEREN et al (1996 p 277) mais um exerciacutecio de ldquoresoluccedilatildeo conjunta de problemasrdquo do que de persuasatildeo ndash e natildeo por acaso di-ficilmente encontrado no mundo real Enquanto os propositores da P-D poderiam felizmente garantir que poucos argumentos atingem seu ideal ndash ldquopor muitas razotildees a realidade argumentativa nem sempre se assemelha com o ideal de uma discussatildeo criacuteticardquo (EEMEREN et al1996 p 295) ndash eles defenderiam o modelo na medida em que isso fornecesse um padratildeo uacutetil que avaliasse o mundo real dos argumentos

Isso nos leva de volta ao iniacutecio da discussatildeo a tentativa da P-D de salvar fa-laacutecias Eles dizem que faltava nas abordagens tradicionais de falaacutecia um padratildeo

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A construccedilatildeo do argumento

para distinguir os argumentos que se parecem com argumentos falaciosos dos que satildeo realmente falaciosos Embora seu proacuteprio padratildeo seja eles diriam muito rigoroso natildeo eacute irrealista Eles podem estar certos O maior obstaacuteculo para usar a abordagem com a maioria dos estudantes americanos de argumento que opotildeem Retoacuterica agrave Filosofia ou agrave Linguiacutestica eacute a grande complexidade do modelo Se al-gueacutem usa P-D em sua aula deve estar preparado para usaacute-la sozinha porque boa parte do semestre vai ser dispensada para elucidar os elementos do sistema e ilustrar esses elementos com exemplos extremamente simples e muito distantes dos tipos de controveacutersias que os alunos realmente encontram no mundo Como a P-D eacute uacutetil para interpretar a apresentaccedilatildeo de um argumento mais simples ela lembra a abordagem de Toulmin No entanto nesse aspecto ela requer a aquisiccedilatildeo de uma gama maior de vocabulaacuterio necessaacuterio para traduzir a linguagem natural da argumentaccedilatildeo em padratildeo P-D apropriado o que eacute algo como Toulmin elevado ao quadrado Talvez ao cubo Consideremos os elementos do sistema haacute quatro princiacutepios teoacutericos dos quais derivam normas para o estudo do argumento haacute quatro estaacutegios de ldquoresoluccedilatildeo diferentesrdquo haacute dez regras de discussatildeo criacutetica haacute quatro tipos de atos de fala usados em vaacuterios estaacutegios para se chegar agrave soluccedilatildeo treze usos possiacuteveis de cinco atos de fala nos quatro estaacutegios e quarenta e trecircs possiacuteveis regras de violaccedilatildeo

Estaacute aberto o debate sobre o fato do benefiacutecio da enorme complexidade que a P-D defende para esclarecer quando um argumento natildeo eacute apenas formalmente mas substantivamente falacioso leva a uma anaacutelise mais efetiva Para a maioria dos professores a ideia de que os meios justificam os fins eacute aparentemente menos questionaacutevel Na medida em que a P-D eacute uma ferramenta para anaacutelise de argumento ela eacute por hora provavelmente melhor aplicada por profissionais

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A construccedilatildeo do argumento

alternativas para enfatizar a argumentaccedilatildeo em uma aula de esCrita estudos CrIacutetiCo-Culturais

Em um artigo sobre a escrita na virada do seacuteculo XXI Fulkerson (2005) procura estabelecer o cenaacuterio dos estudos da escrita contrastando o panorama atual com o que encontrou em 1990 quando ele realizou um trabalho parecido na deacutecada de 1980 O autor descobre em sua uacuteltima leitura profunda sobre o assunto que a escrita ldquo[] se tornou uma disciplina menos unificada e mais controversa no iniacutecio do seacuteculo XXI do parecia ser nos anos 1990rdquo (FULKERSON 2005 p 654) Ele identificou trecircs axiologias ou teorias de valor que datildeo origem a trecircs abordagens distintas da escrita18 As trecircs axiologias incluem a visatildeo de ldquoconstruccedilatildeo socialrdquo que daacute origem agrave abordagem dos ldquoestudos criacutetico-culturaisrdquo (ECC) uma visatildeo expressi-vista que daacute origem ao expressivismo e uma visatildeo ldquoretoacuterica multifacetadardquo que origina o que ele define como ldquoretoacuterica processualrdquo (FULKERSON 2005 p 655) Essa uacuteltima abordagem eacute entretanto dividida em trecircs formas de ldquoretoacuterica proces-sualrdquo ldquo[] escrita como argumentaccedilatildeo escrita baseada em gecircneros e escrita como introduccedilatildeo ao discurso da comunidade acadecircmicardquo (FULKERSON 2005 p 671) Segundo o autor no ambiente atual ldquomenos unificado e mais controversordquo escolher uma dessas abordagens pode facilmente se constituir em um ato controverso

Concordamos com Fulkerson (2005 p 681) sobre a divisatildeo da disciplina um estado que talvez seja melhor captado na sua citaccedilatildeo da contenccedilatildeo de Gary Olson de que os estudos da escrita estatildeo agrave beira de uma ldquoguerra de novas teoriasrdquo Somos tambeacutem simpaacuteticos com a sua clara preferecircncia agrave retoacuterica processual em geral e a uma ecircnfase argumentativa em particular Somos por outro lado menos criacuteticos a abordagens alternativas do que ele parece ser e em alguns casos nossa

18 uma quarta abordagem a aparentemente imortal corrente tradicional eacute relutantemente reconhecida mas pouco discutida por fulkerson (2005)

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A construccedilatildeo do argumento

fundamentaccedilatildeo para preferir o foco no argumento e natildeo em outra abordagem eacute diferente Parte dessas diferenccedilas indubitavelmente se deve agrave inevitaacutevel reduccedilatildeo de perspectiva que Fulkerson teve de fazer para construir um mapa legiacutevel Como ele reconhece todas essas abordagens satildeo mais complexas e heterogecircneas do que se pode abarcar no acircmbito de uma visatildeo geral Aleacutem disso natildeo estaacute claro para noacutes se uma ecircnfase no argumento eacute pedagogicamente em vez de ideologicamente incompatiacutevel com algumas dessas abordagens19

De qualquer maneira atualmente a decisatildeo de enfatizar ou em certa medida simplesmente incluir a argumentaccedilatildeo em uma aula de escrita eacute uma escolha poliacutetica para a qual se deve estar bem preparado para defender dos defensores de outras abordagens Em programas cujas decisotildees curriculares satildeo feitas coletivamente esse debate aqui ensaiado pode ser feito muito rapidamente agraves vezes arduamente

Certamente a maior mudanccedila na ecircnfase da escrita nos uacuteltimos vinte anos envolve o surgimento das abordagens dos ECC Defendida mais notadamente por James Berlin essa abordagem engloba uma gama de ecircnfases diferentes incluindo o feminismo a aprendizagem de serviccedilo ou serviccedilo comunitaacuterio e a pedagogia criacutetica (que natildeo deve ser confundida com as abordagens de pensamento criacutetico de-cididamente neutros dos anos 1970 e 1980) Fulkerson (2005 p 660) eacute criacutetico dos ECC essencialmente por enfatizar demais questotildees de justiccedila social e ldquolibertaccedilatildeo dos discursos dominantesrdquo e pela sua tendecircncia a privilegiar o empoderamento dos alunos em detrimento da melhora da escrita como um resultado do curso Ele tambeacutem eacute reticente ao foco na interpretaccedilatildeo de textos e artefatos culturais em oposiccedilatildeo agraves estrateacutegias de inventividade e revisatildeo dos textos dos alunos Ele vecirc uma inquietante semelhanccedila entre os cursos de ECC

19 No proacuteximo capiacutetulo (Introduccedilatildeo a algumas boas praacuteticas) na verdade nos atentamos a uma gama de diferentes abordagens pedagoacutegicas para o ensino da escrita que parecem perfeitamente compatiacuteveis com o foco no argumento

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A construccedilatildeo do argumento

[] e os cursos de escrita baseados em literatura popular e de resistecircn-cia Em ambos os tipos os alunos leem textos que os professores julgam importantes Eles escrevem a respeito desses textos e o seu trabalho eacute avaliado a partir do quatildeo bem demonstram que eles entendem e podem fazer uma abordagem interpretativardquo (FULKERSON 2005 p 662-63)

Cursos desse tipo supotildee Fulkerson (2005) satildeo motivados em parte pelo que ele define como ldquociuacuteme de conteuacutedordquo dos professores de escrita

Nossa preferecircncia por cursos de escrita baseados na argumentaccedilatildeo agrave abor-dagem ECC natildeo implica uma rejeiccedilatildeo total a cursos de escrita ricos em conteuacutedo mesmo quando esse conteuacutedo eacute compatiacutevel com o ensinado em um curso tiacutepico de ECC Oferecer aos alunos um conjunto de textos eou artefatos para serem lidos e discutidos natildeo impede uma instruccedilatildeo direcionada para a argumentaccedilatildeo ou a escrita Aleacutem disso em uma aprendizagem baseada na colaboraccedilatildeo ou coo-peraccedilatildeo textos e assuntos comuns podem ser extremamente uacuteteis na promoccedilatildeo da discussatildeo e negociaccedilatildeo de sentido Dito isso noacutes partilhamos de algumas das reservas de Fulkerson (2005) quanto ao que muitas vezes realmente acontece em cursos ricos em conteuacutedo especialmente quando o conteuacutedo em questatildeo eacute uma paixatildeo do professor A discussatildeo de textos selecionados e de artefatos pode custar a discussatildeo dos proacuteprios textos dos alunos e o tempo dedicado agrave invenccedilatildeo e agrave revisatildeo de seu trabalho Poucos livros didaacuteticos aparentemente feitos para o uso em cursos de ECC oferecem o bastante na forma de instruccedilatildeo ou invenccedilatildeo ou revisatildeo e menos ainda discutem seriamente princiacutepios retoacutericos Muito do que se demanda dos alunos em cursos assim eacute a escrita baseada em argumentaccedilatildeo aleacutem disso haacute pouca instruccedilatildeo clara em como produzir um argumento ou como pensar sobre ele e os exerciacutecios como os exerciacutecios sobre a construccedilatildeo do argumento nem sempre satildeo claramente focados

Certamente muitos professores que usam essa abordagem criam o seu proacuteprio material por razotildees natildeo relacionadas ao seu compromisso com o foco em ECC De qualquer forma qualquer um que usa uma abordagem ECC que deseja garantir um

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A construccedilatildeo do argumento

equiliacutebrio entre o foco no conteuacutedo e o foco na escrita do aluno deve estar prepa-rado para realizar um levantamento pedagoacutegico bem extenso

Em alguns casos os cursos de ECC baseados em um uacutenico tema podem apre-sentar temas e artefatos com o mesmo ponto de vista e apontar para uma uacutenica direccedilatildeo desencorajando as discordacircncias racionais e a reflexatildeo criacutetica a respeito dos assuntos em questatildeo Ateacute mesmo cursos essencialmente pensados para criar uma consciecircncia criacutetica podem dificultar o desenvolvimento dessa capacidade agrave medida que ignoram a maacutexima de Burke de que qualquer terminologia eacute suspeita agrave medida que natildeo permite uma criacutetica progressiva de si mesma Ao desmerecer e criticar o vocabulaacuterio dos outros eacute importante que nos mantenhamos atentos aos nossos proacuteprios limites vocabulares que seratildeo mencionados e questionados por muitos alunos cuja visatildeo poliacutetica pode ser decididamente diferente daquela dos defensores tiacutepicos da ECC

Reiteramos que natildeo achamos que os cursos de ECC necessariamente incorrem nessas falhas natildeo mais do que acreditamos que os cursos baseados na argumen-taccedilatildeo necessariamente incorrem no formalismo vazio ou noccedilotildees panglossianas de pluralismo Certamente como deixamos claro no primeiro capiacutetulo em que discutimos a instruccedilatildeo criacutetica em sentido mais geneacuterico partilhamos muitos dos objetivos libertadores anunciados pelos defensores de ECC Acreditamos que os alunos podem ser empoderados pelos cursos de escrita e que eles podem se tornar mais conscientes dos modos como o discurso e a ideologia dominantes reduzem o ciacuterculo do pensamento criacutetico Acreditamos que podem fazer isso ateacute mesmo agrave medida que se tornam melhores escritores No entanto devemos concordar eacute possiacutevel se alcanccedilarem esses objetivos sem usar exclusivamente ou mesmo signi-ficativamente os materiais comumente vistos nos cursos de ECC Na verdade em alguns casos os alunos tendem a achar ambiciosos os objetivos delineados pelos defensores da ECC em um ambiente que daacute mais ecircnfase aos processos de leitura reflexatildeo escrita discussatildeo e escuta dos proacuteprios alunos do que nos materiais pri-maacuterios e secundaacuterios normalmente encontrados no curso

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A construccedilatildeo do argumento

Qualquer curso que deseja combinar com sucesso uma ecircnfase nos materiais de ECC e na melhora da escrita dos alunos deve deixar clara a ligaccedilatildeo do trabalho entre a interpretaccedilatildeo de textos e dos artefatos feitos pelos alunos e a construccedilatildeo de seus proacuteprios textos a respeito desse material Aqui novamente nossa pers-pectiva se diferencia da de Fulkerson Enquanto ele tende a tratar a interpretaccedilatildeo como uma atividade separada que prejudica as habilidades de escrita dos alunos noacutes tendemos a ver as duas atividades como complementares e concordamos com Berthoff (1983) para quem interpretamos como escrevemos No contexto de um curso de escrita a interpretaccedilatildeo pode se tornar uma atividade inventiva um meio de gerar o texto original No entanto isso soacute pode funcionar se ficar claro para os alunos que natildeo existe ldquouma maneira certardquo de ler o material e se as muacuteltiplas formas de leitura do texto satildeo delineadas para eles pelo professor pelos colegas e pelo material que eles estatildeo interpretando Se somos tentados a limiar o desen-volvimento dos alunos como pensadores independentes em nome de conclusotildees corretas talvez desejemos cutucaacute-los ou ateacute mesmo empurraacute-los fariacuteamos bem se nos lembraacutessemos mais uma vez do conceito de ldquoreversibilidaderdquo de Berude (1998) e da nossa incapacidade de prever os fins aos quais nossos alunos datildeo aos meios intelectuais que pomos agrave disposiccedilatildeo deles

pedagodia expressivista

A criacutetica de Fulkerson (2005 p 655) agraves abordagens expressivistas que ldquo[] a despeito dos vaacuterios golpes dos canhotildees do poacutes-modernismo e dos decorrentes elogios estaacute de fato silenciosamente expandindo seu campo de atuaccedilatildeordquo indica que elas incluem ldquo[] um aumento da conscientizaccedilatildeo e a chegada de uma ala com vozrdquo (FULKERSON 2005 p 666) que em nome de uma sauacutede psicoloacutegica comete os mesmos pecados contra o ensino da escrita cometidos pelos defensores da ECC em nome da libertaccedilatildeo poliacutetica O fato de Fulkerson dedicar menos da metade do espaccedilo que usa para criticar o expressivismo do que dedica agrave criacutetica da ECC ou aos

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A construccedilatildeo do argumento

procedimentos retoacutericos parece refletir um pouco de desprezo por essa abordagem Ao comentar o principal exemplo um estudioso defensor do curriacuteculo expressivis-ta ele rejeita a premissa baacutesica do autor com base na ldquo[] inclusatildeo de uma uacutenica narrativa autobiograacutefica no primeiro curso ser uma praacutetica completamente padratildeo e natildeo justifica designar o curso como lsquoexpressivorsquordquo (FULKERSON2005 p 668)

Nossa visatildeo sobre o expressivismo eacute mais positiva do que a de Fulkerson Na verdade vemos como uma estrateacutegia convincente a ser adotada para pedir aos alunos que componham narrativas pessoais nas aulas de escrita focadas na argu-mentaccedilatildeo e para ensinar a ler narrativas pessoais como uma forma de argumentar Enquanto vemos cursos baseados em argumentaccedilatildeo melhor delineados para atingir os fins da Retoacuterica e em longo prazo para servir a ambos os objetivos cognitivos e de desenvolvimento dos alunos noacutes aceitamos a importacircncia do engajamento da pessoa nos cursos de escrita e reconhecemos as contribuiccedilotildees dos estudiosos feministas e expressivistas dos uacuteltimos tempos para alcanccedilarmos esse objetivo Embora a criacutetica ao expressivismo de Fulkerson (2005) seja bem formulada ele ignora alguns trabalhos interessantes que vecircm sendo feitos pela ldquosegunda geraccedilatildeordquo de acadecircmicos expressivistas e relega a segundo plano um dos mais poderosos e igualitaacuterios instrumentos de persuasatildeo

Na verdade um trabalho aacuterduo deve ser feito no desenvolvimento de meios de avaliar interpretar e responder a narrativas pessoais para atingir seu total potencial em aulas de argumentaccedilatildeo Alguns acadecircmicos expressivistas contem-poracircneos jaacute comeccedilaram a trilhar esse caminho Na sequecircncia oferecemos algumas das nossas proacuteprias observaccedilotildees destinadas a identificar armadilhas das narrativas pessoais persuasivas e formas de abordar essas armadilhas

A esse respeito citamos o artigo Argument and Evidence in the Case of the Personal de Spigelman (1993) como um caso exemplar que situa o expressivismo na tradiccedilatildeo retoacuterica (especialmente a tradiccedilatildeo Aristoteacutelica) e o concebe como uma teoria contemporacircnea que explica o papel do pessoal no contexto da escrita persu-asiva Spigelman (1993) usa a escrita pessoal ldquo[] para fazer referecircncia aos modos

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A construccedilatildeo do argumento

com os quais os escritores atribuem sentido a suas vidas por meio da organizaccedilatildeo de suas experiecircncias em histoacuterias em primeira pessoardquo (SPIGELMAN 1993 p 65)

Independentemente de sua extensatildeo essas histoacuterias ldquo[] servem a finalidades que ultrapassam a pura expressatildeo de suas opiniotildees ou de confissotildees cartaacuterticasrdquo (SPIGELMAN 1993 p 66) Uma das finalidades mais importantes a que essas nar-rativas servem eacute mostrar comprovaccedilotildees O que conta como comprovaccedilatildeo enfatiza Spigelman (1993) eacute qualquer elemento que um auditoacuterio se dispotildee a permitir como tal Nas disciplinas tradicionais isso significa que apenas aquelas formas de comprovaccedilatildeo reconhecidas pelos especialistas da aacuterea seratildeo contabilizadas Isso significa por outro lado que quem estaacute de fora dessas disciplinas tradicionais ndash frequentemente as mulheres ndash cujas experiecircncias pessoais contradizem as conclu-sotildees dos especialistas natildeo seratildeo facilmente reconhecidas por esses especialistas A narrativa pessoal entatildeo ldquoeacute entendida como lsquoum ato significativo e subversivorsquo que daacute voz e autoridade agraves reivindicaccedilotildees das mulheres para o conhecimento ao nomear as suas experiecircncias como dados admissiacuteveis e relevantesrdquo (SPIGELMAN 1993 p 66)

Ainda que a narrativa de fato desempenhe um papel importante para em-prestar autoridade agraves reivindicaccedilotildees dos excluiacutedos pode parecer que natildeo eacute sub-versiva Na sequecircncia desses desenvolvimentos como a thick description (descriccedilatildeo consistente)20 na Antropologia no novo historicismo na Literatura e na proacutepria Histoacuteria sem mencionar os trabalhos de vaacuterios teoacutericos como Paul Feyerabend e Michel de Certeau as narrativas hoje possuem a funccedilatildeo de comprovaccedilatildeo tanto para os incluiacutedos quanto para os excluiacutedos Por certo como enfatiza Spigelman (1993 p 69) alguns ldquo[] poacutes-modernistas questionam a representaccedilatildeo [das nar-

20 o termo thick description(descriccedilatildeo consistente) se tornou conhecido pelo trabalho de Clifford geertz e eacute entendido como uma forma de escrever que inclui natildeo apenas a descriccedilatildeo e a observaccedilatildeo geralmente do comportamento humano mas tambeacutem as circunstacircncias em que esse comportamento se daacute assim se vale mais do que das aparecircncias pois inclui o contexto as emoccedilotildees os detalhes e toda a rede de relaccedilotildees sociais

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A construccedilatildeo do argumento

rativas pessoais] de sujeitos como indiviacuteduosrdquo mas esses questionamentos satildeo mais frequentemente direcionados para a maneira como a qual a representaccedilatildeo eacute construiacuteda do que para a legitimaccedilatildeo da narrativa pessoal como tal Certamente muitos de nossos alunos vatildeo encontrar narrativa pessoal e vaacuterias formas de pes-quisa etnograacutefica na universidade e devem estar preparados para responder a isso criticamente e a reproduzi-las inteligentemente

Como Fulkerson (2005 p 662) ressalta nossa proacutepria aacuterea tem adotado ldquoum construtivismo vagamente interacionistardquo nos uacuteltimos vinte anos e no processo legitimado ateacute mesmo privilegiado a narrativa pessoal comprova a nossa pesquisa Como era de se esperar Fulkerson (2005) natildeo eacute otimista a respeito dessa evoluccedilatildeo Apoacutes termos brevemente mostrado as suas consideraccedilotildees a respeito da corrente expressivista e da nossa versatildeo significativamente revisitada dessas considera-ccedilotildees vamos retornar agrave defesa de Spigelman (1993) da narrativa pessoal como uma ferramenta educativa e persuasiva e ponderar as formas como essa defesa deve ser expandida para tornar a narrativa pessoal mais prontamente uacutetil em aulas de escrita com ecircnfase no argumento

Citando pesquisas realizadas por teoacutericos da ECC Fulkerson (2005 p 662) aponta que ldquoo apelo pedagoacutegico embora algumas vezes seja baseado em estudos de caso etnograacuteficos nunca eacute geral mas sempre local Seu status epistemoloacutegico eacute o da erudiccedilatildeo sofisticada lsquoEu vi isso acontecerrsquo ou lsquoEu fiz isso e isso ajudou meus alunosrsquordquo O questionamento de Fulkerson aqui nos parece um tanto quanto ultrapassado A primeira imperfeiccedilatildeo da pesquisa etnograacutefica ele defende eacute a de que ela natildeo pode ser generalizada No entanto eacute evidente que ela pode ser generalizada natildeo pelo seu autor mas pelo auditoacuterio De fato essas pesquisas geralmente satildeo generalizadas seja por aqueles que a conduzem ou por aqueles que a citam Nossa preocupaccedilatildeo a respeito do uso de estudos de caso eacute o fato de que natildeo fica exatamente claro ateacute que ponto ou para qual direccedilatildeo as generalizaccedilotildees podem nos levar uma vez que os limites expliacutecitos satildeo raramente conhecidos ou articulados no acircmbito dos estudos

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A construccedilatildeo do argumento

propriamente ditos21 Nesse sentido as pesquisas etnograacuteficas natildeo satildeo diferentes de tantos outros substratos de narrativas pessoais que intencionalmente ou natildeo deixam obscuro exatamente a funccedilatildeo para a qual a narrativa estaacute a serviccedilo ou quais regras ou generalizaccedilotildees podem ser legitimadas pelas evidecircncias que apresentam

De fato os auditoacuterios de narrativas literaacuterias poderiam considerar esse co-mentaacuterio inoportuno desnecessaacuterio e ateacute mesmo completamente ofensivo Como forma de esclarecer a funccedilatildeo e o real status de casos de narrativa em pesquisa retomamos Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969 p 350) e a sua discussatildeo sobre a confusatildeo a respeito de trecircs funccedilotildees diferentes de ldquocasos particularesrdquo exemplos ilustraccedilotildees e modelos O caso particular que eles mencionam eacute o das revistas ame-ricanas O perfil de celebridade nas revistas tem a seguinte caracteriacutestica

[] descreve a carreira de pessoas de negoacutecios poliacuteticos ou estrelas de cinema sem explicitamente tirar proveito dele Os fatos satildeo evidenciados apenas como uma contribuiccedilatildeo para a histoacuteria ou satildeo uma complementa-ccedilatildeo a ela Os exemplos estatildeo sugerindo uma generalizaccedilatildeo espontacircnea Eles satildeo ilustraccedilotildees de receitas conhecidas para o sucesso social Ou as figuras centrais estatildeo nessas narrativas sendo elevadas a modelos ex-traordinaacuterios a serem imitados pelo puacuteblico Eacute impossiacutevel de ter certeza Provavelmente uma histoacuteria como essa tem a intenccedilatildeo de ndash e com frequ-ecircncia efetivamente fazem ndash satisfazer todos esses papeacuteis para diferentes classes de leitores (PERELMAN OLBRECHTS-TYTECA 1969 p 351)

21 Um dos exemplos recentes mais conhecidos do fenocircmeno que citamos aqui o fato de pesquisador se basear fortemente em evidecircncias e narrativas natildeo comprovadas para estabelecer uma categoria de julgamentos quantitativa sobre o seu tema eacute trabalho de Debora Tannen enquanto a maioria de seus pares no campo da Sociolinguiacutestica baseia a ldquodireccedilatildeordquo de suas descobertas nas diferenccedilas na forma como os homens e mulheres se comunicam alguns se preocupam com a intensidade do impacto e a universalidade dessas diferenccedilas Para concluir a partir das descobertas de que os homens satildeo 5 ou 10 mais propensos do que as mulheres a responder a uma situaccedilatildeo especiacutefica de uma maneira especiacutefica que haacute categoacutericas diferenccedilas nas suas respostas (ou seja que eles tipificam ldquoestilosrdquo de respostas masculinas ou femininas) parece ser exagerado Para anaacutelises retoacutericas mais completas da metodologia de Tannen consultar Ramage (2005)

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A construccedilatildeo do argumento

Dadas as diferenccedilas de escopo de generalizaccedilotildees legitimadas por diferentes tipos de casos particulares o prejuiacutezo que resulta de relatar um caso e entatildeo cui-dadosamente evitar ldquotirar uma liccedilatildeo delerdquo pode ser significativo O caso em ques-tatildeo eacute primeiramente um exemplo que sugere um padratildeo maior mesmo se ajudar a estabelecer a existecircncia desse padratildeo Ou eacute um modelo um ideal inquestionaacutevel que o auditoacuterio deveria desejar Ou talvez seja uma ilustraccedilatildeo de um padratildeo es-tabelecido que eacute aceito como tal Deixar duacutevida a respeito dessa questatildeo eacute dar espaccedilo para se oferecer ostensivamente um evento uacutenico para o entretenimento de um auditoacuterio que eventualmente se torna uma regra imposta a esse auditoacuterio

Ao mesmo tempo em que reconhecemos alguns dos problemas de empregar casos particulares e narrativas pessoais na pesquisa acreditamos que esses proble-mas satildeo sobrevalorizados pelos valores da narrativa pessoal As narrativas pessoais satildeo uma ferramenta de pesquisa uacutetil e tambeacutem uma ferramenta de persuasatildeo po-derosa ndash assim eacute o poder da narrativa pessoal que torna o seu abuso tatildeo perigoso Ao inveacutes de distanciar os alunos das narrativas pessoais entatildeo noacutes defendemos que eles devem ser ensinados a construiacute-las e a criticaacute-las Dito isso voltamo-nos agora para o artigo de Spigelman (1993) e para algumas das preocupaccedilotildees que ela partilha sobre os perigos da narrativa no contexto da escrita persuasiva Iremos entatildeo tentar desenvolver o que a autora comeccedilou a esboccedilar

Spigelman (1993 p 79) estaacute particularmente preocupada com ldquo[] a proble-maacutetica de teste de validade em pesquisas empiacutericasrdquo e cita a questatildeo que Richard Flores levanta a respeito de seu proacuteprio trabalho

Como os meus colegas avaliadores fazem para acessar o meu trabalho acadecircmico que estaacute ligado agrave minha experiecircncia de crescer no Texas sob o olhar atento daqueles cujas visotildees dos mexicanos eram abertamente racistas Os meus colegas poderiam escrever nas suas resenhas que mi-nhas consideraccedilotildees satildeo incorretas e que eu deveria reconsiderar a mi-nha praacutetica (SPIGELMAN 1993 p 79)

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A construccedilatildeo do argumento

Para responder agrave questatildeo levantada por Flores Spigelman (1993) se volta para duas narrativas sobre a escrita uma de uma professora de escrita de uma faculdade comunitaacuteria outra do contista Raymond Carver

As conclusotildees contraditoacuterias a que chegaram os dois escritores ilustram a ldquoproblemaacutetica do teste de validaderdquo pelo menos para aqueles que leem as nar-rativas na esperanccedila de se depararem com insights sobre seu proacuteprio trabalho em oposiccedilatildeo agravequeles que leem por puro entretenimento No caso da professora a maior generalizaccedilatildeo ou alegaccedilatildeo que emerge da histoacuteria aponta para a futilidade de comentar a respeito da escrita dos alunos A afirmaccedilatildeo se baseia na discussatildeo que a professora teve com seu marido a respeito de um texto que ele escreveu durante o ensino meacutedio e obteve a nota 95 sem nenhum comentaacuterio No caso de Carver entretanto a maior generalizaccedilatildeo ou afirmaccedilatildeo que emerge da histoacuteria diz respeito ao feedback detalhado e agrave avaliaccedilatildeo baseada em aulas que ele teve com o romancista John Gardner Como poderia algueacutem avaliar essas duas conclusotildees aparentemente contraditoacuterias a partir de experiecircncia pessoal

Sigelman se volta para a abordagem de James Raymond oriunda das discussotildees de Aristoacuteteles sobre exemplo e entimema Ele direciona a atenccedilatildeo dos alunos para as premissas que subjazem agrave narrativa e agrave questatildeo Em que o leitor deveria acredi-tar para aceitar que os argumentos satildeo persuasivos Spigelman entatildeo expande as anaacutelises de Raymond voltando-se ao paradigma da narrativa de Walter Fisher e a sua assunccedilatildeo sobre as narrativas

[] podem ser avaliadas e criticadas por sua validade ou racionalidade aplicando-se os princiacutepios da probabilidade narrativa o que constitui uma histoacuteria coerente e fidelidade narrativa se as histoacuterias que eles [o auditoacuterio] experienciam conectam realidade com histoacuterias que eles sa-bem serem reais em suas vidas (SIGELMAN 1993 p 80)

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A construccedilatildeo do argumento

Para avaliar a probabilidade narrativa eacute preciso prestar especial atenccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves falas dos personagens agrave medida que o padratildeo de adequaccedilatildeo eacute oriundo das suas accedilotildees e falas anteriores e dos valores que implicam A fidelidade narrativa entretanto demanda que examinemos as suposiccedilotildees subjacentes agraves alegaccedilotildees do escritor a respeito da importacircncia e do significado de sua histoacuteria e confrontemos essas suposiccedilotildees com nossas proacuteprias suposiccedilotildees e com as que partilhamos com outros Quando aplica essa meacutetrica agraves duas histoacuterias Spigelman descobre que a histoacuteria da professora ignora muitas variaacuteveis possiacuteveis que baseadas em suas proacuteprias experiecircncias como professorapesquisadora poderiam explicar bem mais a eventual fluecircncia na escrita de seu marido advogado do que a nota 95 sem comentaacuterios que conseguiu com o seu professor de inglecircs do segundo ano

A pesquisa de Carvey por outro lado parece mais consistente com as suposi-ccedilotildees a respeito do ensino da escrita do que ela partilha com muitos de sua aacuterea e apresenta por conseguinte maior fidelidade narrativa A habilidade de Spigelman em avaliar os dois textos sem paracircmetros impressionistas enfatiza a sua crenccedila de que se pode ensinar a outros como fazer esse trabalho Aleacutem disso como ela enfatiza depois ldquoa narrativa pessoal natildeo questionada e natildeo avaliada eacute sedutora e consequentemente perigosardquo (SPIGELMAN 1993 p 83) e natildeo podemos permitir que natildeo se ensine a escrita pessoal retoricamente constituiacuteda em nossas aulas

Acreditamos que o artigo de Spigelman eacute sugestivo e ao que parece persu-asivo No entanto como ela admite haacute ainda muito trabalho a ser feito no campo da avaliaccedilatildeo de alegaccedilotildees provenientes de experiecircncia pessoal Ainda que sempre possamos avaliar as alegaccedilotildees (quase sempre expliacutecitas) em artigos expositivos com maior grau de certeza do que podemos avaliar em alegaccedilotildees (geralmente taacutecitas) oriundas de exposiccedilotildees pessoais com certeza podemos conseguir um maior grau de confianccedila do que o estado da arte atual permite Talvez a melhor maneira de iniciar o trabalho que resta a ser feito nessa aacuterea seja perceber algumas das limitaccedilotildees dos criteacuterios avaliativos de Spigelman (1993) O primeiro passo eacute considerar a sua principal razatildeo para criticar o trabalho da narrativa pessoal da

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A construccedilatildeo do argumento

professora ndash o seu descuido na fidelidade narrativa A professora tira conclusotildees de sua experiecircncia pessoal sobre a falta de importacircncia do feedback que natildeo coin-cide com as crenccedilas e valores de Spigelman (1993 p 80) ou dos seus colegas A professora parece ldquo[] ignorar mais de vinte anos de pesquisas sobre a escrita em favor de uma nota raacutepidardquo No entanto Spigelman natildeo menciona nada a respeito de ldquomais de vinte anos de pesquisa sobre a escritardquo que subsidiam o que eacute consensual a respeito da importacircncia dos comentaacuterios nos textos dos alunos nem que essa lacuna eacute significativa Certamente haacute um vago consenso a respeito da importacircncia da revisatildeo e do feedback e haacute conhecimento acadecircmico desse consenso mas a) o conhecimento em questatildeo eacute menos unacircnime do que Spigelman sugere tanto na questatildeo sobre para onde os professores devem direcionar seus comentaacuterios quanto a respeito da quantidade de feedback que devem oferecer e b) pouco ou nenhuma dessas pesquisas satildeo muito recentes

Talvez o mais frequentemente citado ensaio sobre a resposta agrave escrita dos alunos Minimal Marking de Haswell (1983) natildeo encoraja a resposta zero mas efetivamente defende uma resposta econocircmica agrave escrita dos alunos Mais pontu-almente os valores e as premissas da obra de Haswell estatildeo muito longe das que motivam as dez revisotildees de Carver de um conto e as respostas cuidadosas de Gard-ner a cada um (HASWELL 1983) O artigo de Haswell (1983) parece assumir que poucos professores de escrita na universidade teriam tempo de oferecer a todos os seus alunos o grau de atenccedilatildeo que Gardner dispensa para Carver e que poucos alunos teriam a habilidade e o compromisso de aproveitar os apontamentos da forma como Carver o faz Para fazer justiccedila com os alunos poucos deles possuem o tipo de vocabulaacuterio teacutecnico requerido por Gardner para processar as observaccedilotildees meticulosas que Gardner faz Em suma o caso de Carver poderia funcionar mais como um exemplo fascinante de uma relaccedilatildeo de aprendizagem entre dois escritores extremamente talentosos do que um exemplo de relaccedilatildeo professor-aluno aplicada a aulas de escrita na graduaccedilatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

Aleacutem disso a maioria das pesquisas a respeito da revisatildeo e do feedback tem vinte anos ou mais em boa parte por causa das ldquovoltas pessoaisrdquo nas pesquisas em escrita agraves quais fizemos alusatildeo anteriormente Independentemente de suas falhas ndash e reconhecemos muitas delas ndash a pesquisa empiacuterica realmente proporcionou aos membros da comunidade da escrita uma base para o consenso nas preocupaccedilotildees baacutesicas da pedagogia como revisatildeo e feedback e hoje muitos de noacutes incluindo os que desdenham a pesquisa empiacuterica continuamos a contar com ela como base para um consenso instruiacutedo contra a ldquoerudiccedilatildeo sofisticadardquo Talvez uma parte do trabalho que mais claramente articula esse consenso o artigo de Hillocks (1984) What Works in Teaching Composition A Meta-analysis of Experimental Treatment Studies tem mais de vinte anos Ele natildeo poderia ser repetido atualmente justamen-te porque natildeo haveria estudos empiacutericos suficientes a respeito do que funciona e do que natildeo funciona na escrita para se chegar a qualquer conclusatildeo significativa

Assim como o artigo pessoal da professora ignora certas variaacuteveis importan-tes que poderiam explicar melhor o desenvolvimento do marido como escritor a anaacutelise comparativa de Spigelman (1993) das duas narrativas tambeacutem ignora certos aspectos que poderiam desempenhar um papel importante na sua avaliaccedilatildeo final Em primeiro lugar ao discutir a fidelidade narrativa ela trata o padratildeo de julgamento ndash ldquo[] as histoacuterias que [noacutes] sabemos serem verdadeiras nas [nossas] vidasrdquo (SPIGELMAN 1993 p 80) e os valores e crenccedilas partilhados em nossa comunidade ndash como relativamente natildeo problemaacuteticos Ela dispensa pouco tempo para justificar esse padratildeo e foca a sua avaliaccedilatildeo nas falhas dos valores impliacutecitos na histoacuteria da professora para combinar com o padratildeo que ela traz agrave tona No en-tanto como Fulkerson (2005) deixa claro a nossa proacutepria comunidade eacute menos homogecircnea do que era e hoje poucos de noacutes nos sentiriacuteamos confiantes de que nossas proacuteprias praacuteticas valores e crenccedilas coadunam com a maioria dos outros da aacuterea No lugar desse consenso os criacuteticos de uma narrativa pessoal devem se basear mais profundamente nas histoacuterias que sabem serem reais em suas proacuteprias

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A construccedilatildeo do argumento

vidas para o julgamento Para contabilizar as alegaccedilotildees impliacutecitas questionaacuteveis em uma narrativa eles satildeo provavelmente incentivados a basear suas contra-alegaccedilotildees em suas experiecircncias algo que Spigelman natildeo faz e talvez sabiamente Mesmo natildeo sendo algo ruim a praacutetica de responder a narrativas com narrativas significa que nossas alegaccedilotildees seratildeo dotadas de menos certeza e nossa evidecircncia de menor autoridade do que se pudeacutessemos evocar uma visatildeo consensual

Um segundo aspecto natildeo salientado na anaacutelise de Spigelman diz respeito agrave desproporcionalidade entre a autoridade de suas duas fontes Eacute inevitaacutevel que natildeo se preocupe com o papel que o ethos desempenha na sua avaliaccedilatildeo dos dois relatos e da nossa proacutepria resposta ao seu julgamento O relato pessoal de uma professo-ra universitaacuteria sobre seu marido eacute contrastado com o relato pessoal de um dos mais ilustres representantes da literatura americana do final do seacuteculo XX e seu igualmente ilustre mentor De certa forma Carver e Gardner satildeo o tipo de pessoas ndash ldquomodelosrdquo nas palavras de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969) ndash cujos atos satildeo autoautorizados na medida em que eles definem ideais que os meros mortais se esforccedilam para alcanccedilar Se um professor universitaacuterio viola uma norma consen-sual da comunidade temos menos tendecircncia a questionar nossas normas do que a pessoa mas se uma figura importante viola a mesma norma podemos nos voltar para a questatildeo ou ignorar essa norma O ethos que atribuiacutemos a escritores do cali-bre de Carver e Gardner tem mais a ver com uma funccedilatildeo do que com sua essecircncia

O ethos desses escritores como o de todo escritor depende muito da qualidade de sua escrita apresentada no texto especiacutefico que estaacute sendo avaliado A qualida-de da prosa de Carvey eacute muito boa Apresenta histoacuterias ardilosamente complexas contadas de maneira direta quase de maneira espontacircnea Enquanto noacutes tende-mos a concordar com Spigelman e outros que a qualidade da prosa Carver se deve mais ao trabalho consciente e minucioso (veja as suas dez revisotildees) do que a um dom misterioso tambeacutem percebemos que poucos escritores por quaisquer razotildees que sejam produzem um trabalho de qualidade comparaacutevel Muitos efetivamen-

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A construccedilatildeo do argumento

te tentam escrever narrativas pessoais com os modelos de Carver em mente Na verdade muito mais pessoas sentem-se compelidas a escrever narrativas pessoais do que a lecirc-las

A distacircncia entre quem escreve e quem ler na universidade tem a ver com a promessa ilusoacuteria de que a escrita pessoal eacute destinada agraves pessoas cansadas de trabalhar com a impessoalidade e serve para falar sobre assuntos que natildeo satildeo de sua proacutepria escolha em liacutenguas que natildeo suas seguindo roteiros que natildeo satildeo criaccedilotildees suas ndash o que diz respeito ao que eacute feito no mundo todo dia Voltar-se para a narrativa pessoal garante agraves pessoas uma oportunidade de dizer o que importa a elas sobre assuntos de sua proacutepria escolha na sua liacutengua materna seguindo ro-teiros tatildeo perfeitamente assimilados atraveacutes dos anos que eles natildeo sentem que satildeo roteiros No entanto como o espaccedilo entre o escritor e o leitor na narrativa pessoal eacute sugerido a promessa permanece ilusoacuteria Narrativas pessoais satildeo relativamente faacuteceis de escrever mas narrativas pessoais legiacuteveis satildeo difiacuteceis de escrever e nar-rativas pessoais engajadas satildeo muito mais difiacuteceis de escrever

Exemplos de narrativas pessoais ruins estatildeo agrave nossa volta nas universidades nas salas de aula e ateacute mesmo nas listas de best-sellers Elas satildeo certamente ruins de diferentes maneiras As piores narrativas pessoais de nossos alunos tendem a ser natildeo muito coerentes releituras de mitos populares natildeo muito plausiacuteveis textos de 750 palavras para um anuacutencio da MasterCard A pior das narrativas pessoais de um colega por sua vez tende a apresentar homilias religiosas contos previsiacute-veis lentos que terminam com uma admiraacutevel se natildeo oacutebvia moral Ao ler essas palavras as pessoas se lembram de que a liberdade da narrativa pessoal tem um preccedilo significativo e uma boa parte desse preccedilo eacute a obrigaccedilatildeo nas palavras do famoso ditado de Henry James ldquoacima de tudo ser interessanterdquo Para que natildeo nos desanimemos com a leitura dos piores trabalhos de nossos colegas e alunos ler os seus melhores trabalhos ndash para natildeo mencionar aqueles de pessoas como Raymond Carver ndash nos lembraraacute por que eacute tatildeo importante continuar tentando

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A construccedilatildeo do argumento

Essas satildeo apenas duas das muitas complicaccedilotildees que enfrentamos ao propor avaliar alegaccedilotildees oriundas das narrativas pessoais Com a ajuda de Spigelman ape-nas comeccedilamos a separar os problemas Qualquer padratildeo que eventualmente seja desenvolvido para nos ajudar a fazer julgamentos plausiacuteveis nos pareceraacute razoaacutevel Noacutes devemos desenvolver esse padratildeo Haacute algumas verdades que apenas podem ser descobertas ou adequadamente justificadas por meio da narrativa pessoal Satildeo tipos de verdades muito importantes para serem excluiacutedas das aulas de escrita argumentativa em nome da rejeiccedilatildeo ao retorno do ensino da escrita como terapia

retoacuteriCa proCessual

Quando trecircs possibilidades satildeo exploradas por um estudioso da escrita a ter-ceira eacute frequentemente a escolhida seja por devoccedilatildeo agrave ordem nestoriana ou pelas lembranccedilas de Cachinhos Dourados de deixar as coisas ldquoexatamenterdquo nessa esco-lha Eacute evidente que Fulkeson (2005) estaacute mais agrave vontade para discutir e elaborar a seu proacuteprio tertium quid ldquoabordagem retoacuterica processualrdquo Por isso ele inicia a discussatildeo da abordagem citando um documento da associaccedilatildeo Council of Writing Program Administrators (WPA)22 ldquo[] oficialmente aprovado pelo corpo de pessoas que efetivamente dirigem os programasrdquo (FULKESON 2005 p 670) A declaraccedilatildeo de ldquoresultadosrdquo da WPA enfatiza Fulkeson (2005) em sua maior parte exclui os objetivos da ECC e as abordagens expressivas dos resultados esperados e focaliza os objetivos retoacutericos tradicionais O autor acrescenta ainda que a desatenccedilatildeo agrave retoacuterica processual nos principais jornais tem mais a ver com a natureza estabe-lecida com o status quo da abordagem do que com qualquer falha inerente a ela Como ele sugere a argumentaccedilatildeo pode parecer uma das abordagens dominantes

22 NT A WPA eacute uma associaccedilatildeo de escritores profissionais que defendem e sediam conferecircncias workshops e programas acadecircmicos A organizaccedilatildeo representa professores e pesquisadores cujo enfoque acadecircmico satildeo os aspectos intelectuais e pedagoacutegicos do planejamento do ensino da escrita e de sua gestatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

efetivamente ensinadas na sala de aula Em adiccedilatildeo agrave argumentaccedilatildeo ele menciona duas outras abordagens retoacutericas sob esse tiacutetulo geral ldquo[] a escrita baseada em gecircneros e a escrita como introduccedilatildeo ao discurso de uma comunidade acadecircmicardquo (FULKESON 2005 p 671)

A escrita baseada em gecircneros recebe grande atenccedilatildeo acadecircmica Para que natildeo seja confundida com as antigas abordagens de gecircnero ou com seus parentes mais temidos os ldquotiposrdquo (narraccedilatildeo descriccedilatildeo processo etc) eacute consideravelmente mais flexiacutevel e teoricamente mais sofisticada Oriunda em parte de Bakhtin e de antro-poacutelogos como Clifort Geertz essa abordagem foi adaptada para o trabalho com a escrita por vaacuterios teoacutericos da comunicaccedilatildeo e da escrita Em particular o artigo de Miller (1984) Genre as Social Action (Gecircnero como accedilatildeo social) eacute frequentemente citado por acadecircmicos da nossa aacuterea juntamente com os trabalhos subsequentes de Carol Berkenkotter e Thomas Huckin Aviva Freedman e Peter Medway A definiccedilatildeo de gecircnero de Miller (1984 p 164) desenvolvida para descrever especificamente os gecircneros orais eacute ldquo[] contextualsituacional [] e oposta agrave ideia anterior de gecircnero como uma formafunccedilatildeordquo A relaccedilatildeo entre os membros de uma classe de gecircneros eacute entendida como mais familiar do que homogecircnea A abordagem de gecircnero assume que a maioria dos eventos de escrita acontece em situaccedilotildees recorrentes As simi-laridades dessas situaccedilotildees no que tange a assuntos objetivos e audiecircncia criam discursos muito parecidos adaptados agraves especificidades da situaccedilatildeo

Dessa forma estamos muito distantes dos tipos que satildeo antes de tudo for-mas estruturais Tem-se pouca noccedilatildeo sobre o propoacutesito de um texto descritivo ou narrativo ou sobre o auditoacuterio para o qual satildeo dirigidos Geralmente o que se sabe eacute apenas o que se passa Enquanto a abordagens baseada em gecircneros natildeo necessa-riamente exclui as consideraccedilotildees formais ela inverte a ordem da abordagem tradi-cional do tipo Ao inveacutes de comeccedilar pela assunccedilatildeo de que a forma motiva a escrita comeccedila-se a olhar para as situaccedilotildees recorrentes que datildeo origem e condicionam as escolhas formais ndash e outros inuacutemeros tipos de escolhas ndash que os escritores fazem

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em uma dada situaccedilatildeo para determinar qual ldquofamiacuteliardquo de escolhas formais podem ser adequadas Por causa do foco em situaccedilotildees recorrentes a audiecircncia ldquotiacutepicardquo para um dado gecircnero gera determinadas expectativas a respeito da resposta apro-priada e os escritores devem trabalhar com essas expectativas satisfazendo-as ou habilidosamente desrespeitando-as para obter um maacuteximo efeito

Assim como a abordagem ECC a abordagem de gecircnero enfatiza a importacircncia de ler cuidadosamente os modelos textuais dos gecircneros que os alunos devem pro-duzir Como a ECC ela ldquo[] presume que os textos satildeo socialmente construiacutedos em relaccedilotildees intertextuaisrdquo (MILLER 1984 p 165) Para compreender a instacircncia de um gecircnero eacute preciso ter natildeo apenas informaccedilotildees formais a respeito desse gecircnero mas compreensatildeo substancial da sua importacircncia ou modelos paradigmaacuteticos que escritores e audiecircncia devem ter em mente ao escrever ou interpretar qualquer instacircncia especiacutefica do gecircnero Enquanto a abordagem de gecircnero enfrenta alguns dos perigos que os cursos de ECC enfrentam quando se pesa a atenccedilatildeo dispensa-da aos textos e a atenccedilatildeo dispensada aos processos dos alunos o foco retoacuterico da abordagem assegura que atividades de interpretaccedilatildeo realizadas em sala devem se traduzir mais diretamente na construccedilatildeo do texto do aluno

Diante disso a abordagem baseada em gecircnero talvez seja a mais faacutecil entre as abordagens alternativas para se unir ao foco no argumento A compreensatildeo do argumento na abordagem baseada em gecircnero eacute desenvolvida em praticamente todas as principais abordagens da argumentaccedilatildeo e nos principais livros didaacuteticos do assunto A Stasis Theory na verdade eacute uma teoria de gecircnero segundo a maneira de entender por grande parte dos teoacutericos contemporacircneos A maioria das Stasis eacute derivada indutivamente dos tipos de situaccedilotildees recorrentes e dos objetivos recor-rentes dos locutores nessas situaccedilotildees O valor da Stasis como qualquer abordagem baseada em gecircnero natildeo eacute o fato de que ela dita uma estrutura especiacutefica mas o de permitir que se antecipem as respostas do auditoacuterio e dos pontos importante na construccedilatildeo de um argumento Natildeo se trata exatamente de uma forma preacute-fabricada

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A construccedilatildeo do argumento

que surge de uma preocupaccedilatildeo com a Stasis em questatildeo ndash ainda que dependendo do contexto do argumento uma forma preestabelecida pode ser necessaacuteria ndash mas de uma seacuterie de movimentos adaptados agraves especificidades da situaccedilatildeo

Ensinar em um curso de escrita baseado no argumento usando a Stasis theory tambeacutem permite que se adapte mais rapidamente agrave abordagem ldquoescrita como intro-duccedilatildeo ao discurso de uma comunidade acadecircmicardquo Nesse sentido Fulkeron (2005 p 672) cita a posiccedilatildeo de Gerald Graff em Clueless in Academe segundo a qual ldquo[] todo discurso acadecircmico eacute um argumento caracterizado por certos lsquomovimentosrsquo intelectuais preferidos que poderiam ser explicitamente compartilhados com os estudantesrdquo O estudante que entende o argumento como semelhante a uma seacuterie de movimentos realizados em resposta a uma Stasis que pede uma alegaccedilatildeo causal ou avaliativa tem pouca dificuldade em se adaptar a uma abordagem que enfa-tiza os modos particulares como um socioacutelogo entende avaliaccedilatildeo ou um quiacutemico entende causalidade

Dito isso a escrita como introduccedilatildeo ao discurso de uma comunidade acadecircmica eacute problemaacutetica por uma seacuterie de razotildees Como diz Fulkerson (2005) essa abor-dagem tem sido criticada por focalizar certos valores e padrotildees que favorecem os estudantes brancos da classe meacutedia De fato ela tem estado sob crescente ataque nas disciplinas nos uacuteltimos anos Aleacutem disso as dificuldades praacuteticas de introduzir os estudantes ao discurso acadecircmico geneacuterico trazem alguns problemas para o professor Indubitavelmente o melhor lugar para se aprender o discurso acadecircmico eacute a comunidade onde ele eacute usado Por que perder tempo em querer saber habilidades e competecircncias que natildeo podem ser transpostas para outras disciplinas Deixemos que essas disciplinas ensinem os estudantes a forma apropriada de escrever Para aprender como escrevem psicoacutelogos fiacutesicos ou cientistas poliacuteticos precisariacuteamos aprender o vocabulaacuterio a metodologia e o raciociacutenio reconhecido pelos membros de cada uma dessas comunidades o que eacute uma atividade impossiacutevel para uma uacutenica aula Na realidade na medida em que se compreende que a funccedilatildeo preciacutepua de um curso de escrita do primeiro ano eacute apresentar os alunos ao discurso acadecircmico natildeo

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A construccedilatildeo do argumento

se pode exigir mais que isso Os membros do chamado movimento ldquoabolicionistardquo um movimento que reivindica a extinccedilatildeo da escrita do primeiro ano e em alguns casos da extinccedilatildeo de cursos de escrita no primeiro constantemente mencionam a ausecircncia de convenccedilotildees e normas disciplinares nessas aulas como razatildeo para extingui-las

Embora natildeo tenhamos tempo ou espaccedilo neste trabalho para apresentar um exemplo completo de ensino de argumento em aulas de escrita como um antiacutedoto para os vaacuterios males mencionados pelos abolicionistas podemos perceber nas entrelinhas que seus argumentos apresentam as mesmas fragilidades que Burke (1941 p 171) observa nos argumentos vagos como testemunham as falhas que ele encontra em The Folklore of Capitalism (O folclore do capitalismo) de Thurman W Arnold ldquoPara atacar as sustentaccedilotildees subjacentes dos argumentos de seus opositores ele aperfeiccediloa um modelo de argumento que poderia se levado a cabo consistentemente tambeacutem atacar as sustentaccedilotildees subjacentes aos seu proacuteprio argumentordquo Dessa forma se algueacutem rejeitar a importacircncia da escrita no primeiro ano de todos os outros cursos universitaacuterios poder-se-ia com a mesma funda-mentaccedilatildeo negar a importacircncia da retoacuterica para o argumento em todas as outras disciplinas Realmente o que eacute mais surpreendente a respeito do renascimento da retoacuterica nos uacuteltimos anos eacute o ganho que esses estudos trouxeram para as pessoas em outros campos notadamente a Biologia e a Economia para reavaliar a sua proacutepria praacutetica argumentativa Pela mesma razatildeo a importacircncia da retoacuterica para outras disciplinas por meio do programa Escrita atraveacutes do curriacuteculo (em inglecircs Writting across curriculumndash WAC) proporcionou a muitos professores de outras disciplinas revisar suas abordagens de ensino de escrita Embora obviamente a escrita e a retoacuterica sejam sempre em certa medida atividades secundaacuterias melhor compreendidas como escrita sobre algo e retoacuterica de alguma coisa essa obviedade natildeo contradiz a natureza transdisciplinar dessas atividades a existecircncia de grandes semelhanccedilas e coincidecircncias entre as suas vaacuterias aplicaccedilotildees e a capacidade tanto de uma como de outra de alterar as coisas agraves quais se ligam Aleacutem disso mesmo

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A construccedilatildeo do argumento

que os abolicionistas estivessem corretos em sua perspectiva sobre a irrelevacircncia da escrita baacutesica para a escrita acadecircmica por exemplo ainda haacute uma loacutegica pode-rosa para o ensino da escrita como ldquodiscurso ciacutevicordquo uma capacidade que prepara os alunos para cumprir seus deveres como cidadatildeos ao inveacutes de preparaacute-los para escrever academicamente

ensinar ou natildeo ensinar propaganda

Por muitos anos os professores de escrita compreensivelmente se esqui-varam de usar o termo ldquopropagandardquo em sala de aula e mais ainda de ensinar aos alunos o que o termo poderia significar No uso comum trata-se mais de um termo pejorativo do que descritivo Virtualmente a uacutenica vez em que se ouviu o termo sendo invocado foi no contexto de uma demissatildeo partidaacuteria ldquoElesrdquo usam propaganda enquanto ldquoNoacutesrdquo oferecemos argumentos razoaacuteveis O termo parece causar muito alarde para uma anaacutelise corrente da persuasatildeo O clima atual natildeo eacute inteiramente saudaacutevel para lidar com questotildees pesadas como a propaganda na sala de aula No nosso estado do Arizona por exemplo um projeto de lei que corre no legislativo quer proibir professores de ensino meacutedio e superior de se valer de posiccedilotildees poliacutetico-partidaacuterios em sala de aula Mesmo natildeo sendo claro o que eacute um comentaacuterio ldquopartidaacuteriordquo os alunos poderiam ser estimulados a denunciar o que eles percebem como ofensas e as autoridades poderiam entatildeo resolver o caso com os acusados O projeto eacute aparentemente semelhante aos apresentados em outros estados na esteira de protestos de pessoas como David Horowitz Dinesh DrsquoSousa e Ann Coulter que alegam que a ldquolavagem cerebralrdquo liberal se tornou comum nas escolas puacuteblicas americanas Pouco importa que em ambientes como esse as pessoas poderiam relutar em analisar atos particulares de discurso poliacutetico como sendo possivelmente propagandiacutesticos

Dito isso a propaganda apresenta um cenaacuterio muito real de praacuteticas persuasi-vas que estatildeo em certa medida presentes em muitos argumentos aparentemente

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A construccedilatildeo do argumento

natildeo propagandiacutesticos Como visto anteriormente em nosso contiacutenuo de praacuteticas de argumentaccedilatildeo natildeo existe praacutetica pura de persuasatildeo no mundo real e alguns elementos das piores praacuteticas persuasivas podem ser encontrados ainda que fracos nas melhores Nossa habilidade em detectar essas praacuteticas no trabalho com qual-quer argumento e confrontaacute-las com os piores argumentos eacute cada vez mais criacutetica Natildeo haacute duacutevidas de que estamos mal preparados para lidar com a propaganda de um modo racional especialmente porque a dinacircmica da persuasatildeo na propaganda natildeo eacute amplamente compreendida ndash ou ainda pior essa dinacircmica eacute largamente mal compreendida ndash e recebe pouca atenccedilatildeo na sala de aula

Para ser mais especiacutefico o uso dessas praacuteticas tem aumentado significativa-mente nos uacuteltimos anos na medida em que a miacutedia tem assumido novas formas mais adequadas agrave dinacircmica da propaganda A tentaccedilatildeo de usaacute-la tem sido intensi-ficada em uma sociedade em que se propaga a ideia de que ldquoo vencedor leva tudordquo e a resistecircncia a isso tem sido enfraquecida pelo sistema puacuteblico de educaccedilatildeo cada vez menos comprometido com o ensino do letramento criacutetico e cada vez mais com-prometido com o ensino que prepara para exames padronizados

Antes de comeccedilar a analisar exatamente o que a propaganda eacute vamos ver o que ela natildeo eacute Vamos fazer isso porque acreditamos que os erros conceituais a respeito da propaganda a que aludimos anteriormente ainda satildeo as maiores barrei-ras para uma compreensatildeo contemporacircnea do fenocircmeno Um dos equiacutevocos mais recorrentes eacute a crenccedila de que a propaganda eacute majoritariamente uma ferramenta de um estado totalitaacuterio A Alemanha nazista a China comunista a Coreia do Nor-te a antiga Uniatildeo Sovieacutetica o Iraque na eacutepoca de Sandam Russein ndash na cabeccedila da populaccedilatildeo esses satildeo os modelos de uso da propaganda Em nome do controle da populaccedilatildeo os monopoacutelios midiaacuteticos dirigidos pelo estado alimentam um fluxo constante de ldquoverdades oficiaisrdquo muacutesicas motivadoras e mensagens pessoais de seus ldquoqueridos liacutederesrdquo do povo ldquoDocumentaacuteriosrdquo que apresentam os inuacutemeros triunfos do Estado satildeo artisticamente construiacutedos com a finalidade de fundir os liacutederes poliacuteticos com os seus mitos Outdoors e cartazes por toda parte apresen-

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A construccedilatildeo do argumento

tam imagens de liacutederes e citaccedilotildees de heroacuteis do passado Os cidadatildeos satildeo levados a participar de celebraccedilotildees organizadas em torno de exibiccedilotildees de forccedilas militares Aqueles que natildeo satildeo receptivos agraves mensagens das propagandas satildeo encaminhados para instituiccedilotildees governamentais para serem ldquoreabilitadosrdquo As fronteiras satildeo her-meticamente fechadas para que os cidadatildeos natildeo possam buscar as suas proacuteprias verdades fora disso e para prevenir que ldquoagitadores estrangeirosrdquo mostrem histoacute-rias alternativas Mesmo que esse modelo seja historicamente preciso e em alguns casos como na Coreacuteia do Norte ainda esteja em vigor hoje eacute simplesmente muito custoso mantecirc-lo mesmo para um ditador mais determinado Aleacutem disso com o advento da Internet eacute praticamente impossiacutevel policiar a expressatildeo de opiniotildees Hoje em dia a propaganda eacute ao mesmo tempo mais difundida e menos oacutebvia do que era no passado

o Que eacute propaganda burke e ellul

No final desta seccedilatildeo vamos deixar resumidamente algumas das caracte-riacutesticas principais da propaganda para que as pessoas as reconheccedilam e possam entender melhor seu impacto negativo No entanto neste momento vamos re-troceder um pouco e dar uma olhada mais acurada na propaganda tendo como nossos guias dois pensadores que na nossa opiniatildeo oferecem as mais profundas anaacutelises retoacutericas do fenocircmeno Kenneth Burke especialmente em seu ensaio de 1941 Rhetoric and Hitlerrsquos Battle e o filoacutesofo social francecircs Jacques Ellul Talvez o ponto de partida mais uacutetil para essa anaacutelise seja a distinccedilatildeo de Burke (1966) entre retoacuterica realista e retoacuterica maacutegica a que aludimos no primeiro capiacutetulo Ao fazer essa distinccedilatildeo Burke (1966) enfatiza a capacidade realista da retoacuterica de ldquoinduzir a cooperaccedilatildeordquo entre as pessoas em oposiccedilatildeo ao poder maacutegico da linguagem de ldquoprovocar o movimento nas coisasrdquo (BURKE 1966 p 42) Burke rejeita essa visatildeo maacutegica da linguagem com base no fato real de que o domiacutenio extraverbal ao mesmo tempo em que depende da linguagem para a sua compreensatildeo e entendimento eacute

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A construccedilatildeo do argumento

independente da linguagem na medida em que ele tem o poder de contrariar nos-sas perspectivas linguiacutesticas sobre ele Apenas para lembrar Burke natildeo faz isso

A propaganda pode ser compreendida nesse contexto como uma tentativa de reduzir as audiecircncias a um estado de coisificaccedilatildeo para nelas ldquoinduzir o movimen-tordquo que satisfaz as necessidades do anunciante Com esse fim o empreendimento da propaganda eacute altamente redutor reduz a audiecircncia ao menor denominador e apela para os elementos baacutesicos do caraacuteter humano infantiliza a audiecircncia ao en-fatizar a onisciecircncia divina do anunciante e o poder que ele tem para garantir sua seguranccedila limita o acesso da audiecircncia agraves informaccedilotildees e aos contra-argumentos excluindo-os do apelo propaganda descaracterizando-os ou impedindo que os concorrentes os conheccedilam

O resultado de tudo isso de acordo Ellul (1973) eacute o que ele chama de ldquoorto-praxiardquo Como o seu primo etimoloacutegico ortodoxia a ortopraxia se refere mais ou menos a um nuacutemero de crenccedilas sem reflexatildeo mas na medida em que a ortopra-xia indica um vasto motor inconsciente de resposta a estiacutemulos que ldquodatildeo curto--circuito em todos os pensamentos e decisotildeesrdquo (ELLUL 1973 p 27) ela vai muito aleacutem da ortodoxia Na verdade a ortopraxia eacute mais reconhecida por fazer ldquo[] o indiviacuteduo viver em um mundo separado ele natildeo pode ter referecircncias exteriores A ele natildeo eacute permitido um momento de meditaccedilatildeo ou reflexatildeo a respeito de como se vecircrdquo (ELLUL1973 p 17) Como jaacute sugerimos os meios tradicionais de alcanccedilar esse objetivo dados os aportes massivos de dinheiro e matildeo de obra necessaacuterios natildeo satildeo mais vistos como viaacuteveis para a maioria dos governos Nos dias de hoje como veremos versotildees menos draconianas disso podem ser feitas relativamente de forma mais faacutecil com muito menos investimentos de recursos

Neste ponto do nosso texto natildeo precisamos mais fazer uma introduccedilatildeo a Burke Jacques Ellul provavelmente precisa Seu trabalho mais relevante Propa-ganda The Formation of Menrsquos Attitudes (Propaganda A Formaccedilatildeo das Atitudes do

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A construccedilatildeo do argumento

Homem) foi escrito em 196223 mas ainda permanece indiscutivelmente como o trabalho mais completo e racional sobre o assunto disponiacutevel para os estudantes de retoacuterica especialmente pela sua explicaccedilatildeo de como as forccedilas sociais modernas interagem para nos tornar mais vulneraacuteveis aos apelos da propaganda Certa-mente vaacuterias das tendecircncias que ele menciona nesse estudo como responsaacutevel pelo crescimento da propaganda em meados do seacuteculo XX ainda satildeo evidentes atualmente Particularmente ele sugere que um sistema educacional que ensina as pessoas a ler mas natildeo a pensar criticamente eacute um preacute-requisito para a difusatildeo da propaganda Em certa medida isso eacute muito simples porque uma populaccedilatildeo alfabetizada ndash mas natildeo criacutetica ndash eacute necessaacuteria para a formaccedilatildeo de uma miacutedia de massa a serviccedilo da propaganda Nesse sentido a criacutetica de Ellul agrave educaccedilatildeo anteci-pa a criacutetica de Paulo Freire nos anos 1970 que ajudou a estabelecer o movimento de letramento criacutetico Uma das maiores diferenccedilas entre os dois pensadores e o nosso ponto de divergecircncia em relaccedilatildeo a Ellul eacute o recente ceticismo em relaccedilatildeo agrave ldquoeducaccedilatildeo de massardquo e a sua capacidade de se autorreformar Em geral a atitude de Ellul com ldquoas massasrdquo expressa sua posiccedilatildeo como um homem do seu tempo e do lugar onde viveu

Entatildeo o que eacute propaganda Ellul (1973 p 61) apresenta a seguinte definiccedilatildeo que natildeo ajuda muito na nossa perspectiva

A propaganda eacute um conjunto de meacutetodos empregados por um grupo or-ganizado que quer promover a participaccedilatildeo ativa ou passiva nas suas accedilotildees de uma massa de indiviacuteduos psicologicamente unidos por meio de manipulaccedilotildees psicoloacutegicas e inseridos em uma organizaccedilatildeo

23 a ediccedilatildeo usada neste trabalho eacute a de 1973

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A construccedilatildeo do argumento

Natildeo nos deteremos nessa definiccedilatildeo mas podemos fazer uma observaccedilatildeo A definiccedilatildeo de Ellul aparentemente poderia ser estendida para incluir questotildees como a doutrinaccedilatildeo dos consumidores pelos anunciantes e marqueteiros No entanto o seu estudo enfatiza a propaganda poliacutetica caminho que tambeacutem percorremos em nossa discussatildeo Seguimos esse caminho mesmo que como demonstraremos a seguir as praacuteticas e teacutecnicas dos publicitaacuterios e marqueteiros se sobrepotildeem mais e mais publicitaacuterios emergem da publicidade do marketing e das relaccedilotildees puacuteblicas e a persuasatildeo implacaacutevel na esfera do consumo por certo torna as pessoas mais suscetiacuteveis aos apelos da propaganda na esfera puacuteblica Isso posto os objetivos e os impactos dos que oferecem elementos de convencimento em nome de produtos e os que oferecem elementos persuasivos em nome de causas poliacuteticas satildeo signi-ficativamente diferentes

A maior diferenccedila entre as duas esferas tem a ver com o fato de que a esfera do consumo pelo menos no niacutevel das escolhas individuais eacute essencialmente amoral ao passo que a esfera poliacutetica em todos os niacuteveis eacute essencialmente moral A seme-lhanccedila entre as esferas poliacutetica e moral recebeu grande atenccedilatildeo mais recentemente de Lakoff (2002 p 41) que parte da premissa de que ldquo[] as perspectivas poliacuteti-cas satildeo derivadas de sistemas de conceitos moraisrdquo e exaustivamente explora as implicaccedilotildees dessa assunccedilatildeo para a poliacutetica americana contemporacircnea Por traacutes de questotildees sobre cuidados com a sauacutede aborto seguranccedila social tributaccedilatildeo entre outras haacute questotildees fundamentais sobre justiccedila e felicidade e sobre o caraacuteter sagra-do da vida Na medida em que nos distanciamos das questotildees morais e poliacuteticas e priorizamos a escolha entre marcas concorrentes de cerveja trivializamos essas questotildees e potencialmente alienamos os cidadatildeos acerca do processo poliacutetico

O ponto mais relevante de Lakoff (2002) poreacutem natildeo eacute tanto o fato de que a dimensatildeo moral da poliacutetica eacute ignorada nos uacuteltimos anos mas o fato de que a dimensatildeo moral da poliacutetica tem sido grosseiramente muito simplificada a fim de que se manipulem as audiecircncias de uma forma que ao nosso ver parece ser propagandisticamente Para que as questotildees morais digam algo corretamente agraves

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A construccedilatildeo do argumento

questotildees poliacuteticas a perspectiva moral predominante deve ser suficientemente inclusiva para assegurar que qualquer posiccedilatildeo moral importante seja ouvida e que um consenso moral nasccedila de algum tipo de processo dialeacutetico Na medida em que o discurso poliacutetico na esfera puacuteblica eacute dominado por um uacutenico conjunto de valores morais que natildeo tolera oposiccedilatildeo e na medida em que em contrapartida esses valores natildeo satildeo vistos como um fim em si mesmos mas muito mais como meios de controlar aqueles que se filiam a eles e de se atingir objetivos poliacuteticos a qualidade das nossas decisotildees poliacuteticas e a precisatildeo de nossas sensibilidades poliacuteticas sofreratildeo igualmente

Embora a definiccedilatildeo de propaganda de Ellul (1973) abarque o uso de ldquomani-pulaccedilotildees psicoloacutegicasrdquo como parte do empreendimento da propaganda conforme acabamos de descrever natildeo se estende automaticamente para a praacutetica de mentir De fato a crenccedila de que uma mensagem deve ser intencionalmente natildeo verdadeira para qualificar como propaganda eacute umas das maiores barreiras para o seu reco-nhecimento Embora os profissionais de propaganda possam por vezes recorrer agrave propagaccedilatildeo da ldquodesinformaccedilatildeordquo os riscos de serem apanhados numa grande mentira satildeo suficientemente grandes para desencorajar a disseminaccedilatildeo de uma mentira em larga escala A mensagem ideal da propaganda deveria ser plena de informaccedilotildees precisas e rica em insinuaccedilotildees especulativas repetidas constante-mente em um longo periacuteodo de tempo ateacute que as insinuaccedilotildees assumam o status de fatos Na linguagem dos anunciantes antigos ldquorepeticcedilatildeo eacute reputaccedilatildeordquo uma foacutermula que funciona muito por causa da nossa tendecircncia de confundir familiaridade com convicccedilatildeo o ldquofilme dos costumesrdquo como verdade

Novamente tomando emprestado o pensamento de Lakoff (2002) a propagan-da eacute mais uma questatildeo de ldquoconstruirrdquo informaccedilatildeo de forma a induzir as pessoas a delinearem as conclusotildees desejadas do que uma questatildeo de prover as pessoas com as informaccedilotildees que faltam e isolaacute-las da informaccedilatildeo verdadeira Essa construccedilatildeo eacute tipicamente concebida como uma seleccedilatildeo cuidadosa de um vocabulaacuterio que faz um prejulgamento das questotildees discutidas As implicaccedilotildees metafoacutericas taacutecitas da

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A construccedilatildeo do argumento

escolha de palavras vatildeo direcionar a audiecircncia para a direccedilatildeo desejada Usando um dos exemplos favoritos de Lakoff conceber uma discussatildeo de poliacutetica tributaacuteria sob a rubrica de ldquoaliacutevio fiscalrdquo em oposiccedilatildeo a ldquocortes de impostosrdquo implica que os impostos satildeo uma carga opressiva sobre os contribuintes Embora possa haver um limite a respeito do tamanho do ldquocorterdquo que querem fazer nos impostos natildeo haacute limite quanto agrave questatildeo de saber a medida que algueacutem pode pedir no ldquoaliacuteviordquo de impostos

Para nossos propoacutesitos esse enquadramento pode ser estendido de questotildees de vocabulaacuterio e metaacutefora para o meio atraveacutes do qual a mensagem eacute recebida Nas miacutedias altamente sofisticadas de hoje em dia essas questotildees satildeo literalmente construiacutedas pelo cenaacuterio em que satildeo apresentadas Para mencionar um exemplo atual Hannity and Colmes um programa de notiacutecias do canal Fox apresenta um ponto de vista ldquoequilibradordquo (Hannity) por intermeacutedio de um ponto de vista liberal (Colmes) No entanto mesmo uma visatildeo superficial do programa pode convencer alguns de que uma matildeo pesada perturba o equiliacutebrio Hannity tem a aparecircncia de um acircncora de jornal Eacute um sujeito vigoroso agitado muito seguro que domina seu suposto inimigo liberal Colmes um sujeito fuacutenebre com aparecircncia de um apresentador de previsatildeo do tempo e tendecircncia a balbuciar que frequentemente apresenta argumentos de forma melancoacutelica e pessimista Raramente Colmes faz muitos pontos nas discussotildees muito menos consegue muitas vitoacuterias Natildeo eacute preciso ldquomentirrdquo nesse formato porque verdades ineficazes funcionam bem

Na construccedilatildeo da informaccedilatildeo os profissionais da propaganda podem distorcer o significado exagerar ou amenizar as suas implicaccedilotildees futuras obscurecer ou disfarccedilar as intenccedilotildees do falante ou atribuir motivaccedilotildees duvidosas geralmente as menos apresentaacuteveis aos seus adversaacuterios (ELLUL 1973) Como alguns programas de TV populares os profissionais da propaganda adoram ldquoestampar histoacuterias nas manchetesrdquo que convertem os assuntos correntes especialmente eventos sensacio-nalistas condizentes com os mitos populares como se fossem crises que precisam da atenccedilatildeo das massas Nas palavras de Ellul (1973 p 44)

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A construccedilatildeo do argumento

[] eacute evidente que a propaganda pode ser bem sucedida apenas quando o indiviacuteduo se sente desafiado Natildeo tem qualquer influecircncia quando o sujeito estaacute equilibrado tranquilo sentindo-se em total seguranccedila Nem os eventos passados nem os maiores problemas metafiacutesicos desafiam o indiviacuteduo meacutedio o homem comum atual Ele natildeo eacute sensiacutevel ao que eacute traacute-gico na vida e natildeo estaacute angustiado por questotildees que Deus possa imputar--lhe Ele natildeo se sente desafiado exceto por fatos poliacuteticos e econocircmicos atuais Por isso a propaganda precisa comeccedilar pelos fatos atuais

Vale salientar que noacutes natildeo partilhamos nem aqui nem em qualquer outro local o desprezo de Ellul pelo ldquohomem comum dos dias atuaisrdquo mas a sua alegaccedilatildeo de que as notiacutecias satildeo uma constante fonte de panfletagem propagandiacutestica parece pelo menos mais verdadeira hoje na era dos ciclos de 24 horas de notiacutecias do que quando ele a formulou haacute deacutecadas Algumas distorccedilotildees dos fatos atuais estatildeo eacute certo inevitavelmente inseridos nas reportagens sobre esses fatos pelos princi-pais meios de comunicaccedilatildeo No entanto essas miacutedias representam uma parcela em decliacutenio do que eacute entendido como notiacutecia atualmente Na maioria das propagandas seacuterias exibidas hoje em dia podemos ver um segmento de difusatildeo de notiacutecias em plena expansatildeo que eacute ldquosecundaacuteriordquo agraves notiacutecias jornaliacutesticas Esse eacute um mundo de Hanity and Colmes de especialistas e de consultores poliacuteticos de blogueiros edito-rialistas e de analistas especializados que reviram e interpretam as notiacutecias por meio de vaacuterias formas de infoentretenimento que satildeo muito mais baratas do que coberturas jornaliacutesticas de verdade Uma forma de avaliar a tendecircncia propagan-diacutestica desses programas eacute perceber como eles satildeo veiculados ldquo[] na linguagem da indignaccedilatildeo um tom que eacute quase sempre uma marca da propagandardquo (ELLUL 1973 p 58) Em casos extremos ndash pensemos nos programas populares de raacutedio ndash esses programas apelam para os sentimentos mais crueacuteis como ldquooacutedio fome orgulhordquo (ELLUL1973 p 38) e temem agitar as paixotildees de seus espectadores

Burke (1941) toca em muitas dessas questotildees na sua discussatildeo sobre Hitler cuja retoacuterica eacute um modelo de retoacuterica ldquoimpurardquo Ao iniciar a anaacutelise de Minha luta

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A construccedilatildeo do argumento

Burke chama a atenccedilatildeo simultaneamente para as impurezas da retoacuterica de Hitler e para a responsabilidade dos retoricistas para articular essa retoacuterica Os criacuteticos tecircm a obrigaccedilatildeo de analisar livros ldquoincocircmodos e ateacute mesmo repulsivosrdquo como os de Hitler (BURKE 1941 p 191) Ele compara uma anaacutelise raacutepida desinteressada de Minha luta ao fato de queimaacute-lo em uma pira como fazia Hitler com as pesso-as Ao fazer isso Burke defende noacutes perdemos uma oportunidade de descobrir como Hitler conseguiu inventar um remeacutedio que foi tomado com tanto prazer por milhotildees de pessoas e assim ldquo[] prevenir a invenccedilatildeo de um remeacutedio parecido na Ameacutericardquo (BURKE 1941 p 191) Burke ainda destaca que embora os norte--americanos possam acreditar que suas virtudes iratildeo protegecirc-los das palavras de Hitler na verdade isso eacute ldquoo conflito no meio dos seus viacuteciosrdquo (BURKE 1941 p 192) eacute a discussatildeo parlamentar de suas diferenccedilas ndash a proacutepria retoacuterica ndash que os protege dos encantos do sistema ldquoperfeitordquo do Hitler a sua teoria de campo unificado da natureza humana

Um dos temas da anaacutelise de Burke que ecoou anos depois na teoria de Ellul eacute a associaccedilatildeo entre propaganda moderna e as teacutecnicas de marketing e publici-dade A propaganda moderna em oposiccedilatildeo agraves suas formas mais antigas como as ldquopropagandas comunistasrdquo ou invenccedilotildees usadas para provocar furor partidaacuterio eacute consideravelmente mais sutil e cientiacutefica Segundo as consideraccedilotildees de Burke Hitler possui a ldquoracionalidaderdquo de um haacutebil publicitaacuterio que planeja a sua nova campanha de vendas ldquoA poliacutetica ele diz deve ser vendida como se vende sabone-te ndash e natildeo se vende sabonete em transerdquo (BURKE 1941 p 216) Elul (1973 p 25) na mesma direccedilatildeo caracteriza os profissionais da propaganda como ldquo[] cada vez mais o teacutecnico que trata de seus clientes de vaacuterias maneiras mas se manteacutem frio e indiferente escolhendo suas palavras e accedilotildees por razotildees puramente teacutecnicasrdquo O que era caracteriacutestica da propaganda em meados do seacuteculo XX parece hoje ser paradigmaacutetico Graccedilas aos avanccedilos tecnoloacutegicos as convergecircncias entre a propa-ganda e o marketing satildeo muito mais evidentes no ambiente altamente midiaacutetico A linha que separa as duas atividades eacute ainda menos visiacutevel e muito mais atravessada

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A construccedilatildeo do argumento

por um grupo ldquoprofissionalmente psicoacuteticordquo de pessoas que torcem por candidatos poliacuteticos guerras e veiacuteculos utilitaacuterios esportivos com a mesma serenidade e da mesma maneira

Uma das liccedilotildees mais importantes que os profissionais da propaganda aprende-ram com os anunciantes diz respeito agraves cuidadosas teacutecnicas de separar o puacuteblico uma arte aperfeiccediloada por uma legiatildeo de pesquisadores demograacuteficos e psicograacute-ficos que trabalham para os marqueteiros A propaganda eacute para usar o termo de Ellul (1973 p 212) ldquoparticionada ou para usar a descriccedilatildeo retoacuterica tradicional de Burke a propaganda eacute ldquodirecionadardquo uma retoacuterica de ldquobusca de vantagensrdquo Em uma palestra famosa que Burke deu em 1935 para o Congresso Americano de Escritores ele descreveu a relaccedilatildeo parasitaacuteria dos profissionais da propaganda com o seu puacuteblico da seguinte maneira ldquo[] natildeo eacute o trabalho de um profissional da propaganda convencer os convencidos mas pleitear os natildeo convencidos o que lhe requer o uso do vocabulaacuterio deles valores deles siacutembolos deles tanto quanto for possiacutevelrdquo (SIMONS MELIA 1989 p 271-72) Eacute por isso que os profissionais da propaganda assim como os anunciantes estudam seu puacuteblico tatildeo profundamente e sua mensagem eacute expressa com siacutembolos valores e vocabulaacuterio apropriado que se reflete nos grupos cuidadosamente selecionados cujas necessidades desejos e medos satildeo meticulosamente mapeados

Em uma sociedade fechada e homogecircnea como a Alemanha de Hitler isso significa que a propaganda pode ser canalizada atraveacutes de um uacutenico meio para apelar a um grupo imenso de ldquoincluiacutedosrdquo cujas necessidades ansiedades aspira-ccedilotildees sem mencionar mitos e fantasias satildeo integralmente compreendidas agraves custas de uma minoria de ldquoexcluiacutedosrdquo que representa os piores medos dos incluiacutedos Por outro lado em uma sociedade pluralista como a norte-americana isso significa que a propaganda para ser efetiva tem de ter acesso a muacuteltiplos canais e usar mensagens personalizadas para os consumidores e direcionadas a um eleitorado variado Assim ironicamente a nossa imprensa aparentemente livre e robusta e os inuacutemeros canais de informaccedilatildeo que ela proporciona pode revelar-se indispensaacutevel

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A construccedilatildeo do argumento

para os profissionais da propaganda assim como para os anunciantes na divisatildeo e na conquista da audiecircncia

Como esses uacuteltimos apontamentos sugerem por mais inestimaacutevel que seja uma imprensa livre para combater a propaganda isso eacute apenas uma necessidade natildeo condiccedilatildeo suficiente para a resistecircncia Como Ellul (1973 p 212) destaca ldquoToda propaganda tem de separar seu grupo de todos os outros gruposrdquo assegurando que cada grupo tenha seu canal dedicado agraves suas crenccedilas ldquoEles aprendem mais e mais que o seu grupo estaacute correto que seus atos satildeo justificadosrdquo (ELLUL 1973 p 213) ao mesmo tempo em que os grupos rivais satildeo repetidamente rotulados como equivocados e erroneamente fundamentados

Essa criacutetica ao proacuteximo que natildeo eacute ouvida por esse proacuteximo eacute conheci-da pelos integrantes do grupo que a expressa O anticomunista ficaraacute cada vez mais convencido da maldade do comunista e vice-versa Como resultado as pessoas ignoram mais e mais umas agraves outras Elas natildeo se permitem se abrir a um intercacircmbio de pontos de vista argumentos e raciociacutenio (ELLUL 1973 p 213)

Muitos anos depois com o advento da TV digital e por sateacutelite que oferece centenas de canais e informaccedilatildeo a Internet com seus inuacutemeros portais blogs e sites sem mencionar o raacutedio a criacutetica de Ellul parece ser ainda mais proeminente Noacutes realmente vivemos como diz Burke em ldquoBabel depois da queda da torrerdquo e na medida em que a miacutedia moderna multiplica e acirra a divisatildeo entre os cidadatildeos ela devolve o antiacutedoto retoacuterico a esse estado ndash algo como a conversa de Rorty e Oakeshott sobre a humanidade ndash que eacute muito menos eficaz

O problema da divisatildeo entre os cidadatildeos se agrava quando se leva em consi-deraccedilatildeo os efeitos indiretos da miacutedia sobre os que satildeo eleitos para representar o cidadatildeo Por causa dos custos sempre ascendentes para se ganhar eleiccedilotildees devi-do primeiramente pelos altos custos de se comprar tempo na miacutedia e produzir os anuacutencios poliacuteticos que por si mesmos exibem incrivelmente tendecircncias pro-

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A construccedilatildeo do argumento

pagandiacutesticas os altos escalotildees da poliacutetica tornam-se mais e mais dependentes de interesses especiais dispostos a financiar as suas campanhas A fidelidade a interesses particulares por sua vez torna cada vez mais difiacutecil para os oacutergatildeos puacuteblicos suplantar as disputas partidaacuterias e conciliar seus interesses em nome do bem puacuteblico A reduccedilatildeo ndash muitas vezes perceptiacutevel ndash da conversa produtiva e cortecircs no Congresso Americano eacute um sinal de que o modelo de divisatildeo proposto por Ellul se expandiu do eleitorado para os oacutergatildeos legisladores Na realidade Burke sugere que isso sempre aconteceu e que a mudanccedila da natureza da miacutedia deve ter simplesmente agravado uma afliccedilatildeo crocircnica dentro dos oacutergatildeos legisladores

As conclusotildees de Burke quanto agraves causas que subjazem agraves divisotildees legislativas surgem no contexto de sua discussatildeo sobre a psicologia de Hitler desenvolvida agrave luz das ideias de Freud Burke alega que o proacuteprio ldquoeu parlamentarrdquo de Hitler era profundamente cindido entre ego superego e id Hitler por sua vez projetou as prodigiosas lutas interiores que cercam sua personalidade para o mundo es-pecialmente para o extremamente dividido e em colapso parlamento do Impeacuterio Habsurg Impor a sua visatildeo totalitaacuteria ao mundo representou uma cura maacutegica para as suas divisotildees interiores Todas as evidecircncias de heterogeneidade de dife-renccedilas se tornavam para Hitler sintomas de ldquodemocracia falida em dias difiacuteceisrdquo (BURKE 1941 p 200) O processo poliacutetico democraacutetico inevitavelmente confuso com ecircnfase no debate no compromisso e no consenso eacute convertido por Hitler em uma Babel de vozes

[] e pelo meacutetodo de fusotildees associativas usando ideias como imagens Viena tornou-se na retoacuterica de Hitler lsquoBabilocircniarsquo como a cidade da po-breza prostituiccedilatildeo imoralidade coalisotildees meias medidas incesto de-mocracia (ou seja regras da maioria que leva a lsquofalta de responsabilidade pessoalrsquo (BURKE 1941 p 200)

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A construccedilatildeo do argumento

Em qualquer das conversas calorosas dos programas de raacutedio pode-se ouvir anaacutelises similares conduzidas com os mesmos tons de indignaccedilatildeo moral dos conta-dores de faacutebulas das notiacutecias de hoje De acordo com Burke os editores dos jornais de seu tempo seguiam o modelo talvez no mesmo tom da retoacuterica de Hitller Essa eacute uma observaccedilatildeo que ainda parece ressoar

Qualquer conflito entre os porta-vozes parlamentares representa um conflito correspondente entre os interesses materiais dos grupos pe-los quais eles estatildeo falando Hitler natildeo discute a Babel por esse acircngu-lo Ele discutiu isso com bases puramente sintomaacuteticas A estrateacutegia da nossa imprensa ortodoxa de ridicularizar a verborragia cacofocircnica do Congresso eacute oacutebvia ao centralizar o ataque aos sintomas dos assuntos conflituosos como eles se revelam nos indiacutecios das disputas poliacuteticas e ao deixar a causa nas entrelinhas e os assuntos conflituosos fora de pauta satisfazem o povo que poderia de outra forma ficar alienado no-meadamente os empresaacuterios que satildeo os membros ativos de seu puacuteblico leitor (BURKE 1941 p 201)

O resultado desse cenaacuterio eacute o enfraquecimento da crenccedila do povo no gover-no Na medida em que as regras instituiccedilotildees princiacutepios e tradiccedilotildees do governo podem limitar o poder dos profissionais da propaganda ou impedir um programa especiacutefico que eles queiram engrenar eles natildeo veem isso como uma coisa neces-sariamente ruim Daiacute decorre a afirmaccedilatildeo de Ellul (1973 p 191) de que na medida em que os cidadatildeos se ldquodesinteressam das questotildees poliacuteticasrdquo eles (o estado eou os que o controlam) ficaratildeo ldquoabanando as matildeosrdquo Por outro lado ao mesmo tempo haacute um ponto de atenuaccedilatildeo jaacute que continuar a enfraquecer a crenccedila do povo no go-verno pode natildeo ser do interesse proacuteprio daqueles que controlam ou gostariam de controlar as reacutedeas do poder do governo Se o puacuteblico tem receio em relaccedilatildeo aos entremeios do governo a propaganda ldquo[] natildeo tem absolutamente efeito nos que vivem na indiferenccedila ou ceticismordquo (ELLUL 1973 p 190) Como entatildeo fazem os

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A construccedilatildeo do argumento

marqueteiros poliacuteticos para simultaneamente enfraquecer a confianccedila no gover-no como instituiccedilatildeo e expandir os poderes governamentais que servem aos seus propoacutesitos

O truque de acordo tanto com Burke quanto com Ellul eacute personalizar o go-verno identificando-o cada vez mais com a personalidade ou as personalidades de seu liacuteder De acordo com Ellul (1973 p 172) ldquo[] o culto ao heroacutei eacute o complemento absolutamente necessaacuterio para a massificaccedilatildeo da sociedaderdquo Atraveacutes do heroacutei diz o autor a pessoa mediana ldquovive vicariamenterdquo e o heroacutei eacute uma celebridade das telas ou o presidente Na esfera poliacutetica Ellul vecirc esse tema aparecer mais claramente nos partidos poliacuteticos cujos marqueteiros (ou publicitaacuterios se preferem) exploram ldquo[] a inclinaccedilatildeo das massas em admirar o poder pessoal criando a imagem de um liacuteder e investindo nela com atributos de onipresenccedila e onisciecircnciardquo (ELLUL 1973 p 217) Para reforccedilar a sua argumentaccedilatildeo aqui Ellul cita a corrida presidencial americana de 1952 na qual Eisenhower explorou com sucesso essa inclinaccedilatildeo agraves custas de Adlai Stevenson a quintessecircncia do intelectual reservado que viu as suas ideias mas natildeo a sua pessoa como a chave para as suas reivindicaccedilotildees agrave presidecircncia

Ellul (1973 p 172) de passagem observa como o fascismo repetidamente afirmava ter ldquorestaurado a personalidade ao seu lugar de honrardquo uma questatildeo que por sua vez ocupa um enorme espaccedilo na anaacutelise de Burke sobre a propaganda de Hitler Em especial Hitler eacute habilidoso em ldquoespiritualizarrdquo e ldquoeticizarrdquo os viacutenculos materiais que une os diferentes estratos da sociedade ao ldquopersonalizarrdquo esses viacuten-culos tornando ldquogrosseiro o ato de tratar empregadores e empregados como classes diferentes e classificar de forma tambeacutem diferente os seus interessesrdquo (BURKE 1941 p 217) Ao inveacutes disso as relaccedilotildees entre empregador e empregado devem se dar na base ldquopessoalrdquo de liacuteder e seguidorrdquo (BURKE 1941 p 217)24 O vocabulaacute-

24 Pelo mesmo motivo enquanto os que hoje apontam as injusticcedilas entre as classes satildeo acusados de instigar a ldquoluta de classesrdquo a populaccedilatildeo em geral eacute inundada com livros fitas e seminaacuterios sobre ldquolideranccedilardquo uma qualidade miacutestica que eacute recompensada com montantes de dinheiro cada vez mais fabulosos

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A construccedilatildeo do argumento

rio que Hitler usa para efetivar essa transformaccedilatildeo maacutegica vem da terminologia prestigiada da religiatildeo que ele desvia impunemente

Aqui novamente o uso corrompido que Hitler faz dos padrotildees religiosos vecircm agrave tona O pensamento religioso primeiramente preocupado com as questotildees de ldquopersonalidaderdquo com problemas de aperfeiccediloamento moral naturalmente e eu acho que corretamente enfatiza a natureza essencial do ato de vontade individual Daiacute decorre a resistecircncia a uma explicaccedilatildeo puramente ldquoambientalrdquo dos males humanos Daiacute a ecircnfase na ldquopessoardquo Daiacute a tendecircncia a buscar uma explicaccedilatildeo natildeo econocircmica para os fenocircmenos econocircmicos (BURKE 1941 p 201)

Essa personalizaccedilatildeo de todas as relaccedilotildees no estado nazista eacute por fim esten-dida para a imagem do proacuteprio estado Com o intuito de alcanccedilar paz e harmonia ldquoa discussatildeo do parlamentar eacute para ser acalmada pela concessatildeo de uma voz para todo o povo a lsquovoz interiorrsquo de Hitler tornada uniforme em toda a Alemanha como a do liacuteder e as pessoas estavam totalmente identificadas umas com as outrasrdquo (BURKE 1941 p 207) Assim Hitler oferece ao povo alematildeo ldquo[] o conteuacutedo mau de uma necessidade boardquo (p 210) ao perverter o desejo de supremacia Ao fazer essa unificaccedilatildeo Hitler se volta para a criacutetica de um tipo especiacutefico de propaganda

Natildeo um criticismo no sentido ldquoparlamentarrdquo de duacutevida de ouvir a oposi-ccedilatildeo e de tentar amadurecer uma poliacutetica agrave luz das contra poliacuteticas mas o tipo unificado de criticismo que simplesmente busca modos conscientes de tornar a oposiccedilatildeo de algueacutem mais ldquoeficienterdquo mais cheia de si (BURKE 1941 p 211)

O mundo que Hitler cria com a propaganda censurando a oposiccedilatildeo excluindo contradiccedilatildeo identificando a unidade essencial do estado com o ldquosanguerdquo da raccedila ariana eacute a distopia da propaganda segundo Ellul (1973) um mundo hermetica-mente fechado no qual o indiviacuteduo ldquonatildeo tem pontos de referecircncia externosrdquo

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A construccedilatildeo do argumento

A despeito de a propaganda ser normalmente identificada com retoacuterica tanto a compreensatildeo de Ellul quanto a de Burke do termo torna-o antirretoacuterica O que acontece com a propaganda na Alemanha de Hitler e na democracia Ocidental de Ellul eacute o que acontece com qualquer termo que se permite transformar-se em ldquoum fim em si mesmordquo Na linguagem de Burke (1941) o termo sucumbe ao paradoxo da pureza e se torna diferente na sua natureza de cada uma das instacircncias pelas quais a sua uacuteltima definiccedilatildeo foi concebida Simplesmente inverte-se o processo pelo qual noacutes chegamos ao conceito de pura persuasatildeo eliminando toda e qual-quer sugestatildeo de sacrifiacutecio e impasse de dialeacutetica e de invenccedilatildeo ateacute que se torna puramente ldquodirecionadordquo e qualquer potencial interlocutor se transforma em um movimento

Para entender melhor exatamente a razatildeo de a propaganda ter se tornado uma forccedila mais penetrante na nossa avanccedilada democracia supostamente imune aos seus encantos voltamos a Ellul (1973 p 129) e a um ponto importante que ele estabelece a respeito do funcionamento da democracia ocidental ldquoPara o ocidental mediano o desejo das pessoas eacute sagrado e o governo que falha em representar esse deseja eacute uma ditadura abominaacutevelrdquo Para qualquer governo democraacutetico manter a sua legitimidade ele deve manter o apoio popular na forma de opiniatildeo puacuteblica de apoio eleitoral ou ambos No entanto a opiniatildeo puacuteblica como todos que seguem as pesquisas sabem eacute sabidamente inconstante O apoio agraves poliacuteticas militares ou econocircmicas de uma administraccedilatildeo puacuteblica ou de um partido sobe e desce dependendo de quatildeo boas ou ruins satildeo as notiacutecias das esferas econocircmica ou militar Poreacutem para serem efetivas as poliacuteticas devem ser estaacuteveis e os operado-res da poliacutetica precisam enxergar mais longe se as notiacutecias seratildeo contra eles ndash e inevitavelmente seratildeo contra eles por um tempo ndash eles devem modificar ou ateacute mesmo inverter a sua poliacutetica aceitar derrotas ou persuadir as pessoas de que as suas decisotildees estatildeo efetivamente dando certo ou prestes a dar certo

A dificuldade no acircmbito poliacutetico eacute perfeitamente capturada por Ellul (1973 p 132) que observa que toda administraccedilatildeo de qualquer filiaccedilatildeo partidaacuteria ldquo[]

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A construccedilatildeo do argumento

daacute a impressatildeo de obedecer a opiniatildeo puacuteblica ndash depois de tecirc-la criado O ponto eacute fazer as massas solicitaram ao governo o que ele jaacute tinha decidido fazerrdquo Em al-guns casos noacutes podemos ndash agraves vezes corretamente ndash atribuir um motivo sinistro para essas tentativas iliacutecitas de influenciar a opiniatildeo puacuteblica As poliacuteticas que vatildeo sendo promovidas podem de fato beneficiar interesses especiacuteficos agraves custas do bem puacuteblico Ateacute mesmo essas poliacuteticas de interesse puacuteblico enfrentaratildeo muitas das mesmas dificuldades que enfrentam as praacuteticas corruptas O fato de as praacuteti-cas aparentemente mais civilizadas poderem ser mais facilmente defendidas com bases racionais natildeo garante a sua popularidade ou nega a necessidade pelo menos aos olhos de seus proponentes de se utilizar a propaganda em seu benefiacutecio Por isso a eacute inevitaacutevel

A propaganda portanto natildeo eacute algo que podemos esperar erradicar ou nas palavras de Burke (1941) desbancar Podemos retardar a sua propagaccedilatildeo e enca-minhaacute-la para formas mais legiacutetimas de persuasatildeo por meio do questionamento e da criacutetica Como as praacuteticas de marketing e de publicidade agraves quais a propaganda estaacute tatildeo intimamente ligada ela tambeacutem pode ser mais ou menos honesta mas apenas se falhar nas formas mais rudes ndash propaganda disfarccedilada de boletins in-formativos do governo que divulga os benefiacutecios de programas duvidosos pes-quisas falsas financiadas pela induacutestria usadas seletivamente por membros do governo para apoiar poliacuteticas duvidosas falsos jornalistas que fazem perguntas natildeo embaraccedilosas aos membros do governo comentaristas que datildeo depoimentos falsos em apoio a programas e poliacuteticas sem dizer que satildeo pagos para isso e de-putados vereadores que realizam sessotildees em cenaacuterio de Potemkin Village25 com

25 O termo Potemkin Village refere-se agrave histoacuteria de que o marechal russo Grigory Alexander Potemkin (1739-1791) amante da imperatriz russa Catarina ii (1729-1796) teria construiacutedo uma cidade falsa para impressionaacute-la durante sua viagem agrave Crimeacuteia em 1787 Conta-se que eram feitas construccedilotildees falsas ao longo do rio Diepner que eram desmontadas e montadas novamente agrave frente do trajeto da imperatriz que as via como se fossem novas

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A construccedilatildeo do argumento

participantes cuidadosamente escolhidos para fazer perguntas preacute-estabelecidas ndash porque os jornalistas de verdade fazem seu trabalho eou porque o puacuteblico mais sofisticado aprendeu a ldquodar um descontordquo para as alegaccedilotildees duvidosas e questionar criticamente accedilotildees simboacutelicas

Para ajudar a compreensatildeo desse assunto oferecemos a seguir um breve re-sumo das praacuteticas dos profissionais de propaganda

a propaganda em resumo

Antes de ponderarmos os sintomas e a dinacircmica das praacuteticas da propagan-da deixamos a seguinte advertecircncia as diferenccedilas entre a propaganda e outras formas legiacutetimas de praacuteticas retoacutericas satildeo de intensidade Toda e qualquer praacutetica retoacuterica eacute mais ou menos honesta ou desonesta e nenhuma delas pode ser aplicada categoricamente a um ato qualquer Se reduzirmos a coisa toda a uma uacutenica frase nossa visatildeo da propaganda poderia ser chamada de ldquopublicidade de esteroides por razotildees poliacuteticasrdquo Muitas das condiccedilotildees que se seguem caracterizam tanto discursos poliacuteticos comuns quanto a propaganda Determinar quando um discurso poliacutetico se torna propaganda requer ldquodisputas poliacuteticasrdquo entre pessoas de diversas convic-ccedilotildees Consequentemente talvez fosse melhor pensar nessas condiccedilotildees mais como dicas do que traccedilos taxionocircmicos

1 A propaganda poliacutetica requer um palco se natildeo o placo Sem um palco deixa-se de natildeo apenas disseminar uma mensagem a uma massa mas de enquadrar o debate de forma a cercear as mensagens adversaacuterias Em-bora nem todos os que divulgam uma mensagem precisem ter crachaacutes de uma organizaccedilatildeo ou ser parte interessada de um projeto para se en-gajar na divulgaccedilatildeo da propaganda aqueles que criam e produzem uma mensagem propagandiacutestica devem fazecirc-lo conscientemente em nome de

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A construccedilatildeo do argumento

um sistema de crenccedilas Na forma como se encontra hoje a propaganda frequentemente se dissemina como uma fofoca na cultura oral por meio da expansatildeo de mensagens de propaganda conscientemente elaboradas que se originam na miacutedia de massa e se proliferam pela Internet nos programas de raacutedio em programas de TV em que os telespectadores participam em cartas aos editores e assim por diante Cada vez mais a direccedilatildeo desse movimento eacute inversa na medida em que os blogueiros comeccedilam a criar mensagens propagandiacutesticas que parodiam as mensa-gens dos liacutederes ldquooficiaisrdquo

2 Assim como os anunciantes os profissionais de propaganda satildeo exigen-tes ldquointegrantesrdquo do mercado cujas mensagens frequentemente refletem pesquisas extensas sobre a estrutura psicoloacutegica e demograacutefica de seu puacuteblico Eles se baseiam muito na ldquoartimanhardquo de que fala Burke (1941) na busca de vantagens para as suas ideias falando dos medos anseios e desejos especiacuteficos do seu puacuteblico alvo numa tentativa de contornar as anaacutelises racionais e induzir o ldquomovimentordquo nos sujeitos aos quais se dirigem Seu apelo se baseia menos nas evidecircncias e nas razotildees do que no ldquosenso comumrdquo que ldquonatildeo tem origemrdquo Tambeacutem como os anunciantes os profissionais da propaganda satildeo adeptos da persuasatildeo de grandes audiecircncias (ldquoVocecircrdquo) para as quais eles estatildeo falando individualmente (vocecirc) e persuadindo-as a aderir a uma linha partidaacuteria em nome de seus proacuteprios pensamentos

3 Ainda que muitas das teacutecnicas usadas para criar e promover a pro-paganda sejam tomadas emprestadas dos anuacutencios existem diferenccedilas cruciais Em geral os anunciantes conseguem seu palco em negocia-ccedilotildees comerciais diretas Os profissionais da propaganda por sua vez normalmente usam a miacutedia puacuteblica especialmente a miacutedia de notiacutecias

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A construccedilatildeo do argumento

para divulgar a sua mensagem Aleacutem disso os anuacutencios satildeo abertamente apresentados como anuacutencios ao passo que a propaganda eacute raramente apresentada como propaganda Na medida em que um puacuteblico sabe que uma mensagem eacute uma propaganda a efetividade da mensagem tende a diminuir Agraves vezes os profissionais da propaganda adotam medidas extremas (por exemplo plantam notiacutecias falsas nas principais miacutedias e criam falsas organizaccedilotildees partidaacuterias de terceiros e assim por diante) para transmitir a sua mensagem enquanto dissimulam as suas intenccedilotildees

4 O texto da mensagem da propaganda normalmente eacute fruto de fatos atuais Muitas vezes ele se concentra em um problema ou crise que atrai a atenccedilatildeo do puacuteblico em virtude de sua natureza dramaacutetica eou sua analogia com um tema miacutetico popular (por exemplo um indiviacuteduo humilde [Davi] toma o posto de um grande governador [Golias]) As consequecircncias materiais do problema satildeo menos importantes para os profissionais da propaganda do que sua repercussatildeo simboacutelica Em al-guns casos realmente o problema eacute fabricado para desviar a atenccedilatildeo de outros problemas que tecircm consequecircncias puacuteblicas consideravelmente maiores mas que satildeo menos manejaacuteveis eou que refletem bem menos nos que fazem a propaganda

5 Ao se vincularem a um problema que jaacute ganhou a atenccedilatildeo do puacuteblico os profissionais da propaganda ampliam o tema que inspirou a sua men-sagem Ao adequar o significado de um evento problemaacutetico aos seus temas ideoloacutegicos eles podem persuadir o puacuteblico de que sua interpre-taccedilatildeo de um evento singular eacute na verdade a confirmaccedilatildeo de uma ordem subjacente Assumir uma soluccedilatildeo ndash ao contraacuterio de simplesmente culpar outra ideologia ndash reflete a ideologia dos profissionais da propaganda mais claramente do que adequar o problema Muitas vezes o problema eacute refor-

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A construccedilatildeo do argumento

mulado como uma questatildeo moral e a soluccedilatildeo proposta seraacute mais espiritual ou moral do que pragmaacutetica Consequentemente a propaganda vai dire-cionar nossa atenccedilatildeo para a dimensatildeo pessoal do problema e para longe das causas que o circundam Em suas formas mais danosas as soluccedilotildees da propaganda apelam para a puniccedilatildeo a exclusatildeo ou o impeachment de bodes expiatoacuterios cujos comportamentos justificam o tom de indignaccedilatildeo ou ultraje moral beneficiado pelos profissionais da propaganda

6 Os profissionais da propaganda mostram pouco entusiasmo por ldquoau-tointerferecircnciardquo ou ldquocontraditoacuteriordquo Seus argumentos satildeo frequentemente construiacutedos em segredo com poucos elementos de fontes variadas Eles distorcem demonizam ou excluem por completo as visotildees opostas ao assunto em questatildeo Falam para o menor denominador comum do seu puacuteblico Se os argumentos dos profissionais da propaganda satildeo depara-dos com fatos inconvenientes ou contra-argumentos contundentes uma vez que eles estatildeo postos no mundo os que os defendem natildeo hesitam nem procuram apresentar justificativas Eles vatildeo repetir o argumento infinitamente mostrando firmeza de propoacutesito que em alguns casos passa como lideranccedila26

7 Enquanto a propaganda em sociedades fechadas eacute frequentemente criada em torno de um ldquoculto agrave personalidaderdquo nas sociedades abertas tende a ser frequentemente criada em torno de um ldquoculto agrave celebridaderdquo As biografias das personalidades que falam em nome de uma ideologia seratildeo interpretadas para adaptar os mitos que permeiam essa ideologia

26 Burke (1941 p 212) observa que Hitler se recusou a alterar um uacutenico item de sua plataforma nazista original de 25 itens porque achava que a fixidez da plataforma era mais importante para propoacutesitos da propaganda do que qualquer revisatildeo de seus slogans mesmo que as revisotildees em si mesmas tivessem muito a dizer a seu favorrdquo

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A construccedilatildeo do argumento

e acabaratildeo por personificaacute-la da mesma forma como as estrelas do cine-ma frequentemente satildeo identificadas aos personagens que interpretam

8 Quanto mais ansioso eacute o puacuteblico mais efetiva eacute a propaganda Para ser bem recebida a propaganda requer um puacuteblico indeciso fraacutegil e ateacute mesmo temeroso Um sentimento de crise a sensaccedilatildeo de estar sob ata-que rendem uma audiecircncia mais tolerante a argumentos unilaterais e agrave reduccedilatildeo dos oponentes a figuras de desenhos animados Os profissionais da propaganda inventam crises mas mais comumente eles simplesmente transformam problemas reais de pequenas proporccedilotildees em problemas apocaliacutepticos de proporccedilotildees homeacutericas Os criacuteticos internos de suas cria-ccedilotildees satildeo prontamente agrupados como seus inimigos amorfos

Isso eacute entatildeo a propaganda em resumo Com a intenccedilatildeo de sermos ldquojustos e equilibradosrdquo gostariacuteamos de convidar nossos estudantes a aplicar essas observa-ccedilotildees natildeo apenas agraves praacuteticas administrativas do governo mas tambeacutem aos filmes de Michael Moore e aos programas da emissora Air America

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caPiacutetulO 3 introduccedilatildeo a algumas boas praacutetiCas27

Neste capiacutetulo vamos revisar algumas abordagens de ensino de escrita ba-seadas na argumentaccedilatildeo ndash ou que podem facilmente ser adaptadas para esse fim Embora os professores que se concentrem digamos na retoacuterica da libertaccedilatildeo em suas aulas de escrita possam natildeo se considerar adeptos da pedagogia do argu-mento sua abordagem tende a focalizar a argumentaccedilatildeo e inclusive a requerer estrateacutegias tiacutepicas de construccedilatildeo de argumento Qualquer abordagem que facilite o ensino da argumentaccedilatildeo e envolva um ensino de escrita inovador seraacute conside-rada aqui como parte integral de boas praacuteticas na aacuterea Poreacutem antes de revisar-mos essas praacuteticas detalhadamente ofereceremos um breve panorama geral dos princiacutepios baacutesicos de um curso de escrita bem sucedido e das melhores praacuteticas que o integram

o Que funCiona no ensino de esCrita

Como jaacute sugerimos em diversas ocasiotildees poucos pesquisadores nas aacutereas de retoacuterica e escrita ainda se dedicam agrave avaliaccedilatildeo empiacuterica das praacuteticas adotadas em sala de aula Ao nos referirmos a uma determinada abordagem como ldquouma boa praacuteticardquo natildeo estamos apenas nos referindo necessariamente agrave didaacutetica associada a essa praacutetica nem aos seus resultados Na verdade pouco sabemos sobre esses resultados aleacutem do que dizem os seus criadores Favorecemos uma determinada praacutetica ou abordagem apenas por sentir que ela se alinha melhor com nossa opi-

27 Traduccedilatildeo felipo Bellini Souza e Maria Hozanete alves de Lima

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A construccedilatildeo do argumento

niatildeo sobre o ensino de escrita e porque elas natildeo entram em conflito direto com os princiacutepios baacutesicos do ensino que no nosso ponto de vista pessoal permeiam o ensino adequado da escrita

Ao articularmos conscientemente nosso raciociacutenio pessoal a respeito do en-sino de escrita e dos princiacutepios baacutesicos da instruccedilatildeo em geral podemos destacar dois trabalhos que nos influenciaram especialmente na elaboraccedilatildeo deste estudo O primeiro The Rhetoric of Reason Writing and the Attractions of Argument de James Crosswhite (CROSSWHITE 1996) oferece instruccedilotildees filosoacuteficas extensas a respeito de como fundamentar o ensino de escrita baseado na argumentaccedilatildeo Inspirado pelos trabalhos de diversos filoacutesofos como Platatildeo Aristoacuteteles Heideg-ger Perelman e Olbrechts-Tyteca Levinas Cavell Habermas Schrag e Gadamer Crosswhite (1996) desenvolve o conceito de ldquoretoacuterica da razatildeordquo e o posiciona como uma alternativa ao ceticismo radical da desconstruccedilatildeo como foi exemplificado por Derrida e Man28 O livro eacute recomendaacutevel a todos os professores por uma seacuterie de motivos ele defende com sucesso a eficaacutecia e a importacircncia da educaccedilatildeo geral como parte da educaccedilatildeo superior nos Estados Unidos estabelece paracircmetros para a compreensatildeo da argumentaccedilatildeo sobretudo como um ato como forma de abordar problemas praacuteticos e tomar decisotildees corretas ao inveacutes de defini-la apenas como um apanhado de sugestotildees de comportamento e oferece um caminho para neutrali-zar doutrinas natildeo essenciais ndash poreacutem presentes na maior parte dos curriacuteculos ndash a respeito da verdade e da identidade como forma de responsabilizar o indiviacuteduo por suas escolhas pessoais

O livro de Crosswhite tambeacutem aborda uma seacuterie de questotildees de natureza teoacuterica filosoacutefica e pedagoacutegica de maneira muito mais completa que satildeo tocadas aqui apenas brevemente Embora haja ainda pontos de vista conflitantes entre a

28 nesse processo Crosswhite ainda destaca os pontos em que Derrida pode servir como base ou apoio para a retoacuterica da razatildeo

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nossa opiniatildeo como autores e os conceitos defendidos por Crosswhite (fazemos objeccedilatildeo especialmente agraves conclusotildees duramente pessimistas apresentadas no final do livro) acreditamos que a obra oferece uma espeacutecie de macrovisatildeo que engloba nossas premissas a respeito do ensino da argumentaccedilatildeo em aula de escrita

Da mesma forma o livro Teaching Writing as Reflective Practice (Ensinar es-crita como praacutetica reflexiva) de George Hillocks (HILLOCKS 1984) oferece uma micro visatildeo de nossa filosofia pedagoacutegica Embora seus meacutetodos para a compre-ensatildeo do ensino de escrita estejam fora de moda nas aacutereas da retoacuterica e escrita as conclusotildees de Hillocks e a aplicaccedilatildeo baacutesica de seus conceitos satildeo relevantes para a nossa abordagem Como jaacute mencionamos os que desmerecem o autor e sua obra continuam fundamentando o ensino de escrita com base nos seus conceitos ainda que inconscientemente Na verdade quando defendemos e explicamos ao longo dos anos os fundamentos dos nossos cursos (por que vocecircs natildeo datildeo mais relevacircncia aos fundamentos da escrita e da gramaacutetica em seus cursos) e a busca de recursos financeiros junto a gestores de instituiccedilotildees de ensino verificamos que o trabalho de Hillocks era bastante eficaz para convencer esses gestores na sua maioria de formaccedilatildeo em Ciecircncias ou Ciecircncias Sociais Assim mesmo correndo o risco de simplificar as ideias do autor aleacutem do razoaacutevel enumeramos os seguintes fundamentos da praacutetica em sala de aula baseados amplamente nos trabalhos de Hillocks

1 A aprendizagem ativa eacute muito mais eficaz que a aprendizagem passiva Algumas particularidades desse princiacutepio incluem

a Reduza o tempo de aula expositiva (o que Hillocks chama de ldquomoacutedulo de apresentaccedilatildeordquo durante o ensino) ao miacutenimo possiacutevel Se vocecirc pre-cisa dar uma aula expositiva (com grande tempo de explanaccedilatildeo em que apenas o professor fala como no ensino tradicional) ndash agraves vezes todos noacutes precisamos fazer isso ndash faccedila que essa etapa seja o mais

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breve possiacutevel quinze minutos ou menos Certifique-se o maacuteximo possiacutevel de que seu tempo com exposiccedilatildeo seja usado para interagir com os alunos e natildeo como uma agenda pessoal e necessidade de ldquocobrirrdquo toda mateacuteria

b Ao maacuteximo possiacutevel construa um curso em torno da aprendizagem indutiva em vez de focar-se na assimilaccedilatildeo de conteuacutedo ou na livre expressatildeo Quando as aulas se baseiam no argumento isso pode requerer mais atenccedilatildeo a assuntos locais pessoais que permitam aos alunos se concentrarem em fontes primaacuterias e secundaacuterias A aprendizagem indutiva parte da ldquo[] estrateacutegia baacutesica do questiona-mento que integra todos os campos do conhecimentordquo (HILLOCKS 1984 p 100) natildeo de estrateacutegias especializadas de questionamento Quando falamos de um curso baseado no argumento destacamos os seguintes pontos do recurso agrave aprendizagem indutiva a criaccedilatildeo de um inventaacuterio do conhecimento preacutevio e pressupostos existentes a respeito de um determinado assunto a formaccedilatildeo de hipoacuteteses a criaccedilatildeo de uma ldquosuposiccedilatildeo justificadardquo de uma alegaccedilatildeo principal o teste dessa alegaccedilatildeo primeiramente a partir de novos conheci-mentos e informaccedilotildees adquiridos com a leitura o questionamento a pesquisa e afins e em um segundo momento a partir da discussatildeo em grupo do conhecimento acumulado

c Concentre-se em estudos individualizados ou em grupo dentro da sala de aula O questionamento eacute algo que deve ser conduzido den-tro e fora da sala de aula Hillocks (1984 p 55) usa o termo ldquoensino ambientalrdquo para descrever o ensino que ldquo[] cria ambientes que introduzem e apoiam o aprendizado ativo de estrateacutegias complexas que os alunos ainda natildeo satildeo capazes de utilizar sozinhosrdquo

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2 A transparecircncia eacute tatildeo importante para o ensino eficiente quanto o eacute para o bom governo Deixe suas expectativas e metas para cada aula ndash e para cada tarefa ndash perfeitamente claras Encoraje os alunos a compartilha-rem e discutirem juntos cada rascunho e atividade durante o processo Quando possiacutevel apresente hipoacuteteses iniciais de outros alunos como exemplo para esclarecer ainda mais os criteacuterios e expectativas adotados Ofereccedila feedback especiacutefico mas ao mesmo tempo de forma que englobe toda a sala (por exemplo diga que os alunos natildeo ofereceram evidecircncias suficientes que justifiquem essa ou aquela hipoacutetese ou que a hipoacutetese proposta natildeo satisfaz as necessidades do puacuteblico alvo ou que ldquohaacute quebra de paralelismo nessas frasesrdquo)

3 Estabeleccedila metas altas mas crie processos que permitam aos alunos atingi-las Uma das bases teoacutericas da abordagem de Hillocks deriva de Vygotsky ndash particularmente do conceito de ldquozona de desenvolvimento proximalrdquo (ZDP) Essa zona eacute definida como a aacuterea localizada entre a capacidade real da pessoa e sua capacidade potencial que pode ser atingida com orientaccedilatildeo e cuidado Nesse caso a ldquoorientaccedilatildeo cuidadosardquo inclui atividades em sala de aula em especial as oportunidades de usar a criatividade em atividades orais ou escritas a correccedilatildeo intermediaacuteria dos demais alunos ou do professor e em seguida a confecccedilatildeo de novos rascunhos baseados no feedback recebido ateacute entatildeo

4 Coloque em praacutetica seus princiacutepios seja tambeacutem um aluno quando esti-ver em sala de aula Hillocks encoraja professores a praticarem a mesma abordagem baseada no questionamento quando estatildeo em sala de aula Ao informar aos alunos os seus objetivos antes de atribuir-lhes uma tarefa ou atividade vocecirc oferece na verdade uma hipoacutetese inicial sobre

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A construccedilatildeo do argumento

o caminho para atingir esses objetivos Preste atenccedilatildeo ao que acontece depois disso e teste a sua hipoacutetese Quando alguma coisa falhar descubra porque e repense suas estrateacutegias

5 Adapte-se da melhor forma possiacutevel aos diferentes estilos de aprendiza-do e inteligecircncia de seus alunos Use diferentes maneiras de pesquisar assimilar e apresentar informaccedilotildees Se vocecirc natildeo tiver recursos digitais em sala de aula faccedila o possiacutevel para encorajar o uso de miacutedias visuais e computadores fora da sala

6 Use seus pontos fortes quando estiver em sala de aula (isso deriva menos das teorias de Hillocks do que de nossa experiecircncia como autores e pro-fessores) Da mesma forma que fazemos o possiacutevel para nos adaptarmos aos alunos precisamos respeitar nossas particularidades Alguns de noacutes satildeo palestrantes realmente brilhantes ndash apesar de nossa experiecircncia provar que os brilhantes satildeo menos numerosos que aqueles que pensam que satildeo Outros criam tarefas extraordinaacuterias em grupo Alguns tecircm um verdadeiro talento para aulas particulares Qualquer que seja seu maior talento como professor seja qual for o motivo pelo qual vocecirc escolheu essa profissatildeo busque sempre uma maneira de utilizar esse talento

boas praacutetiCas

O que propomos a seguir natildeo eacute absolutamente uma exaustiva lista de orien-taccedilotildees para introduzir a argumentaccedilatildeo em sua sala de aula Trata-se apenas de uma compilaccedilatildeo de algumas boas praacuteticas Acima de tudo essa seccedilatildeo busca auxi-liar professores a se valerem do argumento como forma de engajar seu puacuteblico Qualquer pessoa que tenha lecionado e pedido a seus alunos que redijam textos

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A construccedilatildeo do argumento

argumentativos sabe que natildeo existe uma ldquomelhor formardquo de estruturar essa aula haacute diversas maneiras eficazes Aqui vamos apenas enumerar algumas

Para os professores que satildeo calouros no campo da argumentaccedilatildeo esta seccedilatildeo oferece um mapa dessa abordagem pedagoacutegica Para os que jaacute tecircm mais experiecircncia com o assunto esta seccedilatildeo oferece uma lista de ideias de como reestruturar aulas jaacute criadas Se pedimos a nossos alunos constantemente que questionem suas su-posiccedilotildees acerca de argumentos por eles apresentados precisamos tambeacutem estar dispostos a questionar as nossas suposiccedilotildees a respeito do ensino

As informaccedilotildees a seguir representam uma abordagem ecleacutetica sobre a retoacuteri-ca e a construccedilatildeo de argumento como uma diferente forma de ver o mundo e natildeo apenas como fins que podem ser alcanccedilados com a mera repeticcedilatildeo de uma foacutermula (ainda que em certas ocasiotildees os pesquisadores que adotam essa metodologia sugerem um processo um tanto quanto formal) Algumas das melhores praacuteticas partem do desejo de ajudar alunos a irem aleacutem de sua posiccedilatildeo isolada de indiviacuteduo e a se colocarem em um contexto mais abrangente Esse esforccedilo social baseado na identidade grupal inclui a retoacuterica da libertaccedilatildeo o argumento feminista e a aprendizagem-serviccedilo

A retoacuterica da libertaccedilatildeo eacute um movimento educacional que surgiu como reaccedilatildeo aos modelos de educaccedilatildeo para alunos passivos Ela foi fundamental para o esforccedilo de evidenciar questotildees ligadas agrave representatividade dentro da sala de aula e ao reconhecimento da educaccedilatildeo como um processo natildeo neutro ndash a ideologia eacute sempre transmitida junto com o conhecimento Ao incorporar a retoacuterica da libertaccedilatildeo agrave aula sobre argumento criamos um ambiente abertamente politizado que tem a cultura como ponto focal de discussatildeo e chama os alunos a questionar de manei-ra criacutetica o conteuacutedo do curso e as experiecircncias e ideologias que eles trazem agrave discussatildeo como falantes ou escritores A escrita eacute um veiacuteculo que pode ser usado de diferentes maneiras na formaccedilatildeo do aluno que se engajaraacute de forma criacutetica ao mundo agrave sua volta

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A construccedilatildeo do argumento

O argumento feminista tambeacutem contesta o status quo Ao tentar eliminar a oposiccedilatildeo perdedorganhador de um argumento atraveacutes de uma abordagem mais eacutetica as feministas nos clamam a buscar estrateacutegias menos agressivas e mais cooperativas especialmente focadas na importacircncia do ouvir compreender e dialogar numa troca de argumentos Na sala de aula as abordagens feministas podem ser implementadas em doses homeopaacuteticas e natildeo precisam ser adotadas com exclusividade

A abordagem aprendizagem-serviccedilo vecirc a linguagem como uma atividade so-cial que eacute ao mesmo tempo interpretativa e construtiva Da mesma forma que a retoacuterica da libertaccedilatildeo auxilia o aluno a explorar seu potencial maacuteximo a apren-dizagem-serviccedilo busca fomentar uma simpatia precoce pelo engajamento ciacutevico Em muitos casos essa abordagem se manifesta na relaccedilatildeo entre aulas de escrita e interaccedilotildees in-loco focadas em projetos reais desenvolvidos com organizaccedilotildees ou empresas da comunidade Essa no entanto natildeo eacute a regra O engajamento ou a pesquisa aprofundados de uma questatildeo pertinente que afeta a mesma comunidade podem ser alternativas interessantes A aprendizagem-serviccedilo oferece ao aluno a oportunidade de vivenciar uma situaccedilatildeo hipoteacutetica com exigecircncias e limitaccedilotildees reais sobre as quais eacute necessaacuterio ponderar Ela tambeacutem expotildee o aluno a um aspecto da academia que natildeo eacute limitado pela disciplina tradicional

Da mesma forma o movimento escrita atraveacutes do curriacuteculo (writing across the curriculum- WAC) objetiva diminuir as limitaccedilotildees das disciplinas Tem como princiacutepio central a ideia de que o aluno aprende mais quando se confronta com o conteuacutedo escrito do curso No caso de professores que natildeo ensinam liacutengua (InglecircsPortuguecircs) essa abordagem oferece uma justificativa racional para a utilizaccedilatildeo da escrita em todas as disciplinas pois postula que o argumento eacute a pedra fundamental de uma educaccedilatildeo superior As disciplinas satildeo diferenciadas principalmente pelas regras de construccedilatildeo de argumento e de apresentaccedilatildeo de evidecircncias favoraacuteveis Em aacutereas que tradicionalmente natildeo requerem extensiva dedicaccedilatildeo agrave escrita as atividades de escrita podem ser usadas para fortalecer os princiacutepios disciplinares

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A construccedilatildeo do argumento

e apresentar aos alunos os meacutetodos de questionamento que satildeo aceitos por deter-minada aacuterea do conhecimento

O raacutepido avanccedilo de possibilidades tecnoloacutegicas forccedilou os professores a reava-liarem o papel e o impacto das diferentes tecnologias de escrita sobre o poder do argumento A escrita com computadores eacute um exemplo disso Como os alunos da atualidade constantemente se sentam agrave frente de um teclado eacute importante levar em consideraccedilatildeo a linguagem que eles trazem agrave sala de aula A tecnologia tambeacutem pode expandir os limites do que eacute considerado ldquoescritardquo especialmente quando o hipertexto eacute utilizado em sala de aula para mudar a perspectiva sobre um deter-minado argumento Os avanccedilos tecnoloacutegicos tambeacutem afetaram mecanismos de pesquisa ndash a confiabilidade de fontes e autoria de ideias estatildeo entre alguns dos assuntos recentemente controversos

A retoacuterica visual tambeacutem se concentra em tecnologias que impactam nossas vidas Ela busca ampliar as discussotildees sobre o argumento para incluir nelas o exame de imagens visuais que constantemente complementam ou substituem as palavras Mesmo que as imagens sejam mais memorizaacuteveis e capazes de maior res-sonacircncia psicoloacutegica seu impacto passa comumente despercebido Haacute mensagens ocultas na miacutedia visual que exigem que repensemos nossa habilidade de processar informaccedilotildees A partir da exploraccedilatildeo da produccedilatildeo e consumo de textos visuais os alunos podem se tornar mais conscientes sobre a forma como as imagens sutis podem transmitir conteuacutedos persuasivos

Por que a construccedilatildeo do argumento e mais amplamente a retoacuterica deveriam receber toda essa atenccedilatildeo em sala de aula Precisamos ensinar retoacuterica para que possamos nos proteger dela As mensagens persuasivas nos rodeiam a todo tem-po ndash elas perfazem um amaacutelgama de nossos ldquoeurdquo coletivos Quanto melhor noacutes ndash e nossos alunos ndash identifiquemos essas mensagens em sua forma real (pontos de vista natildeo verdades monoliacuteticas) melhor atuaremos nesse mundo de ldquoBabel apoacutes a quedardquo Essa seccedilatildeo de boas praacuteticas seraacute mais uacutetil se for empregada como ponto

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A construccedilatildeo do argumento

de partida para uma exploraccedilatildeo mais detalhada do que essas posiccedilotildees teoacutericas e pedagoacutegicas tecircm a oferecer no contexto de uma determinada aula Esses resumos de praacuteticas destacam as diferenccedilas entre os praticantes

retoacuteriCa da libertaccedilatildeo

O conceito de retoacuterica da libertaccedilatildeo tambeacutem chamado pedagogia criacutetica ou retoacuterica da criacutetica foi definido de diferentes formas no estudo da escrita A ideia de a pedagogia libertadora adveacutem dos trabalhos de Paulo Freire educador brasi-leiro que acreditava que a educaccedilatildeo bancaacuteria ndash um modelo de educaccedilatildeo que pinta os alunos como recipientes vazios que precisam ser preenchidos de conhecimento por professores versados (FREIRE 2000) ndash contribuiacutea para a opressatildeo poliacutetica ao condicionar as pessoas a natildeo questionarem seu entorno O papel central da retoacuterica da libertaccedilatildeo eacute o de ajudar na compreensatildeo da natureza profundamente poliacutetica da educaccedilatildeo Essa abordagem pressupotildee um mundo injusto onde as diversas formas de afirmar manter e distribuir poder satildeo veladas e frequentemente ignoradas Dessa forma a educaccedilatildeo natildeo seria neutra professores e alunos tecircm pressuposiccedilotildees expectativas e valores acerca da ldquoideologia dominanterdquo que frequentemente satildeo ignorados em sala de aula (SHOR FREIRE 1987 p 13) Como as opiniotildees poliacuteticas satildeo frequentemente transmitidas de professor para aluno durante o processo de aprendizagem os alunos precisam assumir a responsabilidade de compreender a natureza doutrinadora dos sistemas educacionais se quiserem ser capazes de questionar os princiacutepios que norteiam o conhecimento recebido A Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire surgiu a partir do trabalho com camponeses analfabe-tos no Brasil um grupo verdadeiramente oprimido e lanccedilou a base para uma educaccedilatildeo realmente libertadora ndash fora do controle do Estado Consequentemente as ideias de Paulo Freire precisam ser adaptadas aos diferentes estilos de sala de aula ao redor do mundo levando em consideraccedilatildeo as necessidades dos alunos dos diferentes grupos sociais

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A construccedilatildeo do argumento

Na segunda metade da deacutecada de 70 e iniacutecio dos anos 80 o trabalho de Paulo Freire influenciou os campos da retoacuterica e da escrita conforme os professores da eacutepoca tentavam incorporar a teoria progressista ao trabalho aparentemente apo-liacutetico de instruccedilatildeo da escrita (BIZZELL 1997) O componente mais uacutetil da teoria de Paulo Freire para os professores de argumento eacute a atenccedilatildeo especial ao exame criacutetico de interaccedilotildees problemaacuteticas em niacutevel local (SHOR 1996) Em vez de se concentrar em interaccedilotildees dialeacuteticas abstratas de ideias valores e conceitos Paulo Freire pede um maior foco sobre ldquotemas geradoresrdquo o ponto principal que funda-menta a discussatildeo abstrata O tema de estudo se origina nos artefatos cotidianos de uma comunidade especiacutefica que pertence a uma determinada cultura (FREIRE 2000) No caso dos camponeses brasileiros com quem Paulo Freire trabalha isso quis dizer comeccedilar os estudos pela percepccedilatildeo do homem que sacia sua sede com aacutegua natildeo com o conceito de justiccedila social

Para os professores norte-americanos de escrita na atualidade os temas gera-dores de Paulo Freire podem envolver a interaccedilatildeo sustentaacutevel atraveacutes de assuntos que interessam aos alunos como aumentos nas mensalidades da universidade ou protestos contra discriminaccedilatildeo racial divulgados pela televisatildeo Tal foco permite que os alunos atuem sobre ideias em vez de consumi-las passivamente aleacutem de fomentar um ambiente em que a educaccedilatildeo eacute inteiramente voltada agrave conquista do potencial pleno Como argumenta Berthoff (1983 p 41) eacute importante ldquo[] (ensinar) escrita como uma forma de pensar e aprenderrdquo e ldquo[] de fazer que nossos alunos se apropriem desse incomparaacutevel recurso []rdquo Em outras palavras ldquo[] a subjetivida-de eacute um sinocircnimo de motivaccedilatildeo [hellip] O material de teor subjetivo eacute definitivamente relevante para aqueles que estudamrdquo (SHOR 1987 p 24) Dessa forma a ecircnfase sobre o raciociacutenio criacutetico a respeito de questotildees locais provavelmente eliminaraacute a reflexatildeo natildeo criacutetica de assuntos banalizados pela repeticcedilatildeo ndash como o aborto e a pena de morte ndash e acessaraacute a capacidade de imaginaccedilatildeo dos alunos como ponto de partida para a invenccedilatildeo de uma nova retoacuterica (BERTHOFF 1983)

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A construccedilatildeo do argumento

A retoacuterica da libertaccedilatildeo natildeo estaacute completamente livre de criacuteticas no entanto Alguns pesquisadores questionam a politizaccedilatildeo aberta da sala de aula como for-ma de entregar o poder aos alunos Ellsworth (1989) faz uma ampla criacutetica a essa pedagogia Seu argumento central se baseia na crenccedila de que a maior parte dos cursos que se dizem adeptos dessa pedagogia na verdade tecircm intenccedilotildees poliacuteticas veladas escondidas atraacutes do clamor por ldquoconsciecircncia criacuteticardquo o que cria dessa forma mais um ambiente em que uma determinada doutrina poliacutetica eacute defendida em detrimento de outras Lazere (1992 p 9) questiona outra premissa da retoacuterica da libertaccedilatildeo ao declarar que

[] os esquerdistas erram terrivelmente ao rejeitar a restauraccedilatildeo de uma ecircnfase nas habilidades e conhecimentos fundamentais que podem impulsionar a real liberaccedilatildeo ndash natildeo opressatildeo ndash caso sejam transmitidos com bom senso abertura e pluralismo cultural aleacutem de uma aplicaccedilatildeo desses conhecimentos baacutesicos agrave habilidade de pensar de forma criacutetica especialmente a respeito de questotildees sociopoliacuteticas em vez de buscar a mera memorizaccedilatildeo de conceitos

A inquietaccedilatildeo de Lazere eacute irrelevante visto que caso um indiviacuteduo queira superar o poder sistemaacutetico da sociedade ele deve poder empregar o discurso de poder da forma correta para se comunicar de maneira bem sucedida com quem deteacutem o poder Mesmo os mais fervorosos apoiadores da retoacuterica da liberaccedilatildeo vis-lumbram problemas potenciais nesses fins especiacuteficos Bizzell (1997 p 320) por exemplo critica a sugestatildeo de que o reconhecimento da desigualdade ldquo[] tambeacutem desperta automaticamente o desejo progressivo de reforma poliacuteticardquo Reconhecer o status dos alunos necessariamente atribui-lhes o poderio de se manter imoacuteveis especialmente quando eles percebem que seus proacuteprios privileacutegios satildeo colocados agrave prova quando o status quo tambeacutem o eacute

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Apesar dos pontos de vista divergentes acerca dos valores da pedagogia liber-tadora estudiosos da aacuterea ainda atribuem valor agrave busca por lutas ideoloacutegicas na sala de aula de escrita A praacutetica da retoacuterica da liberaccedilatildeo no entanto pode tomar diversas formas de acordo com o professor e o material didaacutetico Shor (1980 p 162-69) parte dos artifiacutecios cotidianos jaacute que integram o ldquouniverso geradorrdquo dos alunos Eacute o caso da atividade que propotildee (Worldrsquos Biggest Hamburger ndash Atividade do maior hambuacuterguer do mundo) criada quando a autora trouxe um hambuacuterguer para a sala de aula para que seus alunos o examinassem de acordo com o meacutetodo de Descriccedilatildeo-Diagnoacutestico-Reconstruccedilatildeo

O hambuacuterguer eacute o nexo de muitas realidades cotidianas Natildeo apenas eacute o rei dos fast food a refeiccedilatildeo curta de almoccedilo lanche ou jantar mas eacute tam-beacutem a fonte de renda de muitos alunos que trabalham nesses restauran-tes Eu pude entatildeo segurar em minhas matildeos um interstiacutecio valioso da experiecircncia da massificaccedilatildeo Levei um hambuacuterguer para a sala de aula e com isso interferi em um grande aspecto da cultura de massa Agora que reflito a respeito muitos dos alunos acharam aquele hambuacuterguer nojento Quando reli para a sala um conjunto de suas descriccedilotildees o ham-buacuterguer tomou uma forma bastante negativa Em seguida pedi aos alu-nos que tentassem diagnosticar o objeto O problema oacutebvio sugerido por nosso trabalho ateacute o momento era Se o hambuacuterguer natildeo eacute atraente por-que consumimos muito Porque haacute tantos fast food Porque satildeo usados muitos ingredientes em hambuacutergueres Eles satildeo nutritivos Onde pro-curaacutevamos alimento antes desses impeacuterios de comida raacutepida existirem

Depois de os alunos considerarem o hambuacuterguer sob uma temaacutetica inquisi-tiva mais polecircmica foi-lhes atribuiacuteda a tarefa de reconstruiacute-lo ndash salas diferentes desenvolveram essa fase de maneiras distintas Um dos grupos criou alternativas saudaacuteveis enquanto outro recriou todo o processo de produccedilatildeo e distribuiccedilatildeo para desvendar a complexa relaccedilatildeo entre comida e cultura Shor (1980) acredita que ati-vidades dessa natureza satildeo poderosas porque descaracterizam objetos cotidianos

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ao apresentaacute-los sob uma nova perspectiva e contexto o que permite aos alunos a oportunidade de reinterpretar o corriqueiro Professores de argumento devem introduzir exerciacutecios dessa natureza porque eles satildeo abertamente argumentativos Os alunos teratildeo opiniotildees distintas inevitavelmente a respeito da natureza do que eacute corriqueiro em suas vidas No entanto se observado sob a oacutetica ideal o exerciacutecio pode deixar claro que as tentativas de descrever diagnosticar e reconstruir satildeo na verdade conceitos pessoais unidos uns aos outros por posicionamentos poliacuteticos

Outra forma que a retoacuterica da liberaccedilatildeo assume eacute exemplificada por Berlin (2003) quando trata sobre ldquoretoacuterica socioepistecircmicardquo Uma sequecircncia de exerciacutecios comeccedila

[] com uma mateacuteria do Wall Street Journal intitulada The Days of a Cowboy are Marked by Danger Drudgery and Low Pay (O dia a dia de um vaqueiro eacute marcado por perigo labuta e salaacuterio piacutefio) escrito por William Blundell As instruccedilotildees satildeo ao mesmo tempo variadas e acessiacuteveis aos alunos Inicialmente a turma deve levar em conta o contexto da mateacute-ria explorando as caracteriacutesticas da relaccedilatildeo entre o jornal e os eventos histoacutericos que circundam a produccedilatildeo do texto O objetivo da anaacutelise eacute determinar quais aspectos serviram de significantes principais para os leitores originais O significado da palavra cowboss (capataz ou patratildeo) eacute estabelecido pela relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre cowboy (vaqueiro ou peatildeo de boiadeiro) e o chefe que trabalha na cidade longe da fazenda (Essas) dicotomias sugerem outras como natureza-civilizaccedilatildeo e peatildeo-peatildeo ur-bano Os alunos passam entatildeo a notar que essas dicotomias satildeo estabe-lecidas de forma hieraacuterquica com um dos lados em posiccedilatildeo de privileacutegio em relaccedilatildeo ao outro Eles tambeacutem veem o quanto essas hierarquias satildeo instaacuteveis Os alunos analisam discutem e escrevem sobre posiccedilotildees acer-ca de certos aspectos determinantes dentro dessas narrativas social-mente preacute-fabricadas e descobrem que o texto busca posicionar o leitor sobre um determinado tipo de papel masculino Eles podem entatildeo ex-plorar sua proacutepria cumplicidade e resistecircncia ao se adequar a esse papel (BERLIN 2003 p 125-27)

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Essa metodologia se adeacutequa bem aos objetivos propostos pelo autor a saber mostrar aos alunos que ldquonarrativasrdquo ndash praacuteticas significantes que parecem naturais e natildeo preacute-fabricadas ndash na verdade moldam suas vidas O conteuacutedo associado a essa sequecircncia estaacute centralizado no ldquo[] posicionamento de aspectos fundamentais in-seridos na textura da narrativa socialmente preacute-fabricadardquo (BERLIN 2003 p 126) Por exemplo embora individualidade e liberdade sejam aspectos frequentemente associados a peotildees de boiadeiro o artigo tambeacutem descreve essas personagens como merecedoras de respeito e submissas ao cowboss (o patratildeo) Uma vez que a narra-tiva eacute destrinchada uma anaacutelise mais consciente do conteuacutedo permite aos alunos situar cada narrativa em um cenaacuterio econocircmico social e poliacutetico mais abrangente

Schutt (1998 p 126) sugere basear o conteuacutedo do curso em espaccedilos sociais

Os benefiacutecios da utilizaccedilatildeo de casos especiacuteficos como texto base pare-cem ter surgido recentemente em conjunto com o conceito emergente de ldquozonas de contatordquo Como definido por Mary Louise Pratt essas zo-nas satildeo ldquoos espaccedilos sociais nos quais culturas distintas se encontram se confrontam e debatem entre si frequentemente em contextos permea-dos por relaccedilotildees de poder profundamente assimeacutetricasrdquoNo caso de E306 esses espaccedilos sociais eram os tribunais americanos No entanto em muitos cursos sobre argumento nenhum espaccedilo (ou even-to) de natureza social pode ser confrontado jaacute que frequentemente ne-nhum espaccedilo dessa natureza eacute assim definido o que cria uma profunda confusatildeo a respeito de quando e como os alunos podem iniciar uma dis-cussatildeo

A soluccedilatildeo para esse problema apresentada pelo autor eacute o agrupamento de leituras em torno do toacutepico da pena de morte que consequentemente leva a dis-cussotildees a respeito da forma como os tribunais administram a justiccedila em nossa sociedade Os exerciacutecios de escrita variam de uma anaacutelise criacutetica de documentos e transcriccedilotildees do processo legal (com comentaacuterios acerca do sucesso particular desse ou daquele argumento legal) agrave produccedilatildeo de textos sobre o impacto perceptual na

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A construccedilatildeo do argumento

opiniatildeo puacuteblica de relatos fictiacutecios de filmes sobre a pena de morte e finamente a anaacutelises criacuteticas e ensaios sobre o impacto do texto jornaliacutestico sobre a opiniatildeo puacuteblica em geral

Certamente natildeo haacute uma forma uacutenica de incorporar a retoacuterica da libertaccedilatildeo agrave aula sobre argumento Apesar de natildeo faltarem inconsistecircncias um programa de aulas desenhado para preparar alunos para o engajamento criacutetico em relaccedilatildeo ao mundo agrave sua volta necessariamente contribuiraacute para a expansatildeo de seus pontos de vista acerca das possibilidades abertas pela retoacuterica indutiva Assim que eles passarem a questionar as figuras de autoridade o reino da invenccedilatildeo retoacuterica poderaacute se expandir exponencialmente Jaacute que muitos dos espaccedilos para discussatildeo estatildeo situados em torno de objetos corriqueiros natildeo seraacute difiacutecil encontrar pontos discutiacuteveis ou engajar alunos em diaacutelogos que exijam deles o questionamento criacute-tico dos pressupostos que possuem

feminismo e argumentaccedilatildeo

A abordagem feminista da argumentaccedilatildeo surgiu da necessidade de encon-trar alternativas aos modelos claacutessicos de argumentaccedilatildeo e da necessidade de se focalizar menos os modelos agonistas e antagonistas que criam ldquovencedoresrdquo e ldquoperdedoresrdquo ou os modelos que pregam que a utilizaccedilatildeo de certas ferramentas de persuasatildeo eacute vaacutelida apenas para se conseguir o que se deseja Em movimento contraacuterio a estrateacutegia feminista se concentra em novas formas de abordar a argu-mentaccedilatildeo a partir de alternativas eacuteticas que reposicionam as partes exteriores ao debate para que a argumentaccedilatildeo a mediaccedilatildeo a negociaccedilatildeo e a cooperaccedilatildeo sejam vistos de forma menos antagonista

Em suas primeiras manifestaccedilotildees as correntes alternativas agrave abordagem aristoteacutelica tentaram se inspirar na obra de Carl Rogers um psicoterapeuta cujos trabalhos se centraram em torno da comunicaccedilatildeo terapeuta-cliente O trabalho de Roger influenciou os campos da retoacuterica e escrita desde 1970 e foi mencio-

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nado como uma ldquoalternativa agrave argumentaccedilatildeo tradicionalrdquo por Young Becker e Pikes (1970 p 270) Segundo os autores a abordagem rogeriana foi considerada adequada a ldquo[] situaccedilotildees em que haacute diacuteade comunicativardquo A retoacuterica rogeriana foi ardentemente contestada no final da deacutecada de 1970 e durante toda a deacutecada de 1980 em textos como Carl Rogersrsquos Alternative to Traditional Rhetoricrdquo (HAIRSTON 1976) Aristotelian vs Rogerian Argument A Reassessment (LUNSFORF 1979) Is Rogerian Rhetoric Really Rogerianrdquo(EDE 1984) Rogerian Problem Solving and the Rhetoric of Argumentation (TEICH 1987) e Feminist Responses to Rogerian Argu-ment (LASSNER 1990)

O trabalho de Carl Roger quando adaptado agrave escrita e agrave retoacuterica apresentou uma teoria da argumentaccedilatildeo baseada na ldquoaudiccedilatildeo e compreensatildeordquo repletas de em-patia e na habilidade das partes de enxergarem uma discussatildeo especiacutefica a partir de um ponto de vista diferente de forma que fosse possiacutevel ldquosentir realmenterdquo o que significa trilhar os passos de outra pessoa para se comunicar de forma efi-caz (yOUNG BECKER PIKES 1970 p 285) O trabalho tornou-se atraente para ideologias feministas emergentes no estudo de escrita jaacute que a retoacuterica rogeriana oferecia ldquo[] empatia em vez de oposiccedilatildeo diaacutelogo em vez de discussatildeordquo (LASSNER 1990 p 220) Mesmo assim a retoacuterica rogeriana nunca foi abertamente feminista como defende Lamb (1991 p 17) porque eacute ldquomais feminina do que feministardquo jaacute que ldquocompreender o outro sempre foi a lsquoobrigaccedilatildeorsquo da mulherrdquo

Teorias e abordagens da argumentaccedilatildeo feminista visam entatildeo a oferta de alternativas que se preocupem com a representaccedilatildeo de poder ao mesmo tempo em que se ocupam da empatia e do cuidado De acordo com Lamb (1991 p 18) entender a construccedilatildeo do argumento como um processo de negociaccedilatildeo e media-ccedilatildeo eacute uma alternativa vaacutelida ao argumento masculino porque o ponto central da discussatildeo ldquo[] deixa de ser o ganhador e passa a ser a habilidade de se atingir uma soluccedilatildeo justa adequada a ambas as partesrdquo da mesma forma que a concepccedilatildeo de poder muda ldquode algo que eacute possuiacutedo e pode ser usado contra o outro para algo que estaacute agrave disposiccedilatildeo de ambos e tem o potencial de ser usado para benefiacutecio muacutetuordquo

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Abordagens cooperativas que envolvem negociaccedilatildeo e mediaccedilatildeo satildeo pontos de vista populares na representaccedilatildeo feminista da argumentaccedilatildeo mas natildeo satildeo desprovidas no entanto de criacuteticas advindas do proacuteprio movimento feminista Muitos pesquisadores apontam que esse estilo de argumento se baseia numa visatildeo truncada da visatildeo claacutessica (ver por exemplo LUNSFORD 1979) ou na metaacutefora excessivamente simplista da ldquodiscussatildeo como forma de guerrardquo (FULKERSON 1996) Como ilustra Jarratt (1991 p 106) pedagogias da argumentaccedilatildeo centradas na negociaccedilatildeo e mediaccedilatildeo frequentemente exigem que os alunos especialmente os do sexo feminino a estarem ldquo[] insuficientemente preparados para argumentar contra os discursos opressivos do racismo sexismo e divisatildeo de classes que ten-dem a surgir em ambientes onde se estuda escritardquo no dia a dia e nos processos democraacuteticos De forma similar Easley (1997) diz que a melhor estrateacutegia a ser empregada por um professor de escrita ao abordar as diferenccedilas e conflitos ine-rentes agrave argumentaccedilatildeo tradicional em contraste com as linhas de argumentaccedilatildeo alternativa eacute mostrar o contraditoacuterio da posiccedilatildeo diferente de dois alunos que deve por sua vez ser resolvido atraveacutes da produccedilatildeo textual Easley (1997) acredita que os alunos devem ter acesso a ferramentas de argumentaccedilatildeo da mesma forma que devem aprender a utilizaacute-las de maneira eacutetica reflexiva e responsaacutevel Aleacutem disso Fulkerson (1996) sugere que reparar as metaacuteforas de abordagem da argumentaccedilatildeo que refletem menos violecircncia porque focam mais os trabalhos desenvolvidos por meio de parcerias pode levar a um entendimento de argumentaccedilatildeo

[]como uma forma interativa de discurso [hellip] construiacuteda sobre uma estrutura de reivindicaccedilatildeo e apoio e (reiterando a ideia) de que seu pro-poacutesito eacute engajar interlocutores em uma parceria dialeacutetica com a espe-ranccedila de atingir um entendimento muacutetuo que amplie a compreensatildeo (FULKERSON 1996 p 7)

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A construccedilatildeo do argumento

Fraser (1992 p 73) aborda o conceito de argumentaccedilatildeo e discurso domi-nante ao sugerir que em sociedades estratificadas ldquoarenas discursivas especia-lizadasrdquo ndash na forma de esferas puacuteblicas subalternas ndash satildeo uacuteteis e necessaacuterias para os que lidam diretamente com identidades marginalizadas Extensotildees de teorias da argumentaccedilatildeo feminista tambeacutem podem ser encontradas na teoria retoacuterica moderna por pesquisadores que incorporem o trabalho de Kenneth Burke (FOSS e GRIFFIN 1992) a hermenecircutica posicional (RyAN NATALLE) e a retoacuterica de atraccedilatildeo (FOSS e GRIFFIN 1995)

Ainda que as teorias feministas da argumentaccedilatildeo sejam elas mesmas nego-ciadas as praacuteticas que emergem no ensino do argumento refletem alguns dos princiacutepios essenciais do pensamento e da accedilatildeo feministas Fulkerson (1996) sugere que os alunos escrevam propostas de poliacuteticas que requeiram a investigaccedilatildeo e a escrita de algum pequeno procedimento ou projeto de poliacuteticas locais para ser-viccedilos que eles acreditam natildeo estar funcionando de maneira adequada Esse texto argumentativo deve ser endereccedilado natildeo a um oponente que precisa ser vencido mas sob a forma de um memorando agrave pessoa ou comitecirc responsaacutevel pelo proble-ma O autor propotildee ensinar aos alunos as principais caracteriacutesticas e padrotildees de raciociacutenio utilizados nesse gecircnero textual apresentar exemplos de outros grupos sugerir locais onde se possa pesquisar toacutepicos interessantes entrevistar pessoas conhecedoras do assunto (especialmente as envolvidas com o problema) e seguir o processo tradicional de produccedilatildeo de diferentes rascunhos que deve ser revisado pelos proacuteprios colegas Ele tambeacutem discute

[] a relativa capacidade de persuasatildeo de um ataque enervado ou agressi-vo versus uma criacutetica razoaacutevel com soluccedilotildees propostas que sejam de faacutecil adoccedilatildeo Assim que os textos apresentem um formato adequado ele pede aos alunos que as enviem a quem satildeo de direito para verificar o potencial sucesso de seu trabalho no mundo real (FULKERSON 1996 p 3-4)

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A construccedilatildeo do argumento

Nesse ponto Fulkerson sugere que o gecircnero textual que propotildee novas poliacute-ticas eacute o que aborda injusticcedilas perpetradas na comunidade imediata da mesma forma que aborda uma argumentaccedilatildeo em parceria com ndash direcionada a buscar um consenso mutuamente satisfatoacuterio sobre a criaccedilatildeo de mudanccedilas no processo democraacutetico

Miller (1996) aborda teorias femininas de forma diferente em um curso online Feminism and Expository Writing (Feminismo e a escrita expositiva) Baseando a tarefa proposta em ldquoassuntos pertinentes agrave retoacuterica feministardquo a autora afirma que

[] a argumentaccedilatildeo eacute uma das principais formas de praticar o ldquosaber me-todoloacutegicordquo ou seja um pensamento sistemaacutetico Como habilidades ar-gumentativas satildeo valorizadas nessa cultura eacute importante aprendecirc-las Mesmo assim muitas feministas aleacutem de outras pessoas apresentam objeccedilotildees agrave argumentaccedilatildeo tradicional baseadas em diferentes aspectos inerentes agrave teoria Elas dizem tratar-se de posiccedilatildeo frequentemente in-tolerante de visotildees opositoras e focada na conversatildeo ou destruiccedilatildeo do oponente (MILLER 1996 p 8)

Para deixar a tensatildeo mais palpaacutevel para os alunos Miller propotildee uma tarefa em que ela pede

[] que os alunos se unam a outra pessoa para ldquocolaborarrdquo na estrutu-raccedilatildeo de um argumento em que cada uma das partes assume um pon-to de vista diferenteoposto a respeito de um assunto de sua escolha Eles devem trabalhar juntos para desenvolver formas de argumentar que natildeo possuam caracteriacutesticas tradicionalmente agoniacutesticas Como discordar de forma respeitosa que reconhece perspectivas pluralis-tas e ainda assim consegue apresentar seu ponto de vista Eacute possiacutevel durante uma discussatildeo se manter amaacutevel e em conexatildeo com o outro (MILLER 1996 p 8)

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A construccedilatildeo do argumento

Assim Miller sugere Easley (1997) permite que os alunos articulem e nego-ciem as tensotildees inerentes aos modelos de argumentaccedilatildeo feminista por si mesmos

Praacuteticas e abordagens da argumentaccedilatildeo feminista satildeo contraditoacuterias No entanto eacute razoaacutevel dizer que essas contradiccedilotildees fazem essas abordagens viaacuteveis e sustentaacuteveis Utilizar respostas e abordagens feministas em nossa sala de aula natildeo apenas beneficia os alunos porque lhes oferecer uma ampla gama de estrateacute-gias argumentativas que se somam agraves ferramentas retoacutericas jaacute agrave disposiccedilatildeo mas tambeacutem porque encoraja os professorespesquisadores a ldquo[] romperem com abordagens calcificadas acriacuteticasrdquo tanto na abordagem do argumento quanto no ensino (PALCZEWSKI 1996 p161)

aprendizagem-serviccedilo e argumentaccedilatildeo

As raiacutezes da aprendizagem-serviccedilo na retoacuterica da escrita se encontram na ldquomudanccedila socialrdquo da aacuterea conforme detalha Cooper (1986) A autora faz alusatildeo agrave pedagogia que se preocupa com o proacuteprio processo de escrita assim como a reflete

[] a crescente consciecircncia de que a linguagem e os textos natildeo satildeo ape-nas os meios pelos quais os indiviacuteduos decodificam e comunicam infor-maccedilatildeo mas essencialmente atividades sociais que como tal dependem de estruturas e processos sociais natildeo apenas na interpretaccedilatildeo mas tam-beacutem na construccedilatildeo (COOPER 1986 p 366)

Os objetivos da aprendizagem-serviccedilo estatildeo ligados tanto ao trabalho realiza-do por John Dewey para quem a educaccedilatildeo tem uma funccedilatildeo democraacutetica expliacutecita quanto agraves pedagogias da libertaccedilatildeo que baseadas nos trabalhos de Paulo Freire buscam a formaccedilatildeo de cidadatildeos com consciecircncia criacutetica a respeito das instituiccedilotildees de poder e capazes de trabalhar para combater injusticcedilas sociais Desde meados da deacutecada de 1990 alguns pesquisadores tentam estabelecer a aprendizagem-

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A construccedilatildeo do argumento

-serviccedilo como um toacutepico relevante para os estudos sobre argumento a exemplo de Herzberg (1994) Cushman (1997) e Adler-Kassner Crooks e Watters (1997) Recentemente a aprendizagem-serviccedilo tambeacutem esteve ligada agrave ideia que a escrita eficiente eacute situada ou seja ocorre em espaccedilo para aleacutem da sala de aula para garantir que estudantes tenham acesso a situaccedilotildees retoacutericas reais29

Apesar de intimamente ligada agrave teoria da argumentaccedilatildeo a aprendizagem--serviccedilo tem uma linhagem muito mais antiga o pensamento de Quintiliano se-gundo o qual quem argumenta bem eacute um ldquobom homem que fala bemrdquo Em outras palavras o pressuposto de que a habilidade de persuasatildeo de um determinado indiviacuteduo estaacute tanto ligada a seu caraacuteter eacutetico e ao dever ciacutevico de agir com retidatildeo quanto agrave questatildeo retoacuterica em si A pedagogia da aprendizagem-serviccedilo portanto trata da formaccedilatildeo de um cidadatildeo-orador algueacutem que ldquo[] pode trazer agrave tona suas habilidades discursivas quando a comunidade a que serve for obrigada a enfrentar uma decisatildeo poliacutetica ou judicial difiacutecil ou precisa celebrar seu valor cultural iacutempar ou apenas sinta-se carente de uma injeccedilatildeo de moralrdquo (CROWLEY 1989 p 318)

Essa pedagogia no entanto natildeo estaacute inteiramente livre de criacuteticas A apren-dizagem-serviccedilo vem sendo criticada como ldquo[] hiperpragmaacutetica porque precisa manter a anaacutelise criacuteticardquo (SCOTT 2004 p 301) como excessivamente idealista em suas expectativas de transformaccedilatildeo social (ROZyCKI 2002) e como desatenta agraves relaccedilotildees de poder entre as universidades e as comunidades em que se situam especialmente quando levada em conta a repentina popularidade de iniciativas para captaccedilatildeo de recursos baseadas apenas na aprendizagem-serviccedilo sem qual-quer avaliaccedilatildeo criacutetica (MAHALA e SWILKy 2003) Agrave medida que as universidades satildeo impelidas de divulgar suas parcerias comunitaacuterias para arrecadar fundos e adaptam cada vez mais suas declaraccedilotildees de missatildeo para incluir o compromisso com o serviccedilo agrave comunidade (WILLIAM AND MARy UNIVERSITy WEB 2004) ou

29 ver tambeacutem Heilker (1997) e Mauk (2003)

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A construccedilatildeo do argumento

a outros grupos locais regionais nacionais e internacionais muitos podem se sentir pressionados a buscar iniciativas ligadas agrave aprendizagem-serviccedilo sem que haja qualquer intenccedilatildeo real de transformaccedilatildeo social Aleacutem disso muito se tem questionado ndash de ambos os lados ndash a autenticidade dos propoacutesitos dos trabalhos de escrita que as situaccedilotildees retoacutericas reais podem oferecer aos estudantes para produzir textos30

Entretanto apesar do aparente apogeu da aprendizagem-serviccedilo estar chegan-do ao seu inevitaacutevel fim alguns pesquisadores tecircm se dedicado agrave defesa de inicia-tivas dessa natureza produzindo material que atesta a sustentabilidade em larga escala de programas de aprendizagem-serviccedilo em todo territoacuterio norte-americano (ROBINSON 2005 CUSHMAN 2002) Essa pedagogia adveacutem de um compromisso com a accedilatildeo democraacutetica e o serviccedilo comunitaacuterio e frequentemente eacute composta por aspectos da aprendizagem experiencial que transcende a sala de aula e trata das necessidades da comunidade local e inclui a reflexatildeo estruturada da experi-mentaccedilatildeo (SCOTT 2004) Assim as melhores praacuteticas da aprendizagem-serviccedilo e da argumentaccedilatildeo satildeo aquelas que apoiam a filosofia de Quintiliano e ao mesmo tempo contribuem para um melhor entendimento da aprendizagem experiencial da comunidade da geografia e da reflexatildeo criacutetica

A utilizaccedilatildeo de praacuteticas de aprendizagem-serviccedilo na sala de aula para o en-sino da argumentaccedilatildeo pode ser tatildeo simples quanto a sugestatildeo de um argumento proposto para combater alguma injusticcedila que assola a comunidade imediata ao mesmo tempo em que pode como sugere Mauk (2003 p381) ser uma forma de provocar nos estudantes a reflexatildeo criacutetica a respeito de cidadania e de cuidados de sauacutede

Uma investigaccedilatildeo ou tarefa comeccedila com a leitura de uma accedilatildeo poliacutetica Os alunos satildeo levados a levantar os nomes de funcionaacuterios puacuteblicos elei-

30 ver Deans (2000) e Petraglia (1995)

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A construccedilatildeo do argumento

tos ou natildeo nos acircmbitos municipal estadual ou federal Eles satildeo depois levados a produzir um pequeno texto [argumento] ou desenvolver um panfleto que explique detalhadamente como um cidadatildeo comum pode se colocar em contato com esse representante Os alunos entatildeo entregam esse texto a seus vizinhos e em um trabalho subsequente exploram o impacto do trabalho previamente divulgado Para esse segundo texto os alunos podem organizar encontros ou recorrer a outros textos sobre accedilotildees ciacutevicas

Os argumentos ligados a atividades de aprendizagem-serviccedilo podem ser ligeiramente mais complexos e servirem para que os alunos critiquem suas vi-vecircncias durante as atividades de aprendizagem ou ideais como a de ldquoalfabetizaccedilatildeo ciacutevicardquo que satildeo centrais para o modelo de Quintiliano Os estudantes tambeacutem podem discutir a escrita argumentativa e como ela se insere em aulas baseadas em aprendizagem-serviccedilo apostando diretamente como explicam Cooper e Julier (2011 p 86)

Nossos alunos pesquisaram e coletaram informaccedilotildees a respeito da emenda proposta [para proteger cidadatildeos da discriminaccedilatildeo baseada em altura peso origem familiar orientaccedilatildeo sexual porte ou presenccedila de deficiecircncia fiacutesica] publicadas na imprensa local Eles entatildeo solicitaram declaraccedilotildees de posicionamento de diferentes indiviacuteduos e organizaccedilotildees Outros alunos acompanharam o debate quando a cacircmara municipal se isentou das discussotildees atribuindo-as ao Conselho de Relaccedilotildees Humanas Contra esse pano de fundo contextual pedimos que nossos alunos dese-nhassem e conduzissem uma pesquisa de opiniatildeo puacuteblica para ajudar o Conselho de Relaccedilotildees Humanas da cidade de Lansing a decidir se reco-mendaria ou natildeo agrave cacircmara a adoccedilatildeo da regulamentaccedilatildeo [o que resultou no rascunho de um memorando] para o Conselho sugerindo medidas acerca da regulamentaccedilatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

O que eacute primordial entre as melhores praacuteticas de argumento em cursos de aprendizagem-serviccedilo que observem um modelo democraacuteticoretoacuterico de ensino de escrita eacute a ecircnfase sobre os valores ciacutevicos da resoluccedilatildeo de conflitos aleacutem do compromisso com o engajamento de estudantes ao discurso puacuteblico de forma a ldquo[] forjar declaraccedilotildees duradouras de reciprocidade ciacutevica e obrigaccedilatildeo eacuteticardquo (COOPER e JULIER 2011 p 92) Em resumo produzir bons homens e mulheres capazes de falar (e escrever) bem

esCrita atraveacutes do CurrIacuteCulo (writing across the curriculum ndash WaC) e esCrita nas disCiplinas (writing in the disciplines ndash Wid)

A escrita atraveacutes do curriacuteculo (WAC) eacute um movimento pedagoacutegico que tem como princiacutepio central a ideia de que os alunos retecircm melhor o conhecimento quando estatildeo envolvidos em atividades de escrita O modelo padratildeo do movimen-to prevecirc cursos especiacuteficos de escrita em uma variedade de disciplinas Nesses cursos os alunos sintetizam analisam e aplicam conhecimentos que adquiriram necessariamente atraveacutes da escrita Apesar de serem constantemente fundidos e confundidos a WAC e a escrita nas disciplinas(WID) possuem fundamentos dis-tintos A WID eacute um ldquo[] movimento de pesquisa que busca compreender quais os tipos de escrita que realmente ocorrem em diferentes aacutereas disciplinaresrdquo (BA-ZERMAN et al 2005 p 10) que se seguiu ao movimento WAC e preencheu um vazio teoacuterico deixado pelos especialistas que estudaram esse movimento (JONES e COMPRONE 1993) Enquanto a WAC estaacute fundamentalmente preocupada com o desenvolvimento de uma atmosfera em que a escrita eacute sistematicamente encorajada atraveacutes do treinamento de professores e do estiacutemulo aos alunos para a escrita a WID visa desvendar as distinccedilotildees teoacutericas que as diferentes visotildees disciplinares exercem no papel da escrita e examinar a fundo os tipos de escrita que ocorrem

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A construccedilatildeo do argumento

nas diversas disciplinas (BAZERMAN 2005) A WAC e a WID satildeo relevantes para as boas praacuteticas de ensino de argumento de duas formas diferentes

1 Aqueles que ensinam segundo um programa de WAC ou os que desenvol-vem pesquisas na aacuterea de WID se concentram em teorias do argumento como a base para suas atividades Diferentes formas de escrever nas disciplinas resultam tipicamente em diferentes formas de argumentar nas disciplinas2 As liccedilotildees ndash e em alguns casos os debates ndash deixados pelo estudo de WAC e WID frequentemente podem ser aplicados agrave realidade da escrita durante os cursos

Como aponta Bartholomae (1997 p 589)

[] cada vez que um aluno se senta para escrever ele precisa ldquoinventarrdquo uma universidade que se adapte agrave ocasiatildeo que ele vive ndash inventar aqui refere-se tanto agrave universidade em si quanto a suas subdivisotildees como o Departamento de Antropologia Economia ou Inglecircs O aluno nessa cir-cunstacircncia precisa aprender a falar a liacutengua de seu professor a falar como fala o acadecircmico a experimentar as diferentes e peculiares formas de saber selecionar avaliar reportar concluir e argumentar que defi-nem o discurso dessa comunidade em particular

Uma das mais antigas tentativas de teorizar sobre a construccedilatildeo de argumen-tos em diferentes disciplinas foi realizada por Toulmin (1999) em seu The Uses of Argument O autor sugere a necessidade de primeiramente se levar em conta a distinccedilatildeo entre elementos campo-invariaacutevel e campo-dependente antes de cri-ticar um determinado argumento Os elementos do campo-invariaacutevel denotam a existecircncia de convenccedilotildees como as mencionadas por Bartholomae (1997) Essas convenccedilotildees mantecircm-se relativamente em uma variedade de disciplinas Indepen-dente do campo a induccedilatildeo tem iniacutecio na proposiccedilatildeo de um problema leva em conta

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A construccedilatildeo do argumento

limitaccedilotildees e se fia em evidecircncias para construir um argumento Jaacute os elementos do campo-dependente por outro lado estatildeo em constante mutaccedilatildeo Eles incluem por exemplo os padrotildees usados para determinar quais os assuntos satildeo proacuteprios para o estudo e quais afirmaccedilotildees requerem ou natildeo uma base argumentativa Basica-mente as diferenccedilas entre as formas de escrita de historiadores e bioacutelogos estatildeo nas formas especiacuteficas que essas aacutereas defendem para a criaccedilatildeo suporte e eluci-daccedilatildeo de argumentos Os elementos do campo-dependente tambeacutem podem variar dentro de uma mesma disciplina Um exemplo disso satildeo as visotildees divergentes dos pesquisadores do ensino de escrita em inglecircs a respeito do que constitui um dado vaacutelido em uma pesquisa alguns defendem dados etnograacuteficos e observacionais enquanto outros preferem dados quantitativos e empiacutericos Essas diferenccedilas de entendimento remontam agrave compreensatildeo que os membros desses grupos especiacuteficos tecircm do que constitui induccedilatildeo e argumento vaacutelidos

Em seu claacutessico artigo Writing as a Mode of Learning Emig (1997) foi quem primeiro associou o estudo da escrita a certas questotildees sobre a WAC e WID Ela se vale das teorias de Vygotsky James Britton e outros para argumentar que a escrita eacute uma forma de aprendizagem ldquouacutenicardquo em parte porque ldquopode subsidiar o apren-dizado jaacute que consegue acompanhar seu ritmordquo (EMIG 1997 p 12) A natureza recursiva da escrita permite ao indiviacuteduo processar e compreender a informaccedilatildeo de maneira que a fala e o raciociacutenio sozinhos tendem a dificultar Foram os ensaios de Emig que legitimaram algumas tentativas pioneiras de implementar a WAC

Alguns dos debates associados agrave WAC tambeacutem tecircm implicaccedilotildees relevantes para a leitura de textos argumentativos apresentados em cursos de escrita O trabalho de Russell (1995) sobre a Teoria da Atividade desafia a noccedilatildeo de que a escrita pode ser usada em todas as disciplinas Russell (1995) se utilizou nes-se caso da teoria de Vygotsky a teoria da atividade pressupotildee a existecircncia de ldquosistemas de atividaderdquo similares a campos ou comunidades discursivas que se utilizam de contextos especiacuteficos para produzir conhecimento Esses sistemas de atividade tecircm histoacuterias de interaccedilatildeo canonizadas pela literatura e se utilizam de

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A construccedilatildeo do argumento

ferramentas tanto fiacutesicas (computadores calculadoras) quanto semioacuteticas (fala e escrita) para articular ideias e produzir conhecimento a partir do mundo Eles se modificam atraveacutes de discussotildees que ocorrem dentro deles mesmos aleacutem de emprestar e transformar ferramentas de outras disciplinas para atingir seus fins Partindo desse ponto de vista existem apenas alguns ndash se eacute que de fato existem ndash elementos do campo-invariaacutevel e nenhuma parte da escrita pode ser considerada uma habilidade autocircnoma

Para verificar a relevacircncia que os trabalhos acerca da WACWID tecircm sobre a construccedilatildeo do argumento consideremos o trabalho realizado por alunos de um curso de Economia focado em ajudaacute-los a definir construccedilotildees e termos da aacuterea Para despertar a sensibilidade para esses conceitos Palamini (1996 p 206) sugere o uso de rhetorical cases (casos retoacutericos)

O caso retoacuterico ndash ou estudo de caso retoacuterico ndash eacute um problema de uma histoacuteria independente que simula uma situaccedilatildeo real de comunicaccedilatildeo O caso disponibiliza informaccedilatildeo acerca de contextos experienciais e edu-cacionais de escritores e leitores Mais importante ele especifica uma situaccedilatildeo particular de escrita (ou foacuterum) e portanto o tipo de relacio-namento que existe entre autor e leitor ou seja seus papeacuteis organizacio-nais muacutetuos e seus propoacutesitos O aluno entatildeo assume o papel de autor e se esforccedila para explicar de maneira persuasiva como a anaacutelise econocirc-mica pode ajudar o leitor a compreender seu negoacutecio ndash ou outro tipo de problema econocircmico ndash e tomar decisotildees positivas

Para ilustrar seu meacutetodo Palamini (1996) usa o exemplo de um economista de um sindicato que discute informaccedilotildees referentes ao custo de vida com um grupo do mesmo sindicato responsaacutevel pela negociaccedilatildeo de um contrato O autor aponta o valor que esses ldquocasos retoacutericosrdquo tecircm sobre a necessidade de se considerar o puacuteblico alvo de um discurso em um determinado contexto Os economistas po-dem compreender a maneira ideal de se comunicar com seus semelhantes mas a

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A construccedilatildeo do argumento

natureza de seu trabalho envolve tambeacutem a habilidade de transmitir informaccedilotildees abstratas em uma linguagem que leigos possam compreender e utilizar No final Palamini delimita de forma mais extensiva um caso retoacuterico especiacutefico

A divisatildeo da responsabilidade do ensino de escrita eacute uma ideia que vem sendo aceita de forma lenta ndash mas constante ndash nos ciacuterculos acadecircmicos Os sistemas edu-cacionais massificados frequentemente ignoram a natureza da escrita e os alunos sofrem com o resultado de modelos redutores acriacuteticos de escrita encontrados na academia Se realmente existe a intenccedilatildeo de incentivar os estudantes a realmen-te encontrar e utilizar ferramentas de persuasatildeo mais eficazes o conhecimento da retoacuterica especializada e adequada a uma disciplina especiacutefica deveria ser um dos fundamentos das disciplinas comuns baacutesicas nas faculdades e universidades Refletir mais cuidadosamente sobre o papel da escrita na educaccedilatildeo pode levar os educadores a se interessarem mais por melhores praacuteticas de ensino e aprendi-zagem de escrita Apenas a compreensatildeo sobre como os modelos de escrita e de argumento ensinados em outros cursos diferem ou se assemelham aos modelos tradicionalmente ensinados em cursos de escrita pode permitir ajustes apropriados ao desenvolvimento de cursos e materiais didaacuteticos

Computador e esCrita

Para a maior parte dos alunos inscritos em cursos de escrita o computador e a escrita compotildeem uma parceria natural os rascunhos podem ser escritos e re-visados com a ajuda de vaacuterios programas de ediccedilatildeo de textos e-mails e papos on line satildeo redigidos e enviados agraves duacutezias diariamente A escrita produzida eletroni-camente jaacute domina atualmente os estudos sobre a escrita mas obviamente nem sempre foi assim Haacute alguns anos quando os programas de ediccedilatildeo de texto eram ainda restritos a uma ou outra plataforma e a disponibilidade de computadores pessoais se resumia a um sonho futuriacutestico os especialistas em escrita se dividiam sobre o impacto que a tecnologia e os computadores teriam sobre o campo

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A construccedilatildeo do argumento

Em 1983 foi criada a revista Computers and Composition que discutia ndash e ainda discute ndash a teoria e a praacutetica do uso de computadores na escrita Nos artigos publicados surgiram os mais importantes debates sobre o assunto Aleacutem disso nas paacuteginas de Computers and Composition os principais especialistas do campo (como Kate Kiefer Cynthia Selfe e Gail Hawisher que compotildeem um triunvirato pioneiro) continuam publicando seus estudos Qualquer professor interessado em compreender a histoacuteria e a evoluccedilatildeo do papel dos computadores no campo da escrita deve iniciar seus estudos consultando esse perioacutedico

Considerando-se que esse campo eacute ainda novo e as reaccedilotildees polarizadas de muitos professores agrave utilizaccedilatildeo da tecnologia diferentes visotildees sobre computador e escrita podem ser encontradas em vaacuterios artigos Um dos primeiros desses artigos publicado em Computers and Composition apresenta um debate entre professores de escrita teria a escrita por computador ldquo[] o potencial para produzir uma me-lhora global na qualidade dos textos dos nossos alunosrdquo (MORAN 2003 p 347) Brownell (1984 p 3) atesta que ldquo[] os editores de texto possibilitam escrever mais em menos tempo e realmente fazem de noacutes melhores escritoresrdquo Essa declaraccedilatildeo no entanto foi prontamente contestada por McAllister (1985) Sommers e Collins (1985) e mais tarde tambeacutem por Dowling (1994) e Collier (1995) Os professores interessados no assunto podem utilizar esse argumento para verificar a origem da polaridade entre tecnoacutefilos que acreditam no impacto positivo dos computadores sobre a escrita e os especialistas mais cautelosos (HARRIS 1995 BANGERT-DRO-WNS 1993) que acreditam serem necessaacuterias mais avaliaccedilotildees e mais evidecircncias concretas da eficaacutecia ou falecircncia do meacutetodo antes de incluir computadores nas aulas de escrita E o debate continua Muitos pesquisadores acreditam e utilizam as opiniotildees dos alunos para direcionarem sua proacutepria avaliaccedilatildeo acerca do ensino de escrita em salas de aula computadorizadas como fazem Gos (1996) Duffelmeyer (2001) e LeCourt e Barnes (1999) pioneiros na aacuterea

Igualmente eacute bastante debatida a forma como as tecnologias emergentes impactam o estudo e o ensino de argumentaccedilatildeo O avanccedilo contiacutenuo na criaccedilatildeo de

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A construccedilatildeo do argumento

hardware software e perifeacutericos abre muitas possibilidades (e potenciais armadi-lhas) agrave vida de professores de argumentaccedilatildeo Stephens (1984) foi um dos primeiros especialistas a teorizar a respeito do impacto dos computadores sobre a argumen-taccedilatildeo e a declarar que essas ferramentas aumentam as habilidades argumentativas dos estudantes Eacute loacutegico que no momento em que Stephens pensava suas teorias em 1984 os computadores eram sinocircnimos de editores de texto Conforme o seacuteculo XX avanccedila no entanto ocorre uma variedade nova de meacutetodos agrave disposiccedilatildeo de um professor muitos especialistas criaram hipoacuteteses acerca de como argumentar em ambientes hipertextuais de maneira eficaz por exemplo Marshall (1987) Conklin e Begeman (1987) Bolter (1991) Landow (1992) e Kolb (2005) Carter (2003) dis-cute a argumentaccedilatildeo em hipertexto de maneira bastante detalhada utilizando-se extensivamente do trabalho realizado por Perelman (2001) Williams (2002) a partir do ponto de vista de Toulmin declara que a interaccedilatildeo eacute fundamental para a utilizaccedilatildeo da persuasatildeo na Web Kajder e Bull (2003) e Williams e Jacobs (2004) exploram como os blogs podem oferecer aos estudantes uma consciecircncia a respeito do puacuteblico alvo aleacutem de oferecer um componente dialoacutegico crucial para a constru-ccedilatildeo de argumentos eficazes

Para os professores que datildeo aulas em ambiente digital McAlister Ravenscroft e Scanlon (2004) e Coffin e Hewings (2005) apresentam sugestotildees de como usar esses espaccedilos para garantir suporte agrave colaboraccedilatildeo e agrave construccedilatildeo de argumentos de maneira mais eficaz Para os especialistas que buscam um tratamento mais teacutecnico sobre a forma como a tecnologia pode se relacionar agrave argumentaccedilatildeo as ciecircncias da computaccedilatildeo jaacute dedicaram consideraacutevel espaccedilo ao assunto como pode ser observado nos trabalhos de Andriessen (2003) Baker (2006) Reed e Norman (2004) Kirschner Buckingham e Carr (2003) e McElholm (2002)

Para professores que buscam uma abordagem mais praacutetica haacute uma seacuterie de websites acadecircmicos agrave disposiccedilatildeo A citaccedilatildeo e confiabilidade de fontes online no entanto permanece ocupando uma posiccedilatildeo de suma importacircncia jaacute que os estu-dantes tendem cada vez mais a confiar em websites para fundamentar e pesquisar

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A construccedilatildeo do argumento

seus argumentos ndash sem no entanto atribuir a devida atenccedilatildeo ao ethos da fonte As livrarias online da Cornell University da UC Berkeley University e da New Mexico State University oferecem uma amostra abrangente de perguntas a serem realiza-das na hora de avaliar fontes digitais Muitas outras universidades oferecem em seus ambientes online recursos de ensino e aprendizagem

O laboratoacuterio Purdue Online Writing Lab (OWL) foi um dos primeiros laboratoacute-rios de escrita digital nos Estados Unidos e se manteacutem entre os mais importantes oferecendo uma variedade de heuriacutesticas e ideias para uma escrita eficaz A Dart-mouth College oferece um site abrangente inteiramente devotado ao ensino online incluindo materiais didaacuteticos artigos sobre o ensino atraveacutes do uso de tecnologia e estudos de caso de professores que se utilizaram da Internet como ferramenta de ensino O website da Schoolcraft College oferece materiais do mesmo tipo incluindo exerciacutecios planilhas moacutedulos de ensino e materiais sobre o ensino de argumenta-ccedilatildeo A comunidade virtual Lingua MOO tambeacutem oferece a professores um espaccedilo em que materiais didaacuteticos adicionais relacionados agrave tecnologia e argumentaccedilatildeo podem ser encontrados

As fontes listadas aqui oferecem um bom ponto de partida para professores que querem explorar o impacto de tecnologias da computaccedilatildeo sobre a escrita e o ensino de argumentaccedilatildeo Os professores que desejem encontrar mais materiais acerca das aplicaccedilotildees praacuteticas e teoacutericas do ensino de argumentaccedilatildeo atraveacutes de uma variedade de aplicativos espaccedilos e ferramentas eletrocircnicos devem comeccedilar acompanhando as discussotildees dos artigos de Computers and Composition seja na versatildeo impressa ou digital Outro excelente ponto de partida satildeo os sites acadecircmi-cos como o Lingua MOO em que a aplicaccedilatildeo praacutetica de tecnologias de ponta pode usualmente ser encontrada em primeira matildeo

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retoacuteriCa visual

Em A New Rhetoric Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969) discorrem sobre a importacircncia da ldquopresenccedilardquo para a argumentaccedilatildeo No texto os autores descrevem presenccedila como a combinaccedilatildeo de forma e substacircncia que influencia psicologica-mente a audiecircncia atraveacutes do uso de teacutecnicas como omissatildeo ecircnfase escolha e seleccedilatildeo Ainda que os autores natildeo discutam profundamente os usos extra verbais do recurso visual parece claro que esse conceito que enfatiza a necessidade de se colocar algo frente a frente com a audiecircncia eacute particularmente importante para a retoacuterica visual Aliaacutes pode-se afirmar que se trata do tipo de apelo mais pene-trante e frequente em nossa cultura As retoacutericas visuais de revistas (um anuacutencio brilhante em paacutegina dupla na revista Vanity Fair em que a marca Lancocircme mostra uma jovem modelo relaxando num belo vestido de veratildeo cor de rosa convidando os leitores a ldquodespertar para a nova primaverardquo) da televisatildeo (o jogador de baseball Alex Rodrigues com um sorriso paciente ajudando crianccedilas a aprender os funda-mentos do jogo num comercial para os clubes infantis de baseball da liga Boys and Girls Clubs of America) e da Internet (no site internacional do Greenpeace a imagem de um bebecirc orangotango com seus grandes olhos arredondados ao lado do texto ldquoEssa Terra fraacutegil precisa de uma voz Ela precisa de soluccedilotildees mudanccedilas accedilatildeordquo) estatildeo entre as cerca de 3000 mensagens que o cidadatildeo meacutedio encontra dia apoacutes dia que satildeo predominantemente visuais em seu apelo persuasivo

No entanto temos sido relativamente lentos em nossa capacidade de realmente abraccedilar a retoacuterica visual como parte dos estudos de escrita retoacuterica e argumen-taccedilatildeo Handa (2004 p 305) aponta esse fato mais claramente

As disciplinas de escrita e de retoacuterica claacutessica abordam a retoacuterica e a argumentaccedilatildeo em termos estritamente verbais Nos estudos de escrita os especialistas natildeo concordam sob nenhum aspecto universalmente a respeito da capacidade que as imagens tecircm ou natildeo de apresentar ar-gumentos especialmente quando levada em consideraccedilatildeo a definiccedilatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

claacutessica de argumento uma sequecircncia linear de alegaccedilotildees contra ale-gaccedilotildees e evidecircncias Se as imagens satildeo capazes de apresentar um argu-mento completo quando utilizadas sozinhas ou se isso soacute acontece ao combinaacute-las a palavras e frases eacute um assunto ainda mais contencioso

Para os leitores que cresceram em uma cultura dominada pelo imaginaacuterio e natildeo pela miacutedia impressa o poder persuasivo de imagens signos e siacutembolos parece um fato oacutebvio Porque entatildeo nossas disciplinas tecircm resistido tanto em considerar a retoacuterica visual como um campo legiacutetimo de estudo

Stroupe (2000 p 10) ajuda a situar esse fenocircmeno ao salientar que os pro-gramas de ensino de retoacuterica e escrita estatildeo frequentemente limitados aos depar-tamentos de idiomas satildeo justamente os responsaacuteveis por uma defesa estanque da cultura da palavra impressa e sua ldquo[] costumeira rejeiccedilatildeo do discurso popular predominantemente visualrdquo O medo da tecnologia (especialmente do computador) e o desdeacutem pelo texto ldquopopularrdquo contribuiacuteram profundamente para essa margi-nalizaccedilatildeo precoce da retoacuterica visual na disciplina de escrita A retoacuterica visual complementa claramente uma seacuterie de disciplinas No entanto como ocorre com outros ldquonovosrdquo campos de estudo tambeacutem pode ameaccedilar a hegemonia de disci-plinas academicamente estabelecidas ao colocar sua coerecircncia interna limites e pressuposta completude sob questionamento Tendo esses obstaacuteculos em vista eacute mais faacutecil compreender o ritmo lento do (re)aparecimento e total estabelecimento dos estudos visuais

A reticecircncia demonstrada pelos estudos de retoacuterica e escrita em dar as boas--vindas ao estudo da retoacuterica visual eacute bastante irocircnica haja vista a importacircncia da imagem visual ao longo da histoacuteria para as duas disciplinas desde seus primoacuter-dios Aristoacuteteles reconheceu o poder da metaacutefora e da visualizaccedilatildeo e Quintiliano afirmou que a visualizaccedilatildeo eacute uma das formas mais claras de manipular emoccedilotildees Platatildeo atribuiu grande importacircncia agrave luz e agrave visatildeo tanto no mundo extrassensorial quanto no sensorial Curtius (1973) descreve como em tempos medievais a retoacuterica epidiacutetica (com maior ecircnfase na apresentaccedilatildeo visual) se tornou mais importante

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A construccedilatildeo do argumento

que a retoacuterica deliberativa Hobbs (2002) afirma que Francis Bacon ao chamar emblemas de imagens aceitou a premissa de que as imagens satildeo mais memoraacuteveis que as palavras A autora recorre agrave uma citaccedilatildeo de Bacon para essa constataccedilatildeo

Eacute mais faacutecil reter a imagem de um esportista que caccedila uma lebre de um farmacecircutico que organiza suas caixas de um rapaz que recita versos ou de um ator durante uma performance do que reter as noccedilotildees correspon-dentes de invenccedilatildeo disposiccedilatildeo eloquecircncia memoacuteria (e) accedilatildeo (HOBBS 2002 p 60)

Os ldquonovos retoacutericosrdquo do Iluminismo Escocecircs (Smith Blair Lord Kames e Cam-pbell entre outros) tambeacutem foram influenciados pela centralizaccedilatildeo da imagem e da imaginaccedilatildeo propostas por Bacon Os termos e conceitos hoje reconhecidos como parte integral e relevante dos estudos visuais apresentam a maior riqueza de seus antecedentes histoacutericos da retoacuterica Hunter Gardner (2004) Kress e Van Leeuwen (1996) estatildeo entre os especialistas que lideram as discussotildees acadecircmicas acerca da necessidade de se dar maior atenccedilatildeo agrave retoacuterica visual

Haacute vaacuterias aplicaccedilotildees relevantes da retoacuterica visual em sala de aula Um dos primeiros textos a demonstrar como incorporar o estudo da imagem nas aulas de escrita foi Seeing the Text de Bernhardt (1986) Neste ensaio o autor afirma que ateacute a palavra impressa eacute inerentemente visual por depender de arranjos espaciais e decisotildees (como estilo e tamanho de fontes localizaccedilatildeo de espaccedilos em branco e divisatildeo de paraacutegrafos etc) que satildeo de natureza retoacuterica Ele tambeacutem apresenta uma lista de fatos relevantes acerca do ambiente produzida por cidadatildeos conservadores e poliacuteticos em busca de proteccedilatildeo legislativa de aacutereas de manancial e alagadiccedilas A forma como Bernhardt analisou a construccedilatildeo dessa lista serve como importante introduccedilatildeo agrave noccedilatildeo de que a retoacuterica visual natildeo precisa necessariamente incluir fotos desenhos signos ou siacutembolos aleacutem de servir como ponto de comparaccedilatildeo para as milhares de publicaccedilotildees dessa natureza sejam elas listas de importacircncia ciacutevica panfletos que defendem causas ou websites

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A construccedilatildeo do argumento

No texto Reading the Visual in College Writing Classes Hill (2003) partilha al-gumas de suas proacuteprias teacutecnicas para introduccedilatildeo da retoacuterica visual na sala de aula Seus exemplos satildeo diversificados e cobrem desde o arranjo dos espaccedilos entre as linhas do texto e o tamanho dessas linhas (como faz Bernhardt 1996) passando pela anaacutelise retoacuterica de fotografias famosas (como a dos fuzileiros navais dos Es-tados Unidos erguendo a bandeira americana no solo de Iwo Jima no Japatildeo) ateacute a desconstruccedilatildeo de valores culturais escondidos de maneira subliminar em um anuacutencio impresso de uma empresa que vende seguros de vida A anaacutelise apresen-tada por Hill (2003) de cada um desses exemplos ajuda a demonstrar claramente a diversidade de apelos visuais de persuasatildeo e oferece a professores e alunos uma fundamentaccedilatildeo pedagoacutegica firme a partir da qual pode explorar outros exemplos de retoacuterica visual

Para os professores que pretendem continuar explorando as conexotildees entre retoacuterica e cultura visual os artigos de Frascina (2003) e Zagacki (2005) oferecem uma anaacutelise complementar das pinturas de Norman Rockwell Frascina compara os originais de Rockwell inspirados na Segunda Guerra Mundial com as versotildees digitalmente alteradas produzidas pelo jornal The New York Times apoacutes os aten-tados de 11 de setembro de 2001 numa tentativa de demonstrar a ldquomemoacuteria cul-tural coletivardquo que imagens poderosas podem construir Zagacki usa as pinturas de Rockwell sobre direitos civis para ilustrar como as obras de arte visuais ldquo[] podem operar na retoacuterica para articular o conhecimentordquo e moldar a percepccedilatildeo do puacuteblico Os dois trabalhos oferecem excelentes oportunidades para os professores apresentarem aos seus alunos os conceitos e meacutetodos da retoacuterica visual aleacutem de orientaacute-los a respeito de como os apelos imageacuteticos persuasivos podem ser ana-lisados e desconstruiacutedos

Exemplos praacuteticos de outros gecircneros da retoacuterica visual tambeacutem existem Em Understanding Comics The Invisible Art McCloud (1994) utiliza quadrinhos de forma criativa para analisar as praacuteticas retoacutericas aiacute empregadas A anaacutelise dos componentes retoacutericos verbais e visuais do filme The Usual Suspects (Os Suspeitos

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A construccedilatildeo do argumento

filme de 1995 lanccedilado no Brasil em 1996 e dirigido por Brian Singer) realizada por Blakesley (2003) oferece um raciociacutenio estrutural que pode ser aplicado ao estudo da retoacuterica visual no cinema Jaacute Television News as Rhetoric de Smith (1977) funciona bem em conjunto com The Rhetoric of Television News de Nydahl (1986) e com Uses of Television Hartley (1999) para oferecer exemplos representativos de estudo e aplicaccedilatildeo da retoacuterica televisiva Os professores que desejam combinar estudos sobre televisatildeo e cinema podem optar pelo artigo de Rosteck (1989) que analisa a estrutura argumentativa de Report on Senator McCarthy de Edward R Murrow uma parte integrante da seacuterie documental See It Now Esse artigo tambeacutem analisa o filme de George Clooney Good Night and Good Luck 2005) que apresenta outra visatildeo sobre o mesmo episoacutedio histoacuterico

Aqueles que se interessem pela retoacuterica aplicada aos videogames e pelas cons-tantes discussotildees acerca dos impactos nocivos de jogos violentos podem consultar Lachlan (2003) e Smith (1977) aleacutem das incontaacuteveis mateacuterias jornaliacutesticas que cobrem o debate entre Joseph Lieberman designers de jogos e jogadores de todo o mundo (o site wikipediaorg oferece uma excelente cobertura desse assunto) Todo esse material pode tambeacutem ser combinado aos videogames Doom Doom 3 e ao filme Doom The Movie (2005 dirigido por Andrzej Bartkowiak) para exemplificar de forma praacutetica a maneira como as diferentes retoacutericas visuais impactam o assunto

Os proacuteximos anos veratildeo os estudos da retoacuterica visual ganhando cada vez mais status em todas as disciplinas acadecircmicas relevantes incluindo retoacuterica e escrita Os professores que vislumbram o futuro comeccedilaratildeo a ampliar seus conhecimentos da teoria e pedagogia da retoacuterica visual (aproveitando a proliferaccedilatildeo de exemplos culturais disponiacuteveis a seu redor) como forma de se prepararem para a crescente consciecircncia acadecircmica do apreccedilo pelo poder de persuasatildeo de uma imagem e de textos visualmente persuasivos

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A construccedilatildeo do argumento

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GlOssaacuteriO31

Neste glossaacuterio tentamos ser concisos na definiccedilatildeo e descriccedilatildeo dos termos Trata-se de um glossaacuterio especiacutefico para nossa forma de tratar o ensino da cons-truccedilatildeo do argumento neste livro Isso significa que alguns termos especiacuteficos do recorte terminoloacutegico de Kenneth Burke aparecem entre os termos tradicionais Tambeacutem natildeo se trata de uma lista definitiva ou exaustiva jaacute que satildeo muitos os termos da retoacuterica usados quando se fala de ensino do argumento

Para outras definiccedilotildees de termos-chave retoacutericos os leitores interessados devem consultar um dos trabalhos de referecircncia da aacuterea como a Encyclopedia of Rhetoric editado por Thomas Sloane a Encyclopedia of Rhetoric and Composition editado por Theresa Enos ou Sourcebook on Rhetoric de James Jasinski

Accedilatildeo vs Movimento ndash Em A Grammar of Motives Burke (1966 p 14) define accedilatildeo como o ldquo[] corpo humano em movimento consciente e intencionalrdquo Accedilatildeo eacute algo que apenas humanos satildeo capazes de fazer A capacidade de agir por sua vez eacute um preacute-requisito para escolhas morais Uma bola de baseball eacute capaz de movimentar mas natildeo de agir porque ela ldquo[] nem eacute moral e nem imoral ela natildeo pode agir pode apenas mover ou ser movidardquo (BURKE 1966 p 136) Para Burke a accedilatildeo envolve o ato de mover em direccedilatildeo ao ideal criando novidade durante o percurso As transformaccedilotildees afetadas pela accedilatildeo satildeo necessariamente parciais por necessidade devido ao paradoxo da substacircncia Ver tambeacutem Maacutegica Paradoxo da Substacircncia

31 Traduccedilatildeo Marcus Mussi

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A construccedilatildeo do argumento

Argumento agoniacutesticoeriacutestico ndash Do grego agon que significa concurso ou conflito e eris que significa contenda o argumento agoniacutestico ou eriacutes-tico representa um modelo de argumento que enfatiza conflito e disputa e ocorre quando a perspectiva de algueacutem avanccedila em detrimento de outrem O argumento agoniacutesticoeriacutestico tem sido visto por escolas feministas entre outras como um modelo patriarcal baseado na polecircmica que pro-move dissenso mais do que consenso Aleacutem disso o argumento eriacutestico tem sido criticado por ser irrealista Muitos modelos contemporacircneos de argumento satildeo complexos e natildeo defendem a derrota do adversaacuterio mas um propoacutesito mais realista como aumentar ou diminuir a adesatildeo de participantes ou a identificaccedilatildeo com a posiccedilatildeo argumentativa eou a perda de adesatildeo ou identificaccedilatildeo com posiccedilotildees alternativas

Analogia ndash Ver Invenccedilatildeo

Argumento rogeriano ndash Eacute um tipo de argumento que tenta explorar eou resolver problemas atraveacutes da escuta empaacutetica O princiacutepio funda-mental eacute considerar a comunicaccedilatildeo do ponto da compreensatildeo de outra pessoa Para participar da comunicaccedilatildeo autecircntica exige-se que as ideias e as atitudes de outras pessoas sejam vistas tatildeo profundamente a ponto de ser possiacutevel sentir como a pessoa sente O objetivo eacute promover uma mudanccedila de perspectiva ou modificar a concepccedilatildeo da realidade de ou-tra pessoa de modo que uma cooperaccedilatildeo uacutetil seja possiacutevel Existem trecircs estrateacutegias (1) tranquilizar a pessoa sobre o fato de que ela estaacute sendo compreendida (2) descobrir a validade do posicionamento da pessoa e (3) encontrar aacutereas de similaridade Um dos problemas do argumento rogeriano eacute a praacutetica de identificar no iniacutecio da argumentaccedilatildeo um possiacutevel

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resultado Potencialmente pode tambeacutem ser usado para fins manipu-lativos Se usado como teacutecnica a identificaccedilatildeo pode natildeo ser vista como sincera criando uma falsa sensaccedilatildeo de empatia

Atitude ndash Burke usa cinco termos para explicar os motivos humanos accedilatildeoato agente agecircncia propoacutesito e cenaacuterio Mais tarde ele adicionou atitude para descrever a maneira como o ato eacute conduzido Eacute um precursor do ato que ele chama de ldquoato incipienterdquo A retoacuterica conduz as pessoas para o ato ou a moldar suas atitudes de tal forma que cheguem ao ato As pessoas natildeo satildeo forccediladas a agir satildeo convencidas Os atos entatildeo se tornam as representaccedilotildees de nossas atitudes

Casuiacutestica ndash ldquoAs direccedilotildees geral e particular da retoacuterica se sobrepotildeem na medida em que todos os casos uacutenicos necessariamente envolvem a aplicaccedilatildeo dos toacutepicos universais para a questatildeo particular Assim mesmo as situaccedilotildees consideradas muito amplas podem apresentar exclusivida-derdquo (BURKE 1969 p 72) Para Burke a casuiacutestica eacute uma filosofia um princiacutepio geral que se aplica a situaccedilotildees especiacuteficas Embora a casuiacutestica assuma conotaccedilotildees negativas para muitos analistas contemporacircneos Burke ver isso como inevitaacutevel Entretanto ldquoa extensatildeo casuiacutesticardquo eacute fre-quentemente necessaacuteria para persuadir as pessoas de que em um sistema original (como a Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos por exemplo) ainda eacute viaacutevel apesar de novas variaacuteveis temporais e espaciais Ver tambeacutem Identificaccedilatildeo Paradoxo da substacircncia

Consubstancialidade ndash Ver Identificaccedilatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

Cortejo ndash Para Kenneth Burke o cortejo eacute uma forma de persuasatildeo que opera atraveacutes da identificaccedilatildeo em que uma ldquoentidaderdquo persuade outra Para que o cortejo exista cada entidade deve pertencer a uma classe separada o que leva ao que Burke se refere como ldquoestranhamentordquo No acircmbito individual esse estranhamento reside na diferenccedila entre os se-xos No mundo social a diferenccedila entre os sexos equivale agraves diferenccedilas entre classes sociais Burke refere-se agrave comunicaccedilatildeo entre as classes como cortejo ldquoabstratordquo No acircmbito do cortejo abstrato os membros de classes sociais mais altas tentam a controlar as classes menos privi-legiadas atraveacutes da ldquodoutrinardquo e da ldquoeducaccedilatildeordquo Assim ldquoo princiacutepio do cortejordquo na retoacuterica quer dizer ldquoo uso de dispositivos persuasivos para a transcendecircncia do estranhamento socialrdquo (BURKE 1969 208) Nessa relaccedilatildeo de estranhamento social os grupos satildeo ldquomisteacuteriosrdquo uns para os outros e esse misteacuterio pode ser convertido em poder Um professor por exemplo pode permanecer em silecircncio durante grande parte de tempo de modo a dar gravidade agraves perguntas que ele faz parecendo assim ldquoinspecionar as profundezas de coisasrdquo aos olhos do aluno (BURKE 1969 p 210) O cortejo de Burke difere do de Perelman e da noccedilatildeo de adesatildeo de Olbrecht-Tyteca na medida em que natildeo prever explicitamente que a persuasatildeo aumenta o grau de concordacircncia com o locutor Um grau de adesatildeo da audiecircncia ao argumento do locutor pode variar muito Em contraste o cortejo focaliza principalmente a relaccedilatildeo desigual entre o persuasor e os persuadidos em vez de empregar significados geralmente considerados ldquopersuasivosrdquo Atraveacutes do cortejo o ldquocortesatildeordquo jaacute comanda uma certa ldquocaptaccedilatildeordquo do puacuteblico Assim essa audiecircncia ldquocortejadardquo an-seia transcender a abertura do estranhamento social para unir-se com o persuasor quando ele ldquotimidamenterdquo manteacutem essa distacircncia e portanto a captaccedilatildeo e o poder

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A construccedilatildeo do argumento

Dialeacutetica ndash Na primeira frase da Retoacuterica Aristoacuteteles define retoacuterica como a contrapartida da dialeacutetica Retoacuterica e dialeacutetica satildeo faculdades de provimento de argumentos Historicamente a dialeacutetica eacute vista agraves vezes como a contrapartida da retoacuterica agraves vezes como competidora da retoacuterica Aristoacuteteles distingue o raciociacutenio demonstrativo (causal) do raciociacutenio dialeacutetico (natildeo causal ou contingente) definindo o uacuteltimo como ldquoraciociacute-nio de opiniotildeesrdquo que satildeo geralmente vistas como verdades provaacuteveis O raciociacutenio dialeacutetico pode ocorrer entre interlocutores ou pode ser uma interrogaccedilatildeo interna O Meacutetodo Socraacutetico eacute o mais conhecido exemplo de um raciociacutenio dialeacutetico se caracteriza por uma proposiccedilatildeo inicial seguida de uma conclusatildeo por perguntas e respostas e da aplicaccedilatildeo da lei da contradiccedilatildeo O raciociacutenio dialeacutetico eacute um teste para a verdade um processo de criaccedilatildeo de significado As proposiccedilotildees devem ser garanti-das antes do argumento Uma proposiccedilatildeo eacute dialeticamente assegurada quando ela passa pela lei da contradiccedilatildeo O modelo hegeliano de dialeacutetica envolve a tese (uma proposiccedilatildeo) a antiacutetese (a contradiccedilatildeo da proposiccedilatildeo) e a siacutentese (uma incorporaccedilatildeo dos dois primeiros elementos)

Doxa ndash Eacute a palavra grega que significa opiniotildees comuns ou populares Eacute a raiz de palavras como ldquoortodoxiardquo (opiniatildeo reta) e ldquoparadoxordquo (opini-otildees opostas) Doxa satildeo as opiniotildees agraves vezes sistematizadas geralmente aceitas por uma comunidade A noccedilatildeo de doxa situa o locus da autoridade fora do individual e no interior da comunidade As opiniotildees de pessoas individuais satildeo natildeo somente delas mas tambeacutem de muitas outras o que confere maior importacircncia a essas opiniotildees Situar as opiniotildees fora do escopo do indiviacuteduo tambeacutem abre a porta para que a persuasatildeo ocorra

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A construccedilatildeo do argumento

Entimema ndash Agraves vezes chamado de ldquosilogismo truncadordquo o entimema deixa de fora uma premissa e espera que seja fornecida tacitamente pela audiecircncia O entimema portanto natildeo deve ser julgado pelas convenccedilotildees de validade formal mas pelas leis da probabilidade Quanto mais ampla-mente a premissa eacute aceita mais provaacutevel eacute o consentimento da audiecircncia com o argumento do entimema Aristoacuteteles rotulou o entimema a ldquosubs-tacircncia da persuasatildeo retoacutericardquo Como haacute pouca coisa que pode ser tomada como certa os oradores devem confiar nas crenccedilas e pressupostos de sua audiecircncia

Espeacutecies de retoacuterica ndash Para Aristoacuteteles existem trecircs tipos de discurso cada um com sua proacutepria ecircnfase temporal Em primeiro lugar o discurso epidiacutedico (cerimonial) tem a ver com louvor ou culpa Um exemplo des-se tipo de discurso eacute o elogio O orador usa o discurso cerimonial para reforccedilar atitudes e crenccedilas importantes no presente Em segundo lugar discurso deliberativo eacute um apelo para algum tipo de accedilatildeo tipicamente legislativa que ou exorta ou dissuade de um determinado plano de accedilatildeo Em terceiro lugar o discurso forense (judicial) determina a culpa a inocecircncia ou a causalidade baseado em um exame de eventos passados

Esquema de Toulmin ndash O esquema e a terminologia de Toulmin para analisar e criar argumentos satildeo frequentemente usados no ensino do argumento No centro do modelo de Toulmin encontram-se vaacuterios termos-chave Todos os argumentos apresentam uma demanda com base em dados Uma garantia eacute uma proposiccedilatildeo geral que estabelece uma conexatildeo entre a demanda e os dados As garantias geralmente precisam de apoio ou suporte (evidecircncias que ajudam a provar a garantia) A demanda pode precisar tambeacutem de um qualificador (para evitar a

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A construccedilatildeo do argumento

linguagem absolutista) e condiccedilotildees de refutaccedilatildeo (exceccedilotildees para a regra formulada pela demanda) para maximizar seu potencial persuasivo O esquema de Toulmin provou ser aplicaacutevel em disciplinas acadecircmicas a argumentos populares

Ethos ndash Ver Pisteis

Exemplo Ilustraccedilatildeo Modelo ndash Perelman e Olbrechts-Tyteca analisam como os oradores procuram estabelecer uma comunhatildeo com o puacuteblico atraveacutes de um caso particular sob a forma de exemplo que torna possiacute-vel a generalizaccedilatildeo ilustraccedilatildeo que fornece suporte para a generalizaccedilatildeo estabelecida e modelo que incentiva a imitaccedilatildeo Esses termos podem ser definidos da seguinte forma

a Exemplo uma instacircncia especiacutefica que fornece uma base para uma regra e atua como ponto de partida de uma generalizaccedilatildeo Um exemplo deve ser pelo menos provisoriamente um fato Os exemplos servem tan-to para ilustrar uma generalizaccedilatildeo como para estabelecer a verdade da generalizaccedilatildeo De acordo com Perelman grande parte de um argumento eacute concebido para levar a audiecircncia a reconhecer fatos natildeo vaacutelidos (ou seja os exemplos que contradizem generalizaccedilotildees ou regras que tambeacutem admitem) Para Aristoacuteteles as provas surgem na forma de entimema ou exemplo Um exemplo natildeo eacute a relaccedilatildeo da parte com o todo nem do todo com a parte nem de um todo com outro todo Ao contraacuterio o exemplo eacute a relaccedilatildeo da parte com a parte de um igual com outro igual Os exemplos podem ser histoacutericos (que faz referecircncia a eventos passados) ou inventa-dos (Aristoacuteteles identificou a faacutebula como um tipo de exemplo inventado)

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A construccedilatildeo do argumento

b Ilustraccedilatildeo A ilustraccedilatildeo procura criar uma regra abstrata ou uma ideia concreta atraveacutes de um caso particular Ela promove a compreensatildeo da regra Enquanto os exemplos devem ser inquestionaacuteveis as ilustraccedilotildees natildeo precisam As ilustraccedilotildees podem ser detalhadas mas os exemplos devem ser concisos para evitar distraccedilatildeo

c Modelo Os modelos satildeo ilustraccedilotildees idealizadas de uma regra geral Os modelos natildeo devem ser apenas compreendidos devem ser imitados

Falaacutecias Informais ndash No sentido mais geral falaacutecias satildeo argumentos imperfeitos Os argumentos podem ser falaciosos devido a falhas em sua estrutura e na sua forma Isso constitui as falaacutecias formais Os argumentos que satildeo invaacutelidos por qualquer outro motivo aleacutem da forma constituem as falaacutecias informais As falaacutecias informais aparecem de muitas formas Um exemplo de uma falaacutecia informal eacute uma ldquorelaccedilatildeo falsardquo a alegaccedilatildeo de que dois grupos diferentes que natildeo tecircm nenhum viacutenculo loacutegico estatildeo contudo conectados A Wikipedia apresenta como exemplo de uma re-laccedilatildeo falsa a anaacutelise de venda de sorvete em uma cidade Satildeo vendidos mais sorvetes quando a taxa de afogamentos da cidade eacute maior Alegar que as vendas de sorvete causam afogamento seria implicar uma relaccedilatildeo falsa entre esses dois eventos Na realidade uma onda de calor pode ser a causa de ambos Para um tratamento mais completo sobre relaccedilatildeo entre as falaacutecias informais e a construccedilatildeo de argumentos ver Fulkerson (1996)

Heuriacutestica ndash Ver Invenccedilatildeo

Identificaccedilatildeo ndash Para Burke o conceito de identificaccedilatildeo eacute central para a retoacuterica e para o argumento A identificaccedilatildeo nos termos de Burke se ba-seia nos conceitos de fusatildeo e divisatildeo Uma pessoa A deseja se relacionar

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com uma pessoa B se elas tecircm interesses em comum ou se for persuadida a acreditar que esses interesses existem ldquo[] ao ser identificado com B A eacute lsquosubstancialmente umrsquo em relaccedilatildeo a outra pessoa que natildeo seja ela mesmardquo (BURKE 1969 p 21) No processo de agir em conjunto os in-diviacuteduos compartilham sensaccedilotildees conceitos ideias e atitudes O termo de Burke para isso eacute consubstancialidade uma maneira de ldquoagir juntosrdquo Para esclarecer isso Burke fala de consubstancialidade em termos de relaccedilotildees entre pais e filhos Por exemplo uma crianccedila eacute consubstancial com seus pais no sentido de que eacute ao mesmo tempo sua prole e um su-jeito autocircnomo Um miacutenimo de separaccedilatildeo (divisatildeo) sempre existe pois cada pessoa eacute ldquo[] uacutenica um locus individual de motivosrdquo (BURKE 1969 p 21) Atraveacutes da identificaccedilatildeo a retoacuterica e a argumentaccedilatildeo se tornam possiacuteveis pois os argumentos usam os princiacutepios de fusatildeo e divisatildeo para permitir atitudes e persuadir Ver tambeacutem Paradoxo da substacircncia

Ilustraccedilatildeo ndash Ver Exemplo

Imparcialidade ndash Eacute a condiccedilatildeo de ser membro de um grupo que seraacute afetado pelo efeito de um argumento sem ter sua decisatildeo influenciada por isso como ldquoum juiz imparcialrdquo que aplica as leias a todos inclusive a ele mesmo A imparcialidade portanto envolve o equiliacutebrio entre todos os pontos de vista de um argumento Isso contrasta com a objetividade conforme proposta por Perelman pois nesse caso a neutralidade eacute man-tida porque o orador espera natildeo ser atingindo pelo efeito do argumento

Ineacutercia ndash Em A Nova Retoacuterica Perelman e Olbrechts-Tytecha usam o termo ldquoineacuterciardquo para designar a resistecircncia humana agrave mudanccedila Inspirando-se na Fiacutesica os autores descrevem a ideia de que as atitudes as crenccedilas e

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A construccedilatildeo do argumento

os comportamentos de um puacuteblico tendem a ser conservados atraveacutes dos haacutebitos As atitudes as crenccedilas e os comportamentos tambeacutem car-regam valores que conservam os haacutebitos Assim a ineacutercia favorece a norma Ao passo que natildeo eacute necessaacuterio persuadir algueacutem sobre o que jaacute estaacute aceito qualquer mudanccedila seraacute questionada e exigiraacute justificaccedilatildeo A ineacutercia natural de uma audiecircncia atribui o ocircnus da prova agrave parte que deseja promover a mudanccedila

Invenccedilatildeo ndash Do latim invenire ldquoencontrarrdquo a invenccedilatildeo eacute o primeiro dos cinco cacircnones claacutessicos da Retoacuterica seguido pela disposiccedilatildeoarranjo elocuccedilatildeoestilo memoacuteria e entregaaccedilatildeo Como Aristoacuteteles define retoacute-rica como ldquoa faculdade de descobrir os meios de persuasatildeo disponiacuteveisrdquo grande parte de sua Retoacuterica centra-se na invenccedilatildeo A invenccedilatildeo consiste em buscar algo para dizer consequentemente refere-se ao logos ou seja o que o orador diz ao inveacutes do como diz A heuriacutestica (do grego heuriskein que significa ldquodescobrirrdquo) satildeo estrateacutegias pelas quais o orador pode des-cobrir de forma sistemaacutetica seguindo um conjunto de procedimentos Um orador pode fazer uma seacuterie de perguntas como um meio de explorar e investigar um problema ou questatildeo No acircmbito do argumento a Stasis Theory funciona principalmente como uma heuriacutestica na medida em que cada tipo de demanda levanta questotildees diferentes para quem propotildeem ou para quem ouve Na construccedilatildeo do argumento existem cinco tipos de demanda principais definiccedilatildeo (eacute X um y) causa (X causa y) avaliaccedilatildeo (eacute X um bom ou mau Y) proposta (devemos fazer X) e semelhanccedila (eacute X como Y) Os argumentos de semelhanccedila satildeo as primeiras versotildees contemporacircneas das analogias cuja formulaccedilatildeo mais geral eacute A eacute para B assim como C eacute para D No entanto essa formulaccedilatildeo pode ter apenas trecircs termos como em B eacute para A assim como C eacute para B ou A eacute para B

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assim como A eacute para C Perelman e Olbrechts-Tyteca citam a analogia de Aristoacuteteles ldquo[] assim como os olhos dos morcegos satildeo ofuscados pela claridade do dia a razatildeo da nossa alma eacute ofuscada pelas evidecircncias das coisas rdquo para explicar o theme (razatildeo da alma coisas evidentes) e o phoros (olhos de morcegos claridade do dia) Em analogia o theme e o phoros devem pertencer a diferentes esferas Se estiverem na mesma esfera haacute exemplo ou ilustraccedilatildeo A analogia depende de transferecircncias de valor do phoros para o theme e vice-versa A analogia eacute frequentemente vista com desconfianccedila quando usada como prova Perelman vecirc como um tipo instaacutevel de argumento semelhante agraves falaacutecias informais Ver tambeacutem Stasis Theory

Kairoacutes ndash Kairoacutes e chronos traduzidos grosso modo do grego representam o conceito de tempo Aristoacuteteles usou kairoacutes em seu sentido claacutessico como um momento criacutetico no desenrolar de um argumento quando algueacutem tem uma oportunidade de despertar seu puacuteblico Mais recentemente o kairoacutes tambeacutem tem sido traduzido como adequaccedilatildeo e oportunidade James Kinneavy usa o termo para se referir agrave ldquocontexto situacionalrdquo Nesse sentido o kairoacutes desempenha um papel na construccedilatildeo de todo o argumento e de toda escolha retoacuterica

Logos - Ver Pisteis

Mediaccedilatildeo - Ver Negociaccedilatildeo

Modelo ndash Ver Exemplo

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A construccedilatildeo do argumento

Mistificaccedilatildeo ndash Termo usado por Kenneth Burke A mistificaccedilatildeo ocorre quando a linguagem eacute usada entre diferentes classes soacutecias mais para enganar do que para comunicar A mistificaccedilatildeo reduz o potencial feacutertil do misteacuterio ldquoburocratizandordquo a hierarquia em um esquema definido que privilegia um grupo sobre o outro eliminando as diferenccedilas misteriosas entre as classes em detrimento de sua identidade Essa retoacuterica mal dire-cionada se preocupa principalmente com a coerccedilatildeo e o controle Misteacuterio e mistificaccedilatildeo satildeo diferentes da magia Como uma forccedila sobrenatural a magia eacute baseada em uma concepccedilatildeo primitiva de autoridade mas tem semelhanccedilas com a retoacuterica em seus fins persuasivos Enquanto a ma-gia tenta erroneamente induzir uma accedilatildeo agraves coisas (ou reduzir os seres humanos a objetos a serem movidos) a retoacuterica (muitas vezes atraveacutes de discurso exortativo) tenta induzir a accedilatildeo nas pessoas Burke observa que a magia eacute tambeacutem associada agrave novidade na medida em que cria algo fora do nada Cada ato retoacuterico envolve assim uma sugestatildeo de magia na medida em que usa a novidade na induccedilatildeo da accedilatildeo Ver tambeacutem Cortejo

Negociaccedilatildeo ndash A negociaccedilatildeo eacute um modo de acordo orientado para alcanccedilar consenso por meio da comunicaccedilatildeo ou ldquosoluccedilatildeo de diferenccedilasrdquo O conceito de negociaccedilatildeo foi aceito por muitas estudiosas feministas como alterna-tiva ao modelo agoniacutestico de argumento e como modelo para a interaccedilatildeo em sala de aula Outros e outras inclusive algumas feministas criticam a negociaccedilatildeo na medida em que evita conflitos em situaccedilotildees em que o conflito eacute preciso A ideia de negociaccedilatildeo criacutetica tambeacutem tem crescido no meio acadecircmico como Thomas West que conecta o conceito de negocia-ccedilatildeo agrave teoria poacutes-colonial agrave formaccedilatildeo de identidade e agrave hibridizaccedilatildeo A mediaccedilatildeo eacute um tipo particular de negociaccedilatildeo Na mediaccedilatildeo uma parte desinteressada ajuda a orientar o curso de um argumento em vez de se envolver ou fazer um julgamento a favor de qualquer participante Na

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A construccedilatildeo do argumento

mediaccedilatildeo o mediador natildeo tem poder sobre qualquer participante na construccedilatildeo do argumento em oposiccedilatildeo agrave arbitragem em que a terceira parte tem poderes para decidir o resultado de um argumento A mediaccedilatildeo eacute cada vez mais utilizada em soluccedilatildeo de disputas juriacutedicas

Objetividade ndash Eacute a condiccedilatildeo de natildeo ter interesse e natildeo ser afetado pelo resultado de um argumento A maioria das teorias de argumento con-temporacircneas rejeita a objetividade como uma postura praacutetica realista ou mesmo desejaacutevel para um orador ou puacuteblico Perelman por exemplo reconhece que fora da ciecircncia as controveacutersias satildeo resolvidas entre as partes O melhor que se pode esperar natildeo eacute objetividade mas imparcia-lidade atraveacutes da qual as pessoas agem em nome do que eacute melhor para todos ao inveacutes do que eacute melhor para si ou seus aliados

Ofiacutecio (ensino e informaccedilatildeo prazer movimento e submissatildeo) ndash esses trecircs propoacutesitos retoacutericos originaram-se nas ideias de Ciacutecero sobre os trecircs ofiacutecios do orador Cada ofiacutecio tem um estilo apropriado Mais especifica-mente o primeiro ofiacutecio (ensinar informar instruir) eacute pensado para ter um estilo simples O segundo ofiacutecio (agradar) deve ter um estilo mais temperado O movimento e a submissatildeo na oratoacuteria entretanto reque-rem um estilo mais eloquente que serve de forma mais suficiente para persuadir um puacuteblico para a accedilatildeo

Paradoxo da substacircncia ndash ldquoLiteralmente a substacircncia de uma pessoa ou de uma coisa seria algo que fica abaixo ou apoia a pessoa ou a coisardquo (BURKE 1966 p 22) Aqui Burke rastreia as raiacutezes etimoloacutegicas da pa-lavra ldquosubstacircnciardquo para ajudar a explicar o seu conceito de paradoxo da substacircncia mostrando que a proacutepria palavra implica a presenccedila do que eacute exterior O conceito de substacircncia de Burke contrasta marcadamente

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A construccedilatildeo do argumento

com o de Aristoacuteteles Para Aristoacuteteles a substacircncia de uma entidade seria inteira para si mesma Burke inclina-se agrave opiniatildeo de Spinoza segundo o qual nenhuma entidade uacutenica poderia ser compreendida como idecircntica mas apenas pelo que natildeo eacute (ldquo[] toda a determinaccedilatildeo eacute negaccedilatildeordquo (BURKE 1966 p 25)) Esse conceito estaacute no cerne do paradoxo da substacircncia a fim de ser capaz de entender o que dada coisa eacute eacute preciso primeiro colocaacute--la ldquoem termos derdquo outra coisa Isso eacute a loacutegica fundamental subjacente ao dramatismo de Burke Para Burke haacute um ldquo[] inevitaacutevel paradoxo de definiccedilatildeo uma antinomia que deve dotar a noccedilatildeo de substacircncia de uma ambiguidade irresoluacutevelrdquo (BURKE 1966 p 24) A substacircncia de alguma coisa soacute pode ser conhecida em termos do que substancialmente ela natildeo eacute Ver tambeacutem Identificaccedilatildeo e Dialeacutetica

Pathos - Ver Pisteis

Pisteis ndash Aristoacuteteles identificou dois tipos de provas retoacutericas (1) artiacutes-ticas (teacutecnicas ou intriacutensecas) e (2) natildeo artiacutesticas (natildeo teacutecnicas ou ex-triacutensecas) As provas extriacutensecas natildeo se originam nos esforccedilos proacuteprios de um orador mas em dados preexistentes que o orador deve descobrir e usar confissotildees contratos escritos etc As provas intriacutensecas satildeo for-necidas por meacutetodos retoacutericos atraveacutes dos proacuteprios esforccedilos do orador Os Pisteis (proveniente da palavra grega que se refere aos meios de persuasatildeo disponiacuteveis em um argumento) satildeo os trecircs tipos de provas artiacutesticas disponiacuteveis para o orador logos ethos e pathos O ethos (termo grego para ldquocaraacuteterrdquo) do orador refere-se agrave sua credibilidade Na eacutepoca de Aristoacuteteles a confianccedila era criada a partir do proacuteprio discurso e natildeo a partir do status do homem que falava Mais recentemente no entanto ethos muitas vezes natildeo eacute mais que o cargo ou a posiccedilatildeo de algueacutem Por exemplo noacutes confiamos naqueles que satildeo peritos em suas aacutereas de atu-

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A construccedilatildeo do argumento

accedilatildeo mais do que naqueles que satildeo generalistas O Pathos (termo grego para ldquosofrimentordquo ou ldquoexperiecircnciardquo) refere-se agraves emoccedilotildees do puacuteblico quando elas satildeo trazidas para uma situaccedilatildeo favoraacutevel agrave adesatildeo ao proacute-prio argumento O orador pode apelar eficazmente para o pathos porque conhece as crenccedilas e os valores do puacuteblico e empregar vaacuterias estrateacutegias retoacutericas apropriadamente O logos (termo grego para ldquopalavrardquo) refere-se agrave racionalidade do proacuteprio argumento O argumento deve ser consistente coerente racional bem fundamentado e plausiacutevel em seu apelo loacutegico

Praacutexis ndash Eacute uma alternativa ao par bifurcado teoriapraacutetica em que a praacutetica eacute subordinada agrave teoria A praacutexis existe como praacutetica teorizada conhecida e situada No ensino de escrita eacute o que separa a aula ldquoCultrdquo (criticada por natildeo promover a reflexatildeo como ad-hoc abstrata e super teorizada) do ensino reflexivo fundamentado em criacutetica em formas pe-dagogicamente situadas de saber e aprender

Presenccedila ndash Refere-se aos elementos de seleccedilatildeo arranjo eou omissatildeo de fatos julgamentos ou linhas de raciociacutenio que agem diretamente em nossa sensibilidade Esses elementos dotam um argumento de presenccedila e permitem que um puacuteblico perceba o que de outra forma seria apenas imaginado Dotar o argumento de presenccedila atraveacutes de metaacuteforas exem-plos viacutevidos graacuteficos atraentes aumenta muito a identificaccedilatildeo do puacuteblico com o argumento

Propaganda ndash Eacute um tipo de persuasatildeo retoacuterica que objetiva atingir uma massa em vez de um puacuteblico indiviacuteduo Eacute expliacutecita e produzida por uma instituiccedilatildeo ou grupo (como um governo) A propaganda eacute tambeacutem notaacutevel pela sua natureza egoiacutesta natildeo faz nenhuma questatildeo de ter compromis-so com o orador e a audiecircncia Baseando-se fortemente na repeticcedilatildeo de

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A construccedilatildeo do argumento

siacutembolos e imagens nas miacutedias sociais a propaganda frequentemente assume conotaccedilotildees negativas na sociedade ocidental mas governos orga-nizaccedilotildees religiosas e anunciantes corporativos (entre outros) continuam a produzir propaganda em altos niacuteveis Os argumentos (muitas vezes de natureza visual) produzidos pela propaganda fornecem exemplos claros que promovem discussatildeo produtiva em salas de aula de argumento

Pentaacutegono de Burke ndash Kenneth Burke acredita que a comunicaccedilatildeo so-cial eacute melhor analisada e compreendida como um drama o que o levou a propor um pentaacutegono de termos para o estudo retoacuterico accedilatildeoato agente agecircncia cena e propoacutesito Os resultados das accedilotildees retoacutericas satildeo determi-nados pelos iacutendices (relacionamentos) entre esses cinco elementos Ver tambeacutem Situaccedilatildeo retoacuterica

Relaccedilatildeo ndash Ver Pentaacutegono de Burke

Retoacuterica da burocracia ndash Refere-se a uma retoacuterica de gesto geralmente de natureza simboacutelica Um exemplo moderno nos EUA de retoacuterica da burocracia eacute a derrubada da estaacutetua de Saddam Hussein apoacutes a invasatildeo das forccedilas dos EUA em Bagdaacute Esse tipo de gesto retoacuterico significa a vi-toacuteria das forccedilas dos Estados Unidos e a derrota do Iraque

Retoacuterica deliberativa ndash Ver Espeacutecies de retoacuterica

Retoacuterica epidiacutetica ndash Ver Espeacutecies de retoacuterica

Retoacuterica forense ndashVer Espeacutecies de retoacuterica

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A construccedilatildeo do argumento

Regra de justiccedila ndash Termo que estaacute no cerne das teorias de Perelman e Olbrechts-Tytecha (1969 p 218) sobre argumentaccedilatildeo A chave para essa regra formal eacute dar ldquo[] tratamento idecircntico para seres ou situaccedilotildees da mesma naturezardquo Observar a regra da justiccedila eacute necessaacuterio para a constru-ccedilatildeo de argumentos juriacutedicos Atraveacutes dessa regra os precedentes tambeacutem adquirem maior importacircncia casos anteriores podem influenciar casos futuros (desde que as categorias sejam essencialmente as mesmas)

Sofisma ndash Na linguagem popular o sofisma refere-se a qualquer argu-mento intencionado a enganar em vez de persuadir legitimamente um ouvinte O termo data do seacuteculo V aC Os sofistas eram um grupo de filoacutesofos preacute-platocircnicos e professores de retoacuterica Em geral os sofistas ensinavam a partir da experiecircncia em vez da teoria e enfatizavam as habilidades persuasivas do mundo real ao inveacutes da busca de uma forma particular de verdade Assim atraveacutes de suas teacutecnicas ensinavam a ldquoargumentar para ganharrdquo Nos Diaacutelogos de Platatildeo os sofistas satildeo vistos como espantalhos e usavam a retoacuterica de forma egoiacutesta e amoral (ver Goacutergias de Platatildeo) De forma oposta agrave retoacuterica de Platatildeo os sofistas emer-gem como trapaceiros astutos que usam a linguagem para enganar em vez de encontrar a verdade As perspectivas contemporacircneas da retoacuterica tecircm reabilitado muitos conceitos sofistas incluindo a atenccedilatildeo para am-biguidade da liacutengua e o contexto natural da verdade e do conhecimento O ldquofeminismo retoacutericordquo de Susan Jarratt por exemplo liga o foco poliacutetico do feminismo contemporacircneo agraves abordagens sofistas sobre o poder real do uso da linguagem

Situaccedilatildeo retoacuterica ndash Refere-se agrave contextualizaccedilatildeo da maneira de persu-adir se eacute oral ou escrito Como melhor determinar o impacto persuasivo em um determinado puacuteblico-alvo Quais satildeo os elementos de uma dada

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A construccedilatildeo do argumento

situaccedilatildeo retoacuterica Natildeo haacute uma resposta faacutecil a essas questotildees e os estu-diosos continuam a oferecer quadros praacuteticos e teoacutericos Uma estrutura comum utilizada no ensino de escrita eacute o triacircngulo retoacuterico com foco no inter-relacionamento da mensagem do escritor e do puacuteblico Outros quadros satildeo ainda mais especiacuteficos e identificam cinco componentes principais da situaccedilatildeo retoacuterica ocasiatildeo propoacutesito toacutepico audiecircncia e escritor O pentaacutegono de Kenneth Burke tambeacutem identifica cinco elemen-tos essenciais accedilatildeoato agente agecircncia cena e propoacutesito Observa-se que embora diferentes essas estruturas apresentam elementos centrais similares proporcionando variaccedilotildees no triacircngulo retoacuterico Natildeo importa qual estrutura terminoloacutegica eacute usada A chave para a compreensatildeo da situaccedilatildeo retoacuterica loacutegica consiste em reconhecer o raacutetio dos termos que elementos satildeo mais importantes para a situaccedilatildeo dada

Stasis Theory ndash Da palavra grega staseis que significa ldquotomar uma po-siccedilatildeordquo Na teoria retoacuterica a Stasis theory pode ser usada para encontrar pontos comuns de uma questatildeo ou como uma estrateacutegia de criaccedilatildeo que fornece ao orador uma seacuterie de perguntas que servem para descobrir o ponto de discordacircncia entre dois opositores Desde o seacuteculo II da nossa era tradicionalmente tem havido uma ordem hieraacuterquica das questotildees de Stasis No entanto recentemente alguns pesquisadores argumentam que as questotildees natildeo necessariamente tecircm de ser feitas numa ordem especiacutefica e dependendo da situaccedilatildeo retoacuterica algumas das questotildees podem natildeo ser aplicaacuteveis Encontrar o ponto de origem de um desacordo eacute desnecessaacuterio se o objetivo do argumento eacute chegar a uma resoluccedilatildeo ou pelo menos a uma compreensatildeo mais clara do problema por oposiccedilatildeo agraves disputas que satildeo muitas vezes o resultado de um argumento em que a Stasis natildeo foi alcanccedilada antes do engajamento As Stasis satildeo divididas em quatro perguntas

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A construccedilatildeo do argumento

1 Conjectura ndash existe um ato a ser considerado2 Definiccedilatildeo ndash como o ato pode ser definido3 Qualidade ndash quatildeo seacuterio eacute o ato Quais satildeo as circunstacircncias atenuantes4 Procedimento ndash o que deveriacuteamos fazer Existe alguma coisa sobre o ato que exige uma decisatildeo natildeo padratildeo ou pena menor

Topoi (Toacutepicos) ndash Originalmente delineado por Aristoacuteteles os toacutepicos satildeo significados disponiacuteveis de persuasatildeo e satildeo utilizados durante a fase de criaccedilatildeo da argumentaccedilatildeo Aristoacuteteles classificou os toacutepicos em dois grupos (1) os comuns a todos os sujeitos (lugares comuns) e a todas as circunstacircncias e (2) os de aacutereas especializadas como Fiacutesica ou poliacutetica Perelman tem uma abordagem diferente para os toacutepicos Ele aplica o termo loci apenas a premissas de natureza geral que podem servir como bases para valores e hierarquias e que se relacionam com escolhas que fazemos Ele classifica loci em (1) loci de quantidade (por exemplo um maior nuacutemero de bens eacute mais desejaacutevel do que um nuacutemero menor de mercadorias) (2) de qualidade (por exemplo uma verdade deve ser desejada acima de cem erros ou o uacutenico eacute valorizado aleacutem do usual do ordinaacuterio ou do vulgar) (3) de ordem (por exemplo o que eacute anterior eacute superior ao que estaacute depois por exemplo o original eacute superior agrave coacutepia) (4) de existecircncia (por exemplo o que eacute atual ou real eacute superior ao pos-siacutevel ao contingente ou ao impossiacutevel) (5) de essecircncia (por exemplo a superioridade do valor dos indiviacuteduos que incorpora a essecircncia por exemplo uma raccedila melhor exibiria as qualidades daquela raccedila melhor do que seus concorrentes) e (6) de pessoa (por exemplo a dignidade o valor ou a autonomia da pessoa)

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A construccedilatildeo do argumento

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A construccedilatildeo do argumento

AA

263

sObre Os autOres

John RamageFoi professor por mais de trinta anos na Montana State University e na Arizona State University Ensinou literatura escrita teoria retoacuterica e argumentaccedilatildeo na graduaccedilatildeo e na poacutes-graduaccedilatildeo Tambeacutem foi coordena-dor de programas de escrita por mais de uma deacutecada supervisionando centros de escrita programas curriculares e de suporte acadecircmico Seu livro Writing Arguments em co-autoria com John Bean e June Johnson jaacute estaacute na oitava ediccedilatildeo

Zachary WaggonerEacute professor do Departamento de Inglecircs na Arizona Satate University En-sina retoacuterica escrita teoria de jogos eletrocircnicos e atua na formaccedilatildeo de professors Eacute autor de My Avatar My Self Identity in Video Role-Playing Games e de vaacuterios artigos sobre o ensino da escrita

Micheal CallawayEacute professor residente no Mesa Community College em Mesa Arizona Aleacutem do ensino atualmente tem se dedicado ao desenvolvimento de curriacuteculo para cursos de educaccedilatildeo para o desenvolvimento Aleacutem de atividades de ensino ele tambeacutem se interessa por questotildees de avaliaccedilatildeo

Jennifer Clary-LemonEacute professora assistente de retoacuterica na University of Winnipeg Os seus interesses de investigaccedilatildeo incluem a retoacuterica da representaccedilatildeo e a histoacute-ria da escrita e da disciplinaridade Eacute co-autora com Peter Vandenberg e Sue Hum de Relations Locations Positions Composition Theory for Writing Teachers Tambeacutem tem publicaccedilotildees em revistas como American Review of Canadian Studies e Handbook of Research on Writing

264

sObre Os traDutOresClemilton Lopes Pinheiro Doutor em Letras aacuterea de Filologia e Linguiacutestica Portuguesa pela Uni-versidade Estadual Paulista Juacutelia de Mesquita Filho Realizou estaacutegio de poacutes-doutorado em Linguiacutestica na Universiteacute Sorbonne Nouvelle Paris 3 Eacute professor de linguiacutestica na Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Erik Fernando MartinsDoutor em Linguiacutestica pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Univer-sidade Estadual de Campinas Eacute professor de linguiacutestica na Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Felipo Bellini SouzaLicenciado em Letras e mestrando em Estudos da Linguagem pela Uni-versidade Federal do Rio Grande do Norte Eacute tradutor e administrador da empresa Traduzabiz

Karine Alves DavidLicenciada em Letras pela Universidade Estadual do Cearaacute Mestre em Linguiacutestica pela Universidade Federal do Cearaacute Doutoranda em Estudos da linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte com estaacutegio na University of California Santa Barbara

Marcus MussiDoutorando em Linguiacutestica pela Universidade Federal da Paraiacuteba Eacute pro-fessor de inglecircs no Centro de Formaccedilatildeo de Professores da Universidade Federal de Campina Grande

265

Maria Hozanete Alves de LimaDoutora em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Alagoas Realizou estaacutegio de poacutes-doutorado no Institut de textes et manuscrits modernes unidade de pesquisa ligada ao CNRS da Franccedila Eacute professora de estudos claacutessicos na Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Siacutelvio Luis da SilvaDoutor em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte aacuterea de Linguiacutestica Aplicada Eacute professor de linguiacutestica e liacutengua portuguesa na Universidade Federal da Paraiacuteba

a construccedilatildeo do argumento fornece uma ampla gama de

recursos para o ensino da escrita as ideias dos principais

teoacutericos da Retoacuterica claacutessica e contemporacircnea de aristoacuteteles a

Burke Toulmin e Perelman e sua relevacircncia para a instruccedilatildeo

satildeo apresentadas sucintamente Os autores classificam de forma

clara e expotildeem suas posiccedilotildees sobre a pedagogia das falaacutecias

informais da propaganda e apresentam as razotildees para preferir

uma abordagem a outra entre as disponiacuteveis para o ensino da

escrita os autores igualmente destacam o papel do argumento

em abordagens que natildeo satildeo diretamente vinculadas ao tema

como as que destacam o movimento feminista a retoacuterica da

liberaccedilatildeo os estudos culturais criacuteticos o movimento escrita

atraveacutes do curriacuteculo as novas tecnologias e a retoacuterica visual as

referecircncias bibliograacuteficas datildeo a oportunidade de aprender mais

sobre essas abordagens

AA

isbn 978-85-66530-81-0

Page 3: WordPress.com · cOMissãO eDitOrial editores executivos augusto noronha e Karla vidal conselho editorial Alex Sandro Gomes angela Paiva Dionisio Carmi ferraz Santos Cláudio Clécio

CoPyRigHT 2018 copy PiPa CoMuniCaccedilatildeo ReSeRvaDoS ToDoS oS DiReiToS DeSTa eDiccedilatildeo

PuBLiCaDa exCLuSivaMenTe PaRa DiSTRiBuiccedilatildeo gRaTuiTa auToRiZaDa PeLa PaRLoR PReSS

Eacute PRoiBiDa a RePRoDuccedilatildeo ToTaL ou PaRCiaL DoS TexToS e PRoJeTo gRaacutefiCo DeSTa oBRa

SeM auToRiZaccedilatildeo exPReSSa DoS auToReS oRganiZaDoReS e eDiToReS

oRiginaLLy PuBLiSHeD aS aRguMenT in CoMPoSiTion copy 2009 By PaRLoR PReSS anD THe WaC

CLeaRingHouSe HTTPPaRLoRPReSSCoM TRanSLaTeD anD DiSTRiBuTeD By PeRMiSSion

traDuccedilatildeOClemilton Lopes Pinheiro erik fernando Martins

felipo Bellini Souza Karine alves David Marcus Mussi

Maria Hozanete alves de Lima Siacutelvio Luis da Silva

cOOrDenaccedilatildeO De traDuccedilatildeOClemilton Lopes Pinheiro

caPa PrOjetO GraacuteficO e DiaGraMaccedilatildeOKarla vidal e augusto noronha Pipa Comunicaccedilatildeo (wwwpipacomunicacombr)

revisatildeO linGuiacutesticaKarla geane de oliveira

Catalogaccedilatildeo na publiCaccedilatildeo (Cip)Ficha catalograacutefica produzida pelo editor executivo

R1409

RaMage J et al

a construccedilatildeo do argumento John Ramage Micheal Callaway Jennifer Clary-Lemon Zachary Waggoner traduccedilatildeo Clemilton Lopes Pinheiro erik fernando Martins felipo Bellini Souza Karine alves David Marcus Mussi Maria Hozanete alves de Lima Siacutelvio Luis da Silva ndash Pipa Comunicaccedilatildeo 2018 266p Bibliografia (e-book) 1ordf ed iSBn 978-85-66530-81-0

1 Linguiacutestica 2 Retoacuterica 3 argumentaccedilatildeo 4 escritai Tiacutetulo

410 CDD41 CDu

cpc0318ajns

cOMissatildeO eDitOrial

editores executivosaugusto noronha e Karla vidal

conselho editorialAlex Sandro Gomes

angela Paiva DionisioCarmi ferraz Santos

Claacuteudio Cleacutecio vidal eufrausinoClaacuteudio Pedrosa

Leila RibeiroLeonardo Pinheiro Mozdzenski

Clecio dos Santos Bunzen JuacuteniorPedro francisco guedes do nascimento

Regina Luacutecia Peacuteret Dellrsquoisolaubirajara de Lucena Pereira

Wagner Rodrigues SilvaWashington Ribeiro

Prefixo Editorial 66530

7

apresentaccedilatildeo agrave ediccedilatildeo brasileira

A argumentaccedilatildeo eacute um fenocircmeno que recobre diferentes conceitos e eacute objeto de estudo de diferentes disciplinas desde as mais antigas ndash Loacutegica Retoacuterica Dia-leacutetica ateacute as mais recentes no domiacutenio das Ciecircncias Humanas e Sociais incluindo a Linguiacutestica Satildeo inuacutemeras as obras escritas sobre o tema mas se reconhece que mesmo assim ainda haacute muito a se dizer Nesse sentido a ideia de publicar uma versatildeo em portuguecircs da obra Argument in Composition de John Ramage Micheal Callaway Jennifer Clary-Lemon e Zachary Waggoner publicada em 1999 pela Parlor Press nos Estados Unidos tem como propoacutesito fomentar a discussatildeo sobre o tema entre os pesquisadores brasileiros

A obra focaliza a construccedilatildeo do argumento no contexto do ensino da escrita na universidade e se apoia em um quadro teoacuterico amplo e diversificado em parte bastante conhecido pelo puacuteblico brasileiro como a nova retoacuterica de Chaim Perel-man e Lucie Olbrechts-Tytecha em parte natildeo muito como eacute o caso da abordagem retoacuterica de Kenneth Burke Assim aleacutem da relevacircncia do tema a obra permite a ampliaccedilatildeo de um aporte para pensar a questatildeo da argumentaccedilatildeo e da construccedilatildeo do argumento no ensino da escrita na universidade e prepara o caminho para praacuteticas educativas tambeacutem relevantes para o ensino superior brasileiro ainda carente de inclusatildeo e de qualidade

Essa versatildeo em portuguecircs soacute foi possiacutevel graccedilas ao primoroso trabalho de traduccedilatildeo e empenho do(a)s colegas que se envolveram no projeto Nosso muito obrigado a todo(a)s Agradecemos tambeacutem ao professor Charles Bazerman da Universidade de Santa Baacuterbara-Califoacuternia que colaborou em muitas faces acadecirc-micas e legais da traduccedilatildeo Da mesma forma deixamos nosso agradecimento a David Blakesley e Michel Palmquist representantes da Parlor Press responsaacutevel pelos direitos autorais da obra em inglecircs pela autorizaccedilatildeo gratuita da publicaccedilatildeo

Boa LeituraClemilton Lopes Pinheiro

prefaacuteCio do Coordenador da Coleccedilatildeo RefeRe guides to RhetoRic and composition (Guia de Referecircncia para a Retoacuterica e a Escrita)1

Na ampla e crescente casa da retoacuterica e da escrita a argumentaccedilatildeo e sua irmatilde persuasatildeo compartilham um grande e digno quarto que vem sendo cons-truiacutedo desde a fundaccedilatildeo da Retoacuterica na Greacutecia antiga Os principais interesses da Retoacuterica claacutessica satildeo todos fundados com base no argumento debate sobre governo e cidadania julgamento de culpa ou inocecircncia declaraccedilatildeo de direitos e deveres formaccedilatildeo de alianccedilas e acordos protesto contra inimigos desenvol-vimento de compromisso comunitaacuterio As principais instituiccedilotildees sociais foram formadas para criar condiccedilotildees (como procedimentos princiacutepios e exigecircncias) de apontar argumentos para soluccedilotildees bem sucedidas da accedilatildeo comunitaacuteria altas cortes congressos de legisladores religiotildees democracia eleitoral

O grande quarto da argumentaccedilatildeo e da persuasatildeo tem uma larga entrada para os quartos vizinhos que se veem em diferentes condiccedilotildees A proacutepria Filoso-fia opositora de longa data do argumento estrutura suas discussotildees com base nele As disciplinas acadecircmicas satildeo campos argumentativos embora organiza-dos como esforccedilos cooperativos As escolhas de grupos sobre planejamento e escolhas ndash sejam estruturais meacutedicas ou militares ndash dependem da expressatildeo de diferentes visotildees embora enquadradas elipticamente em conhecimentos obje-tivos e papeacuteis especiacuteficos

A argumentaccedilatildeo tambeacutem pode servir para finalidades individuais Graccedilas ao ato de argumentar com os outros um indiviacuteduo pode trabalhar suas cren-ccedilas pessoais valores envolvimentos e opccedilotildees de vida As ocasiotildees sociais de argumentaccedilatildeo oferecem aos indiviacuteduos a oportunidade de pesquisar e refletir individualmente em um contexto de pontos de vista divergentes Os conceitos

1 Traduccedilatildeo Clemilton Lopes Pinheiro

10

modernos sobre o desenvolvimento individual do conhecimento da consciecircncia e da responsabilidade dependem de um indiviacuteduo que tem acesso e participa da construccedilatildeo de argumentos e chega a crenccedilas pessoais

Enquanto alguns veem o engajamento a um argumento como um fenocircmeno oral a capacidade de confrontar pontos de vista opostos na escrita transformou o alcance e a profundidade dos argumentos as evidecircncias disponiacuteveis e as situ-accedilotildees em que os argumentos ocorrem Assim como os argumentos usados nos tribunais tenham se convertido em leis escritas textos com jurisprudecircncias resumos de audiecircncias depoimentos tratados fizeram do Direito uma profissatildeo liberal Muitos domiacutenios de letramento escrito que facilitam o contato agrave distacircncia na sociedade moderna dependem do argumento a exemplo de um investimento financeiro um projeto eficaz de preservaccedilatildeo do meio ambiente ou um projeto beneficente sem fins lucrativos No mundo acadecircmico da escrita argumentar facilita a aprendizagem de maneira clara inteligente bem fundamentada disci-plinada e articulada

Este Refere guides to Rhetoric and Compositionc (Guia de referecircncia para a Retoacuterica e a Escrita) fornece uma ampla gama de recursos para o ensino da es-crita As ideias dos principais teoacutericos da Retoacuterica claacutessica e contemporacircnea de Aristoacuteteles a Burke Toulmin e Perelman e sua relevacircncia para a instruccedilatildeo satildeo apresentadas sucintamente Os autores classificam de forma clara e expotildeem suas posiccedilotildees sobre a pedagogia das falaacutecias informais da propaganda e apresentam as razotildees para preferir uma abordagem a outra entre as disponiacuteveis para o en-sino da escrita Os autores igualmente destacam o papel da argumentaccedilatildeo em abordagens que natildeo satildeo diretamente vinculadas ao tema como as que destacam o movimento feminista a retoacuterica da libertaccedilatildeo os estudos culturais criacuteticos o movimento escrita atraveacutes do curriacuteculo as novas tecnologias e a retoacuterica visual A relaccedilatildeo de leituras suplementares e as referecircncias bibliograacuteficas datildeo a opor-tunidade de aprender mais sobre essas abordagens

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Grande parte do livro ilustra o valor de uma perspectiva e defende aberta-mente seu uso no ensino da escrita em relaccedilatildeo a outras Dessa forma o livro con-vida os leitores a tirar suas proacuteprias conclusotildees sobre o valor da argumentaccedilatildeo e sobre como melhor incorporaacute-la em sua didaacutetica Eu particularmente recomendo aos leitores considerar o raciociacutenio contra o engessamento dos sistemas argu-mentativos e as situaccedilotildees especiacuteficas em que cada argumento ocorre

Charles Bazerman

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prefaacuteCio1

A construccedilatildeo do argumento eacute um livro direcionado a todos os professores in-cluindo os que natildeo satildeo exatamente professores de produccedilatildeo de textos que desejam incorporar o ensino do argumento em suas aulas Ao delineaacute-lo tentamos atingir um niacutevel de generalidade entre um livro didaacutetico sobre argumento e uma teoria do argumento Ou nos termos de Kenneth Burke nossa abordagem estaacute situada em um niacutevel de ldquofalar sobrerdquo o argumento em oposiccedilatildeo ao argumento ldquoque falardquo ou ldquofalar sobrerdquo o argumento ldquoque falardquo

Os leitores que desejam uma discussatildeo mais especiacutefica devem consultar quais-quer dos inuacutemeros bons livros didaacuteticos dedicados ao assunto Os que buscam uma compreensatildeo mais restrita e mais profunda sobre o argumento podem consultar as muitas fontes agraves quais nos referimos ao longo do livro Nossa ecircnfase no niacutevel da generalidade mediana decorre de nosso propoacutesito ajudar professores a traduzir a teoria em praacutetica de ensino e fazer escolhas conscientes de livros didaacuteticos sobre o argumento (caso existam) que fazem mais sentido para suas aulas Esperamos que os trecircs primeiros capiacutetulos de A construccedilatildeo do argumento subsidiem nossos leitores para formular suas proacuteprias abordagens do argumento em sala de aula e a ler mais criticamente o material apresentado no restante do livro

Como a alusatildeo anterior agrave Kenneth Burke pode sugestionar A construccedilatildeo do argumento eacute profundamente influenciado pela abordagem retoacuterica desse autor Embora a teoria de Burke tenha recebido pouca ou nenhuma atenccedilatildeo na maioria dos livros didaacuteticos que abordam o argumento (aleacutem do tratamento muitas vezes simplificado do seu esquema pentagonal) noacutes acreditamos que ela eacute a estrutura mais coerente e compreensiacutevel disponiacutevel para unificar as diversas abordagens do argumento ndash o esquema de Toulmin a Stasis Theory as falaacutecias informais a situa-ccedilatildeo retoacuterica etc ndash que compotildeem a espinha dorsal da maioria dos livros didaacuteticos

1 Traduccedilatildeo Siacutelvio Luis da Silva

14

atuais Uma vez que Burke serve como as primeiras lentes ou ldquotela finardquo atraveacutes das quais noacutes enxergamos o argumento alguns termos comumente utilizados natildeo satildeo detalhados no corpo principal do texto Em alguns casos esses termos sem que sejam problemaacuteticos em si mesmos satildeo incongruentes ou perifeacutericos agrave nossa abordagem Natildeo damos atenccedilatildeo demasiada por exemplo ao entimema Noacutes citamos em nosso glossaacuterio e mais importante citamos as anaacutelises racionais dos termos feitas por John Gage Certamente reconhecemos o lugar de destaque da noccedilatildeo de entimema na histoacuteria do ensino do argumento e seu potencial de utilidade para alguns professores em sala de aula Apenas tivemos problemas de encaixaacute-lo na nossa abordagem Outros termos natildeo satildeo especialmente discutidos porque senti-mos que jaacute estatildeo contemplados nos diferentes termos de nossa proacutepria rubrica No caso da situaccedilatildeo retoacuterica por exemplo discutimos a noccedilatildeo de exigecircncia de Lloyd Bitzer porque acreditamos que ela descreve perfeitamente um conceito funda-mental para os estudantes do argumento Por outro lado natildeo mencionamos outro elemento da situaccedilatildeo retoacuterica de Bitzer as limitaccedilotildees e restriccedilotildees (constraints) pela crenccedila de que alguns outros elementos que discutimos notadamente a Stasis Theory cumprem mais clara e adequadamente o papel desempenhado pelas limi-taccedilotildees e restriccedilotildees de Bitzer

A construccedilatildeo do argumento eacute inevitavelmente em si mesmo tanto um argu-mento como um compecircndio de abordagens sobre argumentaccedilatildeo Tentamos apresen-tar nosso argumento sem sermos muito argumentativos Ao mesmo tempo somos os primeiros a reconhecer que nosso campo ldquoretoacuterica e escritardquo estaacute longe de ser claramente definido De fato haacute argumentos a serem traccedilados a favor e contra a inclusatildeo da escrita expressiva nas aulas de argumento (noacutes tentamos apresentar um argumento a favor da inclusatildeo) Haacute ainda argumentos a favor e contra a inclusatildeo do argumento visual nessas aulas No caso do argumento visual nossa posiccedilatildeo eacute mais complexa Aplaudimos os objetivos e reconhecemos a importacircncia do argumento visual Citamos os trabalhos que estatildeo sendo feitos na aacuterea mas criticamos a falta de ferramentas utilizaacuteveis ndash ou um vocabulaacuterio comum para esse propoacutesito ndash que torne esse trabalho acessiacutevel para graduandos Por hora sugerimos aos professores

15

a esperar que as melhores ferramentas sejam disponibilizadas ou desenvolvam as suas proacuteprias Enquanto isso vemos o argumento visual como aqueles sites da web intrigantes que nos recebem com a mensagem na tela ldquoem construccedilatildeordquo

sumaacuterio

19 introduccedilatildeo por que argumentar eacute importante

22 um entendimento sobre o argumento 24 Discussatildeo de Leo e fish ndash parte i perspectiva teoacuterica 35 Discussatildeo de Leo e fish ndash parte ii passando da dualidade ao compromisso 38 Leo e fish ndash parte iii os elementos do argumento 47 Argumento e a ldquopurificaccedilatildeo da guerrardquo 54 Por que os estudantes precisam argumentar 55 argumento e letramento criacutetico 61 argumento e identidade 67 Eacutetica e argumento

77 CapIacutetulo 1 a histoacuteria da argumentaccedilatildeo 78 Filosofia versus Retoacuterica 93 o problema do engessamento da Retoacuterica 99 figuras-chave da teoria moderna da argumentaccedilatildeo 99 introduccedilatildeo a Kenneth Burke 102 o realismo de Burke 107 introduccedilatildeo a Chaim Perelman e Lucie olbrechts-Tyteca 109 um panorama de a nova Retoacuterica 113 a Stasis Theory e a nova Retoacuterica 124 introduccedilatildeo a Stephen Toulmin 125 o esquema de Toulmin ndash o natildeo silogismo 128 a aplicaccedilatildeo do modelo de Toulmin 134 Resumo

137 CapIacutetulo 2 Questotildees sobre argumentaccedilatildeo 137 o debate sobre a falaacutecia 143 a abordagem pragma-dialeacutetica das falaacutecias 147 alternativas para focalizar a argumentaccedilatildeo em uma aula de escrita estudos criacutetico-culturais 151 Pedagogia expressivista 163 Retoacuterica processual 168 ensinar ou natildeo ensinar propaganda 170 o que eacute propaganda Burke e ellul 186 a propaganda em resumo

191 CapIacutetulo 3 introduccedilatildeo a algumas boas praacuteticas 191 o que funciona no ensino de escrita 196 Boas praacuteticas 200 Retoacuterica da libertaccedilatildeo 206 feminismo e argumento 211 aprendizagem-serviccedilo e argumentaccedilatildeo 215 escrita atraveacutes do curriacuteculo (writing across the curriculum ndash WaC) e escrita nas disciplinas (writing in the disciplines ndash WiD) 219 Computador e escrita 223 Retoacuterica visual

229 glossaacuterio

249 referecircnCias

263 sobre os autores

264 sobre os tradutores

a x b x C

19

introduccedilatildeopor Que argumentar eacute importante1

Qualquer um que hoje ainda eacute ceacutetico sobre a importacircncia do argumento nos curriacuteculos dos cursos de escrita das faculdades do paiacutes precisa apenas olhar a abundacircncia de livros dedicados ao assunto Cada grande editora possui pelo menos trecircs ou quatro obras sobre o tema Aleacutem disso a qualidade da atual geraccedilatildeo de textos sobre argumento certamente excede o padratildeo ndash embora natildeo tenha sido eacute verdade um padratildeo particularmente alto ndash estabelecido por geraccedilotildees dos textos antes de meados da deacutecada de 1980 Enquanto uma seacuterie de livros de pensamento criacutetico escritos por filoacutesofos foram adaptados com sucesso para cursos de escrita durante os anos setenta os textos padratildeo sobre argumento compreendem um grupo bastante significativo

Na verdade o tema foi pouco ensinado de forma autocircnoma em aulas de escrita antes da deacutecada de 1980 Normalmente era ensinado como parte de algum esque-ma taxonocircmico comum no chamado curriacuteculo ldquotradicional correnterdquo O curriacuteculo tradicional corrente ou cursos de escrita baseados em modelos que dominaram os curriacuteculos universitaacuterios durante deacutecadas era organizado em torno de categorias supostamente funcionais de escrita como narraccedilatildeo descriccedilatildeo cada uma das quais concebida com um formato prescritivo

A caracteriacutestica mais marcante desses modelos era o caraacuteter retoacuterico Os alunos tinham pouca ideia sobre a razatildeo de algueacutem precisar de uma descriccedilatildeo de um animal de estimaccedilatildeo ou de um professor favorito bem como de um resumo detalhado de uma receita de sanduiacuteche A principal coisa dita sobre audiecircncia era em geral a suposiccedilatildeo de que as pessoas satildeo desinformadas e precisavam ler enunciados claros e detalhados Os alunos progrediam ao longo do semestre de

1 Traduccedilatildeo Clemilton Lopes Pinheiro e Karine alves David

20

A construccedilatildeo do argumento

tarefas simples a tarefas complexas com base em uma teoria de aprendizagem essencialmente behaviorista Por ser considerado o mais complexo dos modelos o argumento era o uacuteltimo ponto do programa do curso Dessa forma recebia pouca atenccedilatildeo ou era mesmo totalmente esquecido

Muitos professores ficavam de fato aliviados por natildeo precisarem ensinar sobre argumento jaacute que seus alunos tinham muita dificuldade no contexto do en-sino tradicional Em siacutentese essas dificuldades natildeo eram surpreendentes Embora a relaccedilatildeo entre modelo e objetivo fosse bastante expliacutecita quando se tratava de descrever o processo de fazer um sanduiacuteche essa mesma relaccedilatildeo se complicava por vaacuterias razotildees quando se pretendia persuadir um puacuteblico sobre a proibiccedilatildeo constitucional do casamento entre pessoas do mesmo sexo ser ou natildeo uma grande ideia Qualquer mudanccedila que ocorresse nessas tarefas parecia parar abruptamente quando se tratava de argumentar Como se sabe quando as demandas cognitivas de uma tarefa ficam fora da ldquozona de desenvolvimento proximalrdquo dos alunos todos os outros problemas ndash ortografia gramaacutetica sintaxe e estilo ndash despontam como uma virose Muitos professores de escrita relutantemente concluiacuteram com base em suas tristes experiecircncias que o argumento deve ser ensinado mais tarde ou em qualquer outro momento na universidade

Assim muitos dos problemas enfrentados pelos alunos ao aprenderem a construir argumentos em um curso de escrita tradicional poderiam ser atribuiacutedos agrave abordagem de ensino Era como se tentaacutessemos preparar os alunos para o caacutel-culo atribuindo-lhes uma seacuterie de problemas aritmeacuteticos prevendo que a tarefa de resolver problemas de adiccedilatildeo subtraccedilatildeo multiplicaccedilatildeo e divisatildeo os preparasse para resolver equaccedilotildees de segundo grau

Nem todos os cursos de escrita eram no entanto organizados em torno dos princiacutepios tradicionais Poucos textos aparentemente destinados a ser usados em cursos independentes sobre argumento eram mais promissores Eles eram constituiacutedos principalmente de antologias de argumentos canocircnicos interligados

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A construccedilatildeo do argumento

a conselhos inuacuteteis e apontamentos vagos Os prefaacutecios e introduccedilotildees geralmente breves ndash e raramente se desejava que fossem mais longos ndash ensaiavam alguns ter-mos claacutessicos falaacutecias informais e modelos de silogismos e convidavam os alunos a aplicar o material de alguma forma aos ensaios que se seguiam Eacute desnecessaacuterio dizer que as complexidades dos ensaios natildeo esclareciam as duacutevidas do capiacutetulo de abertura deixando estudantes e professores se perguntarem se talvez o ar-gumento natildeo estava aleacutem do alcance dos meros mortais

O que fez tudo isso mudar nos uacuteltimos vinte anos Aqui noacutes enfrentamos uma questatildeo do tipo quem vem primeiro o ovo ou a galinha Nossas abordagens sobre o argumento ganharam em sofisticaccedilatildeo e em utilidade por causa de um reconhe-cimento crescente da sua importacircncia no mundo ou a sofisticaccedilatildeo e a utilidade crescentes de nossas abordagens nos tornam progressivamente mais conscientes dessa importacircncia no mundo Provavelmente os dois fenocircmenos ocorreram mais ou menos simultaneamente e se reforccedilaram mutuamente Ou mais precisamente nossa tardia consciecircncia das muitas boas ferramentas disponiacuteveis para os estu-dantes de argumento as quais foram em muitos casos adaptaccedilotildees das usadas haacute dois mil anos tornou o seu estudo mais fecundo e a transmissatildeo de habilidades de argumentar mais confiaacuteveis Por qualquer que seja a razatildeo nos encontramos hoje em meio a uma espeacutecie de era de ouro da histoacuteria do ensino do argumento

Mais adiante examinaremos o passado para ver como isso aconteceu e como situar a eacutepoca atual na histoacuteria do ensino desse tema Por enquanto queremos nos concentrar em nossa compreensatildeo atual do argumento e na nossa motivaccedilatildeo para ensinaacute-lo

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A construccedilatildeo do argumento

um entendimento sobre o argumento

Em nossas aulas pretendemos fazer uma abordagem inicial sobre o argumen-to de forma direta e indutiva pelo exame de dois ou mais argumentos sobre uma mesma questatildeo treinando com nossos alunos quais satildeo as caracteriacutesticas de nossos exemplos mais provaacuteveis de serem aplicadas a outros casos Essa abordagem de ensino eacute ilustrativa de outra mais geral que defendemos bottom-up a aprendiza-gem baseada em problemas fundamentada na aplicaccedilatildeo e ascensatildeo de princiacutepios em oposiccedilatildeo ao modo tradicional top-down modo expositivo de transmissatildeo de conhecimento (isto eacute aulas expositivas)

Haacute com certeza vantagens e desvantagens na nossa abordagem indutiva de aprendizagem Em nome da aprendizagem ativa de importantes elementos do argumento perdemos de vista embora de forma passiva a ldquocoberturardquo de nosso toacutepico O melhor que podemos esperar de nosso exame inicial do argumento eacute uma melhor compreensatildeo de algumas de suas caracteriacutesticas mais proeminentes e um senso mais eficaz de como pensar criticamente sobre o toacutepico Esse eacute um dos pontos do exerciacutecio e do nosso curso os significados de termos complexos como argumento satildeo sempre contestaacuteveis porque eles satildeo de fato inesgotaacuteveis

Qualquer que seja o perigo que os alunos possam encontrar com a seleccedilatildeo de partes do todo os benefiacutecios de nossa abordagem na nossa opiniatildeo superam sig-nificativamente os potenciais custos Embora pudeacutessemos transmitir muito mais conhecimento assertivo sobre o argumento atraveacutes da exposiccedilatildeo natildeo haacute garan-tia de que o conhecimento que transmitimos chegaria ao seu destino ou que se chegasse seria suficientemente livre de ruiacutedo para natildeo confundir nosso sinal ou que os alunos teriam uma noccedilatildeo clara do que ldquofazerrdquo com o conhecimento retido durante a transmissatildeo Nossa experiecircncia com exposiccedilotildees sobre a definiccedilatildeo de argumento sugere que a pergunta mais comum que conseguimos provocar sobre o material apresentado eacute a seguinte O que vai cair na prova Natildeo consideramos que isso seja positivo Definir os problemas sobre os quais haacute um consenso eacute entre

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A construccedilatildeo do argumento

outras coisas chato Definir problemas que satildeo incertos e contestaacuteveis eacute conside-ravelmente mais interessante

Em nossas discussotildees iniciais sobre argumentos queremos que nossos alu-nos percebam que a definiccedilatildeo de qualquer noccedilatildeo complexa como a de argumento eacute contestaacutevel que os valores e crenccedilas que trazemos para o exerciacutecio de definir o termo influenciam nossa forma de definir e que a forma como definimos por sua vez determina a maneira de analisar

A cada semestre no final de nosso exerciacutecio indutivo de definiccedilatildeo natildeo che-gamos ao mesmo conjunto de conclusotildees sobre o significado de argumento que ensaiamos em nossas aulas mas a conclusotildees diferentes muitas vezes inesperadas decorrentes de conversas livres Com certeza dirigimos essa conversa o suficiente para assegurar que pelo menos alguma coisa sobre argumento seja feita e que nem todos os pontos abordados em nossas aulas sobrevivam agraves questotildees agraves quais os submetemos (como disse o antigo mestre da dialeacutetica Soacutecrates agraves vezes natildeo estamos acima das correccedilotildees) Mas cada semestre produz novos insights sobre o significado do argumento Um ponto importante para lembrar eacute o fato de que depois haveraacute muito tempo para abordar as questotildees mais cruciais da questatildeo deixada sem resposta Ao esperar os alunos estatildeo mais propensos a se envolve-rem e mais preparados para aplicar as ideias que eles tecircm na matildeo quando tiverem que produzir

Os argumentos que se seguem (textos 01 e 02) natildeo satildeo os que usariacuteamos em uma classe de graduaccedilatildeo tiacutepica As questotildees que eles levantam satildeo apropriadas para uma discussatildeo mais teoacuterica do argumento do que a que buscamos promover no iniacutecio de uma aula de graduaccedilatildeo Certamente natildeo os consideramos exemplos de argumento Mas tampouco satildeo escolhidos aleatoriamente Satildeo meta-argumentos de um tipo que levanta questotildees sobre a natureza do argumento central para a nossa abordagem e preveem as questotildees que se repetem nas paacuteginas que se seguem Os dois argumentos e a discussatildeo subsequente obviamente natildeo podem ser reproduzi-dos em uma aula pois as discussotildees seratildeo sempre abertas Para se ter pelo menos

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A construccedilatildeo do argumento

uma ideia sobre essa experiecircncia convidamos ao leitor a ler esse material da ma-neira como pedimos aos nossos alunos Antes de analisar nossa discussatildeo conveacutem observar como as duas coisas satildeo diferentes e semelhantes tanto na discussatildeo quanto nas conclusotildees a que chegam As conclusotildees podem entatildeo ser usadas para interrogar nossas proacuteprias conclusotildees sobre os dois argumentos

disCussatildeo de leo e fish parte i perspeCtiva teoacuteriCa

texto 01O relativismo cultural deixa algumas pessoas cegas para o mal

(John Leo universal Press Syndicate 15102001)

o governo episcopal da igreja episcopal emitiu uma declaraccedilatildeo vergo-

nhosa sobre os ataques terroristas Depois de estimular os crentes agrave recon-

ciliaccedilatildeo (isto eacute a dizer natildeo agrave guerra) os bispos disseram ldquoA afluecircncia de

naccedilotildees como a nossa contrasta com outras partes do mundo arruinadas

pela esmagadora pobreza que causa a morte de 6000 crianccedilas durante

uma manhatilderdquo O nuacutemero 6000 e a referecircncia a uma uacutenica manhatilde eacute claro

evocam o dia 11 de setembro em um espiacuterito de equivalecircncia moral

De forma clara os bispos parecem pensar que os americanos natildeo estatildeo

em posiccedilatildeo de queixar-se do massacre de Manhattan jaacute que 6000 crian-

ccedilas em todo o mundo podem morrer em um uacutenico dia os bons bispos

aparentemente estatildeo dispostos a tolerar 6 mil assassinatos em nova york2

porque o ocidente natildeo conseguiu eliminar a pobreza mundial e talvez de-

vesse ser culpado por causaacute-la Mas o ataque terrorista natildeo tem nada a ver

com a fome ou a doenccedila no mundo e a declaraccedilatildeo dos bispos eacute um enga-

2 O nuacutemero de viacutetimas dos atentados de 11 de setembro natildeo havia ainda sido fixado em 3000 quando Leo escreveu este texto

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A construccedilatildeo do argumento

no moral Quantos assassinatos o episcopado pode ignorar por causa da

existecircncia de uma esmagadora pobreza Se 6000 por que natildeo 60000

Esse eacute um pequeno exemplo do que poderia ser um grande problema a

longo prazo um grande nuacutemero de nossos liacutederes culturais e morais satildeo

incapazes de dizer claramente que o mal existe no mundo e que ele deve

ser desafiado Em vez disso eles se contentam em falar sobre ldquociclos de

violecircnciardquo e sobre como a praacutetica do ldquoolho por olho dente por denterdquo torna

o mundo cego como se o policial que prende o criminoso violento eacute de

alguma forma tambeacutem culpado pelo crime

Parte dessa filosofia surge da cultura terapecircutica Acusar algueacutem de ser

mau eacute uma forma ruim de pensar natildeo haacute mal nem certo e errado soacute mal-

-entendidos que podem desaparecer se retermos o julgamento e formos

tocados emocionalmente pelos outros Tudo pode ser mediado e discutido

Outras coisas se originam no relativismo moral que foi cerne da filosofia

multicultural dominante nas nossas escolas durante toda uma geraccedilatildeo o

multiculturalismo vai muito aleacutem da toleracircncia e apreciaccedilatildeo de outras cultu-

ras e naccedilotildees Ele prega que todas as culturas e todas as expressotildees culturais

satildeo igualmente vaacutelidas Isso elimina as normas morais Toda cultura (exceto

a americana eacute claro) estaacute correta segundo suas proacuteprias normas e natildeo

pode ser julgada pelos outros

Professores de todos os niacuteveis advertiram durante anos para onde isso se

dirigia estamos vendo um grande nuacutemero de jovens incapazes ou indis-

postos a fazer as distinccedilotildees mais simples entre o certo e o errado Mesmo

atos horrendos ndash o sacrifiacutecio humano em massa pelos astecas e genociacutedio

pelos nazistas ndash satildeo declarados indiscutiacuteveis ldquoEacute claro que eu natildeo gosto

dos nazistasrdquo disse um estudante do estado de Nova York a seu professor

ldquoMas quem pode dizer que eles estatildeo moralmente erradosrdquo O mesmo

argumento ou natildeo argumento pode tambeacutem se aplicar aos terroristas de

11 de setembro

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A construccedilatildeo do argumento

apenas uma minoria dos estudantes pensa dessa maneira mas o mul-

ticulturalismo com seu relativismo cultural radical estaacute se tornando um

problema seacuterio Isso deixa muitos estudantes em duacutevida sobre os valores

americanos tradicionais e desinteressados em qualquer sentimento de sen-

so comum ou solidariedade Eacute particularmente o caso do acreacutescimo a tudo

isso do mantra de que a esquerda cultural americana eacute ldquoracista-sexista-

-homofoacutebicardquo

Essa filosofia hiacutebrida ndash nenhum julgamento de outras culturas mas um jul-

gamento severo ndash jaacute estaacute comeccedilando a colorir muitas respostas aos ataques

terroristas Ela olha para o lado de fora do argumento das ldquocausas-raizrdquo e

da necessidade de ldquoentenderrdquo os terroristas e ver seus atos ldquono contextordquo

Muitas vezes o que as pessoas entendem por causa-raiz eacute o fato de que a

impiedosa e imperialista Ameacuterica trouxe os ataques contra si mesma

A filosofia tambeacutem brilha atraveacutes de muitas declaraccedilotildees de preocupaccedilatildeo

com o vieacutes contra os muccedilulmanos americanos naturalmente os muccedilulma-

nos natildeo devem ser escolhidos para o ataque ou o desprezo Mas muitas

declaraccedilotildees oficiais sobre o 11 de setembro fizeram apenas uma breve refe-

recircncia ao horror dos ataques antes de lanccedilar uma longa e desigual atenccedilatildeo

agrave possibilidade de um vieacutes anti-muccedilulmano

o terrorismo eacute a pior ameaccedila que a naccedilatildeo jaacute enfrentou e no momento os

americanos estatildeo solidamente unidos para enfrentaacute-lo a esquerda multi-

cultural-terapecircutica eacute pequena mas concentrada em instituiccedilotildees que fazem

a maior parte da pregaccedilatildeo para a ameacuterica ndash as universidades a imprensa

as principais igrejas e a induacutestria do entretenimento eles teratildeo de ser em-

purrados para afastar-se do multiculturalismo desleixado e do relativismo

universal Deixem a empurratildeo comeccedilar

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A construccedilatildeo do argumento

texto 02Condenaccedilatildeo sem absolutos

(Stanley fish new york Times 15102001)

Durante o intervalo entre os ataques terroristas e a resposta dos estados

unidos um repoacuterter telefonou para me perguntar se os acontecimentos de

11 de setembro significavam o fim do relativismo poacutes-modernista Parecia

bizarro que eventos tatildeo seacuterios tivessem alguma relaccedilatildeo causal com uma

forma rara de discurso acadecircmico Mas nos dias que se seguiram um nuacute-

mero crescente de comentaristas apresentou importantes variaccedilotildees sobre

o mesmo tema as ideias apresentadas pelos intelectuais poacutes-modernos

enfraqueceram a soluccedilatildeo do paiacutes o problema de acordo com os criacuteticos

eacute o fato de que como os poacutes-modernistas negam a possibilidade de des-

crever objetivamente as questotildees eles natildeo nos deixam bases firmes para

condenar os ataques terroristas ou lutar contra eles

Natildeo eacute exatamente assim O poacutes-modernismo sustenta apenas que natildeo

pode haver um padratildeo independente para determinar qual das muitas in-

terpretaccedilotildees diferentes de um evento eacute a verdadeira a uacutenica coisa contra a

qual o pensamento poacutes-moderno se opotildee eacute a esperanccedila de justificar nossa

resposta aos ataques em termos universais que seriam convincentes para

todos inclusive para nossos inimigos invocar as noccedilotildees abstratas de justiccedila

e verdade para apoiar nossa causa natildeo seria de qualquer forma eficaz

porque nossos adversaacuterios reivindicam a mesma coisa (ningueacutem se declara

apoacutestolo da injusticcedila)

em vez disso podemos e devemos invocar os valores particulares vividos

que nos unem e satildeo assumidos pelas instituiccedilotildees que valorizamos e dese-

jamos defender

em momentos como esses a naccedilatildeo retoma com razatildeo o registro de as-

piraccedilatildeo e realizaccedilatildeo que compotildee nossa compreensatildeo coletiva do que vi-

vemos Esse entendimento eacute suficiente e longe de minar sua suficiecircncia o

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A construccedilatildeo do argumento

pensamento poacutes-moderno nos diz que temos bases suficientes para a accedilatildeo

e condenaccedilatildeo justificadas nos ideais democraacuteticos que abraccedilamos sem

entender a retoacuterica vazia de absolutos universais a que todos subscrevem

mas que todos definem diferentemente

Mas eacute claro que natildeo eacute realmente com o poacutes-modernismo que as pessoas se

incomodam Eacute a ideia de que nossos adversaacuterios natildeo emergiram de algu-

ma antiga escuridatildeo mas de uma histoacuteria que os dotou de razotildees e motivos

e ateacute mesmo de uma versatildeo pervertida de algumas virtudes Bill Maher

Dinesh DrsquoSouza e Susan Sontag comeccedilaram a ter problemas ao assinalar

que ldquocovarderdquo natildeo eacute a palavra para descrever os homens que se sacrificam

por uma causa em que acreditam a Sra Sontag lhes daacute a coragem e tem

o cuidado de dizer que eacute um termo ldquomoralmente neutrordquo uma qualidade

que algueacutem pode exibir na execuccedilatildeo de um ato ruim (Satanaacutes de Milton eacute o

melhor exemplo literaacuterio) Vocecirc natildeo tolera esse ato porque o descreve com

precisatildeo Na verdade vocecirc se posiciona melhor para responder a ele to-

mando sua verdadeira medida Tornar o inimigo menor do que ele eacute cega

para o perigo que ele apresenta e daacute-lhe a vantagem que vem junto por ter

sido subestimado

Eacute por isso que o que Edward Said chamou de ldquofalsos universaisrdquo deve ser re-

jeitado eles estatildeo no caminho do pensamento uacutetil Quantas vezes ouvimos

estes novos mantras ldquoVimos a face do malrdquo ldquoEstes satildeo loucos irracionaisrdquo

ldquoEstamos em guerra contra o terrorismo internacionalrdquo Cada um eacute impre-

ciso e inuacutetil natildeo vimos o rosto do mal noacutes vimos a cara de um inimigo

que nos apresenta uma lista cheia de queixas de objetivos e de estrateacutegias

Se reduzimos esse inimigo ao ldquomalrdquo evocamos um democircnio que muda de

forma um anarquista moral de caraacuteter selvagem aleacutem de nossa compreen-

satildeo e portanto fora do alcance de qualquer contra estrateacutegia

A mesma reduccedilatildeo ocorre quando imaginamos o inimigo como ldquoirracionalrdquo

Os atores irracionais por definiccedilatildeo natildeo tecircm um objetivo claro e natildeo haacute ra-

zatildeo para raciocinar sobre a forma de combatecirc-los O melhor eacute pensar nes-

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A construccedilatildeo do argumento

ses homens como portadores de uma racionalidade que rejeitamos porque

seu objetivo eacute a nossa destruiccedilatildeo Se tomarmos o trabalho de entender essa

racionalidade poderiacuteamos ter uma melhor chance de descobrir o que seus

adeptos faratildeo a seguir e prevenir

E o ldquoterrorismo internacionalrdquo natildeo descreve adequadamente o que en-

frentamos o terrorismo eacute o nome de um estilo de guerra a serviccedilo de

uma causa Eacute a causa e as paixotildees que a informam que nos confrontam

Concentrar-se em algo chamado terrorismo internacional ndash destacado de

qualquer agenda especiacutefica ndash soacute confunde as coisas Isto deveria ter sido

evidente quando o presidente vladimir Putin da Ruacutessia insistiu que qualquer

guerra contra o terrorismo internacional deve ter como um dos seus objeti-

vos a vitoacuteria contra os rebeldes na Chechecircnia

Quando a Reuters decidiu tomar cuidado ao usar a palavra ldquoterrorismordquo

porque segundo seu diretor de notiacutecias o terrorista de um homem eacute o luta-

dor pela liberdade de outro homem Martin Kaplan decano associado da

escola annenberg de Comunicaccedilatildeo da universidade do Sul da Califoacuternia

criticou o que ele viu como mais um exemplo de relativismo cultural Mas

a Reuters estaacute simplesmente reconhecendo quatildeo inuacutetil eacute a palavra porque

nos impede de fazer distinccedilotildees que nos permitem ter uma imagem melhor

de onde estamos e o que poderiacuteamos fazer Se vocecirc pensa em si mesmo

como o alvo do terrorismo com um T maiuacutesculo seu oponente estaacute em toda

parte e em nenhuma parte Mas se vocecirc pensa em si mesmo como o alvo

de um terrorista que vem de algum lugar mesmo que ele opere interna-

cionalmente vocecirc pode pelo menos tentar antecipar seus futuros ataques

Eacute este o fim do relativismo Se pelo relativismo se entende um elenco de

opiniotildees que torna vocecirc incapaz de preferir suas proacuteprias convicccedilotildees agraves do

seu adversaacuterio entatildeo o relativismo dificilmente poderia terminar porque

nunca comeccedilou Nossas convicccedilotildees satildeo por definiccedilatildeo preferidas Isso eacute o

que as torna nossas convicccedilotildees Relativizaacute-las natildeo eacute nem uma opccedilatildeo nem

um perigo

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A construccedilatildeo do argumento

Mas se pelo relativismo se entende a praacutetica de se colocar no lugar do ad-

versaacuterio natildeo para se tornar igual a ele mas para ter alguma compreensatildeo

(muito longe da aprovaccedilatildeo) sobre o porquecirc de algueacutem mais querer ser

entatildeo o relativismo natildeo vai e natildeo deve terminar porque eacute simplesmente

outro nome para o pensamento fundamentado

Comeccedilamos com o elemento mais controverso da nossa discussatildeo nossa cren-ccedila de que o argumento de Fish eacute o mais forte e que nossos motivos para o preferir natildeo satildeo apenas ideoloacutegicos mas tambeacutem profissionais e teacutecnicos A primeira parte dessa afirmaccedilatildeo eacute provavelmente menos surpreendente para a maioria do que a segunda Muitos leitores deste livro acharatildeo o argumento de Leo menos persua-sivo assim como muitos leitores do digamos jornal conservador The Washington Times provavelmente achariam o argumento de Fish menos convincente A base para essa divisatildeo eacute congruente com as diferentes suposiccedilotildees sobre os argumentos colocados pelos dois autores Leo certamente afirmaria que nossos leitores leram mal seu artigo e foram enganados por Fish porque eles ndash isto eacute ldquovocecircrdquo ndash estatildeo presos ao ldquorelativismo moralrdquo

Da mesma forma Leo natildeo teria duacutevida de achar os leitores do The Washington Times mais perspicazes em grande parte porque eles conseguiram de alguma forma evitar a doutrinaccedilatildeo por uma ldquocultura terapecircuticardquo supervisionada pela elite intelectual ndash ou seja mais uma vez ldquovocecircrdquo Nossas duas leituras hipoteacuteticas tecircm diferenccedilas tanto de interpretaccedilatildeo quanto de significado Leitores competentes e natildeo corrompidos encontraratildeo o significado correto em cada um dos textos os leitores incompetentes e corrompidos natildeo Natildeo haacute espaccedilo no mundo de Leo para as ldquointerpretaccedilotildees rivaisrdquo de Fish sobre textos eventos porque no final haacute apenas uma leitura correta

Fish entretanto iria achar as diferenccedilas nas duas leituras insignificantes e certamente natildeo veria motivo para querelas Enquanto ele estaria preparado para se pronunciar contra uma leitura que julga seu argumento inferior ao de Leo ndash na

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A construccedilatildeo do argumento

verdade imagina-se que ele seria muito influenciado por tal julgamento ndash ele natildeo deixaria de relutar em reconhecer a superioridade de sua posiccedilatildeo como um sinal de corrupccedilatildeo moral

Os leitores do The Washington Times simplesmente constituem uma comuni-dade de leitores que compartilham crenccedilas diferentes e atribuem diferentes signi-ficados a termos como ldquoverdaderdquo e ldquojusticcedilardquo Ele estaria preparado para apresentar argumentos que mostram por que esses leitores estatildeo errados e ele certo ndash na verdade ele faz isso em seu texto ndash mas ele aceitaria desde o iniacutecio que em seus argumentos ele natildeo poderia apelar para qualquer conjunto de padrotildees univer-sais defendidos pelos seus apoiantes e pelos apoiantes de Leo que confirmariam suas conclusotildees e fortaleceria as de Leo aos olhos de todas as partes da discussatildeo (Porque Fish vecirc os limites entre as comunidades muito menos permeaacuteveis ele eacute menos otimista quanto agraves perspectivas do diaacutelogo intercomunitaacuterio do que noacutes) Leo entretanto assume que esses universais conhecidos de todos e ignorados perversamente por alguns existem embora ele tenha o cuidado de natildeo nomeaacute--los ou falar sobre suas relaccedilotildees Os extremos de Leo a ser nomeados mais tarde como divindades religiosas cujos nomes nunca devem ser citados impressionam mais na ausecircncia do que na realidade

Nossa proacutepria visatildeo nos inclina menos para Leo e mais para Fish por vaacuterias razotildees Em primeiro lugar as hipoacuteteses de Leo sobre a natureza da verdade e do significado satildeo incompatiacuteveis com as hipoacuteteses compartilhadas pela maioria dos membros de nossa proacutepria comunidade O mais importante dessas hipoacuteteses eacute a crenccedila de que o argumento tem poder heuriacutestico realizado pelo diaacutelogo com noacutes mesmos ou com outras pessoas fazendo o que Aristoacuteteles chamou de ldquoprovar opostosrdquo Noacutes natildeo apenas defendemos a verdade e vencemos o erro modificamos as verdades aceitas e descobrimos novas Nessa visatildeo estaacute impliacutecita a crenccedila de que a verdade natildeo pode ser como Leo parece assumir que eacute independente do jul-gamento humano ou da linguagem que usamos para formar esse julgamento Se a verdade eacute absoluta independente de noacutes e incorrigiacutevel por noacutes e se a linguagem eacute

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A construccedilatildeo do argumento

meramente um meio de expressatildeo transparente natildeo o que Burke chama de ldquotela terminoloacutegicardquo que molda o que revela a retoacuterica eacute um negoacutecio trivial merecedor do tipo de indignaccedilatildeo que o primeiro absolutista adepto ao platonismo sentiu pelo primeiro de nossa raccedila os sofistas

Embora a nossa posiccedilatildeo aqui uma posiccedilatildeo consistente se natildeo idecircntica agrave da maioria dos membros de nossa comunidade possa parecer com a posiccedilatildeo que Leo caracteriza como ldquorelativismo moralrdquo natildeo acreditamos que ela seja Dizer que noacutes mesmos ou Fish somos relativistas morais eacute mais uma caricatura do que uma re-presentaccedilatildeo de nossa posiccedilatildeo O fato de aceitarmos a inevitabilidade de posiccedilotildees muacuteltiplas sobre qualquer questatildeo de significado natildeo quer dizer que aceitamos ndash como o aluno desafortunado de Leo que ldquonatildeo gostardquo dos nazistas mas natildeo pode se denunciar ndash a equivalecircncia moral ou cognitiva de todas as posiccedilotildees sobre uma questatildeo Como retoacutericos natildeo podemos pedir a adesatildeo ao ldquoEu estou bemrdquo ldquoVocecirc estaacute OKrdquo quando debatemos relaccedilotildees humanas

De fato se isso prevalecesse os retoacutericos ficariam sem trabalho A retoacuterica e o argumentaccedilatildeo natildeo tecircm lugar em nenhum dos dois mundos que para Leo repre-sentem a soma de todas as possibilidades o mundo da Uma Verdade ou o mundo onde ele imagina habitar onde existem inuacutemeras verdades equivalentes No mundo da Uma Verdade a retoacuterica e a argumentaccedilatildeo podem servir tanto para propagar uma uacutenica feacute verdadeira como para levar as pessoas para longe dessa feacute mas natildeo poderia ter efeito legiacutetimo nas verdades que fundamentam a feacute Em um mundo de muacuteltiplas verdades equivalentes natildeo somente seriacuteamos impotentes para mudar a posiccedilatildeo uns dos outros tambeacutem natildeo haveria nenhuma razatildeo para querer ter boas razotildees para assumir uma posiccedilatildeo e natildeo outra

Nossa posiccedilatildeo portanto natildeo eacute absolutista nem relativista Preferimos consi-deraacute-la como ldquorealistardquo tal como Kenneth Burke usa esse termo Em um mundo re-alista a retoacuterica e a argumentaccedilatildeo satildeo atividades essenciais precisamente porque eacute um mundo que reconhece o papel significativo embora natildeo limitado que a accedilatildeo humana desempenha na soluccedilatildeo dos problemas do mundo e a parte importante

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A construccedilatildeo do argumento

que a linguagem desempenha para permitir ao ser humano atingir seus objetivos Em particular a linguagem tem a capacidade real de ldquofavorecer a cooperaccedilatildeordquo en-tre os seres humanos mesmo se falta o poder maacutegico de ldquoprovocar o movimento nas coisasrdquo (BURKE 1966) Embora Burke (1966) reconheccedila o enorme poder da linguagem para efetuar a mudanccedila seu realismo tambeacutem exige a crenccedila em um mundo independente do poder de formaccedilatildeo da linguagem

Nosso conhecimento desse domiacutenio extra verbal eacute adquirido negativamente atraveacutes do poder das coisas eventos e corpos para resistir a nossas afirmaccedilotildees e reivindicaccedilotildees e frustrar nossos projetos Esse poder de ldquodesobediecircnciardquo no mundo encoraja uma atitude de humildade como a que Burke (1996) encontra no pragmatista William James a quem ele se refere como ldquoum especialista no grau comparativo de adjetivos de valorrdquo James rejeitou o absolutismo (que eacute realmente o superlativo identificando o Um como o Melhor) e preferiu pensar ldquo[] em termos de mais e natildeo de todosrdquo Entre otimismo ou pessimismo ele preferia o ldquomelio-rismordquo (BURKE 1984) Enquanto os absolutistas como Leo agraves vezes permitem que o perfeito se torne o inimigo do bem julgando qualquer coisa menos do que tudo insuficiente e corrupta os realistas procuram melhorar as coisas por grau induzindo a cooperaccedilatildeo entre as pessoas e trabalhando em direccedilatildeo a finalidades coletivamente definidas que satildeo constantemente redefinidas Nesse mundo a re-toacuterica e as artes da persuasatildeo natildeo satildeo ferramentas insignificantes para distrair as massas satildeo ldquoequipamentos para viverrdquo

No mundo que descrevemos a justiccedila e a verdade satildeo termos importantes ainda que pouco presentes em nosso vocabulaacuterio O que as palavras significam para um determinado grupo de pessoas em um dado momento pode natildeo ser exatamen-te o mesmo em outro momento em circunstacircncias diferentes ou para um grupo diferente de pessoas em um mesmo tempo e um mesmo lugar Mas cada grupo em todas as circunstacircncias imagina que estaacute em busca da justiccedila e da verdade Ou como diz Fish de maneira mais marcante ldquoNingueacutem se declara apoacutestolo da injusticcedilardquo mesmo aqueles cujos meacutetodos nos podem parecer hediondos Diferentes

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A construccedilatildeo do argumento

grupos podem usar diferentes meios para chegar a significados diferentes para termos importantes como verdade e justiccedila mas essas diferenccedilas natildeo satildeo mais ldquosubjetivasrdquo do que o significado de Leo para ldquoobjetivordquo Apenas o fracasso de Leo em articular um significado especiacutefico para sua noccedilatildeo de verdade pode preservar sua aura de universalidade

Tanto a comunidade de Leo como a de Fish elaboraram uma definiccedilatildeo do termo consistente com seus proacuteprios princiacutepios Mas ao contraacuterio de Fish Leo e os membros de sua comunidade parecem rejeitar em primeiro lugar o processo que produziu sua versatildeo da verdade Ao chegarem ao reino dos Absolutos eles desfazem o caminho que percorreram e impendem outros de chegar Como o mundo platocircnico das Formas Puras a Verdade de Leo parece existir separada do mundo natildeo afetada pelas interaccedilotildees dos mortais As almas excepcionais podem ocasionalmente perceber uma essecircncia em meio aos acidentes da vida e depois de experimentar essas epifanias podem tentar compartilhaacute-las com os outros mas aleacutem disso os seres humanos natildeo tecircm nenhum papel na construccedilatildeo da verdade A diferenccedila entre as duas posiccedilotildees foi bem capturada pelo filoacutesofo Richard Rorty

Se vemos o conhecimento natildeo como uma essecircncia descrita por cien-tistas ou filoacutesofos mas como um direito segundo os padrotildees atuais de acreditar estamos no caminho para ver a conversaccedilatildeo como o uacuteltimo contexto a partir do qual o conhecimento pode ser entendido Nosso foco se desloca da relaccedilatildeo entre os seres humanos e os objetos de sua inves-tigaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre padrotildees alternativos de justificaccedilatildeo e daiacute para as mudanccedilas reais nesses padrotildees que compotildeem a histoacuteria intelec-tual (RORTY 1979 p 389-90)

Nos termos de Rorty (1979) o debate entre Leo e Fish pode ser enquadrado como um debate entre aqueles que representam o conhecimento como uma descri-ccedilatildeo precisa da essecircncia versus aqueles que o entendem como ldquoum direito segundo

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os nossos padrotildees atuais de acreditarrdquo Aqueles que defendem a primeira posiccedilatildeo relegam a retoacuterica e a persuasatildeo a um status decididamente secundaacuterio A desco-berta do conhecimento deve ser deixada para cientistas e filoacutesofos especializados na ldquorelaccedilatildeo entre os seres humanos e os objetos de sua investigaccedilatildeordquo Aqueles que defendem a segunda posiccedilatildeo colocam retoacuterica e persuasatildeo no centro da produccedilatildeo do conhecimento Atraveacutes da ldquoconversaccedilatildeordquo eles elaboram ldquoa relaccedilatildeo entre padrotildees alternativos de justificaccedilatildeordquo Isso eacute o que mais ou menos os retoacutericos tecircm feito haacute mais de dois milecircnios

disCussatildeo de leo e fish parte ii passando da dualidade ao Compromisso

Nesta segunda parte da nossa discussatildeo sobre os artigos de Fish e Leo que-remos voltar nosso foco para a sala de aula e mostrar como professores de que forma poderiacuteamos usar esses artigos para elaborarmos uma definiccedilatildeo provisoacuteria de argumento e aplicar as liccedilotildees do debate ao ensino Do ponto de vista do ensino o que eacute especialmente interessante sobre o argumento de Leo eacute quatildeo perfeitamente sua posiccedilatildeo e o status atribuiacutedo a ela reproduzem a mentalidade de dois grupos problemaacuteticos de estudantes que encontramos frequentemente em nossas aulas A partir do esquema de desenvolvimento cognitivo e moral de William Perry de-nominamos essas duas posiccedilotildees de ldquodualidade e multiplicidaderdquo Essas posiccedilotildees correspondem a dois dos primeiros estaacutegios do esquema de desenvolvimento de Perry (1999) e representam desafios marcadamente diferentes na sala de aula

Um aluno em dualidade supotildee que haacute respostas certas e erradas para cada pergunta e que o trabalho do professor eacute apresentar essas respostas de forma clara e depois testar os alunos para saber se eles lembram a resposta correta Nessa posiccedilatildeo os problemas surgem quando a) desafiamos os alunos a apresen-tarem as suas proacuteprias respostas eou b) os alunos acreditam que estamos dando

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respostas conflituosas em relaccedilatildeo as respostas anteriormente dadas por outros professores Se fizermos o nosso trabalho aconteceratildeo as duas coisas o que faraacute que os alunos retornem para suas antigas convicccedilotildees ou arrisquem a colocar suas crenccedilas ndash religiosa poliacutetica ou ideoloacutegica ndash em duacutevida Estudantes em dualidade podem muito bem nos ver como ameaccedilas agrave sua proacutepria identidade assim como sombrios e desconhecidos como os terroristas de Leo em nossas tentativas de desestabilizar sua visatildeo de mundo Eacute importante portanto ter em mente o quatildeo alto as apostas e os grandes riscos podem ser para esses estudantes quando lhes pedimos para ldquoprovar o que estaacute em contradiccedilatildeordquo e verdadeiramente ouvir argumentos opostos

Os alunos que estatildeo na multiplicidade entretanto adotam o laissez-faire vivem e deixam viver as diferenccedilas intelectuais tudo o que Leo atribui aos ldquomulticultu-ralistasrdquo Como os alunos em dualidade os em multiplicidade tambeacutem subvertem o processo dialeacutetico mas por meios diferentes Os em dualidade subvertem o processo dialeacutetico pronunciando Uma Tese Verdadeira e descartando todas as al-ternativas possiacuteveis Os que estatildeo na multiplicidade entretanto proclamam todas as teses alternativas igualmente vaacutelidas e as veem como possibilidades paralelas que nunca se cruzam Em nenhum dos casos uma tese pode engendrar uma antiacute-tese para produzir qualquer tipo de siacutentese Os que estatildeo na multiplicidade estatildeo abertos a novas ideias mas satildeo incapazes de engajar criticamente essas ideias de escolher as que fazem melhor sentido em um dado conjunto de circunstacircncias ou de combinar elementos de vaacuterias ideias para construir uma melhor

Na medida em que a faculdade eacute um lugar onde os estudantes abandonam a dualidade pela multiplicidade ndash embora na verdade poucos parecem entrar na faculdade na dualidade ndash Leo estaacute em parte certo ao afirmar que as faculdades encorajam os alunos a adotar algo como uma ldquoeacutetica difusardquo como visatildeo de mundo Provavelmente em um momento ou outro a maioria dos estudantes universitaacute-rios ndash incluindo alguns de noacutes ndash abraccedilaram um tipo de toleracircncia fraca a ideias diferentes a que Leo ironicamente se refere como ldquorelativismo moralrdquo como uma

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alternativa agraves formas mais maleacuteficas de intoleracircncia intelectual produzidas por dualismo Mas ao contraacuterio de Leo a maioria de noacutes vecirc nossa tarefa como estu-dantes em deslocamento das duas etapas para uma de raciociacutenio moral de ordem superior que abrange a complexidade e a contrariedade sem cair na indiferenccedila

Perry (1999) chama esse uacuteltimo estaacutegio de ldquocompromisso no relativismordquo Trata-se de uma posiccedilatildeo natildeo muito diferente da que Fish assume no seu artigo Embora permaneccedila um ideal mais do que uma possibilidade realista para a maio-ria das pessoas eacute uma aspiraccedilatildeo interessante de argumento para os professores levarem para seus alunos Aqueles que alcanccedilam o compromisso no relativismo reconhecem a impossibilidade de uma certeza perfeita equilibrada pela sua neces-sidade de agir sobre o conhecimento imperfeito Eles estatildeo firmemente compro-metidos com seus princiacutepios e conscientes de que nenhum conjunto de princiacutepios eacute infaliacutevel ou incorrigiacutevel O conhecimento eles passaram a entender eacute um processo infinito natildeo uma posse definitiva e o preccedilo que se paga por esse conhecimento eacute a duacutevida e o questionamento

Ao afastarem-se do que eacute absoluto aceitarem a necessidade de escolher a me-lhor entre alternativas imperfeitas e assumirem que a responsabilidade por essas escolhas as faz prosseguir pelo mundo aqueles do compromisso no relativismo satildeo perfeitamente capazes de natildeo apenas condenar posiccedilotildees contraacuterias aos seus proacuteprios princiacutepios mas de se colocarem no lugar de seus adversaacuterios e alcanccedilarem algum niacutevel de identificaccedilatildeo com eles

Eacute claro que natildeo haacute uma maneira clara de atrair os estudantes que estatildeo envol-vidos no relativismo (estaacutegio em que a maioria dos estudantes universitaacuterios de niacutevel baacutesico se encontra de acordo com Perry 1999) para a classe do compromisso no relativismo Poucos alunos se aproximaratildeo desse uacuteltimo estaacutegio ao concluiacuterem a carreira universitaacuteria Mas desde que o objetivo seja claro e nossos meacutetodos de ensino e nossa maneira de interagir com nossos alunos sejam congruentes com esse objetivo temos mais chance de levar aos alunos alguma coisa mais satisfatoacuteria para

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eles e para noacutes mesmos3 Se preferimos o argumento de Fish ao de Leo e se nossas preferecircncias estatildeo fundamentadas nos imperativos de nossa disciplina e de nosso modelo pedagoacutegico deveriacuteamos ser livres para compartilhar essa preferecircncia e o motivo de escolhecirc-la com nossos alunos

leo e fish parte iii os elementos do argumento

Um dos primeiros desafios que enfrentamos ao apresentar nossa noccedilatildeo de argumento para os alunos eacute dissipar as suposiccedilotildees erradas sobre o argumento que eles trazem para nossas salas de aula Afinal de contas eles adquiriram suas proacuteprias noccedilotildees de argumento muito antes de comeccedilarem o estudo formal do as-sunto Eles tiveram contato com argumentos em casa e na escola leram sobre isso em livros e jornais viram na televisatildeo escutaram no raacutedio e assistiram nos filmes incontaacuteveis vezes antes de entrarem na sala de aula onde pretendemos ensinar-lhes a escrever Dada a maneira natildeo sistemaacutetica como os alunos adquirem muito cedo o conhecimento sobre o argumento natildeo surpreende que eles possam precisar ser ldquodesatadosrdquo de algumas suposiccedilotildees antes de comeccedilar o ensino

No caso dos ensaios de Leo e Fish a primeira coisa que pode surpreender os alunos eacute o fato de que os dois ensaios natildeo dialogam entre si natildeo estatildeo em condiccedilatildeo de debate de ideias Embora os artigos de Leo e Fish tenham sido publicados no

3 ao usar o quadro de Perry (1999) para essa discussatildeo sobre o desenvolvimento do aluno natildeo queremos dizer que isso implica uma aceitaccedilatildeo sem criacutetica de sua teoria uma seacuterie de criacuteticas incisivas ao esquema de Perry foi feita nos anos setenta e oitenta particularmente por estudiosos feministas (por exemplo Gilligan Belenky e outros) que observaram o forte vieacutes masculino da pesquisa de Perry e sua incapacidade de explicar as diferenccedilas de gecircnero As formas de conhecimento das mulheres devemos reconhecer satildeo de fato diferentes das dos homens particularmente quando se trata de questotildees eacuteticas Dito isso as reaccedilotildees dos estudantes universitaacuterios em especial os estudantes de niacutevel inicial tanto do sexo masculino como feminino aos desafios colocados pelas aulas focadas no argumento parecem semelhantes agraves do esquema de Perry o que nos permite usaacute-las como um suporte para a presente discussatildeo

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mesmo dia 15 de outubro de 2001 tratem do mesmo assunto e chegem a conclu-sotildees completamente diferentes por meio de raciociacutenios tambeacutem completamente diferentes parecem ter sido escritos sem alusatildeo de um ao outro Um artigo natildeo refuta ponto a ponto a ideia do outro e quando se contradizem o fazem pela inter-seccedilatildeo aleatoacuteria de ideias contraacuterias sem intenccedilatildeo de assumir uma postura oposta

Quando afirmamos que os argumentos mais importantes do dia satildeo cons-truiacutedos de maneira semelhante muitos estudantes surpreendentemente natildeo acham estranho As experiecircncias pessoais desses estudantes os levam a entender o argumento segundo um ldquomodelo de debaterdquo em que duas (ou algumas) pessoas inclinadas a ganhar disputam diretamente ideias opostas Alguns se atentam a tais argumentos pelo lado divertido ndash a possibilidade de que eles podem acabar violentamente lhes daacute vantagem ndash ou para apostar em um dos lados da disputa Outros natildeo se engajariam em tais argumentos ndash ou em versotildees falsas de um mesmo programa de TV ou raacutedio ndash para avaliaacute-los com cuidado observar os menos persu-asivos e criar novos a partir do confronto O modelo dominante de argumento natildeo eacute em suma um modelo dialeacutetico pois trata-se de algo semelhante a um jogo cujo resultado eacute zero a zero um esporte em equipe que natildeo possibilita a participaccedilatildeo ativa dos que assistem ou a busca das verdades mais criacuteveis4

Nosso modelo preferido de argumentaccedilatildeo permite a busca por melhores ideias a partir do que Burke chama de ldquobusca de vantagensrdquo Mas como Burke reconhe-cemos que pelo menos algum elemento da busca de vantagens pode ser encontrado em todos os argumentos por mais civilizado que seja o tom natildeo importa o grau de flexibilidade em relaccedilatildeo agrave oposiccedilatildeo de opiniotildees Ningueacutem discute simplesmente

4 No caso do debate entre Fish e Leo parece que estamos nos contradizendo e declarando nossa preferecircncia pelo argumento de fish Mas eacute preciso lembrar que o seu desacordo tem mais natureza de um meta-argumento do que de um argumento regular e como tal a razatildeo de nossa preferecircncia remonta ao fato de que Leo natildeo oferece nenhuma razatildeo para ouvir argumentos opostos enquanto Fish especificamente apela a uma abordagem dialeacutetica para o desacordo como a que estamos apoiando aqui

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para encontrar as melhores ideias Eacute importante no iniacutecio do semestre desacos-tumar os alunos de suas ideias de argumento excessivamente violentas para natildeo exagerar no teor da nossa proacutepria empreitada e assim deixaacute-los mais desiludi-dos O argumento afinal normalmente envolve algum investimento do ego e do coraccedilatildeo bem como da mente e do julgamento A maioria de noacutes assume os riscos do argumento ndash o risco de alienar as pessoas de suscitar a oposiccedilatildeo de perder o ponto e de ter isso apontado nem sempre gentilmente em um ambiente puacuteblico ndash somente se nossas crenccedilas ou interesses mais caros estatildeo em jogo Ateacute mesmo o mais altruiacutesta dos argumentadores deseja se natildeo ganhar um argumento pelo menos ldquoacertarrdquo Perder um argumento ou mesmo ter um argumento colocado em duacutevida pode muito bem exigir que voltemos e reexaminemos as crenccedilas que ancoram nossa identidade

Portanto o argumento eacute arriscado em parte porque estamos buscando vanta-gem para nossos interesses e crenccedilas ou estamos lutando para impedir que outros tirem vantagem em relaccedilatildeo aos seus interesses e crenccedilas No entanto dito isso a maioria de noacutes mesmos ndash ou talvez sobretudo os terroristas ndash acredita verdadei-ramente que a serviccedilo de nossos proacuteprios interesses satildeo mobilizados interesses maiores e que a transmissatildeo de nossas crenccedilas direciona a verdade e justiccedila para os outros Certamente todos noacutes nos encontramos agraves vezes na posiccedilatildeo de apoacutes-tolos de senatildeo da injusticcedila de ideias que satildeo pelo menos as injustas de conjunto ruim No entanto mesmo nessa busca haacute uma certa nobreza e os alunos devem ser lembrados disso no iniacutecio do semestre

O que gerou os argumentos de Fish e Leo foi um evento o 11 de setembro que levou muitos americanos a mudar suas percepccedilotildees e hipoacuteteses sobre o mundo Ateacute 11 de setembro de 2001 haacute seacuteculos nenhum poder estrangeiro conseguiu invadir os Estados Unidos ou matar um nuacutemero significativo de cidadatildeos americanos em solo americano Apoacutes o 11 de setembro nosso senso de invulnerabilidade e do nos-so papel no mundo exigiu um reexame enquanto nossas crenccedilas sobre a atitude do resto do mundo em relaccedilatildeo a noacutes tiveram que ser radicalmente revisadas Em

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suma os acontecimentos do 11 de setembro representam um exemplo claacutessico do que na retoacuterica eacute referido como uma ldquoexigecircnciardquo De acordo com Bitzer (1995 p 304) que cunhou o termo haacute quarenta anos como parte de seu olhar revisionista sobre a situaccedilatildeo retoacuterica ldquoqualquer exigecircncia eacute uma imperfeiccedilatildeo marcada pela urgecircncia Eacute um defeito um obstaacuteculo algo que espera ser feito algo que eacute diferente do que deveria serrdquo Uma exigecircncia natildeo pode ser na linguagem do debate um pro-blema ldquoinerenterdquo um aspecto imutaacutevel da condiccedilatildeo humana digamos que desfia a soluccedilatildeo e natildeo pode ser um problema que possa ser resolvido diretamente por meios extra verbais ldquoUma exigecircncia eacute retoacuterica quando eacute capaz de ser modificada positivamente e quando essa modificaccedilatildeo requer um discurso ou pode ser assistida pelo discursordquo (BITZER 1995 p 304)

O ataque terrorista de 11 de setembro exigia um ldquodiscursordquo de cada um de noacutes quer em nossas respostas em silenciosos soliloacutequios quer em voz alta ou impressas para conhecimento puacuteblico O que noacutes fizemos do ataque Como deve-mos responder como naccedilatildeo e como indiviacuteduos A maioria dos americanos tentou articular seus sentimentos sobre o ataque e encontrar algum modo de formar um julgamento eacutetico sobre ele Muitas vezes olhaacutevamos para especialistas de confian-ccedila como Leo e acadecircmicos como Fish que compartilhavam seus pensamentos na miacutedia em busca de ajudar para encontrar a expressatildeo dos pensamentos que nos iludiram e das ideais que poderiam nos guiar

Tanto Fish quanto Leo compartilham o necessaacuterio senso de urgecircncia sobre o que precisa ser feito em resposta ao problema Para Leo a liccedilatildeo do 11 de setembro eacute a de que chegou o momento de comeccedilar a empurrar a ldquoesquerda multicultural--terapecircuticardquo para longe de seu relativismo superficial e oferecer uma frente unida presumivelmente ldquomonoculturalrdquo em oposiccedilatildeo agrave ameaccedila terrorista Eacute uma linha de pensamento que parece antecipar algumas linhas de pensamento seguidas posteriormente por nossa lideranccedila poliacutetica o mundo mudou em 11 de setembro atraveacutes de um chamado para uma revisatildeo de nossas prioridades poliacuteticas e de nosso sistema de valores (ou um retorno aos nossos valores fundamentais) incluindo o

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sacrifiacutecio de algumas liberdades em troca de uma melhor seguranccedila Nosso inimigo eacute o ldquoterrorismordquo ou alguma variaccedilatildeo dele (ldquofascismo islacircmicordquo ldquomovimento ter-rorista internacionalrdquo ldquoextremistas muccedilulmanosrdquo) que tem natureza monoliacutetica sombria e niilista Em oposiccedilatildeo a esse inimigo noacutes devemos ser intransigentes mesmo sozinhos se outros membros da comunidade internacional natildeo compar-tilham de nossa visatildeo

Da mesma forma o ensaio de Fish parece antecipar muitos dos argumentos apresentados por eventuais criacuteticos da guerra no Iraque depois que o Iraque se tornou de fato um campo de testes para ideias muito parecidas com as apoiadas por Leo O que resultou eacute um exemplo claacutessico do que aconteceu ao longo da histoacuteria quando as ideias absolutistas foram testadas na realidade O modelo monoliacutetico do mal correu contra a natureza heterogecircnea de uma sociedade profundamente dividida Embora os grupos terroristas tenham entrado na briga depois da ocu-paccedilatildeo americana a maior parte da violecircncia apoacutes 2003 foi a sectaacuteria infligida por grupos especiacuteficos cada qual ldquocom uma lista completa de queixas metas e estrateacutegiasrdquo buscando vantagem para seus interesses

Uma das questotildees interessantes levantadas pela noccedilatildeo de exigecircncia eacute o grau em que o ldquodefeitordquo ou o ldquoobstaacuteculordquo estaacute no mundo em relaccedilatildeo ao que eacute percebido Nossa proacutepria leitura ldquorealistardquo dos dois artigos imporia uma exigecircncia nos dois lugares Ou seja os artigos de Fish e Leo satildeo ao mesmo tempo respostas a um acontecimento no mundo independente do poder da linguagem para mudaacute-lo ou invertecirc-lo e continuaccedilotildees da formaccedilatildeo dos dois escritores para a vida a partir dos seus sistemas de crenccedilas Enquanto Leo sugere que o 11 de setembro mudou o mundo (o mundo que ele descreve no rastro do que houve em 11 de setembro eacute um mundo que tem muito em comum com a distopia que ele descreveu por mui-tos anos) e sua receita para lidar com o poacutes 11 de setembro eacute consistente com as propostas de reforma que ele realizou desde os anos de 1960

Da mesma forma a resposta liberal de Fish (embora Fish normalmente esca-pa a roacutetulos como liberalconservador sua posiccedilatildeo sobre essa questatildeo particular

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alinha-se com a posiccedilatildeo que muitos liberais finalmente tomaram sobre a questatildeo) ao problema do 11 de setembro ecoa ideias que ele tem articulado por mais de trinta anos nos domiacutenios da teoria literaacuteria e juriacutedica Sua insistecircncia de que de-vemos atender agraves particularidades das queixas de nossos inimigos para entender suas motivaccedilotildees as quais somos confrontados eacute uma parte da sua insistecircncia de que devemos ficar atentos aos detalhes dos textos para elaborar seu sentido no contexto das intenccedilotildees dos autores Sua afirmaccedilatildeo de que ao justificar nossas res-postas ao 11 de setembro soacute podemos apelar para aquelas verdades contingentes que compartilhamos com outros membros de uma comunidade que compartilha nossas crenccedilas - ldquoo registro de aspiraccedilatildeo e realizaccedilatildeo que compotildee nossa compre-ensatildeo coletiva do que vivemosrdquo - eacute uma parte da sua crenccedila de que as comunidades de leitores elaboram padrotildees de sentido e interpretaccedilatildeo entre si

Nosso interesse em relacionar os argumentos de Leo e Fish sobre o 11 de setembro com a visatildeo de mundo mais ampla deles vai aleacutem de qualquer interesse em rotular corretamente suas posiccedilotildees poliacuteticas Entender a fonte de suas rei-vindicaccedilotildees eacute diriacuteamos fundamental para entender o tom que os dois escritores assumem ao se expressarem Estabelecer cedo uma maneira razoavelmente clara de falar sobre questotildees de tom nas aulas de argumento eacute fundamental em virtude das dificuldades que muitos estudantes enfrentam para encontrar uma tonalida-de apropriada para seus argumentos Parte dessa dificuldade ocorre em funccedilatildeo dos diferentes estaacutegios de desenvolvimento nos quais os estudantes chegam em nossas aulas

Os estudantes inclinados para o dualismo por exemplo podem adotar um tom excessivamente agressivo em seus argumentos (embora poucos dualistas com-pletos apareccedilam no primeiro dia em nossas aulas eacute uma posiccedilatildeo da qual alguns estudantes particularmente os de primeiro ano se retiram quando se sentem ameaccedilados intelectualmente) Eacute importante lembrar que muita coisa estaacute em jogo para um dualista quando precisa justificar ideias que ele julga injustificaacuteveis Um sintoma dessa ansiedade seraacute uma certeza com tom agressivo mas sem convicccedilatildeo

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As posiccedilotildees independente do grau seratildeo pouco defendidas pouco qualificadas e sem convicccedilatildeo absoluta Os julgamentos categoacutericos controversos particularmente os julgamentos morais seratildeo respondidos como se fossem ordens Os argumentos opostos seratildeo descartados mesmo que pareccedilam fortes para uma terceira pessoa Qualquer leitor que natildeo esteja totalmente de acordo com o autor de um argumento pode se sentir mais intimidado do que persuadido

Os estudantes que estatildeo no estaacutegio da multiplicidade entretanto tambeacutem tendem a ver suas posiccedilotildees e julgamentos como evidentes natildeo porque eles satildeo a Uacutenica Verdade mas porque todo mundo acreditar em tudo o que quer O tom ado-tado pelos estudantes em multiplicidade seraacute consideravelmente menos belicoso do que o dos seus pares em dualismo Eles natildeo satildeo ameaccedilados pelo desacordo afinal as pessoas inevitavelmente veem as coisas de forma diferente Um argu-mento para eles eacute apenas uma maneira de deixar as pessoas saber ldquode onde elas vecircmrdquo Na verdade muitas vezes eacute difiacutecil discordar de suas posiccedilotildees Quanto mais abstrata a posiccedilatildeo que assumem no final das contas mais difiacutecil eacute contestar sua premissa baacutesica a de que natildeo haacute necessidade real de diferenciar posiccedilotildees Se o dualista tende para um tom excessivamente belicoso o adepto da multiplicidade tende para um tom excessivamente brando

Para ajudar os alunos a reconhecer as origens intelectuais do tom e as limi-taccedilotildees que enfrentam se eles satildeo incapazes de moderar o tom eacute uacutetil analisar as questotildees de tom em artigos como os de Fishs e Leo Como esses escritores satildeo consideravelmente mais sofisticados do que a maioria dos escritores aprendizes suas diferenccedilas de tom embora significativas satildeo menos riacutegidas do que as que vemos em nossas aulas O tom de Fish pode ser atribuiacutedo agrave sua crenccedila de que a verdade deve ser redescoberta e renegociada agrave medida que os textos mudam e a de que a verdade natildeo consiste em uma correspondecircncia entre seu vocabulaacuterio e o estado de coisas do mundo mas da justificativa mais persuasiva entre as versotildees concorrentes de verdade O tom de Leo por sua vez deriva de sua crenccedila de que existe uma verdade universal que natildeo eacute alterada pelas circunstacircncias Aqueles que

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pensam em linha reta como Leo possuem a verdade e o bem absolutos Os que pensam como os bispos obscurecem nossa visatildeo de verdade e de bem e permitem que o erro e o mal penetrem no mundo

Correndo o risco de exagerar nessas diferenccedilas descreveriacuteamos o tom de Fish como o mais proacuteximo do de um mentor ou guia algueacutem preocupado simultanea-mente em esclarecer duacutevidas e complicar a compreensatildeo de seus leitores sobre as coisas Trata-se de uma relaccedilatildeo assimeacutetrica para ser mais preciso Fish eacute o pro-fessor e noacutes somos seus alunos mas agrave medida que ele parece acreditar que somos capazes de seguir uma linha complexa de raciociacutenio ele natildeo eacute condescendente O tom de Leo ao contraacuterio parece mais com o de um avaliador ou julgador raacutepido e criacutetico Sua preocupaccedilatildeo eacute esclarecer questotildees simplificando-as a fim de facilitar um julgamento moral soacutelido

O tom de Leo se estabelece no iniacutecio de sua primeira frase ao usar a expressatildeo ldquovergonhosardquo antes mesmo de nos informar sobre a declaraccedilatildeo dos bispos Depois apoacutes retomar dois trechos da declaraccedilatildeo ele diz aos seus leitores o que os bispos dizem ldquode forma clarardquo antes de concluir que eacute ldquoum engano moralrdquo A clareza moral e linguiacutestica satildeo uma peccedila importante para Leo Ele se preocupa pouco portanto com aqueles que se interessam pelas ldquocausas-raizrdquo e pela compreensatildeo dos atos ldquono contextordquo Para fixar a histoacuteria ele oferece uma traduccedilatildeo ldquode forma clarardquo dessa conversa moral e linguisticamente absurda Os bispos realmente querem dizer que ldquoa impiedosa e imperialista Ameacuterica trouxe os ataques contra si mesmardquo Ao longo de sua criacutetica Leo oferece pouca evidecircncia para suas generalizaccedilotildees e poucos detalhes para ajudar seu puacuteblico a identificar os multiculturalistas os relativistas morais e os cidadatildeos de cultura terapecircutica

A citaccedilatildeo de ldquoum estudante de Nova Yorkrdquo eacute a uacutenica que apoia uma ampla generalizaccedilatildeo sobre as praacuteticas educacionais lastimaacuteveis da educaccedilatildeo superior americana enquanto a declaraccedilatildeo dos bispos eacute apresentada como ldquoum pequeno exemplo do que poderia ser um grande problemardquo a incapacidade dos liacutederes mo-rais ldquopara dizer claramente que o mal existerdquo

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Se a opiniatildeo de Leo sobre a declaraccedilatildeo dos bispos eacute na verdade acurada e justa o tom de seu artigo pode ser atribuiacutedo mais agrave indignaccedilatildeo moral legiacutetima do que aos costumes concernentes ao seu sistema de crenccedilas No entanto mesmo um simpatizante do ponto de vista de Leo teria problemas para alinhar o resumo da declaraccedilatildeo dos bispos com o texto integral dessa declaraccedilatildeo Comeccedila-se de fato anunciando que ldquo[] uma nova solidariedade com aqueles de outras partes do mundo para quem as forccedilas malignas do terrorismo satildeo um medo e uma realidade contiacutenuosrdquo (bispos) Para ter certeza de que Leo e os bispos natildeo parecem definir o mal da mesma maneira os bispos natildeo parecem satisfeitos em deixar o epiacuteteto ldquomalrdquo servir de explicaccedilatildeo completa para a motivaccedilatildeo do ato dos terroristas No entanto eles dizem que ldquoclaramente o mal existerdquo e que atos terroristas como o de 11 de setembro satildeo qualificados como atos malignos

Nossa preocupaccedilatildeo aqui natildeo eacute desconsiderar a criacutetica que Leo faz aos bispos Nossa preocupaccedilatildeo eacute enfatizar ateacute que ponto o tom do artigo de Leo natildeo deriva de uma consciecircncia ldquoobjetivardquo de um mundo independente de suas percepccedilotildees mas do sistema de crenccedilas atraveacutes do qual ele percebe esse mundo Enquanto Leo sem duacutevida consideraria essa controveacutersia excessiva uma bobagem relativa Fish natildeo As diferenccedilas de tom entre os dois escritores diriacuteamos natildeo eacute uma consequecircncia do fato de um ser menos objetivo do que o outro mas de um ser mais conscien-te do que o outro de que a objetividade total eacute atrativa e enganosa Em lugar da verdade absoluta e da objetividade Fish abraccedila alguma coisa da ordem da inter-subjetividade Em sua opiniatildeo estamos unidos por ldquovalores particulares vividosrdquo e compartilhamos ldquoo registro de aspiraccedilatildeo e realizaccedilatildeo que compotildee nosso enten-dimento coletivo do que vivemosrdquo A visatildeo pragmaacutetica de Fish da verdade como faliacutevel e particular reflete-se em seu tom que rivaliza com o dinamismo de Leo mas eacute menos julgador e mais cauteloso quanto agrave nomeaccedilatildeo das coisas No cerne de seu artigo de fato reside sua rejeiccedilatildeo da rotulagem redutora sua preocupaccedilatildeo em complicar as versotildees do poacutes-modernismo do relativismo e do terrorismo En-quanto Fish diz que ele encontra a pergunta do repoacuterter sobre ldquoo fim do relativismo

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poacutes-modernordquo que comeccedila seu artigo ldquobizarrordquo ele passa a oferecer uma resposta cuidadosa atribuindo a interpretaccedilatildeo errocircnea que o repoacuterter faz do termo natildeo a algum lapso moral mas como ldquouma forma rarefeita de conversa acadecircmicardquo com a qual o repoacuterter natildeo eacute normalmente acostumado

Ao expressar nossa preferecircncia pelo estilo de Fish estamos evidentemente reafirmando nossa simpatia pela sua visatildeo de mundo Essa preferecircncia no entanto natildeo eacute simplesmente ldquosubjetivardquo no mesmo sentido que algueacutem como Leo usaria esse termo Nossa simpatia com o ponto de vista de Fish e seu modo de expressatildeo eacute profissional e pessoal As ideias que ele expressa e a forma como expressa estatildeo mais em harmonia com nossos propoacutesitos disciplinares do que as de Leo Os pen-samentos e o tom de Fish satildeo em nossa opiniatildeo mais propensos a oferecer uma melhor abordagem sobre o assunto em questatildeo do que os pensamentos e o tom de Leo A hipoacutetese de um argumento valer mais que o outro no mercado de ideias eacute outra questatildeo Esses julgamentos satildeo mais difiacuteceis de fazer e mais especiacuteficos para o puacuteblico do que o julgamento dos efeitos dos argumentos sobre a compre-ensatildeo da questatildeo Para entender melhor essa relaccedilatildeo complexa muitas vezes mal compreendida entre os argumentos preferidos em um dia pelo puacuteblico e os que levam o puacuteblico a reexaminar os problemas passamos agora a considerar um continuum de praacuteticas de argumento e a medida usada para organizaacute-los ao longo desse continuum

argumento e ldquoa purifiCaccedilatildeo da guerrardquo

O subtiacutetulo para esta seccedilatildeo foi tirado da epiacutegrafe latina da A Grammar of Motives (Uma Gramaacutetica dos Motivos) de Burke (1966) ndash Ad bellum purificandum Trata-se ao mesmo tempo de um sentimento muito modesto ndash afinal muito cedo viu-se a guerra acabar completamente ndash e um muito ambicioso ndash agrave medida que a guerra cresceu exponencialmente de forma mais selvagem no novo seacuteculo desejamos o que pudesse atenuar seus terriacuteveis efeitos Eacute tambeacutem uma epiacutegrafe que poderia servir

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A construccedilatildeo do argumento

para introduzir a obra inteira de Burke pois capta claramente o objetivo primaacuterio da retoacuterica como ele imagina a transformaccedilatildeo de impulsos destrutivos em atos criativos e cooperativos da inimizade em identificaccedilatildeo da guerra em argumento

Como observamos anteriormente Burke eacute bastante realista para sustentar que essa transformaccedilatildeo nunca poderaacute ser completa em todos os argumentos permaneceraacute um elemento residual de agressatildeo e busca de vantagens por mais nobre que seja a causa em nome da qual o argumento eacute feito No entanto Burke eacute tambeacutem muito idealista para acreditar que outros interesses de quem argumenta satildeo sempre servidos pelo argumento O uacutenico caso em que as necessidades e cren-ccedilas de um puacuteblico podem ser ignoradas eacute o do argumentador que se convence de que sua cooperaccedilatildeo seraacute garantida pela forccedila se o seu argumento falhar e passa a argumentar praticamente pelas mesmas razotildees pelas quais os ditadores realizam eleiccedilotildees Joseph Heller capta perfeitamente o espiacuterito do ldquopoder da forccedilardquo disfar-ccedilado de argumento uma praacutetica hegemocircnica muito familiar para o puacuteblico do seacuteculo XXI em um diaacutelogo do romance Catch-22 O diaacutelogo apresenta a conversa entre o protagonista do romance Yossarian com seu inimigo Milo Minderbinder sobre o fato de Milo ter oferecido a um ladratildeo italiano algumas tacircmaras em troca de um lenccedilol e depois ter se recusado a entregar as tacircmaras quando o ladratildeo lhe deu o lenccedilol

ldquoPor que vocecirc natildeo bateu na cabeccedila dele e tomou o lenccedilolrdquo Yossarian per-guntouPressionando os laacutebios com dignidade Milo balanccedilou a cabeccedila ldquoIsso te-ria sido muito injustordquo Repreendeu com firmeza ldquoUsar a forccedila eacute errado e dois erros nunca formam um acerto Foi muito melhor a maneira como eu agi Quando eu segurei as tacircmaras para ele e peguei o lenccedilol ele pro-vavelmente pensou que eu queria negociarrdquoldquoO que vocecirc estava fazendordquoldquoNa verdade eu estava negociando mas como ele natildeo entende inglecircs eu posso negar semprerdquo

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ldquoSupomos que ele estaacute bravo e quer as tacircmarasrdquo ldquoPor que vamos bater na cabeccedila dele e tomar as tacircmarasrdquo Milo respon-deu sem hesitar (HELLER 1961 p 68)

Esse eacute entatildeo o argumento que aparece na extremidade esquerda do continuum onde a forccedila aparece de forma ameaccediladora por traacutes de cada artimanha persuasiva Quais os tipos de praacuteticas argumentativas se encontram no final desse continuum A propaganda e a publicidade vecircm imediatamente agrave mente Os argumentos dos pais que terminam com aquela frase honrosa que anuncia simultaneamente a vitoacuteria e admite a derrota (Porque eu disse) certamente caem em qualquer lugar do lado esquerdo das coisas Entatildeo agrave medida que se avanccedila para a direita em direccedilatildeo a formas mais ldquopurificadasrdquo de combate encontra-se a praacutetica do direito da nego-ciaccedilatildeo do trabalho e da educaccedilatildeo Por fim na posiccedilatildeo mais distante da forccedila haacute as mais puras praacuteticas persuasivas que parecem natildeo ser persuasivas O exemplo que Burke usa eacute a escrita de um livro Vamos examinar mais de perto as caracteriacutesticas dessas diferentes praacuteticas mas antes disso precisamos articular o princiacutepio usado para distinguir entre essas vaacuterias formas de persuasatildeo um princiacutepio a que Burke se refere de vaacuterias maneiras ldquointerferecircnciardquo ou ldquoautointerferecircnciardquo

Para entender esse princiacutepio eacute uacutetil ter em mente uma das metaacuteforas favoritas de Burke para a persuasatildeo responsaacutevel a praacutetica do namoro que eacute em si uma versatildeo ldquopurificadardquo de praacuteticas consideravelmente menos aparentes Se o namoro reina no extremo direito do continuum espera-se encontrar o equivalente persuasivo a algo como asseacutedio sexual na extremidade esquerda O asseacutedio sexual eacute uma relaccedilatildeo predatoacuteria baseada na assimetria atraveacutes da qual uma das partes usa seu poder sobre o outro para coagir o afeto No entremeio as artes da seduccedilatildeo entram em jogo como o sedutor finge ser o que sua presa deseja que ele seja e diz a ela o que quer ouvir a fim de alcanccedilar sua proacutepria gratificaccedilatildeo No lado direito do continuum entretanto haacute um casal de namorados com uma relaccedilatildeo respeitosa baseada na mutualidade que inevitavelmente inclui o sexo e muitos outros desejos Com cer-

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teza cada pessoa em um namoro faraacute o que puder para se tornar desejaacutevel para a outra para persuadi-la como base na sua melhor caracteriacutestica como parceiro Certamente a atraccedilatildeo sexual desempenharaacute um papel na relaccedilatildeo mas cada um estaacute disposto no momento a adiar sua satisfaccedilatildeo em nome do aumento do seu senso de identificaccedilatildeo com a outra pessoa superando os distanciamentos de classe gecircnero nacionalidade religiatildeo ou qualquer categoria que possamos usar para classificar a raccedila humana Enquanto que nos casos anteriores as relaccedilotildees satildeo apenas um meio para a satisfaccedilatildeo sexual de um dos parceiros ndash na formulaccedilatildeo de Martin Buber uma claacutessica relaccedilatildeo ldquoEu-Issordquo (BURBER 2001) ndash no namoro a relaccedilatildeo eacute um fim em si (ldquoEu-Turdquo) para ambos os parceiros Se algueacutem estender a metaacutefora do namoro para aleacutem da extremidade esquerda do continuum encontrar-se-ia no escuro reino do estupro e da agressatildeo sexual No extremo direito do continuum encontrar-se-ia no reino luminoso do celibato quando uma freira se declara noiva de Cristo Todas as praacuteticas que encaixam ao longo do continuum entretanto satildeo uma combinaccedilatildeo de interesse proacuteprio e desejo fiacutesico e uma vontade de interferir nos impulsos naturais de uma pessoa para outros fins

Voltando agora agraves praacuteticas reais de persuasatildeo que se inscrevem no continuum da autointerferecircncia comeccedilamos pela propaganda e pela publicidade Essas praacuteticas satildeo diz Burke muito ldquoendereccediladasrdquo jaacute que satildeo obsessivamente focadas no puacuteblico Trata-se de uma relaccedilatildeo assimeacutetrica com o anunciante ou publicitaacuterio que tem pelo menos algum controle no caso de alguns publicitaacuterios um monopoacutelio virtual sobre o acesso do puacuteblico agrave informaccedilatildeo e agrave compreensatildeo Embora os anunciantes e os pu-blicitaacuterios sejam raacutepidos no elogio ao seu puacuteblico especialmente agrave sua inteligecircncia seus conselhos sobre como conquistar o puacuteblico demonstram pouca importacircncia agrave inteligecircncia das pessoas Eles gastam muito tempo e quantidades extraordinaacuterias de dinheiro para explorar a psique e os pontos fracos emocionais de seu puacuteblico Nenhum outro grupo entre aqueles que praticam a arte da persuasatildeo se preocupa em gastar tanto tempo para descobrir maneiras de explorar a vulnerabilidade do puacutebico como os anunciantes e os publicitaacuterios O livro Mein Kampf (Minha Luta) de

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Hitler por exemplo eacute um claacutessico da teoria da propaganda e uma anaacutelise completa da psicologia do puacuteblico Observando a habilidade de Hitler na manipulaccedilatildeo de seu puacuteblico Burke chama a atenccedilatildeo para a maneira muito calculada como ldquoele mede resistecircncias e oportunidades com a lsquoracionalidadersquo de um profissional qualificado que planeja uma nova campanha de vendas A poliacutetica diz ele deve ser vendida como sabatildeo ndash e o sabatildeo natildeo eacute vendido em transerdquo (BURKE 1941 p 216) Os publi-citaacuterios contemporacircneos durante esse tempo satildeo implacaacuteveis quando buscam as conexotildees entre informaccedilatildeo demograacutefica e psicograacutefica (haacute sessenta e quatro grupos distintos de consumidores dispostos em uma grade psicograacutefica usada por anunciantes) e haacutebitos de compra do consumidor

Enquanto os estilos antigos de teorias comportamentais estatildeo fora de moda entre a maioria dos psicoacutelogos acadecircmicos nos dias de hoje os anunciantes e pu-blicitaacuterios ainda trabalham com a manipulaccedilatildeo de estiacutemulos para obter a resposta desejada Como engenheiros que ainda se baseiam no antigo paradigma newtoniano para construir pontes e arranha-ceacuteus os publicitaacuterios e os behavioristas parecem achar que o paradigma mecanicista ultrapassado funciona muito bem quando se trata de vender sabatildeo e poliacutetica

Embora toda a propaganda seja por definiccedilatildeo predatoacuteria como sugerimos anteriormente vamos considerar mais adiante os usos recentes da propaganda que abrange uma gama mais ampla de praacuteticas algumas das quais satildeo bastante benignas A publicidade por exemplo eacute usada para promover as contribuiccedilotildees tanto de obras de caridade como as utilidades de uma marca de sabatildeo De fato dentro de cada categoria de praacuteticas persuasivas encontrar-se uma seacuterie de praacuteticas que em vaacuterios graus satildeo uacuteteis por um lado ou ldquonegativasrdquo por outro

Alguns anuacutencios podem fazer pouco mais do que apresentar referecircncias po-sitivas sobre seu produto para pessoas desinteressadas Agraves vezes a propaganda pode servir a um objetivo de poliacutetica puacuteblica altruiacutesta e em vez de contar ldquoa Grande Mentirardquo como Goebbels (o Ministro da Propaganda na Alemanha Nazista entre 1933 e 1945) recomenda pode simplesmente reter informaccedilotildees que complicariam

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seu argumento No entanto tomadas como um todo essas praacuteticas natildeo promovem a auto interferecircncia de forma grave apenas na medida em que algueacutem altera o seu proacuteprio roteiro em reconhecimento de que um roteiro diferente favorece mais a aceitaccedilatildeo do seu puacuteblico e interfere nas proacuteprias vontades Mas isso eacute mais uma questatildeo de subordinar uma forma de satisfaccedilatildeo agrave outra No final seu puacuteblico eacute sempre um meio para atingir seus fins

Agrave medida que se avanccedila para o centro do continuum as praacuteticas juriacutedicas persuasivas servem como modelo Embora muitos colocariam a arte dos juristas mais agrave esquerda em nosso continuum o argumento legal eacute consideravelmente mais limitado em sua capacidade de seduzir ou enganar seu puacuteblico do que a propaganda e o anuacutencio Haacute aliaacutes consideravelmente mais paridade entre argumento e puacuteblico na arena legal do que na arena da poliacutetica e do consumo A retenccedilatildeo de informaccedilotildees por exemplo que pode ser bem vista como elemento de uma campanha virtuosa para mudar o rumo das coisas no domiacutenio da poliacutetica e da publicidade pode ser uma infraccedilatildeo puniacutevel no acircmbito da lei Devido ao caraacuteter contraditoacuterio do sistema juriacutedico os lapsos de seus argumentos satildeo vulneraacuteveis agrave divulgaccedilatildeo e agrave exploraccedilatildeo (nosso sistema poliacutetico eacute nominalmente contraditoacuterio mas haacute poucas regras para controlar o discurso poliacutetico e a toleracircncia puacuteblica para o raciociacutenio falacioso e ateacute mesmo para a hipocrisia quase serve para encorajar a interferecircncia entre poliacuteticos) A lei oferece todo tipo de restriccedilotildees formais para os advogados que manipulam seu puacuteblico Os advogados mais atentos podem usar informaccedilotildees demograacuteficas e psicograacuteficas para defender seu ponto de vista quando conhecem os criteacuterios de escolha dos jurados Apesar de todas as suas falhas o raciociacutenio juriacutedico impotildee vaacuterias formas de ingerecircncia aos participantes ao logo de todo o sistema de julga-mento ateacute o topo em que os juiacutezes da Suprema Corte esperam escrever opiniotildees para a posteridade

Burke usa a curiosa metaacutefora da escrita de um livro para explicar a forma ldquomais purardquo de persuasatildeo o equivalente a um grande namoro Aqui o princiacutepio da auto-interferecircncia natildeo eacute imposto por preocupaccedilotildees com o puacuteblico nem por

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regras convenccedilotildees e receios de puniccedilatildeo ou exposiccedilatildeo A restriccedilatildeo exigida da pura persuasatildeo eacute inteiramente auto imposta A auto interferecircncia de um autor responde agraves exigecircncias do livro que estaacute criando ldquo[] as exigecircncias satildeo condicionadas pelas partes jaacute escritas de modo que o livro se torna de certa forma algo natildeo previsto pelo autor e exige que ele interfira nas suas intenccedilotildees originaisrdquo (BURKE 1969 p 269) Essa interferecircncia natildeo eacute mais esteacutetica do que eacutetica e a pureza da persuasatildeo pura eacute mais a pureza formal da ldquoarte por causa da arterdquo do que a pureza moral da santidade

Dito isso Burke (1969 p 271) atribui agrave pura persuasatildeo ldquoum alto valor eacuteticordquo na medida em que impotildee uma ordem diferente de obrigaccedilotildees agravequeles que a ex-perimentam algo como ldquoverdade pelo amor agrave verdaderdquo As formas mais puras de argumentaccedilatildeo satildeo de natureza dialeacutetica uma abordagem de ideias com um mo-vimento e uma integridade proacuteprios que natildeo leva em conta as necessidades e os desejos de um puacuteblico Assim como a arte pela arte que produz arte frequentemen-te arte de forma a tocar o puacuteblico sem criar expectativas de reaccedilatildeo o argumento da extrema direita do continuum pode ter pouco sucesso escasso no mercado No entanto como as melhores obras que surgem do movimento da arte pela arte os argumentos puramente persuasivos podem eventualmente ter uma aceitaccedilatildeo tar-dia pelo puacuteblico em parte porque eles mudam a forma como as pessoas pensam sobre um dado assunto

No fim claro a persuasatildeo pura desse tipo natildeo eacute uma meta para os estudantes de mas eacute uma tendecircncia dentro do argumento um contrapeso agraves tendecircncias opos-tas para um foco exclusivo ndash e muitas vezes predatoacuterio ndash no puacuteblico Ao apresentar os alunos o conceito de persuasatildeo pura eacute bom lembrar um sentido alternativo para o termo argumento ndash o ldquocernerdquo ou a ldquoessecircnciardquo de uma parte de um grande discurso Procurar o cerne de qualquer que seja o discurso eacute um haacutebito comum a todos os leitores criacuteticos Quanto mais complexo eacute o discurso que estamos lendo mais provaacutevel seraacute a identificaccedilatildeo de argumentos opostos menos encontraremos uma tese inequiacutevoca ou uma afirmaccedilatildeo principal na uacuteltima frase do primeiro pa-

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raacutegrafo ndash onde muitos de nossos alunos foram ensinados a procurar ndash A essecircncia eacute uma siacutentese de ideias diacutespares e um produto comum aos poderes interpretativos do leitorouvinte e agraves propriedades do discurso que eacute interpretado Natildeo eacute o que resta quando uma ideia supera a outra um trofeacuteu ou os louros para o vencedor eacute um ato criativo uma versatildeo retoacuterica da essecircncia no sentido ontoloacutegico No final das contas ensinamos argumento para isto para estimular o pensamento dos nossos alunos sobre o mundo para ajudaacute-los a aprender a compreender o julga-mento (para cultivar a arte do debate) de suas proacuteprias ideias bem como das dos outros para testaacute-lo de forma suficiente no rebate de ideias opostas e respeitar o resultado dessa combinaccedilatildeo

por Que os alunos preCisam argumentar

Ateacute aqui apresentamos uma definiccedilatildeo de argumento congruente com nossos propoacutesitos disciplinares e crenccedilas pessoais Nesta proacutexima seccedilatildeo mudamos nosso foco para as habilidades que podem ser esperadas dos alunos que fazem um curso baseado no argumento Qual o papel do estudo do argumento no curriacuteculo e na vida dos alunos Agrave medida que projetamos nossos cursos e nossos objetivos precisamos ter em mente esse papel e moldar nossa pedagogia em torno dele A seguir vamos nos concentrar em trecircs funccedilotildees particularmente importantes do argumento um meio de ensinar mais facilmente o conjunto de competecircncias que se pode aprender em um curso de escrita um meio de construccedilatildeo e defesa da identidade e um meio para o desenvolvimento do raciociacutenio eacutetico

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argumento e letramento CrIacutetiCo

Embora natildeo haja um uacutenico nome para o grupo altamente heterogecircneo de habi-lidades que os alunos podem aprender em um curso de escrita focado no argumento vamos nos referir a esse conjunto aqui como ldquoletramento criacuteticordquo um conceito que apresenta diferentes contornos e como veremos em breve eacute um pouco contro-verso Tentaremos precisar uma definiccedilatildeo proacutexima da forma como vamos usar e que minimize alguns de seus aspectos mais controversos Ao definir o letramento criacutetico conveacutem dizer que sabemos mais sobre o que natildeo eacute do que sobre o que eacute Certamente natildeo eacute o que era feito com a escrita na escola tradicional a ecircnfase em formas preacute-fabricadas e em leitores passivos O curriacuteculo tradicional natildeo soacute natildeo encorajava os alunos a pensar ldquofora da caixardquo como tambeacutem os encorajava a pensar em tudo como robocircs ateacute mesmo no que diz respeito agrave escrita que eacute um fenocircmeno inerentemente complexo e singular Seu objetivo aparente era o letramento no sentido mais antigo de competecircncia miacutenima embora fosse sendo ampliada ateacute a faculdade Natildeo encorajava o engajamento ou a reflexatildeo pessoal Certamente natildeo oferecia aos alunos muitas habilidades de compreensatildeo que pudessem ser usa-das fora da escola Poucos cursos de Filosofia na universidade exigem a escrita de narraccedilatildeo assim como cursos de Sociologia enfatizavam a funccedilatildeo da descriccedilatildeo (alguns outros cursos aboliram as aulas de escrita do primeiro ano exatamente porque acreditam que o modelo tradicional de escrita ou alguma variante dele eacute o modelo usado na vida profissional Se algueacutem acredita na existecircncia desse modelo estaacute certo)

Talvez a principal caracteriacutestica distinta do letramento criacutetico tal como o compreendemos e a que mais claramente o diferencia de sua versatildeo mais antiga e minimalista eacute sua ecircnfase no conhecimento reflexivo a capacidade que o poeta criacutetico e ensaiacutesta inglecircs Samuel Taylor Coleridge chama de ldquoconhecer seu conheci-mentordquo em relaccedilatildeo ao simplesmente possuir o conhecimento Isso significa dizer que em vez de focalizar as exigecircncias para a escrita de um bom artigo eacute preferiacutevel

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considerar as dificuldades enfrentados pelos alunos para construir um bom ar-gumento Eles devem ser capazes de imaginar os contra-argumentos antecipar a resposta do puacuteblico em particular o ceticismo e o desconhecimento e mover-se habilmente entre as pretensotildees de verdade as razotildees que justificam as alegaccedilotildees e as evidecircncias que apoiam as razotildees

Os alunos devem avaliar a adequaccedilatildeo da defesa agrave sua reivindicaccedilatildeo e analisar seu grau de conformidade Eles devem aprender a avaliar os elementos das provas resumir e questionar a autoridade a partir de pontos de vista diferentes Talvez o mais importante eacute preparar os alunos para arriscar suas crenccedilas e suposiccedilotildees sobre o mundo Natildeo eacute possiacutevel na arena do argumento simplesmente ldquoconectar [em uma foacutermula] e arriscar [uma resposta]rdquo Os alunos precisam entender as questotildees no contexto de uma conversa aceitando desde cedo que como Stanley Fish sugere nem todas as partes dessa conversa compartilharatildeo as mesmas crenccedilas e hipoacuteteses

No intuito de esclarecer ainda mais o conceito de letramento criacutetico pode ser uacutetil comparaacute-lo com outra abordagem de ensino de escrita que sucede ao modelo tradicional O movimento de reflexatildeo criacutetica na escrita foi proposto por Hayes e Flower (1980) Os autores mostram como os meacutetodos de resoluccedilatildeo de problemas podem ser aplicados na sala de aula para o ensino de escrita Eles estatildeo entre os primeiros no campo dos estudos sobre a escrita que tratam de forma plenamen-te desenvolvida a escrita como um ldquomodo de pensarrdquo e veem que a aquisiccedilatildeo da escrita implica um raciociacutenio de ordem superior Poreacutem enquanto o movimento de reflexatildeo criacutetica foi uacutetil para ajudar a disciplina a superar as abordagens tradi-cionais natildeo possibilitou uma reflexatildeo sobre a capacidade de compreensatildeo como o letramento criacutetico se propotildee a fazer Aleacutem disso as habilidades de resoluccedilatildeo de problemas focalizadas eram ensinadas sem um juiacutezo de valor como um conjunto de habilidades natildeo muito diferentes das que satildeo necessaacuterias para resolver um quebra-cabeccedila Isso limitou sua aplicabilidade ao ensino do argumento um gecirc-nero que muitas vezes nos leva longe em problemas que satildeo carregados de valor e emoccedilatildeo

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Uma das maneiras mais faacuteceis de distinguir a abordagem da reflexatildeo criacutetica de ensino de escrita da abordagem do letramento criacutetico eacute focar na noccedilatildeo de re-soluccedilatildeo de problemas Dito de maneira simples os proponentes da reflexatildeo criacutetica se concentram na maneira de resolver problemas enquanto os proponentes do letramento criacutetico se concentram na maneira de descobrir problemas Uma das figuras mais importantes ligadas ao letramento criacutetico nos anos 80 o filoacutesofo brasileiro Paulo Freire cunhou o termo ldquoproblematizaccedilatildeordquo para descrever o que ele pretendia fazer com seu programa educacional na Ameacuterica do Sul

O trabalho de Freire com as populaccedilotildees do campo provou ser tatildeo polecircmico que o governo resolveu interditaacute-lo No processo de alfabetizaccedilatildeo baacutesica Freire ensinava a poliacutetica revolucionaacuteria fazendo que o pensamento ldquomiacuteticordquo da preacute--alfabetizaccedilatildeo desse lugar ao letramento criacutetico O poder de nomear situaccedilotildees que os camponeses de Freire cedo descobriram conteacutem as sementes para desafiar e redefinir essas situaccedilotildees Em um niacutevel as experiecircncias pedagoacutegicas de Freire confirmaram uma das ideias mais importantes de Kenneth Burke os proveacuterbios que constituem uma espeacutecie de enunciado com poucas palavras para nomear situaccedilotildees recorrentes constituem ldquoestrateacutegias para lidar com essas situaccedilotildeesrdquo (BURKE 1941 p 296) Para Burke e Freire as palavras nunca satildeo neutras Antes de dizer qualquer coisa devemos primeiro dimensionaacute-la ldquodiscernir o geral que estaacute atraacutes do particularrdquo (BURKE 1941 p 301) e a palavra que escolhermos por sua vez implica uma atitude em relaccedilatildeo a ela Na medida em que uma atitude eacute um ato incipiente a linguagem e a poliacutetica estatildeo indissoluvelmente ligadas

Os educadores tecircm relutado em abraccedilar a dimensatildeo poliacutetica do letramento criacutetico por razotildees oacutebvias Conforme testemunhou a antipatia de John Leo pelas simpaacuteticas poliacuteticas ldquoterapecircuticasrdquo ldquomulticulturalistasrdquo da faculdade jaacute existe um grande receio sobre a possibilidade de as escolas serem doutrinadoras em vez de educar os alunos O fato de o letramento criacutetico pertencer a uma antiga tradiccedilatildeo de educaccedilatildeo que defende que ldquoa vida sem consciecircncia natildeo vale a pena ser vividardquo e que encoraja as virtudes natildeo partidaacuterias como autorreflexatildeo e autoquestionamento

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natildeo desencorajou criacuteticos conservadores de denunciaacute-la como uma ferramenta de propaganda Enquanto alguns dos mais fervorosos defensores do letramento criacutetico como os mais verdadeiros crentes de alguma causa parecem agraves vezes acreditar que a uacutenica verdadeira feacute eacute a sua e os natildeo crentes estatildeo em alianccedila com os ldquoJohn Leordquo do mundo muitos dos nossos mais reflexivos praticantes e professores inovadores professam lealdade ao letramento criacutetico em bases essencialmente pedagoacutegicas

Aleacutem disso aqueles que satildeo tentados a acreditar que ao ensinar os alunos a desafiarem o status quo ao questionar a tradiccedilatildeo e a autoridade e ao refletir dia-leticamente sobre o mundo asseguram a formaccedilatildeo de uma geraccedilatildeo de estudantes comprometida com poliacuteticas progressistas se sentiratildeo orgulhosos O letramento criacutetico eacute um instrumento muito complexo para servir simplesmente como uma ferramenta eficiente de doutrinaccedilatildeo A ecircnfase na forma de pensar nos processos de primeiro plano e de compreensatildeo taacutecita combinada com sua atitude ceacutetica em relaccedilatildeo ao conteuacutedo e agrave sua abordagem deixa inteiramente aberta a questatildeo sobre o que os estudantes podem fazer com sua formaccedilatildeo As muitas qualidades desenvolvidas atraveacutes do letramento criacutetico que podem ser prontamente aplicadas a outros cursos e o torna bastante adaptaacutevel aos cursos de Histoacuteria Economia e Sociologia satildeo as mesmas que o tornam um mal instrumento de doutrinaccedilatildeo Como lembra Michael Berude citando o que ele chama de ldquoreversibilidaderdquo natildeo haacute como garantir que a formaccedilatildeo de estudantes em letramento avanccedilado possa ser ldquo[] um veiacuteculo unidirecional para a mudanccedila poliacuteticardquo (BERUDE 1998 p 145) Nossos pensadores mais criacuteticos podem se ser tanto grandes conhecedores de Hedge Fund (Fundo de multimercado) como certamente revolucionaacuterios poliacuteticos

Para aleacutem do medo de parecermos partidaacuterios em nossa abordagem de ensino de escrita haacute um estiacutemulo mais profundo para o ensino reflexivo que natildeo o super-ficial papel poliacutetico O filoacutesofo Hans Blumenberg por exemplo observa a crescente pressatildeo sobre os educadores para deixar de lado o objetivo de vida consciente e ldquoabandonar a ideia que eacute governada pela norma de que o homem deve saber o que estaacute fazendordquo (BLUMENBERG 1987 p 446) em nome da busca de meios cada vez

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mais parcimoniosos de resolver os problemas Em resposta Blumenberg (1987 p 446) pede uma volta agrave Retoacuterica alegando que ela representa ldquo[] um modo de re-alizaccedilatildeo consumada do atraso [do tempo] A circunstancial idade a inventividade processual a ritualizaccedilatildeo implicam uma duacutevida na maneira de saber se o ponto mais curto para ligar dois pontos eacute tambeacutem o caminho humano de um para o outrordquo

O motivo que explica a volta de Blumenberg para a retoacuterica ressoa aqui um tema abordado por Burke que frequentemente expressa uma atitude ceacuteptica em relaccedilatildeo agrave Lei da Parcimocircnia e ao nonsense de Occam (por exemplo o behaviorismo e o monetarismo) que resulta na seguinte conclusatildeo

[] se uma grande parte do serviccedilo foi obtido seguindo a lei de Occam segundo a qual ldquoas entidades natildeo deveriam ser multiplicadas para aleacutem da necessidaderdquo uma falta de serviccedilo surgiu na ignoracircncia de uma lei que ser enunciada da seguinte maneira as entidades natildeo devem ser re-duzidas para aleacutem da necessidade (BURKE 1966 p 324)

Para Burke (1966) a idade moderna eacute caracterizada muito mais por crimes contra a segunda lei do que contra a primeira Se o pensamento criacutetico implica uma capacidade de resolver problemas de forma eficiente atraveacutes da simplificaccedilatildeo o letramento criacutetico implica uma capacidade de gerar complexidade atraveacutes da reflexatildeo Aleacutem disso implica tambeacutem a capacidade de natildeo soacute escrever com clare-za quando se pode mas de maneira complexa quando eacute preciso de se referir aos limites de um puacuteblico quando conveacutem e desafiar e expandir esses limites quando a deferecircncia vence os objetivos Embora os objetivos que buscamos no letramento criacutetico sejam de fato altos e embora natildeo tenhamos chegado a um consenso sobre a melhor maneira de alcanccedilaacute-los eacute claro que ensinar os alunos a escrever argu-mentos eacute uma dessas maneiras Nesse processo as liccedilotildees que os alunos aprendem em um curso sobre argumento com base nos princiacutepios do letramento criacutetico satildeo mais faacuteceis de serem levadas para outras aacutereas do curriacuteculo

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Essa uacuteltima afirmaccedilatildeo eacute corroborada pela experiecircncia de muitos de noacutes que trabalham na aacuterea da escrita atraveacutes do curriacuteculo (WAC ndash writing across the curri-culum ndash escrita atraveacutes do curriacuteculo) O que muitos de noacutes descobrimos quando am-pliamos nossa atuaccedilatildeo para ajudar os professores de outras disciplinas a melhorar a escrita de seus alunos foi o fato de que realmente estaacutevamos ajudando seus alunos a escrever melhores argumentos Ou para dizer de forma mais precisa estaacutevamos ajudando os professores de outras disciplinas a ensinar seus alunos tanto a argu-mentar sobre um assunto de uma disciplina como a escrever sobre esse assunto Ensinar os formatos de textos em Psicologia ou Fiacutesica era relativamente simples Ao contraacuterio ao sensibilizar os alunos sobre os pressupostos desses formatos as hipoacuteteses sobre o peso relativo da evidecircncia relativa os diferentes formatos em concordacircncia agraves fontes primaacuterias e secundaacuterias aos dados experimentais agrave teoria agrave anomalia etc provaram ser uma tarefa consideravelmente mais desafiadora

Noacutes os agentes do movimento WAC estaacutevamos retomando o papel de nossos ancestrais sofistas noacutes eacuteramos os metecos os estrangeiros que passeiam por um lugar simultaneamente incapacitados e capacitados por nosso status de estrangeiro O que pareceu talvez para um membro de uma comunidade disciplinar como uma demonstraccedilatildeo de verdade para muitos de noacutes sob nosso olhar foi uma artimanha persuasiva Como o Senhor Jourdain de Moliegravere que se surpreende ao saber que falava sempre em forma de sermatildeo muitos de nossos colegas de outras disciplinas ficaram surpresos ao saber que eles estavam usando e ensinando retoacuterica o tempo todo Quando alcanccedilaram essa consciecircncia muitos desses colegas se tornaram grandes defensores do foco no argumento natildeo apenas em seus proacuteprios cursos mas tambeacutem nos cursos de escrita nos quais preparamos os alunos para suas dis-ciplinas Como demonstraremos no capiacutetulo dois as abordagens usadas nos cursos de argumento contemporacircneos satildeo perfeitamente adaptaacuteveis a outras disciplinas

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argumento e identidade

Um dos aspectos mais controversos do letramento criacutetico diz respeito agraves conexotildees que ele estabelece entre pensamento criacutetico e identidade Ao incentivar os alunos a se tornarem pensadores mais reflexivos os defensores do letramento criacutetico chamam a atenccedilatildeo para vaacuterias forccedilas no mundo que minam o senso de ca-pacidade de accedilatildeo das pessoas e os incitam a querer atingir seus propoacutesitos Eles chamam tambeacutem a atenccedilatildeo para o fato de que as formas como tomamos decisotildees como consumidores trabalhadores e cidadatildeos decisotildees sobre o que comer sobre como progredir no trabalho sobre em quem votar revelam quem somos e refor-ccedilamos para o bem ou para o mal nossa autocompreensatildeo Vendedores de sabatildeo gurus de gestatildeo e consultores poliacuteticos tecircm um interesse natildeo soacute de compreender quem somos mas em formar uma identidade compatiacuteveis com seus interesses Os alunos precisam portanto ser reflexivos sobre essas escolhas conscientes das implicaccedilotildees de algumas de suas escolhas e alertas para as artimanhas persuasivas comuns agravequeles que os encorajam a assumir essas identidades

Isso pode revelar-se uma tarefa desafiadora Os alunos satildeo muitas vezes fortemente resistentes a estabelecer relaccedilatildeo entre quem eles satildeo e as escolhas diaacuterias que eles fazem Eles natildeo gostam da sugestatildeo impliacutecita de que eles podem ser as viacutetimas de algum grupo sombrio de ldquoperseguidores ocultosrdquo nem da ideia de ter que prestar atenccedilatildeo tanto nas escolhas como nas decisotildees que ateacute entatildeo tecircm feito de forma simples Natildeo estamos fazendo uma montanha de um pequeno morro dizem eles para que essa intensa atenccedilatildeo criacutetica para um simples anuacutencio ou para escolher um livro de negoacutecios pop

Qualquer um que tenha ensinado em um curso de literatura reconheceraacute a resposta Eles satildeo ceacuteticos quanto ao fato de uma coisa tatildeo simples superficialmen-te poder ter toda essa profundidade de significado As vaacuterias preocupaccedilotildees que os alunos expressam sobre a aplicaccedilatildeo das liccedilotildees de letramento criacutetico para sua vida cotidiana precisam ser levadas em conta Por um lado eles tecircm o direito de

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A construccedilatildeo do argumento

insistir na sua proacutepria maneira de resolver as coisas e na sua proacutepria capacidade de se distanciar das influecircncias de grupos de interesses diferentes Muitos deles tecircm pensado criticamente sobre pelo menos algumas dessas escolhas e sempre encontramos alguns em cada classe que estatildeo de fato militantemente atentos contra os ataques externos agrave sua identidade Por outro lado muitos subestimam a haacutebil capacidade dos que criam identidades ldquoprontas para o usordquo de utilizar do hu-mor da ironia da autodeclaraccedilatildeo depreciaccedilatildeo e autorrevelaccedilatildeo e de muitos outros recursos para desarmaacute-los Ao abordar a relaccedilatildeo entre argumento e identidade portanto eacute importante respeitar a posiccedilatildeo e experiecircncia dos alunos nessa aacuterea e conduzi-los lentamente ateacute o final Noacutes gostamos de comeccedilar a discussatildeo da iden-tidade com um olhar sobre algumas das teacutecnicas mais comuns usadas por aqueles que vendem identidades ldquopronta para o usordquo agraves quais todos somos vulneraacuteveis

Consideremos por exemplo um dos recursos mais eficazes usados por publici-taacuterios consultores poliacuteticos e gurus de gestatildeo para desarmar o puacuteblico americano o apelo ao individualismo poderoso Seja como poliacutetico que ignora as pesquisas e segue seu instinto como gestor que desdenha a sabedoria convencional e ousa ser genial ou como o modelo masculino em traje de vaqueiro que acende um cigarro e ri da morte os americanos tecircm sido muito suscetiacuteveis aos encantos do indiviacuteduo poderoso em todos os seus muitos disfarces Na verdade a maneira mais faacutecil de vender a um grande puacuteblico americano comportamentos ou escolhas que tecircm consequecircncias duvidosas eacute apresenta-los como uma expressatildeo de individualis-mo poderoso Esse individualismo constitui o que Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969 p 84) chamam de loci ldquo[] premissas de natureza geral que podem servir de base para valores e hierarquiasrdquo A premissa representada por esse modelo de indiviacuteduo eacute talvez sintetizada pelo imperativo categoacuterico do coacutedigo do heroacutei ldquoUm homem tem que fazer o que um homem tem que fazerrdquo Ouve-se a masculinidade interior para intuir o melhor plano de accedilatildeo e segue-se esse plano orientaccedilatildeo face agrave convenccedilatildeo agrave popularidade agrave legalidade e ao risco pessoal

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A construccedilatildeo do argumento

Como todos os loci o modelo de indiviacuteduo poderoso se desenha em muitos caminhos em particular na histoacuteria americana e na cultura popular americana Um paiacutes nascido da revoluccedilatildeo e nutrido da ldquoconquistardquo de uma fronteira recuada um paiacutes cujo sistema econocircmico eacute baseado no risco econocircmico e na competiccedilatildeo um paiacutes cuja induacutestria de entretenimento forneceu um fluxo constante de cowboys bandidos misteriosos ricos e influentes empresaacuterios e gangsters em todos os meios eacute um paiacutes com o individualismo poderoso profundamente marcado no seu DNA Por isso o simples ato de associar uma marca um produto uma escolha uma pessoa um candidato ou uma proposta a esse modelo de individualismo aacutespero tem sido tatildeo eficaz ao longo dos anos na transmissatildeo dos interesses de seus patrocinadores Atraveacutes do ato de escolher o que quer que seja que o patrocinador deseja que esco-lhamos reforccedilamos o imaginaacuterio nacional asseguramos sua repeticcedilatildeo contiacutenua e o status do indiviacuteduo poderoso como um modelo de comportamento

No entanto eacute sabido que essa visatildeo de indiviacuteduo ndash a versatildeo John Wayne ndash tem um apelo limitado para os diferentes grupos de compradores da segmentaccedilatildeo psi-cograacutefica Assim elaboram-se variaccedilotildees no modelo central para atingir de forma mais especiacutefica o grupo para o qual um produto eacute lanccedilado Para alguns a versatildeo ldquomachordquo natildeo cai muito bem por isso exigem uma versatildeo mais gentil mais suave Consideremos por exemplo a campanha publicitaacuteria encantadora e divertida da Apple Computing que exibe personificaccedilotildees das linhas de computador MAC e PC Enquanto o PC eacute apresentado com um homem gordo vestido de terno escuro com uma visatildeo estreita do seu trabalho que reclama das muitas demandas dos seus usuaacuterios o MAC eacute personificado como um homem magro jovem vestido de forma despojada aberto a novas possibilidades intrigado com as queixas de PC sobre as demandas de seus usuaacuterios e perplexo com essa personalidade Trata-se de um conflito claacutessico ainda que suavizado entre o ldquohomem de negoacuteciosrdquo e o rebelde o burocrata e o inovador

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A construccedilatildeo do argumento

Esse anuacutencio eacute uma versatildeo muito mais marcante do claacutessico anuacutencio da Apple Super Bowl de 1984 da linha Mac de computadores em que uma mulher escapa de uma guerra para quebrar uma enorme tela de televisatildeo onde o Big Brother eacute enaltecido diante de um auditoacuterio cheio de figuras curvadas (embora seja tentador pensar que a escolha dos anunciantes por uma figura feminina para o papel de um indiviacuteduo forte como um sinal de avanccedilada consciecircncia social eacute mais provaacutevel que isso seja um reflexo da preocupaccedilatildeo para atingir um determinado grupo de consu-midor) A versatildeo do anuacutencio com a oposiccedilatildeo entre conservadores e rebeldes sugere que estaacute muito mais em jogo a escolha entre conformismo e individualidade e por implicaccedilatildeo entre a escolha da Apple e qualquer outra marca de computadores A escolha do computador eacute uma escolha poliacutetica natildeo somente praacutetica ou de estilo de vida Como a marca Apple em 1984 era pouco conhecida quando a IBM domi-nou o mercado a diferenccedila de tom eacute compreensiacutevel As implicaccedilotildees ideoloacutegicas do estereoacutetipo do individual poderoso na publicidade tendem a ser cada vez mais precisas quanto mais inesperadas satildeo as escolhas que os consumidores podem fazer (vejamos o exemplo do Homem Marlboro)

Natildeo haacute nada inerentemente ruim sobre a criatividade da Apple de mobilizar os personagens do imaginaacuterio americano para vender seu produto Como toda simplificaccedilatildeo miacutetica ela exagera nas diferenccedilas entre os dois produtos para natildeo mencionar as diferenccedilas entre as duas grandes empresas americanas mas toda propaganda eacute para ser entendida em um piscar de olhos e o exagero natildeo eacute um pe-cado O mal estaacute em dar a uma premissa questionaacutevel o status de hipoacutetese inques-tionaacutevel e a um papel que todos noacutes ocasionalmente podemos querer interpretar o status de ideal essencialista a que todos deveriam aspirar O mal tambeacutem reside no constante reforccedilo dos valores individualistas sobre os coletivos Se os valores representados por MAC parecem irrelevantes no contexto do anuacutencio podem natildeo parecer se ampliados para o domiacutenio das virtudes das pessoas Indiviacuteduos pode-rosos no final das contas natildeo se relacionam bem com os outros Seu questiona-

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A construccedilatildeo do argumento

mento da autoridade raramente se estende ao questionamento da autoridade de seus proacuteprios sistemas de valores

Qualquer quer seja a razatildeo pela qual usem o adesivo ldquoQuestione a autoridade (Question authority)rdquo eles na verdade acreditam na sua proacutepria autoridade e natildeo estatildeo preparados para questionar a sua finalidade de promover uma accedilatildeo coletiva que assegura um bem comum De toda maneira a capacidade ou incapacidade dos poliacuteticos de se venderem de maneira plausiacutevel como indiviacuteduos poderosos tem sido decisiva no seu sucesso no paiacutes durante grande parte das uacuteltimas trecircs deacutecadas

Na anaacutelise do anuacutencio noacutes mesmos estamos levantando uma hipoacutetese sobre a identidade com a qual nem todos certamente nem todos os nossos alunos po-dem estar satisfeitos Assumimos o sentido de identidade conforme Burke (1989) chama de ldquoparlamentarrdquo uma identidade variaacutevel natildeo unitaacuteria natildeo essencial e reparaacutevel Conforme essa visatildeo de identidade desempenhamos muitos papeacuteis e a autenticidade natildeo eacute tanto uma questatildeo de permanecer fiel a um eu central mas uma questatildeo de selecionar conscientemente os papeacuteis que desempenhamos e se envolver totalmente nesses papeacuteis As hipoacuteteses dos retoacutericos sobre a identidade humana satildeo tatildeo fundamentais para a praacutetica de sua arte quanto as dos economistas neoclaacutessicos ndash personificadas no modelo de identidade seletiva dos economistas neoclaacutessicos o do homo economicus ndash para a fundamentaccedilatildeo da sua proacutepria praacute-tica A verdade literal da hipoacutetese de uma ou outra disciplina eacute sempre aberta agrave conjectura ainda que as hipoacuteteses da retoacuterica contemporacircnea sobre a identidade pareccedilam se ajustar melhor as atualmente dominantes nos campos da Psicologia e da Filosofia A hipoacutetese dos economistas de que os agentes humanos tomam deci-sotildees apenas com base no interesse pessoal racional combina bem com as hipoacuteteses utilitaacuterias do seacuteculo XIX sobre a natureza humana mas parece muitas vezes estar em desacordo com o comportamento humano real Ainda assim apesar de todas as suas falhas o modelo continua a funcionar bem o suficiente para servir de ponto de partida para a anaacutelise microeconocircmica e continua a ser usado ateacute pelos mais ceacuteticos mesmo com alteraccedilotildees e modificaccedilotildees crescentes

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A construccedilatildeo do argumento

Embora estejamos preparados para defender a validade do modelo remanes-cente da retoacuterica de identidade humana natildeo devemos pensar que temos de provar aos nossos alunos ou colegas de outras disciplinas que eacute inquestionaacutevel Como o modelo muito mais simplificado dos economistas ele serve para explicar uma seacuterie de comportamentos observados na anaacutelise retoacuterica e fornecer um quadro claro para a teoria retoacuterica

Entatildeo quais satildeo algumas das implicaccedilotildees do modelo ldquoparlamentarrdquo natildeo es-sencialista de identidade Primeiro e acima de tudo o modelo implica um forte senso de agente por parte de cada ator retoacuterico

O modelo supotildee que as pessoas tecircm a liberdade de fazer escolhas natildeo apenas escolhas de comportamento mas de identidade e a retoacuterica eacute uma forma principal pela qual essas escolhas podem ser sistematicamente examinadas realizadas e defendidas A liberdade assumida pela retoacuterica pode ser vista de um ponto de vista essencialista como uma maldiccedilatildeo na medida em que nunca eacute ldquoacabadardquo e segura Como o heroacutei existencialista de Sartre o homo rhetoricuseacute ldquocondenado agrave liberdaderdquo Nesse sentido Blumenberg (1987) compara os seres humanos a outros animais e observa que ao contraacuterio de outros membros do reino animal estamos privados de instintos que nos permitem saber ou ser qualquer coisa im-mediately Ateacute mesmo o autoconhecimento ou autocompreensatildeo tem a estrutura da ldquoautoexternalidaderdquo Um ldquodesviordquo eacute necessaacuterio para adquirir esse conhecimento um ato de mediaccedilatildeo para o outro ndash o phoros de uma analogia o veiacuteculo de uma metaacutefora o segundo termo de uma relaccedilatildeo as relaccedilotildees que mantemos com outros seres humanos Em alguns casos iniciamos esse processo de construccedilatildeo da identidade Em outros nos encontramos selecionando ou resistindo opccedilotildees que nos satildeo oferecidas ou impostas

Nesse uacuteltimo caso a retoacuterica desempenha um papel particularmente crucial na medida em que ldquo[] natildeo eacute apenas a teacutecnica de produccedilatildeo um efeito eacute sempre tambeacutem um meio de manter o efeito transparenterdquo (BLUMENBERG 1987 p 435-36) Essa segunda capacidade a capacidade de interpretar os efeitos sobre noacutes mesmos bem como de produzir efeitos sobre os outros faz que o domiacutenio da retoacute-

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A construccedilatildeo do argumento

rica seja particularmente crucial para nossos alunos neste momento da histoacuteria quando tantas forccedilas atuam fazem circular identidades disfuncionais para eles e negativizam processos perfeitamente funcionais

eacutetiCa e argumento

O modelo de identidade que prevalece na retoacuterica na medida em que enfatiza a accedilatildeo e a escolha do ser humano assegura a centralidade da eacutetica na nossa tarefa Como o filoacutesofo Charles Taylor (1989) observou ldquo[] a individualidade e o bem ou de outro modo a individualidade e a moralidade se tornam temas inextricavelmente interligadosrdquo (TAYLOR 1989 p 3) Ainda segundo Taylor (1989) falhamos ao levar formalmente em conta essa conexatildeo principalmente por causa do fasciacutenio da filoso-fia moral em ldquo[] definir o conteuacutedo da obrigaccedilatildeo em vez da natureza da boa vidardquo (TAYLOR 1989 p 3) A vida boa conforme entende o autor eacute fundamentalmente social na medida em que o eu eacute fundamentalmente uma construccedilatildeo social Eu sou quem eu sou em virtude de meus relacionamentos com outros seres humanos e a felicidade natildeo pode ser entendida para aleacutem desses relacionamentos Trata-se de uma visatildeo que contrasta com aquelas visotildees que equiparam a felicidade ao prazer ou maximizaccedilatildeo da utilidade ou no caso do individualista poderoso agrave completa autossuficiecircncia Ao contraacuterio do modelo dos economistas neoclaacutessicos de vida boa modelo que domina o imaginaacuterio popular americano o benefiacutecio social natildeo eacute um subproduto acidental da ganacircncia individual Para que um benefiacutecio social tenha um significado eacutetico ou retoacuterico deve ser um produto da intenccedilatildeo A vida boa eacute na simpaacutetica caseira de Kenneth Burke ldquo[] um projeto para se dar bem com as pessoasrdquo (BURKE 1984 p 256) Entender-se uns com os outros implica a identificaccedilatildeo coletiva desses ldquovalores particulares vividos que nos unem e satildeo assumidos pelas instituiccedilotildees que valorizamos e desejamos defenderrdquo como disse Stanley Fish Natildeo existe um padratildeo universal que dita esses valores e funda essas instituiccedilotildees ndash ou mais precisamente nenhuma das vaacuterias normas defendidas por

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seus adeptos como universais satildeo universalmente subscritas ndash daiacute a necessidade de articulaacute-las e estabelecer as diferenccedilas entre elas atraveacutes do uacutenico meio mais faacutecil ou como alguns filoacutesofos preferem o ldquodiaacutelogordquo

Quanto mais se considera a eacutetica natildeo apenas em termos das escolhas corretas dos indiviacuteduos mas em termos de uma determinaccedilatildeo coletiva sobre essas esco-lhas individuais mais o estudo da retoacuterica equivale ao estudo da eacutetica Dito isso qualquer um que ensinou argumento reconheceraacute a ligaccedilatildeo fundamental entre retoacuterica e eacutetica As questotildees eacuteticas surgem de todo tipos de argumento ateacute mesmo de alguns que parecem agrave primeira vista muito distantes da esfera do pensamento eacutetico A questatildeo natildeo eacute se devemos abordar a dimensatildeo eacutetica do argumento mas saber a melhor maneira de estudar a eacutetica em classe de argumentos Falaremos mais tarde de argumentos eacuteticos em si quando discutiremos uma teoria dos tipos de argumento conhecida como Stasis Theory Trataremos agora dos argumentos eacuteticos ou seja daqueles cujos princiacutepios gerais constituem um julgamento eacutetico um argumento especial de avaliaccedilatildeo que utiliza uma parte da linguagem tradicio-nalmente usada pelos filoacutesofos quando determinam o ldquoconteuacutedo da obrigaccedilatildeordquo em uma dada circunstacircncia e sistematizam os meios para se chegar a decisotildees eacuteticas Agora interessa-nos mais amplamente a relaccedilatildeo entre eacutetica e retoacuterica A seguir nos deteremos nas caracteriacutesticas comuns do raciociacutenio eacutetico e retoacuterico e da eacutetica do debate

Uma maneira de ressaltar o quanto tecircm em comum a retoacuterica e a eacutetica eacute considerar a questatildeo da melhor forma de se inserir a eacutetica em um curriacuteculo O processo que consiste em provar a eacutetica da eacutetica em um curso de escrita focado no argumento mostra o quanto as duas atividades estatildeo intimamente relaciona-das Tradicionalmente a eacutetica tem sido ensinada na faculdade seja nos cursos de Filosofia dedicados agrave consideraccedilatildeo das teorias eacuteticas sua histoacuteria e aplicaccedilatildeo seja nos seminaacuterios de teologia nas aulas de religiatildeo focadas na aplicaccedilatildeo dos princiacutepios e crenccedilas das religiotildees Taylor (1989) apontou algumas das limitaccedilotildees da eacutetica ensinada nos cursos de Filosofia porque ela se concentra no ldquoconteuacutedo

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da obrigaccedilatildeordquo em vez de determinar em que consiste uma boa vida Ao analisar vaacuterias ldquoexperiecircncias de pensamentordquo construiacutedas em torno de problemas morais os filoacutesofos tendem a ajudar os alunos a compreender mais as limitaccedilotildees de teorias morais existentes do que ajudaacute-los a definir para si uma vida digna de ser vivida Como os cursos de argumento natildeo tecircm a obrigaccedilatildeo de ldquocobrirrdquo nenhum conjunto particular de teorias morais estamos livres para oferecer aos alunos a oportuni-dade de buscar suas proacuteprias definiccedilotildees

Uma das maneiras mais eficazes de iniciar uma conversa entre os alunos sobre sua proacutepria concepccedilatildeo de vida boa ndash ao contraacuterio da maneira como vaacuterios filoacuteso-fos definiram essa concepccedilatildeo ndash eacute fazecirc-los discutir o belo conto de Ursula LeGuin (Aqueles que caminham longe de Omelas) Omelas eacute um reino utoacutepico imaginaacuterio onde pareceria que a vida boa conforme todas as medidas tradicionais foi atingi-da O uacutenico problema eacute o fato de que a felicidade constante de toda a comunidade depende do sofrimento constante de uma crianccedila que vive em um poratildeo e nunca deve ver nenhum gesto de bondade Toda crianccedila em Omelas entre oito e doze anos tomam conhecimento da existecircncia da crianccedila que sofre Aqueles que poste-riormente vatildeo embora muitas vezes perplexos pela histoacuteria para a perplexidade do narrador ndash aparentemente decidiram que a grande felicidade da comunidade natildeo justifica o sofrimento de uma crianccedila Sua escolha por sua vez reflete a cren-ccedila na natureza parlamentar da identidade ou seja a identidade eacute relacional e natildeo essencial Portanto todos os que vivem em Omelas e conhecem o sofrimento da crianccedila estatildeo implicados nesse sofrimento e sua vida boa aparente eacute tatildeo imperfeita como sua individualidade

Nesses dias eacute claro os cursos de Filosofia estatildeo longe de ser o uacutenico lugar onde a crescente demanda em mateacuteria de eacutetica estaacute sendo respeitada Como alternati-va aos cursos de Filosofia muitos cursos hoje oferecem suas proacuteprias disciplinas de eacutetica que enfatizam as questotildees eacuteticas recorrentes na aacuterea e os cacircnones de comportamento derivados das normas da profissatildeo Por mais bem intencionados que sejam esses cursos e embora claramente constituam um reconhecimento

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da necessidade de instruccedilatildeo eacutetica dentro da academia eles satildeo diriacuteamos espaccedilos problemaacuteticos de instruccedilatildeo eacutetica precisamente porque natildeo haacute conexatildeo funda-mental entre os objetivos da disciplina e objetivos eacuteticos Por outro lado tudo o que pudesse haver nos cursos de eacutetica para o equiliacutebrio dos estudantes em relaccedilatildeo agraves formas taacutecitas de eacutetica pode ser ofertado em outros cursos Como os alunos de muitas faculdades de artes liberais filiadas agrave igreja resistiram ao longo do uacuteltimo seacuteculo agrave frequecircncia obrigatoacuteria agrave ldquocapelardquo esses cursos apresentam uma infeliz tendecircncia para tocar esses alunos da melhor maneira como um conselho paternal para uma correccedilatildeo moral ou da pior maneira para se distraiacuterem do seu verdadeiro caminho acadecircmico

O campo dos negoacutecios por exemplo eacute o mais publicamente lembrado quando se fala de eacutetica nos uacuteltimos anos graccedilas a uma seacuterie de escacircndalos empresariais altamente divulgados na miacutedia Considerando as teorias econocircmicas de maior influecircncia na Ameacuterica hoje eacute provaacutevel que os estudantes sejam ensinados direta e indiretamente em muitos cursos diferentes supervisionados por pessoas dife-rentes que os mercados satildeo mais saacutebios do que os agentes humanos Se algueacutem pretende tomar uma decisatildeo prudente sobre as possiacuteveis consequecircncias de uma poliacutetica eacute aconselhaacutevel estudar o desempenho do mercado em situaccedilotildees seme-lhantes no passado Se algueacutem quer saber o que funcionou e estaacute funcionando a uacutenica opiniatildeo que realmente conta eacute a do mercado Um preccedilo ldquojustordquo portanto eacute o que o mercado suportaraacute enquanto um salaacuterio ldquojustordquo eacute o miacutenimo que o mer-cado permite pagar No contexto desse respeito quase onisciente pelo mercado qualquer curso de eacutetica que introduza criteacuterios estranhos agrave dinacircmica do mercado dinacircmico no processo de tomada de decisatildeo provavelmente teraacute pouco efeito sobre as prioridades ou os comportamentos dos alunos

O que falta em um curso de eacutetica empresarial eacute a ligaccedilatildeo clara entre ldquoindi-vidualidade e moralidaderdquo Qualquer curso que comece com um sentimento de individualidade um tipo de ldquoauto personal businessrdquo inevitavelmente deixaraacute uma

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A construccedilatildeo do argumento

visatildeo enviesada de obrigaccedilatildeo eacutetica Burke (1968) aborda a natureza da relaccedilatildeo entre identidade e obrigaccedilatildeo eacutetica no processo de definiccedilatildeo de sua noccedilatildeo central de ldquoidentificaccedilatildeordquo

O ser humano como agente que eacute natildeo eacute motivado unicamente pelos princiacutepios de uma atividade especializada mas esse poder especiali-zado em seu papel de sugerir imagem eacute capaz de afetar seu caraacuteter Qualquer atividade especializada participa de uma unidade de accedilatildeo maior ldquoIdentificaccedilatildeordquo eacute uma palavra usada no lugar de atividade au-tocircnoma nesse contexto mais amplo um lugar em que o agente pode ser indiferente O pastor enquanto pastor age para o bem das ovelhas para protegecirc-las do perigo e do mal Mas ele pode ser ldquoidentificadordquo com um projeto que estaacute criando as ovelhas para o mercado (BURKE 1968 p 27)

Da mesma maneira a administraccedilatildeo corporativa pode agir de forma conscien-te no interesse de seus acionistas para aumentar o retorno de seu investimento realizando accedilotildees que simultaneamente ldquoos identificamrdquo tanto com a degradaccedilatildeo quanto com a necessidade de preservar o meio ambiente

Mesmo uma consideraccedilatildeo breve das conexotildees entre os modos de pensar promovidos ao mesmo tempo tanto pela eacutetica como pela retoacuterica ressalta as vantagens de integrar o ensino da eacutetica em uma aula de argumentos Uma das caracteriacutesticas mais importantes compartilhadas pela eacutetica e pela retoacuterica eacute o foco no processo e na compreensatildeo do processo ndash ldquocomo fazerrdquo ndash mais que o conhe-cimento declarativo ndash ldquoo que eacuterdquo Eacute essa preocupaccedilatildeo com o processo que permite que tanto eacutetica como retoacuterica envolvam ldquoatividades especializadasrdquo de qualquer espeacutecie e se movam facilmente entre os campos pessoal e profissional Em ambos os casos os processos que envolvem a eacutetica e a retoacuterica envolvem duas etapas um processo de seleccedilatildeo ndash que identifica o melhor argumentoa escolha mais de-fensiacutevel e um processo de comunicaccedilatildeo ndash a formulaccedilatildeo de uma justificativa para

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A construccedilatildeo do argumento

o argumento ou escolha eou a promoccedilatildeo de uma forma mais ampla de adotar De acordo os pontos de vista mais comuns da retoacuterica o primeiro processo que termina na escolha eacute o uacutenico necessaacuterio Natildeo haacute obrigaccedilatildeo de explicar as razotildees para se fazer a escolha ou de compartilhar o processo pelo qual se chegou a ela No entanto como haacute argumentos para determinadas escolhas eacuteticas haacute uma eacutetica do argumento que exige que se crie uma situaccedilatildeo para as escolhas A diferenccedila aqui entre argumentos eacuteticos e outros tipos de argumentos eacute o grau natildeo o tipo Embora seja sempre uacutetil explicar as razotildees de se fazer escolhas e embora seja prudente fazer sempre que algueacutem quer contar com o apoio de outrem eacute neces-saacuterio optar pela escolha eacute eacutetica

A fonte dessa restriccedilatildeo eacute a natureza das escolhas eacuteticas Ao opinarmos por exemplo sobre uma faculdade para as pessoas que precisam escolher uma expli-camos nossos criteacuterios para ajudaacute-las a se decidirem sobre a escolha da faculdade No entanto se estamos fazendo uma escolha eacutetica sobre digamos justificativas para a tortura estamos falando sobre alguma coisa muito mais forte Ao reali-zarmos escolhas eacuteticas a escolha natildeo eacute apenas para noacutes mesmos no aqui e agora mas para os outros e para noacutes mesmos em situaccedilotildees futuras semelhantes Quando qualificamos um ato como eacutetico natildeo estamos simplesmente dizendo Eu fiz isso mas tambeacutem Isso deve ser feito

Se algueacutem eacute de iniacutecio obrigado sob a eacutetica do argumento a explicar um raciociacutenio sobre suas escolhas eacuteticas tambeacutem eacute obrigado a assegurar que seus motivos satildeo verdadeiros Isso significa dizer que a justificativa do raciociacutenio para que sirva de guia para outros atos eacuteticos natildeo deve ser apenas verdadeira mas extensiva Eacute preciso estar preparado para reconhecer toda a gama de esco-lhas ndash natildeo necessariamente todas mas todas que possam parecer plausiacuteveis ou provaacuteveis para a quem interessa ndash possiacuteveis antes de se fazer a seleccedilatildeo As razotildees para descartar ou hierarquizar alternativas provaacuteveis e selecionar a accedilatildeo final devem ser claramente indicadas

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A construccedilatildeo do argumento

Os princiacutepios que orientaram a avaliaccedilatildeo dessas escolhas e as evidecircncias que apoiam essa avaliaccedilatildeo devem ser claramente explicados O grau de certeza sobre a melhor escolha de uma pessoa deve ser explicitamente registrado (essas condiccedilotildees assim como o termo ldquolegitimidaderdquo que derivam do modelo de Stephen Toulmin seratildeo discutidos mais detalhadamente no proacuteximo capiacutetulo) Embora natildeo haja um coacutedigo formal de comportamento retoacuterico que obriga algueacutem a oferecer uma justificativa simultaneamente honesta e legiacutetima para o argumento presume-se a obrigaccedilatildeo de fazer caso seja solicitado Aleacutem disso a falha na condiccedilatildeo de legiti-midade de um argumento pode potencialmente tornaacute-lo menos eficaz Um argu-mento que tende a revelar o que se deixou de dizer ou que chama a atenccedilatildeo para as questotildees ignoradas pelo opositor pode enfraquecer a adesatildeo do puacuteblico a esse argumento tatildeo prontamente como se ele tivesse mostrado sua proacutepria falsidade

O processo de seleccedilatildeo em eacutetica eacute homoacutelogo ao que os retoacutericos chamam agraves vezes de estaacutegio de invenccedilatildeo O processo de descoberta e avaliaccedilatildeo das escolhas compreende grande parte da teacutecnica da retoacuterica e da eacutetica Como vimos ante-riormente Blumenberg (1987) associou esse processo ao ldquoatrasordquo do tempo que compreende a preocupaccedilatildeo de explicar a ldquocircunstancialidaderdquo as diferenccedilas particulares entre a situaccedilatildeo dada e outras para as quais se procura orientaccedilatildeo Enquanto enfatizamos anteriormente as recompensas cognitivas associadas a essa rejeiccedilatildeo de meios parcimoniosos de compreensatildeo destacamos aqui as restriccedilotildees eacuteticas para tal movimento Onde prevalece a automaticidade natildeo haacute lugar para a eacutetica ou para a retoacuterica Pode-se apenas fazer ou dizer ldquoo que algueacutem precisa fazer ou dizerrdquo sem hesitaccedilatildeo A eacutetica e a retoacuterica exigem escolha e escolha implica deli-beraccedilatildeo Ao chegar a essa conclusatildeo natildeo rejeitamos a ideia de que o fim apropriado da instruccedilatildeo eacutetica eacute o de tornar a virtude um haacutebito Os haacutebitos eacuteticos da mente por oposiccedilatildeo ao mero conhecimento da teoria eacutetica e da histoacuteria satildeo certamente os limites apropriados da instruccedilatildeo eacutetica Isso natildeo quer dizer todavia que esses haacutebitos sejam melhor expostos pela forma como as pessoas fazem suas escolhas eacuteticas Pode-se interpretar a noccedilatildeo de haacutebito de uma forma ampla rejeitando um

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A construccedilatildeo do argumento

acento behaviorista como resposta imediata a um estiacutemulo familiar Pode-se in-cluir nos haacutebitos eacuteticos da mente a inclinaccedilatildeo para buscar a dimensatildeo eacutetica das escolhas a consideraccedilatildeo de tantas alternativas plausiacuteveis quanto possiacuteveis e a avaliaccedilatildeo cuidadosa dessas escolhas

Combinando a instruccedilatildeo eacutetica e a instruccedilatildeo retoacuterica com ecircnfase nessa uacuteltima na ldquoinventividade processualrdquo e no exame disciplinado das alternativas podemos esperar melhorar as escolhas eacuteticas tornando mais complexas e aumentando o nuacutemero de escolhas para os nossos alunos Em vez de se concentrar na adequaccedilatildeo da escolha final uma eacutetica retoricamente influenciaacutevel enfatizaria as alternativas inventadas ou descobertas no processo de seleccedilatildeo e nas respostas uacutenicas da escolha final agraves particularidades do seu dilema eacutetico Eacute aiacute onde a natureza controversa da retoacuterica eacute mais evidente

Para alguns a medida da instruccedilatildeo eacutetica eacute exatamente ajudar os alunos a che-gar da maneira mais parcimoniosa possiacutevel agrave boa escolha que estaacute posta agrave espera deles Qualquer coisa que possibilita uma pessoa reconhecer e fazer essa escolha resulta de lacunas no seu caraacuteter Somente se se acredita que a melhor escolha pode ser um produto das deliberaccedilotildees antes de algo que existia a priori dessas deliberaccedilotildees pode ser um ldquoatrasordquo do tempo a recusa de reduzir ldquoas entidades para aleacutem da necessidaderdquo eacute justificaacutevel Nesse ponto aqueles que equiparam a virtude a uma injusta e raacutepida rejeiccedilatildeo da tentaccedilatildeo acusaratildeo algueacutem de relativista Para os absolutistas morais ndash e certamente o absolutismo moral eacute uma posiccedilatildeo eacutetica que um nuacutemero significativo de pessoas adota por mais diferentes que sejam os absolutismos ndash as provas de Satanaacutes devem ser respondidas com uma questatildeo dis-cursiva com o verdadeiro ou o falso Preparar-se para essa prova familiarizando-se com as respostas certas repetindo-as memorizando-as e depois recordando-as instantaneamente quando os desafios se apresentam Somente os inimigos devem deliberar e soacute os infieacuteis imaginam que poderiam por seu proacuteprio poder da razatildeo chegar a uma escolha melhor do que a prescrita pelos absolutos transmitidos pela leitura literal de alguns sacerdotes da sagrada escritura

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A construccedilatildeo do argumento

O fracasso do absolutismo a partir da perspectiva da eacutetica como retoacuterica eacute um fracasso da imaginaccedilatildeo5 Eacute a incapacidade de imaginar qualquer outra leitura de escritos sagrados diferente da que eacute sugerida por quem estaacute no puacutelpito Eacute a incapacidade de imaginar uma maneira de identificaccedilatildeo entre si e qualquer outra forma de realismo O fracasso do absolutismo tambeacutem envolve o simples equiacutevoco em observar coisas o equiacutevoco de natildeo observar que as respostas derivadas da es-critura sagrada ao longo dos seacuteculos mudam de tempos em tempos e de lugar para lugar e o equiacutevoco de natildeo constatar que natildeo haacute um tribunal com o poder de julgar as diferenccedilas entre os absolutismos nem de anular os recursos dos relativistas O problema principal que surge do fracasso dos absolutismos eacuteticos eacute o fato de que em uacuteltima instacircncia eles acabam por se fazer ouvir e nos fazem voltar ao lugar onde a eacutetica e a retoacuterica surgem o lugar onde o poder eacute certo Acima de tudo a eacutetica e a retoacuterica compartilham a rejeiccedilatildeo da forccedila como meio de resolver a diferenccedila

A retoacuterica comeccedila como Burke (1969) argumenta como um namoro na cria-ccedilatildeo de um senso de identificaccedilatildeo entre pessoas pertencentes a diferentes classes seja de gecircnero grupo socioeconocircmico posiccedilatildeo poliacutetica etc As obrigaccedilotildees da eacutetica surgem do reconhecimento do eu nos outros da capacidade de assumir a posiccedilatildeo do outro O absolutismo cria um mundo binaacuterio (NoacutesEles BomMal CorretoErrado) ndash e natildeo oferece meios civilizados para superar esses binarismos De fato o absolutismo aconselha a natildeo falar com o Outro nem mesmo identificaacute-lo Para ser fiel agrave visatildeo absolutista do mundo eacute preciso permanecer sempre no interior das suas fronteiras Deixar o reino dos absolutos eacute ser desafiado a cada passo por ideias e costumes diferentes e ter poucos recursos para negociar essas diferenccedilas Noacutes aprendemos todavia desde muito tempo com os sofistas a atravessar vaacuterios

5 Empregamos o termo Absolutismo para expressar uma mentalidade natildeo uma ideologia ou sistema de crenccedila Dentro de qualquer religiatildeo portanto haacute absolutistas que praticamente atuam dessa forma Haacute tambeacutem pessoas com mais imaginaccedilatildeo que conseguem conciliar suas crenccedilas religiosas com uma preocupaccedilatildeo pelo bem-estar dos que natildeo compartilhar suas crenccedilas

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A construccedilatildeo do argumento

reinados no processo de muacuteltiplas realidades sempre amarrados agrave nossa sanidade e seguranccedila Se esse antepassado mais benigno dos absolutistas Platatildeo venceu os sofistas em seus diaacutelogos Ele de fato sobreviveu para discutir novamente e nos ensinar a fazer o mesmo Em um mundo acometido por muita certeza sobre muitas ideias irreconciliaacuteveis e pouca vontade de natildeo usar forccedila e tentar a conciliaccedilatildeo nossos alunos se serviriam bem da instruccedilatildeo eacutetica influenciada pelo espiacuterito dos sofistas

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caPiacutetulO 1a histoacuteria da argumentaccedilatildeo6

Nosso objetivo neste capiacutetulo natildeo eacute o de apresentar uma histoacuteria exaustiva da argumentaccedilatildeo mas o de construir essa histoacuteria que possa ser bem usada por professores na contemporaneidade Eacute certo que nosso esboccedilo contempla algumas boas histoacuterias da Retoacuterica e do ensino da escrita e nossos leitores podem consultar nossas referecircncias caso desejem explorar essas histoacuterias com maior profundidade Mas no breve espaccedilo disponiacutevel para essa discussatildeo preferimos a economia ao detalhamento e a utilidade agrave novidade De modo a deixar o texto o mais utilizaacute-vel possiacutevel o dividimos em duas partes Na primeira apresentamos uma ldquofatiardquo ou amostra representativa da Retoacuterica preacute-moderna sob a forma de dois temas recorrentes ndash ou mais precisamente duas tensotildees recorrentes ndash que marcam a evoluccedilatildeo da teoria do argumento Tais tensotildees sobrevivem ateacute hoje e continuam a promover controveacutersias A primeira tensatildeo centra-se sobre o antigo antagonismo entre a Retoacuterica e a Filosofia enquanto a segunda estaacute focada na resistecircncia da Retoacuterica ao engessamento nem sempre bem-sucedido Apoacutes revisar essas tensotildees destacando sua aplicabilidade agraves escolhas que os professores ainda enfrentam realizamos na segunda parte uma discussatildeo mais aprofundada sobre as teorias modernas da argumentaccedilatildeo responsaacuteveis por alterar ndash ou que tecircm potencial para alterar ndash a maneira como eacute ensinada

Em funccedilatildeo da pequena mudanccedila nos uacuteltimos 50 anos de nossa compreensatildeo sobre o argumento e nos uacuteltimos 25 das nossas abordagens para o ensino dedi-camos maior tempo agrave histoacuteria mais recente da argumentaccedilatildeo Ao fazer isso natildeo temos a intenccedilatildeo de deixar de lado as contribuiccedilotildees dos sofistas de Aristoacuteteles de Ciacutecero de Erasmo de Santo Agostinho de Campbell entre outros De fato como

6 Traduccedilatildeo erik fernando Martins

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A construccedilatildeo do argumento

a maioria dos teoacutericos contemporacircneos aqui citados admite o conhecimento de nossos antepassados ainda resplandece nos melhores trabalhos desenvolvidos recentemente Na medida em que nosso objetivo eacute criar um passado utilizaacutevel ao indicar as fontes de nossa abordagem para o argumento o que segue compreende o coraccedilatildeo deste livro

filosofia versus retoacuteriCa

Em certo sentido tudo que eacute discutido neste capiacutetulo pode ser compreendido atraveacutes das lentes da oposiccedilatildeo entre Filosofia e Retoacuterica Eacute por meio dessa velha briga que muitas de nossas batalhas antigas e recentes surgiram Se antigamente muitos filoacutesofos definiam a si proacuteprios atraveacutes de suas diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave Retoacuterica atualmente muitos filoacutesofos e criacuteticos como Hans Blumenberg Hayden White Richard Rorty Charles Taylor Stanley Fish Terry Eagleton entre outros definem-se e distinguem-se de seus pares ao abraccedilar em alguns casos explicita-mente a Retoacuterica e em outros ao abraccedilar ideias consoantes agrave Retoacuterica contempo-racircnea Na segunda parte deste capiacutetulo na qual destacamos as contribuiccedilotildees dos retoacutericos modernos veremos que um nuacutemero consideraacutevel delas possui raiacutezes na Filosofia Abordaremos essas tentativas recentes de redefinir a Filosofia em um momento posterior deste capiacutetulo No entanto na presente discussatildeo sobre a divisatildeo FilosofiaRetoacuterica vamos nos limitar aos temas principais que emergem da antiga ruptura entre essas duas disciplinas

A antiga batalha entre Filosofia e Retoacuterica se reveste de muitas tensotildees mas nosso foco aqui eacute a tensatildeo principal entre elas e a ousada reivindicaccedilatildeo dos filoacuteso-fos de oferecer demonstraccedilotildees irrefutaacuteveis sobre a verdade para audiecircncias ideais contra a mais modesta reivindicaccedilatildeo dos retoacutericos para persuadir uma audiecircncia especiacutefica de que uma conclusatildeo particular garante anuecircncia O fato de que mesmo hoje dois mil e quinhentos anos depois do iniacutecio desse debate o prestiacutegio recai sobre aqueles que reivindicam demonstrar a verdade aos especialistas contra

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A construccedilatildeo do argumento

aqueles que reivindicam persuadir audiecircncias gerais enfatiza a difiacutecil batalha que a Retoacuterica encontra em sua luta com a Filosofia para garantir um nicho legiacutetimo dentro das ciecircncias humanas Parte do problema reside no fato de que a Filosofia foi declarada vencedora da batalha haacute muito tempo e consequentemente de que a histoacuteria desse debate foi escrita desse ponto de vista Como nos aponta Jarratt (1991) uma teoacuterica da Retoacuterica eacute difiacutecil entender os primeiros retoacutericos os Sofis-tas atraveacutes das lentes dos filoacutesofos antigos em particular Platatildeo e Aristoacuteteles com quem a histoacuteria alinhou-se por dois milecircnios (JARRATT 1991) A histoacuteria recente tem sido mais gentil com a Retoacuterica em parte graccedilas a intelectuais como Jarratt Assim tornou-se possiacutevel entendecirc-la em outros termos que os impostos pela Fi-losofia Isso natildeo significa dizer que as tensotildees desapareceram Elas simplesmente foram reconfiguradas dentro do campo da Retoacuterica Uma manifestaccedilatildeo particular dessa batalha por exemplo pode ser vislumbrada na tentativa de ldquoprofissionalizarrdquo a disciplina Retoacuterica de transformaacute-la em uma ciecircncia social capaz de apresentar se natildeo demonstraccedilotildees irrefutaacuteveis conclusotildees confiaacuteveis sobre o mundo baseadas em dados e de tornar-se mais ldquoautocircnomardquo ou menos parasitaacuteria de outras disci-plinas A resistecircncia a essas tentativas envolve a jaacute mencionada observaccedilatildeo de filoacutesofos contemporacircneos ndash em sua maioria rejeitam as tradiccedilotildees filosoacuteficas que demonizam a Retoacuterica ndash que casam perspectivas pragmaacuteticas e construtivistas como uma atividade transdisciplinar e sem apologias

A tensatildeo entre Filosofia e Retoacuterica ou entre demonstraccedilatildeo e persuasatildeo agraves vezes eacute caracterizada como uma tensatildeo entre verdade e efeito Em termos mais simples eacute o conflito entre aqueles que veem a verdade como independente da per-cepccedilatildeo humana e aqueles que entendem a anuecircncia da audiecircncia como condiccedilatildeo necessaacuteria para tornar algo verdadeiro Em nossa discussatildeo sobre os artigos de Fish e Leo cujo meta-argumento eacute com efeito uma retomada contemporacircnea da disputa aqui considerada cunhamos a visatildeo antiga como ldquoabsolutistardquo no sentido de que era natildeo contingente e natildeo relacional O filoacutesofo Hans Blumenberg (1987) rejeita essa visatildeo nos seguintes termos

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A construccedilatildeo do argumento

No relacionamento dos gregos com os gregos diz Isoacutecrates o meio apro-priado eacute a persuasatildeo enquanto no trato com os baacuterbaros eacute o uso da for-ccedila Essa diferenccedila eacute compreendida como sendo entre linguagem e edu-caccedilatildeo porque a persuasatildeo pressupotildee a partilha de horizontes alusotildees a materiais prototiacutepicos e uma orientaccedilatildeo providenciada por metaacuteforas e siacutemiles A antiacutetese entre verdade e efeito eacute superficial porque o efeito retoacuterico natildeo eacute uma alternativa a ser escolhida em oposiccedilatildeo a um insight que pode ser tido mas uma alternativa agrave evidecircncia definitiva que natildeo pode ser obtida que ainda natildeo pode ser obtida ou que em nenhuma me-dida pode ser obtida aqui e agora (BLUMENBERG 1987 p 435-6)

O que os filoacutesofos sugeriram por seacuteculos ser possiacutevel eacute justamente o que Blu-menberg (1987) estaacute aqui dizendo ser impossiacutevel ndash evidecircncias definitivas para a veracidade de asserccedilotildees no aqui e agora A recusa de Blumenberg (1987) em separar verdade de efeito aponta para uma aceitaccedilatildeo do fato de que como coloca Burke (1969) vivemos na ldquoBabel depois a quedardquo onde a uacutenica alternativa agrave forccedila eacute estabelecer uma identificaccedilatildeo entre falantes uma condiccedilatildeo que eacute conquistada atraveacutes de consideraacutevel exerciacutecio e astuacutecia graccedilas a todas as barreiras impostas pela linguagem pelo gecircnero pelas classes etc que sempre existiram

Tanto para Blumenberg (1987) quanto para Burke (1969) apenas quando falantes partilham um horizonte a conversaccedilatildeo e ainda menos a persuasatildeo e a identificaccedilatildeo se tornam possiacuteveis Em um mundo poacutes-lapsaacuterio (depois do lapso da entrada do pecado) a verdade eacute social Algueacutem eacute certamente livre para afirmar que as ldquoevidecircncias definitivasrdquo para seu ponto de vista existem fora da consciecircncia ou do entendimento das almas perdidas com quem se conversa mas essa afirmaccedilatildeo em si natildeo carrega a forccedila da disposiccedilatildeo dos outros em concordar Uma verdade sem efeito no mundo natildeo eacute bem uma verdade Um nuacutemero consideraacutevel de debates contemporacircneos confirma a inutilidade de se apelar para fontes natildeo autorizadas pelos objetivos do argumento de algueacutem O debate entre criacionistas (ou os pro-ponentes do intelligent design ndash projeto inteligente) e evolucionistas por exemplo

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A construccedilatildeo do argumento

eacute um choque entre linguagens incomensuraacuteveis e entre horizontes incongruen-tes Natildeo apenas a resoluccedilatildeo da questatildeo eacute inimaginaacutevel como uma conversaccedilatildeo significativa entre esses adversaacuterios eacute de difiacutecil visualizaccedilatildeo Se a minha verdade baseada em uma teoria coerente apoiada durante um seacuteculo por dados empiacutericos ou por uma poesia do texto sagrado ela natildeo seraacute vista como verdade se a audiecircn-cia natildeo partilhar desse mesmo horizonte Ateacute as provas geomeacutetricas podem ser ldquodemonstradasrdquo apenas se os axiomas nas quais se apoiam estejam garantidos A natureza incomensuraacutevel das vaacuterias verdades e vocabulaacuterios tem dado origem recentemente natildeo apenas a debates puacuteblicos rancorosos e inuacuteteis mas a violentos e sanguinaacuterios conflitos entre sistemas de crenccedila incomensuraacuteveis

O primeiro grande nome da perspectiva agrave que Blumenberg e Burke se opotildeem aqui foi Platatildeo que obviamente criticou a mais antiga escola retoacuterica a dos so-fistas Ironicamente a postura de Platatildeo em relaccedilatildeo aos filoacutesofos estaacute articulada a uma seacuterie de conjuntos de peccedilas oratoacuterias nas quais ele propaga uma gama de praacuteticas retoacutericas um pouco semelhantes agraves de seus adversaacuterios Para piorar as coisas as praacuteticas de Platatildeo satildeo menos respeitaacuteveis do que as dos filoacutesofos alvos de sua criacutetica Em particular a retoacuterica de Platatildeo eacute marcadamente assimeacutetrica para adotarmos um termo cunhado por Conley (1990) na medida em que o locutor Soacutecrates eacute ativo versado e possui uma agenda enquanto o interlocutor especial-mente os poetas ou os sofistas satildeo tipicamente passivos ingecircnuos e prenhes de conhecimento falso De maneira claramente ostensiva o Soacutecrates de Platatildeo possui no coraccedilatildeo os interesses mais nobres de seus interlocutores e o objetivo de suas perguntas eacute educaacute-los salvaacute-los dos erros de percurso tal como uma parteira que arranca a verdade de suas consciecircncias agastadas Em teoria Platatildeo natildeo possui um modelo de sua audiecircncia e eacute o mais puro dos persuasores Mesmo assim ele natildeo consegue persuadir sua audiecircncia a reconhecer as verdades que vatildeo aleacutem de seus horizontes A conversa natildeo pode transportar sua audiecircncia para as verdades inquestionaacuteveis que ele deseja compartilhar Ele precisa recorrer ao mesmo tipo de praacuteticas manipuladoras que ele atribui a seus adversaacuterios A genialidade de Platatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

natildeo estaacute na habilidade em compor argumentos logicamente hermeacuteticos mas em sua inigualaacutevel habilidade de disfarccedilar sua retoacuterica assimeacutetrica como diaacutelogo

Em oposiccedilatildeo agrave dependecircncia de Platatildeo a retoacuterica assimeacutetrica atribui-se a Protaacutegoras o desenvolvimento de uma forma de ldquoantiloacutegicardquo que torna o diaacutelogo aberto o que permite que as crenccedilas (doxa) de cada locutor exerccedila um papel na resoluccedilatildeo de um problema

A visatildeo de Protaacutegoras parece ser bilateral no sentido de que os dois la-dos de uma questatildeo devem exercer pressatildeo umas sobre as outras para que se atinja uma resoluccedilatildeo agrave questatildeo em voga Como nenhum lado eacute privilegiado a priori e ambos estatildeo fundamentados na doxa dos ou-vintes podemos caracterizar a relaccedilatildeo entre orador e audiecircncia como ldquosimeacutetricardquo (CONLEY 1990 p 6-7)

A manipulaccedilatildeo de Platatildeo dessa forma de diaacutelogo deixa clara a dificuldade de conciliar uma feacute absolutista em uma crenccedila e um diaacutelogo genuiacuteno Caso sejam privilegiadas a priori algumas crenccedilas em detrimento de outras antes do iniacutecio de um diaacutelogo eacute impossiacutevel garantir que essas crenccedilas transcendentais possam ser alteradas no curso desse diaacutelogo A uacutenica maneira pela qual um diaacutelogo pode subs-tituir crenccedilas privilegiadas a priori por outras eacute criar um tipo de barreira Todas essas questotildees nos levam de volta ao debate entre Fish e Leo do capiacutetulo anterior Apenas os ldquorelativistasrdquo e os inclinados perigosamente aos ldquomulticulturalistasrdquo podem acreditar na possibilidade de que um diaacutelogo genuiacuteno entre adversaacuterios possa ser um evento positivo ou na de algueacutem poderia mudar de opiniatildeo nesse tipo de discussatildeo O fato de que o ldquoabsolutismordquo na versatildeo moderna do debate entre platocircnicos e sofistas natildeo defende universais absolutos e especiacuteficos eacute sintomaacutetico da diferenccedila entre o mundo de nossos antepassados e o nosso

Os absolutismos de hoje como nota de maneira irocircnica o criacutetico americano M H Abrams carecem de absolutos Como Leo a maioria dos platocircnicos recentes tende a apoiar-se em lamentaccedilotildees como principal veiacuteculo de persuasatildeo Ao focar o

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ataque ndash e a atenccedilatildeo da audiecircncia ndash em tudo que deu errado desde 1968 quando os relativistas tomaram conta do asilo Leo e sua personagem podem evitar referecircn-cias a outros absolutos aleacutem dos que desapareceram O tratamento desses valores universais eacute muito mais um exerciacutecio nostaacutelgico do que uma anaacutelise

Impliacutecitas agrave oposiccedilatildeo entre os antigos filoacutesofos e retoacutericos e suas versotildees atuais estatildeo diferentes assunccedilotildees sobre as finalidades da razatildeo A rejeiccedilatildeo pelos antigos filoacutesofos do efeito como um aspecto da verdade eacute parte da mais significativa diferenccedila entre as duas abordagens O fim da razatildeo para a filosofia eacute algum tipo de descoberta ndash da verdade da realidade ou do bem ndash que seraacute entatildeo conhecida e partilhaacutevel Por outro lado para a retoacuterica o fim da razatildeo eacute uma escolha eacute ter a certeza de que a escolha pode nos aproximar da verdade da realidade ou do bem (e se alguns dos trecircs eacute privilegiado pela retoacuterica seria o bem como indicamos) mas eacute o ato em si executado em um lugar e hora especiacutefica e com um resultado par-ticular e natildeo o conhecimento em si que motiva o processo De fato como propotildee Blumenberg (1987 p 441) a situaccedilatildeo retoacuterica eacute como ldquo[] uma (falta) de provas e (eacute) compelido agrave accedilatildeordquo ao contraacuterio de Platatildeo que ldquoinstitucionalizourdquo a noccedilatildeo de que o ldquoconhecimento eacute a virtuderdquo desse modo tornando ldquo[] o que eacute evidente em norma de comportamentordquo (BLUMENBERG 1987 p 431) Agrave luz de Platatildeo quando algueacutem deteacutem o conhecimento correto eacute compelido a accedilotildees virtuosas enquanto os retoacutericos entendem que a virtude deve ser compelida outra vez em cada situaccedilatildeo nova usando informaccedilotildees incompletas e meios especiacuteficos para essa situaccedilatildeo

Uma das principais vantagens dos filoacutesofos ao promover o conhecimento em detrimento da accedilatildeo jaacute que o fim da razatildeo em muitos casos reduz as escolhas a duas eacute o fato de que a escolha recomendaacutevel se aplica a todas as situaccedilotildees Como aponta Crosswhite (1996 p 36) esse processo pode gerar uma ideia redutora dos produtos da retoacuterica ldquoA necessidade da accedilatildeo de onde vem a necessidade de uma escolha agraves vezes forccedila a uma bivalecircncia ndash isto eacute demanda um sim ou natildeo agraves reivindicaccedilotildees colocadas nos argumentos ndash mas isso natildeo deve ser confundido com as demandas da razatildeordquo O que a razatildeo demanda e o que a retoacuterica eacute destinada a

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produzir eacute um campo amplo de escolhas selecionaacuteveis e um senso de criteacuterio claro e transparente para realizar a escolha Isso ocorre porque os filoacutesofos natildeo pre-cisam necessariamente agir sobre o conhecimento descoberto porque o maacuteximo que eles se aproximam do par escolha-accedilatildeo eacute a traduccedilatildeo ocasional de princiacutepios em regras (caso da eacutetica aplicada) eles estatildeo a salvo do consideraacutevel luto que vem apoacutes as escolhas errocircneas Enquanto isso a Histoacuteria apresenta diversos casos de argumentos retoricamente brilhantes e vencedores que levaram a consequecircncias malsucedidas natildeo intencionais ou ateacute mesmo desastrosas

Da perspectiva dos retoacutericos filoacutesofos como Platatildeo rotineiramente despreza a injunccedilatildeo proverbial que natildeo permite o perfeito ser inimigo do bem Enquanto os filoacutesofos tradicionais conjuraram respostas perfeitas agraves perguntas mais pro-fundas da vida eles precisaram colocar o peacute fora da histoacuteria para consegui-lo e suas respostas raramente satildeo retomadas de maneira intacta Os retoacutericos por outro lado sempre se restringiram a respostas imperfeitas poreacutem viaacuteveis para o aqui e agora Ao recusar o passo em direccedilatildeo a um passado dourado um futuro transcendente ou a algum paradigma novo e inimaginaacutevel os retoacutericos tornam a si proacuteprios uacuteteis agrave esfera puacuteblica

De fato muitos retoacutericos antigos eram figuras puacuteblicas dignas de nota que arguiram em casos legais ajudaram a passar leis e a definir os valores da proacutepria sociedade O soacutelido sistema dos filoacutesofos antigos ofereceu frameworks compreensi-vos e capazes de explicar inteiramente os sentidos do mundo e antecipou todas as perguntas importantes sobre a vida apesar de raramente apresentarem impacto significativo (com exceccedilatildeo poreacutem dos filoacutesofos morais) das atividades cotidianas do mundo em que viviam Hoje em dia poucos filoacutesofos arriscam-se a oferecer teorias unificadas das coisas Mas isso natildeo significa que seu papel tradicional no debate entre filosofia e retoacuterica desapareceu Hoje em dia esse papel eacute preenchido por uma classe de pensadores um subconjunto de absolutistas agraves vezes referidos como ideoacutelogos

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Enquanto ldquoideoacutelogordquo eacute um termo muitas vezes usado para designar uma pessoa radical tendenciosa em oposiccedilatildeo a uma pessoa racional desprovida de caracte-riacutesticas subjetivistas empregamos esse termo de maneira mais restrita Noacutes natildeo equacionamos racionalidade com objetividade e admitimos que todos possuem preconceitos pontos de vista e crenccedilas que constroem e suas percepccedilotildees ldquoUma maneira de verrdquo como nos lembra Burke (1984 p 49) ldquo[] eacute tambeacutem uma maneira de natildeo verrdquo Tambeacutem admitimos que nossas crenccedilas e assunccedilotildees satildeo corrigiacuteveis que elas podem e iratildeo mudar e que agraves vezes uma mudanccedila na crenccedila eacute um epi-fenocircmeno que segue uma mudanccedila na experiecircncia outras vezes eacute um resultado previsiacutevel de uma busca disciplinada e intencional de novas perspectivas ou de evidecircncias de provas e de intercacircmbio com os outros

Assumimos que a uacuteltima possibilidade representa uma condiccedilatildeo necessaacuteria agrave retoacuterica Tambeacutem nos juntamos a Aristoacuteteles ao admitirmos que eacute mais faacutecil mudar as mentes aos poucos e que a maneira mais praacutetica de mover as pessoas em direccedilatildeo a crenccedilas natildeo familiares eacute atraveacutes de crenccedilas familiares

Isto posto tambeacutem admitimos a existecircncia daqueles que deteacutem firmemente suas proacuteprias crenccedilas e satildeo tatildeo resistentes agrave mudanccedila que merecem uma de-signaccedilatildeo especial Em casos extremos podem ser conhecidos como fanaacuteticos No entanto dentro do esquema ordinaacuterio das coisas o termo ideoacutelogo parece bastante aplicaacutevel Os ideoacutelogos detecircm com notaacutevel tenacidade um bocado de ideias suficientes para explicar exaustivamente algum aspecto do mundo ou uma semente de uma explicaccedilatildeo universal Eles satildeo raramente afetados por ar-gumentos a que se opotildeem ou por evidecircncias que invalidam suas crenccedilas Face a fatos pouco cooperativos ou a contra-argumentos fatais eles podem optar por descaracterizar ou ignorar a oposiccedilatildeo Enquanto aceitam a remota possibilidade de que suas crenccedilas possam ser em um momento posterior estremecidas o ocircnus da prova imposto aos criacuteticos eacute quase inalcanccedilaacutevel A crenccedila em Deus (o deles natildeo o seu) no Livre Mercado no Indecidiacutevel ou no Novo Paradigma eacute completa e quaisquer consequecircncias maleacuteficas que possam resultar do agir em nome de sua

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forccedila-motriz satildeo postas de lados ou racionalizadas Eles enxergam quem prati-ca a ldquoantiloacutegicardquo e promovem a retoacuterica simeacutetrica como fracos e perigosamente vulneraacuteveis a ideias que ameaccedilam o nosso ndash vale dizer o deles ndash estilo de vida

Eacute por isso que ensaiar alguns dos principais argumentos de Platatildeo contra a retoacuterica prova ser uma importante preparaccedilatildeo para o debate com os ideoacutelogos de hoje e para antecipar argumentos que nossos estudantes incorporaram das inuacutemeras e bem divulgadas ideologias disponiacuteveis hoje em dia no mercado de ideias Enquanto alguns dos ideoacutelogos mais poderosos da atualidade defendem suas convicccedilotildees com a mesma sinceridade que Platatildeo usava ao defender as suas outros criaram nichos lucrativos em mercados midiaacuteticos ao se tornarem o que designamos ldquoideo-treinadoresrdquo (ideo-trainers) oradores profissionais que fazem declaraccedilotildees rigorosas geralmente extravagantes mais uacuteteis para a venda de li-vros e para ganhar tempo de exposiccedilatildeo na miacutedia do que para expor uma posiccedilatildeo legiacutetima ou ateacute mesmo coerente Nos anos recentes com o crescimento de canais pagos de notiacutecias e blogs de Internet a linha que separa entretenimento e notiacutecia quase desapareceu transformando em estrelas pessoas que atendem aos anseios de determinados grupos O tipo de ideoacutelogos artificiais que emergem nesse mer-cado e os diferentes crentes verdadeiros que operam principalmente no mercado impresso oferecem um modelo de argumento profundamente assimeacutetrico para nossos estudantes Por isso dedicar-se agrave antiga habilidade da ldquoantiloacutegicardquo ou dia-leacutetica pode ser uma habilidade crucial de sobrevivecircncia

Uma figura da retoacuterica antiga a quem vale a pena dedicar um pouco mais de espaccedilo na nossa histoacuteria eacute Aristoacuteteles Pode-se alegar que tudo o que eacute ne-cessaacuterio agrave compreensatildeo do argumento estaacute em Aristoacuteteles O resto eacute nota de rodapeacute Embora nossa admiraccedilatildeo por esse pensador seja enorme reconhecemos a necessidade de ldquodar um descontordquo ao tratamento aristoteacutelico do argumento para os estudantes de hoje em dia Aleacutem disso achamos que um bom nuacutemero de intelectuais recentes citados neste capiacutetulo fez exatamente isto expandiram a compreensatildeo aristoteacutelica sobre o argumento deixando de lado alguns de seus

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julgamentos pontuais sobre a audiecircncia e revendo suas ideias afim de dar conta de perspectivas sobre o efeito da miacutedia na comunicaccedilatildeo e sobre o papel ativo que a linguagem desempenha na compreensatildeo

Aristoacuteteles transcende a eterna batalha entre filosofia e retoacuterica e torna a retoacuterica uma ferramenta respeitaacutevel embora de segundo niacutevel para realizar nos-sos trabalhos sobre o mundo Ele eacute o primeiro grande sistematizador da retoacuterica o primeiro a oferecer uma anaacutelise profunda de sua dinacircmica bem como sobre a taxonomia de seus elementos Evita tambeacutem o problema crocircnico do filoacutesofo de permitir a busca pela perfeiccedilatildeo ndash representada pela ciecircncia e pela filosofia ndash para esconder a busca da retoacuterica pelo que eacute uacutetil Cria um espaccedilo intelectual para a retoacuterica apontando para o reconhecimento de verdades provaacuteveis e para o reconhecimento do impacto das circunstacircncias sobre a verdade Ele deixa claro ainda que o maior poder da retoacuterica natildeo reside apenas na concepccedilatildeo dos argumentos vencedores mas tambeacutem na capacidade de ldquose enxergar os meios de persuasatildeo disponiacuteveisrdquo Um elemento importante dessa capacidade reside na habilidade de argumentar de maneira persuasiva em qualquer um dos lados de uma discussatildeo Natildeo que isso seja um ensinamento jaacute que natildeo se deve persuadir sobre o que estaacute aviltado mas para que natildeo nos escape o real estado de coisas e para que possamos ser capazes de evitar que outra pessoa use o discurso de forma injusta (Retoacuterica Livro I)

Aristoacuteteles fez tambeacutem do estudo da audiecircncia uma ciecircncia rudimentar En-quanto sua psicologia da audiecircncia atinge provavelmente um leitor contemporacircneo imperfeito e estereotipado a precursora da ldquopsicologia dos humoresrdquo ele define um caso claro e convincente sobre a importacircncia de se estabelecer uma base comum com a audiecircncia considerando suas crenccedilas e convicccedilotildees Quaisquer que sejam as limitaccedilotildees de visatildeo de Aristoacuteteles sobre a psicologia da audiecircncia seu desejo em tomar a audiecircncia como elemento relevante representa um grande avanccedilo em relaccedilatildeo agrave posiccedilatildeo de Platatildeo

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Aristoacuteteles portanto privilegiou a arte da dialeacutetica e da demonstraccedilatildeo sobre a arte da persuasatildeo e foi consideravelmente menos igualitaacuterio do que boa parte dos sofistas Ele tambeacutem suspeitava das dimensotildees emocionais e natildeo racionais da verdade Parece que ele partilhou da desconfianccedila popular da tendecircncia dos sofistas de que ldquotornar-se fraco parece ser a melhor causardquo (Retoacuterica Livro II) Nesse uacuteltimo caso ele claramente tinha em mente o ldquoequivocadordquo uso da antiloacutegica pelos sofistas que apoacutes argumentar de maneira persuasiva em qualquer um dos lados de uma discussatildeo elege o lado mais fraco porque serve a seus interesses natildeo aos da verdade Poreacutem a quem cabe julgar qual eacute o lado mais forte e o mais fraco Evidentemente qualquer argumento que frustre ou enfraqueccedila os nossos nos pareceraacute mais fraco O argumento de Aristoacuteteles nesse ponto pode ser circular ele presume conhecer o que pode apenas ser determinado ao testar os argumentos de um lado contra o outro Deixando de lado alguns pontos fracos de Aristoacuteteles no tocante aos sofistas dedicamos nossa atenccedilatildeo a algumas das razotildees pelas quais ele continua importante e ainda mais agrave adaptaccedilatildeo do seu pensamento ao ensino do argumento na atualidade

A descrenccedila aristoteacutelica sobre os meios natildeo racionais de persuasatildeo eacute certa-mente compreensiacutevel no contexto de sua eacutepoca Assim como Platatildeo ele via a filo-sofia como um meio de substituir as formas retroacutegradas de raciociacutenio herdadas dos mitos gregos sob os quais os sofistas debruccedilaram-se enquanto fonte de doxa Como defendeu Jarratt (1991) a hostilidade dos filoacutesofos antigos em relaccedilatildeo agrave re-toacuterica pode ser entendida como uma hostilidade a qualquer forma natildeo racional de persuasatildeo Sobre Platatildeo por exemplo a autora aponta que ele temia ldquo[] a trans-ferecircncia poeacutetica de informaccedilatildeo cultural crucial por conta dos efeitos hipnoacuteticos e defendeu que ela abrigava uma absorccedilatildeo acriacutetica da ideologia dominanterdquo (1991 p xxi) Embora a oposiccedilatildeo de Aristoacuteteles tenha sido mais silenciosa que a de Platatildeo e embora ele certamente reconhecesse um lugar para as emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo ndash desde que pelo menos essas emoccedilotildees sejam categorizadas de maneira apropriada e exaustiva e triadas em pares opostos com a virtude na posiccedilatildeo medial ndash parece

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que ele nunca esteve completamente confortaacutevel com a emoccedilatildeo e o espetaacuteculo duas das ferramentas primaacuterias dos bardos e sofistas e apenas hesitou a reconhecer explicitamente seu valor Ele inclui o espetaacuteculo nessas condiccedilotildees como um dos seis elementos do drama na Poeacutetica mas relega a ele a menor importacircncia entre esses elementos incluindo-o mais como trabalho do operador de palco do que como arte do poeta Aleacutem disso discorda de quem atribui mais valor ao espetaacuteculo do que ao funcionamento interno da trama na criaccedilatildeo de efeitos dramaacuteticos

Na Retoacuterica ele atribui aos autores de manuais isto eacute os sofistas a ecircnfase demasiada na retoacuterica forense ou de tribunal ldquo[] ataque verbal a prece a raiva e outras emoccedilotildees da alma natildeo estatildeo relacionadas ao fato mas satildeo apelos ao juacuterirdquo (Retoacuterica Livro I) Ao contraacuterio propotildee maior ecircnfase sobre a retoacuterica deliberativa com seus apelos mais racionais Impliacutecita agrave criacutetica de Aristoacuteteles ao espetaacuteculo e agrave emoccedilatildeo estaacute a desconfianccedila sobre as opiniotildees populares desconfianccedila potenciali-zada por sua tendecircncia nas palavras de Burke (1969 p 64) em ver a ldquo[] audiecircncia como algo puramente dadordquo ao inveacutes de em arte uma construccedilatildeo do orador De modo particular ele lembra em diversos momentos as habilidades limitadas desse tipo de audiecircncia de compreender cadeias complexas de raciociacutenio

O segredo para ajudar a superar a descrenccedila de Aristoacuteteles com o natildeo racional eacute olhar para aleacutem da tendecircncia de desprezar a opiniatildeo puacuteblica Enquanto a audiecircn-cia for associada a pessoas preconceituosas e emotivas as opiniotildees natildeo racionais na construccedilatildeo do argumento seratildeo vistas com ressalva Os estudantes precisam ser expostos a um entendimento mais complexo de audiecircncia De modo particular precisam entender que a audiecircncia como vaacuterios teoacutericos reconhecem eacute ao mesmo tempo direcionada suplicada servida e criada Por isso gostamos de dar iniacutecio a nossas aulas desde o primeiro dia ressaltando a metaacutefora do argumento como uma conversa e o processo de invenccedilatildeo colaborativa Essa noccedilatildeo da plasticidade da audiecircncia como conceito puramente intelectual que pode ser difiacutecil para os estudantes compreender eacute mais acessiacutevel no niacutevel da interaccedilatildeo entre pares

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Um segundo elemento uacutetil das ideias de Aristoacuteteles que precisa ser destacado em sala de aula diz respeito agraves situaccedilotildees de uso do argumento Parece que ele ima-gina um nuacutemero limitado de eventos e ocasiotildees em que o argumento eacute utilizado (sessotildees legislativas tribunais ocasiotildees solenes) mas o argumento atualmente estaacute muito mais difundido Pode-se ter contato com ele atraveacutes da televisatildeo do raacutedio dos jornais impressos ou on line Ele pode durar um longo periacuteodo de tempo e pode se consolidar aos poucos atraveacutes de chavotildees reacuteplicas e anuacutencios de ataque e contra-ataques Agraves vezes os argumentos na esfera puacuteblica tomam formas fluidas e expressam apoio ou criacutetica a uma posiccedilatildeo fazendo alusatildeo a outra e defendem uma alternativa sem designar a outra agrave qual ela se opotildee Os argumentos polecircmicos natildeo evoluem como evolui uma metaacutestase ou os interessados nas disputas dos talk shows nos noticiaacuterios blogs propagandas editoriais no vazamento de insinuaccedilotildees maldosas e assim por diante que oferecem novas nem sempre confiaacuteveis revela-ccedilotildees ldquofactuaisrdquo e linhas de raciociacutenio Geralmente esses tipos de argumento incluem mais de duas posiccedilotildees possiacuteveis agraves vezes mais de duas Nesse sentido considera-mos uacutetil que os estudantes conservem jornais nos quais observem controveacutersias em andamento em vez de se concentrarem estritamente em argumentos escritos descontextualizados Eacute interessante a propoacutesito observar como novas linhas de argumentaccedilatildeo que aparecem em seccedilotildees de revistas e editoriais satildeo retiradas da Internet e reproduzidas sem a identificaccedilatildeo da fonte Um dos nossos estudantes deu um exemplo recente a esse respeito Ele observou que a controveacutersia sobre a guerra no Iraque foi comparada ao Vietnatilde ndash que natildeo eacute um fato comumente evocado pelos apoiadores da guerra ndash nos argumentos de diversos conservadores proacute-guerra que apontaram o colapso quase imediato do exeacutercito Sul-Vietnamita apoacutes a saiacuteda dos americanos Como todas as analogias essa sugere possibilidades muacuteltiplas de conclusatildeo incluindo a de que mesmo se permanececircssemos no Iraque ou no Viet-natilde ou mesmo se perdecircssemos todas as vidas como as que perdemos ainda assim isso natildeo garantiria a soberania do governo iraquiano Os apoiadores da guerra de

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maneira unacircnime rejeitaram essa possibilidade ao favorecer a sugestatildeo de que a retirada das tropas seria responsaacutevel por todas as cataacutestrofes ocorridas no Iraque

Por fim a argumentaccedilatildeo de hoje em dia se comparado ao da eacutepoca de Aris-toacuteteles debruccedila-se mais fortemente sobre elementos visuais Particularmente no domiacutenio da publicidade e do marketing o apelo argumentativo pode ser puramen-te visual Em muitos domiacutenios o suporte visual provecirc um contexto criacutetico para a mensagem textual Em parte eacute evidente isso tudo tem a ver com o ambiente alta-mente midiaacutetico em que vivemos Raramente presenciamos um debate ou ouvimos um argumento de primeira matildeo Estamos muito mais inclinados a apreender as coisas atraveacutes de uma maneira que trata e filtra intencionalmente a mensagem Algueacutem pode passar um dia inteiro no Youtube e ver incontaacuteveis postagens sobre controveacutersias atuais versotildees editadas de viacutedeos de figuras puacuteblicas que apresen-tam argumentos Esses viacutedeos amadores podem ser ao mesmo tempo partidaacuterios e divertidos Outro motivo pelo qual o visual suplanta o textual na apresentaccedilatildeo do argumento atualmente tem a ver com um fenocircmeno jaacute percebido por Aristoacutete-les os argumentos que natildeo parecem ser tecircm maior chance de passarem desper-cebidos por nossos filtros cognitivos do que os apelos racionais expliacutecitos Esses argumentos podem apoiar-se substancial ou inteiramente no proacuteprio ldquoespetaacuteculordquo criticado por Aristoacuteteles no cenaacuterio no pano de fundo nos recursos visuais nos acircngulos da cacircmera e assim por diante e oferecem pouca ou nenhuma proposiccedilatildeo argumentativa A maioria dos manuais atuais sobre argumento dedica alguma atenccedilatildeo aos seus elementos visuais particularmente na propaganda impressa

Assim recomendamos fortemente a dedicaccedilatildeo de tempo da aula para discutir e aplicar algumas dessas liccedilotildees Dito isso o vocabulaacuterio especializado necessaacuterio agrave anaacutelise seacuteria dos argumentos visuais em suas diferentes modalidades eacute tatildeo grandioso que nas aulas de escrita focadas na argumentaccedilatildeo podemos esperar fazer um pouco mais que sensibilizar os estudantes para as dimensotildees visuais dos argumentos

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Em suma a retoacuterica de Aristoacuteteles permanece como uma excelente fonte para o entendimento da produccedilatildeo de textos e discursos persuasivos embora ofereccedila pouca ajuda para compreender como os eventos e os comportamentos natildeo pro-posicionais funcionam de forma persuasiva Aristoacuteteles privilegia os elementos racionais ocasionais e textuais da argumentaccedilatildeo e certamente esses elementos continuam importantes para qualquer discussatildeo contemporacircnea sobre persuasatildeo ndash em detrimento das dimensotildees visuais midiaacuteticas e natildeo racionais Se considerar-mos o assunto a partir da proacutepria terminologia de Aristoacuteteles (Retoacuterica Livro II) o equiliacutebrio entre os trecircs modos ldquoartiacutesticosrdquo de persuasatildeo (em oposiccedilatildeo aos modos natildeo artiacutesticos como a tortura) mudou radicalmente nos uacuteltimos anos do logos para o ethos e para o pathos Na apresentaccedilatildeo aristoteacutelica sobre a forma como interagem esses modos o ethos ou o caraacuteter do orador ndash a situaccedilatildeo retoacuterica eacute invariavelmente oral para Aristoacuteteles ndash eacute empregado para a elaboraccedilatildeo das observaccedilotildees da forma mais clara possiacutevel e desse modo chamar a atenccedilatildeo da audiecircncia Ao despertar as emoccedilotildees da audiecircncia (pathos) o orador possibilita a accedilatildeo ou uma boa recepccedilatildeo das decisotildees dessa audiecircncia O logos ou o argumento loacutegico eacute por sua vez empre-gado para tornar provaacutevel a causa do orador e as alternativas improvaacuteveis Ethos e pathos cumprem aqui uma funccedilatildeo importante mas suplementar nesse esquema

O cerne da questatildeo eacute a concepccedilatildeo da estrutura argumentativa e a seleccedilatildeo das razotildees e evidecircncias que iratildeo ter maior peso para a audiecircncia O logos atua de ma-neira central na retoacuterica de Aristoacuteteles assim como o enredo na sua poeacutetica por razotildees similares Eacute a alma da peccedila a forccedila-motriz do argumento No entanto como hoje em dia o ethos pode ser derivado da celebridade assim como da experiecircncia ou da virtuosidade linguiacutestica e como o pathos pode ser evocado por uma muacutesica ou uma imagem forte a persuasatildeo pode ser alcanccedilada com muito menos esforccedilo pelo logos como nos tempos de Aristoacuteteles Assim os estudantes precisam estar mais atentos a essas dimensotildees natildeo racionais do argumento

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o problema do engessamento da retoacuteriCa

A eterna batalha entre Retoacuterica e Filosofia apresenta implicaccedilotildees importantes para o nosso segundo tema da histoacuteria da Retoacuterica a transformaccedilatildeo recorrente dos poderes imaginativos da Retoacuterica em foacutermulas e sistemas riacutegidos A questatildeo colocada pelo engessamento contiacutenuo da Retoacuterica eacute a seguinte em que medida a Retoacuterica pode ser metoacutedica sem se tornar inerte Burke (1984 p 225) considera essa questatildeo agrave luz da ldquoburocratizaccedilatildeo da imaginaccedilatildeordquo entendida como um ldquopro-cesso histoacuterico baacutesicordquo que pode apenas ser desacelerado mas nunca paralisado ou superado Esse processo emerge quando uma das possibilidades geradas por um princiacutepio ou insight eacute colocada de lado em detrimento de outras Eacute evidente que para qualquer possibilidade se tornar factual outras devem ser ignoradas ou me-nos exploradas Todos passamos por experiecircncias desse tipo Quando precisamos escolher uma pessoa com quem iremos ficar ou o que fazer isso nos forccedila a colocar de lado outras escolhas Se sonhos devem tornar-se realidade se as promessas dos poliacuteticos devem tornar-se poliacuteticas puacuteblicas se os projetos devem tornar-se insti-tuiccedilatildeo ou produtos se crenccedilas filosoacuteficas e religiosas devem tornar-se leis outras possibilidades devem ser superadas ou abandonadas Assim como toda maneira de ver eacute tambeacutem uma maneira de natildeo ver toda maneira de atualizar uma perspectiva eacute tambeacutem uma maneira de natildeo atualizar outra

No entanto por mais inevitaacutevel que seja esse processo ele pode com o tempo apresentar implicaccedilotildees negativas Ideias originais tornam-se gradualmente em ortodoxia e os sistemas que elas nos oferecem engendram hierarquias que definem e datildeo prioridades a elementos nela presentes de acordo com o princiacutepio originaacuterio

Eventualmente a hierarquia muitas vezes problemaacutetica torna-se um peso burocraacutetico dedicada mais agrave autoperpetuaccedilatildeo do que agrave realizaccedilatildeo do princiacutepio de origem e agraves possibilidades sobre as quais a estrutura foi fundada Os que estatildeo no topo da burocracia reivindicam a ortodoxia como a posse de um tiacutetulo que lhes eacute proacuteprio e oferecem-se como personificaccedilatildeo do princiacutepio subordinante a tal ponto

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que ldquoos subprodutos natildeo intencionaisrdquo (BURKE 1984 p 226) de suas accedilotildees sobre-potildeem-se agraves gloriosas possibilidades que deram suporte ao princiacutepio originaacuterio Um exemplo claacutessico de burocratizaccedilatildeo diz respeito agrave inversatildeo da doutrina puritana da eleiccedilatildeo cujos sinais satildeo convertidos em causas e simultaneamente os ldquoeleitosrdquo quem quer que seja a empregam para herdar seus benefiacutecios tidos como presentes divinos enquanto o fracasso dos natildeo eleitos eacute atribuiacutedo agrave falta de piedade divina Um programa religioso destinado a encorajar a humildade e a abnegaccedilatildeo eacute assim transformado em apologia do status quo e um exerciacutecio insiacutepido de melhoria de posiccedilatildeo social A loacutegica baacutesica por traacutes dessa enganaccedilatildeo de trezentos anos ainda pode ser observada em argumentos presentes no discurso poliacutetico americano atual Como aponta Burke (1984) todos os sistemas designados para transformar ideais em accedilatildeo eventualmente atingem um ponto de rendimento decrescente quando a manutenccedilatildeo do status dentro do sistema torna-se a razatildeo de ser do proacuteprio sistema

Infelizmente as observaccedilotildees de Burke (1984) sobre a burocratizaccedilatildeo tornam--se verdade em todas as tentativas de sistematizaccedilatildeo ateacute mesmo em tentativas de sistematizar o entendimento retoacuterico Adotar uma metodologia da invenccedilatildeo significa ldquo[] que os desenvolvimentos satildeo treinados pela rotina Ciecircncia conhe-cimento eacute a burocratizaccedilatildeo do saberrdquo (BURKE 1984 p 228) A rotina para ser uacutetil deve apresentar um caraacuteter axiomaacutetico Ou nas palavras simples de Burke a rotina torna-se o ldquocaminho da roccedilardquo que foi ldquoconservado natildeo porque foi criticado avaliado e julgado como o melhor processo possiacutevel mas simplesmente porque nunca foi questionadordquo (BURKE 1984 p 228) Nem mesmo a metodologia de Burke estaacute excluiacuteda dessa criacutetica

Nossa foacutermula ldquoa perspectiva pela incongruecircnciardquo eacute uma ldquometodologia da invenccedilatildeordquo paralela em uma esfera puramente conceitual Ela buro-cratiza um recurso confinado a uma escolha de alguns de nossos pen-sadores ldquoreaisrdquo Ela torna a perspectiva barata e faacutecil (BURKE 1984 p 228-29)

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Embora esse movimento acarrete alguma deterioraccedilatildeo de ideias produzidas pelo meacutetodo tambeacutem resulta em ldquo[] um desenvolvimento correspondente na qualidade da sofisticaccedilatildeo popularrdquo (BURKE 1984 p 229) que para Burke (1984) justifica a mudanccedila Talvez o exemplo mais conhecido da metodologia desse au-tor em sala de aula de escrita eacute a difundida abordagem dramaacutetica na forma de pentaacutegono como um dispositivo heuriacutestico accedilatildeoato agente agecircncia propoacutesito cenaacuterio e agraves vezes atitude De nosso ponto de vista muitas tentativas de adaptar a abordagem dramaacutetica de Burke (1984) agraves aulas de escrita resultam em um mal uso das ideias e perda de conexatildeo com o contexto mais amplo no qual ela se ori-gina Dissociado do conceito de ratio (a relaccedilatildeo entre os conceitos do pentaacutegono) o sistema proposto por Burke funciona de maneira similar agraves perguntas tiacutepicas do lead no campo do jornalismo O que Quem Quando Onde Por quecirc e agraves ve-zes Como Poreacutem no final das contas cada professor deve pesar os ganhos com a compreensatildeo em oposiccedilatildeo agraves perdas com ldquosabedoriardquo na adoccedilatildeo de qualquer metodologia em sala de aula

Esse prefaacutecio estendido das ideias de Burke sobre o engessamento da retoacuterica tem por funccedilatildeo colocar o assunto em perspectiva jaacute que ele estaacute ausente quando o tema do meacutetodo eacute levantado no contexto do ensino do argumento No campo da escrita o processo pelo qual os insights satildeo convertidos em rotina e as heuriacutesticas em foacutermula eacute tipicamente visto como injustificado desnecessaacuterio e negativo A importacircncia de democratizar um recurso eacute consequentemente omitida e a mera presenccedila de uma rotina em um sistema levaraacute alguns a demonizaacute-la enquanto uma ldquocorrente tradicionalrdquo Para ser justo em nossa histoacuteria haacute uma abundacircncia de casos nos quais pedagogias desenhadas para ajudar iniciantes a dominar a arte da retoacuterica metamorfoseiam-se em sistemas que sufocam a imaginaccedilatildeo das pessoas deformam a prosa e afastam os assuntos que nos interessam

No entanto se natildeo aprendermos a tolerar um certo elemento de burocratiza-ccedilatildeo em nossas aulas corremos o risco de tornar a retoacuterica em uma arte elitista (e

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essencialmente incompreensiacutevel) dependente em grande parte do olhar aguccedilado de cada indiviacuteduo para a representaccedilatildeo ndash o que no seacuteculo XVII seria referido como ldquopreferecircnciardquo ndash ao inveacutes de uma maneira racional social e replicaacutevel de construir sentido O problema do engessamento ao cabo levanta questotildees fundamentais para o ensino do argumento incluindo a mais fundamental de todas o que de fato ensinamos quando ensinamos estudantes a produzir argumentos

Algumas evidecircncias desse engessamento jaacute aparecem nas referecircncias depre-ciativas aos primeiros manuais de retoacuterica precursores dos atuais livros didaacuteticos Apesar de parte dessa criacutetica ocorrer em funccedilatildeo do desdeacutem geral dos filoacutesofos pela retoacuterica uma parte dela parece ter meacuterito Depois de Aristoacuteteles de acordo com Kennedy (1999) a urgecircncia em codificar e sistematizar a Retoacuterica cresceu junto ao decliacutenio intelectual que atingiu o mundo antigo

A aceitaccedilatildeo de regras para a arte de respostas certas e erradas signifi-cou o iniacutecio de um processo de engessamento que sufocou toda a criati-vidade antiga A praacutetica dentro das artes foi controlada mais e mais por regras restritas O artista era cada vez mais um virtuoso exultante no jogo e nas regras O uacutenico lugar para o crescimento estava dentro das proacuteprias regras de modo que podemos encontrar a execuccedilatildeo dos temas desenhada nos primeiros manuais [] O desenvolvimento da retoacuterica em um sistema fechado foi preluacutedio para o conceito de vida e pensamen-to enquanto sistemas fechados (KENNEDY 1999 p 124)

Enquanto Aristoacuteteles elaborava os elementos da Retoacuterica explicava sua di-nacircmica e a situava no contexto de outras abordagens para o entendimento seus sucessores geralmente se contentavam com a enumeraccedilatildeo de elementos ignoran-do as preocupaccedilotildees mais importantes Por consequecircncia geraram terminologias elaboradas e cada vez mais distantes da linguagem cotidiana pouco aplicaacuteveis agraves preocupaccedilotildees praacuteticas enfatizadas pelos primeiros retoacutericos Tudo o que era necessaacuterio saber para argumentar com ecircxito eram as regras do argumento e as

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partes de um discurso persuasivo Cada caso era previsto pelas regras e catego-rias da retoacuterica enquanto as ldquocircunstacircncias mitigadas da vidardquo (KENNEDY 1999 p 267) eram ignoradas em prol do encaixe dos casos nas devidas categorias e do encontrar uma soluccedilatildeo ditada pela categoria Assim quando a Retoacuterica abandona as circunstacircncias mitigadas e particulares de uma situaccedilatildeo deixa de ser Retoacuterica em qualquer sentido vaacutelido

Em outras palavras esse foco que a Retoacuterica atribui agraves regras se daacute em funccedilatildeo da atenccedilatildeo agrave unicidade de cada situaccedilatildeo retoacuterica uma preocupaccedilatildeo que os pri-meiros gregos chamavam de kairos (oportunidade) O kairos era particularmente importante porque servia como ferramenta para resolver antinomias aparentes geradas pela abordagem antiloacutegica de compreensatildeo dos sofistas A propoacutesito da preocupaccedilatildeo de Goacutergias com o kairos Kennedy (1999 p 66) assinala ldquo[] qualquer problema posto envolve escolha ou compromisso entre duas antiacuteteses de modo que a consideraccedilatildeo do kairos isto eacute do tempo lugar e circunstacircncia [] pode resolver o dilema e levar agrave escolha da verdade relativa e agrave accedilatildeordquo Quando as leis e princiacute-pios (ou regras dos retoacutericos) se contradizem a loacutegica e os sistemas engessados deixam de ajudar a soluccedilatildeo do impasse As hierarquias cujos valores satildeo dados a priori natildeo poderatildeo ajudar a decidir qual regra legiacutetima entre duas ou mais eacute mais apropriada para um conjunto particular de circunstacircncias A menos que se possa tomar tais decisotildees natildeo se pode agir e a Retoacuterica torna-se uma atividade cerimo-nial virtualmente inuacutetil na esfera puacuteblica exceto enquanto forma degradada de entretenimento Algo que aprendemos a partir de praacuteticas derivadas das vaacuterias versotildees histoacutericas do problema do engessamento diz respeito ao entendimento de que a Retoacuterica eacute a ldquociecircncia das instacircncias particularesrdquo e de que ao cabo os meacutetodos devem acomodar as circunstacircncias

Nossa tendecircncia em esquecer a centralidade da circunstacircncia para o entendi-mento na Retoacuterica eacute literalmente visiacutevel em aulas de escrita haacute seacuteculos Qualquer um que tenha ensinado escrita na faculdade por mais de vinte anos iraacute reconhecer

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na pedagogia dos modelos tradicionais de escrita um resquiacutecio do ldquosistema fechadordquo da Retoacuterica que prevalece haacute mais de dois mil anos O argumento recebeu pouca atenccedilatildeo nesses cursos em grande parte porque a partir do momento em que se atribui as questotildees sobre letramento criacutetico a outros campos restou pouco material interessante para falar sobre persuasatildeo exceto dizer que a estrutura organiza-cional composta por cinco eacute a essecircncia de um bom argumento Os estudantes natildeo eram estimulados a trabalhar uns com os outros porque os modelos e estruturas dos cursos eram visuais e portanto prontamente disponiacuteveis para reproduccedilatildeo Aleacutem disso os aspectos inferiacuteveis da escrita da conversaccedilatildeo e todos os processos precedentes ao produto eram abolidos e o processo de criaccedilatildeo ficava reduzido a exerciacutecios de estruturaccedilatildeo de sentenccedilas

Para os professores de hoje a liccedilatildeo a ser aprendida a partir dessa batalha centenaacuteria tem duas faces De um lado devemos tomar grande cuidado em nossas aulas para salvaguardar contra a adoccedilatildeo ou o desenvolvimento de meacutetodos de en-sino que transformam a construccedilatildeo do argumento em processo muito ldquosimples e raacutepidordquo reduzindo-a a algo um pouco mais que o exerciacutecio de ldquoespremer e encaixarrdquo De outro lado devemos encontrar maneiras de materializar e tornar disponiacuteveis aos iniciantes as ferramentas para produzir insights e sentidos Se falharmos de um lado nossa disciplina continuaraacute como um formalismo inuacutetil se falharmos do outro nossos estudantes natildeo teratildeo acesso ao mais poderoso e menos misterioso ldquoinstrumento de sobrevivecircnciardquo disponiacutevel agraves pessoas comuns

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figuras-Chave da teoria moderna da argumentaccedilatildeo

Introduccedilatildeo a Kenneth Burke

A influecircncia de Kenneth Burke em nossa abordagem sobre o ensino do ar-gumento como jaacute deve estar claro eacute enorme Valemo-nos bastante de sua termi-nologia e de seu vocabulaacuterio agraves vezes peculiar para articular as ideias centrais em torno de teorias retoacutericas e pedagoacutegicas Burke eacute a lente que nos permite uma visatildeo tanto estreita quanto ampla do empreendimento retoacuterico e do papel da argumentaccedilatildeo nesse empreendimento Ele eacute podemos dizer o uacutenico desde Aris-toacuteteles a circunscrever o escopo da teoria retoacuterica dentro do contexto mais amplo das preocupaccedilotildees filosoacuteficas Ao mesmo tempo tambeacutem podemos dizer ele natildeo eacute um ldquosistematizadorrdquo filosoacutefico dada a inabalaacutevel atenccedilatildeo agrave relaccedilatildeo entre o geral e o particular a concepccedilatildeo e a percepccedilatildeo a cena e o ato

Essa eacute basicamente a maneira como temos usado suas ideias ateacute o momen-to Noacutes utilizamos o conceito de ldquoautointerferecircnciardquo para esboccedilar uma escala de praacuteticas argumentativas em curso focadas na audiecircncia de anunciantes e publi-citaacuterios centrados nos atos e de conselheiros que visam seus proacuteprios interesses Admitindo que no mundo haacute sempre a busca de vantagens em cada argumento a visatildeo geral de Burke sobre as praacuteticas argumentativas daacute menos importacircncia a conquista da audiecircncia do que a busca por verdades mais soacutelidas capazes de en-globar as posiccedilotildees inicialmente antagocircnicas e a guerra ldquopurificadardquo na dialeacutetica Reiteramos a ideia de que uma maneira de ver eacute tambeacutem uma maneira de natildeo ver e de que nossos instrumentos para ver satildeo terministic screens (enquadramento de termos) filtros linguiacutesticos que tornam a percepccedilatildeo e a avaliaccedilatildeo simultacircneas Eacute esse foco na linguagem enquanto instrumento do conhecimento que nos leva a colocaacute-lo ao lado de filoacutesofos chamados de ldquoedificantesrdquo por Rorty (1979 p 12)

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ou seja aqueles cujo foco eacute ldquo[] ajudar os leitores ou a sociedade como um todo a se livrar de vocabulaacuterios e atitudes ultrapassadas ao inveacutes de prover uma base para as intuiccedilotildees e costumes do presenterdquo

A principal questatildeo colocada por esses filoacutesofos edificantes eacute a de saber como evitar que nos tornemos viacutetimas da proacutepria linguagem da qual precisamos para ter acesso ao mundo Ou como o Lord de Burke lembra ao diabo no diaacutelogo con-clusivo de The Rhetoric of Religion (A Retoacuterica da Religiatildeo) ldquoOnde as pessoas satildeo implicadas qualquer terminologia eacute suspeita na medida em que ela natildeo permite a criacutetica dela mesmardquo (BURKE 1970 p 303) Para Burke (1970) o segredo para atingir esse tipo de autoconsciecircncia autocriacutetica eacute a sua abordagem dramaacutetica da compreensatildeo por ele alcunhada nos primeiros trabalhos como ldquoperspectiva por incongruecircnciardquo Hans Blumenberg (1987 p 439) refere-se a algo muito parecido com a perspectiva por incongruecircncia quando cita ldquo[] o procedimento de entender uma coisa por meio de outrardquo

Para Burke (1970) entender algo natildeo significa entender enquanto algo um membro de uma categoria mas significa ver uma coisa nos termos de outra Disso decorrem os ratios do seu meacutetodo chamado dramatismo De acordo com o drama-tismo haacute cinco (eventualmente seis) elementos que contribuem para um entendi-mento bem definido das motivaccedilotildees humanas ato cena agente meios propoacutesito e por uacuteltimo atitude (que eacute um ato incipiente) Ao analisar um discurso para entender por que algo foi feito ou por que deveria ser feito considerar-se idealmente todas as combinaccedilotildees possiacuteveis dos elementos ato-cena cena-ato agente-cena e assim por diante A relaccedilatildeo entre quaisquer dois elementos eacute expressa como um ratio Em qualquer ratio o segundo termo funciona como um tipo de parte essencial provi-soacuteria para o par Assim por exemplo em um ratio ato-cena o ato eacute entendido ldquonos termos dardquo cena que de fato eacute a lente atraveacutes da qual o ato eacute compreendido Vaacuterias escolas filosoacuteficas se caracterizam pela tendecircncia de privilegiar um dos termos continuamente enxergando todos os outros elementos ldquonos termosrdquo do elemento

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privilegiado Assim o naturalismo privilegia a cena de modo que os atos humanos satildeo entendidos como consequecircncias das condiccedilotildees cecircnicas

O ldquoparadoxo da substacircnciardquo proposto por Burke (1966 p 23) segundo o qual uma palavra ldquo[] usada para designar o que algo eacute deriva da palavra para designar o que algo natildeo eacuterdquo nos distancia da Lei da Identidade (A eacute A) e nos aproxima de um modo mais metafoacuterico de entendimento Por fim haacute ainda a noccedilatildeo de ldquoanedota representativardquo ldquo[] preocupaccedilatildeo tatildeo dramaacutetica que pode ser definida como abor-dagem dramaacutetica do dramatismordquo (BURKE 1966 p 60) atraveacutes da qual o todo eacute representado por uma de suas partes Para entender qualquer coisa devemos entendecirc-la em contexto agrave luz de assuntos extriacutensecos e de termos apropriados que natildeo satildeo idecircnticos agrave essa coisa mas estatildeo identificados com ela A relaccedilatildeo elementar representada na linguagem eacute portanto metafoacuterica (categoria Y eacute melhor entendida atraveacutes da Parte X) ao inveacutes de categoacuterica (tudo que precisamos saber eacute que Parte X eacutepertence agrave Categoria Y)

Quando nossas terminologias natildeo nos permitem fazer criacuteticas progressivas delas mesmas quando desistimos de buscar a perspectiva por incongruecircncia tornamo-nos presas entre outras coisas da tendecircncia jaacute discutida anteriormen-te de burocratizar a imaginaccedilatildeo Embora a burocratizaccedilatildeo da imaginaccedilatildeo seja um processo necessaacuterio em Burke nossa capacidade de autocriacutetica nos permite evitaacute-la e manter viva o maior tempo possiacutevel nossa consciecircncia imaginativa dos princiacutepios originais que definem a boa vida e nos animam a buscar realizaacute-la Se tudo isso parece distante do ensino retornemos aos ensaios de Fish e Leo discu-tidos no primeiro capiacutetulo Nossa criacutetica agrave posiccedilatildeo de Leo e a preferecircncia pela de Fish podem ser diretamente traccediladas a partir das posiccedilotildees tomadas em direccedilatildeo agrave autocriacutetica progressiva A rejeiccedilatildeo de Leo ao ldquomulticulturalismordquo como uma frente ao antiamericanismo eacute parte da rejeiccedilatildeo geral agraves tentativas de entender os eventos do 11 de setembro nos termos de ldquocausas-raizrdquo ou ldquoda necessidade de entender o terrorismo e ver seus atos em contextordquo Qualquer alternativa agrave visatildeo do 11 de se-

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tembro ldquonos termosrdquo de outra coisa ameaccedila a visatildeo de mundo de Leo que passa a ser desconsiderada Fish por outro lado vecirc que a tarefa diante de noacutes ultrapassa os vaacuterios ldquofalsos universaisrdquo que nos impedem de ver o mundo que eles nomeiam e de nos ldquocolocar no lugar do adversaacuteriordquo Apenas com essa maneira de desconstruir uma visatildeo de mundo eacute possiacutevel manter-se atento aos princiacutepios fundantes dessa visatildeo ldquoos valores particulares vividos que nos unem e satildeo assumidos pelas insti-tuiccedilotildees que valorizamos e desejamos defenderrdquo O argumento de Fish contra Leo em suma ilustra muitos dos princiacutepios baacutesicos do argumento que Burke delineou tatildeo eloquentemente em sua longa carreira

o realismo de burke

Burke (1969) oferece talvez a caracterizaccedilatildeo mais econocircmica de sua aborda-gem da retoacuterica na conclusatildeo da seccedilatildeo de abertura do livro A Rhetoric of Motives (The Range of Rhetoric ndash O alcance da retoacuterica) Para ele a Retoacuterica estaacute ldquoarraigada a uma funccedilatildeo proacutepria da linguagem uma funccedilatildeo totalmente realista e em contiacutenua renovaccedilatildeo o uso da linguagem como meio simboacutelico de induzir a cooperaccedilatildeo entre seres que por natureza respondem aos siacutembolosrdquo (BURKE 1969 p 43) O ldquorealismordquo de Burke refere-se aqui ao realismo filosoacutefico entendido agrave luz do debate medieval entre nominalistas e realistas O mais destacado proponente do nominalismo nesse debate Willian de Occam Segundo a proposiccedilatildeo hoje conhecida como Navalha de Occam as ldquoentidades natildeo devem ser multiplicadas aleacutem do necessaacuteriordquo (BURKE 1966 p 324) O realismo de Burke enquanto isso requer igualmente que ldquo[] en-tidades natildeo devem ser reduzidas aleacutem do necessaacuteriordquo No tocante agrave desnecessaacuteria multiplicaccedilatildeo de entidades o alvo primaacuterio de Occam eacute a linguagem empregada para aleacutem da nomeaccedilatildeo do assunto imediato Todos os termos geneacutericos e abstraccedilotildees satildeo responsaacuteveis por nomear toda sorte de entidades supeacuterfluas Esses termos satildeo vistos pelos nominalistas como ldquoconveniecircncias da linguagemrdquo e natildeo ldquosubstacircncias reaisrdquo (BURKE 1966 p 248) No entanto o paradoxo da substacircncia definido por

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A construccedilatildeo do argumento

Burke sugere que natildeo se pode usar a linguagem simplesmente para nomear um assunto imediato Toda palavra que designa o que algo eacute necessariamente designa o que algo natildeo eacute Consequentemente a conotaccedilatildeo de uma palavra eacute tatildeo crucial para Burke quanto o que ela denota

De fato natildeo temos acesso ao que eacute individual exceto atraveacutes do que eacute simboacutelico ou categoacuterico ldquo[] homem qua homem eacute um usuaacuterio de siacutembolo A esse respeito qualquer aspecto de sua lsquorealidadersquo eacute possiacutevel ser visto atraveacutes de uma neacutevoa de siacutembolos (BURKE 1969 p 136) Enquanto animais usuaacuterios de siacutembolos os huma-nos experienciam ldquo[] diferenccedilas entre esse fato e o que constitui uma diferenccedila entre um tipo de ser e outrordquo (BURKE 1969 p282) Essa tensatildeo entre o particular e o geral entre a funccedilatildeo denotativa e a conotativa da linguagem precisamente nos leva agrave ressonacircncia simboacutelica e nos permite ver uma coisa ldquonos termosrdquo de outra Sem essa ressonacircncia e a capacidade de ldquomultiplicar entidadesrdquo aleacutem do aqui e agora seria impossiacutevel a linguagem induzir agrave cooperaccedilatildeo entre indiviacuteduos marcados simultaneamente por similaridades e diferenccedilas

Outra vez essa discussatildeo sobre o realismo filosoacutefico de Burke pode parecer distante do ensino Certamente natildeo eacute Tomemos por exemplo a noccedilatildeo de politi-camente correto Como termo ostensivamente neutro tem sido manejado recen-temente de maneira mais eficaz pelos conservadores no debate puacuteblico nacional Liberais reticentes assim argumenta-se satildeo incapazes de ldquodizer como as coisas satildeordquo Estatildeo sempre a inventar expressotildees eufemiacutesticas para encobrir suas vaacuterias ldquoagendasrdquo Em tom rude os saacutebios conservadores ldquode fala simplesrdquo passam a atingir o verbalismo pretensioso dos liberais e a substituiacute-lo por uma linguagem ldquoclara e simples como a verdaderdquo transformando ldquoaccedilotildees afirmativasrdquo em ldquodiscriminaccedilatildeo reversardquo e assim por diante (o comediante Steven Colbert do programa ldquoColbert Reportrdquo faz paroacutedias sobre a franqueza do comentarista conservador Bill OrsquoReilly no quadro ldquoPalavra do diardquo

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A construccedilatildeo do argumento

Nesse quadro as palavras e expressotildees aparentemente inofensivas satildeo desvir-tuadas para aleacutem do reconhecimento de Colbert enquanto um contraponto textual acompanhada silenciosamente os esforccedilos de Colbert para defini-las e expotildee suas proacuteprias intenccedilotildees) Essas pessoas estatildeo operando na tradiccedilatildeo de Occam ansiosos em reduzir a multiplicaccedilatildeo desnecessaacuteria de sentidos e tambeacutem na tradiccedilatildeo mais recente de Jeremy Bentham que se dedicou a desarraigar a insidiosa ldquopergunta apelativardquo (BURKE 1969 p 92) que nomeia mais de uma coisa colocando o assunto sob uma luz ldquoelogiosardquo ou ldquopejorativardquo e prejudicando-o da mesma maneira que os arrazoados circulares antecipam a premissa principal da conclusatildeo

Subjacente ao uso politicamente correto e ao pensamento de Occam e Bentham estaacute a crenccedila em uma linguagem neutra e puramente denotativa que nomeia a rea-lidade ldquoobjetivardquo e que de fato diz como as coisas satildeo sem apontar o que elas natildeo satildeo O que a definiccedilatildeo de Retoacuterica proposta por Burke deixa imediatamente claro eacute a inexistecircncia dessa linguagem7 Toda palavra porta indiacutecios de sentidos ldquopositivosrdquo e ldquonegativosrdquo e para se entender um termo deve-se entendecirc-lo em uso dentro de um contexto e apropriadamente atualizado Como diz Burke ateacute o vocabulaacuterio utilitaacuterio de Bentham garante a certos termos nuanccedilas ldquopositivasrdquo independente do uso escapando ao mito da linguagem neutra que ele proacuteprio promovia

O realismo de Burke natildeo eacute apenas filosoacutefico mas tambeacutem um realismo cotidia-no Para todo poder atribuiacutedo agrave linguagem ele tambeacutem reconhece o consideraacutevel poder de veto que a realidade extralinguiacutestica possui sobre as palavras Qualquer que seja nossa visatildeo e quatildeo persuasivo seja nosso vocabulaacuterio a falha do mundo material em ratificar nossos argumentos eacute fatal para Burke A esse respeito o rea-lismo linguiacutestico de Burke deve ser distinguido de solipsismo e de visotildees maacutegicas

7 Burke (1969 p 183-4) assinala uma ldquoordem positiva dos termosrdquo capaz de nomear as coisas no aqui e agora e recomenda manter-se nessa ordem sempre que possiacutevel Mas aleacutem de terminologias altamente convencionalizadas como nas ciecircncias que evitam a linguagem natural e estipula termos nativos para o discurso as oportunidades para limitarmo-nos na ordem positiva satildeo extremamente limitadas

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A construccedilatildeo do argumento

sobre a linguagem O autor explicitamente rejeita a crenccedila de que o ldquo[] universo eacute mero produto de nossas interpretaccedilotildeesrdquo precisamente porque ldquo[] as interpre-taccedilotildees em si mesmas devem ser alteradas enquanto o universo apresenta a elas vaacuterios tipos de recorrecircnciardquo (BURKE 1984 p 256) Enquanto a linguagem nossa ldquoneacutevoa de siacutembolosrdquo recobre tudo o que positivamente sabemos o universo deteacutem o poder de negar e reformar nossas interpretaccedilotildees De fato para Burke (1966) a diferenccedila primaacuteria entre a falsa e a verdadeira magia da retoacuterica eacute o fato de que os praticantes da falsa usam os siacutembolos para induzir movimentos na natureza enquanto os praticantes da verdadeira usam os siacutembolos para induzir atos coope-rativos entre as pessoas O julgamento sobre a adequaccedilatildeo de instituiccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas para Burke natildeo estaacute baseado em um padratildeo ideal e fixo mas na sua capacidade de atender agraves demandas materiais das pessoas a quem servem De acordo com a meacutetrica realista de Burke tais instituiccedilotildees apresentam um ldquo[] valor relativo pragmaticamente dependente no sentido darwinista da capacidade de dar conta de problemas de produccedilatildeo distribuiccedilatildeo e consumo atinentes agraves condiccedilotildees temporais e espaciais peculiaresrdquo (BURKE 1969 p 279)

Como apontamos em nossa discussatildeo sobre a ldquoburocratizaccedilatildeo da imaginaccedilatildeordquo o papel social mais importante da Retoacuterica eacute resistir agrave conversatildeo de possibilidades imaginativas que transformam as instituiccedilotildees em dogmas resistentes agrave realizaccedilatildeo dessas possibilidades Enquanto ideoacutelogos fazem vista grossa agraves falhas de seus programas de dar conta de problemas de produccedilatildeo distribuiccedilatildeo e consumo no aqui e agora a tarefa da Retoacuterica eacute adaptar o programa agrave situaccedilatildeo debruccedilando-se sobre os princiacutepios originadores para delinear novas estrateacutegias

Por fim o realismo de Burke natildeo eacute apenas um realismo filosoacutefico ou atrelado ao senso comum eacute tambeacutem um realismo no sentido que eacute agraves vezes empregado em ciacuterculos de poliacuteticas internacionais Eacute um tipo de realismo que nos encoraja a selecionar e escolher nossas lutas pesando as consequecircncias de nossas escolhas umas em relaccedilatildeo agraves outras em vez dos nossos princiacutepios independente de para onde nos levem Eacute um realismo que reconhece escolhas duras difiacuteceis Eacute esse aspecto do

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A construccedilatildeo do argumento

seu realismo que o leva a valorizar algueacutem como Willian James considerado um ldquomelioristardquo (BURKE 1984 p 3) algueacutem famoso por escolher em aceitar o universo ao inveacutes de contestar e que prefere acreditar em bases bastante pragmaacuteticas cuja feacute ldquoo permitiu ter o senso de mover-se em direccedilatildeo a algo melhorrdquo (BURKE 1984 p 5) Com frequecircncia o expresso ceticismo de Burke em relaccedilatildeo ao perfeccionismo eacute a contraparte de sua admiraccedilatildeo pelo meliorismo Da mesma forma sua destituiccedilatildeo como um ldquoperfeccionismo reversordquo (BURKE 1966 p 100) uma criacutetica bastante dura que extirpa as bases de uma posiccedilatildeo tomada eacute sintomaacutetica de um realismo balanceado que sempre encontra elementos das pessoas e sistemas que ele critica em sua proacutepria pessoa e crenccedilas Natildeo haacute oposiccedilotildees simples no realismo de Burke natildeo haacute certos ou errados absolutos natildeo haacute diferenccedilas categoacutericas Toda substacircncia conteacutem elementos de substacircncias extriacutensecas a ela mesma Em todos os pontos dos vaacuterios contiacutenuos que Burke supotildee residem elementos de ambos os extremos do contiacutenuo Burke (1969 p 23) aceita o fato de que vivemos em um mundo poacutes--Babel e que por consequecircncia a Retoacuterica deve perseguir seus temas ldquo[] dentro da luacutegubre regiatildeo da maliacutecia e da mentirardquo Dado que as soluccedilotildees perfeitas nunca estatildeo disponiacuteveis

[] a pessoa escrupulosa nunca abandonaraacute um propoacutesito que ela consi-dera absolutamente bom Poreacutem iraacute escolher os meios mais ideias dis-poniacuteveis na situaccedilatildeo Assim como na retoacuterica ideal de Aristoacuteteles ela iraacute considerar uma gama de meios mas escolheraacute o melhor permitido por um conjunto particular de circunstacircncias (BURKE 1969 p 155)

Todos que ensinam argumentaccedilatildeo deveriam saber um pouco sobre Burke no miacutenimo para ajudar a entender o lugar da argumentaccedilatildeo e da retoacuterica na or-dem mais ampla dos empreendimentos intelectuais e para lembrar o que entra em jogo para ensinar bem Ele nos oferece tanto uma teoria da Retoacuterica como um ldquocaminhordquo para se fazer retoacuterica como haacutebitos mentais que nos ajudam a evitar

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A construccedilatildeo do argumento

modos simplistas de pensar e modos agressivos de argumentar Brummett (1984 p 103) em ensaio fortemente apoiado sobre o pensamento de Burke sumariza com precisatildeo nossa tarefa

Se levarmos em consideraccedilatildeo as pessoas comuns (estudantes) como au-diecircncia primaacuteria da teoria retoacuterica e suas criacuteticas entatildeo o objetivo final e a justificativa satildeo pedagoacutegicos ensinar as pessoas a experienciar seus proacuteprios ambientes retoacutericos de maneira mais ricardquo

Certamente tambeacutem ensinamos a nossos estudantes a ldquotirar vantagemrdquo dos seus proacuteprios argumentos e que sempre haacute um elemento vantajoso para buscar o mais claro dos argumentos No entanto ao desafiaacute-los constantemente a submeter sua terminologia ndash ou ideologia se preferirmos ndash a ldquouma criacutetica progressiva de sirdquo estamos desafiando-os a reconsiderar sobre o que e para que eles deveriam buscar A Retoacuterica lembra-nos Burke (1984 p 102) eacute um domiacutenio no qual os ldquotestes de sucesso existem para serem testadosrdquo Ao cabo quando alargamos a capacidade dos estudantes de encontrar os modos disponiacuteveis de persuasatildeo em uma dada situaccedilatildeo e os encorajamos a escolher o meio mais claro estamos ensinando a argumentar tanto de maneira eacutetica como eficiente

introduccedilatildeo a Chaim perelman e luCie olbreChts-tyteCa

A Nova Retoacuterica (PERELMAN OLBRECHTS-TyTECA 1969) eacute um compecircndio enciclopeacutedico de pequenas histoacuterias retoacutericas citaccedilotildees exemplos e estratagemas organizados segundo um sistema extremamente fluido e flexiacutevel por um lado e extremamente confuso por outro Gage (1996 p 13) liga esse sistema ao de Burke na medida em que compreende uma ldquoperspectiva das perspectivasrdquo tratando a argumentaccedilatildeo natildeo como uma coleccedilatildeo a priori de partes de silogismos mas como

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A construccedilatildeo do argumento

um sistema cujas partes satildeo ldquo[] derivadas de processos de associaccedilatildeo e disso-ciaccedilatildeo ligamento e desligamento que torna o argumento uma rede de partes em relaccedilatildeo de variedade infinitardquo Do lado negativo Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969) parecem muitas vezes nomear cada uma das infinitas relaccedilotildees possiacuteveis do sistema atraveacutes de um sem-nuacutemero de termos ndash agraves vezes inventados agraves vezes emprestados de fontes desconhecidas ndash que dificultam mais do que facilitam um acesso raacutepido ao sistema Para o termo locus por exemplo pode-se encontrar vinte e quatro variedades listadas no iacutendice e sessenta e oito figuras ldquotradicionaisrdquo satildeo mencionadas a maioria de passagem em adiccedilatildeo a quinze tipos diferentes presu-midamente natildeo tradicionais

A versatildeo reduzida do tratado de Perelman ao tratado (The Realm of Rhetoric) (PERELMAN 1982) transforma o sistema em algo ligeiramente mais acessiacutevel e oferece uma versatildeo esquemaacutetica do corpus mas em detrimento da profundidade e da grande diversidade do original8 A utilidade da NR se deve sobretudo ao fato de que eacute um livro de sabedoria de razatildeo praacutetica ou phroacutenesis Assim eacute um livro para ser lido consultado mais do que um tratado para ser estudado Por outro lado The Realm of Rhetoric eacute muito mais uacutetil apoacutes a leitura de A Nova Retoacuterica e natildeo deve ser lido em substituiccedilatildeo ao seu extenso e complexo progenitor

Assim como o sistema de Burke o sistema de Perelman e Olbrecht-Tyteca empresta-se ao uso parcial mas de maneira muito distinta Apesar de toda comple-xidade do pensamento de Burke muito pode ser feito com algumas poucas grandes ideias que constituem uma ldquoperspectiva por incongruecircnciardquo No caso de A Nova Retoacuterica entretanto a obra pode ser melhor usada e de fato pode-se exploraacute-la extraindo ideias uacuteteis estrateacutegias e citaccedilotildees da mesma forma que alunos tiram ideia promissoras de livros comuns

8 o ensaio de Perelman publicado em 1970 The New Rhetoric A Theory of Practical Reasoning reimpresso em 2001 (PERELMAN 2001) representa uma siacutentese ainda mais eficiente do sistema

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A construccedilatildeo do argumento

De maneira a tornar uacutetil a nova retoacuterica aos professores noacutes seguiremos dois passos Primeiro faremos um breve panorama dessa abordagem e de seu lugar no campo das teorias modernas da argumentaccedilatildeo Em seguida de modo a apresentar tais ideias de maneira coerente apesar de menos ortodoxa adap-taremos alguns dos seus insights a uma abordagem consideravelmente menos pesada a Stasis Theory

um panorama de a nova retoacuteriCa

Assim como a maioria dos filoacutesofos que romperam barreiras e se voltaram para a Retoacuterica em meados do seacuteculo XX Perelman e Olbrechts-Tyteca basearam sua dissidecircncia na rejeiccedilatildeo ao modelo loacutegico-formal de argumento tradicional-mente privilegiado pelos filoacutesofos particularmente pelos positivistas loacutegicos da eacutepoca Ao citar a fusatildeo da dialeacutetica de Petrus Ramus com a loacutegica e o subsequente rebaixamento da Retoacuterica a uma arte ornamental Perelman (2001) reivindica a Dialeacutetica para a Retoacuterica e a declara complementar agrave demonstraccedilatildeo definida como

[hellip] um caacutelculo feito de acordo com as regras previamente dispostas [hellip] Uma demonstraccedilatildeo eacute considerada correta ou incorreta de acordo com sua conformidade ou natildeo agraves regras Uma conclusatildeo eacute tida como comprovada se ela pode ser atingida por meio de uma seacuterie de opera-ccedilotildees corretas e iniciadas nas premissas aceitas como axiomas Se tais axiomas satildeo considerados evidentes necessaacuterios verdadeiros ou hipo-teacuteticos a relaccedilatildeo entre eles e o que eacute demonstrado permanece intacta Para passar da inferecircncia correta agrave verdade ou agrave probabilidade com-putaacutevel da conclusatildeo deve-se admitir tanto a verdade das premissas como a coerecircncia do sistema axiomaacutetico (PERELMAN 2001 p 1390)

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A construccedilatildeo do argumento

Ao distinguir a argumentaccedilatildeo retoacuterica da demonstraccedilatildeo formal Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969 p 5) sublinham as seguintes caracteriacutesticas O ponto de iniacutecio de um argumento natildeo eacute um axioma invariante e universal mas uma premissa ou ldquoopiniatildeo geralmente aceitardquo Os autores entatildeo distinguem dois tipos de premissas ldquoa primeira concernente ao real que compreende fatos verdades e presunccedilotildees e a segunda concernente ao preferiacutevel que compreende valores hie-rarquias e linhas de argumentaccedilatildeo (ou loci) relativas ao preferiacutevelrdquo (PERELMAN OLBRECHTS-TYTECA 1969 p 66) As premissas natildeo satildeo objetivas ou impessoais como eacute o caso dos axiomas loacutegicos mas intersubjetivos ou pessoais na medida em que sua forccedila depende do grau de verdade coerecircncia plausibilidade e assim por diante a partir do qual a audiecircncia o aceita Por conta da natureza contingente das premissas distintas audiecircncias ofereceratildeo diferentes graus de aprovaccedilatildeo em mo-mentos distintos sob condiccedilotildees distintas Trata-se de um estado de coisas que quem argumenta deve levar em consideraccedilatildeo Enquanto o movimento de demonstraccedilatildeo eacute o de estender o alcance de verdades axiomaacuteticas a uma verdade particular e com-pelir o consentimento em direccedilatildeo a essa verdade o movimento de um argumento eacute o de aumentar a ldquointensidade da adesatildeordquo (PERELMAN OLBRECHTS-TyTECA 1969 p 45) de uma audiecircncia a uma conclusatildeo ao enviar as premissas para ldquo[] dentro de um conjunto de processos associativos e dissociativosrdquo (PERELMAN OLBRECHTS-TyTECA 1969 p 65) responsaacutevel por dar forma ao entendimento da audiecircncia sobre a relaccedilatildeo entre as premissas e a conclusatildeo O argumento pode aumentar o grau em que uma audiecircncia aceita uma conclusatildeo mas ela natildeo conse-gue compelir o consentimento da mesma maneira que a demonstraccedilatildeo Enquanto a finalidade da demonstraccedilatildeo eacute a descoberta de uma verdade a finalidade de um argumento eacute a de construiacute-la na ldquocomunidade de mentesrdquo (PERELMAN 2001 p 1388) de modo a ldquo[] colocar em movimento a accedilatildeo intencionada [] ou ao menos criar nos ouvintes um desejo de agir que apareceraacute no momento certordquo (PEREL-MAN OLBRECHTS-TyTECA 1969 p 45)

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A construccedilatildeo do argumento

O ponto de partida da abordagem presente em A Nova Retoacuterica agrave argumen-taccedilatildeo natildeo foi uma teoria tomada da Filosofia mas uma questatildeo sobre a forma como as pessoas de fato discutem os valores no mundo real Consequentemen-te os autores examinaram milhares de exemplos de argumentos sobre valores extraiacutedos de uma infinidade de fontes incluindo trabalhos poliacuteticos juriacutedicos filosoacuteficos religiosos e cientiacuteficos de diferentes eacutepocas Se o exame dessas fon-tes tornou a teoria mais potente eacute algo contestaacutevel mas natildeo haacute duacutevidas de que a enriqueceu9 Em certo sentido os exemplos sobrepotildeem-se ao quadro teoacuterico de modo a impossibilitar a reduccedilatildeo da teoria a um conjunto de preceitos Por conseguinte a linguagem da nova retoacuterica eacute decididamente natildeo categoacuterica mais nuanccedilada e metafoacuterica que a linguagem tiacutepica da retoacuterica da metade do seacuteculo Algumas ideias-chave demonstram esse fato Ao inveacutes de acarretamento loacutegico os autores falam em ldquoligaccedilotildeesrdquo entre ideias em vez de contradiccedilotildees preferem ldquoincompatibilidadesrdquo em vez da certeza ou ateacute de probabilidade da conclusatildeo preferem mencionar a ldquorazoabilidaderdquo em vez de falar em concordacircncia ou discor-dacircncia da audiecircncia sobre uma conclusatildeo falam sobre o aumento ou diminuiccedilatildeo da intensidade da adesatildeo a um argumento

Talvez o mais interessante dos possiacuteveis efeitos dessa metodologia eacute o lugar privilegiado da noccedilatildeo de ldquopresenccedilardquo na teoria a importacircncia de trazer ideias agraves audiecircncias em todo seu imediatismo De forma muito conveniente a maior vir-tude da Nova Retoacuterica eacute a abundacircncia de exemplos de ldquopresenccedilardquo que ilustram o quadro teoacuterico

9 Eacute claro que Lucie Olbrechts-Tyteca como pessoa ldquoerudita em ciecircncias sociais e literatura europeiardquo (BiZZeLL HeRZBeRg 2001 p 1371) merece um creacutedito especial por encontrar e selecionar exemplos pertinentes que tornam a teoria de Perelman significativamente mais uacutetil e mais atrativa

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A construccedilatildeo do argumento

Em muitos aspectos o movimento de Perelman e Olbrechts-Tyteca da Loacute-gica tradicional em direccedilatildeo agrave Dialeacutetica segue o percurso tomado por Burke que tambeacutem entende a Retoacuterica como expressatildeo do pensamento dialeacutetico O proacuteprio Perelman assinala essa conexatildeo ao citar a noccedilatildeo de identificaccedilatildeo proposta por Burke como o modelo para que o uso da Retoacuterica forme uma ldquocomunidade de mentesrdquo e assim ldquodespertar a disposiccedilatildeo para a accedilatildeordquo (PERELMAN 2001 p 1388) de uma audiecircncia Aleacutem disso a tensatildeo essencial na Nova Retoacuterica entre parte (exemplos) e todo (teoria) eacute como vimos uma peccedila criacutetica da abordagem de Burke agrave Retoacuterica Entender uma coisa ldquoem termos derdquo outra em vez de ldquocomordquo outra leva Burke a procurar ldquopequenas histoacuterias representativasrdquo (BURKE 1966 p 523) em vez de regras leis ou narrativas que exaustivamente datildeo conta do todo Esse mesmo modo sinedoacutequico de entendimento leva Burke (1996) a rejeitar contra-diccedilotildees aparentes entre ideias e a favorecer algo como as incompatibilidades que ele deseja superar atraveacutes de acordos em vez de aboli-las atraveacutes do desmonte

Aleacutem disso Burke assim como Perelman e Olbrechts-Tyteca tambeacutem en-fatiza a dimensatildeo inventiva da Retoacuterica em detrimento da funccedilatildeo ornamental Enquanto Burke subordina a funccedilatildeo persuasiva agrave inventiva Perelman e Olbrechts--Tyteca apoacutes reconhecerem a importacircncia da invenccedilatildeo continuam a assinalar a funccedilatildeo persuasiva Tanto na Nova Retoacuterica quanto na A Rhetoric of Motives de Burke somos sempre lembrados do contexto mais amplo que define as ativida-des de uma pessoa Para Burke o dever de uma pessoa enquanto cidadatilde precede o dever de uma pessoa enquanto especialista natildeo importando quanta ldquopsicose ocupacionalrdquo nos leve a confundir obrigaccedilotildees eacuteticas e profissionais Jaacute Perelman e Olbrechts-Tyteca baseiam seu estudo sobre retoacuterica na noccedilatildeo de justiccedila social e a enfatizam em todo o tratado

Por fim a controversa noccedilatildeo de ldquoaudiecircncia universalrdquo empregada na Nova Retoacuterica pode ser melhor entendida no contexto da noccedilatildeo burkeana de ldquopersuasatildeo purardquo Assim como natildeo existe uma instacircncia da persuasatildeo pura natildeo existe de

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A construccedilatildeo do argumento

fato uma audiecircncia universal Ambas satildeo ideais que norteiam quem argumenta para aleacutem da persuasatildeo ldquodirecionadardquo ndash ldquoo que me faraacute trazer essa audiecircncia para minha posiccedilatildeo rdquo ndash em direccedilatildeo ao trabalho de um entendimento completo do tema A audiecircncia universal natildeo eacute necessariamente uma audiecircncia mais po-pulosa que a particular Quando escrevemos para audiecircncias eruditas e criacuteticas em nossas especialidades presumimos seu ceticismo e sua perspicaacutecia que nos leva aos melhores e mais razoaacuteveis argumentos Os publicitaacuterios que empurram cerveja suave para homens brancos na faixa dos 18 aos 29 anos querem sem duacutevida atingir faixas menores

a stasis theory e a nova retoacuteriCa

Ao adaptar a Nova Retoacuterica agraves nossas aulas tentamos identificar esquemas simples que servem como veiacuteculos para selecionar e organizar os ricos insights do livro em um todo coerente de alcance razoaacutevel De nosso ponto de vista o esque-ma que melhor serve a essa funccedilatildeo eacute a Stasis Theory Originalmente essa teoria emergiu na Greacutecia antiga como uma categoria do discurso juriacutedico (ou forense) que junto ao discurso epidiacutetico (ou cerimonial) e ao deliberativo (ou legislativo) compreendem as trecircs formas do discurso Nos anos recentes a ideia de Stasis tem sido retomada e modificada para uso em aulas de argumento em reconhecimen-to ao fato de que como aponta Fulkerson (1996 p 40) eacute ldquo[] incrivelmente uacutetil [] porque natildeo se sobrepotildee e eacute sequencialmente progressiva e [] porque pode funcionar como uma heuriacutestica geradora que pode ajudar os estudantes a criar os argumentos necessaacuterios em um artigordquo Os dois estudiosos mais responsaacuteveis pelo renascimento da Stasis como uma caracteriacutestica integral da instruccedilatildeo argumenta-tiva satildeo Jeanne Fahnestock e Marie Secor O artigo Teaching Argument A Theory of Types (FAHNESTOK SECOR 1983) levou muitos professores de escrita a integrar a Stasis agraves aulas e muitos autores a incluir a discussatildeo em livros O artigo representa

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A construccedilatildeo do argumento

um caso exemplar de acadecircmicos contemporacircneos que adaptaram teorias antigas da Retoacuterica em aulas de escrita10

Antes de demonstrarmos como usar a ideia de Stasis para organizar estrateacute-gias narrativas e princiacutepios da Nova Retoacuterica apresentaremos um breve panorama dessa ideia

De acordo com Aristoacuteteles cada uma das trecircs categorias originais do discurso que antecipam as categorias da Stasis possuem um foco temporal distinto O discurso deliberativo lidava com propostas para o futuro particularmente as propostas legis-lativas o epidiacutetico lidava com o elogio e a culpa e apresentava ao puacuteblico ocasiotildees para reforccedilar os valores comunitaacuterios no presente o forense ndash de onde vecircm a Stasis ndash lidava com vereditos atribuiacutedos a eventos passados tipicamente na esfera legal Por conta da associaccedilatildeo primaacuteria com a lei a antiga Stasis tendia a seguir o modelo procedimental dos tribunais Desse modo o promotor em um caso era requerido a fazer trecircs tipos de teses reivindicatoacuterias representando trecircs pontos em questatildeo ou Stasis que a pessoa acusada cometeu o crime em questatildeo (reivindicaccedilatildeo do fato) que o ato cometido constitui um crime (reivindicaccedilatildeo da definiccedilatildeo) e que o ato natildeo pode ser mitigado pelas circunstacircncias (reivindicaccedilatildeo de valores)11

10 a contribuiccedilatildeo do ensaio produzido por fahnestock e Secor (1983) agraves teorias contemporacircneas do argumento eacute exemplar tanto em termos do importante impacto no campo quanto da abordagem particular sobre a teoria Boa parte dos melhores trabalhos recentes sobre retoacuterica e escrita se desenvolveu como adaptaccedilatildeo de abordagens antigas ou como uma adaptaccedilatildeo de abordagens de outros campos agraves necessidades do argumento contemporacircneo aleacutem do trabalho de fahnestock e Secor (1983) o criativo trabalho de John gage (1983) sobre o entusiasmo dos estudantes com a escrita exemplifica o primeiro tipo de contribuiccedilatildeo enquanto a adaptaccedilatildeo da psicanaacutelise ao domiacutenio da retoacuterica promovida por Richard Young Alton Becker e Kenneth Pike eacute um exemplo da segunda um grande nuacutemero de livros e artigos interessantes e uacuteteis sobre retoacuterica e escrita vem sendo escrito nos uacuteltimos anos por intelectuais do campo mas ainda natildeo presenciamos o desenvolvimento pleno de teorias do argumento para confrontar com as que satildeo desenvolvidas no campo da comunicaccedilatildeo e da Filosofia Agrave medida que consideramos essas uacuteltimas de utilidade limitada agrave sala de aula apreciamos o intercacircmbio rico e apaixonado sobre argumento regularmente desenvolvido nesses campos

11 A taxonomia da Stasis aqui utilizada proveacutem em grande parte de Ramage Bean e Johnson (2007)

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A construccedilatildeo do argumento

O esquema desenhado por Ramage Bean e Johnson (2007) possui cinco ele-mentos e inclui definiccedilatildeo (X eacutenatildeo eacute uma instacircncia de y) semelhanccedila (X eacutenatildeo eacute como y ndash os autores definem duas variedades de semelhanccedilas as precedentes e as analogias) causa (X eacutenatildeo eacute a causa de Y) avaliaccedilatildeo (X eacutenatildeo eacute um bom Y) e eacutetica (X eacutenatildeo eacute bom)12 As trecircs uacuteltimas Stasis satildeo derivadas dos dois primeiros tipos de discurso o deliberativo e o epidiacutetico enquanto as duas primeiras satildeo derivadas do juriacutedico Os autores enfatizam que cada uma eacute um tipo de reivin-dicaccedilatildeo oposto a um tipo de argumento (apesar de dispor de uma reivindicaccedilatildeo maior que pode ser usada para caracterizaacute-lo como um todo) e isso tipicamente inclui inuacutemeras reivindicaccedilotildees dos mais variados tipos O objetivo das Stasis natildeo eacute servir como uma taxonomia dos argumentos mas ajudar os estudantes a entender as demandas peculiares dos arrazoados e das evidecircncias geradas por um tipo de reivindicaccedilatildeo

Entender isso pode ser usado para antecipar as necessidades persuasivas dentro dos proacuteprios argumentos e para reconhecer os lugares dos outros nos quais tais demandas satildeo ou natildeo satildeo atendidas Os breves traccedilos associados a cada tipo de reivindicaccedilatildeo servem para representar o impulso geral das proposiccedilotildees incluiacutedas na categoria Nos argumentos reais tais reivindicaccedilotildees geralmente to-mam diferentes formas exigindo em alguns casos uma interpretaccedilatildeo significativa

Como foi dito em nossa discussatildeo sobre o possiacutevel engessamento da Retoacuterica sempre haacute um tipo de troca entre a facilidade com a qual uma metodologia pode ser aplicada e o perigo de que as conclusotildees dessa aplicaccedilatildeo sejam simplificadas em excesso Defendemos que o benefiacutecio de oferecer aos estudantes uma abor-dagem coerente ao argumento supera os perigos do engessamento mas deve-se

12 em versotildees mais recentes das Stasis Ramage Bean e Johnson tambeacutem esboccedilam uma distinccedilatildeo entre Stasis categoriais e definidoras a depender se os criteacuterios compotildeem a categoria Y ou se a correspondecircncia entre criteacuterios e caracteriacutesticas de um x particular constituem o foco do debate aqui continuamos a tratar ambos os casos sob a rubrica de definiccedilatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

ter em mente o imperativo metodoloacutegico de Burke (1970 p 303) segundo o qual ldquo[] qualquer terminologia eacute suspeita na medida em que ela natildeo permite a criacutetica dela mesmardquo A esse respeito um papel importante da Nova Retoacuterica em relaccedilatildeo ao esquema das Stasis diz respeito a sua capacidade de nos lembrar os contextos argumentativos mais importantes dos argumentos bem como sua capacidade de complicar nosso entendimento da tarefa ao identificar o ocircnus da prova associado a cada uma das Stasis Sem duacutevida muitos dos princiacutepios e estrateacutegias da Nova Retoacuterica podem ser utilmente aplicados em conjunccedilatildeo com as Stasis

Na sequecircncia no entanto dispomo-nos a ilustrar o papel que a Nova Retoacuteri-ca pode assumir para evitar que as Stasis se transformem em foacutermula ao focar em um pequeno nuacutemero de questotildees centradas nas reivindicaccedilotildees de definiccedilatildeo e semelhanccedila por um lado e por outro nas reivindicaccedilotildees eacuteticas e avaliativas

As distinccedilotildees cuidadosamente esboccediladas na Nova Retoacuterica entre valores argumentativos e demonstraccedilatildeo loacutegica nos lembram do limite entre a reivin-dicaccedilatildeo da definiccedilatildeo e da semelhanccedila e reforccedilam a importacircncia de qualificar com cuidado tais reivindicaccedilotildees e de suportar as conexotildees mais tecircnues aqui realizadas A seccedilatildeo da Nova Retoacuterica que introduz a regra da justiccedila (seres ou situaccedilotildees do mesmo tipo devem ser tratadas de maneira idecircntica) eacute dedicada aos ldquoargumentos Quase-loacutegicosrdquo um tiacutetulo que chama a atenccedilatildeo tanto para as simi-laridades aparentes como para as diferenccedilas importantes entre a demonstraccedilatildeo formal e a argumentaccedilatildeo substantiva A regra da justiccedila adapta-se agrave descriccedilatildeo ldquoquase-loacutegicardquo na medida em que eacute uma regra formal ou equaccedilatildeo na qual pode-se substituir muitos valores particulares Poreacutem os argumentos dessa natureza satildeo menos rigorosos como classe de argumentos loacutegicos na medida em que a classe requer que ldquo[] os objetos aos quais se aplica devem ser idecircnticos isto eacute comple-tamente intercambiaacuteveisrdquo (PERELMAN e OLBRECHTS-TyTECHA 1969 p 219) Esse nunca eacute entretanto o caso no domiacutenio dos valores humanos nos quais a igualdade ldquosubstancialrdquo como quis Burke eacute o maacuteximo que podemos esperar Ao cabo deve-se fazer a mais retoacuterica das determinaccedilotildees o quanto os objetos em

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A construccedilatildeo do argumento

questatildeo satildeo parecidos e o quanto desse parentesco eacute suficiente para justificar a evocaccedilatildeo da regra da justiccedila

De fato assim todas as reivindicaccedilotildees de definiccedilatildeo na Nova Retoacuterica po-dem ser consideradas reivindicaccedilotildees de semelhanccedila Agrave media que aceitamos em princiacutepio essa equaccedilatildeo ndash se a linguagem eacute fundamentalmente metafoacuterica todas as relaccedilotildees assumidas de identidade tornam-se em um exame detalhado rela-ccedilotildees de identificaccedilatildeo ndash retemos a distinccedilatildeo entre a reivindicaccedilatildeo de definiccedilatildeo e de semelhanccedila por razotildees pragmaacuteticas (o que Burke chamaria de ldquorealistardquo) A distinccedilatildeo entre definiccedilatildeo e semelhanccedila eacute parte da linguagem ordinaacuteria e nomeia uma distinccedilatildeo real de graus ou como implicado de parentesco Enquanto as reivindicaccedilotildees de definiccedilatildeo obliteram as diferenccedilas entre os termos definidos as reivindicaccedilotildees de semelhanccedila colocam-nas em primeiro plano

Consequentemente a relaccedilatildeo entre ldquoseres ou situaccedilotildeesrdquo para quem reivin-dica semelhanccedilas eacute mais tentadora e o ocircnus da prova eacute mais fraco no tocante agraves relaccedilotildees estabelecidas sob as reivindicaccedilotildees de definiccedilatildeo De modo inverso quanto mais relaccedilatildeo reivindicada dos termos for definida ou comparada menos uma exceccedilatildeo ou um contraexemplo seratildeo inferiores agrave versatildeo da regra da justiccedila Eacute pragmaacutetico reter essa distinccedilatildeo aos estudantes desse modo tanto porque a distinccedilatildeo eacute significativa no cotidiano da linguagem natural como porque assina-lar essa distinccedilatildeo leva os estudantes a reconhecer as significativas diferenccedilas no ocircnus da prova decorrentes do tipo de Stasis adotado

Outra distinccedilatildeo do mesmo tipo pode ser esboccedilada entre os dois diferentes tipos de reivindicaccedilatildeo de semelhanccedila os precedentes e os analoacutegicos No pri-meiro caso a conexatildeo entre os termos eacute sequencial e ldquo[] os termos reunidos estatildeo no mesmo plano fenomecircnicordquo (PERELMAN OLBRECHTS-TyTECHA 1969 p 293) Assim por exemplo quando pensamos em precedentes temos em mente dois ou mais casos legais duas ou mais situaccedilotildees histoacutericas e assim por diante Assim que um precedente eacute estabelecido a extensatildeo da regra da justiccedila no caso em questatildeo eacute desse modo razoavelmente clara Jaacute no caso das analogias natildeo haacute

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A construccedilatildeo do argumento

clareza que pode equacionar entidades radicalmente diferentes De acordo com Perelman e Olbrechts-Tytecha (1969 p 381) analogias compreendem ldquotrans-ferecircncia de valoresrdquo de um termo a outro ou ldquodo phoros ao temardquo mas quando se clama que dois termos como ldquoamorrdquo e ldquorosas vermelhasrdquo apresentam valor aproximadamente igual isso natildeo implica estender a regra da justiccedila de um para outro e concluir que se deve por exemplo fertilizar o companheiro de algueacutem ou ter um encontro com uma rosa

Em suma ao escolher entre reivindicaccedilotildees de definiccedilatildeo de precedecircncia ou de analogia para preparar a extensatildeo da regra da justiccedila de um termo a ou-tro deve-se considerar o niacutevel de suporte disponiacutevel para uma reivindicaccedilatildeo e determinar o grau de qualificaccedilatildeo apropriado para uma conclusatildeo Enquanto a reivindicaccedilatildeo por definiccedilatildeo que implica igualdade substancial entre termos requer suporte maior analogias que implicam valores partilhados entre termos requer menor suporte

Eacute importante que os estudantes entendam essas distinccedilotildees entre os tipos de reivindicaccedilatildeo e as suas implicaccedilotildees para a regra da justiccedila Muitas das con-troveacutersias atuais de fato sustentam-se em termos de definiccedilatildeo e semelhanccedila e nas diferenccedilas entre ambas Talvez a ilustraccedilatildeo mais expressiva e clara da importacircncia de se distinguir entre reivindicaccedilotildees de identidade e de semelhan-ccedila eacute o conflito entre os juiacutezes da Suprema Corte quando a partir de uma regra da justiccedila aplicaacutevel na sociedade norte-americana atual Boa parte dos debates da Suprema Corte podem ser caracterizados como ruminaccedilotildees sobre o grau de similaridade entre casos variados ldquoseres e situaccedilotildeesrdquo e sobre como determinar que satildeo suficientemente similares para evocar a regra da justiccedila Entre os juiacutezes alguns ndash conhecidos como originalistas ou strict constructionists ndash concordam com o papel de destaque das reivindicaccedilotildees por definiccedilatildeo e sustentam que as diferenccedilas com as reivindicaccedilotildees por semelhanccedila natildeo satildeo apenas de grau mas

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A construccedilatildeo do argumento

de natureza Para eles a definiccedilatildeo original do termo como foi entendido pelos que pensaram a Constituiccedilatildeo eacute imanente ao texto que eacute a uacutenica fonte legiacutetima de sentido13

Historicamente as posiccedilotildees mais literais sobre a interpretaccedilatildeo juriacutedica satildeo difiacuteceis quando natildeo impossiacuteveis de serem mantidas daiacute ser frequente juiacutezes ldquode esquerdardquo defenderem uma visatildeo menos riacutegida da interpretaccedilatildeo durante anos sobre assuntos extremamente complexos de reivindicaccedilatildeo de definiccedilatildeo e de se-melhanccedila14 Entre os fatores que claramente influenciam os juiacutezes a tornarem-se mais flexiacuteveis em procedimentos interpretativos em face ao protesto de pares ori-ginalistas satildeo as mudanccedilas das circunstacircncias histoacutericas que envolvem os casos Aqui o axioma de Burke ldquoas circunstacircncias alteram os argumentosrdquo eacute um guia uacutetil Por exemplo muitos anos apoacutes a Corte ter rejeitado as leis de Jim Crow e outras que previam diferenccedilas categoacutericas entre afro-americanos e brancos e assim natildeo contemplados pelos mesmos direitos e garantias leis contraacuterias ao casamento entre raccedilas continuaram ativas Finalmente no despertar do movimento dos Direitos Civis dos anos sessenta a uacuteltima dessas leis foi derrubada Enquanto o princiacutepio de igualdade racial foi abraccedilado um seacuteculo antes a lei foi mais lenta para estender a regra da justiccedila a praacuteticas como a miscigenaccedilatildeo pois os haacutebitos tornavam as leis antimiscigenaccedilatildeo parecerem ldquonaturaisrdquo e foi necessaacuterio um levante histoacuterico para ajudar a Corte a elaborar uma nova perspectiva sobre o assunto

13 em mais de uma ocasiatildeo alguns juiacutezes citaram o Dicionaacuterio de Sam Johnson publicado em 1756 o uacutenico dicionaacuterio de liacutengua inglesa existente quando a Constituiccedilatildeo foi esboccedilada como uma tentativa de divinizar como os constituintes estavam empregando determinado termo Presumivelmente esses mesmos juiacutezes optaram por natildeo citar a definiccedilatildeo de ldquodemocraciardquo de Johnson presente nesse dicionaacuterio e ilustrada com uma citaccedilatildeo do Dr arbuthnot ldquoComo o governo britacircnico possui uma mistura democraacutetica dentro de si o direito de inventar tensotildees poliacuteticas reside parcialmente no povordquo

14 Talvez sem surpresa a mais notaacutevel exceccedilatildeo a essa regra o juiz Antonin Scalia que apoacutes mais de duas deacutecadas na Suprema Corte mantem-se um originalista ardente eacute o filho de um criacutetico formalista a versatildeo literal da teoria strict constructionism

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A construccedilatildeo do argumento

O processo continua Quando a Suprema Corte derrubou posteriormente as leis estaduais que criminalizam as praacuteticas homossexuais argumentou-se citando a lei preacutevia do casamento entre raccedilas que a decisatildeo constituiacutea precedentes para derrubar o banimento do casamento gay Enquanto alguns tribunais estaduais ndash e diversos tribunais estrangeiras ndash de fato decidiram que as similaridades entre os dois fenocircmenos eram suficientes para estender a regra da justiccedila da diversidade racial agrave diversidade sexual a Corte Suprema natildeo fez o mesmo De maneira suficien-temente apropriada oponentes dessa extensatildeo mas sofisticados o suficiente para reconhecer as incompatibilidades de suas proacuteprias posiccedilotildees valem-se de outras das vaacuterias ferramentas disponiacuteveis na Nova Retoacuterica para o trabalho de ldquovinculaccedilatildeo e desvinculaccedilatildeordquo de argumentos que servem a determinados propoacutesitos Nesse caso o dispositivo empregado por aqueles que delimitam uma linha niacutetida entre casamento inter-racial e o casamento gay eacute o ldquopar filosoacuteficordquo Enquanto dispositivo para categorizar fenocircmenos similares os pares filosoacuteficos inevitavelmente elevam um em detrimento do outro O mais notaacutevel desses pares ldquoaparecircnciarealidaderdquo ndash originalmente designado a desconectar a percepccedilatildeo sensorial da busca pela ver-dade ndash serve aos oponentes do casamento gay ao diminuiacute-lo a uma versatildeo falsa da coisa real o casamento heterossexual

Reivindicaccedilotildees avaliativas (X eacutenatildeo eacute bom) e reivindicaccedilotildees eacuteticas (X eacutenatildeo eacute um bom Y) podem ser enriquecidas ao valer-se da Nova Retoacuterica Muito da obra de fato eacute tomado por discussotildees sobre o valor e os autores satildeo particularmente eficientes em articular distinccedilotildees entre reivindicaccedilotildees por valores eacuteticos e por avaliaccedilotildees Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969) discutem inicialmente os valores no contexto dos ldquotipos de acordordquo entre os membros de um auditoacuterio que podem ser empregados como premissas argumentativas De maneira interessante os au-tores identificam as caracteriacutesticas uacutenicas dos valores e as que os distinguem de outros tipos de premissas ndash fatos verdades e presunccedilotildees ndash como sendo de natureza local rejeitando desse modo a noccedilatildeo de valores universais do tipo que pessoas como John Leo nos garantem que existem Em reveacutes direto agrave Loacutegica adotada por

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A construccedilatildeo do argumento

Leo os autores da Nova Retoacuterica afirmam que enquanto outros tipos de premissa apelam a uma audiecircncia universal os valores reclamam ldquoapenas a adesatildeo a gru-pos particularesrdquo (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTEXA 1969 p 74) No tocante agraves reivindicaccedilotildees da universalidade de valores como ldquoo Verdadeiro o Bom o Belo e o Absolutordquo os autores datildeo a seguinte resposta

A alegaccedilatildeo de um acordo universal [] parece-nos devido apenas agrave sua generalidade Eles podem ser tratados como vaacutelidos por uma audiecircncia universal apenas sob a condiccedilatildeo de que o conteuacutedo natildeo seja especificado assim que entramos nos detalhes temos contato apenas com a adesatildeo de audiecircncias particulares (PERELMAN OLBRECHTS-TyTECHA 1969 p 76)

De modo a ilustrar como a Nova Retoacuterica pode nos ajudar a articular a diferenccedila entre reivindicaccedilotildees avaliativas e reivindicaccedilotildees eacuteticas consideraremos o papel do meacutedico e ex-senador Bill Frist no caso Terry Schaivo Cumpre lembrar que esse caso ocorreu na Floacuterida e envolveu um conflito entre os pais da mulher e o marido sobre a remoccedilatildeo de tubos de alimentaccedilatildeo que a levaram agrave morte Um nuacutemero de meacutedicos responsaacuteveis por Schaivo declarou seu ldquoestado vegetativo permanenterdquo condiccedilatildeo sob a qual as leis da Floacuterida permitem a eutanaacutesia O estado interveio a favor dos pais e os tribunais deram decisatildeo contraacuteria a tal ponto que membros do Congresso Norte-Americano tentaram intervir em favor dos pais O senador Frist chegou a alegar que Schaivo natildeo estava em estado vegetativo permanente ao assistir a um breve viacutedeo

Com esse pano de fundo consideremos as diferenccedilas entre um julgamento avaliativo das habilidades meacutedicas de Frist e o julgamento eacutetico de sua interven-ccedilatildeo no caso A excelecircncia de Frist como meacutedico eacute melhor mensurada por padrotildees gerais da profissatildeo meacutedica e pelos padrotildees de sua especialidade (cirurgia cardiacutea-ca) dentro dessa profissatildeo ldquoComparado a quemrdquo ele eacute um excelente cirurgiatildeo Os julgamentos impliacutecitos em reivindicaccedilotildees avaliativas satildeo sempre condicionados

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A construccedilatildeo do argumento

a esse tipo de perguntas Ao formar uma resposta para essas questotildees eacute nossa incumbecircncia selecionar o menor grupo de referecircncia aplicaacutevel e tirar daiacute nossos criteacuterios e agirmos com prudecircncia para que esses criteacuterios cumpram sua funccedilatildeo no grupo a que servem Desse modo enquanto todos os meacutedicos deveriam possuir uma confortante relaccedilatildeo meacutedico-paciente e um grau razoaacutevel de destreza manual os meacutedicos de famiacutelia devem ser julgados mais pela relaccedilatildeo meacutedico-paciente do que pela destreza manual Na medida em que as pessoas se opotildeem agraves funccedilotildees da classe e aos pesos atribuiacutedos por diferentes criteacuterios o debate ultrapassa o domiacutenio meacutedico e sua avaliaccedilatildeo Quem discorda tem de apresentar valores de seu repertoacuterio pessoal e fazecirc-los valer na profissatildeo meacutedica

Em relaccedilatildeo agrave oposiccedilatildeo de Frist de remover os tubos de alimentaccedilatildeo de Ter-ry Schaivo por outro lado o julgamento dessa accedilatildeo natildeo eacute condicional na mesma medida em que as reivindicaccedilotildees de avaliaccedilatildeo do tipo precedente costumam ser A accedilatildeo tomada por ele natildeo pertence agrave classe mais ampla de accedilotildees portadoras de criteacuterios derivados da funccedilatildeo da classe Os criteacuterios para julgamento da qualidade da accedilatildeo devem vir de crenccedilas pessoais e valores de quem julga Essa eacute a dimensatildeo ldquolocalrdquo do julgamento eacutetico aludida pelos autores da Nova Retoacuterica A fonte do jul-gamento eacute local mas as implicaccedilotildees do julgamento satildeo universais Certamente haacute casos como o do dos Nazistas citado por John Leo no qual a proporccedilatildeo dos que concordam com o julgamento eacute tatildeo ampla que chega a ser virtualmente universal Poreacutem poucas questotildees eacuteticas seriam pertinentes se a concordacircncia com todos os julgamentos fosse tatildeo assimeacutetrica

Desse modo enquanto apenas uma parcela de pessoas pode concordar com Frist no que diz respeito agrave remoccedilatildeo do tubo de alimentaccedilatildeo de uma pessoa em permanente estado vegetativo por quatorze anos a reivindicaccedilatildeo implica que to-dos devem concordar com o julgamento O fato de ele ser meacutedico nesse tempo daacute a ele pouco poder no debate moral sobre eutanaacutesia Qualquer argumento por ele oferecido agrave populaccedilatildeo norte-americano da qual trecircs quartos discordaram quando ele se opocircs agrave morte de Schaivo teria fundamento moral Enquanto em um niacutevel

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A construccedilatildeo do argumento

geral todos podem concordar com esse meacutedico de que uma ldquocultura da vidardquo eacute uma boa ideia o caso de Schaivo compeliu o puacuteblico a ldquoentrar em detalhesrdquo sobre o significado desse princiacutepio e quando assim o fizeram houve muita dissidecircncia Esse resultado eacute previsiacutevel por qualquer leitor da Nova Retoacuterica

No contexto da teoria proposta por Perelman e Olbrechts-Tyteca o que po-deria parecer agrave primeira vista ser uma tarefa simples no contexto da teoria das Stasis eacute ao fim bastante complicado De acordo com a Nova Retoacuterica as pessoas natildeo subscrevem monoliticamente a valores Indiviacuteduos e grupos hierarquicamente mantecircm valores e eacute por isso que dois indiviacuteduos que pertencem nominalmente ao mesmo grupo e admitem os mesmos valores podem ranqueaacute-los de maneiras significativamente diferentes Duas pessoas desse modo que admitem os valores sobre a ldquocultura da vidardquo podem concordar que o aborto eacute algo muito ruim e ao mesmo tempo se dividir sobre o papel da pesquisa com ceacutelulas-tronco Por sua vez tais diferenccedilas sobre a questatildeo do uso de ceacutelulas-tronco podem refletir outra distinccedilatildeo de tipos de valores discutida por Perelman e Olbrechts-Tyteca a distinccedilatildeo entre valores concretos e abstratos Natildeo importa o quatildeo ardentemente algueacutem se oponha ao sacrifiacutecio de vidas humanas em termos abstratos pode-se abrir uma exceccedilatildeo para o caso da pesquisa com ceacutelulas-tronco quando algum ente querido eacute atingido por uma doenccedila grave cuja possibilidade de cura eacute aumentada por esse tipo de pesquisa Novamente o que a Nova Retoacuterica nos ensina sobre a reivindica-ccedilatildeo por valores eacute que o julgamento sobre o niacutevel de bondade ou maldade eacute guiado pela natureza local dos valores em questatildeo Os valores em questatildeo raramente satildeo tomados como simplesmente bons ou maus Eles satildeo melhores ou piores que outros e a interaccedilatildeo entre eles pode atenuar ou intensificar os julgamentos baseados neles mesmos Por isso a probabilidade de algueacutem diminuir a adesatildeo da audiecircncia a um valor ao evocar uma alternativa mais estimada eacute maior se comparada agrave tentativa de desacreditar e desmerecer o valor contestado

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A construccedilatildeo do argumento

introduccedilatildeo a stephen toulmin

A uacuteltima de nossas figuras da Retoacuterica contemporacircnea o filoacutesofo britacircnico Stephen Toulmin talvez seja o mais controverso A abordagem desse autor jaacute foi considerada a-retoacuterica ndash e certamente sua escolha infeliz de casos ilustrativos datildeo suporte a essa acusaccedilatildeo ndash e com frequecircncia a aplicaccedilatildeo em sala de aula eacute evitada Alguns professores descrevem tal abordagem como muito limitada outros recla-mam que eacute confusa Da mesma forma que as outras figuras discutidas neste capiacutetulo deve-se estar atento agraves expectativas para a aplicaccedilatildeo desse autor O que se espera da sua abordagem Quando se responde a essa pergunta de maneira especiacutefica e com expectativas modestas em mente em geral natildeo haacute frustraccedilatildeo Comumente problemas com essa abordagem decorrem de expectativas natildeo realistas Os autores deste livro nunca se apoiam primariamente e menos ainda exclusivamente na abordagem de Toulmin ndash muito tempo de aula dedicado a analisar argumentos a partir do esquema desse autor pode ser uma experiecircncia enlouquecedora Sempre lembramos nossos estudantes de que essas anaacutelises acarretam uma boa interpre-taccedilatildeo e que assim como os comerciais confessam suas mentiras discretamente no canto da tela ldquoos resultados apresentados podem natildeo ser tiacutepicosrdquo quando deixam de ser ilustraccedilotildees ad hoc para ser casos reais Essa abordagem eacute melhor utilizada em conjunccedilatildeo com a reivindicaccedilatildeo mais importante de um argumento como meio de ldquochecarrdquo e ter certeza de que essa reivindicaccedilatildeo diz algo muito similar agravequilo que algueacutem tem por intenccedilatildeo deixar claro aleacutem de clarificar as obrigaccedilotildees impos-tas a si ao realizaacute-la Por consequecircncia geralmente pedimos a nossos estudantes que submetam a reivindicaccedilatildeo mais importante agrave anaacutelise de Toulmin depois de completados os rascunhos Assim como na Nova Retoacuterica funciona bem em com-binaccedilatildeo com a abordagem sobre as Stasis em parte porque ambas enfatizam a reivindicaccedilatildeo Enquanto as Stasis satildeo eficazes para a expansatildeo das reivindicaccedilotildees a proposta de Toulmin eacute particularmente eficaz para refinaacute-las e delimitaacute-las Ao fim a forccedila peculiar da abordagem de Toulmin o acesso que ela permite ao fun-

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A construccedilatildeo do argumento

cionamento interno do argumento e a consciecircncia sobre as nuances linguiacutesticas do argumento fazem valer a pena evocaacute-la Isso posto vejamos as origens dessa abordagem e seus princiacutepios fundamentais

o esQuema de toulmin ndash o natildeo silogismo

Assim como na Nova Retoacuterica o ponto de partida de Toulmin em Os usos do argumento eacute a demonstraccedilatildeo loacutegico-formal (TOULMIN 1958) O que distingue a abordagem desse autor eacute o fato de que ele se manteacutem proacuteximo ao modelo loacutegico inventando uma variaccedilatildeo do silogismo categorial para apontar as deficiecircncias do arrazoado silogiacutestico ndash em particular a natildeo atenccedilatildeo dada agraves circunstacircncias e agrave in-diferenccedila sobre verdades substantivas e analiacuteticas ndash enquanto preserva algumas caracteriacutesticas especialmente a habilidade de tornar os argumentos mais trans-parentes A abordagem de Toulmin mais estreita que as outras tratadas neste capiacutetulo supre sua falta de riqueza com a capacidade de tornar os argumentos mais coerentes e mais transparentes

Em oposiccedilatildeo ao silogismo categorial e seus trecircs elementos (premissa maior premissa menor e conclusatildeo) Toulmin evoca seis (1) dado (2) garantia (3) tese (4) reforccedilo (5) reserva (6) qualificador Para ilustrar um esquema tiacutepico de Toul-min tomaremos emprestado um dos famosos exemplos ldquoa-retoacutericosrdquo Em poucas palavras o ldquoargumentordquo tal como eacute segue este caminho Petersen eacute sueco e como sueco pode ser considerado quase certamente como natildeo catoacutelico Petersen eacute quase certamente natildeo catoacutelico O argumento inclui quatro dos seis elementos ldquoPetersen eacute suecordquo eacute o dado ou ldquoo que permanecerdquo ldquoUm sueco pode ser considerado quase certamente como natildeo catoacutelicordquo eacute a garantia a generalizaccedilatildeo ou a regra que licen-cia as inferecircncias sobre o dado e leva agrave tese ldquoPetersen natildeo eacute catoacutelicordquo O ldquoquase certamenterdquo representa o qualificador ou medida de confianccedila que se pode ter na conclusatildeo baseada na forccedila da garantia e no poder do dado Um argumento pode tambeacutem incluir os outros dois elementos ldquoreservardquo e ldquoreforccedilordquo O primeiro

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A construccedilatildeo do argumento

aponta para exceccedilotildees agrave regra implicada pela garantia No caso de nosso amigo sueco a possibilidade digamos de ter passado feacuterias na Itaacutelia ter-se apaixonado por uma catoacutelica e converter-se para poder casar na igreja Jaacute o ldquoreforccedilordquo inclui todas as certezas de que a garantia por noacutes usada eacute aceitaacutevel Nesse caso podem ser dados estatiacutesticos que apontam para a pequena proporccedilatildeo de suecos adeptos do catolicismo

Eacute usual encontrar o esquema de Toulmin reduzido a apenas trecircs dos elemen-tos dado-garantia-tese ou como proposto em alguns livros didaacuteticos evidecircncia--razatildeo-conclusatildeo Esse trio eacute provavelmente menos difiacutecil para os novatos mas quando se simplifica o esquema dessa maneira perde-se muita da precisatildeo da abordagem do autor muitas garantias podem ser definidas como razotildees mas eacute impossiacutevel converter razotildees em garantias Aleacutem disso razotildees tambeacutem servem como motivaccedilatildeo A simplificaccedilatildeo do esquema acarreta igualmente uma perda de transparecircncia ou aquilo que o autor cunhou como a ldquosinceridaderdquo A funccedilatildeo primaacuteria desses elementos afinal eacute extrair informaccedilotildees das partes de um argumento que podem passar despercebidas Quando solicitamos aos estudantes para indicarem o qualificador e o reforccedilo conveacutem lembrar que esses elementos operaram no do-miacutenio das probabilidades e das contingecircncias e natildeo satildeo categoacutericos forccedilando-os a calibrar cuidadosamente o grau de confianccedila na tese e assinalar as possibilidades sob as quais ela natildeo se sustenta

Indo mais ao ponto o esquema de Toulmin pode ldquosubstituirrdquo um auditoacuterio ceacutetico ou aquilo que o autor se refere como um ldquodesafianterdquo A esse respeito Os Usos do Argumento assim como a Nova Retoacuterica eacute fortemente influenciado pelo modelo juriacutedico de argumento Ao passo que o silogismo categorial representa em uacuteltima instacircncia um argumento por autoridade ndash o sistema da loacutegica natildeo oferece uma maneira de questionar a veracidade dos termos ou de desafiar suposiccedilotildees ndash o esquema de Toulmin antecipa questotildees sobre a veracidade levantadas por um ldquoconselho opositivordquo em cada circunstacircncia Dito de outra forma os slots no esque-

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A construccedilatildeo do argumento

ma de Toulmin representados pela reserva e pelo qualificador antecipam desafios que podem ser postos em relaccedilatildeo agrave adequaccedilatildeo das motivaccedilotildees e da relevacircncia da garantia Jaacute o reforccedilo antecipa o desafio agrave legitimidade da garantia Dada a dificul-dade que muitos de noacutes ndash especialmente os estudantes ndash apresentam para desafiar os proacuteprios argumentos Toulmin provecirc uma maneira sistemaacutetica de antecipar desafios reforccedilando nosso argumento de acordo com eles (Sem mencionar oacutebvio a criacutetica aos argumentos alheios)

No entanto Toulmin tambeacutem eacute cuidadoso ao delimitar os desafios que podem ser colocados aos argumentos Se em teoria todos os elementos de um argumento estatildeo abertos a desafios de fato a vulnerabilidade dos seis elementos eacute a limitaccedilatildeo pela convenccedilatildeo Ou seja Toulmin aceita que diferentes campos do argumento apre-sentam acordos ndash alguns taacutecitos outros expliacutecitos ndash sobre o que constitui dados suficientes e relevantes reforccedilos legiacutetimos e o que tornam irrelevantes muitos dos desafios colocados ao argumento De fato em alguns casos nomear as garantias e os reforccedilos pode ser um insulto agrave audiecircncia Por convenccedilatildeo os elementos do modelo de Toulmin satildeo menos questionaacuteveis do que parece agrave primeira vista Aleacutem disso o autor impotildee um padratildeo rigoroso ao reforccedilo exigindo um status de ldquocomo um fatordquo a ele presumidamente para evitar o prospecto inapropriado de um infinito regresso de justificativas de reforccedilos empilhados Mesmo dentro da mais rigoro-sa das convenccedilotildees disciplinares entretanto a loacutegica do modelo de Toulmin estaacute longe de ser utilitarista e estreita como a imposta pelo silogismo categorial Como mostram os trabalhos de pessoas como a economista Deirdre McCloskey em anos recentes ateacute os argumentos quantitativos da economia e de outros campos das ciecircncias sociais satildeo menos objetivos e convincentes do que faz crer as estruturas pseudo-logiacutesticas

Por fim o modelo de Toulmin tem sido aplicado e usado livremente a argu-mentaccedilatildeo sobre eacutetica e poliacuteticas puacuteblicas nas quais poucos elementos carregam definiccedilotildees aceitas por todas ou quase todas as partes do debate De fato nessas

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A construccedilatildeo do argumento

instacircncias o valor principal do modelo reside no poder de revelar a vulnerabili-dade das premissas (garantias e reforccedilo) sobre as quais se assenta o argumento e na capacidade em oferecer uma ideia mais clara do quanto pode ser provaacutevel uma conclusatildeo

a apliCaccedilatildeo do modelo de toulmin

Para ilustrar a abordagem de Toulmin eacute preciso que nos movamos das teses diretas e pouco controversas de que ele se vale em direccedilatildeo a teses mais contro-versas e abertas que os estudantes podem de fato empregar ou encontrar em um discurso persuasivo Para tomarmos emprestada uma controveacutersia recente no discurso poliacutetico norte-americano consideremos a seguinte ldquouma parte da contribuiccedilatildeo dos trabalhadores norte-americanos agrave seguridade social deve ser colocada em contas de investimento pessoalrdquo Como geralmente eacute o caso essa tese aparece com o miacutenimo de reserva ou qualificaccedilatildeo De maneira a acessar a validade da tese devemos perguntar o que o orador pode ter em mente para servir de dado garantia reforccedilo qualificador ou reserva Em outros casos como nesse devemos supri-las ou inferi-las de outras declaraccedilotildees feitas pelo mesmo orador

O mais proeminente dos dados aduzidos para justificar a tese eacute algo da se-guinte ordem ldquoo sistema de seguridade social estaraacute falido em breverdquo A primeira coisa a ser notada sobre esse dado em particular eacute o fato de que ele proacuteprio eacute uma tese De fato as bases para os argumentos do mundo real satildeo geralmente reivindicaccedilotildees natildeo imunes a questionamentos particularmente quando se estaacute engajado em temas relativos a poliacuteticas puacuteblicas diferente das controveacutersias de outros campos bem definidos cujas regras satildeo expliacutecitas e acordadas por con-venccedilatildeo Os dados raramente sobem ao niacutevel dos ldquofatosrdquo (mantendo-se em mente que ldquofatosrdquo satildeo aqui entendidos como medida de concordacircncia de uma audiecircncia e natildeo da correspondecircncia entre uma proposiccedilatildeo e a realidade extralinguiacutestica) e satildeo suscetiacuteveis a desafios Satildeo para ficarmos seguros uma reivindicaccedilatildeo mais

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A construccedilatildeo do argumento

amplamente aceita do que a que serve como conclusatildeo do argumento No entanto muitas pessoas questionaram esses dados levando em conta as definiccedilotildees qual o significado de ldquoem breverdquo e de ldquofalirrdquo

Ambas as perguntas poderiam ser respondidas por prediccedilotildees econocircmicas de longo prazo que satildeo notoriamente instaacuteveis Isso posto um consenso sobre opiniotildees econocircmicas concluiu que se nada fosse feito o sistema comeccedilaria a gas-tar mais do que recebe a partir de 2017 e que teria de reduzir os benefiacutecios entre 20 a 30 em algum momento entre os anos de 2042 e 2052 Outra previsatildeo mais terriacutevel dos defensores da mudanccedila foi rejeitada com base no fato de que eles se valeram de um conjunto de suposiccedilotildees diferentes se comparadas a outras previsotildees econocircmicas para chegar agrave conclusatildeo O sistema nunca foi projetado para falir De fato diversas anaacutelises econocircmicas das propostas mais severas que envolvem contas pessoais indicaram que em 2042 os beneficiaacuterios receberiam quantia similar ou inferior ao pior caso o cenaacuterio do ldquonada a fazerrdquo O termo ldquofali-dordquo desse modo revelou relativo em oposiccedilatildeo ao julgamento categorial Na mesma moeda oponentes da proposta enfatizaram que ldquoem breverdquo tambeacutem eacute um termo relativo e perguntaram ldquocomparado a quecircrdquo a seguridade social estaacute em um beco sem saiacuteda e ldquocomparado a quecircrdquo essa ameaccedila eacute urgente Como vimos em nossa discussatildeo sobre a Nova Retoacuterica o valor de uma reivindicaccedilatildeo seraacute afetado pelas reivindicaccedilotildees associadas por questotildees como essas Por consequecircncia quando os oponentes da privatizaccedilatildeo da seguridade social mediram os perigos que ela enfrenta face ao seguro de sauacutede o puacuteblico considerou esse uacuteltimo muito mais preocupante Comparado ao impacto da crise do sistema de sauacutede os problemas da seguridade social pareceram eminentemente mais administraacuteveis

Quaisquer que sejam os problemas com a adequaccedilatildeo dos dados agrave urgecircncia e magnitude da tese os problemas mais interessantes com a proposta segundo a perspectiva assumida no esquema de Toulmin concernem ao ato que poderia justificar a passagem do dado tese movimento que vai das bases ndash iremos assu-mir por ora a adequaccedilatildeo dos dados para justificar a instaacutevel condiccedilatildeo financeira

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A construccedilatildeo do argumento

do sistema de seguridade social ndash agrave tese Como algueacutem pode ir da afirmaccedilatildeo ldquoo sistema de seguridade social em breve estaraacute falidordquo agrave tese ldquoparte da contribui-ccedilatildeo dos trabalhadores norte-americanos agrave seguridade social deve ser colocada em contas de investimento pessoalrdquo Como eacute geralmente o caso em questotildees de poliacuteticas puacuteblicas nenhuma garantia foi articulada deixando a tarefa agravequeles que questionam a tese Ao imaginar uma garantia adequada agrave tarefa o desafiador precisa discernir o grau de certeza dos que fazem as reivindicaccedilotildees em relaccedilatildeo agrave sua adequaccedilatildeo No caso da tese em questatildeo o fato de que natildeo foi acompanhada por qualificadores ou reservas sugere a necessidade de uma garantia de forccedila consideraacutevel Ou seja qualquer regra ou princiacutepio aduzido deve fazer a conclusatildeo ser altamente provaacutevel ou certa

Para alguns inferir uma garantia eacute uma questatildeo muito simples uma vez que jaacute se estimou o grau de certeza que ela deve possuir Basicamente deve-se reafir-mar em niacutevel mais geral a relaccedilatildeo entre os dados e a tese algo como ldquosempre que dado entatildeo teserdquo ou ldquosempre que dado frequentemente teserdquo No exemplo prosaico de Toulmin em Os usos do argumento a garantia parece autoevidente a ponto de ser supeacuterflua No caso em questatildeo poreacutem a declaraccedilatildeo da garantia pode ser ao mesmo tempo autoevidente e controversa Haacute como esperado boas razotildees para natildeo declarar o oacutebvio No caso da proposta sobre a seguridade social um candidato oacutebvio para a garantia eacute algo do tipo ldquoquando um programa puacuteblico estaacute com pro-blemas privatizar ao menos parte dele eacute a melhor soluccedilatildeordquo Tudo o que fizemos foi converter os dados (o sistema social em breve estaraacute falido) e a tese (uma parte da contribuiccedilatildeo deve ser colocada em contas de investimento pessoal) em versotildees um pouco mais gerais e combinaacute-las Os proponentes do plano abandonaram os termos ldquoprivadordquo e ldquoprivatizarrdquo porque os julgaram demasiado controversos Mas quando o fizeram jaacute empregavam-no por mais de duas deacutecadas para descrever a proposta que promoviam e os sinocircnimos que julgavam ultrapassados

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A construccedilatildeo do argumento

A vantagem de reafirmar as coisas agrave moda de uma garantia eacute tornar o racio-ciacutenio subjacente ao argumento muito mais transparente Nesse processo eacute inevi-taacutevel o surgimento de questotildees que podem passar despercebidas desde que o foco seja o caso particular em apreccedilo Assim garantias para teses propositivas como a proposta da seguridade social implicam uma relaccedilatildeo causal entre um problema e uma soluccedilatildeo (problema X portanto soluccedilatildeo Y) Estabelecer tais relaccedilotildees de forma tipicamente requer o recurso a precedentes histoacutericos (soluccedilatildeo Y eacute muito parecida com soluccedilatildeo Z que jaacute funcionou em situaccedilatildeo similar) e conexotildees fiacutesicas (soluccedilatildeo y funciona do seguinte modo A entatildeo B entatildeo C) Essas preocupaccedilotildees empiacutericas estatildeo ausentes nos exemplos pouco problemaacuteticos de Toulmin nos quais o reforccedilo eacute uma simples questatildeo de conferir dados censitaacuterios No caso da seguridade social o reforccedilo agrave garantia implicada de que a privatizaccedilatildeo iraacute resolver os problemas eacute necessariamente menos ldquofactualrdquo e mais aproximado de uma reivindicaccedilatildeo por semelhanccedila (nos casos em os programas X tiveram problemas a privatizaccedilatildeo os salvou) Os exemplos de Toulmin natildeo requerem muito reforccedilo empiacuterico em parte pela similaridade com os silogismos categoriais Nesses a premissa maior simplesmente afirma pertencimento a uma categoria No exemplo de Toulmin a garantia ndash ldquoSuecos raramente satildeo catoacutelicosrdquo ndash serve agrave funccedilatildeo prosaica Apesar de natildeo ser estritamente falando uma proposiccedilatildeo categoacuterica a garantia eacute suficien-temente similar a um fato para tornar o reforccedilo algo supeacuterfluo A garantia para o argumento sobre a seguridade social eacute consideravelmente menos factual e requer reforccedilo significante para garantir a adesatildeo Em que casos a privatizaccedilatildeo foi tentada no passado onde funcionou ou natildeo e por quecirc Como a privatizaccedilatildeo da seguridade social eacute parecida com esses casos precedentes Exatamente como passo a passo a privatizaccedilatildeo levaraacute agrave salvaccedilatildeo do programa

As vaacuterias tentativas de responder tais questotildees se mostraram pouco convin-centes para a grande maioria do puacuteblico norte-americano De fato criaram mais questotildees do que respostas Como as contas privadas teriam apoio sem cortar con-

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A construccedilatildeo do argumento

tribuiccedilotildees aos benefiacutecios a que eram destinadas Qual o efeito da perda de trilhotildees de doacutelares em contribuiccedilotildees para a sauacutede financeira dos programas de seguridade social existentes Ao cabo proponentes das contas privadas recuaram na alegaccedilatildeo de que resolveriam os problemas da seguridade social e as recomendaram por razotildees distintas

Ter garantias expliacutecitas significa que podemos ser mais especiacuteficos sobre os requisitos para um reforccedilo apropriado Quais evidecircncias haacute de fato de que a pri-vatizaccedilatildeo eacute um meio eficaz para solucionar problemas com programas puacuteblicos Aqui os proponentes poderiam se voltar para um conjunto misto de evidecircncias os casos nos quais a privatizaccedilatildeo foi ou natildeo eficaz Um precedente frequentemente citado que pode servir de reforccedilo agrave nossa garantia eacute o caso do Chile que privatizou integralmente o sistema no final da deacutecada de 1970 No entanto mesmo esse pre-cedente falhou em prover um reforccedilo soacutelido agrave garantia que a tese desqualificada parecia apelar No geral o sistema chileno funcionou bem mas muitas anaacutelises sugerem que funcionou melhor para a classe meacutedia e para a classe alta do que para os mais pobres cuja maioria teria se beneficiado mais com o programa social Considerando que a seguridade social eacute um instrumento para diminuir a margem de pobreza entre idosos norte-americanos a mais ou menos dois terccedilos (de cerca de 30 para 10) desde a deacutecada de 1970 esse foi um aspecto preocupante da experiecircncia chilena Aleacutem disso a vida do programa chileno em paralelo ofere-ceu condiccedilotildees para o maior aumento de preccedilo de accedilotildees na histoacuteria da negociaccedilatildeo de bens puacuteblicos o que levou algumas pessoas a questionarem o valor preditivo dessa accedilatildeo O programa chileno estaacute neste momento sendo reformulado de modo a tentar atenuar a tendecircncia de encurtamento de benefiacutecios aos mais pobres

Hoje em dia a proposta de privatizaccedilatildeo do sistema de seguridade social nos Estados Unidos estaacute parada em funccedilatildeo do crescente volume de criacuteticas mas ainda permanece como uma possibilidade no horizonte das poliacuteticas puacuteblicas As reivin-dicaccedilotildees ousadas e natildeo modificadas que defendem as contas privadas falharam na tarefa de ganhar amplo apoio puacuteblico apesar do grande volume de capital financeiro

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A construccedilatildeo do argumento

e poliacutetico investido Quanto mais o puacuteblico ouvia os argumentos dos proponentes menor era o apoio agrave proposta A fraqueza dos argumentos poderia ser facilmente expressa sem o modelo de Toulmin No entanto a linguagem do autor oferece uma maneira precisa de expressar problemas de articulaccedilatildeo entre aacutereas distintas Retroceder agrave falha geral da qualificaccedilatildeo da tese maior serve para se reconhecer o ocircnus da prova assumido pelo argumento No contexto dessa certeza os dados que reforccedilam tanto a urgecircncia quanto a magnitude do problema parecem insu-ficientes Aleacutem disso a incompatibilidade entre o problema (a seguridade social estaacute falindo) e a soluccedilatildeo (investir parte da contribuiccedilatildeo em contas privadas) pode ser mais visiacutevel apoacutes a desconstruccedilatildeo do argumento Mais do que isso a falta de qualquer elemento proacuteximo a um fato para a garantia erodiu a confianccedila puacuteblica no argumento

Apesar dos pesares o sucesso ou fracasso de um argumento correlaciona-se com a sonoridade tal qual estabelecida por Toulmin Ao final da anaacutelise o contex-to mais amplo as circunstacircncias nas quais os proponentes deveriam ldquoencontrar meios disponiacuteveis para a persuasatildeordquo provavelmente estaacute associado ao fracasso do argumento Um sem nuacutemero de eventos recentes levaram as pessoas a serem mais adversas aos riscos em particular no que toca agrave renda da aposentadoria As quedas dos mercados de accedilotildees em 2002 seguidas de trecircs anos de fraca recupe-raccedilatildeo deixaram as pessoas muito preocupadas em relaccedilatildeo a qualquer proposta que transferissem renda para esse mercado Mais do que isso ao longo da deacutecada anterior muitos descobriram que os planos privados de aposentadoria eram insol-ventes ou severamente subfinanciados quase ao ponto de serem abolidos ou ainda o silencioso fato de que os benefiacutecios definidos foram convertidos em benefiacutecios flutuantes dependentes da performance das accedilotildees no mercado Por fim entre os fatores que levaram aos problemas do mercado em 2002 estava o relaxamento de poliacuteticas regulatoacuterias do governo federal que levaram agrave falecircncia da Enron e de muitas outras operadoras de serviccedilos financeiros A maioria dos argumentos emerge ou afunda com base em assuntos ldquosubstanciaisrdquo como esses em oposiccedilatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

agrave fraqueza ldquoanaliacuteticardquo ou formal dentro de um argumento Poreacutem ao assumir que se pode recorrer ao contexto mais amplo e a familiaridade com circunstacircncias re-levantes a proposta de Toulmin permanece uma ferramenta poderosa para checar se um argumento eacute a melhor expressatildeo desses elementos

resumo

Em siacutentese o que os professores podem extrair dessa breve histoacuteria Das anti-gas contendas com a Filosofia podemos aprender a abraccedilar as bases ldquorealistasrdquo de nosso empreendimento a aceitar o fato de que natildeo podemos prometer certezas ou verdades com ldquovrdquo maiuacutesculo como efeito da argumentaccedilatildeo Podemos entretanto oferecer meios para atingir um entendimento mais completo e mais complexo do mundo e uma probabilidade maior de que esse entendimento seraacute traduzido em accedilotildees e decisotildees Podemos lembrar o fato de que o primeiro livro abrangente de teoria retoacuterica A Retoacuterica de Aristoacuteteles eacute um manual para a participaccedilatildeo cidadatilde na democracia grega e que de iniacutecio precisamos preparar natildeo especialistas a cumprir com suas obrigaccedilotildees como cidadatildeos Podemos oferecer sem desculpas meios sistemaacuteticos para a formulaccedilatildeo e teste de argumentos mesmo se nos man-temos cautelosos de que esses meios natildeo oferecem soluccedilotildees baratas e raacutepidas Podemos na aurora da ldquovirada linguiacutesticardquo da Filosofia em que o poder da lingua-gem em construir e tambeacutem representar a realidade eacute algo reconhecido aceitar a responsabilidade em ajudar as pessoas a ldquoquebrar as correntes de um vocabulaacuterio desgastadordquo e assegurar que qualquer terminologia por noacutes empregada eacute capaz de um ldquoprogresso criacutetico de si mesmardquo Quando a linguagem eacute entendida como funda-mentalmente metafoacuterica e carregada de valor em vez de literal e neutra quando o entendimento eacute compreendido como maneira de ver uma coisa em termos de outra (identificaccedilatildeo) e natildeo como consciecircncia de que uma coisa eacute outra (identidade) a interpretaccedilatildeo deixa de ser um exerciacutecio de desambiguaccedilatildeo de linguagem pouco

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A construccedilatildeo do argumento

elaborado e passa a ser um requisito baacutesico de todo o entendimento uma traduccedilatildeo de uma compreensatildeo geral para algo especiacutefico e circunstanciado

Na mesma moeda a relaccedilatildeo entre regras ou princiacutepios gerais e casos particu-lares eacute tal que os princiacutepios natildeo satildeo assumidos para explicar os casos no modelo de conversatildeo de leis para a explicaccedilatildeo de fenocircmenos fiacutesicos Na Retoacuterica a relaccedilatildeo entre princiacutepios e casos eacute de matildeo dupla Agrave medida que os princiacutepios oferecem meios para interpretar os casos esses desafiam e alteram os princiacutepios Em suma as mudanccedilas recentes na Filosofia moveram a Retoacuterica das margens em direccedilatildeo ao centro e transformaram os focos maiores da disciplina argumentaccedilatildeo e interpre-taccedilatildeo em operaccedilotildees essenciais e natildeo mais acessoacuterias

Em termos das praacuteticas em sala de aula a Retoacuterica nos ensina que as liccedilotildees da histoacuteria satildeo muito uacuteteis para irmos aleacutem da proacutepria histoacuteria Os antigos e os primeiros modernos os grandes sistematizadores dos seacuteculos passados podem nos levar longe mas temos de adaptar seus princiacutepios gerais agraves circunstacircncias que enfrentamos A Retoacuterica tradicional era vista ndash atraveacutes das lentes distorcidas da Filosofia ndash como versatildeo de baixa qualidade da demonstraccedilatildeo loacutegica um inqueacuterito para obtenccedilatildeo de provas A esfera do argumento foi cuidadosamente delimitada e o modelo de persuasatildeo era a ocasiatildeo uma apresentaccedilatildeo oral e formal operada em poucos locais Pouca atenccedilatildeo era dada aos meios atraveacutes dos quais as mensagens eram transmitidas e os seus possiacuteveis efeitos As audiecircncias eram tratadas como dadas como algo a ser estrategicamente endereccedilado seguindo um modelo de com-preensatildeo da natureza humana que lembra uma versatildeo crua das grades psicoloacutegicas aplicadas por publicitaacuterios para a manipulaccedilatildeo da audiecircncia

Ao transmitirmos as liccedilotildees da histoacuteria em sala de aula muitas generalizaccedilotildees uacuteteis satildeo aplicaacuteveis A argumentaccedilatildeo contemporacircnea raramente eacute operada em apenas um lugar ou miacutedia Ela avanccedila em muitas frentes atraveacutes de meios diver-sos cada qual responsaacutevel por colocar demandas uacutenicas a quem argumenta Em particular os efeitos dessas miacutedias vatildeo do texto escrito ou falado ao modo de apre-

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A construccedilatildeo do argumento

sentaccedilatildeo aos filtros atraveacutes dos quais as mensagens satildeo direcionadas ao puacuteblico agrave maneira pela qual cacircmeras microfones iluminaccedilatildeo e cenaacuterios prendem a atenccedilatildeo em determinadas caracteriacutesticas em detrimento de outras Devemos atentar agraves maneiras pelas quais os gecircneros ndash discurso poliacutetico editorial carta ao editor talk shows anuacutencios impressos e televisionados etc ndash afetam nossa percepccedilatildeo do texto Muitas vezes as dimensotildees natildeo racionais ndash natildeo confundir com ldquoirracionaisrdquo ndash do argumento satildeo mais importantes do que os fatores racionais para determinar a eficaacutecia de um dado argumento Por isso devemos aprender uma maneira de ler isso Devemos oferecer oportunidades aos nossos estudantes para trabalharem com os argumentos em suas diferentes facetas e natildeo limitaacute-los a operar com coleccedilotildees antoloacutegicas de argumentos muito longos geralmente direcionados a audiecircncia de escopo muito limitado

Ao adaptar as teorias contemporacircneas para a sala de aula nossos desafios satildeo mais especiacuteficos Como organizar uma aula focalizada em torno das diversas abordagens aqui discutidas Sem sermos muito doutrinaacuterios encorajamos algo da seguinte ordem Ler profundamente a obra de Burke em especial A Rhetoric of Motives e Perelman e Olbrechts-Tyteca especialmente o Tratado da Argumentaccedilatildeo ndash A Nova Retoacuterica de forma a desenvolver um quadro conceitual a partir do qual se ensina a argumentar Entretanto a abordagem mais adaptaacutevel e uacutetil para o ensino a nosso ver eacute a abordagem da Stasis Theory Ela tem espaccedilo de sobra para acomodar qualquer assunto funciona bem para a formulaccedilatildeo e anaacutelise do argumento e ofe-rece aos novatos uma linguagem razoavelmente simples para discutir argumento Por fim recomendamos o uso cuidadoso e limitado de Toulmin em conjunccedilatildeo com a leitura profunda das reivindicaccedilotildees maiores nos argumentos dos estudantes A aplicaccedilatildeo das ideias desse autor pode ser muito uacutetil para o segundo estaacutegio do esboccedilo na escrita quando os estudantes conhecem o argumento o suficiente para perceber os pontos fortes e fracos e estatildeo suficientemente comprometidos a ponto de serem desafiados mas natildeo derrotados pelas severas interrogaccedilotildees advindas do esquema proposto por Toulmin

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caPiacutetulO 2 Questotildees sobre argumentaccedilatildeo15

Neste capiacutetulo vamos examinar quatro questotildees conexas que delineiam nosso entendimento sobre o argumento e seu valor em sala de aula Primeiro criticamos a praacutetica tradicional de ldquofalaacutecias informaisrdquo dando especial atenccedilatildeo agrave lacuna entre os modelos formais de falaacutecias e sua aplicaccedilatildeo atual Segundo vamos estender essa criacutetica agrave pragma-diaacuteletica influente escola de teoria do argumento e seu esforccedilo para construir um paradigma em que as falaacutecias podem ser mais precisamente definidas e avaliadas Terceiro usando a taxionomia das praacuteticas composicionais de Fulkerson (1996) recentemente atualizada vamos verificar as principais al-ternativas para o ensino do argumento em aulas de escrita e situar o ensino do argumento entre essas praacuteticas Finalmente vamos considerar os proacutes os contras e os desafios do ensino da propaganda em uma aula dedicada agrave construccedilatildeo do argumento

o debate sobre a falaacuteCia

O tratamento de falaacutecias informais nas aulas de escrita sobre argumento eacute muito frequente Apesar dos esforccedilos de muitos da aacuterea em pocircr fim a essa praacutetica e a despeito de alguns autores de livros didaacuteticos que gostariam de bani-las de seus livros as falaacutecias permanecem Haacute aparentemente uma espeacutecie de apelo inerente agraves falaacutecias como eacute o apelo agrave gramaacutetica prescritiva nas aulas de escrita Em uma aacuterea tatildeo fluiacutedica e complexa as falaacutecias satildeo finitas concretas e oferecem

15 Traduccedilatildeo Siacutelvio Luis da Silva

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A construccedilatildeo do argumento

aos praticantes a perspectiva perturbadora de permitir um julgamento positivo ou negativo de ser capaz de proclamar argumentos natildeo simplesmente fracos ou fortes mas completamente errados ou certos Assim exatamente como o professor de escrita solitaacuterio e preocupado em justificar uma nota ao estudante pode achar pertinente a chance de apontar a ocorrecircncia de concordacircncia verbal inadequada ou construccedilotildees sem paralelismo (natildeo discuta com o livro meu amigo) a criacutetica distraiacuteda de um argumento inconsistente do aluno pode igualmente apontar a pre-senccedila absolutamente inequiacutevoca do argumento ad hominem tu quoque (natildeo discuta com o latim meu amigo) Ao passo que ajudar os alunos a entender que uma tese eacute evidente ou vaga ou que as suas evidecircncias satildeo irrelevantes para o que pretende pode ser difiacutecil e levar tempo penalizaacute-los pelas falaacutecias e erros gramaticais gasta menos tempo e exige menos justificativas

Por certo aqueles que usam as falaacutecias informais no ensino do argumento tecircm um motivo mais nobre Haacute uma longa tradiccedilatildeo na maneira de ensinar as falaacutecias que remonta aos seus primoacuterdios A gecircnese da abordagem das falaacutecias pode ser atribuiacuteda a Aristoacuteteles que primeiramente em De Sophisticis Elenchis (e tambeacutem em Prior Analytics e Rhetoric) tratou das falaacutecias como uma coleccedilatildeo de argumentos intencionalmente enganadores propostos pelos sofistas para confundir e cativar seus oponentes Algumas das treze falaacutecias enumeradas por ele satildeo completamente dependentes de artimanhas linguiacutesticas mas outras satildeo independentes da lin-guagem Contudo os problemas de obscuridade que envolvem as falaacutecias atraveacutes dos seacuteculos estatildeo presentes desde a primeira vez que se fez essa distinccedilatildeo Como mencionado por Eemeren et al (1996) os exemplos de falaacutecias linguiacutesticas e natildeo linguiacutesticas de Aristoacuteteles natildeo satildeo particularmente esclarecedores Na verdade muitos estudantes atuais de falaacutecia satildeo pressionados a encontrar algumas que natildeo sejam dependentes do uso evasivo alterado ou ambiacuteguo da linguagem Con-sideremos o seguinte argumento sofiacutestico retirado do Euthydemus de Platatildeo que eacute mencionado como um exemplo de falaacutecia dependente da linguagem vocecirc tem um cachorro seu cachorro eacute pai dos filhotes seu cachorro eacute seu pai (citado por

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A construccedilatildeo do argumento

Eemeren et al 1996 p 58-59) Posto dessa forma o argumento pareceria ser o mais completo absurdo e incapaz de enganar o mais creacutedulo dos interlocutores Ateacute em seu formato original de diaacutelogo parece ser completamente evidente Agrave luz do pensamento de Aristoacuteteles essa eacute uma falaacutecia dependente da linguagem ba-seada em ldquouma mudanccedila ilegiacutetima de um atributo de uma propriedade acidental de um sujeito [] ao proacuteprio sujeito ou vice-versa O que Aristoacuteteles entende aqui por lsquoacidentalrsquo natildeo eacute clarordquo (EEMEREN et al 1996 p 59) Mesmo se pudeacutessemos imaginar o que precisamente Aristoacuteteles tinha em mente ao designar um atributo ldquoacidentalrdquo a maioria de noacutes acharia a sua explicaccedilatildeo desnecessariamente tortuosa e complexa O simples fato de um cachorro ser o pai de alguns filhotes natildeo o faz pai de toda pessoa no mundo assim como designar algueacutem como esposa natildeo implica designar todo o resto no mundo como seu marido Essa eacute uma grande categoria de erro do tipo que pessoas na vida real simplesmente natildeo cometem

A uacutenica razatildeo para classificar isso como uma ldquofalaacutecia dependente da lingua-gemrdquo eacute o fato de que eacute tatildeo absurdamente grosseira que poucas pessoas satildeo passiacuteveis de serem enganadas pela artimanha linguiacutestica que transforma ldquoseurdquo e ldquopairdquo em propriedades universalmente aplicaacuteveis De fato muitos dos exemplos de falaacutecias paradigmaacuteticas de hoje satildeo por si mesmos mal engendrados como os exemplos antigos Isso natildeo surpreende uma vez que muitos deles parecem ter sido retirados de exemplos de falaacutecias de livros didaacuteticos tambeacutem antigos

Mesmo assim as falaacutecias continuam a ser um ponto essencial nas aulas de escrita dedicadas ao argumento a despeito do fato de que como Fulkerson (1996 p 96) ressaltou ldquo[] nunca houve uma definiccedilatildeo consensual ou uma classificaccedilatildeo utilizaacutevel de falaacuteciasrdquo e o nuacutemero atual de falaacutecias mencionado nos livros didaacuteticos varia demais inclusive com nomes diferentes Na tentativa de tornar o estudo das falaacutecias mais uacutetil para os professores de escrita Fulkerson (1996) cita o trabalho da loacutegica informal em especial uma definiccedilatildeo de falaacutecia desenvolvida por Kahane (1971) De acordo com a anaacutelise de Fulkerson (1996 p 97) dessa definiccedilatildeo existe uma falaacutecia se algueacutem natildeo puder responder ldquosimrdquo para as seguintes questotildees

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A construccedilatildeo do argumento

1 As premissas ndash tanto as expliacutecitas quanto as impliacutecitas ndash satildeo aceitaacuteveis2 Todas as informaccedilotildees relevantes e importantes satildeo levadas em con-sideraccedilatildeo3 A forma do argumento satisfaz as regras relevantes da loacutegica

Fulkerson (1996) deixa de lado a terceira questatildeo com base no fato de que ela trata das regras de deduccedilatildeo formal que a torna difiacutecil de ser aplicada sem se dispensar um tempo extenso com o ensino de loacutegica tempo que poderia ser melhor utilizado em questotildees mais relevantes Aleacutem disso problemas de loacutegica formal ra-ramente ocorrem em argumentos do mundo real Ele entatildeo passa a citar as onze maiores falaacutecias que define como ldquorelevanterdquo no sentido de que elas satildeo natildeo formais e enquadram-se nas duas questotildees apresentadas pela definiccedilatildeo de Kahane (1971)

A discussatildeo de Fulkerson (1996) eacute uacutetil e clara e qualquer pessoa determinada a ensinar falaacutecias nos argumentos deveria se referir a ela Como o autor esclarece desde o iniacutecio e ao longo de sua discussatildeo que ldquoa falaacutecia das falaacuteciasrdquo por assim dizer eacute confundir um defeito relevante com um defeito formal Pressupotildee-se como muitos fazem que ldquo[] qualquer argumento cuja falaacutecia natildeo eacute identificaacutevel seja um bom argumentordquo (FULKERSON 1996 p 15) eacute semelhante a presumir que qualquer argumento sem erros factuais seja aceitaacutevel A ausecircncia de falaacutecia natildeo garante um argumento persuasivo da mesma maneira que a ausecircncia de erros formais na deduccedilatildeo garante um argumento aceitaacutevel Da mesma forma encontrar um argu-mento particular apresentado da mesma maneira que um argumento falacioso natildeo garante que seja falacioso No caso de um argumento ldquoem cadeiardquo se algueacutem argumenta que fazer A leva a B que levaraacute a C e assim por diante esse argumento pode ou natildeo ser defeituoso Algumas cadeias satildeo afinal de fato escorregadias e algumas cadeias casuais mesmo as muito longas satildeo hermeacuteticas

O simples fato de um argumento seguir um padratildeo que geralmente eacute seguido por argumentos que acabam por ser falaciosos natildeo garante que o argumento em questatildeo seja falacioso O erro que alguns cometem ao pensar assim eacute o mesmo da

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A construccedilatildeo do argumento

falaacutecia de post horc ergo proper hoc (depois disso portanto por causa disso) Even-tos conectados em ordem sequencial satildeo apenas um indiacutecio de causalidade e ateacute que algueacutem possa realmente mostrar a relaccedilatildeo causal natildeo se tem nada provado O mesmo acontece com argumentos falaciosos Ao final deve-se sempre mostrar com bases soacutelidas exatamente por que eles satildeo falaciosos Uma vez mostrado conclusivamente que uma linha especiacutefica de raciociacutenio eacute falaciosa tipicamente apenas se enfraqueceu um argumento geral natildeo o anulou

Poreacutem como as objeccedilotildees anteriores agrave abordagem das falaacutecias sugerem alguns insights uacuteteis podem surgir ao se observarem os argumentos com as lentes das falaacutecias Vista como heuriacutestica ou como sintoma que levanta as questotildees aponta-das sobre dado argumento ao inveacutes de um algoritmo que classifica ou avalia um argumento a falaacutecia pode nos levar a uma linha de investigaccedilatildeo frutiacutefera Muitas falaacutecias realmente aparecem em argumentos do mundo real sob formas reconhe-ciacuteveis Por exemplo as falaacutecias mencionadas na conjunccedilatildeo com causalidade as veneraacuteveis post hoc ergo propter hoc e as falaacutecias ldquoem cadeiardquo aparecem frequen-temente especialmente em conjunccedilatildeo com argumentos poliacuteticosincitativos De forma diferente os argumentos nas ciecircncias por causa das regras mais riacutegidas de evidecircncia e dos meios mais precisos de se medir e por causa de uma tradiccedilatildeo de se fazerem afirmaccedilotildees cuidadosamente qualificadas tendem a produzir afirma-ccedilotildees menos controversas (ou pelo menos em relaccedilatildeo agraves do domiacutenio puacuteblico) Os argumentos de causalidade no cenaacuterio poliacutetico puacuteblico tendem a ser tanto mais difiacuteceis de qualificar quanto mais faacuteceis de manipular para fins poliacuteticos No caso das provas escolares por exemplo o estabelecimento de provas mais elaboradas nas escolas primaacuterias e secundaacuterias eacute tido como uma evidecircncia de que algo estaacute sendo feito para melhorar o sistema escolar e ainda melhor para garantir que ldquonenhuma crianccedila [seja] deixada para traacutesrdquo Nesse contexto o aumento de dois ou trecircs pontos nas notas escolares eacute entendido como uma validaccedilatildeo de um ldquomovimen-to de prestaccedilatildeo de contasrdquo No entanto um aumento na nota que vem ldquodepois das provasrdquo natildeo garante nem que as melhores notas sejam ldquopor causa da provardquo nem

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A construccedilatildeo do argumento

mais importante que a prova meccedila aprendizagem e proficiecircncia reais O resultado da prova pode muito bem indicar que os professores estatildeo ensinando melhor para a prova e que os estudantes estatildeo indo melhor nas provas ou que estatildeo sendo faacuteceis

Quando os resultados das provas estaduais usados para medir o progresso do aluno satildeo contestados pelos resultados de provas nacionais projetados para medir a proficiecircncia do aluno sem viacutenculos com o financiamento ou o credenciamento escolar o ldquoprogressordquo na prova estadual precisa ser reexaminado Como um nuacutemero consideraacutevel de criacuteticos do movimento das avaliaccedilotildees educacionais tem mostrado as provas por si mesmas nada fazem para melhorar a aprendizagem dos alunos Ou como alguns criacuteticos tecircm ilustrado ldquonatildeo se engorda um porco pesando-ordquo

Exemplos desse raciociacutenio falacioso podem ser encontrados em vaacuterios deba-tes puacuteblicos e para dizer a verdade natildeo satildeo desconhecidos pela impressa Ter em mente padrotildees falaciosos pode potencialmente ajudar as pessoas a reconhecer os sinais de raciociacutenio falacioso quando se deparam com eles e a organizar a resposta para os argumentos que eles trazem nas entrelinhas A decisatildeo de se discutir ou natildeo as falaacutecias informais em uma aula de escrita tem menos a ver com a prevalecircncia do problema que elas engendram ou da utilidade das falaacutecias para detectar tais problemas do que com os desafios pedagoacutegicos que elas trazem Para os conhece-dores de falaacutecias as que satildeo reais satildeo facilmente distinguiacuteveis das aparentes Por outro lado a forma eacute facilmente confundida com a substacircncia pelos inexperientes Algueacutem que procura argumentos post hoc ergo propter hoc pode achar um que faz adequadamente uma alegaccedilatildeo tiacutemida de relaccedilatildeo causal baseada em correlaccedilotildees es-tatiacutesticas altamente persuasivas e ainda assumir que todo o argumento eacute falacioso

Haacute mais problemas pedagoacutegicos com a abordagem das falaacutecias O filoacutesofo Michael Scriven um antigo liacuteder do movimento do pensamento criacutetico opocircs de acordo com Eemeren et al (1996 p 182) ldquo[] o uso de falaacutecias com o objetivo de criticar o argumento alegando que fazer isso requer construir durante o processo de identificaccedilatildeo do argumento todas as habilidades necessaacuterias para a anaacuteliserdquo Por que ensinar os estudantes o vocabulaacuterio ldquoteacutecnico das falaacuteciasrdquo Scriven ques-

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A construccedilatildeo do argumento

tiona se determinar o estado real do argumento pode ser feito da mesma maneira na ldquolinguagem naturalrdquo de alegaccedilatildeo evidecircncia razatildeo e assim por diante usada na anaacutelise retoacuterica tradicional Aprender a terminologia latina das falaacutecias eacute na visatildeo de Scriven um passo desnecessaacuterio A ldquoprecipitada generalizaccedilatildeordquo universal das falaacutecias por exemplo natildeo oferece nada de novo no sentido de fornecer uma ferramenta para se saber o quatildeo bem embasado um argumento eacute Evidecircncia fraca natildeo eacute apenas uma falaacutecia eacute a base de enfraquecimento de muitos argumentos Eacute prudente julgar a adequaccedilatildeo de uma sustentaccedilatildeo no acircmbito da compreensatildeo e no grau de ceticismo que uma determinada audiecircncia empresta ao argumento

Em linhas gerais entatildeo noacutes partilhamos do ceticismo de Scriven a respeito da utilidade da terminologia das falaacutecias em nossas aulas Da mesma forma sem-pre tentamos oferecer pelo menos uma breve exposiccedilatildeo de um grupo selecionado de falaacutecias como aquelas que lidam com a causalidade que realmente surgem no mundo real e que podem se tornar mais reconheciacuteveis com o uso do vocabulaacuterio das falaacutecias Na nossa experiecircncia pelo menos alguns alunos acreditam que a abordagem eacute uacutetil

a abordagem pragma-dialeacutetiCa das falaacuteCias

A criaccedilatildeo da Sociedade Internacional para o Estudo do Argumento (ISSA) com sede na Universidade de Amsterdatilde e composta majoritariamente por linguistas europeus e canadenses filoacutesofos retoacutericos e teoacutericos da comunicaccedilatildeo eacute um tema que merece atenccedilatildeo apenas porque os principais membros publicaram muito sobre o assunto e satildeo frequentemente citados por estudantes americanos de argumento16 Em certa medida a pragma-dialeacutetica (P-D) representa uma tentativa de resgatar a

16 O extremamente uacutetil Fundamentals of Argumentation Theory que temos citado tem a participaccedilatildeo de dez membros do iSSa e os dois autores principais van eemeren e grootendorst satildeo os fundadores da abordagem

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A construccedilatildeo do argumento

abordagem das falaacutecias das vaacuterias criacuteticas apresentadas anteriormente e daacute con-tinuidade ao trabalho promissor iniciado pela loacutegica informal e os movimentos do pensamento criacutetico dos anos 1970 e 1980

A maioria dos estudantes americanos de argumentaccedilatildeo vai achar o nome dessa abordagem no miacutenimo um pouco intrigante A tradiccedilatildeo pragmaacutetica da filo-sofia americana que inspira o trabalho de muitos retoacutericos americanos e muitos filoacutesofos americanos contemporacircneos que apoiam as abordagens retoacutericas do argumento vai muito aleacutem do que os defensores da P-D parecem ter em mente Para os pragmatistas americanos a adoccedilatildeo de uma abordagem pragmaacutetica impli-ca certas assunccedilotildees a respeito da centralidade da linguagem para a compreensatildeo do mundo e consequentemente modelos de construccedilatildeo do conhecimento como a ldquoconversa da humanidaderdquo de Oakeshott (1975) e Rorty (1979) e a metaacutefora da ldquosalardquo de Burke (1941)17 Isso implica uma rejeiccedilatildeo agraves abordagens formalistas e sis-temaacuteticas da Filosofia em favor de uma abordagem ldquoedificanterdquo e interativa O fim da Filosofia em favor do pragmatismo se repousa natildeo em uma maior quantidade de conhecimento ou maiores certezas a respeito da Verdade mas em decisotildees e atos que levam algueacutem substancialmente para mais perto de uma visatildeo da ldquoboa vidardquo uma visatildeo que pragmatistas continuamente questionam e modificam em respostas agraves mudanccedilas na base O movimento P-D entretanto parece identificar ldquopragmaacuteticardquo principalmente com o ato de considerar premissas natildeo expressas de argumentos de acordo com ldquopadrotildees de discurso fundamentadordquo (EEMEREN et al 1996 p 14) A parte pragmaacutetica da P-D portanto licencia as pessoas a consultar ldquoinformaccedilotildees contextuais e conhecimento preacuteviordquo (EEMEREN 1966 p 15) para a avaliaccedilatildeo da validade de um argumento e a teoria dos atos de fala para determinar a funccedilatildeo de uma dada afirmaccedilatildeo

17 Burke (1941) se utiliza da metaacutefora da ldquosalardquo para esclarecer que quando entramos em uma sala na qual haacute outras pessoas e tentamos participar da conversa precisamos ouvir e tentar compreender o que estaacute acontecendo e que soacute conseguimos participar da conversa depois de termos informaccedilotildees suficientes a respeito do assunto

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A construccedilatildeo do argumento

Essa compreensatildeo mais modesta da Pragmaacutetica pode ser levada ao ponto de partida para a abordagem P-D a abordagem dedutivista tradicional do argumen-to baseada inteiramente em regras internas para os argumentos bem formados Comparada agrave essa uacuteltima abordagem o desejo dos analistas de P-D de consultar o extraverbal os elementos natildeo formais do argumento e considerar os motivos e propoacutesitos pode ser visto como significativo poreacutem a sua semelhanccedila eacute miacutenima com compreensotildees mais robustas de pragmatismo por estudantes americanos de argumento

Da mesma forma a parte ldquodialeacuteticardquo da anaacutelise P-D eacute quando comparada com os usos americanos do termo igualmente modesta A abordagem dialeacutetica de Burke para a compreensatildeo como exemplificado em seu meacutetodo dramaacutetico eacute por exem-plo um grande instrumento de compreensatildeo Enxergar algo ndash leia-se ldquoatordquo ndash em termos de outra coisa ndash leia-se ldquoagenterdquo ndash resulta em uma uacutenica compreensatildeo do fenocircmeno em questatildeo A inversatildeo do par em questatildeo ou a substituiccedilatildeo por termos diferentes resulta em uma compreensatildeo radicalmente diferente Isso eacute um meio de compreensatildeo do mundo que resiste agrave conclusatildeo e certeza o que eacute acima de tudo heuriacutestico A compreensatildeo do termo P-D entretanto se baseia na assunccedilatildeo de que ldquo[] toda argumentaccedilatildeo se daacute entre dois (ou mais) participantes que estatildeo engajados em uma interaccedilatildeo muacutetua e sincrocircnica com o objetivo de solucionar um problemardquo (FULKERSON 1996 p 15) Eacute uma compreensatildeo entusiasmada de argumentaccedilatildeo ndash de acordo com EEMEREN et al (1996 p 277) mais um exerciacutecio de ldquoresoluccedilatildeo conjunta de problemasrdquo do que de persuasatildeo ndash e natildeo por acaso di-ficilmente encontrado no mundo real Enquanto os propositores da P-D poderiam felizmente garantir que poucos argumentos atingem seu ideal ndash ldquopor muitas razotildees a realidade argumentativa nem sempre se assemelha com o ideal de uma discussatildeo criacuteticardquo (EEMEREN et al1996 p 295) ndash eles defenderiam o modelo na medida em que isso fornecesse um padratildeo uacutetil que avaliasse o mundo real dos argumentos

Isso nos leva de volta ao iniacutecio da discussatildeo a tentativa da P-D de salvar fa-laacutecias Eles dizem que faltava nas abordagens tradicionais de falaacutecia um padratildeo

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A construccedilatildeo do argumento

para distinguir os argumentos que se parecem com argumentos falaciosos dos que satildeo realmente falaciosos Embora seu proacuteprio padratildeo seja eles diriam muito rigoroso natildeo eacute irrealista Eles podem estar certos O maior obstaacuteculo para usar a abordagem com a maioria dos estudantes americanos de argumento que opotildeem Retoacuterica agrave Filosofia ou agrave Linguiacutestica eacute a grande complexidade do modelo Se al-gueacutem usa P-D em sua aula deve estar preparado para usaacute-la sozinha porque boa parte do semestre vai ser dispensada para elucidar os elementos do sistema e ilustrar esses elementos com exemplos extremamente simples e muito distantes dos tipos de controveacutersias que os alunos realmente encontram no mundo Como a P-D eacute uacutetil para interpretar a apresentaccedilatildeo de um argumento mais simples ela lembra a abordagem de Toulmin No entanto nesse aspecto ela requer a aquisiccedilatildeo de uma gama maior de vocabulaacuterio necessaacuterio para traduzir a linguagem natural da argumentaccedilatildeo em padratildeo P-D apropriado o que eacute algo como Toulmin elevado ao quadrado Talvez ao cubo Consideremos os elementos do sistema haacute quatro princiacutepios teoacutericos dos quais derivam normas para o estudo do argumento haacute quatro estaacutegios de ldquoresoluccedilatildeo diferentesrdquo haacute dez regras de discussatildeo criacutetica haacute quatro tipos de atos de fala usados em vaacuterios estaacutegios para se chegar agrave soluccedilatildeo treze usos possiacuteveis de cinco atos de fala nos quatro estaacutegios e quarenta e trecircs possiacuteveis regras de violaccedilatildeo

Estaacute aberto o debate sobre o fato do benefiacutecio da enorme complexidade que a P-D defende para esclarecer quando um argumento natildeo eacute apenas formalmente mas substantivamente falacioso leva a uma anaacutelise mais efetiva Para a maioria dos professores a ideia de que os meios justificam os fins eacute aparentemente menos questionaacutevel Na medida em que a P-D eacute uma ferramenta para anaacutelise de argumento ela eacute por hora provavelmente melhor aplicada por profissionais

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A construccedilatildeo do argumento

alternativas para enfatizar a argumentaccedilatildeo em uma aula de esCrita estudos CrIacutetiCo-Culturais

Em um artigo sobre a escrita na virada do seacuteculo XXI Fulkerson (2005) procura estabelecer o cenaacuterio dos estudos da escrita contrastando o panorama atual com o que encontrou em 1990 quando ele realizou um trabalho parecido na deacutecada de 1980 O autor descobre em sua uacuteltima leitura profunda sobre o assunto que a escrita ldquo[] se tornou uma disciplina menos unificada e mais controversa no iniacutecio do seacuteculo XXI do parecia ser nos anos 1990rdquo (FULKERSON 2005 p 654) Ele identificou trecircs axiologias ou teorias de valor que datildeo origem a trecircs abordagens distintas da escrita18 As trecircs axiologias incluem a visatildeo de ldquoconstruccedilatildeo socialrdquo que daacute origem agrave abordagem dos ldquoestudos criacutetico-culturaisrdquo (ECC) uma visatildeo expressi-vista que daacute origem ao expressivismo e uma visatildeo ldquoretoacuterica multifacetadardquo que origina o que ele define como ldquoretoacuterica processualrdquo (FULKERSON 2005 p 655) Essa uacuteltima abordagem eacute entretanto dividida em trecircs formas de ldquoretoacuterica proces-sualrdquo ldquo[] escrita como argumentaccedilatildeo escrita baseada em gecircneros e escrita como introduccedilatildeo ao discurso da comunidade acadecircmicardquo (FULKERSON 2005 p 671) Segundo o autor no ambiente atual ldquomenos unificado e mais controversordquo escolher uma dessas abordagens pode facilmente se constituir em um ato controverso

Concordamos com Fulkerson (2005 p 681) sobre a divisatildeo da disciplina um estado que talvez seja melhor captado na sua citaccedilatildeo da contenccedilatildeo de Gary Olson de que os estudos da escrita estatildeo agrave beira de uma ldquoguerra de novas teoriasrdquo Somos tambeacutem simpaacuteticos com a sua clara preferecircncia agrave retoacuterica processual em geral e a uma ecircnfase argumentativa em particular Somos por outro lado menos criacuteticos a abordagens alternativas do que ele parece ser e em alguns casos nossa

18 uma quarta abordagem a aparentemente imortal corrente tradicional eacute relutantemente reconhecida mas pouco discutida por fulkerson (2005)

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A construccedilatildeo do argumento

fundamentaccedilatildeo para preferir o foco no argumento e natildeo em outra abordagem eacute diferente Parte dessas diferenccedilas indubitavelmente se deve agrave inevitaacutevel reduccedilatildeo de perspectiva que Fulkerson teve de fazer para construir um mapa legiacutevel Como ele reconhece todas essas abordagens satildeo mais complexas e heterogecircneas do que se pode abarcar no acircmbito de uma visatildeo geral Aleacutem disso natildeo estaacute claro para noacutes se uma ecircnfase no argumento eacute pedagogicamente em vez de ideologicamente incompatiacutevel com algumas dessas abordagens19

De qualquer maneira atualmente a decisatildeo de enfatizar ou em certa medida simplesmente incluir a argumentaccedilatildeo em uma aula de escrita eacute uma escolha poliacutetica para a qual se deve estar bem preparado para defender dos defensores de outras abordagens Em programas cujas decisotildees curriculares satildeo feitas coletivamente esse debate aqui ensaiado pode ser feito muito rapidamente agraves vezes arduamente

Certamente a maior mudanccedila na ecircnfase da escrita nos uacuteltimos vinte anos envolve o surgimento das abordagens dos ECC Defendida mais notadamente por James Berlin essa abordagem engloba uma gama de ecircnfases diferentes incluindo o feminismo a aprendizagem de serviccedilo ou serviccedilo comunitaacuterio e a pedagogia criacutetica (que natildeo deve ser confundida com as abordagens de pensamento criacutetico de-cididamente neutros dos anos 1970 e 1980) Fulkerson (2005 p 660) eacute criacutetico dos ECC essencialmente por enfatizar demais questotildees de justiccedila social e ldquolibertaccedilatildeo dos discursos dominantesrdquo e pela sua tendecircncia a privilegiar o empoderamento dos alunos em detrimento da melhora da escrita como um resultado do curso Ele tambeacutem eacute reticente ao foco na interpretaccedilatildeo de textos e artefatos culturais em oposiccedilatildeo agraves estrateacutegias de inventividade e revisatildeo dos textos dos alunos Ele vecirc uma inquietante semelhanccedila entre os cursos de ECC

19 No proacuteximo capiacutetulo (Introduccedilatildeo a algumas boas praacuteticas) na verdade nos atentamos a uma gama de diferentes abordagens pedagoacutegicas para o ensino da escrita que parecem perfeitamente compatiacuteveis com o foco no argumento

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A construccedilatildeo do argumento

[] e os cursos de escrita baseados em literatura popular e de resistecircn-cia Em ambos os tipos os alunos leem textos que os professores julgam importantes Eles escrevem a respeito desses textos e o seu trabalho eacute avaliado a partir do quatildeo bem demonstram que eles entendem e podem fazer uma abordagem interpretativardquo (FULKERSON 2005 p 662-63)

Cursos desse tipo supotildee Fulkerson (2005) satildeo motivados em parte pelo que ele define como ldquociuacuteme de conteuacutedordquo dos professores de escrita

Nossa preferecircncia por cursos de escrita baseados na argumentaccedilatildeo agrave abor-dagem ECC natildeo implica uma rejeiccedilatildeo total a cursos de escrita ricos em conteuacutedo mesmo quando esse conteuacutedo eacute compatiacutevel com o ensinado em um curso tiacutepico de ECC Oferecer aos alunos um conjunto de textos eou artefatos para serem lidos e discutidos natildeo impede uma instruccedilatildeo direcionada para a argumentaccedilatildeo ou a escrita Aleacutem disso em uma aprendizagem baseada na colaboraccedilatildeo ou coo-peraccedilatildeo textos e assuntos comuns podem ser extremamente uacuteteis na promoccedilatildeo da discussatildeo e negociaccedilatildeo de sentido Dito isso noacutes partilhamos de algumas das reservas de Fulkerson (2005) quanto ao que muitas vezes realmente acontece em cursos ricos em conteuacutedo especialmente quando o conteuacutedo em questatildeo eacute uma paixatildeo do professor A discussatildeo de textos selecionados e de artefatos pode custar a discussatildeo dos proacuteprios textos dos alunos e o tempo dedicado agrave invenccedilatildeo e agrave revisatildeo de seu trabalho Poucos livros didaacuteticos aparentemente feitos para o uso em cursos de ECC oferecem o bastante na forma de instruccedilatildeo ou invenccedilatildeo ou revisatildeo e menos ainda discutem seriamente princiacutepios retoacutericos Muito do que se demanda dos alunos em cursos assim eacute a escrita baseada em argumentaccedilatildeo aleacutem disso haacute pouca instruccedilatildeo clara em como produzir um argumento ou como pensar sobre ele e os exerciacutecios como os exerciacutecios sobre a construccedilatildeo do argumento nem sempre satildeo claramente focados

Certamente muitos professores que usam essa abordagem criam o seu proacuteprio material por razotildees natildeo relacionadas ao seu compromisso com o foco em ECC De qualquer forma qualquer um que usa uma abordagem ECC que deseja garantir um

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equiliacutebrio entre o foco no conteuacutedo e o foco na escrita do aluno deve estar prepa-rado para realizar um levantamento pedagoacutegico bem extenso

Em alguns casos os cursos de ECC baseados em um uacutenico tema podem apre-sentar temas e artefatos com o mesmo ponto de vista e apontar para uma uacutenica direccedilatildeo desencorajando as discordacircncias racionais e a reflexatildeo criacutetica a respeito dos assuntos em questatildeo Ateacute mesmo cursos essencialmente pensados para criar uma consciecircncia criacutetica podem dificultar o desenvolvimento dessa capacidade agrave medida que ignoram a maacutexima de Burke de que qualquer terminologia eacute suspeita agrave medida que natildeo permite uma criacutetica progressiva de si mesma Ao desmerecer e criticar o vocabulaacuterio dos outros eacute importante que nos mantenhamos atentos aos nossos proacuteprios limites vocabulares que seratildeo mencionados e questionados por muitos alunos cuja visatildeo poliacutetica pode ser decididamente diferente daquela dos defensores tiacutepicos da ECC

Reiteramos que natildeo achamos que os cursos de ECC necessariamente incorrem nessas falhas natildeo mais do que acreditamos que os cursos baseados na argumen-taccedilatildeo necessariamente incorrem no formalismo vazio ou noccedilotildees panglossianas de pluralismo Certamente como deixamos claro no primeiro capiacutetulo em que discutimos a instruccedilatildeo criacutetica em sentido mais geneacuterico partilhamos muitos dos objetivos libertadores anunciados pelos defensores de ECC Acreditamos que os alunos podem ser empoderados pelos cursos de escrita e que eles podem se tornar mais conscientes dos modos como o discurso e a ideologia dominantes reduzem o ciacuterculo do pensamento criacutetico Acreditamos que podem fazer isso ateacute mesmo agrave medida que se tornam melhores escritores No entanto devemos concordar eacute possiacutevel se alcanccedilarem esses objetivos sem usar exclusivamente ou mesmo signi-ficativamente os materiais comumente vistos nos cursos de ECC Na verdade em alguns casos os alunos tendem a achar ambiciosos os objetivos delineados pelos defensores da ECC em um ambiente que daacute mais ecircnfase aos processos de leitura reflexatildeo escrita discussatildeo e escuta dos proacuteprios alunos do que nos materiais pri-maacuterios e secundaacuterios normalmente encontrados no curso

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Qualquer curso que deseja combinar com sucesso uma ecircnfase nos materiais de ECC e na melhora da escrita dos alunos deve deixar clara a ligaccedilatildeo do trabalho entre a interpretaccedilatildeo de textos e dos artefatos feitos pelos alunos e a construccedilatildeo de seus proacuteprios textos a respeito desse material Aqui novamente nossa pers-pectiva se diferencia da de Fulkerson Enquanto ele tende a tratar a interpretaccedilatildeo como uma atividade separada que prejudica as habilidades de escrita dos alunos noacutes tendemos a ver as duas atividades como complementares e concordamos com Berthoff (1983) para quem interpretamos como escrevemos No contexto de um curso de escrita a interpretaccedilatildeo pode se tornar uma atividade inventiva um meio de gerar o texto original No entanto isso soacute pode funcionar se ficar claro para os alunos que natildeo existe ldquouma maneira certardquo de ler o material e se as muacuteltiplas formas de leitura do texto satildeo delineadas para eles pelo professor pelos colegas e pelo material que eles estatildeo interpretando Se somos tentados a limiar o desen-volvimento dos alunos como pensadores independentes em nome de conclusotildees corretas talvez desejemos cutucaacute-los ou ateacute mesmo empurraacute-los fariacuteamos bem se nos lembraacutessemos mais uma vez do conceito de ldquoreversibilidaderdquo de Berude (1998) e da nossa incapacidade de prever os fins aos quais nossos alunos datildeo aos meios intelectuais que pomos agrave disposiccedilatildeo deles

pedagodia expressivista

A criacutetica de Fulkerson (2005 p 655) agraves abordagens expressivistas que ldquo[] a despeito dos vaacuterios golpes dos canhotildees do poacutes-modernismo e dos decorrentes elogios estaacute de fato silenciosamente expandindo seu campo de atuaccedilatildeordquo indica que elas incluem ldquo[] um aumento da conscientizaccedilatildeo e a chegada de uma ala com vozrdquo (FULKERSON 2005 p 666) que em nome de uma sauacutede psicoloacutegica comete os mesmos pecados contra o ensino da escrita cometidos pelos defensores da ECC em nome da libertaccedilatildeo poliacutetica O fato de Fulkerson dedicar menos da metade do espaccedilo que usa para criticar o expressivismo do que dedica agrave criacutetica da ECC ou aos

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procedimentos retoacutericos parece refletir um pouco de desprezo por essa abordagem Ao comentar o principal exemplo um estudioso defensor do curriacuteculo expressivis-ta ele rejeita a premissa baacutesica do autor com base na ldquo[] inclusatildeo de uma uacutenica narrativa autobiograacutefica no primeiro curso ser uma praacutetica completamente padratildeo e natildeo justifica designar o curso como lsquoexpressivorsquordquo (FULKERSON2005 p 668)

Nossa visatildeo sobre o expressivismo eacute mais positiva do que a de Fulkerson Na verdade vemos como uma estrateacutegia convincente a ser adotada para pedir aos alunos que componham narrativas pessoais nas aulas de escrita focadas na argu-mentaccedilatildeo e para ensinar a ler narrativas pessoais como uma forma de argumentar Enquanto vemos cursos baseados em argumentaccedilatildeo melhor delineados para atingir os fins da Retoacuterica e em longo prazo para servir a ambos os objetivos cognitivos e de desenvolvimento dos alunos noacutes aceitamos a importacircncia do engajamento da pessoa nos cursos de escrita e reconhecemos as contribuiccedilotildees dos estudiosos feministas e expressivistas dos uacuteltimos tempos para alcanccedilarmos esse objetivo Embora a criacutetica ao expressivismo de Fulkerson (2005) seja bem formulada ele ignora alguns trabalhos interessantes que vecircm sendo feitos pela ldquosegunda geraccedilatildeordquo de acadecircmicos expressivistas e relega a segundo plano um dos mais poderosos e igualitaacuterios instrumentos de persuasatildeo

Na verdade um trabalho aacuterduo deve ser feito no desenvolvimento de meios de avaliar interpretar e responder a narrativas pessoais para atingir seu total potencial em aulas de argumentaccedilatildeo Alguns acadecircmicos expressivistas contem-poracircneos jaacute comeccedilaram a trilhar esse caminho Na sequecircncia oferecemos algumas das nossas proacuteprias observaccedilotildees destinadas a identificar armadilhas das narrativas pessoais persuasivas e formas de abordar essas armadilhas

A esse respeito citamos o artigo Argument and Evidence in the Case of the Personal de Spigelman (1993) como um caso exemplar que situa o expressivismo na tradiccedilatildeo retoacuterica (especialmente a tradiccedilatildeo Aristoteacutelica) e o concebe como uma teoria contemporacircnea que explica o papel do pessoal no contexto da escrita persu-asiva Spigelman (1993) usa a escrita pessoal ldquo[] para fazer referecircncia aos modos

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A construccedilatildeo do argumento

com os quais os escritores atribuem sentido a suas vidas por meio da organizaccedilatildeo de suas experiecircncias em histoacuterias em primeira pessoardquo (SPIGELMAN 1993 p 65)

Independentemente de sua extensatildeo essas histoacuterias ldquo[] servem a finalidades que ultrapassam a pura expressatildeo de suas opiniotildees ou de confissotildees cartaacuterticasrdquo (SPIGELMAN 1993 p 66) Uma das finalidades mais importantes a que essas nar-rativas servem eacute mostrar comprovaccedilotildees O que conta como comprovaccedilatildeo enfatiza Spigelman (1993) eacute qualquer elemento que um auditoacuterio se dispotildee a permitir como tal Nas disciplinas tradicionais isso significa que apenas aquelas formas de comprovaccedilatildeo reconhecidas pelos especialistas da aacuterea seratildeo contabilizadas Isso significa por outro lado que quem estaacute de fora dessas disciplinas tradicionais ndash frequentemente as mulheres ndash cujas experiecircncias pessoais contradizem as conclu-sotildees dos especialistas natildeo seratildeo facilmente reconhecidas por esses especialistas A narrativa pessoal entatildeo ldquoeacute entendida como lsquoum ato significativo e subversivorsquo que daacute voz e autoridade agraves reivindicaccedilotildees das mulheres para o conhecimento ao nomear as suas experiecircncias como dados admissiacuteveis e relevantesrdquo (SPIGELMAN 1993 p 66)

Ainda que a narrativa de fato desempenhe um papel importante para em-prestar autoridade agraves reivindicaccedilotildees dos excluiacutedos pode parecer que natildeo eacute sub-versiva Na sequecircncia desses desenvolvimentos como a thick description (descriccedilatildeo consistente)20 na Antropologia no novo historicismo na Literatura e na proacutepria Histoacuteria sem mencionar os trabalhos de vaacuterios teoacutericos como Paul Feyerabend e Michel de Certeau as narrativas hoje possuem a funccedilatildeo de comprovaccedilatildeo tanto para os incluiacutedos quanto para os excluiacutedos Por certo como enfatiza Spigelman (1993 p 69) alguns ldquo[] poacutes-modernistas questionam a representaccedilatildeo [das nar-

20 o termo thick description(descriccedilatildeo consistente) se tornou conhecido pelo trabalho de Clifford geertz e eacute entendido como uma forma de escrever que inclui natildeo apenas a descriccedilatildeo e a observaccedilatildeo geralmente do comportamento humano mas tambeacutem as circunstacircncias em que esse comportamento se daacute assim se vale mais do que das aparecircncias pois inclui o contexto as emoccedilotildees os detalhes e toda a rede de relaccedilotildees sociais

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rativas pessoais] de sujeitos como indiviacuteduosrdquo mas esses questionamentos satildeo mais frequentemente direcionados para a maneira como a qual a representaccedilatildeo eacute construiacuteda do que para a legitimaccedilatildeo da narrativa pessoal como tal Certamente muitos de nossos alunos vatildeo encontrar narrativa pessoal e vaacuterias formas de pes-quisa etnograacutefica na universidade e devem estar preparados para responder a isso criticamente e a reproduzi-las inteligentemente

Como Fulkerson (2005 p 662) ressalta nossa proacutepria aacuterea tem adotado ldquoum construtivismo vagamente interacionistardquo nos uacuteltimos vinte anos e no processo legitimado ateacute mesmo privilegiado a narrativa pessoal comprova a nossa pesquisa Como era de se esperar Fulkerson (2005) natildeo eacute otimista a respeito dessa evoluccedilatildeo Apoacutes termos brevemente mostrado as suas consideraccedilotildees a respeito da corrente expressivista e da nossa versatildeo significativamente revisitada dessas considera-ccedilotildees vamos retornar agrave defesa de Spigelman (1993) da narrativa pessoal como uma ferramenta educativa e persuasiva e ponderar as formas como essa defesa deve ser expandida para tornar a narrativa pessoal mais prontamente uacutetil em aulas de escrita com ecircnfase no argumento

Citando pesquisas realizadas por teoacutericos da ECC Fulkerson (2005 p 662) aponta que ldquoo apelo pedagoacutegico embora algumas vezes seja baseado em estudos de caso etnograacuteficos nunca eacute geral mas sempre local Seu status epistemoloacutegico eacute o da erudiccedilatildeo sofisticada lsquoEu vi isso acontecerrsquo ou lsquoEu fiz isso e isso ajudou meus alunosrsquordquo O questionamento de Fulkerson aqui nos parece um tanto quanto ultrapassado A primeira imperfeiccedilatildeo da pesquisa etnograacutefica ele defende eacute a de que ela natildeo pode ser generalizada No entanto eacute evidente que ela pode ser generalizada natildeo pelo seu autor mas pelo auditoacuterio De fato essas pesquisas geralmente satildeo generalizadas seja por aqueles que a conduzem ou por aqueles que a citam Nossa preocupaccedilatildeo a respeito do uso de estudos de caso eacute o fato de que natildeo fica exatamente claro ateacute que ponto ou para qual direccedilatildeo as generalizaccedilotildees podem nos levar uma vez que os limites expliacutecitos satildeo raramente conhecidos ou articulados no acircmbito dos estudos

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propriamente ditos21 Nesse sentido as pesquisas etnograacuteficas natildeo satildeo diferentes de tantos outros substratos de narrativas pessoais que intencionalmente ou natildeo deixam obscuro exatamente a funccedilatildeo para a qual a narrativa estaacute a serviccedilo ou quais regras ou generalizaccedilotildees podem ser legitimadas pelas evidecircncias que apresentam

De fato os auditoacuterios de narrativas literaacuterias poderiam considerar esse co-mentaacuterio inoportuno desnecessaacuterio e ateacute mesmo completamente ofensivo Como forma de esclarecer a funccedilatildeo e o real status de casos de narrativa em pesquisa retomamos Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969 p 350) e a sua discussatildeo sobre a confusatildeo a respeito de trecircs funccedilotildees diferentes de ldquocasos particularesrdquo exemplos ilustraccedilotildees e modelos O caso particular que eles mencionam eacute o das revistas ame-ricanas O perfil de celebridade nas revistas tem a seguinte caracteriacutestica

[] descreve a carreira de pessoas de negoacutecios poliacuteticos ou estrelas de cinema sem explicitamente tirar proveito dele Os fatos satildeo evidenciados apenas como uma contribuiccedilatildeo para a histoacuteria ou satildeo uma complementa-ccedilatildeo a ela Os exemplos estatildeo sugerindo uma generalizaccedilatildeo espontacircnea Eles satildeo ilustraccedilotildees de receitas conhecidas para o sucesso social Ou as figuras centrais estatildeo nessas narrativas sendo elevadas a modelos ex-traordinaacuterios a serem imitados pelo puacuteblico Eacute impossiacutevel de ter certeza Provavelmente uma histoacuteria como essa tem a intenccedilatildeo de ndash e com frequ-ecircncia efetivamente fazem ndash satisfazer todos esses papeacuteis para diferentes classes de leitores (PERELMAN OLBRECHTS-TYTECA 1969 p 351)

21 Um dos exemplos recentes mais conhecidos do fenocircmeno que citamos aqui o fato de pesquisador se basear fortemente em evidecircncias e narrativas natildeo comprovadas para estabelecer uma categoria de julgamentos quantitativa sobre o seu tema eacute trabalho de Debora Tannen enquanto a maioria de seus pares no campo da Sociolinguiacutestica baseia a ldquodireccedilatildeordquo de suas descobertas nas diferenccedilas na forma como os homens e mulheres se comunicam alguns se preocupam com a intensidade do impacto e a universalidade dessas diferenccedilas Para concluir a partir das descobertas de que os homens satildeo 5 ou 10 mais propensos do que as mulheres a responder a uma situaccedilatildeo especiacutefica de uma maneira especiacutefica que haacute categoacutericas diferenccedilas nas suas respostas (ou seja que eles tipificam ldquoestilosrdquo de respostas masculinas ou femininas) parece ser exagerado Para anaacutelises retoacutericas mais completas da metodologia de Tannen consultar Ramage (2005)

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A construccedilatildeo do argumento

Dadas as diferenccedilas de escopo de generalizaccedilotildees legitimadas por diferentes tipos de casos particulares o prejuiacutezo que resulta de relatar um caso e entatildeo cui-dadosamente evitar ldquotirar uma liccedilatildeo delerdquo pode ser significativo O caso em ques-tatildeo eacute primeiramente um exemplo que sugere um padratildeo maior mesmo se ajudar a estabelecer a existecircncia desse padratildeo Ou eacute um modelo um ideal inquestionaacutevel que o auditoacuterio deveria desejar Ou talvez seja uma ilustraccedilatildeo de um padratildeo es-tabelecido que eacute aceito como tal Deixar duacutevida a respeito dessa questatildeo eacute dar espaccedilo para se oferecer ostensivamente um evento uacutenico para o entretenimento de um auditoacuterio que eventualmente se torna uma regra imposta a esse auditoacuterio

Ao mesmo tempo em que reconhecemos alguns dos problemas de empregar casos particulares e narrativas pessoais na pesquisa acreditamos que esses proble-mas satildeo sobrevalorizados pelos valores da narrativa pessoal As narrativas pessoais satildeo uma ferramenta de pesquisa uacutetil e tambeacutem uma ferramenta de persuasatildeo po-derosa ndash assim eacute o poder da narrativa pessoal que torna o seu abuso tatildeo perigoso Ao inveacutes de distanciar os alunos das narrativas pessoais entatildeo noacutes defendemos que eles devem ser ensinados a construiacute-las e a criticaacute-las Dito isso voltamo-nos agora para o artigo de Spigelman (1993) e para algumas das preocupaccedilotildees que ela partilha sobre os perigos da narrativa no contexto da escrita persuasiva Iremos entatildeo tentar desenvolver o que a autora comeccedilou a esboccedilar

Spigelman (1993 p 79) estaacute particularmente preocupada com ldquo[] a proble-maacutetica de teste de validade em pesquisas empiacutericasrdquo e cita a questatildeo que Richard Flores levanta a respeito de seu proacuteprio trabalho

Como os meus colegas avaliadores fazem para acessar o meu trabalho acadecircmico que estaacute ligado agrave minha experiecircncia de crescer no Texas sob o olhar atento daqueles cujas visotildees dos mexicanos eram abertamente racistas Os meus colegas poderiam escrever nas suas resenhas que mi-nhas consideraccedilotildees satildeo incorretas e que eu deveria reconsiderar a mi-nha praacutetica (SPIGELMAN 1993 p 79)

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A construccedilatildeo do argumento

Para responder agrave questatildeo levantada por Flores Spigelman (1993) se volta para duas narrativas sobre a escrita uma de uma professora de escrita de uma faculdade comunitaacuteria outra do contista Raymond Carver

As conclusotildees contraditoacuterias a que chegaram os dois escritores ilustram a ldquoproblemaacutetica do teste de validaderdquo pelo menos para aqueles que leem as nar-rativas na esperanccedila de se depararem com insights sobre seu proacuteprio trabalho em oposiccedilatildeo agravequeles que leem por puro entretenimento No caso da professora a maior generalizaccedilatildeo ou alegaccedilatildeo que emerge da histoacuteria aponta para a futilidade de comentar a respeito da escrita dos alunos A afirmaccedilatildeo se baseia na discussatildeo que a professora teve com seu marido a respeito de um texto que ele escreveu durante o ensino meacutedio e obteve a nota 95 sem nenhum comentaacuterio No caso de Carver entretanto a maior generalizaccedilatildeo ou afirmaccedilatildeo que emerge da histoacuteria diz respeito ao feedback detalhado e agrave avaliaccedilatildeo baseada em aulas que ele teve com o romancista John Gardner Como poderia algueacutem avaliar essas duas conclusotildees aparentemente contraditoacuterias a partir de experiecircncia pessoal

Sigelman se volta para a abordagem de James Raymond oriunda das discussotildees de Aristoacuteteles sobre exemplo e entimema Ele direciona a atenccedilatildeo dos alunos para as premissas que subjazem agrave narrativa e agrave questatildeo Em que o leitor deveria acredi-tar para aceitar que os argumentos satildeo persuasivos Spigelman entatildeo expande as anaacutelises de Raymond voltando-se ao paradigma da narrativa de Walter Fisher e a sua assunccedilatildeo sobre as narrativas

[] podem ser avaliadas e criticadas por sua validade ou racionalidade aplicando-se os princiacutepios da probabilidade narrativa o que constitui uma histoacuteria coerente e fidelidade narrativa se as histoacuterias que eles [o auditoacuterio] experienciam conectam realidade com histoacuterias que eles sa-bem serem reais em suas vidas (SIGELMAN 1993 p 80)

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A construccedilatildeo do argumento

Para avaliar a probabilidade narrativa eacute preciso prestar especial atenccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves falas dos personagens agrave medida que o padratildeo de adequaccedilatildeo eacute oriundo das suas accedilotildees e falas anteriores e dos valores que implicam A fidelidade narrativa entretanto demanda que examinemos as suposiccedilotildees subjacentes agraves alegaccedilotildees do escritor a respeito da importacircncia e do significado de sua histoacuteria e confrontemos essas suposiccedilotildees com nossas proacuteprias suposiccedilotildees e com as que partilhamos com outros Quando aplica essa meacutetrica agraves duas histoacuterias Spigelman descobre que a histoacuteria da professora ignora muitas variaacuteveis possiacuteveis que baseadas em suas proacuteprias experiecircncias como professorapesquisadora poderiam explicar bem mais a eventual fluecircncia na escrita de seu marido advogado do que a nota 95 sem comentaacuterios que conseguiu com o seu professor de inglecircs do segundo ano

A pesquisa de Carvey por outro lado parece mais consistente com as suposi-ccedilotildees a respeito do ensino da escrita do que ela partilha com muitos de sua aacuterea e apresenta por conseguinte maior fidelidade narrativa A habilidade de Spigelman em avaliar os dois textos sem paracircmetros impressionistas enfatiza a sua crenccedila de que se pode ensinar a outros como fazer esse trabalho Aleacutem disso como ela enfatiza depois ldquoa narrativa pessoal natildeo questionada e natildeo avaliada eacute sedutora e consequentemente perigosardquo (SPIGELMAN 1993 p 83) e natildeo podemos permitir que natildeo se ensine a escrita pessoal retoricamente constituiacuteda em nossas aulas

Acreditamos que o artigo de Spigelman eacute sugestivo e ao que parece persu-asivo No entanto como ela admite haacute ainda muito trabalho a ser feito no campo da avaliaccedilatildeo de alegaccedilotildees provenientes de experiecircncia pessoal Ainda que sempre possamos avaliar as alegaccedilotildees (quase sempre expliacutecitas) em artigos expositivos com maior grau de certeza do que podemos avaliar em alegaccedilotildees (geralmente taacutecitas) oriundas de exposiccedilotildees pessoais com certeza podemos conseguir um maior grau de confianccedila do que o estado da arte atual permite Talvez a melhor maneira de iniciar o trabalho que resta a ser feito nessa aacuterea seja perceber algumas das limitaccedilotildees dos criteacuterios avaliativos de Spigelman (1993) O primeiro passo eacute considerar a sua principal razatildeo para criticar o trabalho da narrativa pessoal da

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A construccedilatildeo do argumento

professora ndash o seu descuido na fidelidade narrativa A professora tira conclusotildees de sua experiecircncia pessoal sobre a falta de importacircncia do feedback que natildeo coin-cide com as crenccedilas e valores de Spigelman (1993 p 80) ou dos seus colegas A professora parece ldquo[] ignorar mais de vinte anos de pesquisas sobre a escrita em favor de uma nota raacutepidardquo No entanto Spigelman natildeo menciona nada a respeito de ldquomais de vinte anos de pesquisa sobre a escritardquo que subsidiam o que eacute consensual a respeito da importacircncia dos comentaacuterios nos textos dos alunos nem que essa lacuna eacute significativa Certamente haacute um vago consenso a respeito da importacircncia da revisatildeo e do feedback e haacute conhecimento acadecircmico desse consenso mas a) o conhecimento em questatildeo eacute menos unacircnime do que Spigelman sugere tanto na questatildeo sobre para onde os professores devem direcionar seus comentaacuterios quanto a respeito da quantidade de feedback que devem oferecer e b) pouco ou nenhuma dessas pesquisas satildeo muito recentes

Talvez o mais frequentemente citado ensaio sobre a resposta agrave escrita dos alunos Minimal Marking de Haswell (1983) natildeo encoraja a resposta zero mas efetivamente defende uma resposta econocircmica agrave escrita dos alunos Mais pontu-almente os valores e as premissas da obra de Haswell estatildeo muito longe das que motivam as dez revisotildees de Carver de um conto e as respostas cuidadosas de Gard-ner a cada um (HASWELL 1983) O artigo de Haswell (1983) parece assumir que poucos professores de escrita na universidade teriam tempo de oferecer a todos os seus alunos o grau de atenccedilatildeo que Gardner dispensa para Carver e que poucos alunos teriam a habilidade e o compromisso de aproveitar os apontamentos da forma como Carver o faz Para fazer justiccedila com os alunos poucos deles possuem o tipo de vocabulaacuterio teacutecnico requerido por Gardner para processar as observaccedilotildees meticulosas que Gardner faz Em suma o caso de Carver poderia funcionar mais como um exemplo fascinante de uma relaccedilatildeo de aprendizagem entre dois escritores extremamente talentosos do que um exemplo de relaccedilatildeo professor-aluno aplicada a aulas de escrita na graduaccedilatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

Aleacutem disso a maioria das pesquisas a respeito da revisatildeo e do feedback tem vinte anos ou mais em boa parte por causa das ldquovoltas pessoaisrdquo nas pesquisas em escrita agraves quais fizemos alusatildeo anteriormente Independentemente de suas falhas ndash e reconhecemos muitas delas ndash a pesquisa empiacuterica realmente proporcionou aos membros da comunidade da escrita uma base para o consenso nas preocupaccedilotildees baacutesicas da pedagogia como revisatildeo e feedback e hoje muitos de noacutes incluindo os que desdenham a pesquisa empiacuterica continuamos a contar com ela como base para um consenso instruiacutedo contra a ldquoerudiccedilatildeo sofisticadardquo Talvez uma parte do trabalho que mais claramente articula esse consenso o artigo de Hillocks (1984) What Works in Teaching Composition A Meta-analysis of Experimental Treatment Studies tem mais de vinte anos Ele natildeo poderia ser repetido atualmente justamen-te porque natildeo haveria estudos empiacutericos suficientes a respeito do que funciona e do que natildeo funciona na escrita para se chegar a qualquer conclusatildeo significativa

Assim como o artigo pessoal da professora ignora certas variaacuteveis importan-tes que poderiam explicar melhor o desenvolvimento do marido como escritor a anaacutelise comparativa de Spigelman (1993) das duas narrativas tambeacutem ignora certos aspectos que poderiam desempenhar um papel importante na sua avaliaccedilatildeo final Em primeiro lugar ao discutir a fidelidade narrativa ela trata o padratildeo de julgamento ndash ldquo[] as histoacuterias que [noacutes] sabemos serem verdadeiras nas [nossas] vidasrdquo (SPIGELMAN 1993 p 80) e os valores e crenccedilas partilhados em nossa comunidade ndash como relativamente natildeo problemaacuteticos Ela dispensa pouco tempo para justificar esse padratildeo e foca a sua avaliaccedilatildeo nas falhas dos valores impliacutecitos na histoacuteria da professora para combinar com o padratildeo que ela traz agrave tona No en-tanto como Fulkerson (2005) deixa claro a nossa proacutepria comunidade eacute menos homogecircnea do que era e hoje poucos de noacutes nos sentiriacuteamos confiantes de que nossas proacuteprias praacuteticas valores e crenccedilas coadunam com a maioria dos outros da aacuterea No lugar desse consenso os criacuteticos de uma narrativa pessoal devem se basear mais profundamente nas histoacuterias que sabem serem reais em suas proacuteprias

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A construccedilatildeo do argumento

vidas para o julgamento Para contabilizar as alegaccedilotildees impliacutecitas questionaacuteveis em uma narrativa eles satildeo provavelmente incentivados a basear suas contra-alegaccedilotildees em suas experiecircncias algo que Spigelman natildeo faz e talvez sabiamente Mesmo natildeo sendo algo ruim a praacutetica de responder a narrativas com narrativas significa que nossas alegaccedilotildees seratildeo dotadas de menos certeza e nossa evidecircncia de menor autoridade do que se pudeacutessemos evocar uma visatildeo consensual

Um segundo aspecto natildeo salientado na anaacutelise de Spigelman diz respeito agrave desproporcionalidade entre a autoridade de suas duas fontes Eacute inevitaacutevel que natildeo se preocupe com o papel que o ethos desempenha na sua avaliaccedilatildeo dos dois relatos e da nossa proacutepria resposta ao seu julgamento O relato pessoal de uma professo-ra universitaacuteria sobre seu marido eacute contrastado com o relato pessoal de um dos mais ilustres representantes da literatura americana do final do seacuteculo XX e seu igualmente ilustre mentor De certa forma Carver e Gardner satildeo o tipo de pessoas ndash ldquomodelosrdquo nas palavras de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969) ndash cujos atos satildeo autoautorizados na medida em que eles definem ideais que os meros mortais se esforccedilam para alcanccedilar Se um professor universitaacuterio viola uma norma consen-sual da comunidade temos menos tendecircncia a questionar nossas normas do que a pessoa mas se uma figura importante viola a mesma norma podemos nos voltar para a questatildeo ou ignorar essa norma O ethos que atribuiacutemos a escritores do cali-bre de Carver e Gardner tem mais a ver com uma funccedilatildeo do que com sua essecircncia

O ethos desses escritores como o de todo escritor depende muito da qualidade de sua escrita apresentada no texto especiacutefico que estaacute sendo avaliado A qualida-de da prosa de Carvey eacute muito boa Apresenta histoacuterias ardilosamente complexas contadas de maneira direta quase de maneira espontacircnea Enquanto noacutes tende-mos a concordar com Spigelman e outros que a qualidade da prosa Carver se deve mais ao trabalho consciente e minucioso (veja as suas dez revisotildees) do que a um dom misterioso tambeacutem percebemos que poucos escritores por quaisquer razotildees que sejam produzem um trabalho de qualidade comparaacutevel Muitos efetivamen-

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A construccedilatildeo do argumento

te tentam escrever narrativas pessoais com os modelos de Carver em mente Na verdade muito mais pessoas sentem-se compelidas a escrever narrativas pessoais do que a lecirc-las

A distacircncia entre quem escreve e quem ler na universidade tem a ver com a promessa ilusoacuteria de que a escrita pessoal eacute destinada agraves pessoas cansadas de trabalhar com a impessoalidade e serve para falar sobre assuntos que natildeo satildeo de sua proacutepria escolha em liacutenguas que natildeo suas seguindo roteiros que natildeo satildeo criaccedilotildees suas ndash o que diz respeito ao que eacute feito no mundo todo dia Voltar-se para a narrativa pessoal garante agraves pessoas uma oportunidade de dizer o que importa a elas sobre assuntos de sua proacutepria escolha na sua liacutengua materna seguindo ro-teiros tatildeo perfeitamente assimilados atraveacutes dos anos que eles natildeo sentem que satildeo roteiros No entanto como o espaccedilo entre o escritor e o leitor na narrativa pessoal eacute sugerido a promessa permanece ilusoacuteria Narrativas pessoais satildeo relativamente faacuteceis de escrever mas narrativas pessoais legiacuteveis satildeo difiacuteceis de escrever e nar-rativas pessoais engajadas satildeo muito mais difiacuteceis de escrever

Exemplos de narrativas pessoais ruins estatildeo agrave nossa volta nas universidades nas salas de aula e ateacute mesmo nas listas de best-sellers Elas satildeo certamente ruins de diferentes maneiras As piores narrativas pessoais de nossos alunos tendem a ser natildeo muito coerentes releituras de mitos populares natildeo muito plausiacuteveis textos de 750 palavras para um anuacutencio da MasterCard A pior das narrativas pessoais de um colega por sua vez tende a apresentar homilias religiosas contos previsiacute-veis lentos que terminam com uma admiraacutevel se natildeo oacutebvia moral Ao ler essas palavras as pessoas se lembram de que a liberdade da narrativa pessoal tem um preccedilo significativo e uma boa parte desse preccedilo eacute a obrigaccedilatildeo nas palavras do famoso ditado de Henry James ldquoacima de tudo ser interessanterdquo Para que natildeo nos desanimemos com a leitura dos piores trabalhos de nossos colegas e alunos ler os seus melhores trabalhos ndash para natildeo mencionar aqueles de pessoas como Raymond Carver ndash nos lembraraacute por que eacute tatildeo importante continuar tentando

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A construccedilatildeo do argumento

Essas satildeo apenas duas das muitas complicaccedilotildees que enfrentamos ao propor avaliar alegaccedilotildees oriundas das narrativas pessoais Com a ajuda de Spigelman ape-nas comeccedilamos a separar os problemas Qualquer padratildeo que eventualmente seja desenvolvido para nos ajudar a fazer julgamentos plausiacuteveis nos pareceraacute razoaacutevel Noacutes devemos desenvolver esse padratildeo Haacute algumas verdades que apenas podem ser descobertas ou adequadamente justificadas por meio da narrativa pessoal Satildeo tipos de verdades muito importantes para serem excluiacutedas das aulas de escrita argumentativa em nome da rejeiccedilatildeo ao retorno do ensino da escrita como terapia

retoacuteriCa proCessual

Quando trecircs possibilidades satildeo exploradas por um estudioso da escrita a ter-ceira eacute frequentemente a escolhida seja por devoccedilatildeo agrave ordem nestoriana ou pelas lembranccedilas de Cachinhos Dourados de deixar as coisas ldquoexatamenterdquo nessa esco-lha Eacute evidente que Fulkeson (2005) estaacute mais agrave vontade para discutir e elaborar a seu proacuteprio tertium quid ldquoabordagem retoacuterica processualrdquo Por isso ele inicia a discussatildeo da abordagem citando um documento da associaccedilatildeo Council of Writing Program Administrators (WPA)22 ldquo[] oficialmente aprovado pelo corpo de pessoas que efetivamente dirigem os programasrdquo (FULKESON 2005 p 670) A declaraccedilatildeo de ldquoresultadosrdquo da WPA enfatiza Fulkeson (2005) em sua maior parte exclui os objetivos da ECC e as abordagens expressivas dos resultados esperados e focaliza os objetivos retoacutericos tradicionais O autor acrescenta ainda que a desatenccedilatildeo agrave retoacuterica processual nos principais jornais tem mais a ver com a natureza estabe-lecida com o status quo da abordagem do que com qualquer falha inerente a ela Como ele sugere a argumentaccedilatildeo pode parecer uma das abordagens dominantes

22 NT A WPA eacute uma associaccedilatildeo de escritores profissionais que defendem e sediam conferecircncias workshops e programas acadecircmicos A organizaccedilatildeo representa professores e pesquisadores cujo enfoque acadecircmico satildeo os aspectos intelectuais e pedagoacutegicos do planejamento do ensino da escrita e de sua gestatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

efetivamente ensinadas na sala de aula Em adiccedilatildeo agrave argumentaccedilatildeo ele menciona duas outras abordagens retoacutericas sob esse tiacutetulo geral ldquo[] a escrita baseada em gecircneros e a escrita como introduccedilatildeo ao discurso de uma comunidade acadecircmicardquo (FULKESON 2005 p 671)

A escrita baseada em gecircneros recebe grande atenccedilatildeo acadecircmica Para que natildeo seja confundida com as antigas abordagens de gecircnero ou com seus parentes mais temidos os ldquotiposrdquo (narraccedilatildeo descriccedilatildeo processo etc) eacute consideravelmente mais flexiacutevel e teoricamente mais sofisticada Oriunda em parte de Bakhtin e de antro-poacutelogos como Clifort Geertz essa abordagem foi adaptada para o trabalho com a escrita por vaacuterios teoacutericos da comunicaccedilatildeo e da escrita Em particular o artigo de Miller (1984) Genre as Social Action (Gecircnero como accedilatildeo social) eacute frequentemente citado por acadecircmicos da nossa aacuterea juntamente com os trabalhos subsequentes de Carol Berkenkotter e Thomas Huckin Aviva Freedman e Peter Medway A definiccedilatildeo de gecircnero de Miller (1984 p 164) desenvolvida para descrever especificamente os gecircneros orais eacute ldquo[] contextualsituacional [] e oposta agrave ideia anterior de gecircnero como uma formafunccedilatildeordquo A relaccedilatildeo entre os membros de uma classe de gecircneros eacute entendida como mais familiar do que homogecircnea A abordagem de gecircnero assume que a maioria dos eventos de escrita acontece em situaccedilotildees recorrentes As simi-laridades dessas situaccedilotildees no que tange a assuntos objetivos e audiecircncia criam discursos muito parecidos adaptados agraves especificidades da situaccedilatildeo

Dessa forma estamos muito distantes dos tipos que satildeo antes de tudo for-mas estruturais Tem-se pouca noccedilatildeo sobre o propoacutesito de um texto descritivo ou narrativo ou sobre o auditoacuterio para o qual satildeo dirigidos Geralmente o que se sabe eacute apenas o que se passa Enquanto a abordagens baseada em gecircneros natildeo necessa-riamente exclui as consideraccedilotildees formais ela inverte a ordem da abordagem tradi-cional do tipo Ao inveacutes de comeccedilar pela assunccedilatildeo de que a forma motiva a escrita comeccedila-se a olhar para as situaccedilotildees recorrentes que datildeo origem e condicionam as escolhas formais ndash e outros inuacutemeros tipos de escolhas ndash que os escritores fazem

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A construccedilatildeo do argumento

em uma dada situaccedilatildeo para determinar qual ldquofamiacuteliardquo de escolhas formais podem ser adequadas Por causa do foco em situaccedilotildees recorrentes a audiecircncia ldquotiacutepicardquo para um dado gecircnero gera determinadas expectativas a respeito da resposta apro-priada e os escritores devem trabalhar com essas expectativas satisfazendo-as ou habilidosamente desrespeitando-as para obter um maacuteximo efeito

Assim como a abordagem ECC a abordagem de gecircnero enfatiza a importacircncia de ler cuidadosamente os modelos textuais dos gecircneros que os alunos devem pro-duzir Como a ECC ela ldquo[] presume que os textos satildeo socialmente construiacutedos em relaccedilotildees intertextuaisrdquo (MILLER 1984 p 165) Para compreender a instacircncia de um gecircnero eacute preciso ter natildeo apenas informaccedilotildees formais a respeito desse gecircnero mas compreensatildeo substancial da sua importacircncia ou modelos paradigmaacuteticos que escritores e audiecircncia devem ter em mente ao escrever ou interpretar qualquer instacircncia especiacutefica do gecircnero Enquanto a abordagem de gecircnero enfrenta alguns dos perigos que os cursos de ECC enfrentam quando se pesa a atenccedilatildeo dispensa-da aos textos e a atenccedilatildeo dispensada aos processos dos alunos o foco retoacuterico da abordagem assegura que atividades de interpretaccedilatildeo realizadas em sala devem se traduzir mais diretamente na construccedilatildeo do texto do aluno

Diante disso a abordagem baseada em gecircnero talvez seja a mais faacutecil entre as abordagens alternativas para se unir ao foco no argumento A compreensatildeo do argumento na abordagem baseada em gecircnero eacute desenvolvida em praticamente todas as principais abordagens da argumentaccedilatildeo e nos principais livros didaacuteticos do assunto A Stasis Theory na verdade eacute uma teoria de gecircnero segundo a maneira de entender por grande parte dos teoacutericos contemporacircneos A maioria das Stasis eacute derivada indutivamente dos tipos de situaccedilotildees recorrentes e dos objetivos recor-rentes dos locutores nessas situaccedilotildees O valor da Stasis como qualquer abordagem baseada em gecircnero natildeo eacute o fato de que ela dita uma estrutura especiacutefica mas o de permitir que se antecipem as respostas do auditoacuterio e dos pontos importante na construccedilatildeo de um argumento Natildeo se trata exatamente de uma forma preacute-fabricada

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A construccedilatildeo do argumento

que surge de uma preocupaccedilatildeo com a Stasis em questatildeo ndash ainda que dependendo do contexto do argumento uma forma preestabelecida pode ser necessaacuteria ndash mas de uma seacuterie de movimentos adaptados agraves especificidades da situaccedilatildeo

Ensinar em um curso de escrita baseado no argumento usando a Stasis theory tambeacutem permite que se adapte mais rapidamente agrave abordagem ldquoescrita como intro-duccedilatildeo ao discurso de uma comunidade acadecircmicardquo Nesse sentido Fulkeron (2005 p 672) cita a posiccedilatildeo de Gerald Graff em Clueless in Academe segundo a qual ldquo[] todo discurso acadecircmico eacute um argumento caracterizado por certos lsquomovimentosrsquo intelectuais preferidos que poderiam ser explicitamente compartilhados com os estudantesrdquo O estudante que entende o argumento como semelhante a uma seacuterie de movimentos realizados em resposta a uma Stasis que pede uma alegaccedilatildeo causal ou avaliativa tem pouca dificuldade em se adaptar a uma abordagem que enfa-tiza os modos particulares como um socioacutelogo entende avaliaccedilatildeo ou um quiacutemico entende causalidade

Dito isso a escrita como introduccedilatildeo ao discurso de uma comunidade acadecircmica eacute problemaacutetica por uma seacuterie de razotildees Como diz Fulkerson (2005) essa abor-dagem tem sido criticada por focalizar certos valores e padrotildees que favorecem os estudantes brancos da classe meacutedia De fato ela tem estado sob crescente ataque nas disciplinas nos uacuteltimos anos Aleacutem disso as dificuldades praacuteticas de introduzir os estudantes ao discurso acadecircmico geneacuterico trazem alguns problemas para o professor Indubitavelmente o melhor lugar para se aprender o discurso acadecircmico eacute a comunidade onde ele eacute usado Por que perder tempo em querer saber habilidades e competecircncias que natildeo podem ser transpostas para outras disciplinas Deixemos que essas disciplinas ensinem os estudantes a forma apropriada de escrever Para aprender como escrevem psicoacutelogos fiacutesicos ou cientistas poliacuteticos precisariacuteamos aprender o vocabulaacuterio a metodologia e o raciociacutenio reconhecido pelos membros de cada uma dessas comunidades o que eacute uma atividade impossiacutevel para uma uacutenica aula Na realidade na medida em que se compreende que a funccedilatildeo preciacutepua de um curso de escrita do primeiro ano eacute apresentar os alunos ao discurso acadecircmico natildeo

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A construccedilatildeo do argumento

se pode exigir mais que isso Os membros do chamado movimento ldquoabolicionistardquo um movimento que reivindica a extinccedilatildeo da escrita do primeiro ano e em alguns casos da extinccedilatildeo de cursos de escrita no primeiro constantemente mencionam a ausecircncia de convenccedilotildees e normas disciplinares nessas aulas como razatildeo para extingui-las

Embora natildeo tenhamos tempo ou espaccedilo neste trabalho para apresentar um exemplo completo de ensino de argumento em aulas de escrita como um antiacutedoto para os vaacuterios males mencionados pelos abolicionistas podemos perceber nas entrelinhas que seus argumentos apresentam as mesmas fragilidades que Burke (1941 p 171) observa nos argumentos vagos como testemunham as falhas que ele encontra em The Folklore of Capitalism (O folclore do capitalismo) de Thurman W Arnold ldquoPara atacar as sustentaccedilotildees subjacentes dos argumentos de seus opositores ele aperfeiccediloa um modelo de argumento que poderia se levado a cabo consistentemente tambeacutem atacar as sustentaccedilotildees subjacentes aos seu proacuteprio argumentordquo Dessa forma se algueacutem rejeitar a importacircncia da escrita no primeiro ano de todos os outros cursos universitaacuterios poder-se-ia com a mesma funda-mentaccedilatildeo negar a importacircncia da retoacuterica para o argumento em todas as outras disciplinas Realmente o que eacute mais surpreendente a respeito do renascimento da retoacuterica nos uacuteltimos anos eacute o ganho que esses estudos trouxeram para as pessoas em outros campos notadamente a Biologia e a Economia para reavaliar a sua proacutepria praacutetica argumentativa Pela mesma razatildeo a importacircncia da retoacuterica para outras disciplinas por meio do programa Escrita atraveacutes do curriacuteculo (em inglecircs Writting across curriculumndash WAC) proporcionou a muitos professores de outras disciplinas revisar suas abordagens de ensino de escrita Embora obviamente a escrita e a retoacuterica sejam sempre em certa medida atividades secundaacuterias melhor compreendidas como escrita sobre algo e retoacuterica de alguma coisa essa obviedade natildeo contradiz a natureza transdisciplinar dessas atividades a existecircncia de grandes semelhanccedilas e coincidecircncias entre as suas vaacuterias aplicaccedilotildees e a capacidade tanto de uma como de outra de alterar as coisas agraves quais se ligam Aleacutem disso mesmo

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A construccedilatildeo do argumento

que os abolicionistas estivessem corretos em sua perspectiva sobre a irrelevacircncia da escrita baacutesica para a escrita acadecircmica por exemplo ainda haacute uma loacutegica pode-rosa para o ensino da escrita como ldquodiscurso ciacutevicordquo uma capacidade que prepara os alunos para cumprir seus deveres como cidadatildeos ao inveacutes de preparaacute-los para escrever academicamente

ensinar ou natildeo ensinar propaganda

Por muitos anos os professores de escrita compreensivelmente se esqui-varam de usar o termo ldquopropagandardquo em sala de aula e mais ainda de ensinar aos alunos o que o termo poderia significar No uso comum trata-se mais de um termo pejorativo do que descritivo Virtualmente a uacutenica vez em que se ouviu o termo sendo invocado foi no contexto de uma demissatildeo partidaacuteria ldquoElesrdquo usam propaganda enquanto ldquoNoacutesrdquo oferecemos argumentos razoaacuteveis O termo parece causar muito alarde para uma anaacutelise corrente da persuasatildeo O clima atual natildeo eacute inteiramente saudaacutevel para lidar com questotildees pesadas como a propaganda na sala de aula No nosso estado do Arizona por exemplo um projeto de lei que corre no legislativo quer proibir professores de ensino meacutedio e superior de se valer de posiccedilotildees poliacutetico-partidaacuterios em sala de aula Mesmo natildeo sendo claro o que eacute um comentaacuterio ldquopartidaacuteriordquo os alunos poderiam ser estimulados a denunciar o que eles percebem como ofensas e as autoridades poderiam entatildeo resolver o caso com os acusados O projeto eacute aparentemente semelhante aos apresentados em outros estados na esteira de protestos de pessoas como David Horowitz Dinesh DrsquoSousa e Ann Coulter que alegam que a ldquolavagem cerebralrdquo liberal se tornou comum nas escolas puacuteblicas americanas Pouco importa que em ambientes como esse as pessoas poderiam relutar em analisar atos particulares de discurso poliacutetico como sendo possivelmente propagandiacutesticos

Dito isso a propaganda apresenta um cenaacuterio muito real de praacuteticas persuasi-vas que estatildeo em certa medida presentes em muitos argumentos aparentemente

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A construccedilatildeo do argumento

natildeo propagandiacutesticos Como visto anteriormente em nosso contiacutenuo de praacuteticas de argumentaccedilatildeo natildeo existe praacutetica pura de persuasatildeo no mundo real e alguns elementos das piores praacuteticas persuasivas podem ser encontrados ainda que fracos nas melhores Nossa habilidade em detectar essas praacuteticas no trabalho com qual-quer argumento e confrontaacute-las com os piores argumentos eacute cada vez mais criacutetica Natildeo haacute duacutevidas de que estamos mal preparados para lidar com a propaganda de um modo racional especialmente porque a dinacircmica da persuasatildeo na propaganda natildeo eacute amplamente compreendida ndash ou ainda pior essa dinacircmica eacute largamente mal compreendida ndash e recebe pouca atenccedilatildeo na sala de aula

Para ser mais especiacutefico o uso dessas praacuteticas tem aumentado significativa-mente nos uacuteltimos anos na medida em que a miacutedia tem assumido novas formas mais adequadas agrave dinacircmica da propaganda A tentaccedilatildeo de usaacute-la tem sido intensi-ficada em uma sociedade em que se propaga a ideia de que ldquoo vencedor leva tudordquo e a resistecircncia a isso tem sido enfraquecida pelo sistema puacuteblico de educaccedilatildeo cada vez menos comprometido com o ensino do letramento criacutetico e cada vez mais com-prometido com o ensino que prepara para exames padronizados

Antes de comeccedilar a analisar exatamente o que a propaganda eacute vamos ver o que ela natildeo eacute Vamos fazer isso porque acreditamos que os erros conceituais a respeito da propaganda a que aludimos anteriormente ainda satildeo as maiores barrei-ras para uma compreensatildeo contemporacircnea do fenocircmeno Um dos equiacutevocos mais recorrentes eacute a crenccedila de que a propaganda eacute majoritariamente uma ferramenta de um estado totalitaacuterio A Alemanha nazista a China comunista a Coreia do Nor-te a antiga Uniatildeo Sovieacutetica o Iraque na eacutepoca de Sandam Russein ndash na cabeccedila da populaccedilatildeo esses satildeo os modelos de uso da propaganda Em nome do controle da populaccedilatildeo os monopoacutelios midiaacuteticos dirigidos pelo estado alimentam um fluxo constante de ldquoverdades oficiaisrdquo muacutesicas motivadoras e mensagens pessoais de seus ldquoqueridos liacutederesrdquo do povo ldquoDocumentaacuteriosrdquo que apresentam os inuacutemeros triunfos do Estado satildeo artisticamente construiacutedos com a finalidade de fundir os liacutederes poliacuteticos com os seus mitos Outdoors e cartazes por toda parte apresen-

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A construccedilatildeo do argumento

tam imagens de liacutederes e citaccedilotildees de heroacuteis do passado Os cidadatildeos satildeo levados a participar de celebraccedilotildees organizadas em torno de exibiccedilotildees de forccedilas militares Aqueles que natildeo satildeo receptivos agraves mensagens das propagandas satildeo encaminhados para instituiccedilotildees governamentais para serem ldquoreabilitadosrdquo As fronteiras satildeo her-meticamente fechadas para que os cidadatildeos natildeo possam buscar as suas proacuteprias verdades fora disso e para prevenir que ldquoagitadores estrangeirosrdquo mostrem histoacute-rias alternativas Mesmo que esse modelo seja historicamente preciso e em alguns casos como na Coreacuteia do Norte ainda esteja em vigor hoje eacute simplesmente muito custoso mantecirc-lo mesmo para um ditador mais determinado Aleacutem disso com o advento da Internet eacute praticamente impossiacutevel policiar a expressatildeo de opiniotildees Hoje em dia a propaganda eacute ao mesmo tempo mais difundida e menos oacutebvia do que era no passado

o Que eacute propaganda burke e ellul

No final desta seccedilatildeo vamos deixar resumidamente algumas das caracte-riacutesticas principais da propaganda para que as pessoas as reconheccedilam e possam entender melhor seu impacto negativo No entanto neste momento vamos re-troceder um pouco e dar uma olhada mais acurada na propaganda tendo como nossos guias dois pensadores que na nossa opiniatildeo oferecem as mais profundas anaacutelises retoacutericas do fenocircmeno Kenneth Burke especialmente em seu ensaio de 1941 Rhetoric and Hitlerrsquos Battle e o filoacutesofo social francecircs Jacques Ellul Talvez o ponto de partida mais uacutetil para essa anaacutelise seja a distinccedilatildeo de Burke (1966) entre retoacuterica realista e retoacuterica maacutegica a que aludimos no primeiro capiacutetulo Ao fazer essa distinccedilatildeo Burke (1966) enfatiza a capacidade realista da retoacuterica de ldquoinduzir a cooperaccedilatildeordquo entre as pessoas em oposiccedilatildeo ao poder maacutegico da linguagem de ldquoprovocar o movimento nas coisasrdquo (BURKE 1966 p 42) Burke rejeita essa visatildeo maacutegica da linguagem com base no fato real de que o domiacutenio extraverbal ao mesmo tempo em que depende da linguagem para a sua compreensatildeo e entendimento eacute

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A construccedilatildeo do argumento

independente da linguagem na medida em que ele tem o poder de contrariar nos-sas perspectivas linguiacutesticas sobre ele Apenas para lembrar Burke natildeo faz isso

A propaganda pode ser compreendida nesse contexto como uma tentativa de reduzir as audiecircncias a um estado de coisificaccedilatildeo para nelas ldquoinduzir o movimen-tordquo que satisfaz as necessidades do anunciante Com esse fim o empreendimento da propaganda eacute altamente redutor reduz a audiecircncia ao menor denominador e apela para os elementos baacutesicos do caraacuteter humano infantiliza a audiecircncia ao en-fatizar a onisciecircncia divina do anunciante e o poder que ele tem para garantir sua seguranccedila limita o acesso da audiecircncia agraves informaccedilotildees e aos contra-argumentos excluindo-os do apelo propaganda descaracterizando-os ou impedindo que os concorrentes os conheccedilam

O resultado de tudo isso de acordo Ellul (1973) eacute o que ele chama de ldquoorto-praxiardquo Como o seu primo etimoloacutegico ortodoxia a ortopraxia se refere mais ou menos a um nuacutemero de crenccedilas sem reflexatildeo mas na medida em que a ortopra-xia indica um vasto motor inconsciente de resposta a estiacutemulos que ldquodatildeo curto--circuito em todos os pensamentos e decisotildeesrdquo (ELLUL 1973 p 27) ela vai muito aleacutem da ortodoxia Na verdade a ortopraxia eacute mais reconhecida por fazer ldquo[] o indiviacuteduo viver em um mundo separado ele natildeo pode ter referecircncias exteriores A ele natildeo eacute permitido um momento de meditaccedilatildeo ou reflexatildeo a respeito de como se vecircrdquo (ELLUL1973 p 17) Como jaacute sugerimos os meios tradicionais de alcanccedilar esse objetivo dados os aportes massivos de dinheiro e matildeo de obra necessaacuterios natildeo satildeo mais vistos como viaacuteveis para a maioria dos governos Nos dias de hoje como veremos versotildees menos draconianas disso podem ser feitas relativamente de forma mais faacutecil com muito menos investimentos de recursos

Neste ponto do nosso texto natildeo precisamos mais fazer uma introduccedilatildeo a Burke Jacques Ellul provavelmente precisa Seu trabalho mais relevante Propa-ganda The Formation of Menrsquos Attitudes (Propaganda A Formaccedilatildeo das Atitudes do

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A construccedilatildeo do argumento

Homem) foi escrito em 196223 mas ainda permanece indiscutivelmente como o trabalho mais completo e racional sobre o assunto disponiacutevel para os estudantes de retoacuterica especialmente pela sua explicaccedilatildeo de como as forccedilas sociais modernas interagem para nos tornar mais vulneraacuteveis aos apelos da propaganda Certa-mente vaacuterias das tendecircncias que ele menciona nesse estudo como responsaacutevel pelo crescimento da propaganda em meados do seacuteculo XX ainda satildeo evidentes atualmente Particularmente ele sugere que um sistema educacional que ensina as pessoas a ler mas natildeo a pensar criticamente eacute um preacute-requisito para a difusatildeo da propaganda Em certa medida isso eacute muito simples porque uma populaccedilatildeo alfabetizada ndash mas natildeo criacutetica ndash eacute necessaacuteria para a formaccedilatildeo de uma miacutedia de massa a serviccedilo da propaganda Nesse sentido a criacutetica de Ellul agrave educaccedilatildeo anteci-pa a criacutetica de Paulo Freire nos anos 1970 que ajudou a estabelecer o movimento de letramento criacutetico Uma das maiores diferenccedilas entre os dois pensadores e o nosso ponto de divergecircncia em relaccedilatildeo a Ellul eacute o recente ceticismo em relaccedilatildeo agrave ldquoeducaccedilatildeo de massardquo e a sua capacidade de se autorreformar Em geral a atitude de Ellul com ldquoas massasrdquo expressa sua posiccedilatildeo como um homem do seu tempo e do lugar onde viveu

Entatildeo o que eacute propaganda Ellul (1973 p 61) apresenta a seguinte definiccedilatildeo que natildeo ajuda muito na nossa perspectiva

A propaganda eacute um conjunto de meacutetodos empregados por um grupo or-ganizado que quer promover a participaccedilatildeo ativa ou passiva nas suas accedilotildees de uma massa de indiviacuteduos psicologicamente unidos por meio de manipulaccedilotildees psicoloacutegicas e inseridos em uma organizaccedilatildeo

23 a ediccedilatildeo usada neste trabalho eacute a de 1973

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A construccedilatildeo do argumento

Natildeo nos deteremos nessa definiccedilatildeo mas podemos fazer uma observaccedilatildeo A definiccedilatildeo de Ellul aparentemente poderia ser estendida para incluir questotildees como a doutrinaccedilatildeo dos consumidores pelos anunciantes e marqueteiros No entanto o seu estudo enfatiza a propaganda poliacutetica caminho que tambeacutem percorremos em nossa discussatildeo Seguimos esse caminho mesmo que como demonstraremos a seguir as praacuteticas e teacutecnicas dos publicitaacuterios e marqueteiros se sobrepotildeem mais e mais publicitaacuterios emergem da publicidade do marketing e das relaccedilotildees puacuteblicas e a persuasatildeo implacaacutevel na esfera do consumo por certo torna as pessoas mais suscetiacuteveis aos apelos da propaganda na esfera puacuteblica Isso posto os objetivos e os impactos dos que oferecem elementos de convencimento em nome de produtos e os que oferecem elementos persuasivos em nome de causas poliacuteticas satildeo signi-ficativamente diferentes

A maior diferenccedila entre as duas esferas tem a ver com o fato de que a esfera do consumo pelo menos no niacutevel das escolhas individuais eacute essencialmente amoral ao passo que a esfera poliacutetica em todos os niacuteveis eacute essencialmente moral A seme-lhanccedila entre as esferas poliacutetica e moral recebeu grande atenccedilatildeo mais recentemente de Lakoff (2002 p 41) que parte da premissa de que ldquo[] as perspectivas poliacuteti-cas satildeo derivadas de sistemas de conceitos moraisrdquo e exaustivamente explora as implicaccedilotildees dessa assunccedilatildeo para a poliacutetica americana contemporacircnea Por traacutes de questotildees sobre cuidados com a sauacutede aborto seguranccedila social tributaccedilatildeo entre outras haacute questotildees fundamentais sobre justiccedila e felicidade e sobre o caraacuteter sagra-do da vida Na medida em que nos distanciamos das questotildees morais e poliacuteticas e priorizamos a escolha entre marcas concorrentes de cerveja trivializamos essas questotildees e potencialmente alienamos os cidadatildeos acerca do processo poliacutetico

O ponto mais relevante de Lakoff (2002) poreacutem natildeo eacute tanto o fato de que a dimensatildeo moral da poliacutetica eacute ignorada nos uacuteltimos anos mas o fato de que a dimensatildeo moral da poliacutetica tem sido grosseiramente muito simplificada a fim de que se manipulem as audiecircncias de uma forma que ao nosso ver parece ser propagandisticamente Para que as questotildees morais digam algo corretamente agraves

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A construccedilatildeo do argumento

questotildees poliacuteticas a perspectiva moral predominante deve ser suficientemente inclusiva para assegurar que qualquer posiccedilatildeo moral importante seja ouvida e que um consenso moral nasccedila de algum tipo de processo dialeacutetico Na medida em que o discurso poliacutetico na esfera puacuteblica eacute dominado por um uacutenico conjunto de valores morais que natildeo tolera oposiccedilatildeo e na medida em que em contrapartida esses valores natildeo satildeo vistos como um fim em si mesmos mas muito mais como meios de controlar aqueles que se filiam a eles e de se atingir objetivos poliacuteticos a qualidade das nossas decisotildees poliacuteticas e a precisatildeo de nossas sensibilidades poliacuteticas sofreratildeo igualmente

Embora a definiccedilatildeo de propaganda de Ellul (1973) abarque o uso de ldquomani-pulaccedilotildees psicoloacutegicasrdquo como parte do empreendimento da propaganda conforme acabamos de descrever natildeo se estende automaticamente para a praacutetica de mentir De fato a crenccedila de que uma mensagem deve ser intencionalmente natildeo verdadeira para qualificar como propaganda eacute umas das maiores barreiras para o seu reco-nhecimento Embora os profissionais de propaganda possam por vezes recorrer agrave propagaccedilatildeo da ldquodesinformaccedilatildeordquo os riscos de serem apanhados numa grande mentira satildeo suficientemente grandes para desencorajar a disseminaccedilatildeo de uma mentira em larga escala A mensagem ideal da propaganda deveria ser plena de informaccedilotildees precisas e rica em insinuaccedilotildees especulativas repetidas constante-mente em um longo periacuteodo de tempo ateacute que as insinuaccedilotildees assumam o status de fatos Na linguagem dos anunciantes antigos ldquorepeticcedilatildeo eacute reputaccedilatildeordquo uma foacutermula que funciona muito por causa da nossa tendecircncia de confundir familiaridade com convicccedilatildeo o ldquofilme dos costumesrdquo como verdade

Novamente tomando emprestado o pensamento de Lakoff (2002) a propagan-da eacute mais uma questatildeo de ldquoconstruirrdquo informaccedilatildeo de forma a induzir as pessoas a delinearem as conclusotildees desejadas do que uma questatildeo de prover as pessoas com as informaccedilotildees que faltam e isolaacute-las da informaccedilatildeo verdadeira Essa construccedilatildeo eacute tipicamente concebida como uma seleccedilatildeo cuidadosa de um vocabulaacuterio que faz um prejulgamento das questotildees discutidas As implicaccedilotildees metafoacutericas taacutecitas da

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A construccedilatildeo do argumento

escolha de palavras vatildeo direcionar a audiecircncia para a direccedilatildeo desejada Usando um dos exemplos favoritos de Lakoff conceber uma discussatildeo de poliacutetica tributaacuteria sob a rubrica de ldquoaliacutevio fiscalrdquo em oposiccedilatildeo a ldquocortes de impostosrdquo implica que os impostos satildeo uma carga opressiva sobre os contribuintes Embora possa haver um limite a respeito do tamanho do ldquocorterdquo que querem fazer nos impostos natildeo haacute limite quanto agrave questatildeo de saber a medida que algueacutem pode pedir no ldquoaliacuteviordquo de impostos

Para nossos propoacutesitos esse enquadramento pode ser estendido de questotildees de vocabulaacuterio e metaacutefora para o meio atraveacutes do qual a mensagem eacute recebida Nas miacutedias altamente sofisticadas de hoje em dia essas questotildees satildeo literalmente construiacutedas pelo cenaacuterio em que satildeo apresentadas Para mencionar um exemplo atual Hannity and Colmes um programa de notiacutecias do canal Fox apresenta um ponto de vista ldquoequilibradordquo (Hannity) por intermeacutedio de um ponto de vista liberal (Colmes) No entanto mesmo uma visatildeo superficial do programa pode convencer alguns de que uma matildeo pesada perturba o equiliacutebrio Hannity tem a aparecircncia de um acircncora de jornal Eacute um sujeito vigoroso agitado muito seguro que domina seu suposto inimigo liberal Colmes um sujeito fuacutenebre com aparecircncia de um apresentador de previsatildeo do tempo e tendecircncia a balbuciar que frequentemente apresenta argumentos de forma melancoacutelica e pessimista Raramente Colmes faz muitos pontos nas discussotildees muito menos consegue muitas vitoacuterias Natildeo eacute preciso ldquomentirrdquo nesse formato porque verdades ineficazes funcionam bem

Na construccedilatildeo da informaccedilatildeo os profissionais da propaganda podem distorcer o significado exagerar ou amenizar as suas implicaccedilotildees futuras obscurecer ou disfarccedilar as intenccedilotildees do falante ou atribuir motivaccedilotildees duvidosas geralmente as menos apresentaacuteveis aos seus adversaacuterios (ELLUL 1973) Como alguns programas de TV populares os profissionais da propaganda adoram ldquoestampar histoacuterias nas manchetesrdquo que convertem os assuntos correntes especialmente eventos sensacio-nalistas condizentes com os mitos populares como se fossem crises que precisam da atenccedilatildeo das massas Nas palavras de Ellul (1973 p 44)

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A construccedilatildeo do argumento

[] eacute evidente que a propaganda pode ser bem sucedida apenas quando o indiviacuteduo se sente desafiado Natildeo tem qualquer influecircncia quando o sujeito estaacute equilibrado tranquilo sentindo-se em total seguranccedila Nem os eventos passados nem os maiores problemas metafiacutesicos desafiam o indiviacuteduo meacutedio o homem comum atual Ele natildeo eacute sensiacutevel ao que eacute traacute-gico na vida e natildeo estaacute angustiado por questotildees que Deus possa imputar--lhe Ele natildeo se sente desafiado exceto por fatos poliacuteticos e econocircmicos atuais Por isso a propaganda precisa comeccedilar pelos fatos atuais

Vale salientar que noacutes natildeo partilhamos nem aqui nem em qualquer outro local o desprezo de Ellul pelo ldquohomem comum dos dias atuaisrdquo mas a sua alegaccedilatildeo de que as notiacutecias satildeo uma constante fonte de panfletagem propagandiacutestica parece pelo menos mais verdadeira hoje na era dos ciclos de 24 horas de notiacutecias do que quando ele a formulou haacute deacutecadas Algumas distorccedilotildees dos fatos atuais estatildeo eacute certo inevitavelmente inseridos nas reportagens sobre esses fatos pelos princi-pais meios de comunicaccedilatildeo No entanto essas miacutedias representam uma parcela em decliacutenio do que eacute entendido como notiacutecia atualmente Na maioria das propagandas seacuterias exibidas hoje em dia podemos ver um segmento de difusatildeo de notiacutecias em plena expansatildeo que eacute ldquosecundaacuteriordquo agraves notiacutecias jornaliacutesticas Esse eacute um mundo de Hanity and Colmes de especialistas e de consultores poliacuteticos de blogueiros edito-rialistas e de analistas especializados que reviram e interpretam as notiacutecias por meio de vaacuterias formas de infoentretenimento que satildeo muito mais baratas do que coberturas jornaliacutesticas de verdade Uma forma de avaliar a tendecircncia propagan-diacutestica desses programas eacute perceber como eles satildeo veiculados ldquo[] na linguagem da indignaccedilatildeo um tom que eacute quase sempre uma marca da propagandardquo (ELLUL 1973 p 58) Em casos extremos ndash pensemos nos programas populares de raacutedio ndash esses programas apelam para os sentimentos mais crueacuteis como ldquooacutedio fome orgulhordquo (ELLUL1973 p 38) e temem agitar as paixotildees de seus espectadores

Burke (1941) toca em muitas dessas questotildees na sua discussatildeo sobre Hitler cuja retoacuterica eacute um modelo de retoacuterica ldquoimpurardquo Ao iniciar a anaacutelise de Minha luta

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A construccedilatildeo do argumento

Burke chama a atenccedilatildeo simultaneamente para as impurezas da retoacuterica de Hitler e para a responsabilidade dos retoricistas para articular essa retoacuterica Os criacuteticos tecircm a obrigaccedilatildeo de analisar livros ldquoincocircmodos e ateacute mesmo repulsivosrdquo como os de Hitler (BURKE 1941 p 191) Ele compara uma anaacutelise raacutepida desinteressada de Minha luta ao fato de queimaacute-lo em uma pira como fazia Hitler com as pesso-as Ao fazer isso Burke defende noacutes perdemos uma oportunidade de descobrir como Hitler conseguiu inventar um remeacutedio que foi tomado com tanto prazer por milhotildees de pessoas e assim ldquo[] prevenir a invenccedilatildeo de um remeacutedio parecido na Ameacutericardquo (BURKE 1941 p 191) Burke ainda destaca que embora os norte--americanos possam acreditar que suas virtudes iratildeo protegecirc-los das palavras de Hitler na verdade isso eacute ldquoo conflito no meio dos seus viacuteciosrdquo (BURKE 1941 p 192) eacute a discussatildeo parlamentar de suas diferenccedilas ndash a proacutepria retoacuterica ndash que os protege dos encantos do sistema ldquoperfeitordquo do Hitler a sua teoria de campo unificado da natureza humana

Um dos temas da anaacutelise de Burke que ecoou anos depois na teoria de Ellul eacute a associaccedilatildeo entre propaganda moderna e as teacutecnicas de marketing e publici-dade A propaganda moderna em oposiccedilatildeo agraves suas formas mais antigas como as ldquopropagandas comunistasrdquo ou invenccedilotildees usadas para provocar furor partidaacuterio eacute consideravelmente mais sutil e cientiacutefica Segundo as consideraccedilotildees de Burke Hitler possui a ldquoracionalidaderdquo de um haacutebil publicitaacuterio que planeja a sua nova campanha de vendas ldquoA poliacutetica ele diz deve ser vendida como se vende sabone-te ndash e natildeo se vende sabonete em transerdquo (BURKE 1941 p 216) Elul (1973 p 25) na mesma direccedilatildeo caracteriza os profissionais da propaganda como ldquo[] cada vez mais o teacutecnico que trata de seus clientes de vaacuterias maneiras mas se manteacutem frio e indiferente escolhendo suas palavras e accedilotildees por razotildees puramente teacutecnicasrdquo O que era caracteriacutestica da propaganda em meados do seacuteculo XX parece hoje ser paradigmaacutetico Graccedilas aos avanccedilos tecnoloacutegicos as convergecircncias entre a propa-ganda e o marketing satildeo muito mais evidentes no ambiente altamente midiaacutetico A linha que separa as duas atividades eacute ainda menos visiacutevel e muito mais atravessada

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A construccedilatildeo do argumento

por um grupo ldquoprofissionalmente psicoacuteticordquo de pessoas que torcem por candidatos poliacuteticos guerras e veiacuteculos utilitaacuterios esportivos com a mesma serenidade e da mesma maneira

Uma das liccedilotildees mais importantes que os profissionais da propaganda aprende-ram com os anunciantes diz respeito agraves cuidadosas teacutecnicas de separar o puacuteblico uma arte aperfeiccediloada por uma legiatildeo de pesquisadores demograacuteficos e psicograacute-ficos que trabalham para os marqueteiros A propaganda eacute para usar o termo de Ellul (1973 p 212) ldquoparticionada ou para usar a descriccedilatildeo retoacuterica tradicional de Burke a propaganda eacute ldquodirecionadardquo uma retoacuterica de ldquobusca de vantagensrdquo Em uma palestra famosa que Burke deu em 1935 para o Congresso Americano de Escritores ele descreveu a relaccedilatildeo parasitaacuteria dos profissionais da propaganda com o seu puacuteblico da seguinte maneira ldquo[] natildeo eacute o trabalho de um profissional da propaganda convencer os convencidos mas pleitear os natildeo convencidos o que lhe requer o uso do vocabulaacuterio deles valores deles siacutembolos deles tanto quanto for possiacutevelrdquo (SIMONS MELIA 1989 p 271-72) Eacute por isso que os profissionais da propaganda assim como os anunciantes estudam seu puacuteblico tatildeo profundamente e sua mensagem eacute expressa com siacutembolos valores e vocabulaacuterio apropriado que se reflete nos grupos cuidadosamente selecionados cujas necessidades desejos e medos satildeo meticulosamente mapeados

Em uma sociedade fechada e homogecircnea como a Alemanha de Hitler isso significa que a propaganda pode ser canalizada atraveacutes de um uacutenico meio para apelar a um grupo imenso de ldquoincluiacutedosrdquo cujas necessidades ansiedades aspira-ccedilotildees sem mencionar mitos e fantasias satildeo integralmente compreendidas agraves custas de uma minoria de ldquoexcluiacutedosrdquo que representa os piores medos dos incluiacutedos Por outro lado em uma sociedade pluralista como a norte-americana isso significa que a propaganda para ser efetiva tem de ter acesso a muacuteltiplos canais e usar mensagens personalizadas para os consumidores e direcionadas a um eleitorado variado Assim ironicamente a nossa imprensa aparentemente livre e robusta e os inuacutemeros canais de informaccedilatildeo que ela proporciona pode revelar-se indispensaacutevel

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A construccedilatildeo do argumento

para os profissionais da propaganda assim como para os anunciantes na divisatildeo e na conquista da audiecircncia

Como esses uacuteltimos apontamentos sugerem por mais inestimaacutevel que seja uma imprensa livre para combater a propaganda isso eacute apenas uma necessidade natildeo condiccedilatildeo suficiente para a resistecircncia Como Ellul (1973 p 212) destaca ldquoToda propaganda tem de separar seu grupo de todos os outros gruposrdquo assegurando que cada grupo tenha seu canal dedicado agraves suas crenccedilas ldquoEles aprendem mais e mais que o seu grupo estaacute correto que seus atos satildeo justificadosrdquo (ELLUL 1973 p 213) ao mesmo tempo em que os grupos rivais satildeo repetidamente rotulados como equivocados e erroneamente fundamentados

Essa criacutetica ao proacuteximo que natildeo eacute ouvida por esse proacuteximo eacute conheci-da pelos integrantes do grupo que a expressa O anticomunista ficaraacute cada vez mais convencido da maldade do comunista e vice-versa Como resultado as pessoas ignoram mais e mais umas agraves outras Elas natildeo se permitem se abrir a um intercacircmbio de pontos de vista argumentos e raciociacutenio (ELLUL 1973 p 213)

Muitos anos depois com o advento da TV digital e por sateacutelite que oferece centenas de canais e informaccedilatildeo a Internet com seus inuacutemeros portais blogs e sites sem mencionar o raacutedio a criacutetica de Ellul parece ser ainda mais proeminente Noacutes realmente vivemos como diz Burke em ldquoBabel depois da queda da torrerdquo e na medida em que a miacutedia moderna multiplica e acirra a divisatildeo entre os cidadatildeos ela devolve o antiacutedoto retoacuterico a esse estado ndash algo como a conversa de Rorty e Oakeshott sobre a humanidade ndash que eacute muito menos eficaz

O problema da divisatildeo entre os cidadatildeos se agrava quando se leva em consi-deraccedilatildeo os efeitos indiretos da miacutedia sobre os que satildeo eleitos para representar o cidadatildeo Por causa dos custos sempre ascendentes para se ganhar eleiccedilotildees devi-do primeiramente pelos altos custos de se comprar tempo na miacutedia e produzir os anuacutencios poliacuteticos que por si mesmos exibem incrivelmente tendecircncias pro-

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A construccedilatildeo do argumento

pagandiacutesticas os altos escalotildees da poliacutetica tornam-se mais e mais dependentes de interesses especiais dispostos a financiar as suas campanhas A fidelidade a interesses particulares por sua vez torna cada vez mais difiacutecil para os oacutergatildeos puacuteblicos suplantar as disputas partidaacuterias e conciliar seus interesses em nome do bem puacuteblico A reduccedilatildeo ndash muitas vezes perceptiacutevel ndash da conversa produtiva e cortecircs no Congresso Americano eacute um sinal de que o modelo de divisatildeo proposto por Ellul se expandiu do eleitorado para os oacutergatildeos legisladores Na realidade Burke sugere que isso sempre aconteceu e que a mudanccedila da natureza da miacutedia deve ter simplesmente agravado uma afliccedilatildeo crocircnica dentro dos oacutergatildeos legisladores

As conclusotildees de Burke quanto agraves causas que subjazem agraves divisotildees legislativas surgem no contexto de sua discussatildeo sobre a psicologia de Hitler desenvolvida agrave luz das ideias de Freud Burke alega que o proacuteprio ldquoeu parlamentarrdquo de Hitler era profundamente cindido entre ego superego e id Hitler por sua vez projetou as prodigiosas lutas interiores que cercam sua personalidade para o mundo es-pecialmente para o extremamente dividido e em colapso parlamento do Impeacuterio Habsurg Impor a sua visatildeo totalitaacuteria ao mundo representou uma cura maacutegica para as suas divisotildees interiores Todas as evidecircncias de heterogeneidade de dife-renccedilas se tornavam para Hitler sintomas de ldquodemocracia falida em dias difiacuteceisrdquo (BURKE 1941 p 200) O processo poliacutetico democraacutetico inevitavelmente confuso com ecircnfase no debate no compromisso e no consenso eacute convertido por Hitler em uma Babel de vozes

[] e pelo meacutetodo de fusotildees associativas usando ideias como imagens Viena tornou-se na retoacuterica de Hitler lsquoBabilocircniarsquo como a cidade da po-breza prostituiccedilatildeo imoralidade coalisotildees meias medidas incesto de-mocracia (ou seja regras da maioria que leva a lsquofalta de responsabilidade pessoalrsquo (BURKE 1941 p 200)

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A construccedilatildeo do argumento

Em qualquer das conversas calorosas dos programas de raacutedio pode-se ouvir anaacutelises similares conduzidas com os mesmos tons de indignaccedilatildeo moral dos conta-dores de faacutebulas das notiacutecias de hoje De acordo com Burke os editores dos jornais de seu tempo seguiam o modelo talvez no mesmo tom da retoacuterica de Hitller Essa eacute uma observaccedilatildeo que ainda parece ressoar

Qualquer conflito entre os porta-vozes parlamentares representa um conflito correspondente entre os interesses materiais dos grupos pe-los quais eles estatildeo falando Hitler natildeo discute a Babel por esse acircngu-lo Ele discutiu isso com bases puramente sintomaacuteticas A estrateacutegia da nossa imprensa ortodoxa de ridicularizar a verborragia cacofocircnica do Congresso eacute oacutebvia ao centralizar o ataque aos sintomas dos assuntos conflituosos como eles se revelam nos indiacutecios das disputas poliacuteticas e ao deixar a causa nas entrelinhas e os assuntos conflituosos fora de pauta satisfazem o povo que poderia de outra forma ficar alienado no-meadamente os empresaacuterios que satildeo os membros ativos de seu puacuteblico leitor (BURKE 1941 p 201)

O resultado desse cenaacuterio eacute o enfraquecimento da crenccedila do povo no gover-no Na medida em que as regras instituiccedilotildees princiacutepios e tradiccedilotildees do governo podem limitar o poder dos profissionais da propaganda ou impedir um programa especiacutefico que eles queiram engrenar eles natildeo veem isso como uma coisa neces-sariamente ruim Daiacute decorre a afirmaccedilatildeo de Ellul (1973 p 191) de que na medida em que os cidadatildeos se ldquodesinteressam das questotildees poliacuteticasrdquo eles (o estado eou os que o controlam) ficaratildeo ldquoabanando as matildeosrdquo Por outro lado ao mesmo tempo haacute um ponto de atenuaccedilatildeo jaacute que continuar a enfraquecer a crenccedila do povo no go-verno pode natildeo ser do interesse proacuteprio daqueles que controlam ou gostariam de controlar as reacutedeas do poder do governo Se o puacuteblico tem receio em relaccedilatildeo aos entremeios do governo a propaganda ldquo[] natildeo tem absolutamente efeito nos que vivem na indiferenccedila ou ceticismordquo (ELLUL 1973 p 190) Como entatildeo fazem os

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A construccedilatildeo do argumento

marqueteiros poliacuteticos para simultaneamente enfraquecer a confianccedila no gover-no como instituiccedilatildeo e expandir os poderes governamentais que servem aos seus propoacutesitos

O truque de acordo tanto com Burke quanto com Ellul eacute personalizar o go-verno identificando-o cada vez mais com a personalidade ou as personalidades de seu liacuteder De acordo com Ellul (1973 p 172) ldquo[] o culto ao heroacutei eacute o complemento absolutamente necessaacuterio para a massificaccedilatildeo da sociedaderdquo Atraveacutes do heroacutei diz o autor a pessoa mediana ldquovive vicariamenterdquo e o heroacutei eacute uma celebridade das telas ou o presidente Na esfera poliacutetica Ellul vecirc esse tema aparecer mais claramente nos partidos poliacuteticos cujos marqueteiros (ou publicitaacuterios se preferem) exploram ldquo[] a inclinaccedilatildeo das massas em admirar o poder pessoal criando a imagem de um liacuteder e investindo nela com atributos de onipresenccedila e onisciecircnciardquo (ELLUL 1973 p 217) Para reforccedilar a sua argumentaccedilatildeo aqui Ellul cita a corrida presidencial americana de 1952 na qual Eisenhower explorou com sucesso essa inclinaccedilatildeo agraves custas de Adlai Stevenson a quintessecircncia do intelectual reservado que viu as suas ideias mas natildeo a sua pessoa como a chave para as suas reivindicaccedilotildees agrave presidecircncia

Ellul (1973 p 172) de passagem observa como o fascismo repetidamente afirmava ter ldquorestaurado a personalidade ao seu lugar de honrardquo uma questatildeo que por sua vez ocupa um enorme espaccedilo na anaacutelise de Burke sobre a propaganda de Hitler Em especial Hitler eacute habilidoso em ldquoespiritualizarrdquo e ldquoeticizarrdquo os viacutenculos materiais que une os diferentes estratos da sociedade ao ldquopersonalizarrdquo esses viacuten-culos tornando ldquogrosseiro o ato de tratar empregadores e empregados como classes diferentes e classificar de forma tambeacutem diferente os seus interessesrdquo (BURKE 1941 p 217) Ao inveacutes disso as relaccedilotildees entre empregador e empregado devem se dar na base ldquopessoalrdquo de liacuteder e seguidorrdquo (BURKE 1941 p 217)24 O vocabulaacute-

24 Pelo mesmo motivo enquanto os que hoje apontam as injusticcedilas entre as classes satildeo acusados de instigar a ldquoluta de classesrdquo a populaccedilatildeo em geral eacute inundada com livros fitas e seminaacuterios sobre ldquolideranccedilardquo uma qualidade miacutestica que eacute recompensada com montantes de dinheiro cada vez mais fabulosos

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A construccedilatildeo do argumento

rio que Hitler usa para efetivar essa transformaccedilatildeo maacutegica vem da terminologia prestigiada da religiatildeo que ele desvia impunemente

Aqui novamente o uso corrompido que Hitler faz dos padrotildees religiosos vecircm agrave tona O pensamento religioso primeiramente preocupado com as questotildees de ldquopersonalidaderdquo com problemas de aperfeiccediloamento moral naturalmente e eu acho que corretamente enfatiza a natureza essencial do ato de vontade individual Daiacute decorre a resistecircncia a uma explicaccedilatildeo puramente ldquoambientalrdquo dos males humanos Daiacute a ecircnfase na ldquopessoardquo Daiacute a tendecircncia a buscar uma explicaccedilatildeo natildeo econocircmica para os fenocircmenos econocircmicos (BURKE 1941 p 201)

Essa personalizaccedilatildeo de todas as relaccedilotildees no estado nazista eacute por fim esten-dida para a imagem do proacuteprio estado Com o intuito de alcanccedilar paz e harmonia ldquoa discussatildeo do parlamentar eacute para ser acalmada pela concessatildeo de uma voz para todo o povo a lsquovoz interiorrsquo de Hitler tornada uniforme em toda a Alemanha como a do liacuteder e as pessoas estavam totalmente identificadas umas com as outrasrdquo (BURKE 1941 p 207) Assim Hitler oferece ao povo alematildeo ldquo[] o conteuacutedo mau de uma necessidade boardquo (p 210) ao perverter o desejo de supremacia Ao fazer essa unificaccedilatildeo Hitler se volta para a criacutetica de um tipo especiacutefico de propaganda

Natildeo um criticismo no sentido ldquoparlamentarrdquo de duacutevida de ouvir a oposi-ccedilatildeo e de tentar amadurecer uma poliacutetica agrave luz das contra poliacuteticas mas o tipo unificado de criticismo que simplesmente busca modos conscientes de tornar a oposiccedilatildeo de algueacutem mais ldquoeficienterdquo mais cheia de si (BURKE 1941 p 211)

O mundo que Hitler cria com a propaganda censurando a oposiccedilatildeo excluindo contradiccedilatildeo identificando a unidade essencial do estado com o ldquosanguerdquo da raccedila ariana eacute a distopia da propaganda segundo Ellul (1973) um mundo hermetica-mente fechado no qual o indiviacuteduo ldquonatildeo tem pontos de referecircncia externosrdquo

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A construccedilatildeo do argumento

A despeito de a propaganda ser normalmente identificada com retoacuterica tanto a compreensatildeo de Ellul quanto a de Burke do termo torna-o antirretoacuterica O que acontece com a propaganda na Alemanha de Hitler e na democracia Ocidental de Ellul eacute o que acontece com qualquer termo que se permite transformar-se em ldquoum fim em si mesmordquo Na linguagem de Burke (1941) o termo sucumbe ao paradoxo da pureza e se torna diferente na sua natureza de cada uma das instacircncias pelas quais a sua uacuteltima definiccedilatildeo foi concebida Simplesmente inverte-se o processo pelo qual noacutes chegamos ao conceito de pura persuasatildeo eliminando toda e qual-quer sugestatildeo de sacrifiacutecio e impasse de dialeacutetica e de invenccedilatildeo ateacute que se torna puramente ldquodirecionadordquo e qualquer potencial interlocutor se transforma em um movimento

Para entender melhor exatamente a razatildeo de a propaganda ter se tornado uma forccedila mais penetrante na nossa avanccedilada democracia supostamente imune aos seus encantos voltamos a Ellul (1973 p 129) e a um ponto importante que ele estabelece a respeito do funcionamento da democracia ocidental ldquoPara o ocidental mediano o desejo das pessoas eacute sagrado e o governo que falha em representar esse deseja eacute uma ditadura abominaacutevelrdquo Para qualquer governo democraacutetico manter a sua legitimidade ele deve manter o apoio popular na forma de opiniatildeo puacuteblica de apoio eleitoral ou ambos No entanto a opiniatildeo puacuteblica como todos que seguem as pesquisas sabem eacute sabidamente inconstante O apoio agraves poliacuteticas militares ou econocircmicas de uma administraccedilatildeo puacuteblica ou de um partido sobe e desce dependendo de quatildeo boas ou ruins satildeo as notiacutecias das esferas econocircmica ou militar Poreacutem para serem efetivas as poliacuteticas devem ser estaacuteveis e os operado-res da poliacutetica precisam enxergar mais longe se as notiacutecias seratildeo contra eles ndash e inevitavelmente seratildeo contra eles por um tempo ndash eles devem modificar ou ateacute mesmo inverter a sua poliacutetica aceitar derrotas ou persuadir as pessoas de que as suas decisotildees estatildeo efetivamente dando certo ou prestes a dar certo

A dificuldade no acircmbito poliacutetico eacute perfeitamente capturada por Ellul (1973 p 132) que observa que toda administraccedilatildeo de qualquer filiaccedilatildeo partidaacuteria ldquo[]

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A construccedilatildeo do argumento

daacute a impressatildeo de obedecer a opiniatildeo puacuteblica ndash depois de tecirc-la criado O ponto eacute fazer as massas solicitaram ao governo o que ele jaacute tinha decidido fazerrdquo Em al-guns casos noacutes podemos ndash agraves vezes corretamente ndash atribuir um motivo sinistro para essas tentativas iliacutecitas de influenciar a opiniatildeo puacuteblica As poliacuteticas que vatildeo sendo promovidas podem de fato beneficiar interesses especiacuteficos agraves custas do bem puacuteblico Ateacute mesmo essas poliacuteticas de interesse puacuteblico enfrentaratildeo muitas das mesmas dificuldades que enfrentam as praacuteticas corruptas O fato de as praacuteti-cas aparentemente mais civilizadas poderem ser mais facilmente defendidas com bases racionais natildeo garante a sua popularidade ou nega a necessidade pelo menos aos olhos de seus proponentes de se utilizar a propaganda em seu benefiacutecio Por isso a eacute inevitaacutevel

A propaganda portanto natildeo eacute algo que podemos esperar erradicar ou nas palavras de Burke (1941) desbancar Podemos retardar a sua propagaccedilatildeo e enca-minhaacute-la para formas mais legiacutetimas de persuasatildeo por meio do questionamento e da criacutetica Como as praacuteticas de marketing e de publicidade agraves quais a propaganda estaacute tatildeo intimamente ligada ela tambeacutem pode ser mais ou menos honesta mas apenas se falhar nas formas mais rudes ndash propaganda disfarccedilada de boletins in-formativos do governo que divulga os benefiacutecios de programas duvidosos pes-quisas falsas financiadas pela induacutestria usadas seletivamente por membros do governo para apoiar poliacuteticas duvidosas falsos jornalistas que fazem perguntas natildeo embaraccedilosas aos membros do governo comentaristas que datildeo depoimentos falsos em apoio a programas e poliacuteticas sem dizer que satildeo pagos para isso e de-putados vereadores que realizam sessotildees em cenaacuterio de Potemkin Village25 com

25 O termo Potemkin Village refere-se agrave histoacuteria de que o marechal russo Grigory Alexander Potemkin (1739-1791) amante da imperatriz russa Catarina ii (1729-1796) teria construiacutedo uma cidade falsa para impressionaacute-la durante sua viagem agrave Crimeacuteia em 1787 Conta-se que eram feitas construccedilotildees falsas ao longo do rio Diepner que eram desmontadas e montadas novamente agrave frente do trajeto da imperatriz que as via como se fossem novas

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A construccedilatildeo do argumento

participantes cuidadosamente escolhidos para fazer perguntas preacute-estabelecidas ndash porque os jornalistas de verdade fazem seu trabalho eou porque o puacuteblico mais sofisticado aprendeu a ldquodar um descontordquo para as alegaccedilotildees duvidosas e questionar criticamente accedilotildees simboacutelicas

Para ajudar a compreensatildeo desse assunto oferecemos a seguir um breve re-sumo das praacuteticas dos profissionais de propaganda

a propaganda em resumo

Antes de ponderarmos os sintomas e a dinacircmica das praacuteticas da propagan-da deixamos a seguinte advertecircncia as diferenccedilas entre a propaganda e outras formas legiacutetimas de praacuteticas retoacutericas satildeo de intensidade Toda e qualquer praacutetica retoacuterica eacute mais ou menos honesta ou desonesta e nenhuma delas pode ser aplicada categoricamente a um ato qualquer Se reduzirmos a coisa toda a uma uacutenica frase nossa visatildeo da propaganda poderia ser chamada de ldquopublicidade de esteroides por razotildees poliacuteticasrdquo Muitas das condiccedilotildees que se seguem caracterizam tanto discursos poliacuteticos comuns quanto a propaganda Determinar quando um discurso poliacutetico se torna propaganda requer ldquodisputas poliacuteticasrdquo entre pessoas de diversas convic-ccedilotildees Consequentemente talvez fosse melhor pensar nessas condiccedilotildees mais como dicas do que traccedilos taxionocircmicos

1 A propaganda poliacutetica requer um palco se natildeo o placo Sem um palco deixa-se de natildeo apenas disseminar uma mensagem a uma massa mas de enquadrar o debate de forma a cercear as mensagens adversaacuterias Em-bora nem todos os que divulgam uma mensagem precisem ter crachaacutes de uma organizaccedilatildeo ou ser parte interessada de um projeto para se en-gajar na divulgaccedilatildeo da propaganda aqueles que criam e produzem uma mensagem propagandiacutestica devem fazecirc-lo conscientemente em nome de

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A construccedilatildeo do argumento

um sistema de crenccedilas Na forma como se encontra hoje a propaganda frequentemente se dissemina como uma fofoca na cultura oral por meio da expansatildeo de mensagens de propaganda conscientemente elaboradas que se originam na miacutedia de massa e se proliferam pela Internet nos programas de raacutedio em programas de TV em que os telespectadores participam em cartas aos editores e assim por diante Cada vez mais a direccedilatildeo desse movimento eacute inversa na medida em que os blogueiros comeccedilam a criar mensagens propagandiacutesticas que parodiam as mensa-gens dos liacutederes ldquooficiaisrdquo

2 Assim como os anunciantes os profissionais de propaganda satildeo exigen-tes ldquointegrantesrdquo do mercado cujas mensagens frequentemente refletem pesquisas extensas sobre a estrutura psicoloacutegica e demograacutefica de seu puacuteblico Eles se baseiam muito na ldquoartimanhardquo de que fala Burke (1941) na busca de vantagens para as suas ideias falando dos medos anseios e desejos especiacuteficos do seu puacuteblico alvo numa tentativa de contornar as anaacutelises racionais e induzir o ldquomovimentordquo nos sujeitos aos quais se dirigem Seu apelo se baseia menos nas evidecircncias e nas razotildees do que no ldquosenso comumrdquo que ldquonatildeo tem origemrdquo Tambeacutem como os anunciantes os profissionais da propaganda satildeo adeptos da persuasatildeo de grandes audiecircncias (ldquoVocecircrdquo) para as quais eles estatildeo falando individualmente (vocecirc) e persuadindo-as a aderir a uma linha partidaacuteria em nome de seus proacuteprios pensamentos

3 Ainda que muitas das teacutecnicas usadas para criar e promover a pro-paganda sejam tomadas emprestadas dos anuacutencios existem diferenccedilas cruciais Em geral os anunciantes conseguem seu palco em negocia-ccedilotildees comerciais diretas Os profissionais da propaganda por sua vez normalmente usam a miacutedia puacuteblica especialmente a miacutedia de notiacutecias

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A construccedilatildeo do argumento

para divulgar a sua mensagem Aleacutem disso os anuacutencios satildeo abertamente apresentados como anuacutencios ao passo que a propaganda eacute raramente apresentada como propaganda Na medida em que um puacuteblico sabe que uma mensagem eacute uma propaganda a efetividade da mensagem tende a diminuir Agraves vezes os profissionais da propaganda adotam medidas extremas (por exemplo plantam notiacutecias falsas nas principais miacutedias e criam falsas organizaccedilotildees partidaacuterias de terceiros e assim por diante) para transmitir a sua mensagem enquanto dissimulam as suas intenccedilotildees

4 O texto da mensagem da propaganda normalmente eacute fruto de fatos atuais Muitas vezes ele se concentra em um problema ou crise que atrai a atenccedilatildeo do puacuteblico em virtude de sua natureza dramaacutetica eou sua analogia com um tema miacutetico popular (por exemplo um indiviacuteduo humilde [Davi] toma o posto de um grande governador [Golias]) As consequecircncias materiais do problema satildeo menos importantes para os profissionais da propaganda do que sua repercussatildeo simboacutelica Em al-guns casos realmente o problema eacute fabricado para desviar a atenccedilatildeo de outros problemas que tecircm consequecircncias puacuteblicas consideravelmente maiores mas que satildeo menos manejaacuteveis eou que refletem bem menos nos que fazem a propaganda

5 Ao se vincularem a um problema que jaacute ganhou a atenccedilatildeo do puacuteblico os profissionais da propaganda ampliam o tema que inspirou a sua men-sagem Ao adequar o significado de um evento problemaacutetico aos seus temas ideoloacutegicos eles podem persuadir o puacuteblico de que sua interpre-taccedilatildeo de um evento singular eacute na verdade a confirmaccedilatildeo de uma ordem subjacente Assumir uma soluccedilatildeo ndash ao contraacuterio de simplesmente culpar outra ideologia ndash reflete a ideologia dos profissionais da propaganda mais claramente do que adequar o problema Muitas vezes o problema eacute refor-

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A construccedilatildeo do argumento

mulado como uma questatildeo moral e a soluccedilatildeo proposta seraacute mais espiritual ou moral do que pragmaacutetica Consequentemente a propaganda vai dire-cionar nossa atenccedilatildeo para a dimensatildeo pessoal do problema e para longe das causas que o circundam Em suas formas mais danosas as soluccedilotildees da propaganda apelam para a puniccedilatildeo a exclusatildeo ou o impeachment de bodes expiatoacuterios cujos comportamentos justificam o tom de indignaccedilatildeo ou ultraje moral beneficiado pelos profissionais da propaganda

6 Os profissionais da propaganda mostram pouco entusiasmo por ldquoau-tointerferecircnciardquo ou ldquocontraditoacuteriordquo Seus argumentos satildeo frequentemente construiacutedos em segredo com poucos elementos de fontes variadas Eles distorcem demonizam ou excluem por completo as visotildees opostas ao assunto em questatildeo Falam para o menor denominador comum do seu puacuteblico Se os argumentos dos profissionais da propaganda satildeo depara-dos com fatos inconvenientes ou contra-argumentos contundentes uma vez que eles estatildeo postos no mundo os que os defendem natildeo hesitam nem procuram apresentar justificativas Eles vatildeo repetir o argumento infinitamente mostrando firmeza de propoacutesito que em alguns casos passa como lideranccedila26

7 Enquanto a propaganda em sociedades fechadas eacute frequentemente criada em torno de um ldquoculto agrave personalidaderdquo nas sociedades abertas tende a ser frequentemente criada em torno de um ldquoculto agrave celebridaderdquo As biografias das personalidades que falam em nome de uma ideologia seratildeo interpretadas para adaptar os mitos que permeiam essa ideologia

26 Burke (1941 p 212) observa que Hitler se recusou a alterar um uacutenico item de sua plataforma nazista original de 25 itens porque achava que a fixidez da plataforma era mais importante para propoacutesitos da propaganda do que qualquer revisatildeo de seus slogans mesmo que as revisotildees em si mesmas tivessem muito a dizer a seu favorrdquo

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A construccedilatildeo do argumento

e acabaratildeo por personificaacute-la da mesma forma como as estrelas do cine-ma frequentemente satildeo identificadas aos personagens que interpretam

8 Quanto mais ansioso eacute o puacuteblico mais efetiva eacute a propaganda Para ser bem recebida a propaganda requer um puacuteblico indeciso fraacutegil e ateacute mesmo temeroso Um sentimento de crise a sensaccedilatildeo de estar sob ata-que rendem uma audiecircncia mais tolerante a argumentos unilaterais e agrave reduccedilatildeo dos oponentes a figuras de desenhos animados Os profissionais da propaganda inventam crises mas mais comumente eles simplesmente transformam problemas reais de pequenas proporccedilotildees em problemas apocaliacutepticos de proporccedilotildees homeacutericas Os criacuteticos internos de suas cria-ccedilotildees satildeo prontamente agrupados como seus inimigos amorfos

Isso eacute entatildeo a propaganda em resumo Com a intenccedilatildeo de sermos ldquojustos e equilibradosrdquo gostariacuteamos de convidar nossos estudantes a aplicar essas observa-ccedilotildees natildeo apenas agraves praacuteticas administrativas do governo mas tambeacutem aos filmes de Michael Moore e aos programas da emissora Air America

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caPiacutetulO 3 introduccedilatildeo a algumas boas praacutetiCas27

Neste capiacutetulo vamos revisar algumas abordagens de ensino de escrita ba-seadas na argumentaccedilatildeo ndash ou que podem facilmente ser adaptadas para esse fim Embora os professores que se concentrem digamos na retoacuterica da libertaccedilatildeo em suas aulas de escrita possam natildeo se considerar adeptos da pedagogia do argu-mento sua abordagem tende a focalizar a argumentaccedilatildeo e inclusive a requerer estrateacutegias tiacutepicas de construccedilatildeo de argumento Qualquer abordagem que facilite o ensino da argumentaccedilatildeo e envolva um ensino de escrita inovador seraacute conside-rada aqui como parte integral de boas praacuteticas na aacuterea Poreacutem antes de revisar-mos essas praacuteticas detalhadamente ofereceremos um breve panorama geral dos princiacutepios baacutesicos de um curso de escrita bem sucedido e das melhores praacuteticas que o integram

o Que funCiona no ensino de esCrita

Como jaacute sugerimos em diversas ocasiotildees poucos pesquisadores nas aacutereas de retoacuterica e escrita ainda se dedicam agrave avaliaccedilatildeo empiacuterica das praacuteticas adotadas em sala de aula Ao nos referirmos a uma determinada abordagem como ldquouma boa praacuteticardquo natildeo estamos apenas nos referindo necessariamente agrave didaacutetica associada a essa praacutetica nem aos seus resultados Na verdade pouco sabemos sobre esses resultados aleacutem do que dizem os seus criadores Favorecemos uma determinada praacutetica ou abordagem apenas por sentir que ela se alinha melhor com nossa opi-

27 Traduccedilatildeo felipo Bellini Souza e Maria Hozanete alves de Lima

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A construccedilatildeo do argumento

niatildeo sobre o ensino de escrita e porque elas natildeo entram em conflito direto com os princiacutepios baacutesicos do ensino que no nosso ponto de vista pessoal permeiam o ensino adequado da escrita

Ao articularmos conscientemente nosso raciociacutenio pessoal a respeito do en-sino de escrita e dos princiacutepios baacutesicos da instruccedilatildeo em geral podemos destacar dois trabalhos que nos influenciaram especialmente na elaboraccedilatildeo deste estudo O primeiro The Rhetoric of Reason Writing and the Attractions of Argument de James Crosswhite (CROSSWHITE 1996) oferece instruccedilotildees filosoacuteficas extensas a respeito de como fundamentar o ensino de escrita baseado na argumentaccedilatildeo Inspirado pelos trabalhos de diversos filoacutesofos como Platatildeo Aristoacuteteles Heideg-ger Perelman e Olbrechts-Tyteca Levinas Cavell Habermas Schrag e Gadamer Crosswhite (1996) desenvolve o conceito de ldquoretoacuterica da razatildeordquo e o posiciona como uma alternativa ao ceticismo radical da desconstruccedilatildeo como foi exemplificado por Derrida e Man28 O livro eacute recomendaacutevel a todos os professores por uma seacuterie de motivos ele defende com sucesso a eficaacutecia e a importacircncia da educaccedilatildeo geral como parte da educaccedilatildeo superior nos Estados Unidos estabelece paracircmetros para a compreensatildeo da argumentaccedilatildeo sobretudo como um ato como forma de abordar problemas praacuteticos e tomar decisotildees corretas ao inveacutes de defini-la apenas como um apanhado de sugestotildees de comportamento e oferece um caminho para neutrali-zar doutrinas natildeo essenciais ndash poreacutem presentes na maior parte dos curriacuteculos ndash a respeito da verdade e da identidade como forma de responsabilizar o indiviacuteduo por suas escolhas pessoais

O livro de Crosswhite tambeacutem aborda uma seacuterie de questotildees de natureza teoacuterica filosoacutefica e pedagoacutegica de maneira muito mais completa que satildeo tocadas aqui apenas brevemente Embora haja ainda pontos de vista conflitantes entre a

28 nesse processo Crosswhite ainda destaca os pontos em que Derrida pode servir como base ou apoio para a retoacuterica da razatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

nossa opiniatildeo como autores e os conceitos defendidos por Crosswhite (fazemos objeccedilatildeo especialmente agraves conclusotildees duramente pessimistas apresentadas no final do livro) acreditamos que a obra oferece uma espeacutecie de macrovisatildeo que engloba nossas premissas a respeito do ensino da argumentaccedilatildeo em aula de escrita

Da mesma forma o livro Teaching Writing as Reflective Practice (Ensinar es-crita como praacutetica reflexiva) de George Hillocks (HILLOCKS 1984) oferece uma micro visatildeo de nossa filosofia pedagoacutegica Embora seus meacutetodos para a compre-ensatildeo do ensino de escrita estejam fora de moda nas aacutereas da retoacuterica e escrita as conclusotildees de Hillocks e a aplicaccedilatildeo baacutesica de seus conceitos satildeo relevantes para a nossa abordagem Como jaacute mencionamos os que desmerecem o autor e sua obra continuam fundamentando o ensino de escrita com base nos seus conceitos ainda que inconscientemente Na verdade quando defendemos e explicamos ao longo dos anos os fundamentos dos nossos cursos (por que vocecircs natildeo datildeo mais relevacircncia aos fundamentos da escrita e da gramaacutetica em seus cursos) e a busca de recursos financeiros junto a gestores de instituiccedilotildees de ensino verificamos que o trabalho de Hillocks era bastante eficaz para convencer esses gestores na sua maioria de formaccedilatildeo em Ciecircncias ou Ciecircncias Sociais Assim mesmo correndo o risco de simplificar as ideias do autor aleacutem do razoaacutevel enumeramos os seguintes fundamentos da praacutetica em sala de aula baseados amplamente nos trabalhos de Hillocks

1 A aprendizagem ativa eacute muito mais eficaz que a aprendizagem passiva Algumas particularidades desse princiacutepio incluem

a Reduza o tempo de aula expositiva (o que Hillocks chama de ldquomoacutedulo de apresentaccedilatildeordquo durante o ensino) ao miacutenimo possiacutevel Se vocecirc pre-cisa dar uma aula expositiva (com grande tempo de explanaccedilatildeo em que apenas o professor fala como no ensino tradicional) ndash agraves vezes todos noacutes precisamos fazer isso ndash faccedila que essa etapa seja o mais

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A construccedilatildeo do argumento

breve possiacutevel quinze minutos ou menos Certifique-se o maacuteximo possiacutevel de que seu tempo com exposiccedilatildeo seja usado para interagir com os alunos e natildeo como uma agenda pessoal e necessidade de ldquocobrirrdquo toda mateacuteria

b Ao maacuteximo possiacutevel construa um curso em torno da aprendizagem indutiva em vez de focar-se na assimilaccedilatildeo de conteuacutedo ou na livre expressatildeo Quando as aulas se baseiam no argumento isso pode requerer mais atenccedilatildeo a assuntos locais pessoais que permitam aos alunos se concentrarem em fontes primaacuterias e secundaacuterias A aprendizagem indutiva parte da ldquo[] estrateacutegia baacutesica do questiona-mento que integra todos os campos do conhecimentordquo (HILLOCKS 1984 p 100) natildeo de estrateacutegias especializadas de questionamento Quando falamos de um curso baseado no argumento destacamos os seguintes pontos do recurso agrave aprendizagem indutiva a criaccedilatildeo de um inventaacuterio do conhecimento preacutevio e pressupostos existentes a respeito de um determinado assunto a formaccedilatildeo de hipoacuteteses a criaccedilatildeo de uma ldquosuposiccedilatildeo justificadardquo de uma alegaccedilatildeo principal o teste dessa alegaccedilatildeo primeiramente a partir de novos conheci-mentos e informaccedilotildees adquiridos com a leitura o questionamento a pesquisa e afins e em um segundo momento a partir da discussatildeo em grupo do conhecimento acumulado

c Concentre-se em estudos individualizados ou em grupo dentro da sala de aula O questionamento eacute algo que deve ser conduzido den-tro e fora da sala de aula Hillocks (1984 p 55) usa o termo ldquoensino ambientalrdquo para descrever o ensino que ldquo[] cria ambientes que introduzem e apoiam o aprendizado ativo de estrateacutegias complexas que os alunos ainda natildeo satildeo capazes de utilizar sozinhosrdquo

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A construccedilatildeo do argumento

2 A transparecircncia eacute tatildeo importante para o ensino eficiente quanto o eacute para o bom governo Deixe suas expectativas e metas para cada aula ndash e para cada tarefa ndash perfeitamente claras Encoraje os alunos a compartilha-rem e discutirem juntos cada rascunho e atividade durante o processo Quando possiacutevel apresente hipoacuteteses iniciais de outros alunos como exemplo para esclarecer ainda mais os criteacuterios e expectativas adotados Ofereccedila feedback especiacutefico mas ao mesmo tempo de forma que englobe toda a sala (por exemplo diga que os alunos natildeo ofereceram evidecircncias suficientes que justifiquem essa ou aquela hipoacutetese ou que a hipoacutetese proposta natildeo satisfaz as necessidades do puacuteblico alvo ou que ldquohaacute quebra de paralelismo nessas frasesrdquo)

3 Estabeleccedila metas altas mas crie processos que permitam aos alunos atingi-las Uma das bases teoacutericas da abordagem de Hillocks deriva de Vygotsky ndash particularmente do conceito de ldquozona de desenvolvimento proximalrdquo (ZDP) Essa zona eacute definida como a aacuterea localizada entre a capacidade real da pessoa e sua capacidade potencial que pode ser atingida com orientaccedilatildeo e cuidado Nesse caso a ldquoorientaccedilatildeo cuidadosardquo inclui atividades em sala de aula em especial as oportunidades de usar a criatividade em atividades orais ou escritas a correccedilatildeo intermediaacuteria dos demais alunos ou do professor e em seguida a confecccedilatildeo de novos rascunhos baseados no feedback recebido ateacute entatildeo

4 Coloque em praacutetica seus princiacutepios seja tambeacutem um aluno quando esti-ver em sala de aula Hillocks encoraja professores a praticarem a mesma abordagem baseada no questionamento quando estatildeo em sala de aula Ao informar aos alunos os seus objetivos antes de atribuir-lhes uma tarefa ou atividade vocecirc oferece na verdade uma hipoacutetese inicial sobre

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A construccedilatildeo do argumento

o caminho para atingir esses objetivos Preste atenccedilatildeo ao que acontece depois disso e teste a sua hipoacutetese Quando alguma coisa falhar descubra porque e repense suas estrateacutegias

5 Adapte-se da melhor forma possiacutevel aos diferentes estilos de aprendiza-do e inteligecircncia de seus alunos Use diferentes maneiras de pesquisar assimilar e apresentar informaccedilotildees Se vocecirc natildeo tiver recursos digitais em sala de aula faccedila o possiacutevel para encorajar o uso de miacutedias visuais e computadores fora da sala

6 Use seus pontos fortes quando estiver em sala de aula (isso deriva menos das teorias de Hillocks do que de nossa experiecircncia como autores e pro-fessores) Da mesma forma que fazemos o possiacutevel para nos adaptarmos aos alunos precisamos respeitar nossas particularidades Alguns de noacutes satildeo palestrantes realmente brilhantes ndash apesar de nossa experiecircncia provar que os brilhantes satildeo menos numerosos que aqueles que pensam que satildeo Outros criam tarefas extraordinaacuterias em grupo Alguns tecircm um verdadeiro talento para aulas particulares Qualquer que seja seu maior talento como professor seja qual for o motivo pelo qual vocecirc escolheu essa profissatildeo busque sempre uma maneira de utilizar esse talento

boas praacutetiCas

O que propomos a seguir natildeo eacute absolutamente uma exaustiva lista de orien-taccedilotildees para introduzir a argumentaccedilatildeo em sua sala de aula Trata-se apenas de uma compilaccedilatildeo de algumas boas praacuteticas Acima de tudo essa seccedilatildeo busca auxi-liar professores a se valerem do argumento como forma de engajar seu puacuteblico Qualquer pessoa que tenha lecionado e pedido a seus alunos que redijam textos

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A construccedilatildeo do argumento

argumentativos sabe que natildeo existe uma ldquomelhor formardquo de estruturar essa aula haacute diversas maneiras eficazes Aqui vamos apenas enumerar algumas

Para os professores que satildeo calouros no campo da argumentaccedilatildeo esta seccedilatildeo oferece um mapa dessa abordagem pedagoacutegica Para os que jaacute tecircm mais experiecircncia com o assunto esta seccedilatildeo oferece uma lista de ideias de como reestruturar aulas jaacute criadas Se pedimos a nossos alunos constantemente que questionem suas su-posiccedilotildees acerca de argumentos por eles apresentados precisamos tambeacutem estar dispostos a questionar as nossas suposiccedilotildees a respeito do ensino

As informaccedilotildees a seguir representam uma abordagem ecleacutetica sobre a retoacuteri-ca e a construccedilatildeo de argumento como uma diferente forma de ver o mundo e natildeo apenas como fins que podem ser alcanccedilados com a mera repeticcedilatildeo de uma foacutermula (ainda que em certas ocasiotildees os pesquisadores que adotam essa metodologia sugerem um processo um tanto quanto formal) Algumas das melhores praacuteticas partem do desejo de ajudar alunos a irem aleacutem de sua posiccedilatildeo isolada de indiviacuteduo e a se colocarem em um contexto mais abrangente Esse esforccedilo social baseado na identidade grupal inclui a retoacuterica da libertaccedilatildeo o argumento feminista e a aprendizagem-serviccedilo

A retoacuterica da libertaccedilatildeo eacute um movimento educacional que surgiu como reaccedilatildeo aos modelos de educaccedilatildeo para alunos passivos Ela foi fundamental para o esforccedilo de evidenciar questotildees ligadas agrave representatividade dentro da sala de aula e ao reconhecimento da educaccedilatildeo como um processo natildeo neutro ndash a ideologia eacute sempre transmitida junto com o conhecimento Ao incorporar a retoacuterica da libertaccedilatildeo agrave aula sobre argumento criamos um ambiente abertamente politizado que tem a cultura como ponto focal de discussatildeo e chama os alunos a questionar de manei-ra criacutetica o conteuacutedo do curso e as experiecircncias e ideologias que eles trazem agrave discussatildeo como falantes ou escritores A escrita eacute um veiacuteculo que pode ser usado de diferentes maneiras na formaccedilatildeo do aluno que se engajaraacute de forma criacutetica ao mundo agrave sua volta

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A construccedilatildeo do argumento

O argumento feminista tambeacutem contesta o status quo Ao tentar eliminar a oposiccedilatildeo perdedorganhador de um argumento atraveacutes de uma abordagem mais eacutetica as feministas nos clamam a buscar estrateacutegias menos agressivas e mais cooperativas especialmente focadas na importacircncia do ouvir compreender e dialogar numa troca de argumentos Na sala de aula as abordagens feministas podem ser implementadas em doses homeopaacuteticas e natildeo precisam ser adotadas com exclusividade

A abordagem aprendizagem-serviccedilo vecirc a linguagem como uma atividade so-cial que eacute ao mesmo tempo interpretativa e construtiva Da mesma forma que a retoacuterica da libertaccedilatildeo auxilia o aluno a explorar seu potencial maacuteximo a apren-dizagem-serviccedilo busca fomentar uma simpatia precoce pelo engajamento ciacutevico Em muitos casos essa abordagem se manifesta na relaccedilatildeo entre aulas de escrita e interaccedilotildees in-loco focadas em projetos reais desenvolvidos com organizaccedilotildees ou empresas da comunidade Essa no entanto natildeo eacute a regra O engajamento ou a pesquisa aprofundados de uma questatildeo pertinente que afeta a mesma comunidade podem ser alternativas interessantes A aprendizagem-serviccedilo oferece ao aluno a oportunidade de vivenciar uma situaccedilatildeo hipoteacutetica com exigecircncias e limitaccedilotildees reais sobre as quais eacute necessaacuterio ponderar Ela tambeacutem expotildee o aluno a um aspecto da academia que natildeo eacute limitado pela disciplina tradicional

Da mesma forma o movimento escrita atraveacutes do curriacuteculo (writing across the curriculum- WAC) objetiva diminuir as limitaccedilotildees das disciplinas Tem como princiacutepio central a ideia de que o aluno aprende mais quando se confronta com o conteuacutedo escrito do curso No caso de professores que natildeo ensinam liacutengua (InglecircsPortuguecircs) essa abordagem oferece uma justificativa racional para a utilizaccedilatildeo da escrita em todas as disciplinas pois postula que o argumento eacute a pedra fundamental de uma educaccedilatildeo superior As disciplinas satildeo diferenciadas principalmente pelas regras de construccedilatildeo de argumento e de apresentaccedilatildeo de evidecircncias favoraacuteveis Em aacutereas que tradicionalmente natildeo requerem extensiva dedicaccedilatildeo agrave escrita as atividades de escrita podem ser usadas para fortalecer os princiacutepios disciplinares

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A construccedilatildeo do argumento

e apresentar aos alunos os meacutetodos de questionamento que satildeo aceitos por deter-minada aacuterea do conhecimento

O raacutepido avanccedilo de possibilidades tecnoloacutegicas forccedilou os professores a reava-liarem o papel e o impacto das diferentes tecnologias de escrita sobre o poder do argumento A escrita com computadores eacute um exemplo disso Como os alunos da atualidade constantemente se sentam agrave frente de um teclado eacute importante levar em consideraccedilatildeo a linguagem que eles trazem agrave sala de aula A tecnologia tambeacutem pode expandir os limites do que eacute considerado ldquoescritardquo especialmente quando o hipertexto eacute utilizado em sala de aula para mudar a perspectiva sobre um deter-minado argumento Os avanccedilos tecnoloacutegicos tambeacutem afetaram mecanismos de pesquisa ndash a confiabilidade de fontes e autoria de ideias estatildeo entre alguns dos assuntos recentemente controversos

A retoacuterica visual tambeacutem se concentra em tecnologias que impactam nossas vidas Ela busca ampliar as discussotildees sobre o argumento para incluir nelas o exame de imagens visuais que constantemente complementam ou substituem as palavras Mesmo que as imagens sejam mais memorizaacuteveis e capazes de maior res-sonacircncia psicoloacutegica seu impacto passa comumente despercebido Haacute mensagens ocultas na miacutedia visual que exigem que repensemos nossa habilidade de processar informaccedilotildees A partir da exploraccedilatildeo da produccedilatildeo e consumo de textos visuais os alunos podem se tornar mais conscientes sobre a forma como as imagens sutis podem transmitir conteuacutedos persuasivos

Por que a construccedilatildeo do argumento e mais amplamente a retoacuterica deveriam receber toda essa atenccedilatildeo em sala de aula Precisamos ensinar retoacuterica para que possamos nos proteger dela As mensagens persuasivas nos rodeiam a todo tem-po ndash elas perfazem um amaacutelgama de nossos ldquoeurdquo coletivos Quanto melhor noacutes ndash e nossos alunos ndash identifiquemos essas mensagens em sua forma real (pontos de vista natildeo verdades monoliacuteticas) melhor atuaremos nesse mundo de ldquoBabel apoacutes a quedardquo Essa seccedilatildeo de boas praacuteticas seraacute mais uacutetil se for empregada como ponto

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A construccedilatildeo do argumento

de partida para uma exploraccedilatildeo mais detalhada do que essas posiccedilotildees teoacutericas e pedagoacutegicas tecircm a oferecer no contexto de uma determinada aula Esses resumos de praacuteticas destacam as diferenccedilas entre os praticantes

retoacuteriCa da libertaccedilatildeo

O conceito de retoacuterica da libertaccedilatildeo tambeacutem chamado pedagogia criacutetica ou retoacuterica da criacutetica foi definido de diferentes formas no estudo da escrita A ideia de a pedagogia libertadora adveacutem dos trabalhos de Paulo Freire educador brasi-leiro que acreditava que a educaccedilatildeo bancaacuteria ndash um modelo de educaccedilatildeo que pinta os alunos como recipientes vazios que precisam ser preenchidos de conhecimento por professores versados (FREIRE 2000) ndash contribuiacutea para a opressatildeo poliacutetica ao condicionar as pessoas a natildeo questionarem seu entorno O papel central da retoacuterica da libertaccedilatildeo eacute o de ajudar na compreensatildeo da natureza profundamente poliacutetica da educaccedilatildeo Essa abordagem pressupotildee um mundo injusto onde as diversas formas de afirmar manter e distribuir poder satildeo veladas e frequentemente ignoradas Dessa forma a educaccedilatildeo natildeo seria neutra professores e alunos tecircm pressuposiccedilotildees expectativas e valores acerca da ldquoideologia dominanterdquo que frequentemente satildeo ignorados em sala de aula (SHOR FREIRE 1987 p 13) Como as opiniotildees poliacuteticas satildeo frequentemente transmitidas de professor para aluno durante o processo de aprendizagem os alunos precisam assumir a responsabilidade de compreender a natureza doutrinadora dos sistemas educacionais se quiserem ser capazes de questionar os princiacutepios que norteiam o conhecimento recebido A Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire surgiu a partir do trabalho com camponeses analfabe-tos no Brasil um grupo verdadeiramente oprimido e lanccedilou a base para uma educaccedilatildeo realmente libertadora ndash fora do controle do Estado Consequentemente as ideias de Paulo Freire precisam ser adaptadas aos diferentes estilos de sala de aula ao redor do mundo levando em consideraccedilatildeo as necessidades dos alunos dos diferentes grupos sociais

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A construccedilatildeo do argumento

Na segunda metade da deacutecada de 70 e iniacutecio dos anos 80 o trabalho de Paulo Freire influenciou os campos da retoacuterica e da escrita conforme os professores da eacutepoca tentavam incorporar a teoria progressista ao trabalho aparentemente apo-liacutetico de instruccedilatildeo da escrita (BIZZELL 1997) O componente mais uacutetil da teoria de Paulo Freire para os professores de argumento eacute a atenccedilatildeo especial ao exame criacutetico de interaccedilotildees problemaacuteticas em niacutevel local (SHOR 1996) Em vez de se concentrar em interaccedilotildees dialeacuteticas abstratas de ideias valores e conceitos Paulo Freire pede um maior foco sobre ldquotemas geradoresrdquo o ponto principal que funda-menta a discussatildeo abstrata O tema de estudo se origina nos artefatos cotidianos de uma comunidade especiacutefica que pertence a uma determinada cultura (FREIRE 2000) No caso dos camponeses brasileiros com quem Paulo Freire trabalha isso quis dizer comeccedilar os estudos pela percepccedilatildeo do homem que sacia sua sede com aacutegua natildeo com o conceito de justiccedila social

Para os professores norte-americanos de escrita na atualidade os temas gera-dores de Paulo Freire podem envolver a interaccedilatildeo sustentaacutevel atraveacutes de assuntos que interessam aos alunos como aumentos nas mensalidades da universidade ou protestos contra discriminaccedilatildeo racial divulgados pela televisatildeo Tal foco permite que os alunos atuem sobre ideias em vez de consumi-las passivamente aleacutem de fomentar um ambiente em que a educaccedilatildeo eacute inteiramente voltada agrave conquista do potencial pleno Como argumenta Berthoff (1983 p 41) eacute importante ldquo[] (ensinar) escrita como uma forma de pensar e aprenderrdquo e ldquo[] de fazer que nossos alunos se apropriem desse incomparaacutevel recurso []rdquo Em outras palavras ldquo[] a subjetivida-de eacute um sinocircnimo de motivaccedilatildeo [hellip] O material de teor subjetivo eacute definitivamente relevante para aqueles que estudamrdquo (SHOR 1987 p 24) Dessa forma a ecircnfase sobre o raciociacutenio criacutetico a respeito de questotildees locais provavelmente eliminaraacute a reflexatildeo natildeo criacutetica de assuntos banalizados pela repeticcedilatildeo ndash como o aborto e a pena de morte ndash e acessaraacute a capacidade de imaginaccedilatildeo dos alunos como ponto de partida para a invenccedilatildeo de uma nova retoacuterica (BERTHOFF 1983)

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A construccedilatildeo do argumento

A retoacuterica da libertaccedilatildeo natildeo estaacute completamente livre de criacuteticas no entanto Alguns pesquisadores questionam a politizaccedilatildeo aberta da sala de aula como for-ma de entregar o poder aos alunos Ellsworth (1989) faz uma ampla criacutetica a essa pedagogia Seu argumento central se baseia na crenccedila de que a maior parte dos cursos que se dizem adeptos dessa pedagogia na verdade tecircm intenccedilotildees poliacuteticas veladas escondidas atraacutes do clamor por ldquoconsciecircncia criacuteticardquo o que cria dessa forma mais um ambiente em que uma determinada doutrina poliacutetica eacute defendida em detrimento de outras Lazere (1992 p 9) questiona outra premissa da retoacuterica da libertaccedilatildeo ao declarar que

[] os esquerdistas erram terrivelmente ao rejeitar a restauraccedilatildeo de uma ecircnfase nas habilidades e conhecimentos fundamentais que podem impulsionar a real liberaccedilatildeo ndash natildeo opressatildeo ndash caso sejam transmitidos com bom senso abertura e pluralismo cultural aleacutem de uma aplicaccedilatildeo desses conhecimentos baacutesicos agrave habilidade de pensar de forma criacutetica especialmente a respeito de questotildees sociopoliacuteticas em vez de buscar a mera memorizaccedilatildeo de conceitos

A inquietaccedilatildeo de Lazere eacute irrelevante visto que caso um indiviacuteduo queira superar o poder sistemaacutetico da sociedade ele deve poder empregar o discurso de poder da forma correta para se comunicar de maneira bem sucedida com quem deteacutem o poder Mesmo os mais fervorosos apoiadores da retoacuterica da liberaccedilatildeo vis-lumbram problemas potenciais nesses fins especiacuteficos Bizzell (1997 p 320) por exemplo critica a sugestatildeo de que o reconhecimento da desigualdade ldquo[] tambeacutem desperta automaticamente o desejo progressivo de reforma poliacuteticardquo Reconhecer o status dos alunos necessariamente atribui-lhes o poderio de se manter imoacuteveis especialmente quando eles percebem que seus proacuteprios privileacutegios satildeo colocados agrave prova quando o status quo tambeacutem o eacute

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A construccedilatildeo do argumento

Apesar dos pontos de vista divergentes acerca dos valores da pedagogia liber-tadora estudiosos da aacuterea ainda atribuem valor agrave busca por lutas ideoloacutegicas na sala de aula de escrita A praacutetica da retoacuterica da liberaccedilatildeo no entanto pode tomar diversas formas de acordo com o professor e o material didaacutetico Shor (1980 p 162-69) parte dos artifiacutecios cotidianos jaacute que integram o ldquouniverso geradorrdquo dos alunos Eacute o caso da atividade que propotildee (Worldrsquos Biggest Hamburger ndash Atividade do maior hambuacuterguer do mundo) criada quando a autora trouxe um hambuacuterguer para a sala de aula para que seus alunos o examinassem de acordo com o meacutetodo de Descriccedilatildeo-Diagnoacutestico-Reconstruccedilatildeo

O hambuacuterguer eacute o nexo de muitas realidades cotidianas Natildeo apenas eacute o rei dos fast food a refeiccedilatildeo curta de almoccedilo lanche ou jantar mas eacute tam-beacutem a fonte de renda de muitos alunos que trabalham nesses restauran-tes Eu pude entatildeo segurar em minhas matildeos um interstiacutecio valioso da experiecircncia da massificaccedilatildeo Levei um hambuacuterguer para a sala de aula e com isso interferi em um grande aspecto da cultura de massa Agora que reflito a respeito muitos dos alunos acharam aquele hambuacuterguer nojento Quando reli para a sala um conjunto de suas descriccedilotildees o ham-buacuterguer tomou uma forma bastante negativa Em seguida pedi aos alu-nos que tentassem diagnosticar o objeto O problema oacutebvio sugerido por nosso trabalho ateacute o momento era Se o hambuacuterguer natildeo eacute atraente por-que consumimos muito Porque haacute tantos fast food Porque satildeo usados muitos ingredientes em hambuacutergueres Eles satildeo nutritivos Onde pro-curaacutevamos alimento antes desses impeacuterios de comida raacutepida existirem

Depois de os alunos considerarem o hambuacuterguer sob uma temaacutetica inquisi-tiva mais polecircmica foi-lhes atribuiacuteda a tarefa de reconstruiacute-lo ndash salas diferentes desenvolveram essa fase de maneiras distintas Um dos grupos criou alternativas saudaacuteveis enquanto outro recriou todo o processo de produccedilatildeo e distribuiccedilatildeo para desvendar a complexa relaccedilatildeo entre comida e cultura Shor (1980) acredita que ati-vidades dessa natureza satildeo poderosas porque descaracterizam objetos cotidianos

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ao apresentaacute-los sob uma nova perspectiva e contexto o que permite aos alunos a oportunidade de reinterpretar o corriqueiro Professores de argumento devem introduzir exerciacutecios dessa natureza porque eles satildeo abertamente argumentativos Os alunos teratildeo opiniotildees distintas inevitavelmente a respeito da natureza do que eacute corriqueiro em suas vidas No entanto se observado sob a oacutetica ideal o exerciacutecio pode deixar claro que as tentativas de descrever diagnosticar e reconstruir satildeo na verdade conceitos pessoais unidos uns aos outros por posicionamentos poliacuteticos

Outra forma que a retoacuterica da liberaccedilatildeo assume eacute exemplificada por Berlin (2003) quando trata sobre ldquoretoacuterica socioepistecircmicardquo Uma sequecircncia de exerciacutecios comeccedila

[] com uma mateacuteria do Wall Street Journal intitulada The Days of a Cowboy are Marked by Danger Drudgery and Low Pay (O dia a dia de um vaqueiro eacute marcado por perigo labuta e salaacuterio piacutefio) escrito por William Blundell As instruccedilotildees satildeo ao mesmo tempo variadas e acessiacuteveis aos alunos Inicialmente a turma deve levar em conta o contexto da mateacute-ria explorando as caracteriacutesticas da relaccedilatildeo entre o jornal e os eventos histoacutericos que circundam a produccedilatildeo do texto O objetivo da anaacutelise eacute determinar quais aspectos serviram de significantes principais para os leitores originais O significado da palavra cowboss (capataz ou patratildeo) eacute estabelecido pela relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre cowboy (vaqueiro ou peatildeo de boiadeiro) e o chefe que trabalha na cidade longe da fazenda (Essas) dicotomias sugerem outras como natureza-civilizaccedilatildeo e peatildeo-peatildeo ur-bano Os alunos passam entatildeo a notar que essas dicotomias satildeo estabe-lecidas de forma hieraacuterquica com um dos lados em posiccedilatildeo de privileacutegio em relaccedilatildeo ao outro Eles tambeacutem veem o quanto essas hierarquias satildeo instaacuteveis Os alunos analisam discutem e escrevem sobre posiccedilotildees acer-ca de certos aspectos determinantes dentro dessas narrativas social-mente preacute-fabricadas e descobrem que o texto busca posicionar o leitor sobre um determinado tipo de papel masculino Eles podem entatildeo ex-plorar sua proacutepria cumplicidade e resistecircncia ao se adequar a esse papel (BERLIN 2003 p 125-27)

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Essa metodologia se adeacutequa bem aos objetivos propostos pelo autor a saber mostrar aos alunos que ldquonarrativasrdquo ndash praacuteticas significantes que parecem naturais e natildeo preacute-fabricadas ndash na verdade moldam suas vidas O conteuacutedo associado a essa sequecircncia estaacute centralizado no ldquo[] posicionamento de aspectos fundamentais in-seridos na textura da narrativa socialmente preacute-fabricadardquo (BERLIN 2003 p 126) Por exemplo embora individualidade e liberdade sejam aspectos frequentemente associados a peotildees de boiadeiro o artigo tambeacutem descreve essas personagens como merecedoras de respeito e submissas ao cowboss (o patratildeo) Uma vez que a narra-tiva eacute destrinchada uma anaacutelise mais consciente do conteuacutedo permite aos alunos situar cada narrativa em um cenaacuterio econocircmico social e poliacutetico mais abrangente

Schutt (1998 p 126) sugere basear o conteuacutedo do curso em espaccedilos sociais

Os benefiacutecios da utilizaccedilatildeo de casos especiacuteficos como texto base pare-cem ter surgido recentemente em conjunto com o conceito emergente de ldquozonas de contatordquo Como definido por Mary Louise Pratt essas zo-nas satildeo ldquoos espaccedilos sociais nos quais culturas distintas se encontram se confrontam e debatem entre si frequentemente em contextos permea-dos por relaccedilotildees de poder profundamente assimeacutetricasrdquoNo caso de E306 esses espaccedilos sociais eram os tribunais americanos No entanto em muitos cursos sobre argumento nenhum espaccedilo (ou even-to) de natureza social pode ser confrontado jaacute que frequentemente ne-nhum espaccedilo dessa natureza eacute assim definido o que cria uma profunda confusatildeo a respeito de quando e como os alunos podem iniciar uma dis-cussatildeo

A soluccedilatildeo para esse problema apresentada pelo autor eacute o agrupamento de leituras em torno do toacutepico da pena de morte que consequentemente leva a dis-cussotildees a respeito da forma como os tribunais administram a justiccedila em nossa sociedade Os exerciacutecios de escrita variam de uma anaacutelise criacutetica de documentos e transcriccedilotildees do processo legal (com comentaacuterios acerca do sucesso particular desse ou daquele argumento legal) agrave produccedilatildeo de textos sobre o impacto perceptual na

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A construccedilatildeo do argumento

opiniatildeo puacuteblica de relatos fictiacutecios de filmes sobre a pena de morte e finamente a anaacutelises criacuteticas e ensaios sobre o impacto do texto jornaliacutestico sobre a opiniatildeo puacuteblica em geral

Certamente natildeo haacute uma forma uacutenica de incorporar a retoacuterica da libertaccedilatildeo agrave aula sobre argumento Apesar de natildeo faltarem inconsistecircncias um programa de aulas desenhado para preparar alunos para o engajamento criacutetico em relaccedilatildeo ao mundo agrave sua volta necessariamente contribuiraacute para a expansatildeo de seus pontos de vista acerca das possibilidades abertas pela retoacuterica indutiva Assim que eles passarem a questionar as figuras de autoridade o reino da invenccedilatildeo retoacuterica poderaacute se expandir exponencialmente Jaacute que muitos dos espaccedilos para discussatildeo estatildeo situados em torno de objetos corriqueiros natildeo seraacute difiacutecil encontrar pontos discutiacuteveis ou engajar alunos em diaacutelogos que exijam deles o questionamento criacute-tico dos pressupostos que possuem

feminismo e argumentaccedilatildeo

A abordagem feminista da argumentaccedilatildeo surgiu da necessidade de encon-trar alternativas aos modelos claacutessicos de argumentaccedilatildeo e da necessidade de se focalizar menos os modelos agonistas e antagonistas que criam ldquovencedoresrdquo e ldquoperdedoresrdquo ou os modelos que pregam que a utilizaccedilatildeo de certas ferramentas de persuasatildeo eacute vaacutelida apenas para se conseguir o que se deseja Em movimento contraacuterio a estrateacutegia feminista se concentra em novas formas de abordar a argu-mentaccedilatildeo a partir de alternativas eacuteticas que reposicionam as partes exteriores ao debate para que a argumentaccedilatildeo a mediaccedilatildeo a negociaccedilatildeo e a cooperaccedilatildeo sejam vistos de forma menos antagonista

Em suas primeiras manifestaccedilotildees as correntes alternativas agrave abordagem aristoteacutelica tentaram se inspirar na obra de Carl Rogers um psicoterapeuta cujos trabalhos se centraram em torno da comunicaccedilatildeo terapeuta-cliente O trabalho de Roger influenciou os campos da retoacuterica e escrita desde 1970 e foi mencio-

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A construccedilatildeo do argumento

nado como uma ldquoalternativa agrave argumentaccedilatildeo tradicionalrdquo por Young Becker e Pikes (1970 p 270) Segundo os autores a abordagem rogeriana foi considerada adequada a ldquo[] situaccedilotildees em que haacute diacuteade comunicativardquo A retoacuterica rogeriana foi ardentemente contestada no final da deacutecada de 1970 e durante toda a deacutecada de 1980 em textos como Carl Rogersrsquos Alternative to Traditional Rhetoricrdquo (HAIRSTON 1976) Aristotelian vs Rogerian Argument A Reassessment (LUNSFORF 1979) Is Rogerian Rhetoric Really Rogerianrdquo(EDE 1984) Rogerian Problem Solving and the Rhetoric of Argumentation (TEICH 1987) e Feminist Responses to Rogerian Argu-ment (LASSNER 1990)

O trabalho de Carl Roger quando adaptado agrave escrita e agrave retoacuterica apresentou uma teoria da argumentaccedilatildeo baseada na ldquoaudiccedilatildeo e compreensatildeordquo repletas de em-patia e na habilidade das partes de enxergarem uma discussatildeo especiacutefica a partir de um ponto de vista diferente de forma que fosse possiacutevel ldquosentir realmenterdquo o que significa trilhar os passos de outra pessoa para se comunicar de forma efi-caz (yOUNG BECKER PIKES 1970 p 285) O trabalho tornou-se atraente para ideologias feministas emergentes no estudo de escrita jaacute que a retoacuterica rogeriana oferecia ldquo[] empatia em vez de oposiccedilatildeo diaacutelogo em vez de discussatildeordquo (LASSNER 1990 p 220) Mesmo assim a retoacuterica rogeriana nunca foi abertamente feminista como defende Lamb (1991 p 17) porque eacute ldquomais feminina do que feministardquo jaacute que ldquocompreender o outro sempre foi a lsquoobrigaccedilatildeorsquo da mulherrdquo

Teorias e abordagens da argumentaccedilatildeo feminista visam entatildeo a oferta de alternativas que se preocupem com a representaccedilatildeo de poder ao mesmo tempo em que se ocupam da empatia e do cuidado De acordo com Lamb (1991 p 18) entender a construccedilatildeo do argumento como um processo de negociaccedilatildeo e media-ccedilatildeo eacute uma alternativa vaacutelida ao argumento masculino porque o ponto central da discussatildeo ldquo[] deixa de ser o ganhador e passa a ser a habilidade de se atingir uma soluccedilatildeo justa adequada a ambas as partesrdquo da mesma forma que a concepccedilatildeo de poder muda ldquode algo que eacute possuiacutedo e pode ser usado contra o outro para algo que estaacute agrave disposiccedilatildeo de ambos e tem o potencial de ser usado para benefiacutecio muacutetuordquo

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Abordagens cooperativas que envolvem negociaccedilatildeo e mediaccedilatildeo satildeo pontos de vista populares na representaccedilatildeo feminista da argumentaccedilatildeo mas natildeo satildeo desprovidas no entanto de criacuteticas advindas do proacuteprio movimento feminista Muitos pesquisadores apontam que esse estilo de argumento se baseia numa visatildeo truncada da visatildeo claacutessica (ver por exemplo LUNSFORD 1979) ou na metaacutefora excessivamente simplista da ldquodiscussatildeo como forma de guerrardquo (FULKERSON 1996) Como ilustra Jarratt (1991 p 106) pedagogias da argumentaccedilatildeo centradas na negociaccedilatildeo e mediaccedilatildeo frequentemente exigem que os alunos especialmente os do sexo feminino a estarem ldquo[] insuficientemente preparados para argumentar contra os discursos opressivos do racismo sexismo e divisatildeo de classes que ten-dem a surgir em ambientes onde se estuda escritardquo no dia a dia e nos processos democraacuteticos De forma similar Easley (1997) diz que a melhor estrateacutegia a ser empregada por um professor de escrita ao abordar as diferenccedilas e conflitos ine-rentes agrave argumentaccedilatildeo tradicional em contraste com as linhas de argumentaccedilatildeo alternativa eacute mostrar o contraditoacuterio da posiccedilatildeo diferente de dois alunos que deve por sua vez ser resolvido atraveacutes da produccedilatildeo textual Easley (1997) acredita que os alunos devem ter acesso a ferramentas de argumentaccedilatildeo da mesma forma que devem aprender a utilizaacute-las de maneira eacutetica reflexiva e responsaacutevel Aleacutem disso Fulkerson (1996) sugere que reparar as metaacuteforas de abordagem da argumentaccedilatildeo que refletem menos violecircncia porque focam mais os trabalhos desenvolvidos por meio de parcerias pode levar a um entendimento de argumentaccedilatildeo

[]como uma forma interativa de discurso [hellip] construiacuteda sobre uma estrutura de reivindicaccedilatildeo e apoio e (reiterando a ideia) de que seu pro-poacutesito eacute engajar interlocutores em uma parceria dialeacutetica com a espe-ranccedila de atingir um entendimento muacutetuo que amplie a compreensatildeo (FULKERSON 1996 p 7)

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Fraser (1992 p 73) aborda o conceito de argumentaccedilatildeo e discurso domi-nante ao sugerir que em sociedades estratificadas ldquoarenas discursivas especia-lizadasrdquo ndash na forma de esferas puacuteblicas subalternas ndash satildeo uacuteteis e necessaacuterias para os que lidam diretamente com identidades marginalizadas Extensotildees de teorias da argumentaccedilatildeo feminista tambeacutem podem ser encontradas na teoria retoacuterica moderna por pesquisadores que incorporem o trabalho de Kenneth Burke (FOSS e GRIFFIN 1992) a hermenecircutica posicional (RyAN NATALLE) e a retoacuterica de atraccedilatildeo (FOSS e GRIFFIN 1995)

Ainda que as teorias feministas da argumentaccedilatildeo sejam elas mesmas nego-ciadas as praacuteticas que emergem no ensino do argumento refletem alguns dos princiacutepios essenciais do pensamento e da accedilatildeo feministas Fulkerson (1996) sugere que os alunos escrevam propostas de poliacuteticas que requeiram a investigaccedilatildeo e a escrita de algum pequeno procedimento ou projeto de poliacuteticas locais para ser-viccedilos que eles acreditam natildeo estar funcionando de maneira adequada Esse texto argumentativo deve ser endereccedilado natildeo a um oponente que precisa ser vencido mas sob a forma de um memorando agrave pessoa ou comitecirc responsaacutevel pelo proble-ma O autor propotildee ensinar aos alunos as principais caracteriacutesticas e padrotildees de raciociacutenio utilizados nesse gecircnero textual apresentar exemplos de outros grupos sugerir locais onde se possa pesquisar toacutepicos interessantes entrevistar pessoas conhecedoras do assunto (especialmente as envolvidas com o problema) e seguir o processo tradicional de produccedilatildeo de diferentes rascunhos que deve ser revisado pelos proacuteprios colegas Ele tambeacutem discute

[] a relativa capacidade de persuasatildeo de um ataque enervado ou agressi-vo versus uma criacutetica razoaacutevel com soluccedilotildees propostas que sejam de faacutecil adoccedilatildeo Assim que os textos apresentem um formato adequado ele pede aos alunos que as enviem a quem satildeo de direito para verificar o potencial sucesso de seu trabalho no mundo real (FULKERSON 1996 p 3-4)

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Nesse ponto Fulkerson sugere que o gecircnero textual que propotildee novas poliacute-ticas eacute o que aborda injusticcedilas perpetradas na comunidade imediata da mesma forma que aborda uma argumentaccedilatildeo em parceria com ndash direcionada a buscar um consenso mutuamente satisfatoacuterio sobre a criaccedilatildeo de mudanccedilas no processo democraacutetico

Miller (1996) aborda teorias femininas de forma diferente em um curso online Feminism and Expository Writing (Feminismo e a escrita expositiva) Baseando a tarefa proposta em ldquoassuntos pertinentes agrave retoacuterica feministardquo a autora afirma que

[] a argumentaccedilatildeo eacute uma das principais formas de praticar o ldquosaber me-todoloacutegicordquo ou seja um pensamento sistemaacutetico Como habilidades ar-gumentativas satildeo valorizadas nessa cultura eacute importante aprendecirc-las Mesmo assim muitas feministas aleacutem de outras pessoas apresentam objeccedilotildees agrave argumentaccedilatildeo tradicional baseadas em diferentes aspectos inerentes agrave teoria Elas dizem tratar-se de posiccedilatildeo frequentemente in-tolerante de visotildees opositoras e focada na conversatildeo ou destruiccedilatildeo do oponente (MILLER 1996 p 8)

Para deixar a tensatildeo mais palpaacutevel para os alunos Miller propotildee uma tarefa em que ela pede

[] que os alunos se unam a outra pessoa para ldquocolaborarrdquo na estrutu-raccedilatildeo de um argumento em que cada uma das partes assume um pon-to de vista diferenteoposto a respeito de um assunto de sua escolha Eles devem trabalhar juntos para desenvolver formas de argumentar que natildeo possuam caracteriacutesticas tradicionalmente agoniacutesticas Como discordar de forma respeitosa que reconhece perspectivas pluralis-tas e ainda assim consegue apresentar seu ponto de vista Eacute possiacutevel durante uma discussatildeo se manter amaacutevel e em conexatildeo com o outro (MILLER 1996 p 8)

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Assim Miller sugere Easley (1997) permite que os alunos articulem e nego-ciem as tensotildees inerentes aos modelos de argumentaccedilatildeo feminista por si mesmos

Praacuteticas e abordagens da argumentaccedilatildeo feminista satildeo contraditoacuterias No entanto eacute razoaacutevel dizer que essas contradiccedilotildees fazem essas abordagens viaacuteveis e sustentaacuteveis Utilizar respostas e abordagens feministas em nossa sala de aula natildeo apenas beneficia os alunos porque lhes oferecer uma ampla gama de estrateacute-gias argumentativas que se somam agraves ferramentas retoacutericas jaacute agrave disposiccedilatildeo mas tambeacutem porque encoraja os professorespesquisadores a ldquo[] romperem com abordagens calcificadas acriacuteticasrdquo tanto na abordagem do argumento quanto no ensino (PALCZEWSKI 1996 p161)

aprendizagem-serviccedilo e argumentaccedilatildeo

As raiacutezes da aprendizagem-serviccedilo na retoacuterica da escrita se encontram na ldquomudanccedila socialrdquo da aacuterea conforme detalha Cooper (1986) A autora faz alusatildeo agrave pedagogia que se preocupa com o proacuteprio processo de escrita assim como a reflete

[] a crescente consciecircncia de que a linguagem e os textos natildeo satildeo ape-nas os meios pelos quais os indiviacuteduos decodificam e comunicam infor-maccedilatildeo mas essencialmente atividades sociais que como tal dependem de estruturas e processos sociais natildeo apenas na interpretaccedilatildeo mas tam-beacutem na construccedilatildeo (COOPER 1986 p 366)

Os objetivos da aprendizagem-serviccedilo estatildeo ligados tanto ao trabalho realiza-do por John Dewey para quem a educaccedilatildeo tem uma funccedilatildeo democraacutetica expliacutecita quanto agraves pedagogias da libertaccedilatildeo que baseadas nos trabalhos de Paulo Freire buscam a formaccedilatildeo de cidadatildeos com consciecircncia criacutetica a respeito das instituiccedilotildees de poder e capazes de trabalhar para combater injusticcedilas sociais Desde meados da deacutecada de 1990 alguns pesquisadores tentam estabelecer a aprendizagem-

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A construccedilatildeo do argumento

-serviccedilo como um toacutepico relevante para os estudos sobre argumento a exemplo de Herzberg (1994) Cushman (1997) e Adler-Kassner Crooks e Watters (1997) Recentemente a aprendizagem-serviccedilo tambeacutem esteve ligada agrave ideia que a escrita eficiente eacute situada ou seja ocorre em espaccedilo para aleacutem da sala de aula para garantir que estudantes tenham acesso a situaccedilotildees retoacutericas reais29

Apesar de intimamente ligada agrave teoria da argumentaccedilatildeo a aprendizagem--serviccedilo tem uma linhagem muito mais antiga o pensamento de Quintiliano se-gundo o qual quem argumenta bem eacute um ldquobom homem que fala bemrdquo Em outras palavras o pressuposto de que a habilidade de persuasatildeo de um determinado indiviacuteduo estaacute tanto ligada a seu caraacuteter eacutetico e ao dever ciacutevico de agir com retidatildeo quanto agrave questatildeo retoacuterica em si A pedagogia da aprendizagem-serviccedilo portanto trata da formaccedilatildeo de um cidadatildeo-orador algueacutem que ldquo[] pode trazer agrave tona suas habilidades discursivas quando a comunidade a que serve for obrigada a enfrentar uma decisatildeo poliacutetica ou judicial difiacutecil ou precisa celebrar seu valor cultural iacutempar ou apenas sinta-se carente de uma injeccedilatildeo de moralrdquo (CROWLEY 1989 p 318)

Essa pedagogia no entanto natildeo estaacute inteiramente livre de criacuteticas A apren-dizagem-serviccedilo vem sendo criticada como ldquo[] hiperpragmaacutetica porque precisa manter a anaacutelise criacuteticardquo (SCOTT 2004 p 301) como excessivamente idealista em suas expectativas de transformaccedilatildeo social (ROZyCKI 2002) e como desatenta agraves relaccedilotildees de poder entre as universidades e as comunidades em que se situam especialmente quando levada em conta a repentina popularidade de iniciativas para captaccedilatildeo de recursos baseadas apenas na aprendizagem-serviccedilo sem qual-quer avaliaccedilatildeo criacutetica (MAHALA e SWILKy 2003) Agrave medida que as universidades satildeo impelidas de divulgar suas parcerias comunitaacuterias para arrecadar fundos e adaptam cada vez mais suas declaraccedilotildees de missatildeo para incluir o compromisso com o serviccedilo agrave comunidade (WILLIAM AND MARy UNIVERSITy WEB 2004) ou

29 ver tambeacutem Heilker (1997) e Mauk (2003)

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A construccedilatildeo do argumento

a outros grupos locais regionais nacionais e internacionais muitos podem se sentir pressionados a buscar iniciativas ligadas agrave aprendizagem-serviccedilo sem que haja qualquer intenccedilatildeo real de transformaccedilatildeo social Aleacutem disso muito se tem questionado ndash de ambos os lados ndash a autenticidade dos propoacutesitos dos trabalhos de escrita que as situaccedilotildees retoacutericas reais podem oferecer aos estudantes para produzir textos30

Entretanto apesar do aparente apogeu da aprendizagem-serviccedilo estar chegan-do ao seu inevitaacutevel fim alguns pesquisadores tecircm se dedicado agrave defesa de inicia-tivas dessa natureza produzindo material que atesta a sustentabilidade em larga escala de programas de aprendizagem-serviccedilo em todo territoacuterio norte-americano (ROBINSON 2005 CUSHMAN 2002) Essa pedagogia adveacutem de um compromisso com a accedilatildeo democraacutetica e o serviccedilo comunitaacuterio e frequentemente eacute composta por aspectos da aprendizagem experiencial que transcende a sala de aula e trata das necessidades da comunidade local e inclui a reflexatildeo estruturada da experi-mentaccedilatildeo (SCOTT 2004) Assim as melhores praacuteticas da aprendizagem-serviccedilo e da argumentaccedilatildeo satildeo aquelas que apoiam a filosofia de Quintiliano e ao mesmo tempo contribuem para um melhor entendimento da aprendizagem experiencial da comunidade da geografia e da reflexatildeo criacutetica

A utilizaccedilatildeo de praacuteticas de aprendizagem-serviccedilo na sala de aula para o en-sino da argumentaccedilatildeo pode ser tatildeo simples quanto a sugestatildeo de um argumento proposto para combater alguma injusticcedila que assola a comunidade imediata ao mesmo tempo em que pode como sugere Mauk (2003 p381) ser uma forma de provocar nos estudantes a reflexatildeo criacutetica a respeito de cidadania e de cuidados de sauacutede

Uma investigaccedilatildeo ou tarefa comeccedila com a leitura de uma accedilatildeo poliacutetica Os alunos satildeo levados a levantar os nomes de funcionaacuterios puacuteblicos elei-

30 ver Deans (2000) e Petraglia (1995)

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A construccedilatildeo do argumento

tos ou natildeo nos acircmbitos municipal estadual ou federal Eles satildeo depois levados a produzir um pequeno texto [argumento] ou desenvolver um panfleto que explique detalhadamente como um cidadatildeo comum pode se colocar em contato com esse representante Os alunos entatildeo entregam esse texto a seus vizinhos e em um trabalho subsequente exploram o impacto do trabalho previamente divulgado Para esse segundo texto os alunos podem organizar encontros ou recorrer a outros textos sobre accedilotildees ciacutevicas

Os argumentos ligados a atividades de aprendizagem-serviccedilo podem ser ligeiramente mais complexos e servirem para que os alunos critiquem suas vi-vecircncias durante as atividades de aprendizagem ou ideais como a de ldquoalfabetizaccedilatildeo ciacutevicardquo que satildeo centrais para o modelo de Quintiliano Os estudantes tambeacutem podem discutir a escrita argumentativa e como ela se insere em aulas baseadas em aprendizagem-serviccedilo apostando diretamente como explicam Cooper e Julier (2011 p 86)

Nossos alunos pesquisaram e coletaram informaccedilotildees a respeito da emenda proposta [para proteger cidadatildeos da discriminaccedilatildeo baseada em altura peso origem familiar orientaccedilatildeo sexual porte ou presenccedila de deficiecircncia fiacutesica] publicadas na imprensa local Eles entatildeo solicitaram declaraccedilotildees de posicionamento de diferentes indiviacuteduos e organizaccedilotildees Outros alunos acompanharam o debate quando a cacircmara municipal se isentou das discussotildees atribuindo-as ao Conselho de Relaccedilotildees Humanas Contra esse pano de fundo contextual pedimos que nossos alunos dese-nhassem e conduzissem uma pesquisa de opiniatildeo puacuteblica para ajudar o Conselho de Relaccedilotildees Humanas da cidade de Lansing a decidir se reco-mendaria ou natildeo agrave cacircmara a adoccedilatildeo da regulamentaccedilatildeo [o que resultou no rascunho de um memorando] para o Conselho sugerindo medidas acerca da regulamentaccedilatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

O que eacute primordial entre as melhores praacuteticas de argumento em cursos de aprendizagem-serviccedilo que observem um modelo democraacuteticoretoacuterico de ensino de escrita eacute a ecircnfase sobre os valores ciacutevicos da resoluccedilatildeo de conflitos aleacutem do compromisso com o engajamento de estudantes ao discurso puacuteblico de forma a ldquo[] forjar declaraccedilotildees duradouras de reciprocidade ciacutevica e obrigaccedilatildeo eacuteticardquo (COOPER e JULIER 2011 p 92) Em resumo produzir bons homens e mulheres capazes de falar (e escrever) bem

esCrita atraveacutes do CurrIacuteCulo (writing across the curriculum ndash WaC) e esCrita nas disCiplinas (writing in the disciplines ndash Wid)

A escrita atraveacutes do curriacuteculo (WAC) eacute um movimento pedagoacutegico que tem como princiacutepio central a ideia de que os alunos retecircm melhor o conhecimento quando estatildeo envolvidos em atividades de escrita O modelo padratildeo do movimen-to prevecirc cursos especiacuteficos de escrita em uma variedade de disciplinas Nesses cursos os alunos sintetizam analisam e aplicam conhecimentos que adquiriram necessariamente atraveacutes da escrita Apesar de serem constantemente fundidos e confundidos a WAC e a escrita nas disciplinas(WID) possuem fundamentos dis-tintos A WID eacute um ldquo[] movimento de pesquisa que busca compreender quais os tipos de escrita que realmente ocorrem em diferentes aacutereas disciplinaresrdquo (BA-ZERMAN et al 2005 p 10) que se seguiu ao movimento WAC e preencheu um vazio teoacuterico deixado pelos especialistas que estudaram esse movimento (JONES e COMPRONE 1993) Enquanto a WAC estaacute fundamentalmente preocupada com o desenvolvimento de uma atmosfera em que a escrita eacute sistematicamente encorajada atraveacutes do treinamento de professores e do estiacutemulo aos alunos para a escrita a WID visa desvendar as distinccedilotildees teoacutericas que as diferentes visotildees disciplinares exercem no papel da escrita e examinar a fundo os tipos de escrita que ocorrem

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A construccedilatildeo do argumento

nas diversas disciplinas (BAZERMAN 2005) A WAC e a WID satildeo relevantes para as boas praacuteticas de ensino de argumento de duas formas diferentes

1 Aqueles que ensinam segundo um programa de WAC ou os que desenvol-vem pesquisas na aacuterea de WID se concentram em teorias do argumento como a base para suas atividades Diferentes formas de escrever nas disciplinas resultam tipicamente em diferentes formas de argumentar nas disciplinas2 As liccedilotildees ndash e em alguns casos os debates ndash deixados pelo estudo de WAC e WID frequentemente podem ser aplicados agrave realidade da escrita durante os cursos

Como aponta Bartholomae (1997 p 589)

[] cada vez que um aluno se senta para escrever ele precisa ldquoinventarrdquo uma universidade que se adapte agrave ocasiatildeo que ele vive ndash inventar aqui refere-se tanto agrave universidade em si quanto a suas subdivisotildees como o Departamento de Antropologia Economia ou Inglecircs O aluno nessa cir-cunstacircncia precisa aprender a falar a liacutengua de seu professor a falar como fala o acadecircmico a experimentar as diferentes e peculiares formas de saber selecionar avaliar reportar concluir e argumentar que defi-nem o discurso dessa comunidade em particular

Uma das mais antigas tentativas de teorizar sobre a construccedilatildeo de argumen-tos em diferentes disciplinas foi realizada por Toulmin (1999) em seu The Uses of Argument O autor sugere a necessidade de primeiramente se levar em conta a distinccedilatildeo entre elementos campo-invariaacutevel e campo-dependente antes de cri-ticar um determinado argumento Os elementos do campo-invariaacutevel denotam a existecircncia de convenccedilotildees como as mencionadas por Bartholomae (1997) Essas convenccedilotildees mantecircm-se relativamente em uma variedade de disciplinas Indepen-dente do campo a induccedilatildeo tem iniacutecio na proposiccedilatildeo de um problema leva em conta

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A construccedilatildeo do argumento

limitaccedilotildees e se fia em evidecircncias para construir um argumento Jaacute os elementos do campo-dependente por outro lado estatildeo em constante mutaccedilatildeo Eles incluem por exemplo os padrotildees usados para determinar quais os assuntos satildeo proacuteprios para o estudo e quais afirmaccedilotildees requerem ou natildeo uma base argumentativa Basica-mente as diferenccedilas entre as formas de escrita de historiadores e bioacutelogos estatildeo nas formas especiacuteficas que essas aacutereas defendem para a criaccedilatildeo suporte e eluci-daccedilatildeo de argumentos Os elementos do campo-dependente tambeacutem podem variar dentro de uma mesma disciplina Um exemplo disso satildeo as visotildees divergentes dos pesquisadores do ensino de escrita em inglecircs a respeito do que constitui um dado vaacutelido em uma pesquisa alguns defendem dados etnograacuteficos e observacionais enquanto outros preferem dados quantitativos e empiacutericos Essas diferenccedilas de entendimento remontam agrave compreensatildeo que os membros desses grupos especiacuteficos tecircm do que constitui induccedilatildeo e argumento vaacutelidos

Em seu claacutessico artigo Writing as a Mode of Learning Emig (1997) foi quem primeiro associou o estudo da escrita a certas questotildees sobre a WAC e WID Ela se vale das teorias de Vygotsky James Britton e outros para argumentar que a escrita eacute uma forma de aprendizagem ldquouacutenicardquo em parte porque ldquopode subsidiar o apren-dizado jaacute que consegue acompanhar seu ritmordquo (EMIG 1997 p 12) A natureza recursiva da escrita permite ao indiviacuteduo processar e compreender a informaccedilatildeo de maneira que a fala e o raciociacutenio sozinhos tendem a dificultar Foram os ensaios de Emig que legitimaram algumas tentativas pioneiras de implementar a WAC

Alguns dos debates associados agrave WAC tambeacutem tecircm implicaccedilotildees relevantes para a leitura de textos argumentativos apresentados em cursos de escrita O trabalho de Russell (1995) sobre a Teoria da Atividade desafia a noccedilatildeo de que a escrita pode ser usada em todas as disciplinas Russell (1995) se utilizou nes-se caso da teoria de Vygotsky a teoria da atividade pressupotildee a existecircncia de ldquosistemas de atividaderdquo similares a campos ou comunidades discursivas que se utilizam de contextos especiacuteficos para produzir conhecimento Esses sistemas de atividade tecircm histoacuterias de interaccedilatildeo canonizadas pela literatura e se utilizam de

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A construccedilatildeo do argumento

ferramentas tanto fiacutesicas (computadores calculadoras) quanto semioacuteticas (fala e escrita) para articular ideias e produzir conhecimento a partir do mundo Eles se modificam atraveacutes de discussotildees que ocorrem dentro deles mesmos aleacutem de emprestar e transformar ferramentas de outras disciplinas para atingir seus fins Partindo desse ponto de vista existem apenas alguns ndash se eacute que de fato existem ndash elementos do campo-invariaacutevel e nenhuma parte da escrita pode ser considerada uma habilidade autocircnoma

Para verificar a relevacircncia que os trabalhos acerca da WACWID tecircm sobre a construccedilatildeo do argumento consideremos o trabalho realizado por alunos de um curso de Economia focado em ajudaacute-los a definir construccedilotildees e termos da aacuterea Para despertar a sensibilidade para esses conceitos Palamini (1996 p 206) sugere o uso de rhetorical cases (casos retoacutericos)

O caso retoacuterico ndash ou estudo de caso retoacuterico ndash eacute um problema de uma histoacuteria independente que simula uma situaccedilatildeo real de comunicaccedilatildeo O caso disponibiliza informaccedilatildeo acerca de contextos experienciais e edu-cacionais de escritores e leitores Mais importante ele especifica uma situaccedilatildeo particular de escrita (ou foacuterum) e portanto o tipo de relacio-namento que existe entre autor e leitor ou seja seus papeacuteis organizacio-nais muacutetuos e seus propoacutesitos O aluno entatildeo assume o papel de autor e se esforccedila para explicar de maneira persuasiva como a anaacutelise econocirc-mica pode ajudar o leitor a compreender seu negoacutecio ndash ou outro tipo de problema econocircmico ndash e tomar decisotildees positivas

Para ilustrar seu meacutetodo Palamini (1996) usa o exemplo de um economista de um sindicato que discute informaccedilotildees referentes ao custo de vida com um grupo do mesmo sindicato responsaacutevel pela negociaccedilatildeo de um contrato O autor aponta o valor que esses ldquocasos retoacutericosrdquo tecircm sobre a necessidade de se considerar o puacuteblico alvo de um discurso em um determinado contexto Os economistas po-dem compreender a maneira ideal de se comunicar com seus semelhantes mas a

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A construccedilatildeo do argumento

natureza de seu trabalho envolve tambeacutem a habilidade de transmitir informaccedilotildees abstratas em uma linguagem que leigos possam compreender e utilizar No final Palamini delimita de forma mais extensiva um caso retoacuterico especiacutefico

A divisatildeo da responsabilidade do ensino de escrita eacute uma ideia que vem sendo aceita de forma lenta ndash mas constante ndash nos ciacuterculos acadecircmicos Os sistemas edu-cacionais massificados frequentemente ignoram a natureza da escrita e os alunos sofrem com o resultado de modelos redutores acriacuteticos de escrita encontrados na academia Se realmente existe a intenccedilatildeo de incentivar os estudantes a realmen-te encontrar e utilizar ferramentas de persuasatildeo mais eficazes o conhecimento da retoacuterica especializada e adequada a uma disciplina especiacutefica deveria ser um dos fundamentos das disciplinas comuns baacutesicas nas faculdades e universidades Refletir mais cuidadosamente sobre o papel da escrita na educaccedilatildeo pode levar os educadores a se interessarem mais por melhores praacuteticas de ensino e aprendi-zagem de escrita Apenas a compreensatildeo sobre como os modelos de escrita e de argumento ensinados em outros cursos diferem ou se assemelham aos modelos tradicionalmente ensinados em cursos de escrita pode permitir ajustes apropriados ao desenvolvimento de cursos e materiais didaacuteticos

Computador e esCrita

Para a maior parte dos alunos inscritos em cursos de escrita o computador e a escrita compotildeem uma parceria natural os rascunhos podem ser escritos e re-visados com a ajuda de vaacuterios programas de ediccedilatildeo de textos e-mails e papos on line satildeo redigidos e enviados agraves duacutezias diariamente A escrita produzida eletroni-camente jaacute domina atualmente os estudos sobre a escrita mas obviamente nem sempre foi assim Haacute alguns anos quando os programas de ediccedilatildeo de texto eram ainda restritos a uma ou outra plataforma e a disponibilidade de computadores pessoais se resumia a um sonho futuriacutestico os especialistas em escrita se dividiam sobre o impacto que a tecnologia e os computadores teriam sobre o campo

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Em 1983 foi criada a revista Computers and Composition que discutia ndash e ainda discute ndash a teoria e a praacutetica do uso de computadores na escrita Nos artigos publicados surgiram os mais importantes debates sobre o assunto Aleacutem disso nas paacuteginas de Computers and Composition os principais especialistas do campo (como Kate Kiefer Cynthia Selfe e Gail Hawisher que compotildeem um triunvirato pioneiro) continuam publicando seus estudos Qualquer professor interessado em compreender a histoacuteria e a evoluccedilatildeo do papel dos computadores no campo da escrita deve iniciar seus estudos consultando esse perioacutedico

Considerando-se que esse campo eacute ainda novo e as reaccedilotildees polarizadas de muitos professores agrave utilizaccedilatildeo da tecnologia diferentes visotildees sobre computador e escrita podem ser encontradas em vaacuterios artigos Um dos primeiros desses artigos publicado em Computers and Composition apresenta um debate entre professores de escrita teria a escrita por computador ldquo[] o potencial para produzir uma me-lhora global na qualidade dos textos dos nossos alunosrdquo (MORAN 2003 p 347) Brownell (1984 p 3) atesta que ldquo[] os editores de texto possibilitam escrever mais em menos tempo e realmente fazem de noacutes melhores escritoresrdquo Essa declaraccedilatildeo no entanto foi prontamente contestada por McAllister (1985) Sommers e Collins (1985) e mais tarde tambeacutem por Dowling (1994) e Collier (1995) Os professores interessados no assunto podem utilizar esse argumento para verificar a origem da polaridade entre tecnoacutefilos que acreditam no impacto positivo dos computadores sobre a escrita e os especialistas mais cautelosos (HARRIS 1995 BANGERT-DRO-WNS 1993) que acreditam serem necessaacuterias mais avaliaccedilotildees e mais evidecircncias concretas da eficaacutecia ou falecircncia do meacutetodo antes de incluir computadores nas aulas de escrita E o debate continua Muitos pesquisadores acreditam e utilizam as opiniotildees dos alunos para direcionarem sua proacutepria avaliaccedilatildeo acerca do ensino de escrita em salas de aula computadorizadas como fazem Gos (1996) Duffelmeyer (2001) e LeCourt e Barnes (1999) pioneiros na aacuterea

Igualmente eacute bastante debatida a forma como as tecnologias emergentes impactam o estudo e o ensino de argumentaccedilatildeo O avanccedilo contiacutenuo na criaccedilatildeo de

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hardware software e perifeacutericos abre muitas possibilidades (e potenciais armadi-lhas) agrave vida de professores de argumentaccedilatildeo Stephens (1984) foi um dos primeiros especialistas a teorizar a respeito do impacto dos computadores sobre a argumen-taccedilatildeo e a declarar que essas ferramentas aumentam as habilidades argumentativas dos estudantes Eacute loacutegico que no momento em que Stephens pensava suas teorias em 1984 os computadores eram sinocircnimos de editores de texto Conforme o seacuteculo XX avanccedila no entanto ocorre uma variedade nova de meacutetodos agrave disposiccedilatildeo de um professor muitos especialistas criaram hipoacuteteses acerca de como argumentar em ambientes hipertextuais de maneira eficaz por exemplo Marshall (1987) Conklin e Begeman (1987) Bolter (1991) Landow (1992) e Kolb (2005) Carter (2003) dis-cute a argumentaccedilatildeo em hipertexto de maneira bastante detalhada utilizando-se extensivamente do trabalho realizado por Perelman (2001) Williams (2002) a partir do ponto de vista de Toulmin declara que a interaccedilatildeo eacute fundamental para a utilizaccedilatildeo da persuasatildeo na Web Kajder e Bull (2003) e Williams e Jacobs (2004) exploram como os blogs podem oferecer aos estudantes uma consciecircncia a respeito do puacuteblico alvo aleacutem de oferecer um componente dialoacutegico crucial para a constru-ccedilatildeo de argumentos eficazes

Para os professores que datildeo aulas em ambiente digital McAlister Ravenscroft e Scanlon (2004) e Coffin e Hewings (2005) apresentam sugestotildees de como usar esses espaccedilos para garantir suporte agrave colaboraccedilatildeo e agrave construccedilatildeo de argumentos de maneira mais eficaz Para os especialistas que buscam um tratamento mais teacutecnico sobre a forma como a tecnologia pode se relacionar agrave argumentaccedilatildeo as ciecircncias da computaccedilatildeo jaacute dedicaram consideraacutevel espaccedilo ao assunto como pode ser observado nos trabalhos de Andriessen (2003) Baker (2006) Reed e Norman (2004) Kirschner Buckingham e Carr (2003) e McElholm (2002)

Para professores que buscam uma abordagem mais praacutetica haacute uma seacuterie de websites acadecircmicos agrave disposiccedilatildeo A citaccedilatildeo e confiabilidade de fontes online no entanto permanece ocupando uma posiccedilatildeo de suma importacircncia jaacute que os estu-dantes tendem cada vez mais a confiar em websites para fundamentar e pesquisar

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seus argumentos ndash sem no entanto atribuir a devida atenccedilatildeo ao ethos da fonte As livrarias online da Cornell University da UC Berkeley University e da New Mexico State University oferecem uma amostra abrangente de perguntas a serem realiza-das na hora de avaliar fontes digitais Muitas outras universidades oferecem em seus ambientes online recursos de ensino e aprendizagem

O laboratoacuterio Purdue Online Writing Lab (OWL) foi um dos primeiros laboratoacute-rios de escrita digital nos Estados Unidos e se manteacutem entre os mais importantes oferecendo uma variedade de heuriacutesticas e ideias para uma escrita eficaz A Dart-mouth College oferece um site abrangente inteiramente devotado ao ensino online incluindo materiais didaacuteticos artigos sobre o ensino atraveacutes do uso de tecnologia e estudos de caso de professores que se utilizaram da Internet como ferramenta de ensino O website da Schoolcraft College oferece materiais do mesmo tipo incluindo exerciacutecios planilhas moacutedulos de ensino e materiais sobre o ensino de argumenta-ccedilatildeo A comunidade virtual Lingua MOO tambeacutem oferece a professores um espaccedilo em que materiais didaacuteticos adicionais relacionados agrave tecnologia e argumentaccedilatildeo podem ser encontrados

As fontes listadas aqui oferecem um bom ponto de partida para professores que querem explorar o impacto de tecnologias da computaccedilatildeo sobre a escrita e o ensino de argumentaccedilatildeo Os professores que desejem encontrar mais materiais acerca das aplicaccedilotildees praacuteticas e teoacutericas do ensino de argumentaccedilatildeo atraveacutes de uma variedade de aplicativos espaccedilos e ferramentas eletrocircnicos devem comeccedilar acompanhando as discussotildees dos artigos de Computers and Composition seja na versatildeo impressa ou digital Outro excelente ponto de partida satildeo os sites acadecircmi-cos como o Lingua MOO em que a aplicaccedilatildeo praacutetica de tecnologias de ponta pode usualmente ser encontrada em primeira matildeo

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retoacuteriCa visual

Em A New Rhetoric Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969) discorrem sobre a importacircncia da ldquopresenccedilardquo para a argumentaccedilatildeo No texto os autores descrevem presenccedila como a combinaccedilatildeo de forma e substacircncia que influencia psicologica-mente a audiecircncia atraveacutes do uso de teacutecnicas como omissatildeo ecircnfase escolha e seleccedilatildeo Ainda que os autores natildeo discutam profundamente os usos extra verbais do recurso visual parece claro que esse conceito que enfatiza a necessidade de se colocar algo frente a frente com a audiecircncia eacute particularmente importante para a retoacuterica visual Aliaacutes pode-se afirmar que se trata do tipo de apelo mais pene-trante e frequente em nossa cultura As retoacutericas visuais de revistas (um anuacutencio brilhante em paacutegina dupla na revista Vanity Fair em que a marca Lancocircme mostra uma jovem modelo relaxando num belo vestido de veratildeo cor de rosa convidando os leitores a ldquodespertar para a nova primaverardquo) da televisatildeo (o jogador de baseball Alex Rodrigues com um sorriso paciente ajudando crianccedilas a aprender os funda-mentos do jogo num comercial para os clubes infantis de baseball da liga Boys and Girls Clubs of America) e da Internet (no site internacional do Greenpeace a imagem de um bebecirc orangotango com seus grandes olhos arredondados ao lado do texto ldquoEssa Terra fraacutegil precisa de uma voz Ela precisa de soluccedilotildees mudanccedilas accedilatildeordquo) estatildeo entre as cerca de 3000 mensagens que o cidadatildeo meacutedio encontra dia apoacutes dia que satildeo predominantemente visuais em seu apelo persuasivo

No entanto temos sido relativamente lentos em nossa capacidade de realmente abraccedilar a retoacuterica visual como parte dos estudos de escrita retoacuterica e argumen-taccedilatildeo Handa (2004 p 305) aponta esse fato mais claramente

As disciplinas de escrita e de retoacuterica claacutessica abordam a retoacuterica e a argumentaccedilatildeo em termos estritamente verbais Nos estudos de escrita os especialistas natildeo concordam sob nenhum aspecto universalmente a respeito da capacidade que as imagens tecircm ou natildeo de apresentar ar-gumentos especialmente quando levada em consideraccedilatildeo a definiccedilatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

claacutessica de argumento uma sequecircncia linear de alegaccedilotildees contra ale-gaccedilotildees e evidecircncias Se as imagens satildeo capazes de apresentar um argu-mento completo quando utilizadas sozinhas ou se isso soacute acontece ao combinaacute-las a palavras e frases eacute um assunto ainda mais contencioso

Para os leitores que cresceram em uma cultura dominada pelo imaginaacuterio e natildeo pela miacutedia impressa o poder persuasivo de imagens signos e siacutembolos parece um fato oacutebvio Porque entatildeo nossas disciplinas tecircm resistido tanto em considerar a retoacuterica visual como um campo legiacutetimo de estudo

Stroupe (2000 p 10) ajuda a situar esse fenocircmeno ao salientar que os pro-gramas de ensino de retoacuterica e escrita estatildeo frequentemente limitados aos depar-tamentos de idiomas satildeo justamente os responsaacuteveis por uma defesa estanque da cultura da palavra impressa e sua ldquo[] costumeira rejeiccedilatildeo do discurso popular predominantemente visualrdquo O medo da tecnologia (especialmente do computador) e o desdeacutem pelo texto ldquopopularrdquo contribuiacuteram profundamente para essa margi-nalizaccedilatildeo precoce da retoacuterica visual na disciplina de escrita A retoacuterica visual complementa claramente uma seacuterie de disciplinas No entanto como ocorre com outros ldquonovosrdquo campos de estudo tambeacutem pode ameaccedilar a hegemonia de disci-plinas academicamente estabelecidas ao colocar sua coerecircncia interna limites e pressuposta completude sob questionamento Tendo esses obstaacuteculos em vista eacute mais faacutecil compreender o ritmo lento do (re)aparecimento e total estabelecimento dos estudos visuais

A reticecircncia demonstrada pelos estudos de retoacuterica e escrita em dar as boas--vindas ao estudo da retoacuterica visual eacute bastante irocircnica haja vista a importacircncia da imagem visual ao longo da histoacuteria para as duas disciplinas desde seus primoacuter-dios Aristoacuteteles reconheceu o poder da metaacutefora e da visualizaccedilatildeo e Quintiliano afirmou que a visualizaccedilatildeo eacute uma das formas mais claras de manipular emoccedilotildees Platatildeo atribuiu grande importacircncia agrave luz e agrave visatildeo tanto no mundo extrassensorial quanto no sensorial Curtius (1973) descreve como em tempos medievais a retoacuterica epidiacutetica (com maior ecircnfase na apresentaccedilatildeo visual) se tornou mais importante

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A construccedilatildeo do argumento

que a retoacuterica deliberativa Hobbs (2002) afirma que Francis Bacon ao chamar emblemas de imagens aceitou a premissa de que as imagens satildeo mais memoraacuteveis que as palavras A autora recorre agrave uma citaccedilatildeo de Bacon para essa constataccedilatildeo

Eacute mais faacutecil reter a imagem de um esportista que caccedila uma lebre de um farmacecircutico que organiza suas caixas de um rapaz que recita versos ou de um ator durante uma performance do que reter as noccedilotildees correspon-dentes de invenccedilatildeo disposiccedilatildeo eloquecircncia memoacuteria (e) accedilatildeo (HOBBS 2002 p 60)

Os ldquonovos retoacutericosrdquo do Iluminismo Escocecircs (Smith Blair Lord Kames e Cam-pbell entre outros) tambeacutem foram influenciados pela centralizaccedilatildeo da imagem e da imaginaccedilatildeo propostas por Bacon Os termos e conceitos hoje reconhecidos como parte integral e relevante dos estudos visuais apresentam a maior riqueza de seus antecedentes histoacutericos da retoacuterica Hunter Gardner (2004) Kress e Van Leeuwen (1996) estatildeo entre os especialistas que lideram as discussotildees acadecircmicas acerca da necessidade de se dar maior atenccedilatildeo agrave retoacuterica visual

Haacute vaacuterias aplicaccedilotildees relevantes da retoacuterica visual em sala de aula Um dos primeiros textos a demonstrar como incorporar o estudo da imagem nas aulas de escrita foi Seeing the Text de Bernhardt (1986) Neste ensaio o autor afirma que ateacute a palavra impressa eacute inerentemente visual por depender de arranjos espaciais e decisotildees (como estilo e tamanho de fontes localizaccedilatildeo de espaccedilos em branco e divisatildeo de paraacutegrafos etc) que satildeo de natureza retoacuterica Ele tambeacutem apresenta uma lista de fatos relevantes acerca do ambiente produzida por cidadatildeos conservadores e poliacuteticos em busca de proteccedilatildeo legislativa de aacutereas de manancial e alagadiccedilas A forma como Bernhardt analisou a construccedilatildeo dessa lista serve como importante introduccedilatildeo agrave noccedilatildeo de que a retoacuterica visual natildeo precisa necessariamente incluir fotos desenhos signos ou siacutembolos aleacutem de servir como ponto de comparaccedilatildeo para as milhares de publicaccedilotildees dessa natureza sejam elas listas de importacircncia ciacutevica panfletos que defendem causas ou websites

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A construccedilatildeo do argumento

No texto Reading the Visual in College Writing Classes Hill (2003) partilha al-gumas de suas proacuteprias teacutecnicas para introduccedilatildeo da retoacuterica visual na sala de aula Seus exemplos satildeo diversificados e cobrem desde o arranjo dos espaccedilos entre as linhas do texto e o tamanho dessas linhas (como faz Bernhardt 1996) passando pela anaacutelise retoacuterica de fotografias famosas (como a dos fuzileiros navais dos Es-tados Unidos erguendo a bandeira americana no solo de Iwo Jima no Japatildeo) ateacute a desconstruccedilatildeo de valores culturais escondidos de maneira subliminar em um anuacutencio impresso de uma empresa que vende seguros de vida A anaacutelise apresen-tada por Hill (2003) de cada um desses exemplos ajuda a demonstrar claramente a diversidade de apelos visuais de persuasatildeo e oferece a professores e alunos uma fundamentaccedilatildeo pedagoacutegica firme a partir da qual pode explorar outros exemplos de retoacuterica visual

Para os professores que pretendem continuar explorando as conexotildees entre retoacuterica e cultura visual os artigos de Frascina (2003) e Zagacki (2005) oferecem uma anaacutelise complementar das pinturas de Norman Rockwell Frascina compara os originais de Rockwell inspirados na Segunda Guerra Mundial com as versotildees digitalmente alteradas produzidas pelo jornal The New York Times apoacutes os aten-tados de 11 de setembro de 2001 numa tentativa de demonstrar a ldquomemoacuteria cul-tural coletivardquo que imagens poderosas podem construir Zagacki usa as pinturas de Rockwell sobre direitos civis para ilustrar como as obras de arte visuais ldquo[] podem operar na retoacuterica para articular o conhecimentordquo e moldar a percepccedilatildeo do puacuteblico Os dois trabalhos oferecem excelentes oportunidades para os professores apresentarem aos seus alunos os conceitos e meacutetodos da retoacuterica visual aleacutem de orientaacute-los a respeito de como os apelos imageacuteticos persuasivos podem ser ana-lisados e desconstruiacutedos

Exemplos praacuteticos de outros gecircneros da retoacuterica visual tambeacutem existem Em Understanding Comics The Invisible Art McCloud (1994) utiliza quadrinhos de forma criativa para analisar as praacuteticas retoacutericas aiacute empregadas A anaacutelise dos componentes retoacutericos verbais e visuais do filme The Usual Suspects (Os Suspeitos

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filme de 1995 lanccedilado no Brasil em 1996 e dirigido por Brian Singer) realizada por Blakesley (2003) oferece um raciociacutenio estrutural que pode ser aplicado ao estudo da retoacuterica visual no cinema Jaacute Television News as Rhetoric de Smith (1977) funciona bem em conjunto com The Rhetoric of Television News de Nydahl (1986) e com Uses of Television Hartley (1999) para oferecer exemplos representativos de estudo e aplicaccedilatildeo da retoacuterica televisiva Os professores que desejam combinar estudos sobre televisatildeo e cinema podem optar pelo artigo de Rosteck (1989) que analisa a estrutura argumentativa de Report on Senator McCarthy de Edward R Murrow uma parte integrante da seacuterie documental See It Now Esse artigo tambeacutem analisa o filme de George Clooney Good Night and Good Luck 2005) que apresenta outra visatildeo sobre o mesmo episoacutedio histoacuterico

Aqueles que se interessem pela retoacuterica aplicada aos videogames e pelas cons-tantes discussotildees acerca dos impactos nocivos de jogos violentos podem consultar Lachlan (2003) e Smith (1977) aleacutem das incontaacuteveis mateacuterias jornaliacutesticas que cobrem o debate entre Joseph Lieberman designers de jogos e jogadores de todo o mundo (o site wikipediaorg oferece uma excelente cobertura desse assunto) Todo esse material pode tambeacutem ser combinado aos videogames Doom Doom 3 e ao filme Doom The Movie (2005 dirigido por Andrzej Bartkowiak) para exemplificar de forma praacutetica a maneira como as diferentes retoacutericas visuais impactam o assunto

Os proacuteximos anos veratildeo os estudos da retoacuterica visual ganhando cada vez mais status em todas as disciplinas acadecircmicas relevantes incluindo retoacuterica e escrita Os professores que vislumbram o futuro comeccedilaratildeo a ampliar seus conhecimentos da teoria e pedagogia da retoacuterica visual (aproveitando a proliferaccedilatildeo de exemplos culturais disponiacuteveis a seu redor) como forma de se prepararem para a crescente consciecircncia acadecircmica do apreccedilo pelo poder de persuasatildeo de uma imagem e de textos visualmente persuasivos

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GlOssaacuteriO31

Neste glossaacuterio tentamos ser concisos na definiccedilatildeo e descriccedilatildeo dos termos Trata-se de um glossaacuterio especiacutefico para nossa forma de tratar o ensino da cons-truccedilatildeo do argumento neste livro Isso significa que alguns termos especiacuteficos do recorte terminoloacutegico de Kenneth Burke aparecem entre os termos tradicionais Tambeacutem natildeo se trata de uma lista definitiva ou exaustiva jaacute que satildeo muitos os termos da retoacuterica usados quando se fala de ensino do argumento

Para outras definiccedilotildees de termos-chave retoacutericos os leitores interessados devem consultar um dos trabalhos de referecircncia da aacuterea como a Encyclopedia of Rhetoric editado por Thomas Sloane a Encyclopedia of Rhetoric and Composition editado por Theresa Enos ou Sourcebook on Rhetoric de James Jasinski

Accedilatildeo vs Movimento ndash Em A Grammar of Motives Burke (1966 p 14) define accedilatildeo como o ldquo[] corpo humano em movimento consciente e intencionalrdquo Accedilatildeo eacute algo que apenas humanos satildeo capazes de fazer A capacidade de agir por sua vez eacute um preacute-requisito para escolhas morais Uma bola de baseball eacute capaz de movimentar mas natildeo de agir porque ela ldquo[] nem eacute moral e nem imoral ela natildeo pode agir pode apenas mover ou ser movidardquo (BURKE 1966 p 136) Para Burke a accedilatildeo envolve o ato de mover em direccedilatildeo ao ideal criando novidade durante o percurso As transformaccedilotildees afetadas pela accedilatildeo satildeo necessariamente parciais por necessidade devido ao paradoxo da substacircncia Ver tambeacutem Maacutegica Paradoxo da Substacircncia

31 Traduccedilatildeo Marcus Mussi

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Argumento agoniacutesticoeriacutestico ndash Do grego agon que significa concurso ou conflito e eris que significa contenda o argumento agoniacutestico ou eriacutes-tico representa um modelo de argumento que enfatiza conflito e disputa e ocorre quando a perspectiva de algueacutem avanccedila em detrimento de outrem O argumento agoniacutesticoeriacutestico tem sido visto por escolas feministas entre outras como um modelo patriarcal baseado na polecircmica que pro-move dissenso mais do que consenso Aleacutem disso o argumento eriacutestico tem sido criticado por ser irrealista Muitos modelos contemporacircneos de argumento satildeo complexos e natildeo defendem a derrota do adversaacuterio mas um propoacutesito mais realista como aumentar ou diminuir a adesatildeo de participantes ou a identificaccedilatildeo com a posiccedilatildeo argumentativa eou a perda de adesatildeo ou identificaccedilatildeo com posiccedilotildees alternativas

Analogia ndash Ver Invenccedilatildeo

Argumento rogeriano ndash Eacute um tipo de argumento que tenta explorar eou resolver problemas atraveacutes da escuta empaacutetica O princiacutepio funda-mental eacute considerar a comunicaccedilatildeo do ponto da compreensatildeo de outra pessoa Para participar da comunicaccedilatildeo autecircntica exige-se que as ideias e as atitudes de outras pessoas sejam vistas tatildeo profundamente a ponto de ser possiacutevel sentir como a pessoa sente O objetivo eacute promover uma mudanccedila de perspectiva ou modificar a concepccedilatildeo da realidade de ou-tra pessoa de modo que uma cooperaccedilatildeo uacutetil seja possiacutevel Existem trecircs estrateacutegias (1) tranquilizar a pessoa sobre o fato de que ela estaacute sendo compreendida (2) descobrir a validade do posicionamento da pessoa e (3) encontrar aacutereas de similaridade Um dos problemas do argumento rogeriano eacute a praacutetica de identificar no iniacutecio da argumentaccedilatildeo um possiacutevel

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resultado Potencialmente pode tambeacutem ser usado para fins manipu-lativos Se usado como teacutecnica a identificaccedilatildeo pode natildeo ser vista como sincera criando uma falsa sensaccedilatildeo de empatia

Atitude ndash Burke usa cinco termos para explicar os motivos humanos accedilatildeoato agente agecircncia propoacutesito e cenaacuterio Mais tarde ele adicionou atitude para descrever a maneira como o ato eacute conduzido Eacute um precursor do ato que ele chama de ldquoato incipienterdquo A retoacuterica conduz as pessoas para o ato ou a moldar suas atitudes de tal forma que cheguem ao ato As pessoas natildeo satildeo forccediladas a agir satildeo convencidas Os atos entatildeo se tornam as representaccedilotildees de nossas atitudes

Casuiacutestica ndash ldquoAs direccedilotildees geral e particular da retoacuterica se sobrepotildeem na medida em que todos os casos uacutenicos necessariamente envolvem a aplicaccedilatildeo dos toacutepicos universais para a questatildeo particular Assim mesmo as situaccedilotildees consideradas muito amplas podem apresentar exclusivida-derdquo (BURKE 1969 p 72) Para Burke a casuiacutestica eacute uma filosofia um princiacutepio geral que se aplica a situaccedilotildees especiacuteficas Embora a casuiacutestica assuma conotaccedilotildees negativas para muitos analistas contemporacircneos Burke ver isso como inevitaacutevel Entretanto ldquoa extensatildeo casuiacutesticardquo eacute fre-quentemente necessaacuteria para persuadir as pessoas de que em um sistema original (como a Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos por exemplo) ainda eacute viaacutevel apesar de novas variaacuteveis temporais e espaciais Ver tambeacutem Identificaccedilatildeo Paradoxo da substacircncia

Consubstancialidade ndash Ver Identificaccedilatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

Cortejo ndash Para Kenneth Burke o cortejo eacute uma forma de persuasatildeo que opera atraveacutes da identificaccedilatildeo em que uma ldquoentidaderdquo persuade outra Para que o cortejo exista cada entidade deve pertencer a uma classe separada o que leva ao que Burke se refere como ldquoestranhamentordquo No acircmbito individual esse estranhamento reside na diferenccedila entre os se-xos No mundo social a diferenccedila entre os sexos equivale agraves diferenccedilas entre classes sociais Burke refere-se agrave comunicaccedilatildeo entre as classes como cortejo ldquoabstratordquo No acircmbito do cortejo abstrato os membros de classes sociais mais altas tentam a controlar as classes menos privi-legiadas atraveacutes da ldquodoutrinardquo e da ldquoeducaccedilatildeordquo Assim ldquoo princiacutepio do cortejordquo na retoacuterica quer dizer ldquoo uso de dispositivos persuasivos para a transcendecircncia do estranhamento socialrdquo (BURKE 1969 208) Nessa relaccedilatildeo de estranhamento social os grupos satildeo ldquomisteacuteriosrdquo uns para os outros e esse misteacuterio pode ser convertido em poder Um professor por exemplo pode permanecer em silecircncio durante grande parte de tempo de modo a dar gravidade agraves perguntas que ele faz parecendo assim ldquoinspecionar as profundezas de coisasrdquo aos olhos do aluno (BURKE 1969 p 210) O cortejo de Burke difere do de Perelman e da noccedilatildeo de adesatildeo de Olbrecht-Tyteca na medida em que natildeo prever explicitamente que a persuasatildeo aumenta o grau de concordacircncia com o locutor Um grau de adesatildeo da audiecircncia ao argumento do locutor pode variar muito Em contraste o cortejo focaliza principalmente a relaccedilatildeo desigual entre o persuasor e os persuadidos em vez de empregar significados geralmente considerados ldquopersuasivosrdquo Atraveacutes do cortejo o ldquocortesatildeordquo jaacute comanda uma certa ldquocaptaccedilatildeordquo do puacuteblico Assim essa audiecircncia ldquocortejadardquo an-seia transcender a abertura do estranhamento social para unir-se com o persuasor quando ele ldquotimidamenterdquo manteacutem essa distacircncia e portanto a captaccedilatildeo e o poder

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A construccedilatildeo do argumento

Dialeacutetica ndash Na primeira frase da Retoacuterica Aristoacuteteles define retoacuterica como a contrapartida da dialeacutetica Retoacuterica e dialeacutetica satildeo faculdades de provimento de argumentos Historicamente a dialeacutetica eacute vista agraves vezes como a contrapartida da retoacuterica agraves vezes como competidora da retoacuterica Aristoacuteteles distingue o raciociacutenio demonstrativo (causal) do raciociacutenio dialeacutetico (natildeo causal ou contingente) definindo o uacuteltimo como ldquoraciociacute-nio de opiniotildeesrdquo que satildeo geralmente vistas como verdades provaacuteveis O raciociacutenio dialeacutetico pode ocorrer entre interlocutores ou pode ser uma interrogaccedilatildeo interna O Meacutetodo Socraacutetico eacute o mais conhecido exemplo de um raciociacutenio dialeacutetico se caracteriza por uma proposiccedilatildeo inicial seguida de uma conclusatildeo por perguntas e respostas e da aplicaccedilatildeo da lei da contradiccedilatildeo O raciociacutenio dialeacutetico eacute um teste para a verdade um processo de criaccedilatildeo de significado As proposiccedilotildees devem ser garanti-das antes do argumento Uma proposiccedilatildeo eacute dialeticamente assegurada quando ela passa pela lei da contradiccedilatildeo O modelo hegeliano de dialeacutetica envolve a tese (uma proposiccedilatildeo) a antiacutetese (a contradiccedilatildeo da proposiccedilatildeo) e a siacutentese (uma incorporaccedilatildeo dos dois primeiros elementos)

Doxa ndash Eacute a palavra grega que significa opiniotildees comuns ou populares Eacute a raiz de palavras como ldquoortodoxiardquo (opiniatildeo reta) e ldquoparadoxordquo (opini-otildees opostas) Doxa satildeo as opiniotildees agraves vezes sistematizadas geralmente aceitas por uma comunidade A noccedilatildeo de doxa situa o locus da autoridade fora do individual e no interior da comunidade As opiniotildees de pessoas individuais satildeo natildeo somente delas mas tambeacutem de muitas outras o que confere maior importacircncia a essas opiniotildees Situar as opiniotildees fora do escopo do indiviacuteduo tambeacutem abre a porta para que a persuasatildeo ocorra

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Entimema ndash Agraves vezes chamado de ldquosilogismo truncadordquo o entimema deixa de fora uma premissa e espera que seja fornecida tacitamente pela audiecircncia O entimema portanto natildeo deve ser julgado pelas convenccedilotildees de validade formal mas pelas leis da probabilidade Quanto mais ampla-mente a premissa eacute aceita mais provaacutevel eacute o consentimento da audiecircncia com o argumento do entimema Aristoacuteteles rotulou o entimema a ldquosubs-tacircncia da persuasatildeo retoacutericardquo Como haacute pouca coisa que pode ser tomada como certa os oradores devem confiar nas crenccedilas e pressupostos de sua audiecircncia

Espeacutecies de retoacuterica ndash Para Aristoacuteteles existem trecircs tipos de discurso cada um com sua proacutepria ecircnfase temporal Em primeiro lugar o discurso epidiacutedico (cerimonial) tem a ver com louvor ou culpa Um exemplo des-se tipo de discurso eacute o elogio O orador usa o discurso cerimonial para reforccedilar atitudes e crenccedilas importantes no presente Em segundo lugar discurso deliberativo eacute um apelo para algum tipo de accedilatildeo tipicamente legislativa que ou exorta ou dissuade de um determinado plano de accedilatildeo Em terceiro lugar o discurso forense (judicial) determina a culpa a inocecircncia ou a causalidade baseado em um exame de eventos passados

Esquema de Toulmin ndash O esquema e a terminologia de Toulmin para analisar e criar argumentos satildeo frequentemente usados no ensino do argumento No centro do modelo de Toulmin encontram-se vaacuterios termos-chave Todos os argumentos apresentam uma demanda com base em dados Uma garantia eacute uma proposiccedilatildeo geral que estabelece uma conexatildeo entre a demanda e os dados As garantias geralmente precisam de apoio ou suporte (evidecircncias que ajudam a provar a garantia) A demanda pode precisar tambeacutem de um qualificador (para evitar a

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A construccedilatildeo do argumento

linguagem absolutista) e condiccedilotildees de refutaccedilatildeo (exceccedilotildees para a regra formulada pela demanda) para maximizar seu potencial persuasivo O esquema de Toulmin provou ser aplicaacutevel em disciplinas acadecircmicas a argumentos populares

Ethos ndash Ver Pisteis

Exemplo Ilustraccedilatildeo Modelo ndash Perelman e Olbrechts-Tyteca analisam como os oradores procuram estabelecer uma comunhatildeo com o puacuteblico atraveacutes de um caso particular sob a forma de exemplo que torna possiacute-vel a generalizaccedilatildeo ilustraccedilatildeo que fornece suporte para a generalizaccedilatildeo estabelecida e modelo que incentiva a imitaccedilatildeo Esses termos podem ser definidos da seguinte forma

a Exemplo uma instacircncia especiacutefica que fornece uma base para uma regra e atua como ponto de partida de uma generalizaccedilatildeo Um exemplo deve ser pelo menos provisoriamente um fato Os exemplos servem tan-to para ilustrar uma generalizaccedilatildeo como para estabelecer a verdade da generalizaccedilatildeo De acordo com Perelman grande parte de um argumento eacute concebido para levar a audiecircncia a reconhecer fatos natildeo vaacutelidos (ou seja os exemplos que contradizem generalizaccedilotildees ou regras que tambeacutem admitem) Para Aristoacuteteles as provas surgem na forma de entimema ou exemplo Um exemplo natildeo eacute a relaccedilatildeo da parte com o todo nem do todo com a parte nem de um todo com outro todo Ao contraacuterio o exemplo eacute a relaccedilatildeo da parte com a parte de um igual com outro igual Os exemplos podem ser histoacutericos (que faz referecircncia a eventos passados) ou inventa-dos (Aristoacuteteles identificou a faacutebula como um tipo de exemplo inventado)

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b Ilustraccedilatildeo A ilustraccedilatildeo procura criar uma regra abstrata ou uma ideia concreta atraveacutes de um caso particular Ela promove a compreensatildeo da regra Enquanto os exemplos devem ser inquestionaacuteveis as ilustraccedilotildees natildeo precisam As ilustraccedilotildees podem ser detalhadas mas os exemplos devem ser concisos para evitar distraccedilatildeo

c Modelo Os modelos satildeo ilustraccedilotildees idealizadas de uma regra geral Os modelos natildeo devem ser apenas compreendidos devem ser imitados

Falaacutecias Informais ndash No sentido mais geral falaacutecias satildeo argumentos imperfeitos Os argumentos podem ser falaciosos devido a falhas em sua estrutura e na sua forma Isso constitui as falaacutecias formais Os argumentos que satildeo invaacutelidos por qualquer outro motivo aleacutem da forma constituem as falaacutecias informais As falaacutecias informais aparecem de muitas formas Um exemplo de uma falaacutecia informal eacute uma ldquorelaccedilatildeo falsardquo a alegaccedilatildeo de que dois grupos diferentes que natildeo tecircm nenhum viacutenculo loacutegico estatildeo contudo conectados A Wikipedia apresenta como exemplo de uma re-laccedilatildeo falsa a anaacutelise de venda de sorvete em uma cidade Satildeo vendidos mais sorvetes quando a taxa de afogamentos da cidade eacute maior Alegar que as vendas de sorvete causam afogamento seria implicar uma relaccedilatildeo falsa entre esses dois eventos Na realidade uma onda de calor pode ser a causa de ambos Para um tratamento mais completo sobre relaccedilatildeo entre as falaacutecias informais e a construccedilatildeo de argumentos ver Fulkerson (1996)

Heuriacutestica ndash Ver Invenccedilatildeo

Identificaccedilatildeo ndash Para Burke o conceito de identificaccedilatildeo eacute central para a retoacuterica e para o argumento A identificaccedilatildeo nos termos de Burke se ba-seia nos conceitos de fusatildeo e divisatildeo Uma pessoa A deseja se relacionar

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com uma pessoa B se elas tecircm interesses em comum ou se for persuadida a acreditar que esses interesses existem ldquo[] ao ser identificado com B A eacute lsquosubstancialmente umrsquo em relaccedilatildeo a outra pessoa que natildeo seja ela mesmardquo (BURKE 1969 p 21) No processo de agir em conjunto os in-diviacuteduos compartilham sensaccedilotildees conceitos ideias e atitudes O termo de Burke para isso eacute consubstancialidade uma maneira de ldquoagir juntosrdquo Para esclarecer isso Burke fala de consubstancialidade em termos de relaccedilotildees entre pais e filhos Por exemplo uma crianccedila eacute consubstancial com seus pais no sentido de que eacute ao mesmo tempo sua prole e um su-jeito autocircnomo Um miacutenimo de separaccedilatildeo (divisatildeo) sempre existe pois cada pessoa eacute ldquo[] uacutenica um locus individual de motivosrdquo (BURKE 1969 p 21) Atraveacutes da identificaccedilatildeo a retoacuterica e a argumentaccedilatildeo se tornam possiacuteveis pois os argumentos usam os princiacutepios de fusatildeo e divisatildeo para permitir atitudes e persuadir Ver tambeacutem Paradoxo da substacircncia

Ilustraccedilatildeo ndash Ver Exemplo

Imparcialidade ndash Eacute a condiccedilatildeo de ser membro de um grupo que seraacute afetado pelo efeito de um argumento sem ter sua decisatildeo influenciada por isso como ldquoum juiz imparcialrdquo que aplica as leias a todos inclusive a ele mesmo A imparcialidade portanto envolve o equiliacutebrio entre todos os pontos de vista de um argumento Isso contrasta com a objetividade conforme proposta por Perelman pois nesse caso a neutralidade eacute man-tida porque o orador espera natildeo ser atingindo pelo efeito do argumento

Ineacutercia ndash Em A Nova Retoacuterica Perelman e Olbrechts-Tytecha usam o termo ldquoineacuterciardquo para designar a resistecircncia humana agrave mudanccedila Inspirando-se na Fiacutesica os autores descrevem a ideia de que as atitudes as crenccedilas e

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A construccedilatildeo do argumento

os comportamentos de um puacuteblico tendem a ser conservados atraveacutes dos haacutebitos As atitudes as crenccedilas e os comportamentos tambeacutem car-regam valores que conservam os haacutebitos Assim a ineacutercia favorece a norma Ao passo que natildeo eacute necessaacuterio persuadir algueacutem sobre o que jaacute estaacute aceito qualquer mudanccedila seraacute questionada e exigiraacute justificaccedilatildeo A ineacutercia natural de uma audiecircncia atribui o ocircnus da prova agrave parte que deseja promover a mudanccedila

Invenccedilatildeo ndash Do latim invenire ldquoencontrarrdquo a invenccedilatildeo eacute o primeiro dos cinco cacircnones claacutessicos da Retoacuterica seguido pela disposiccedilatildeoarranjo elocuccedilatildeoestilo memoacuteria e entregaaccedilatildeo Como Aristoacuteteles define retoacute-rica como ldquoa faculdade de descobrir os meios de persuasatildeo disponiacuteveisrdquo grande parte de sua Retoacuterica centra-se na invenccedilatildeo A invenccedilatildeo consiste em buscar algo para dizer consequentemente refere-se ao logos ou seja o que o orador diz ao inveacutes do como diz A heuriacutestica (do grego heuriskein que significa ldquodescobrirrdquo) satildeo estrateacutegias pelas quais o orador pode des-cobrir de forma sistemaacutetica seguindo um conjunto de procedimentos Um orador pode fazer uma seacuterie de perguntas como um meio de explorar e investigar um problema ou questatildeo No acircmbito do argumento a Stasis Theory funciona principalmente como uma heuriacutestica na medida em que cada tipo de demanda levanta questotildees diferentes para quem propotildeem ou para quem ouve Na construccedilatildeo do argumento existem cinco tipos de demanda principais definiccedilatildeo (eacute X um y) causa (X causa y) avaliaccedilatildeo (eacute X um bom ou mau Y) proposta (devemos fazer X) e semelhanccedila (eacute X como Y) Os argumentos de semelhanccedila satildeo as primeiras versotildees contemporacircneas das analogias cuja formulaccedilatildeo mais geral eacute A eacute para B assim como C eacute para D No entanto essa formulaccedilatildeo pode ter apenas trecircs termos como em B eacute para A assim como C eacute para B ou A eacute para B

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assim como A eacute para C Perelman e Olbrechts-Tyteca citam a analogia de Aristoacuteteles ldquo[] assim como os olhos dos morcegos satildeo ofuscados pela claridade do dia a razatildeo da nossa alma eacute ofuscada pelas evidecircncias das coisas rdquo para explicar o theme (razatildeo da alma coisas evidentes) e o phoros (olhos de morcegos claridade do dia) Em analogia o theme e o phoros devem pertencer a diferentes esferas Se estiverem na mesma esfera haacute exemplo ou ilustraccedilatildeo A analogia depende de transferecircncias de valor do phoros para o theme e vice-versa A analogia eacute frequentemente vista com desconfianccedila quando usada como prova Perelman vecirc como um tipo instaacutevel de argumento semelhante agraves falaacutecias informais Ver tambeacutem Stasis Theory

Kairoacutes ndash Kairoacutes e chronos traduzidos grosso modo do grego representam o conceito de tempo Aristoacuteteles usou kairoacutes em seu sentido claacutessico como um momento criacutetico no desenrolar de um argumento quando algueacutem tem uma oportunidade de despertar seu puacuteblico Mais recentemente o kairoacutes tambeacutem tem sido traduzido como adequaccedilatildeo e oportunidade James Kinneavy usa o termo para se referir agrave ldquocontexto situacionalrdquo Nesse sentido o kairoacutes desempenha um papel na construccedilatildeo de todo o argumento e de toda escolha retoacuterica

Logos - Ver Pisteis

Mediaccedilatildeo - Ver Negociaccedilatildeo

Modelo ndash Ver Exemplo

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A construccedilatildeo do argumento

Mistificaccedilatildeo ndash Termo usado por Kenneth Burke A mistificaccedilatildeo ocorre quando a linguagem eacute usada entre diferentes classes soacutecias mais para enganar do que para comunicar A mistificaccedilatildeo reduz o potencial feacutertil do misteacuterio ldquoburocratizandordquo a hierarquia em um esquema definido que privilegia um grupo sobre o outro eliminando as diferenccedilas misteriosas entre as classes em detrimento de sua identidade Essa retoacuterica mal dire-cionada se preocupa principalmente com a coerccedilatildeo e o controle Misteacuterio e mistificaccedilatildeo satildeo diferentes da magia Como uma forccedila sobrenatural a magia eacute baseada em uma concepccedilatildeo primitiva de autoridade mas tem semelhanccedilas com a retoacuterica em seus fins persuasivos Enquanto a ma-gia tenta erroneamente induzir uma accedilatildeo agraves coisas (ou reduzir os seres humanos a objetos a serem movidos) a retoacuterica (muitas vezes atraveacutes de discurso exortativo) tenta induzir a accedilatildeo nas pessoas Burke observa que a magia eacute tambeacutem associada agrave novidade na medida em que cria algo fora do nada Cada ato retoacuterico envolve assim uma sugestatildeo de magia na medida em que usa a novidade na induccedilatildeo da accedilatildeo Ver tambeacutem Cortejo

Negociaccedilatildeo ndash A negociaccedilatildeo eacute um modo de acordo orientado para alcanccedilar consenso por meio da comunicaccedilatildeo ou ldquosoluccedilatildeo de diferenccedilasrdquo O conceito de negociaccedilatildeo foi aceito por muitas estudiosas feministas como alterna-tiva ao modelo agoniacutestico de argumento e como modelo para a interaccedilatildeo em sala de aula Outros e outras inclusive algumas feministas criticam a negociaccedilatildeo na medida em que evita conflitos em situaccedilotildees em que o conflito eacute preciso A ideia de negociaccedilatildeo criacutetica tambeacutem tem crescido no meio acadecircmico como Thomas West que conecta o conceito de negocia-ccedilatildeo agrave teoria poacutes-colonial agrave formaccedilatildeo de identidade e agrave hibridizaccedilatildeo A mediaccedilatildeo eacute um tipo particular de negociaccedilatildeo Na mediaccedilatildeo uma parte desinteressada ajuda a orientar o curso de um argumento em vez de se envolver ou fazer um julgamento a favor de qualquer participante Na

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mediaccedilatildeo o mediador natildeo tem poder sobre qualquer participante na construccedilatildeo do argumento em oposiccedilatildeo agrave arbitragem em que a terceira parte tem poderes para decidir o resultado de um argumento A mediaccedilatildeo eacute cada vez mais utilizada em soluccedilatildeo de disputas juriacutedicas

Objetividade ndash Eacute a condiccedilatildeo de natildeo ter interesse e natildeo ser afetado pelo resultado de um argumento A maioria das teorias de argumento con-temporacircneas rejeita a objetividade como uma postura praacutetica realista ou mesmo desejaacutevel para um orador ou puacuteblico Perelman por exemplo reconhece que fora da ciecircncia as controveacutersias satildeo resolvidas entre as partes O melhor que se pode esperar natildeo eacute objetividade mas imparcia-lidade atraveacutes da qual as pessoas agem em nome do que eacute melhor para todos ao inveacutes do que eacute melhor para si ou seus aliados

Ofiacutecio (ensino e informaccedilatildeo prazer movimento e submissatildeo) ndash esses trecircs propoacutesitos retoacutericos originaram-se nas ideias de Ciacutecero sobre os trecircs ofiacutecios do orador Cada ofiacutecio tem um estilo apropriado Mais especifica-mente o primeiro ofiacutecio (ensinar informar instruir) eacute pensado para ter um estilo simples O segundo ofiacutecio (agradar) deve ter um estilo mais temperado O movimento e a submissatildeo na oratoacuteria entretanto reque-rem um estilo mais eloquente que serve de forma mais suficiente para persuadir um puacuteblico para a accedilatildeo

Paradoxo da substacircncia ndash ldquoLiteralmente a substacircncia de uma pessoa ou de uma coisa seria algo que fica abaixo ou apoia a pessoa ou a coisardquo (BURKE 1966 p 22) Aqui Burke rastreia as raiacutezes etimoloacutegicas da pa-lavra ldquosubstacircnciardquo para ajudar a explicar o seu conceito de paradoxo da substacircncia mostrando que a proacutepria palavra implica a presenccedila do que eacute exterior O conceito de substacircncia de Burke contrasta marcadamente

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A construccedilatildeo do argumento

com o de Aristoacuteteles Para Aristoacuteteles a substacircncia de uma entidade seria inteira para si mesma Burke inclina-se agrave opiniatildeo de Spinoza segundo o qual nenhuma entidade uacutenica poderia ser compreendida como idecircntica mas apenas pelo que natildeo eacute (ldquo[] toda a determinaccedilatildeo eacute negaccedilatildeordquo (BURKE 1966 p 25)) Esse conceito estaacute no cerne do paradoxo da substacircncia a fim de ser capaz de entender o que dada coisa eacute eacute preciso primeiro colocaacute--la ldquoem termos derdquo outra coisa Isso eacute a loacutegica fundamental subjacente ao dramatismo de Burke Para Burke haacute um ldquo[] inevitaacutevel paradoxo de definiccedilatildeo uma antinomia que deve dotar a noccedilatildeo de substacircncia de uma ambiguidade irresoluacutevelrdquo (BURKE 1966 p 24) A substacircncia de alguma coisa soacute pode ser conhecida em termos do que substancialmente ela natildeo eacute Ver tambeacutem Identificaccedilatildeo e Dialeacutetica

Pathos - Ver Pisteis

Pisteis ndash Aristoacuteteles identificou dois tipos de provas retoacutericas (1) artiacutes-ticas (teacutecnicas ou intriacutensecas) e (2) natildeo artiacutesticas (natildeo teacutecnicas ou ex-triacutensecas) As provas extriacutensecas natildeo se originam nos esforccedilos proacuteprios de um orador mas em dados preexistentes que o orador deve descobrir e usar confissotildees contratos escritos etc As provas intriacutensecas satildeo for-necidas por meacutetodos retoacutericos atraveacutes dos proacuteprios esforccedilos do orador Os Pisteis (proveniente da palavra grega que se refere aos meios de persuasatildeo disponiacuteveis em um argumento) satildeo os trecircs tipos de provas artiacutesticas disponiacuteveis para o orador logos ethos e pathos O ethos (termo grego para ldquocaraacuteterrdquo) do orador refere-se agrave sua credibilidade Na eacutepoca de Aristoacuteteles a confianccedila era criada a partir do proacuteprio discurso e natildeo a partir do status do homem que falava Mais recentemente no entanto ethos muitas vezes natildeo eacute mais que o cargo ou a posiccedilatildeo de algueacutem Por exemplo noacutes confiamos naqueles que satildeo peritos em suas aacutereas de atu-

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A construccedilatildeo do argumento

accedilatildeo mais do que naqueles que satildeo generalistas O Pathos (termo grego para ldquosofrimentordquo ou ldquoexperiecircnciardquo) refere-se agraves emoccedilotildees do puacuteblico quando elas satildeo trazidas para uma situaccedilatildeo favoraacutevel agrave adesatildeo ao proacute-prio argumento O orador pode apelar eficazmente para o pathos porque conhece as crenccedilas e os valores do puacuteblico e empregar vaacuterias estrateacutegias retoacutericas apropriadamente O logos (termo grego para ldquopalavrardquo) refere-se agrave racionalidade do proacuteprio argumento O argumento deve ser consistente coerente racional bem fundamentado e plausiacutevel em seu apelo loacutegico

Praacutexis ndash Eacute uma alternativa ao par bifurcado teoriapraacutetica em que a praacutetica eacute subordinada agrave teoria A praacutexis existe como praacutetica teorizada conhecida e situada No ensino de escrita eacute o que separa a aula ldquoCultrdquo (criticada por natildeo promover a reflexatildeo como ad-hoc abstrata e super teorizada) do ensino reflexivo fundamentado em criacutetica em formas pe-dagogicamente situadas de saber e aprender

Presenccedila ndash Refere-se aos elementos de seleccedilatildeo arranjo eou omissatildeo de fatos julgamentos ou linhas de raciociacutenio que agem diretamente em nossa sensibilidade Esses elementos dotam um argumento de presenccedila e permitem que um puacuteblico perceba o que de outra forma seria apenas imaginado Dotar o argumento de presenccedila atraveacutes de metaacuteforas exem-plos viacutevidos graacuteficos atraentes aumenta muito a identificaccedilatildeo do puacuteblico com o argumento

Propaganda ndash Eacute um tipo de persuasatildeo retoacuterica que objetiva atingir uma massa em vez de um puacuteblico indiviacuteduo Eacute expliacutecita e produzida por uma instituiccedilatildeo ou grupo (como um governo) A propaganda eacute tambeacutem notaacutevel pela sua natureza egoiacutesta natildeo faz nenhuma questatildeo de ter compromis-so com o orador e a audiecircncia Baseando-se fortemente na repeticcedilatildeo de

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A construccedilatildeo do argumento

siacutembolos e imagens nas miacutedias sociais a propaganda frequentemente assume conotaccedilotildees negativas na sociedade ocidental mas governos orga-nizaccedilotildees religiosas e anunciantes corporativos (entre outros) continuam a produzir propaganda em altos niacuteveis Os argumentos (muitas vezes de natureza visual) produzidos pela propaganda fornecem exemplos claros que promovem discussatildeo produtiva em salas de aula de argumento

Pentaacutegono de Burke ndash Kenneth Burke acredita que a comunicaccedilatildeo so-cial eacute melhor analisada e compreendida como um drama o que o levou a propor um pentaacutegono de termos para o estudo retoacuterico accedilatildeoato agente agecircncia cena e propoacutesito Os resultados das accedilotildees retoacutericas satildeo determi-nados pelos iacutendices (relacionamentos) entre esses cinco elementos Ver tambeacutem Situaccedilatildeo retoacuterica

Relaccedilatildeo ndash Ver Pentaacutegono de Burke

Retoacuterica da burocracia ndash Refere-se a uma retoacuterica de gesto geralmente de natureza simboacutelica Um exemplo moderno nos EUA de retoacuterica da burocracia eacute a derrubada da estaacutetua de Saddam Hussein apoacutes a invasatildeo das forccedilas dos EUA em Bagdaacute Esse tipo de gesto retoacuterico significa a vi-toacuteria das forccedilas dos Estados Unidos e a derrota do Iraque

Retoacuterica deliberativa ndash Ver Espeacutecies de retoacuterica

Retoacuterica epidiacutetica ndash Ver Espeacutecies de retoacuterica

Retoacuterica forense ndashVer Espeacutecies de retoacuterica

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A construccedilatildeo do argumento

Regra de justiccedila ndash Termo que estaacute no cerne das teorias de Perelman e Olbrechts-Tytecha (1969 p 218) sobre argumentaccedilatildeo A chave para essa regra formal eacute dar ldquo[] tratamento idecircntico para seres ou situaccedilotildees da mesma naturezardquo Observar a regra da justiccedila eacute necessaacuterio para a constru-ccedilatildeo de argumentos juriacutedicos Atraveacutes dessa regra os precedentes tambeacutem adquirem maior importacircncia casos anteriores podem influenciar casos futuros (desde que as categorias sejam essencialmente as mesmas)

Sofisma ndash Na linguagem popular o sofisma refere-se a qualquer argu-mento intencionado a enganar em vez de persuadir legitimamente um ouvinte O termo data do seacuteculo V aC Os sofistas eram um grupo de filoacutesofos preacute-platocircnicos e professores de retoacuterica Em geral os sofistas ensinavam a partir da experiecircncia em vez da teoria e enfatizavam as habilidades persuasivas do mundo real ao inveacutes da busca de uma forma particular de verdade Assim atraveacutes de suas teacutecnicas ensinavam a ldquoargumentar para ganharrdquo Nos Diaacutelogos de Platatildeo os sofistas satildeo vistos como espantalhos e usavam a retoacuterica de forma egoiacutesta e amoral (ver Goacutergias de Platatildeo) De forma oposta agrave retoacuterica de Platatildeo os sofistas emer-gem como trapaceiros astutos que usam a linguagem para enganar em vez de encontrar a verdade As perspectivas contemporacircneas da retoacuterica tecircm reabilitado muitos conceitos sofistas incluindo a atenccedilatildeo para am-biguidade da liacutengua e o contexto natural da verdade e do conhecimento O ldquofeminismo retoacutericordquo de Susan Jarratt por exemplo liga o foco poliacutetico do feminismo contemporacircneo agraves abordagens sofistas sobre o poder real do uso da linguagem

Situaccedilatildeo retoacuterica ndash Refere-se agrave contextualizaccedilatildeo da maneira de persu-adir se eacute oral ou escrito Como melhor determinar o impacto persuasivo em um determinado puacuteblico-alvo Quais satildeo os elementos de uma dada

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A construccedilatildeo do argumento

situaccedilatildeo retoacuterica Natildeo haacute uma resposta faacutecil a essas questotildees e os estu-diosos continuam a oferecer quadros praacuteticos e teoacutericos Uma estrutura comum utilizada no ensino de escrita eacute o triacircngulo retoacuterico com foco no inter-relacionamento da mensagem do escritor e do puacuteblico Outros quadros satildeo ainda mais especiacuteficos e identificam cinco componentes principais da situaccedilatildeo retoacuterica ocasiatildeo propoacutesito toacutepico audiecircncia e escritor O pentaacutegono de Kenneth Burke tambeacutem identifica cinco elemen-tos essenciais accedilatildeoato agente agecircncia cena e propoacutesito Observa-se que embora diferentes essas estruturas apresentam elementos centrais similares proporcionando variaccedilotildees no triacircngulo retoacuterico Natildeo importa qual estrutura terminoloacutegica eacute usada A chave para a compreensatildeo da situaccedilatildeo retoacuterica loacutegica consiste em reconhecer o raacutetio dos termos que elementos satildeo mais importantes para a situaccedilatildeo dada

Stasis Theory ndash Da palavra grega staseis que significa ldquotomar uma po-siccedilatildeordquo Na teoria retoacuterica a Stasis theory pode ser usada para encontrar pontos comuns de uma questatildeo ou como uma estrateacutegia de criaccedilatildeo que fornece ao orador uma seacuterie de perguntas que servem para descobrir o ponto de discordacircncia entre dois opositores Desde o seacuteculo II da nossa era tradicionalmente tem havido uma ordem hieraacuterquica das questotildees de Stasis No entanto recentemente alguns pesquisadores argumentam que as questotildees natildeo necessariamente tecircm de ser feitas numa ordem especiacutefica e dependendo da situaccedilatildeo retoacuterica algumas das questotildees podem natildeo ser aplicaacuteveis Encontrar o ponto de origem de um desacordo eacute desnecessaacuterio se o objetivo do argumento eacute chegar a uma resoluccedilatildeo ou pelo menos a uma compreensatildeo mais clara do problema por oposiccedilatildeo agraves disputas que satildeo muitas vezes o resultado de um argumento em que a Stasis natildeo foi alcanccedilada antes do engajamento As Stasis satildeo divididas em quatro perguntas

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A construccedilatildeo do argumento

1 Conjectura ndash existe um ato a ser considerado2 Definiccedilatildeo ndash como o ato pode ser definido3 Qualidade ndash quatildeo seacuterio eacute o ato Quais satildeo as circunstacircncias atenuantes4 Procedimento ndash o que deveriacuteamos fazer Existe alguma coisa sobre o ato que exige uma decisatildeo natildeo padratildeo ou pena menor

Topoi (Toacutepicos) ndash Originalmente delineado por Aristoacuteteles os toacutepicos satildeo significados disponiacuteveis de persuasatildeo e satildeo utilizados durante a fase de criaccedilatildeo da argumentaccedilatildeo Aristoacuteteles classificou os toacutepicos em dois grupos (1) os comuns a todos os sujeitos (lugares comuns) e a todas as circunstacircncias e (2) os de aacutereas especializadas como Fiacutesica ou poliacutetica Perelman tem uma abordagem diferente para os toacutepicos Ele aplica o termo loci apenas a premissas de natureza geral que podem servir como bases para valores e hierarquias e que se relacionam com escolhas que fazemos Ele classifica loci em (1) loci de quantidade (por exemplo um maior nuacutemero de bens eacute mais desejaacutevel do que um nuacutemero menor de mercadorias) (2) de qualidade (por exemplo uma verdade deve ser desejada acima de cem erros ou o uacutenico eacute valorizado aleacutem do usual do ordinaacuterio ou do vulgar) (3) de ordem (por exemplo o que eacute anterior eacute superior ao que estaacute depois por exemplo o original eacute superior agrave coacutepia) (4) de existecircncia (por exemplo o que eacute atual ou real eacute superior ao pos-siacutevel ao contingente ou ao impossiacutevel) (5) de essecircncia (por exemplo a superioridade do valor dos indiviacuteduos que incorpora a essecircncia por exemplo uma raccedila melhor exibiria as qualidades daquela raccedila melhor do que seus concorrentes) e (6) de pessoa (por exemplo a dignidade o valor ou a autonomia da pessoa)

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A construccedilatildeo do argumento

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262

A construccedilatildeo do argumento

AA

263

sObre Os autOres

John RamageFoi professor por mais de trinta anos na Montana State University e na Arizona State University Ensinou literatura escrita teoria retoacuterica e argumentaccedilatildeo na graduaccedilatildeo e na poacutes-graduaccedilatildeo Tambeacutem foi coordena-dor de programas de escrita por mais de uma deacutecada supervisionando centros de escrita programas curriculares e de suporte acadecircmico Seu livro Writing Arguments em co-autoria com John Bean e June Johnson jaacute estaacute na oitava ediccedilatildeo

Zachary WaggonerEacute professor do Departamento de Inglecircs na Arizona Satate University En-sina retoacuterica escrita teoria de jogos eletrocircnicos e atua na formaccedilatildeo de professors Eacute autor de My Avatar My Self Identity in Video Role-Playing Games e de vaacuterios artigos sobre o ensino da escrita

Micheal CallawayEacute professor residente no Mesa Community College em Mesa Arizona Aleacutem do ensino atualmente tem se dedicado ao desenvolvimento de curriacuteculo para cursos de educaccedilatildeo para o desenvolvimento Aleacutem de atividades de ensino ele tambeacutem se interessa por questotildees de avaliaccedilatildeo

Jennifer Clary-LemonEacute professora assistente de retoacuterica na University of Winnipeg Os seus interesses de investigaccedilatildeo incluem a retoacuterica da representaccedilatildeo e a histoacute-ria da escrita e da disciplinaridade Eacute co-autora com Peter Vandenberg e Sue Hum de Relations Locations Positions Composition Theory for Writing Teachers Tambeacutem tem publicaccedilotildees em revistas como American Review of Canadian Studies e Handbook of Research on Writing

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sObre Os traDutOresClemilton Lopes Pinheiro Doutor em Letras aacuterea de Filologia e Linguiacutestica Portuguesa pela Uni-versidade Estadual Paulista Juacutelia de Mesquita Filho Realizou estaacutegio de poacutes-doutorado em Linguiacutestica na Universiteacute Sorbonne Nouvelle Paris 3 Eacute professor de linguiacutestica na Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Erik Fernando MartinsDoutor em Linguiacutestica pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Univer-sidade Estadual de Campinas Eacute professor de linguiacutestica na Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Felipo Bellini SouzaLicenciado em Letras e mestrando em Estudos da Linguagem pela Uni-versidade Federal do Rio Grande do Norte Eacute tradutor e administrador da empresa Traduzabiz

Karine Alves DavidLicenciada em Letras pela Universidade Estadual do Cearaacute Mestre em Linguiacutestica pela Universidade Federal do Cearaacute Doutoranda em Estudos da linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte com estaacutegio na University of California Santa Barbara

Marcus MussiDoutorando em Linguiacutestica pela Universidade Federal da Paraiacuteba Eacute pro-fessor de inglecircs no Centro de Formaccedilatildeo de Professores da Universidade Federal de Campina Grande

265

Maria Hozanete Alves de LimaDoutora em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Alagoas Realizou estaacutegio de poacutes-doutorado no Institut de textes et manuscrits modernes unidade de pesquisa ligada ao CNRS da Franccedila Eacute professora de estudos claacutessicos na Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Siacutelvio Luis da SilvaDoutor em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte aacuterea de Linguiacutestica Aplicada Eacute professor de linguiacutestica e liacutengua portuguesa na Universidade Federal da Paraiacuteba

a construccedilatildeo do argumento fornece uma ampla gama de

recursos para o ensino da escrita as ideias dos principais

teoacutericos da Retoacuterica claacutessica e contemporacircnea de aristoacuteteles a

Burke Toulmin e Perelman e sua relevacircncia para a instruccedilatildeo

satildeo apresentadas sucintamente Os autores classificam de forma

clara e expotildeem suas posiccedilotildees sobre a pedagogia das falaacutecias

informais da propaganda e apresentam as razotildees para preferir

uma abordagem a outra entre as disponiacuteveis para o ensino da

escrita os autores igualmente destacam o papel do argumento

em abordagens que natildeo satildeo diretamente vinculadas ao tema

como as que destacam o movimento feminista a retoacuterica da

liberaccedilatildeo os estudos culturais criacuteticos o movimento escrita

atraveacutes do curriacuteculo as novas tecnologias e a retoacuterica visual as

referecircncias bibliograacuteficas datildeo a oportunidade de aprender mais

sobre essas abordagens

AA

isbn 978-85-66530-81-0

Page 4: WordPress.com · cOMissãO eDitOrial editores executivos augusto noronha e Karla vidal conselho editorial Alex Sandro Gomes angela Paiva Dionisio Carmi ferraz Santos Cláudio Clécio

cOMissatildeO eDitOrial

editores executivosaugusto noronha e Karla vidal

conselho editorialAlex Sandro Gomes

angela Paiva DionisioCarmi ferraz Santos

Claacuteudio Cleacutecio vidal eufrausinoClaacuteudio Pedrosa

Leila RibeiroLeonardo Pinheiro Mozdzenski

Clecio dos Santos Bunzen JuacuteniorPedro francisco guedes do nascimento

Regina Luacutecia Peacuteret Dellrsquoisolaubirajara de Lucena Pereira

Wagner Rodrigues SilvaWashington Ribeiro

Prefixo Editorial 66530

7

apresentaccedilatildeo agrave ediccedilatildeo brasileira

A argumentaccedilatildeo eacute um fenocircmeno que recobre diferentes conceitos e eacute objeto de estudo de diferentes disciplinas desde as mais antigas ndash Loacutegica Retoacuterica Dia-leacutetica ateacute as mais recentes no domiacutenio das Ciecircncias Humanas e Sociais incluindo a Linguiacutestica Satildeo inuacutemeras as obras escritas sobre o tema mas se reconhece que mesmo assim ainda haacute muito a se dizer Nesse sentido a ideia de publicar uma versatildeo em portuguecircs da obra Argument in Composition de John Ramage Micheal Callaway Jennifer Clary-Lemon e Zachary Waggoner publicada em 1999 pela Parlor Press nos Estados Unidos tem como propoacutesito fomentar a discussatildeo sobre o tema entre os pesquisadores brasileiros

A obra focaliza a construccedilatildeo do argumento no contexto do ensino da escrita na universidade e se apoia em um quadro teoacuterico amplo e diversificado em parte bastante conhecido pelo puacuteblico brasileiro como a nova retoacuterica de Chaim Perel-man e Lucie Olbrechts-Tytecha em parte natildeo muito como eacute o caso da abordagem retoacuterica de Kenneth Burke Assim aleacutem da relevacircncia do tema a obra permite a ampliaccedilatildeo de um aporte para pensar a questatildeo da argumentaccedilatildeo e da construccedilatildeo do argumento no ensino da escrita na universidade e prepara o caminho para praacuteticas educativas tambeacutem relevantes para o ensino superior brasileiro ainda carente de inclusatildeo e de qualidade

Essa versatildeo em portuguecircs soacute foi possiacutevel graccedilas ao primoroso trabalho de traduccedilatildeo e empenho do(a)s colegas que se envolveram no projeto Nosso muito obrigado a todo(a)s Agradecemos tambeacutem ao professor Charles Bazerman da Universidade de Santa Baacuterbara-Califoacuternia que colaborou em muitas faces acadecirc-micas e legais da traduccedilatildeo Da mesma forma deixamos nosso agradecimento a David Blakesley e Michel Palmquist representantes da Parlor Press responsaacutevel pelos direitos autorais da obra em inglecircs pela autorizaccedilatildeo gratuita da publicaccedilatildeo

Boa LeituraClemilton Lopes Pinheiro

prefaacuteCio do Coordenador da Coleccedilatildeo RefeRe guides to RhetoRic and composition (Guia de Referecircncia para a Retoacuterica e a Escrita)1

Na ampla e crescente casa da retoacuterica e da escrita a argumentaccedilatildeo e sua irmatilde persuasatildeo compartilham um grande e digno quarto que vem sendo cons-truiacutedo desde a fundaccedilatildeo da Retoacuterica na Greacutecia antiga Os principais interesses da Retoacuterica claacutessica satildeo todos fundados com base no argumento debate sobre governo e cidadania julgamento de culpa ou inocecircncia declaraccedilatildeo de direitos e deveres formaccedilatildeo de alianccedilas e acordos protesto contra inimigos desenvol-vimento de compromisso comunitaacuterio As principais instituiccedilotildees sociais foram formadas para criar condiccedilotildees (como procedimentos princiacutepios e exigecircncias) de apontar argumentos para soluccedilotildees bem sucedidas da accedilatildeo comunitaacuteria altas cortes congressos de legisladores religiotildees democracia eleitoral

O grande quarto da argumentaccedilatildeo e da persuasatildeo tem uma larga entrada para os quartos vizinhos que se veem em diferentes condiccedilotildees A proacutepria Filoso-fia opositora de longa data do argumento estrutura suas discussotildees com base nele As disciplinas acadecircmicas satildeo campos argumentativos embora organiza-dos como esforccedilos cooperativos As escolhas de grupos sobre planejamento e escolhas ndash sejam estruturais meacutedicas ou militares ndash dependem da expressatildeo de diferentes visotildees embora enquadradas elipticamente em conhecimentos obje-tivos e papeacuteis especiacuteficos

A argumentaccedilatildeo tambeacutem pode servir para finalidades individuais Graccedilas ao ato de argumentar com os outros um indiviacuteduo pode trabalhar suas cren-ccedilas pessoais valores envolvimentos e opccedilotildees de vida As ocasiotildees sociais de argumentaccedilatildeo oferecem aos indiviacuteduos a oportunidade de pesquisar e refletir individualmente em um contexto de pontos de vista divergentes Os conceitos

1 Traduccedilatildeo Clemilton Lopes Pinheiro

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modernos sobre o desenvolvimento individual do conhecimento da consciecircncia e da responsabilidade dependem de um indiviacuteduo que tem acesso e participa da construccedilatildeo de argumentos e chega a crenccedilas pessoais

Enquanto alguns veem o engajamento a um argumento como um fenocircmeno oral a capacidade de confrontar pontos de vista opostos na escrita transformou o alcance e a profundidade dos argumentos as evidecircncias disponiacuteveis e as situ-accedilotildees em que os argumentos ocorrem Assim como os argumentos usados nos tribunais tenham se convertido em leis escritas textos com jurisprudecircncias resumos de audiecircncias depoimentos tratados fizeram do Direito uma profissatildeo liberal Muitos domiacutenios de letramento escrito que facilitam o contato agrave distacircncia na sociedade moderna dependem do argumento a exemplo de um investimento financeiro um projeto eficaz de preservaccedilatildeo do meio ambiente ou um projeto beneficente sem fins lucrativos No mundo acadecircmico da escrita argumentar facilita a aprendizagem de maneira clara inteligente bem fundamentada disci-plinada e articulada

Este Refere guides to Rhetoric and Compositionc (Guia de referecircncia para a Retoacuterica e a Escrita) fornece uma ampla gama de recursos para o ensino da es-crita As ideias dos principais teoacutericos da Retoacuterica claacutessica e contemporacircnea de Aristoacuteteles a Burke Toulmin e Perelman e sua relevacircncia para a instruccedilatildeo satildeo apresentadas sucintamente Os autores classificam de forma clara e expotildeem suas posiccedilotildees sobre a pedagogia das falaacutecias informais da propaganda e apresentam as razotildees para preferir uma abordagem a outra entre as disponiacuteveis para o en-sino da escrita Os autores igualmente destacam o papel da argumentaccedilatildeo em abordagens que natildeo satildeo diretamente vinculadas ao tema como as que destacam o movimento feminista a retoacuterica da libertaccedilatildeo os estudos culturais criacuteticos o movimento escrita atraveacutes do curriacuteculo as novas tecnologias e a retoacuterica visual A relaccedilatildeo de leituras suplementares e as referecircncias bibliograacuteficas datildeo a opor-tunidade de aprender mais sobre essas abordagens

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Grande parte do livro ilustra o valor de uma perspectiva e defende aberta-mente seu uso no ensino da escrita em relaccedilatildeo a outras Dessa forma o livro con-vida os leitores a tirar suas proacuteprias conclusotildees sobre o valor da argumentaccedilatildeo e sobre como melhor incorporaacute-la em sua didaacutetica Eu particularmente recomendo aos leitores considerar o raciociacutenio contra o engessamento dos sistemas argu-mentativos e as situaccedilotildees especiacuteficas em que cada argumento ocorre

Charles Bazerman

13

prefaacuteCio1

A construccedilatildeo do argumento eacute um livro direcionado a todos os professores in-cluindo os que natildeo satildeo exatamente professores de produccedilatildeo de textos que desejam incorporar o ensino do argumento em suas aulas Ao delineaacute-lo tentamos atingir um niacutevel de generalidade entre um livro didaacutetico sobre argumento e uma teoria do argumento Ou nos termos de Kenneth Burke nossa abordagem estaacute situada em um niacutevel de ldquofalar sobrerdquo o argumento em oposiccedilatildeo ao argumento ldquoque falardquo ou ldquofalar sobrerdquo o argumento ldquoque falardquo

Os leitores que desejam uma discussatildeo mais especiacutefica devem consultar quais-quer dos inuacutemeros bons livros didaacuteticos dedicados ao assunto Os que buscam uma compreensatildeo mais restrita e mais profunda sobre o argumento podem consultar as muitas fontes agraves quais nos referimos ao longo do livro Nossa ecircnfase no niacutevel da generalidade mediana decorre de nosso propoacutesito ajudar professores a traduzir a teoria em praacutetica de ensino e fazer escolhas conscientes de livros didaacuteticos sobre o argumento (caso existam) que fazem mais sentido para suas aulas Esperamos que os trecircs primeiros capiacutetulos de A construccedilatildeo do argumento subsidiem nossos leitores para formular suas proacuteprias abordagens do argumento em sala de aula e a ler mais criticamente o material apresentado no restante do livro

Como a alusatildeo anterior agrave Kenneth Burke pode sugestionar A construccedilatildeo do argumento eacute profundamente influenciado pela abordagem retoacuterica desse autor Embora a teoria de Burke tenha recebido pouca ou nenhuma atenccedilatildeo na maioria dos livros didaacuteticos que abordam o argumento (aleacutem do tratamento muitas vezes simplificado do seu esquema pentagonal) noacutes acreditamos que ela eacute a estrutura mais coerente e compreensiacutevel disponiacutevel para unificar as diversas abordagens do argumento ndash o esquema de Toulmin a Stasis Theory as falaacutecias informais a situa-ccedilatildeo retoacuterica etc ndash que compotildeem a espinha dorsal da maioria dos livros didaacuteticos

1 Traduccedilatildeo Siacutelvio Luis da Silva

14

atuais Uma vez que Burke serve como as primeiras lentes ou ldquotela finardquo atraveacutes das quais noacutes enxergamos o argumento alguns termos comumente utilizados natildeo satildeo detalhados no corpo principal do texto Em alguns casos esses termos sem que sejam problemaacuteticos em si mesmos satildeo incongruentes ou perifeacutericos agrave nossa abordagem Natildeo damos atenccedilatildeo demasiada por exemplo ao entimema Noacutes citamos em nosso glossaacuterio e mais importante citamos as anaacutelises racionais dos termos feitas por John Gage Certamente reconhecemos o lugar de destaque da noccedilatildeo de entimema na histoacuteria do ensino do argumento e seu potencial de utilidade para alguns professores em sala de aula Apenas tivemos problemas de encaixaacute-lo na nossa abordagem Outros termos natildeo satildeo especialmente discutidos porque senti-mos que jaacute estatildeo contemplados nos diferentes termos de nossa proacutepria rubrica No caso da situaccedilatildeo retoacuterica por exemplo discutimos a noccedilatildeo de exigecircncia de Lloyd Bitzer porque acreditamos que ela descreve perfeitamente um conceito funda-mental para os estudantes do argumento Por outro lado natildeo mencionamos outro elemento da situaccedilatildeo retoacuterica de Bitzer as limitaccedilotildees e restriccedilotildees (constraints) pela crenccedila de que alguns outros elementos que discutimos notadamente a Stasis Theory cumprem mais clara e adequadamente o papel desempenhado pelas limi-taccedilotildees e restriccedilotildees de Bitzer

A construccedilatildeo do argumento eacute inevitavelmente em si mesmo tanto um argu-mento como um compecircndio de abordagens sobre argumentaccedilatildeo Tentamos apresen-tar nosso argumento sem sermos muito argumentativos Ao mesmo tempo somos os primeiros a reconhecer que nosso campo ldquoretoacuterica e escritardquo estaacute longe de ser claramente definido De fato haacute argumentos a serem traccedilados a favor e contra a inclusatildeo da escrita expressiva nas aulas de argumento (noacutes tentamos apresentar um argumento a favor da inclusatildeo) Haacute ainda argumentos a favor e contra a inclusatildeo do argumento visual nessas aulas No caso do argumento visual nossa posiccedilatildeo eacute mais complexa Aplaudimos os objetivos e reconhecemos a importacircncia do argumento visual Citamos os trabalhos que estatildeo sendo feitos na aacuterea mas criticamos a falta de ferramentas utilizaacuteveis ndash ou um vocabulaacuterio comum para esse propoacutesito ndash que torne esse trabalho acessiacutevel para graduandos Por hora sugerimos aos professores

15

a esperar que as melhores ferramentas sejam disponibilizadas ou desenvolvam as suas proacuteprias Enquanto isso vemos o argumento visual como aqueles sites da web intrigantes que nos recebem com a mensagem na tela ldquoem construccedilatildeordquo

sumaacuterio

19 introduccedilatildeo por que argumentar eacute importante

22 um entendimento sobre o argumento 24 Discussatildeo de Leo e fish ndash parte i perspectiva teoacuterica 35 Discussatildeo de Leo e fish ndash parte ii passando da dualidade ao compromisso 38 Leo e fish ndash parte iii os elementos do argumento 47 Argumento e a ldquopurificaccedilatildeo da guerrardquo 54 Por que os estudantes precisam argumentar 55 argumento e letramento criacutetico 61 argumento e identidade 67 Eacutetica e argumento

77 CapIacutetulo 1 a histoacuteria da argumentaccedilatildeo 78 Filosofia versus Retoacuterica 93 o problema do engessamento da Retoacuterica 99 figuras-chave da teoria moderna da argumentaccedilatildeo 99 introduccedilatildeo a Kenneth Burke 102 o realismo de Burke 107 introduccedilatildeo a Chaim Perelman e Lucie olbrechts-Tyteca 109 um panorama de a nova Retoacuterica 113 a Stasis Theory e a nova Retoacuterica 124 introduccedilatildeo a Stephen Toulmin 125 o esquema de Toulmin ndash o natildeo silogismo 128 a aplicaccedilatildeo do modelo de Toulmin 134 Resumo

137 CapIacutetulo 2 Questotildees sobre argumentaccedilatildeo 137 o debate sobre a falaacutecia 143 a abordagem pragma-dialeacutetica das falaacutecias 147 alternativas para focalizar a argumentaccedilatildeo em uma aula de escrita estudos criacutetico-culturais 151 Pedagogia expressivista 163 Retoacuterica processual 168 ensinar ou natildeo ensinar propaganda 170 o que eacute propaganda Burke e ellul 186 a propaganda em resumo

191 CapIacutetulo 3 introduccedilatildeo a algumas boas praacuteticas 191 o que funciona no ensino de escrita 196 Boas praacuteticas 200 Retoacuterica da libertaccedilatildeo 206 feminismo e argumento 211 aprendizagem-serviccedilo e argumentaccedilatildeo 215 escrita atraveacutes do curriacuteculo (writing across the curriculum ndash WaC) e escrita nas disciplinas (writing in the disciplines ndash WiD) 219 Computador e escrita 223 Retoacuterica visual

229 glossaacuterio

249 referecircnCias

263 sobre os autores

264 sobre os tradutores

a x b x C

19

introduccedilatildeopor Que argumentar eacute importante1

Qualquer um que hoje ainda eacute ceacutetico sobre a importacircncia do argumento nos curriacuteculos dos cursos de escrita das faculdades do paiacutes precisa apenas olhar a abundacircncia de livros dedicados ao assunto Cada grande editora possui pelo menos trecircs ou quatro obras sobre o tema Aleacutem disso a qualidade da atual geraccedilatildeo de textos sobre argumento certamente excede o padratildeo ndash embora natildeo tenha sido eacute verdade um padratildeo particularmente alto ndash estabelecido por geraccedilotildees dos textos antes de meados da deacutecada de 1980 Enquanto uma seacuterie de livros de pensamento criacutetico escritos por filoacutesofos foram adaptados com sucesso para cursos de escrita durante os anos setenta os textos padratildeo sobre argumento compreendem um grupo bastante significativo

Na verdade o tema foi pouco ensinado de forma autocircnoma em aulas de escrita antes da deacutecada de 1980 Normalmente era ensinado como parte de algum esque-ma taxonocircmico comum no chamado curriacuteculo ldquotradicional correnterdquo O curriacuteculo tradicional corrente ou cursos de escrita baseados em modelos que dominaram os curriacuteculos universitaacuterios durante deacutecadas era organizado em torno de categorias supostamente funcionais de escrita como narraccedilatildeo descriccedilatildeo cada uma das quais concebida com um formato prescritivo

A caracteriacutestica mais marcante desses modelos era o caraacuteter retoacuterico Os alunos tinham pouca ideia sobre a razatildeo de algueacutem precisar de uma descriccedilatildeo de um animal de estimaccedilatildeo ou de um professor favorito bem como de um resumo detalhado de uma receita de sanduiacuteche A principal coisa dita sobre audiecircncia era em geral a suposiccedilatildeo de que as pessoas satildeo desinformadas e precisavam ler enunciados claros e detalhados Os alunos progrediam ao longo do semestre de

1 Traduccedilatildeo Clemilton Lopes Pinheiro e Karine alves David

20

A construccedilatildeo do argumento

tarefas simples a tarefas complexas com base em uma teoria de aprendizagem essencialmente behaviorista Por ser considerado o mais complexo dos modelos o argumento era o uacuteltimo ponto do programa do curso Dessa forma recebia pouca atenccedilatildeo ou era mesmo totalmente esquecido

Muitos professores ficavam de fato aliviados por natildeo precisarem ensinar sobre argumento jaacute que seus alunos tinham muita dificuldade no contexto do en-sino tradicional Em siacutentese essas dificuldades natildeo eram surpreendentes Embora a relaccedilatildeo entre modelo e objetivo fosse bastante expliacutecita quando se tratava de descrever o processo de fazer um sanduiacuteche essa mesma relaccedilatildeo se complicava por vaacuterias razotildees quando se pretendia persuadir um puacuteblico sobre a proibiccedilatildeo constitucional do casamento entre pessoas do mesmo sexo ser ou natildeo uma grande ideia Qualquer mudanccedila que ocorresse nessas tarefas parecia parar abruptamente quando se tratava de argumentar Como se sabe quando as demandas cognitivas de uma tarefa ficam fora da ldquozona de desenvolvimento proximalrdquo dos alunos todos os outros problemas ndash ortografia gramaacutetica sintaxe e estilo ndash despontam como uma virose Muitos professores de escrita relutantemente concluiacuteram com base em suas tristes experiecircncias que o argumento deve ser ensinado mais tarde ou em qualquer outro momento na universidade

Assim muitos dos problemas enfrentados pelos alunos ao aprenderem a construir argumentos em um curso de escrita tradicional poderiam ser atribuiacutedos agrave abordagem de ensino Era como se tentaacutessemos preparar os alunos para o caacutel-culo atribuindo-lhes uma seacuterie de problemas aritmeacuteticos prevendo que a tarefa de resolver problemas de adiccedilatildeo subtraccedilatildeo multiplicaccedilatildeo e divisatildeo os preparasse para resolver equaccedilotildees de segundo grau

Nem todos os cursos de escrita eram no entanto organizados em torno dos princiacutepios tradicionais Poucos textos aparentemente destinados a ser usados em cursos independentes sobre argumento eram mais promissores Eles eram constituiacutedos principalmente de antologias de argumentos canocircnicos interligados

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A construccedilatildeo do argumento

a conselhos inuacuteteis e apontamentos vagos Os prefaacutecios e introduccedilotildees geralmente breves ndash e raramente se desejava que fossem mais longos ndash ensaiavam alguns ter-mos claacutessicos falaacutecias informais e modelos de silogismos e convidavam os alunos a aplicar o material de alguma forma aos ensaios que se seguiam Eacute desnecessaacuterio dizer que as complexidades dos ensaios natildeo esclareciam as duacutevidas do capiacutetulo de abertura deixando estudantes e professores se perguntarem se talvez o ar-gumento natildeo estava aleacutem do alcance dos meros mortais

O que fez tudo isso mudar nos uacuteltimos vinte anos Aqui noacutes enfrentamos uma questatildeo do tipo quem vem primeiro o ovo ou a galinha Nossas abordagens sobre o argumento ganharam em sofisticaccedilatildeo e em utilidade por causa de um reconhe-cimento crescente da sua importacircncia no mundo ou a sofisticaccedilatildeo e a utilidade crescentes de nossas abordagens nos tornam progressivamente mais conscientes dessa importacircncia no mundo Provavelmente os dois fenocircmenos ocorreram mais ou menos simultaneamente e se reforccedilaram mutuamente Ou mais precisamente nossa tardia consciecircncia das muitas boas ferramentas disponiacuteveis para os estu-dantes de argumento as quais foram em muitos casos adaptaccedilotildees das usadas haacute dois mil anos tornou o seu estudo mais fecundo e a transmissatildeo de habilidades de argumentar mais confiaacuteveis Por qualquer que seja a razatildeo nos encontramos hoje em meio a uma espeacutecie de era de ouro da histoacuteria do ensino do argumento

Mais adiante examinaremos o passado para ver como isso aconteceu e como situar a eacutepoca atual na histoacuteria do ensino desse tema Por enquanto queremos nos concentrar em nossa compreensatildeo atual do argumento e na nossa motivaccedilatildeo para ensinaacute-lo

22

A construccedilatildeo do argumento

um entendimento sobre o argumento

Em nossas aulas pretendemos fazer uma abordagem inicial sobre o argumen-to de forma direta e indutiva pelo exame de dois ou mais argumentos sobre uma mesma questatildeo treinando com nossos alunos quais satildeo as caracteriacutesticas de nossos exemplos mais provaacuteveis de serem aplicadas a outros casos Essa abordagem de ensino eacute ilustrativa de outra mais geral que defendemos bottom-up a aprendiza-gem baseada em problemas fundamentada na aplicaccedilatildeo e ascensatildeo de princiacutepios em oposiccedilatildeo ao modo tradicional top-down modo expositivo de transmissatildeo de conhecimento (isto eacute aulas expositivas)

Haacute com certeza vantagens e desvantagens na nossa abordagem indutiva de aprendizagem Em nome da aprendizagem ativa de importantes elementos do argumento perdemos de vista embora de forma passiva a ldquocoberturardquo de nosso toacutepico O melhor que podemos esperar de nosso exame inicial do argumento eacute uma melhor compreensatildeo de algumas de suas caracteriacutesticas mais proeminentes e um senso mais eficaz de como pensar criticamente sobre o toacutepico Esse eacute um dos pontos do exerciacutecio e do nosso curso os significados de termos complexos como argumento satildeo sempre contestaacuteveis porque eles satildeo de fato inesgotaacuteveis

Qualquer que seja o perigo que os alunos possam encontrar com a seleccedilatildeo de partes do todo os benefiacutecios de nossa abordagem na nossa opiniatildeo superam sig-nificativamente os potenciais custos Embora pudeacutessemos transmitir muito mais conhecimento assertivo sobre o argumento atraveacutes da exposiccedilatildeo natildeo haacute garan-tia de que o conhecimento que transmitimos chegaria ao seu destino ou que se chegasse seria suficientemente livre de ruiacutedo para natildeo confundir nosso sinal ou que os alunos teriam uma noccedilatildeo clara do que ldquofazerrdquo com o conhecimento retido durante a transmissatildeo Nossa experiecircncia com exposiccedilotildees sobre a definiccedilatildeo de argumento sugere que a pergunta mais comum que conseguimos provocar sobre o material apresentado eacute a seguinte O que vai cair na prova Natildeo consideramos que isso seja positivo Definir os problemas sobre os quais haacute um consenso eacute entre

23

A construccedilatildeo do argumento

outras coisas chato Definir problemas que satildeo incertos e contestaacuteveis eacute conside-ravelmente mais interessante

Em nossas discussotildees iniciais sobre argumentos queremos que nossos alu-nos percebam que a definiccedilatildeo de qualquer noccedilatildeo complexa como a de argumento eacute contestaacutevel que os valores e crenccedilas que trazemos para o exerciacutecio de definir o termo influenciam nossa forma de definir e que a forma como definimos por sua vez determina a maneira de analisar

A cada semestre no final de nosso exerciacutecio indutivo de definiccedilatildeo natildeo che-gamos ao mesmo conjunto de conclusotildees sobre o significado de argumento que ensaiamos em nossas aulas mas a conclusotildees diferentes muitas vezes inesperadas decorrentes de conversas livres Com certeza dirigimos essa conversa o suficiente para assegurar que pelo menos alguma coisa sobre argumento seja feita e que nem todos os pontos abordados em nossas aulas sobrevivam agraves questotildees agraves quais os submetemos (como disse o antigo mestre da dialeacutetica Soacutecrates agraves vezes natildeo estamos acima das correccedilotildees) Mas cada semestre produz novos insights sobre o significado do argumento Um ponto importante para lembrar eacute o fato de que depois haveraacute muito tempo para abordar as questotildees mais cruciais da questatildeo deixada sem resposta Ao esperar os alunos estatildeo mais propensos a se envolve-rem e mais preparados para aplicar as ideias que eles tecircm na matildeo quando tiverem que produzir

Os argumentos que se seguem (textos 01 e 02) natildeo satildeo os que usariacuteamos em uma classe de graduaccedilatildeo tiacutepica As questotildees que eles levantam satildeo apropriadas para uma discussatildeo mais teoacuterica do argumento do que a que buscamos promover no iniacutecio de uma aula de graduaccedilatildeo Certamente natildeo os consideramos exemplos de argumento Mas tampouco satildeo escolhidos aleatoriamente Satildeo meta-argumentos de um tipo que levanta questotildees sobre a natureza do argumento central para a nossa abordagem e preveem as questotildees que se repetem nas paacuteginas que se seguem Os dois argumentos e a discussatildeo subsequente obviamente natildeo podem ser reproduzi-dos em uma aula pois as discussotildees seratildeo sempre abertas Para se ter pelo menos

24

A construccedilatildeo do argumento

uma ideia sobre essa experiecircncia convidamos ao leitor a ler esse material da ma-neira como pedimos aos nossos alunos Antes de analisar nossa discussatildeo conveacutem observar como as duas coisas satildeo diferentes e semelhantes tanto na discussatildeo quanto nas conclusotildees a que chegam As conclusotildees podem entatildeo ser usadas para interrogar nossas proacuteprias conclusotildees sobre os dois argumentos

disCussatildeo de leo e fish parte i perspeCtiva teoacuteriCa

texto 01O relativismo cultural deixa algumas pessoas cegas para o mal

(John Leo universal Press Syndicate 15102001)

o governo episcopal da igreja episcopal emitiu uma declaraccedilatildeo vergo-

nhosa sobre os ataques terroristas Depois de estimular os crentes agrave recon-

ciliaccedilatildeo (isto eacute a dizer natildeo agrave guerra) os bispos disseram ldquoA afluecircncia de

naccedilotildees como a nossa contrasta com outras partes do mundo arruinadas

pela esmagadora pobreza que causa a morte de 6000 crianccedilas durante

uma manhatilderdquo O nuacutemero 6000 e a referecircncia a uma uacutenica manhatilde eacute claro

evocam o dia 11 de setembro em um espiacuterito de equivalecircncia moral

De forma clara os bispos parecem pensar que os americanos natildeo estatildeo

em posiccedilatildeo de queixar-se do massacre de Manhattan jaacute que 6000 crian-

ccedilas em todo o mundo podem morrer em um uacutenico dia os bons bispos

aparentemente estatildeo dispostos a tolerar 6 mil assassinatos em nova york2

porque o ocidente natildeo conseguiu eliminar a pobreza mundial e talvez de-

vesse ser culpado por causaacute-la Mas o ataque terrorista natildeo tem nada a ver

com a fome ou a doenccedila no mundo e a declaraccedilatildeo dos bispos eacute um enga-

2 O nuacutemero de viacutetimas dos atentados de 11 de setembro natildeo havia ainda sido fixado em 3000 quando Leo escreveu este texto

25

A construccedilatildeo do argumento

no moral Quantos assassinatos o episcopado pode ignorar por causa da

existecircncia de uma esmagadora pobreza Se 6000 por que natildeo 60000

Esse eacute um pequeno exemplo do que poderia ser um grande problema a

longo prazo um grande nuacutemero de nossos liacutederes culturais e morais satildeo

incapazes de dizer claramente que o mal existe no mundo e que ele deve

ser desafiado Em vez disso eles se contentam em falar sobre ldquociclos de

violecircnciardquo e sobre como a praacutetica do ldquoolho por olho dente por denterdquo torna

o mundo cego como se o policial que prende o criminoso violento eacute de

alguma forma tambeacutem culpado pelo crime

Parte dessa filosofia surge da cultura terapecircutica Acusar algueacutem de ser

mau eacute uma forma ruim de pensar natildeo haacute mal nem certo e errado soacute mal-

-entendidos que podem desaparecer se retermos o julgamento e formos

tocados emocionalmente pelos outros Tudo pode ser mediado e discutido

Outras coisas se originam no relativismo moral que foi cerne da filosofia

multicultural dominante nas nossas escolas durante toda uma geraccedilatildeo o

multiculturalismo vai muito aleacutem da toleracircncia e apreciaccedilatildeo de outras cultu-

ras e naccedilotildees Ele prega que todas as culturas e todas as expressotildees culturais

satildeo igualmente vaacutelidas Isso elimina as normas morais Toda cultura (exceto

a americana eacute claro) estaacute correta segundo suas proacuteprias normas e natildeo

pode ser julgada pelos outros

Professores de todos os niacuteveis advertiram durante anos para onde isso se

dirigia estamos vendo um grande nuacutemero de jovens incapazes ou indis-

postos a fazer as distinccedilotildees mais simples entre o certo e o errado Mesmo

atos horrendos ndash o sacrifiacutecio humano em massa pelos astecas e genociacutedio

pelos nazistas ndash satildeo declarados indiscutiacuteveis ldquoEacute claro que eu natildeo gosto

dos nazistasrdquo disse um estudante do estado de Nova York a seu professor

ldquoMas quem pode dizer que eles estatildeo moralmente erradosrdquo O mesmo

argumento ou natildeo argumento pode tambeacutem se aplicar aos terroristas de

11 de setembro

26

A construccedilatildeo do argumento

apenas uma minoria dos estudantes pensa dessa maneira mas o mul-

ticulturalismo com seu relativismo cultural radical estaacute se tornando um

problema seacuterio Isso deixa muitos estudantes em duacutevida sobre os valores

americanos tradicionais e desinteressados em qualquer sentimento de sen-

so comum ou solidariedade Eacute particularmente o caso do acreacutescimo a tudo

isso do mantra de que a esquerda cultural americana eacute ldquoracista-sexista-

-homofoacutebicardquo

Essa filosofia hiacutebrida ndash nenhum julgamento de outras culturas mas um jul-

gamento severo ndash jaacute estaacute comeccedilando a colorir muitas respostas aos ataques

terroristas Ela olha para o lado de fora do argumento das ldquocausas-raizrdquo e

da necessidade de ldquoentenderrdquo os terroristas e ver seus atos ldquono contextordquo

Muitas vezes o que as pessoas entendem por causa-raiz eacute o fato de que a

impiedosa e imperialista Ameacuterica trouxe os ataques contra si mesma

A filosofia tambeacutem brilha atraveacutes de muitas declaraccedilotildees de preocupaccedilatildeo

com o vieacutes contra os muccedilulmanos americanos naturalmente os muccedilulma-

nos natildeo devem ser escolhidos para o ataque ou o desprezo Mas muitas

declaraccedilotildees oficiais sobre o 11 de setembro fizeram apenas uma breve refe-

recircncia ao horror dos ataques antes de lanccedilar uma longa e desigual atenccedilatildeo

agrave possibilidade de um vieacutes anti-muccedilulmano

o terrorismo eacute a pior ameaccedila que a naccedilatildeo jaacute enfrentou e no momento os

americanos estatildeo solidamente unidos para enfrentaacute-lo a esquerda multi-

cultural-terapecircutica eacute pequena mas concentrada em instituiccedilotildees que fazem

a maior parte da pregaccedilatildeo para a ameacuterica ndash as universidades a imprensa

as principais igrejas e a induacutestria do entretenimento eles teratildeo de ser em-

purrados para afastar-se do multiculturalismo desleixado e do relativismo

universal Deixem a empurratildeo comeccedilar

27

A construccedilatildeo do argumento

texto 02Condenaccedilatildeo sem absolutos

(Stanley fish new york Times 15102001)

Durante o intervalo entre os ataques terroristas e a resposta dos estados

unidos um repoacuterter telefonou para me perguntar se os acontecimentos de

11 de setembro significavam o fim do relativismo poacutes-modernista Parecia

bizarro que eventos tatildeo seacuterios tivessem alguma relaccedilatildeo causal com uma

forma rara de discurso acadecircmico Mas nos dias que se seguiram um nuacute-

mero crescente de comentaristas apresentou importantes variaccedilotildees sobre

o mesmo tema as ideias apresentadas pelos intelectuais poacutes-modernos

enfraqueceram a soluccedilatildeo do paiacutes o problema de acordo com os criacuteticos

eacute o fato de que como os poacutes-modernistas negam a possibilidade de des-

crever objetivamente as questotildees eles natildeo nos deixam bases firmes para

condenar os ataques terroristas ou lutar contra eles

Natildeo eacute exatamente assim O poacutes-modernismo sustenta apenas que natildeo

pode haver um padratildeo independente para determinar qual das muitas in-

terpretaccedilotildees diferentes de um evento eacute a verdadeira a uacutenica coisa contra a

qual o pensamento poacutes-moderno se opotildee eacute a esperanccedila de justificar nossa

resposta aos ataques em termos universais que seriam convincentes para

todos inclusive para nossos inimigos invocar as noccedilotildees abstratas de justiccedila

e verdade para apoiar nossa causa natildeo seria de qualquer forma eficaz

porque nossos adversaacuterios reivindicam a mesma coisa (ningueacutem se declara

apoacutestolo da injusticcedila)

em vez disso podemos e devemos invocar os valores particulares vividos

que nos unem e satildeo assumidos pelas instituiccedilotildees que valorizamos e dese-

jamos defender

em momentos como esses a naccedilatildeo retoma com razatildeo o registro de as-

piraccedilatildeo e realizaccedilatildeo que compotildee nossa compreensatildeo coletiva do que vi-

vemos Esse entendimento eacute suficiente e longe de minar sua suficiecircncia o

28

A construccedilatildeo do argumento

pensamento poacutes-moderno nos diz que temos bases suficientes para a accedilatildeo

e condenaccedilatildeo justificadas nos ideais democraacuteticos que abraccedilamos sem

entender a retoacuterica vazia de absolutos universais a que todos subscrevem

mas que todos definem diferentemente

Mas eacute claro que natildeo eacute realmente com o poacutes-modernismo que as pessoas se

incomodam Eacute a ideia de que nossos adversaacuterios natildeo emergiram de algu-

ma antiga escuridatildeo mas de uma histoacuteria que os dotou de razotildees e motivos

e ateacute mesmo de uma versatildeo pervertida de algumas virtudes Bill Maher

Dinesh DrsquoSouza e Susan Sontag comeccedilaram a ter problemas ao assinalar

que ldquocovarderdquo natildeo eacute a palavra para descrever os homens que se sacrificam

por uma causa em que acreditam a Sra Sontag lhes daacute a coragem e tem

o cuidado de dizer que eacute um termo ldquomoralmente neutrordquo uma qualidade

que algueacutem pode exibir na execuccedilatildeo de um ato ruim (Satanaacutes de Milton eacute o

melhor exemplo literaacuterio) Vocecirc natildeo tolera esse ato porque o descreve com

precisatildeo Na verdade vocecirc se posiciona melhor para responder a ele to-

mando sua verdadeira medida Tornar o inimigo menor do que ele eacute cega

para o perigo que ele apresenta e daacute-lhe a vantagem que vem junto por ter

sido subestimado

Eacute por isso que o que Edward Said chamou de ldquofalsos universaisrdquo deve ser re-

jeitado eles estatildeo no caminho do pensamento uacutetil Quantas vezes ouvimos

estes novos mantras ldquoVimos a face do malrdquo ldquoEstes satildeo loucos irracionaisrdquo

ldquoEstamos em guerra contra o terrorismo internacionalrdquo Cada um eacute impre-

ciso e inuacutetil natildeo vimos o rosto do mal noacutes vimos a cara de um inimigo

que nos apresenta uma lista cheia de queixas de objetivos e de estrateacutegias

Se reduzimos esse inimigo ao ldquomalrdquo evocamos um democircnio que muda de

forma um anarquista moral de caraacuteter selvagem aleacutem de nossa compreen-

satildeo e portanto fora do alcance de qualquer contra estrateacutegia

A mesma reduccedilatildeo ocorre quando imaginamos o inimigo como ldquoirracionalrdquo

Os atores irracionais por definiccedilatildeo natildeo tecircm um objetivo claro e natildeo haacute ra-

zatildeo para raciocinar sobre a forma de combatecirc-los O melhor eacute pensar nes-

29

A construccedilatildeo do argumento

ses homens como portadores de uma racionalidade que rejeitamos porque

seu objetivo eacute a nossa destruiccedilatildeo Se tomarmos o trabalho de entender essa

racionalidade poderiacuteamos ter uma melhor chance de descobrir o que seus

adeptos faratildeo a seguir e prevenir

E o ldquoterrorismo internacionalrdquo natildeo descreve adequadamente o que en-

frentamos o terrorismo eacute o nome de um estilo de guerra a serviccedilo de

uma causa Eacute a causa e as paixotildees que a informam que nos confrontam

Concentrar-se em algo chamado terrorismo internacional ndash destacado de

qualquer agenda especiacutefica ndash soacute confunde as coisas Isto deveria ter sido

evidente quando o presidente vladimir Putin da Ruacutessia insistiu que qualquer

guerra contra o terrorismo internacional deve ter como um dos seus objeti-

vos a vitoacuteria contra os rebeldes na Chechecircnia

Quando a Reuters decidiu tomar cuidado ao usar a palavra ldquoterrorismordquo

porque segundo seu diretor de notiacutecias o terrorista de um homem eacute o luta-

dor pela liberdade de outro homem Martin Kaplan decano associado da

escola annenberg de Comunicaccedilatildeo da universidade do Sul da Califoacuternia

criticou o que ele viu como mais um exemplo de relativismo cultural Mas

a Reuters estaacute simplesmente reconhecendo quatildeo inuacutetil eacute a palavra porque

nos impede de fazer distinccedilotildees que nos permitem ter uma imagem melhor

de onde estamos e o que poderiacuteamos fazer Se vocecirc pensa em si mesmo

como o alvo do terrorismo com um T maiuacutesculo seu oponente estaacute em toda

parte e em nenhuma parte Mas se vocecirc pensa em si mesmo como o alvo

de um terrorista que vem de algum lugar mesmo que ele opere interna-

cionalmente vocecirc pode pelo menos tentar antecipar seus futuros ataques

Eacute este o fim do relativismo Se pelo relativismo se entende um elenco de

opiniotildees que torna vocecirc incapaz de preferir suas proacuteprias convicccedilotildees agraves do

seu adversaacuterio entatildeo o relativismo dificilmente poderia terminar porque

nunca comeccedilou Nossas convicccedilotildees satildeo por definiccedilatildeo preferidas Isso eacute o

que as torna nossas convicccedilotildees Relativizaacute-las natildeo eacute nem uma opccedilatildeo nem

um perigo

30

A construccedilatildeo do argumento

Mas se pelo relativismo se entende a praacutetica de se colocar no lugar do ad-

versaacuterio natildeo para se tornar igual a ele mas para ter alguma compreensatildeo

(muito longe da aprovaccedilatildeo) sobre o porquecirc de algueacutem mais querer ser

entatildeo o relativismo natildeo vai e natildeo deve terminar porque eacute simplesmente

outro nome para o pensamento fundamentado

Comeccedilamos com o elemento mais controverso da nossa discussatildeo nossa cren-ccedila de que o argumento de Fish eacute o mais forte e que nossos motivos para o preferir natildeo satildeo apenas ideoloacutegicos mas tambeacutem profissionais e teacutecnicos A primeira parte dessa afirmaccedilatildeo eacute provavelmente menos surpreendente para a maioria do que a segunda Muitos leitores deste livro acharatildeo o argumento de Leo menos persua-sivo assim como muitos leitores do digamos jornal conservador The Washington Times provavelmente achariam o argumento de Fish menos convincente A base para essa divisatildeo eacute congruente com as diferentes suposiccedilotildees sobre os argumentos colocados pelos dois autores Leo certamente afirmaria que nossos leitores leram mal seu artigo e foram enganados por Fish porque eles ndash isto eacute ldquovocecircrdquo ndash estatildeo presos ao ldquorelativismo moralrdquo

Da mesma forma Leo natildeo teria duacutevida de achar os leitores do The Washington Times mais perspicazes em grande parte porque eles conseguiram de alguma forma evitar a doutrinaccedilatildeo por uma ldquocultura terapecircuticardquo supervisionada pela elite intelectual ndash ou seja mais uma vez ldquovocecircrdquo Nossas duas leituras hipoteacuteticas tecircm diferenccedilas tanto de interpretaccedilatildeo quanto de significado Leitores competentes e natildeo corrompidos encontraratildeo o significado correto em cada um dos textos os leitores incompetentes e corrompidos natildeo Natildeo haacute espaccedilo no mundo de Leo para as ldquointerpretaccedilotildees rivaisrdquo de Fish sobre textos eventos porque no final haacute apenas uma leitura correta

Fish entretanto iria achar as diferenccedilas nas duas leituras insignificantes e certamente natildeo veria motivo para querelas Enquanto ele estaria preparado para se pronunciar contra uma leitura que julga seu argumento inferior ao de Leo ndash na

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A construccedilatildeo do argumento

verdade imagina-se que ele seria muito influenciado por tal julgamento ndash ele natildeo deixaria de relutar em reconhecer a superioridade de sua posiccedilatildeo como um sinal de corrupccedilatildeo moral

Os leitores do The Washington Times simplesmente constituem uma comuni-dade de leitores que compartilham crenccedilas diferentes e atribuem diferentes signi-ficados a termos como ldquoverdaderdquo e ldquojusticcedilardquo Ele estaria preparado para apresentar argumentos que mostram por que esses leitores estatildeo errados e ele certo ndash na verdade ele faz isso em seu texto ndash mas ele aceitaria desde o iniacutecio que em seus argumentos ele natildeo poderia apelar para qualquer conjunto de padrotildees univer-sais defendidos pelos seus apoiantes e pelos apoiantes de Leo que confirmariam suas conclusotildees e fortaleceria as de Leo aos olhos de todas as partes da discussatildeo (Porque Fish vecirc os limites entre as comunidades muito menos permeaacuteveis ele eacute menos otimista quanto agraves perspectivas do diaacutelogo intercomunitaacuterio do que noacutes) Leo entretanto assume que esses universais conhecidos de todos e ignorados perversamente por alguns existem embora ele tenha o cuidado de natildeo nomeaacute--los ou falar sobre suas relaccedilotildees Os extremos de Leo a ser nomeados mais tarde como divindades religiosas cujos nomes nunca devem ser citados impressionam mais na ausecircncia do que na realidade

Nossa proacutepria visatildeo nos inclina menos para Leo e mais para Fish por vaacuterias razotildees Em primeiro lugar as hipoacuteteses de Leo sobre a natureza da verdade e do significado satildeo incompatiacuteveis com as hipoacuteteses compartilhadas pela maioria dos membros de nossa proacutepria comunidade O mais importante dessas hipoacuteteses eacute a crenccedila de que o argumento tem poder heuriacutestico realizado pelo diaacutelogo com noacutes mesmos ou com outras pessoas fazendo o que Aristoacuteteles chamou de ldquoprovar opostosrdquo Noacutes natildeo apenas defendemos a verdade e vencemos o erro modificamos as verdades aceitas e descobrimos novas Nessa visatildeo estaacute impliacutecita a crenccedila de que a verdade natildeo pode ser como Leo parece assumir que eacute independente do jul-gamento humano ou da linguagem que usamos para formar esse julgamento Se a verdade eacute absoluta independente de noacutes e incorrigiacutevel por noacutes e se a linguagem eacute

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A construccedilatildeo do argumento

meramente um meio de expressatildeo transparente natildeo o que Burke chama de ldquotela terminoloacutegicardquo que molda o que revela a retoacuterica eacute um negoacutecio trivial merecedor do tipo de indignaccedilatildeo que o primeiro absolutista adepto ao platonismo sentiu pelo primeiro de nossa raccedila os sofistas

Embora a nossa posiccedilatildeo aqui uma posiccedilatildeo consistente se natildeo idecircntica agrave da maioria dos membros de nossa comunidade possa parecer com a posiccedilatildeo que Leo caracteriza como ldquorelativismo moralrdquo natildeo acreditamos que ela seja Dizer que noacutes mesmos ou Fish somos relativistas morais eacute mais uma caricatura do que uma re-presentaccedilatildeo de nossa posiccedilatildeo O fato de aceitarmos a inevitabilidade de posiccedilotildees muacuteltiplas sobre qualquer questatildeo de significado natildeo quer dizer que aceitamos ndash como o aluno desafortunado de Leo que ldquonatildeo gostardquo dos nazistas mas natildeo pode se denunciar ndash a equivalecircncia moral ou cognitiva de todas as posiccedilotildees sobre uma questatildeo Como retoacutericos natildeo podemos pedir a adesatildeo ao ldquoEu estou bemrdquo ldquoVocecirc estaacute OKrdquo quando debatemos relaccedilotildees humanas

De fato se isso prevalecesse os retoacutericos ficariam sem trabalho A retoacuterica e o argumentaccedilatildeo natildeo tecircm lugar em nenhum dos dois mundos que para Leo repre-sentem a soma de todas as possibilidades o mundo da Uma Verdade ou o mundo onde ele imagina habitar onde existem inuacutemeras verdades equivalentes No mundo da Uma Verdade a retoacuterica e a argumentaccedilatildeo podem servir tanto para propagar uma uacutenica feacute verdadeira como para levar as pessoas para longe dessa feacute mas natildeo poderia ter efeito legiacutetimo nas verdades que fundamentam a feacute Em um mundo de muacuteltiplas verdades equivalentes natildeo somente seriacuteamos impotentes para mudar a posiccedilatildeo uns dos outros tambeacutem natildeo haveria nenhuma razatildeo para querer ter boas razotildees para assumir uma posiccedilatildeo e natildeo outra

Nossa posiccedilatildeo portanto natildeo eacute absolutista nem relativista Preferimos consi-deraacute-la como ldquorealistardquo tal como Kenneth Burke usa esse termo Em um mundo re-alista a retoacuterica e a argumentaccedilatildeo satildeo atividades essenciais precisamente porque eacute um mundo que reconhece o papel significativo embora natildeo limitado que a accedilatildeo humana desempenha na soluccedilatildeo dos problemas do mundo e a parte importante

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A construccedilatildeo do argumento

que a linguagem desempenha para permitir ao ser humano atingir seus objetivos Em particular a linguagem tem a capacidade real de ldquofavorecer a cooperaccedilatildeordquo en-tre os seres humanos mesmo se falta o poder maacutegico de ldquoprovocar o movimento nas coisasrdquo (BURKE 1966) Embora Burke (1966) reconheccedila o enorme poder da linguagem para efetuar a mudanccedila seu realismo tambeacutem exige a crenccedila em um mundo independente do poder de formaccedilatildeo da linguagem

Nosso conhecimento desse domiacutenio extra verbal eacute adquirido negativamente atraveacutes do poder das coisas eventos e corpos para resistir a nossas afirmaccedilotildees e reivindicaccedilotildees e frustrar nossos projetos Esse poder de ldquodesobediecircnciardquo no mundo encoraja uma atitude de humildade como a que Burke (1996) encontra no pragmatista William James a quem ele se refere como ldquoum especialista no grau comparativo de adjetivos de valorrdquo James rejeitou o absolutismo (que eacute realmente o superlativo identificando o Um como o Melhor) e preferiu pensar ldquo[] em termos de mais e natildeo de todosrdquo Entre otimismo ou pessimismo ele preferia o ldquomelio-rismordquo (BURKE 1984) Enquanto os absolutistas como Leo agraves vezes permitem que o perfeito se torne o inimigo do bem julgando qualquer coisa menos do que tudo insuficiente e corrupta os realistas procuram melhorar as coisas por grau induzindo a cooperaccedilatildeo entre as pessoas e trabalhando em direccedilatildeo a finalidades coletivamente definidas que satildeo constantemente redefinidas Nesse mundo a re-toacuterica e as artes da persuasatildeo natildeo satildeo ferramentas insignificantes para distrair as massas satildeo ldquoequipamentos para viverrdquo

No mundo que descrevemos a justiccedila e a verdade satildeo termos importantes ainda que pouco presentes em nosso vocabulaacuterio O que as palavras significam para um determinado grupo de pessoas em um dado momento pode natildeo ser exatamen-te o mesmo em outro momento em circunstacircncias diferentes ou para um grupo diferente de pessoas em um mesmo tempo e um mesmo lugar Mas cada grupo em todas as circunstacircncias imagina que estaacute em busca da justiccedila e da verdade Ou como diz Fish de maneira mais marcante ldquoNingueacutem se declara apoacutestolo da injusticcedilardquo mesmo aqueles cujos meacutetodos nos podem parecer hediondos Diferentes

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A construccedilatildeo do argumento

grupos podem usar diferentes meios para chegar a significados diferentes para termos importantes como verdade e justiccedila mas essas diferenccedilas natildeo satildeo mais ldquosubjetivasrdquo do que o significado de Leo para ldquoobjetivordquo Apenas o fracasso de Leo em articular um significado especiacutefico para sua noccedilatildeo de verdade pode preservar sua aura de universalidade

Tanto a comunidade de Leo como a de Fish elaboraram uma definiccedilatildeo do termo consistente com seus proacuteprios princiacutepios Mas ao contraacuterio de Fish Leo e os membros de sua comunidade parecem rejeitar em primeiro lugar o processo que produziu sua versatildeo da verdade Ao chegarem ao reino dos Absolutos eles desfazem o caminho que percorreram e impendem outros de chegar Como o mundo platocircnico das Formas Puras a Verdade de Leo parece existir separada do mundo natildeo afetada pelas interaccedilotildees dos mortais As almas excepcionais podem ocasionalmente perceber uma essecircncia em meio aos acidentes da vida e depois de experimentar essas epifanias podem tentar compartilhaacute-las com os outros mas aleacutem disso os seres humanos natildeo tecircm nenhum papel na construccedilatildeo da verdade A diferenccedila entre as duas posiccedilotildees foi bem capturada pelo filoacutesofo Richard Rorty

Se vemos o conhecimento natildeo como uma essecircncia descrita por cien-tistas ou filoacutesofos mas como um direito segundo os padrotildees atuais de acreditar estamos no caminho para ver a conversaccedilatildeo como o uacuteltimo contexto a partir do qual o conhecimento pode ser entendido Nosso foco se desloca da relaccedilatildeo entre os seres humanos e os objetos de sua inves-tigaccedilatildeo para a relaccedilatildeo entre padrotildees alternativos de justificaccedilatildeo e daiacute para as mudanccedilas reais nesses padrotildees que compotildeem a histoacuteria intelec-tual (RORTY 1979 p 389-90)

Nos termos de Rorty (1979) o debate entre Leo e Fish pode ser enquadrado como um debate entre aqueles que representam o conhecimento como uma descri-ccedilatildeo precisa da essecircncia versus aqueles que o entendem como ldquoum direito segundo

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A construccedilatildeo do argumento

os nossos padrotildees atuais de acreditarrdquo Aqueles que defendem a primeira posiccedilatildeo relegam a retoacuterica e a persuasatildeo a um status decididamente secundaacuterio A desco-berta do conhecimento deve ser deixada para cientistas e filoacutesofos especializados na ldquorelaccedilatildeo entre os seres humanos e os objetos de sua investigaccedilatildeordquo Aqueles que defendem a segunda posiccedilatildeo colocam retoacuterica e persuasatildeo no centro da produccedilatildeo do conhecimento Atraveacutes da ldquoconversaccedilatildeordquo eles elaboram ldquoa relaccedilatildeo entre padrotildees alternativos de justificaccedilatildeordquo Isso eacute o que mais ou menos os retoacutericos tecircm feito haacute mais de dois milecircnios

disCussatildeo de leo e fish parte ii passando da dualidade ao Compromisso

Nesta segunda parte da nossa discussatildeo sobre os artigos de Fish e Leo que-remos voltar nosso foco para a sala de aula e mostrar como professores de que forma poderiacuteamos usar esses artigos para elaborarmos uma definiccedilatildeo provisoacuteria de argumento e aplicar as liccedilotildees do debate ao ensino Do ponto de vista do ensino o que eacute especialmente interessante sobre o argumento de Leo eacute quatildeo perfeitamente sua posiccedilatildeo e o status atribuiacutedo a ela reproduzem a mentalidade de dois grupos problemaacuteticos de estudantes que encontramos frequentemente em nossas aulas A partir do esquema de desenvolvimento cognitivo e moral de William Perry de-nominamos essas duas posiccedilotildees de ldquodualidade e multiplicidaderdquo Essas posiccedilotildees correspondem a dois dos primeiros estaacutegios do esquema de desenvolvimento de Perry (1999) e representam desafios marcadamente diferentes na sala de aula

Um aluno em dualidade supotildee que haacute respostas certas e erradas para cada pergunta e que o trabalho do professor eacute apresentar essas respostas de forma clara e depois testar os alunos para saber se eles lembram a resposta correta Nessa posiccedilatildeo os problemas surgem quando a) desafiamos os alunos a apresen-tarem as suas proacuteprias respostas eou b) os alunos acreditam que estamos dando

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A construccedilatildeo do argumento

respostas conflituosas em relaccedilatildeo as respostas anteriormente dadas por outros professores Se fizermos o nosso trabalho aconteceratildeo as duas coisas o que faraacute que os alunos retornem para suas antigas convicccedilotildees ou arrisquem a colocar suas crenccedilas ndash religiosa poliacutetica ou ideoloacutegica ndash em duacutevida Estudantes em dualidade podem muito bem nos ver como ameaccedilas agrave sua proacutepria identidade assim como sombrios e desconhecidos como os terroristas de Leo em nossas tentativas de desestabilizar sua visatildeo de mundo Eacute importante portanto ter em mente o quatildeo alto as apostas e os grandes riscos podem ser para esses estudantes quando lhes pedimos para ldquoprovar o que estaacute em contradiccedilatildeordquo e verdadeiramente ouvir argumentos opostos

Os alunos que estatildeo na multiplicidade entretanto adotam o laissez-faire vivem e deixam viver as diferenccedilas intelectuais tudo o que Leo atribui aos ldquomulticultu-ralistasrdquo Como os alunos em dualidade os em multiplicidade tambeacutem subvertem o processo dialeacutetico mas por meios diferentes Os em dualidade subvertem o processo dialeacutetico pronunciando Uma Tese Verdadeira e descartando todas as al-ternativas possiacuteveis Os que estatildeo na multiplicidade entretanto proclamam todas as teses alternativas igualmente vaacutelidas e as veem como possibilidades paralelas que nunca se cruzam Em nenhum dos casos uma tese pode engendrar uma antiacute-tese para produzir qualquer tipo de siacutentese Os que estatildeo na multiplicidade estatildeo abertos a novas ideias mas satildeo incapazes de engajar criticamente essas ideias de escolher as que fazem melhor sentido em um dado conjunto de circunstacircncias ou de combinar elementos de vaacuterias ideias para construir uma melhor

Na medida em que a faculdade eacute um lugar onde os estudantes abandonam a dualidade pela multiplicidade ndash embora na verdade poucos parecem entrar na faculdade na dualidade ndash Leo estaacute em parte certo ao afirmar que as faculdades encorajam os alunos a adotar algo como uma ldquoeacutetica difusardquo como visatildeo de mundo Provavelmente em um momento ou outro a maioria dos estudantes universitaacute-rios ndash incluindo alguns de noacutes ndash abraccedilaram um tipo de toleracircncia fraca a ideias diferentes a que Leo ironicamente se refere como ldquorelativismo moralrdquo como uma

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A construccedilatildeo do argumento

alternativa agraves formas mais maleacuteficas de intoleracircncia intelectual produzidas por dualismo Mas ao contraacuterio de Leo a maioria de noacutes vecirc nossa tarefa como estu-dantes em deslocamento das duas etapas para uma de raciociacutenio moral de ordem superior que abrange a complexidade e a contrariedade sem cair na indiferenccedila

Perry (1999) chama esse uacuteltimo estaacutegio de ldquocompromisso no relativismordquo Trata-se de uma posiccedilatildeo natildeo muito diferente da que Fish assume no seu artigo Embora permaneccedila um ideal mais do que uma possibilidade realista para a maio-ria das pessoas eacute uma aspiraccedilatildeo interessante de argumento para os professores levarem para seus alunos Aqueles que alcanccedilam o compromisso no relativismo reconhecem a impossibilidade de uma certeza perfeita equilibrada pela sua neces-sidade de agir sobre o conhecimento imperfeito Eles estatildeo firmemente compro-metidos com seus princiacutepios e conscientes de que nenhum conjunto de princiacutepios eacute infaliacutevel ou incorrigiacutevel O conhecimento eles passaram a entender eacute um processo infinito natildeo uma posse definitiva e o preccedilo que se paga por esse conhecimento eacute a duacutevida e o questionamento

Ao afastarem-se do que eacute absoluto aceitarem a necessidade de escolher a me-lhor entre alternativas imperfeitas e assumirem que a responsabilidade por essas escolhas as faz prosseguir pelo mundo aqueles do compromisso no relativismo satildeo perfeitamente capazes de natildeo apenas condenar posiccedilotildees contraacuterias aos seus proacuteprios princiacutepios mas de se colocarem no lugar de seus adversaacuterios e alcanccedilarem algum niacutevel de identificaccedilatildeo com eles

Eacute claro que natildeo haacute uma maneira clara de atrair os estudantes que estatildeo envol-vidos no relativismo (estaacutegio em que a maioria dos estudantes universitaacuterios de niacutevel baacutesico se encontra de acordo com Perry 1999) para a classe do compromisso no relativismo Poucos alunos se aproximaratildeo desse uacuteltimo estaacutegio ao concluiacuterem a carreira universitaacuteria Mas desde que o objetivo seja claro e nossos meacutetodos de ensino e nossa maneira de interagir com nossos alunos sejam congruentes com esse objetivo temos mais chance de levar aos alunos alguma coisa mais satisfatoacuteria para

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A construccedilatildeo do argumento

eles e para noacutes mesmos3 Se preferimos o argumento de Fish ao de Leo e se nossas preferecircncias estatildeo fundamentadas nos imperativos de nossa disciplina e de nosso modelo pedagoacutegico deveriacuteamos ser livres para compartilhar essa preferecircncia e o motivo de escolhecirc-la com nossos alunos

leo e fish parte iii os elementos do argumento

Um dos primeiros desafios que enfrentamos ao apresentar nossa noccedilatildeo de argumento para os alunos eacute dissipar as suposiccedilotildees erradas sobre o argumento que eles trazem para nossas salas de aula Afinal de contas eles adquiriram suas proacuteprias noccedilotildees de argumento muito antes de comeccedilarem o estudo formal do as-sunto Eles tiveram contato com argumentos em casa e na escola leram sobre isso em livros e jornais viram na televisatildeo escutaram no raacutedio e assistiram nos filmes incontaacuteveis vezes antes de entrarem na sala de aula onde pretendemos ensinar-lhes a escrever Dada a maneira natildeo sistemaacutetica como os alunos adquirem muito cedo o conhecimento sobre o argumento natildeo surpreende que eles possam precisar ser ldquodesatadosrdquo de algumas suposiccedilotildees antes de comeccedilar o ensino

No caso dos ensaios de Leo e Fish a primeira coisa que pode surpreender os alunos eacute o fato de que os dois ensaios natildeo dialogam entre si natildeo estatildeo em condiccedilatildeo de debate de ideias Embora os artigos de Leo e Fish tenham sido publicados no

3 ao usar o quadro de Perry (1999) para essa discussatildeo sobre o desenvolvimento do aluno natildeo queremos dizer que isso implica uma aceitaccedilatildeo sem criacutetica de sua teoria uma seacuterie de criacuteticas incisivas ao esquema de Perry foi feita nos anos setenta e oitenta particularmente por estudiosos feministas (por exemplo Gilligan Belenky e outros) que observaram o forte vieacutes masculino da pesquisa de Perry e sua incapacidade de explicar as diferenccedilas de gecircnero As formas de conhecimento das mulheres devemos reconhecer satildeo de fato diferentes das dos homens particularmente quando se trata de questotildees eacuteticas Dito isso as reaccedilotildees dos estudantes universitaacuterios em especial os estudantes de niacutevel inicial tanto do sexo masculino como feminino aos desafios colocados pelas aulas focadas no argumento parecem semelhantes agraves do esquema de Perry o que nos permite usaacute-las como um suporte para a presente discussatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

mesmo dia 15 de outubro de 2001 tratem do mesmo assunto e chegem a conclu-sotildees completamente diferentes por meio de raciociacutenios tambeacutem completamente diferentes parecem ter sido escritos sem alusatildeo de um ao outro Um artigo natildeo refuta ponto a ponto a ideia do outro e quando se contradizem o fazem pela inter-seccedilatildeo aleatoacuteria de ideias contraacuterias sem intenccedilatildeo de assumir uma postura oposta

Quando afirmamos que os argumentos mais importantes do dia satildeo cons-truiacutedos de maneira semelhante muitos estudantes surpreendentemente natildeo acham estranho As experiecircncias pessoais desses estudantes os levam a entender o argumento segundo um ldquomodelo de debaterdquo em que duas (ou algumas) pessoas inclinadas a ganhar disputam diretamente ideias opostas Alguns se atentam a tais argumentos pelo lado divertido ndash a possibilidade de que eles podem acabar violentamente lhes daacute vantagem ndash ou para apostar em um dos lados da disputa Outros natildeo se engajariam em tais argumentos ndash ou em versotildees falsas de um mesmo programa de TV ou raacutedio ndash para avaliaacute-los com cuidado observar os menos persu-asivos e criar novos a partir do confronto O modelo dominante de argumento natildeo eacute em suma um modelo dialeacutetico pois trata-se de algo semelhante a um jogo cujo resultado eacute zero a zero um esporte em equipe que natildeo possibilita a participaccedilatildeo ativa dos que assistem ou a busca das verdades mais criacuteveis4

Nosso modelo preferido de argumentaccedilatildeo permite a busca por melhores ideias a partir do que Burke chama de ldquobusca de vantagensrdquo Mas como Burke reconhe-cemos que pelo menos algum elemento da busca de vantagens pode ser encontrado em todos os argumentos por mais civilizado que seja o tom natildeo importa o grau de flexibilidade em relaccedilatildeo agrave oposiccedilatildeo de opiniotildees Ningueacutem discute simplesmente

4 No caso do debate entre Fish e Leo parece que estamos nos contradizendo e declarando nossa preferecircncia pelo argumento de fish Mas eacute preciso lembrar que o seu desacordo tem mais natureza de um meta-argumento do que de um argumento regular e como tal a razatildeo de nossa preferecircncia remonta ao fato de que Leo natildeo oferece nenhuma razatildeo para ouvir argumentos opostos enquanto Fish especificamente apela a uma abordagem dialeacutetica para o desacordo como a que estamos apoiando aqui

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para encontrar as melhores ideias Eacute importante no iniacutecio do semestre desacos-tumar os alunos de suas ideias de argumento excessivamente violentas para natildeo exagerar no teor da nossa proacutepria empreitada e assim deixaacute-los mais desiludi-dos O argumento afinal normalmente envolve algum investimento do ego e do coraccedilatildeo bem como da mente e do julgamento A maioria de noacutes assume os riscos do argumento ndash o risco de alienar as pessoas de suscitar a oposiccedilatildeo de perder o ponto e de ter isso apontado nem sempre gentilmente em um ambiente puacuteblico ndash somente se nossas crenccedilas ou interesses mais caros estatildeo em jogo Ateacute mesmo o mais altruiacutesta dos argumentadores deseja se natildeo ganhar um argumento pelo menos ldquoacertarrdquo Perder um argumento ou mesmo ter um argumento colocado em duacutevida pode muito bem exigir que voltemos e reexaminemos as crenccedilas que ancoram nossa identidade

Portanto o argumento eacute arriscado em parte porque estamos buscando vanta-gem para nossos interesses e crenccedilas ou estamos lutando para impedir que outros tirem vantagem em relaccedilatildeo aos seus interesses e crenccedilas No entanto dito isso a maioria de noacutes mesmos ndash ou talvez sobretudo os terroristas ndash acredita verdadei-ramente que a serviccedilo de nossos proacuteprios interesses satildeo mobilizados interesses maiores e que a transmissatildeo de nossas crenccedilas direciona a verdade e justiccedila para os outros Certamente todos noacutes nos encontramos agraves vezes na posiccedilatildeo de apoacutes-tolos de senatildeo da injusticcedila de ideias que satildeo pelo menos as injustas de conjunto ruim No entanto mesmo nessa busca haacute uma certa nobreza e os alunos devem ser lembrados disso no iniacutecio do semestre

O que gerou os argumentos de Fish e Leo foi um evento o 11 de setembro que levou muitos americanos a mudar suas percepccedilotildees e hipoacuteteses sobre o mundo Ateacute 11 de setembro de 2001 haacute seacuteculos nenhum poder estrangeiro conseguiu invadir os Estados Unidos ou matar um nuacutemero significativo de cidadatildeos americanos em solo americano Apoacutes o 11 de setembro nosso senso de invulnerabilidade e do nos-so papel no mundo exigiu um reexame enquanto nossas crenccedilas sobre a atitude do resto do mundo em relaccedilatildeo a noacutes tiveram que ser radicalmente revisadas Em

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suma os acontecimentos do 11 de setembro representam um exemplo claacutessico do que na retoacuterica eacute referido como uma ldquoexigecircnciardquo De acordo com Bitzer (1995 p 304) que cunhou o termo haacute quarenta anos como parte de seu olhar revisionista sobre a situaccedilatildeo retoacuterica ldquoqualquer exigecircncia eacute uma imperfeiccedilatildeo marcada pela urgecircncia Eacute um defeito um obstaacuteculo algo que espera ser feito algo que eacute diferente do que deveria serrdquo Uma exigecircncia natildeo pode ser na linguagem do debate um pro-blema ldquoinerenterdquo um aspecto imutaacutevel da condiccedilatildeo humana digamos que desfia a soluccedilatildeo e natildeo pode ser um problema que possa ser resolvido diretamente por meios extra verbais ldquoUma exigecircncia eacute retoacuterica quando eacute capaz de ser modificada positivamente e quando essa modificaccedilatildeo requer um discurso ou pode ser assistida pelo discursordquo (BITZER 1995 p 304)

O ataque terrorista de 11 de setembro exigia um ldquodiscursordquo de cada um de noacutes quer em nossas respostas em silenciosos soliloacutequios quer em voz alta ou impressas para conhecimento puacuteblico O que noacutes fizemos do ataque Como deve-mos responder como naccedilatildeo e como indiviacuteduos A maioria dos americanos tentou articular seus sentimentos sobre o ataque e encontrar algum modo de formar um julgamento eacutetico sobre ele Muitas vezes olhaacutevamos para especialistas de confian-ccedila como Leo e acadecircmicos como Fish que compartilhavam seus pensamentos na miacutedia em busca de ajudar para encontrar a expressatildeo dos pensamentos que nos iludiram e das ideais que poderiam nos guiar

Tanto Fish quanto Leo compartilham o necessaacuterio senso de urgecircncia sobre o que precisa ser feito em resposta ao problema Para Leo a liccedilatildeo do 11 de setembro eacute a de que chegou o momento de comeccedilar a empurrar a ldquoesquerda multicultural--terapecircuticardquo para longe de seu relativismo superficial e oferecer uma frente unida presumivelmente ldquomonoculturalrdquo em oposiccedilatildeo agrave ameaccedila terrorista Eacute uma linha de pensamento que parece antecipar algumas linhas de pensamento seguidas posteriormente por nossa lideranccedila poliacutetica o mundo mudou em 11 de setembro atraveacutes de um chamado para uma revisatildeo de nossas prioridades poliacuteticas e de nosso sistema de valores (ou um retorno aos nossos valores fundamentais) incluindo o

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sacrifiacutecio de algumas liberdades em troca de uma melhor seguranccedila Nosso inimigo eacute o ldquoterrorismordquo ou alguma variaccedilatildeo dele (ldquofascismo islacircmicordquo ldquomovimento ter-rorista internacionalrdquo ldquoextremistas muccedilulmanosrdquo) que tem natureza monoliacutetica sombria e niilista Em oposiccedilatildeo a esse inimigo noacutes devemos ser intransigentes mesmo sozinhos se outros membros da comunidade internacional natildeo compar-tilham de nossa visatildeo

Da mesma forma o ensaio de Fish parece antecipar muitos dos argumentos apresentados por eventuais criacuteticos da guerra no Iraque depois que o Iraque se tornou de fato um campo de testes para ideias muito parecidas com as apoiadas por Leo O que resultou eacute um exemplo claacutessico do que aconteceu ao longo da histoacuteria quando as ideias absolutistas foram testadas na realidade O modelo monoliacutetico do mal correu contra a natureza heterogecircnea de uma sociedade profundamente dividida Embora os grupos terroristas tenham entrado na briga depois da ocu-paccedilatildeo americana a maior parte da violecircncia apoacutes 2003 foi a sectaacuteria infligida por grupos especiacuteficos cada qual ldquocom uma lista completa de queixas metas e estrateacutegiasrdquo buscando vantagem para seus interesses

Uma das questotildees interessantes levantadas pela noccedilatildeo de exigecircncia eacute o grau em que o ldquodefeitordquo ou o ldquoobstaacuteculordquo estaacute no mundo em relaccedilatildeo ao que eacute percebido Nossa proacutepria leitura ldquorealistardquo dos dois artigos imporia uma exigecircncia nos dois lugares Ou seja os artigos de Fish e Leo satildeo ao mesmo tempo respostas a um acontecimento no mundo independente do poder da linguagem para mudaacute-lo ou invertecirc-lo e continuaccedilotildees da formaccedilatildeo dos dois escritores para a vida a partir dos seus sistemas de crenccedilas Enquanto Leo sugere que o 11 de setembro mudou o mundo (o mundo que ele descreve no rastro do que houve em 11 de setembro eacute um mundo que tem muito em comum com a distopia que ele descreveu por mui-tos anos) e sua receita para lidar com o poacutes 11 de setembro eacute consistente com as propostas de reforma que ele realizou desde os anos de 1960

Da mesma forma a resposta liberal de Fish (embora Fish normalmente esca-pa a roacutetulos como liberalconservador sua posiccedilatildeo sobre essa questatildeo particular

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alinha-se com a posiccedilatildeo que muitos liberais finalmente tomaram sobre a questatildeo) ao problema do 11 de setembro ecoa ideias que ele tem articulado por mais de trinta anos nos domiacutenios da teoria literaacuteria e juriacutedica Sua insistecircncia de que de-vemos atender agraves particularidades das queixas de nossos inimigos para entender suas motivaccedilotildees as quais somos confrontados eacute uma parte da sua insistecircncia de que devemos ficar atentos aos detalhes dos textos para elaborar seu sentido no contexto das intenccedilotildees dos autores Sua afirmaccedilatildeo de que ao justificar nossas res-postas ao 11 de setembro soacute podemos apelar para aquelas verdades contingentes que compartilhamos com outros membros de uma comunidade que compartilha nossas crenccedilas - ldquoo registro de aspiraccedilatildeo e realizaccedilatildeo que compotildee nossa compre-ensatildeo coletiva do que vivemosrdquo - eacute uma parte da sua crenccedila de que as comunidades de leitores elaboram padrotildees de sentido e interpretaccedilatildeo entre si

Nosso interesse em relacionar os argumentos de Leo e Fish sobre o 11 de setembro com a visatildeo de mundo mais ampla deles vai aleacutem de qualquer interesse em rotular corretamente suas posiccedilotildees poliacuteticas Entender a fonte de suas rei-vindicaccedilotildees eacute diriacuteamos fundamental para entender o tom que os dois escritores assumem ao se expressarem Estabelecer cedo uma maneira razoavelmente clara de falar sobre questotildees de tom nas aulas de argumento eacute fundamental em virtude das dificuldades que muitos estudantes enfrentam para encontrar uma tonalida-de apropriada para seus argumentos Parte dessa dificuldade ocorre em funccedilatildeo dos diferentes estaacutegios de desenvolvimento nos quais os estudantes chegam em nossas aulas

Os estudantes inclinados para o dualismo por exemplo podem adotar um tom excessivamente agressivo em seus argumentos (embora poucos dualistas com-pletos apareccedilam no primeiro dia em nossas aulas eacute uma posiccedilatildeo da qual alguns estudantes particularmente os de primeiro ano se retiram quando se sentem ameaccedilados intelectualmente) Eacute importante lembrar que muita coisa estaacute em jogo para um dualista quando precisa justificar ideias que ele julga injustificaacuteveis Um sintoma dessa ansiedade seraacute uma certeza com tom agressivo mas sem convicccedilatildeo

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As posiccedilotildees independente do grau seratildeo pouco defendidas pouco qualificadas e sem convicccedilatildeo absoluta Os julgamentos categoacutericos controversos particularmente os julgamentos morais seratildeo respondidos como se fossem ordens Os argumentos opostos seratildeo descartados mesmo que pareccedilam fortes para uma terceira pessoa Qualquer leitor que natildeo esteja totalmente de acordo com o autor de um argumento pode se sentir mais intimidado do que persuadido

Os estudantes que estatildeo no estaacutegio da multiplicidade entretanto tambeacutem tendem a ver suas posiccedilotildees e julgamentos como evidentes natildeo porque eles satildeo a Uacutenica Verdade mas porque todo mundo acreditar em tudo o que quer O tom ado-tado pelos estudantes em multiplicidade seraacute consideravelmente menos belicoso do que o dos seus pares em dualismo Eles natildeo satildeo ameaccedilados pelo desacordo afinal as pessoas inevitavelmente veem as coisas de forma diferente Um argu-mento para eles eacute apenas uma maneira de deixar as pessoas saber ldquode onde elas vecircmrdquo Na verdade muitas vezes eacute difiacutecil discordar de suas posiccedilotildees Quanto mais abstrata a posiccedilatildeo que assumem no final das contas mais difiacutecil eacute contestar sua premissa baacutesica a de que natildeo haacute necessidade real de diferenciar posiccedilotildees Se o dualista tende para um tom excessivamente belicoso o adepto da multiplicidade tende para um tom excessivamente brando

Para ajudar os alunos a reconhecer as origens intelectuais do tom e as limi-taccedilotildees que enfrentam se eles satildeo incapazes de moderar o tom eacute uacutetil analisar as questotildees de tom em artigos como os de Fishs e Leo Como esses escritores satildeo consideravelmente mais sofisticados do que a maioria dos escritores aprendizes suas diferenccedilas de tom embora significativas satildeo menos riacutegidas do que as que vemos em nossas aulas O tom de Fish pode ser atribuiacutedo agrave sua crenccedila de que a verdade deve ser redescoberta e renegociada agrave medida que os textos mudam e a de que a verdade natildeo consiste em uma correspondecircncia entre seu vocabulaacuterio e o estado de coisas do mundo mas da justificativa mais persuasiva entre as versotildees concorrentes de verdade O tom de Leo por sua vez deriva de sua crenccedila de que existe uma verdade universal que natildeo eacute alterada pelas circunstacircncias Aqueles que

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pensam em linha reta como Leo possuem a verdade e o bem absolutos Os que pensam como os bispos obscurecem nossa visatildeo de verdade e de bem e permitem que o erro e o mal penetrem no mundo

Correndo o risco de exagerar nessas diferenccedilas descreveriacuteamos o tom de Fish como o mais proacuteximo do de um mentor ou guia algueacutem preocupado simultanea-mente em esclarecer duacutevidas e complicar a compreensatildeo de seus leitores sobre as coisas Trata-se de uma relaccedilatildeo assimeacutetrica para ser mais preciso Fish eacute o pro-fessor e noacutes somos seus alunos mas agrave medida que ele parece acreditar que somos capazes de seguir uma linha complexa de raciociacutenio ele natildeo eacute condescendente O tom de Leo ao contraacuterio parece mais com o de um avaliador ou julgador raacutepido e criacutetico Sua preocupaccedilatildeo eacute esclarecer questotildees simplificando-as a fim de facilitar um julgamento moral soacutelido

O tom de Leo se estabelece no iniacutecio de sua primeira frase ao usar a expressatildeo ldquovergonhosardquo antes mesmo de nos informar sobre a declaraccedilatildeo dos bispos Depois apoacutes retomar dois trechos da declaraccedilatildeo ele diz aos seus leitores o que os bispos dizem ldquode forma clarardquo antes de concluir que eacute ldquoum engano moralrdquo A clareza moral e linguiacutestica satildeo uma peccedila importante para Leo Ele se preocupa pouco portanto com aqueles que se interessam pelas ldquocausas-raizrdquo e pela compreensatildeo dos atos ldquono contextordquo Para fixar a histoacuteria ele oferece uma traduccedilatildeo ldquode forma clarardquo dessa conversa moral e linguisticamente absurda Os bispos realmente querem dizer que ldquoa impiedosa e imperialista Ameacuterica trouxe os ataques contra si mesmardquo Ao longo de sua criacutetica Leo oferece pouca evidecircncia para suas generalizaccedilotildees e poucos detalhes para ajudar seu puacuteblico a identificar os multiculturalistas os relativistas morais e os cidadatildeos de cultura terapecircutica

A citaccedilatildeo de ldquoum estudante de Nova Yorkrdquo eacute a uacutenica que apoia uma ampla generalizaccedilatildeo sobre as praacuteticas educacionais lastimaacuteveis da educaccedilatildeo superior americana enquanto a declaraccedilatildeo dos bispos eacute apresentada como ldquoum pequeno exemplo do que poderia ser um grande problemardquo a incapacidade dos liacutederes mo-rais ldquopara dizer claramente que o mal existerdquo

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Se a opiniatildeo de Leo sobre a declaraccedilatildeo dos bispos eacute na verdade acurada e justa o tom de seu artigo pode ser atribuiacutedo mais agrave indignaccedilatildeo moral legiacutetima do que aos costumes concernentes ao seu sistema de crenccedilas No entanto mesmo um simpatizante do ponto de vista de Leo teria problemas para alinhar o resumo da declaraccedilatildeo dos bispos com o texto integral dessa declaraccedilatildeo Comeccedila-se de fato anunciando que ldquo[] uma nova solidariedade com aqueles de outras partes do mundo para quem as forccedilas malignas do terrorismo satildeo um medo e uma realidade contiacutenuosrdquo (bispos) Para ter certeza de que Leo e os bispos natildeo parecem definir o mal da mesma maneira os bispos natildeo parecem satisfeitos em deixar o epiacuteteto ldquomalrdquo servir de explicaccedilatildeo completa para a motivaccedilatildeo do ato dos terroristas No entanto eles dizem que ldquoclaramente o mal existerdquo e que atos terroristas como o de 11 de setembro satildeo qualificados como atos malignos

Nossa preocupaccedilatildeo aqui natildeo eacute desconsiderar a criacutetica que Leo faz aos bispos Nossa preocupaccedilatildeo eacute enfatizar ateacute que ponto o tom do artigo de Leo natildeo deriva de uma consciecircncia ldquoobjetivardquo de um mundo independente de suas percepccedilotildees mas do sistema de crenccedilas atraveacutes do qual ele percebe esse mundo Enquanto Leo sem duacutevida consideraria essa controveacutersia excessiva uma bobagem relativa Fish natildeo As diferenccedilas de tom entre os dois escritores diriacuteamos natildeo eacute uma consequecircncia do fato de um ser menos objetivo do que o outro mas de um ser mais conscien-te do que o outro de que a objetividade total eacute atrativa e enganosa Em lugar da verdade absoluta e da objetividade Fish abraccedila alguma coisa da ordem da inter-subjetividade Em sua opiniatildeo estamos unidos por ldquovalores particulares vividosrdquo e compartilhamos ldquoo registro de aspiraccedilatildeo e realizaccedilatildeo que compotildee nosso enten-dimento coletivo do que vivemosrdquo A visatildeo pragmaacutetica de Fish da verdade como faliacutevel e particular reflete-se em seu tom que rivaliza com o dinamismo de Leo mas eacute menos julgador e mais cauteloso quanto agrave nomeaccedilatildeo das coisas No cerne de seu artigo de fato reside sua rejeiccedilatildeo da rotulagem redutora sua preocupaccedilatildeo em complicar as versotildees do poacutes-modernismo do relativismo e do terrorismo En-quanto Fish diz que ele encontra a pergunta do repoacuterter sobre ldquoo fim do relativismo

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poacutes-modernordquo que comeccedila seu artigo ldquobizarrordquo ele passa a oferecer uma resposta cuidadosa atribuindo a interpretaccedilatildeo errocircnea que o repoacuterter faz do termo natildeo a algum lapso moral mas como ldquouma forma rarefeita de conversa acadecircmicardquo com a qual o repoacuterter natildeo eacute normalmente acostumado

Ao expressar nossa preferecircncia pelo estilo de Fish estamos evidentemente reafirmando nossa simpatia pela sua visatildeo de mundo Essa preferecircncia no entanto natildeo eacute simplesmente ldquosubjetivardquo no mesmo sentido que algueacutem como Leo usaria esse termo Nossa simpatia com o ponto de vista de Fish e seu modo de expressatildeo eacute profissional e pessoal As ideias que ele expressa e a forma como expressa estatildeo mais em harmonia com nossos propoacutesitos disciplinares do que as de Leo Os pen-samentos e o tom de Fish satildeo em nossa opiniatildeo mais propensos a oferecer uma melhor abordagem sobre o assunto em questatildeo do que os pensamentos e o tom de Leo A hipoacutetese de um argumento valer mais que o outro no mercado de ideias eacute outra questatildeo Esses julgamentos satildeo mais difiacuteceis de fazer e mais especiacuteficos para o puacuteblico do que o julgamento dos efeitos dos argumentos sobre a compre-ensatildeo da questatildeo Para entender melhor essa relaccedilatildeo complexa muitas vezes mal compreendida entre os argumentos preferidos em um dia pelo puacuteblico e os que levam o puacuteblico a reexaminar os problemas passamos agora a considerar um continuum de praacuteticas de argumento e a medida usada para organizaacute-los ao longo desse continuum

argumento e ldquoa purifiCaccedilatildeo da guerrardquo

O subtiacutetulo para esta seccedilatildeo foi tirado da epiacutegrafe latina da A Grammar of Motives (Uma Gramaacutetica dos Motivos) de Burke (1966) ndash Ad bellum purificandum Trata-se ao mesmo tempo de um sentimento muito modesto ndash afinal muito cedo viu-se a guerra acabar completamente ndash e um muito ambicioso ndash agrave medida que a guerra cresceu exponencialmente de forma mais selvagem no novo seacuteculo desejamos o que pudesse atenuar seus terriacuteveis efeitos Eacute tambeacutem uma epiacutegrafe que poderia servir

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para introduzir a obra inteira de Burke pois capta claramente o objetivo primaacuterio da retoacuterica como ele imagina a transformaccedilatildeo de impulsos destrutivos em atos criativos e cooperativos da inimizade em identificaccedilatildeo da guerra em argumento

Como observamos anteriormente Burke eacute bastante realista para sustentar que essa transformaccedilatildeo nunca poderaacute ser completa em todos os argumentos permaneceraacute um elemento residual de agressatildeo e busca de vantagens por mais nobre que seja a causa em nome da qual o argumento eacute feito No entanto Burke eacute tambeacutem muito idealista para acreditar que outros interesses de quem argumenta satildeo sempre servidos pelo argumento O uacutenico caso em que as necessidades e cren-ccedilas de um puacuteblico podem ser ignoradas eacute o do argumentador que se convence de que sua cooperaccedilatildeo seraacute garantida pela forccedila se o seu argumento falhar e passa a argumentar praticamente pelas mesmas razotildees pelas quais os ditadores realizam eleiccedilotildees Joseph Heller capta perfeitamente o espiacuterito do ldquopoder da forccedilardquo disfar-ccedilado de argumento uma praacutetica hegemocircnica muito familiar para o puacuteblico do seacuteculo XXI em um diaacutelogo do romance Catch-22 O diaacutelogo apresenta a conversa entre o protagonista do romance Yossarian com seu inimigo Milo Minderbinder sobre o fato de Milo ter oferecido a um ladratildeo italiano algumas tacircmaras em troca de um lenccedilol e depois ter se recusado a entregar as tacircmaras quando o ladratildeo lhe deu o lenccedilol

ldquoPor que vocecirc natildeo bateu na cabeccedila dele e tomou o lenccedilolrdquo Yossarian per-guntouPressionando os laacutebios com dignidade Milo balanccedilou a cabeccedila ldquoIsso te-ria sido muito injustordquo Repreendeu com firmeza ldquoUsar a forccedila eacute errado e dois erros nunca formam um acerto Foi muito melhor a maneira como eu agi Quando eu segurei as tacircmaras para ele e peguei o lenccedilol ele pro-vavelmente pensou que eu queria negociarrdquoldquoO que vocecirc estava fazendordquoldquoNa verdade eu estava negociando mas como ele natildeo entende inglecircs eu posso negar semprerdquo

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ldquoSupomos que ele estaacute bravo e quer as tacircmarasrdquo ldquoPor que vamos bater na cabeccedila dele e tomar as tacircmarasrdquo Milo respon-deu sem hesitar (HELLER 1961 p 68)

Esse eacute entatildeo o argumento que aparece na extremidade esquerda do continuum onde a forccedila aparece de forma ameaccediladora por traacutes de cada artimanha persuasiva Quais os tipos de praacuteticas argumentativas se encontram no final desse continuum A propaganda e a publicidade vecircm imediatamente agrave mente Os argumentos dos pais que terminam com aquela frase honrosa que anuncia simultaneamente a vitoacuteria e admite a derrota (Porque eu disse) certamente caem em qualquer lugar do lado esquerdo das coisas Entatildeo agrave medida que se avanccedila para a direita em direccedilatildeo a formas mais ldquopurificadasrdquo de combate encontra-se a praacutetica do direito da nego-ciaccedilatildeo do trabalho e da educaccedilatildeo Por fim na posiccedilatildeo mais distante da forccedila haacute as mais puras praacuteticas persuasivas que parecem natildeo ser persuasivas O exemplo que Burke usa eacute a escrita de um livro Vamos examinar mais de perto as caracteriacutesticas dessas diferentes praacuteticas mas antes disso precisamos articular o princiacutepio usado para distinguir entre essas vaacuterias formas de persuasatildeo um princiacutepio a que Burke se refere de vaacuterias maneiras ldquointerferecircnciardquo ou ldquoautointerferecircnciardquo

Para entender esse princiacutepio eacute uacutetil ter em mente uma das metaacuteforas favoritas de Burke para a persuasatildeo responsaacutevel a praacutetica do namoro que eacute em si uma versatildeo ldquopurificadardquo de praacuteticas consideravelmente menos aparentes Se o namoro reina no extremo direito do continuum espera-se encontrar o equivalente persuasivo a algo como asseacutedio sexual na extremidade esquerda O asseacutedio sexual eacute uma relaccedilatildeo predatoacuteria baseada na assimetria atraveacutes da qual uma das partes usa seu poder sobre o outro para coagir o afeto No entremeio as artes da seduccedilatildeo entram em jogo como o sedutor finge ser o que sua presa deseja que ele seja e diz a ela o que quer ouvir a fim de alcanccedilar sua proacutepria gratificaccedilatildeo No lado direito do continuum entretanto haacute um casal de namorados com uma relaccedilatildeo respeitosa baseada na mutualidade que inevitavelmente inclui o sexo e muitos outros desejos Com cer-

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teza cada pessoa em um namoro faraacute o que puder para se tornar desejaacutevel para a outra para persuadi-la como base na sua melhor caracteriacutestica como parceiro Certamente a atraccedilatildeo sexual desempenharaacute um papel na relaccedilatildeo mas cada um estaacute disposto no momento a adiar sua satisfaccedilatildeo em nome do aumento do seu senso de identificaccedilatildeo com a outra pessoa superando os distanciamentos de classe gecircnero nacionalidade religiatildeo ou qualquer categoria que possamos usar para classificar a raccedila humana Enquanto que nos casos anteriores as relaccedilotildees satildeo apenas um meio para a satisfaccedilatildeo sexual de um dos parceiros ndash na formulaccedilatildeo de Martin Buber uma claacutessica relaccedilatildeo ldquoEu-Issordquo (BURBER 2001) ndash no namoro a relaccedilatildeo eacute um fim em si (ldquoEu-Turdquo) para ambos os parceiros Se algueacutem estender a metaacutefora do namoro para aleacutem da extremidade esquerda do continuum encontrar-se-ia no escuro reino do estupro e da agressatildeo sexual No extremo direito do continuum encontrar-se-ia no reino luminoso do celibato quando uma freira se declara noiva de Cristo Todas as praacuteticas que encaixam ao longo do continuum entretanto satildeo uma combinaccedilatildeo de interesse proacuteprio e desejo fiacutesico e uma vontade de interferir nos impulsos naturais de uma pessoa para outros fins

Voltando agora agraves praacuteticas reais de persuasatildeo que se inscrevem no continuum da autointerferecircncia comeccedilamos pela propaganda e pela publicidade Essas praacuteticas satildeo diz Burke muito ldquoendereccediladasrdquo jaacute que satildeo obsessivamente focadas no puacuteblico Trata-se de uma relaccedilatildeo assimeacutetrica com o anunciante ou publicitaacuterio que tem pelo menos algum controle no caso de alguns publicitaacuterios um monopoacutelio virtual sobre o acesso do puacuteblico agrave informaccedilatildeo e agrave compreensatildeo Embora os anunciantes e os pu-blicitaacuterios sejam raacutepidos no elogio ao seu puacuteblico especialmente agrave sua inteligecircncia seus conselhos sobre como conquistar o puacuteblico demonstram pouca importacircncia agrave inteligecircncia das pessoas Eles gastam muito tempo e quantidades extraordinaacuterias de dinheiro para explorar a psique e os pontos fracos emocionais de seu puacuteblico Nenhum outro grupo entre aqueles que praticam a arte da persuasatildeo se preocupa em gastar tanto tempo para descobrir maneiras de explorar a vulnerabilidade do puacutebico como os anunciantes e os publicitaacuterios O livro Mein Kampf (Minha Luta) de

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Hitler por exemplo eacute um claacutessico da teoria da propaganda e uma anaacutelise completa da psicologia do puacuteblico Observando a habilidade de Hitler na manipulaccedilatildeo de seu puacuteblico Burke chama a atenccedilatildeo para a maneira muito calculada como ldquoele mede resistecircncias e oportunidades com a lsquoracionalidadersquo de um profissional qualificado que planeja uma nova campanha de vendas A poliacutetica diz ele deve ser vendida como sabatildeo ndash e o sabatildeo natildeo eacute vendido em transerdquo (BURKE 1941 p 216) Os publi-citaacuterios contemporacircneos durante esse tempo satildeo implacaacuteveis quando buscam as conexotildees entre informaccedilatildeo demograacutefica e psicograacutefica (haacute sessenta e quatro grupos distintos de consumidores dispostos em uma grade psicograacutefica usada por anunciantes) e haacutebitos de compra do consumidor

Enquanto os estilos antigos de teorias comportamentais estatildeo fora de moda entre a maioria dos psicoacutelogos acadecircmicos nos dias de hoje os anunciantes e pu-blicitaacuterios ainda trabalham com a manipulaccedilatildeo de estiacutemulos para obter a resposta desejada Como engenheiros que ainda se baseiam no antigo paradigma newtoniano para construir pontes e arranha-ceacuteus os publicitaacuterios e os behavioristas parecem achar que o paradigma mecanicista ultrapassado funciona muito bem quando se trata de vender sabatildeo e poliacutetica

Embora toda a propaganda seja por definiccedilatildeo predatoacuteria como sugerimos anteriormente vamos considerar mais adiante os usos recentes da propaganda que abrange uma gama mais ampla de praacuteticas algumas das quais satildeo bastante benignas A publicidade por exemplo eacute usada para promover as contribuiccedilotildees tanto de obras de caridade como as utilidades de uma marca de sabatildeo De fato dentro de cada categoria de praacuteticas persuasivas encontrar-se uma seacuterie de praacuteticas que em vaacuterios graus satildeo uacuteteis por um lado ou ldquonegativasrdquo por outro

Alguns anuacutencios podem fazer pouco mais do que apresentar referecircncias po-sitivas sobre seu produto para pessoas desinteressadas Agraves vezes a propaganda pode servir a um objetivo de poliacutetica puacuteblica altruiacutesta e em vez de contar ldquoa Grande Mentirardquo como Goebbels (o Ministro da Propaganda na Alemanha Nazista entre 1933 e 1945) recomenda pode simplesmente reter informaccedilotildees que complicariam

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A construccedilatildeo do argumento

seu argumento No entanto tomadas como um todo essas praacuteticas natildeo promovem a auto interferecircncia de forma grave apenas na medida em que algueacutem altera o seu proacuteprio roteiro em reconhecimento de que um roteiro diferente favorece mais a aceitaccedilatildeo do seu puacuteblico e interfere nas proacuteprias vontades Mas isso eacute mais uma questatildeo de subordinar uma forma de satisfaccedilatildeo agrave outra No final seu puacuteblico eacute sempre um meio para atingir seus fins

Agrave medida que se avanccedila para o centro do continuum as praacuteticas juriacutedicas persuasivas servem como modelo Embora muitos colocariam a arte dos juristas mais agrave esquerda em nosso continuum o argumento legal eacute consideravelmente mais limitado em sua capacidade de seduzir ou enganar seu puacuteblico do que a propaganda e o anuacutencio Haacute aliaacutes consideravelmente mais paridade entre argumento e puacuteblico na arena legal do que na arena da poliacutetica e do consumo A retenccedilatildeo de informaccedilotildees por exemplo que pode ser bem vista como elemento de uma campanha virtuosa para mudar o rumo das coisas no domiacutenio da poliacutetica e da publicidade pode ser uma infraccedilatildeo puniacutevel no acircmbito da lei Devido ao caraacuteter contraditoacuterio do sistema juriacutedico os lapsos de seus argumentos satildeo vulneraacuteveis agrave divulgaccedilatildeo e agrave exploraccedilatildeo (nosso sistema poliacutetico eacute nominalmente contraditoacuterio mas haacute poucas regras para controlar o discurso poliacutetico e a toleracircncia puacuteblica para o raciociacutenio falacioso e ateacute mesmo para a hipocrisia quase serve para encorajar a interferecircncia entre poliacuteticos) A lei oferece todo tipo de restriccedilotildees formais para os advogados que manipulam seu puacuteblico Os advogados mais atentos podem usar informaccedilotildees demograacuteficas e psicograacuteficas para defender seu ponto de vista quando conhecem os criteacuterios de escolha dos jurados Apesar de todas as suas falhas o raciociacutenio juriacutedico impotildee vaacuterias formas de ingerecircncia aos participantes ao logo de todo o sistema de julga-mento ateacute o topo em que os juiacutezes da Suprema Corte esperam escrever opiniotildees para a posteridade

Burke usa a curiosa metaacutefora da escrita de um livro para explicar a forma ldquomais purardquo de persuasatildeo o equivalente a um grande namoro Aqui o princiacutepio da auto-interferecircncia natildeo eacute imposto por preocupaccedilotildees com o puacuteblico nem por

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regras convenccedilotildees e receios de puniccedilatildeo ou exposiccedilatildeo A restriccedilatildeo exigida da pura persuasatildeo eacute inteiramente auto imposta A auto interferecircncia de um autor responde agraves exigecircncias do livro que estaacute criando ldquo[] as exigecircncias satildeo condicionadas pelas partes jaacute escritas de modo que o livro se torna de certa forma algo natildeo previsto pelo autor e exige que ele interfira nas suas intenccedilotildees originaisrdquo (BURKE 1969 p 269) Essa interferecircncia natildeo eacute mais esteacutetica do que eacutetica e a pureza da persuasatildeo pura eacute mais a pureza formal da ldquoarte por causa da arterdquo do que a pureza moral da santidade

Dito isso Burke (1969 p 271) atribui agrave pura persuasatildeo ldquoum alto valor eacuteticordquo na medida em que impotildee uma ordem diferente de obrigaccedilotildees agravequeles que a ex-perimentam algo como ldquoverdade pelo amor agrave verdaderdquo As formas mais puras de argumentaccedilatildeo satildeo de natureza dialeacutetica uma abordagem de ideias com um mo-vimento e uma integridade proacuteprios que natildeo leva em conta as necessidades e os desejos de um puacuteblico Assim como a arte pela arte que produz arte frequentemen-te arte de forma a tocar o puacuteblico sem criar expectativas de reaccedilatildeo o argumento da extrema direita do continuum pode ter pouco sucesso escasso no mercado No entanto como as melhores obras que surgem do movimento da arte pela arte os argumentos puramente persuasivos podem eventualmente ter uma aceitaccedilatildeo tar-dia pelo puacuteblico em parte porque eles mudam a forma como as pessoas pensam sobre um dado assunto

No fim claro a persuasatildeo pura desse tipo natildeo eacute uma meta para os estudantes de mas eacute uma tendecircncia dentro do argumento um contrapeso agraves tendecircncias opos-tas para um foco exclusivo ndash e muitas vezes predatoacuterio ndash no puacuteblico Ao apresentar os alunos o conceito de persuasatildeo pura eacute bom lembrar um sentido alternativo para o termo argumento ndash o ldquocernerdquo ou a ldquoessecircnciardquo de uma parte de um grande discurso Procurar o cerne de qualquer que seja o discurso eacute um haacutebito comum a todos os leitores criacuteticos Quanto mais complexo eacute o discurso que estamos lendo mais provaacutevel seraacute a identificaccedilatildeo de argumentos opostos menos encontraremos uma tese inequiacutevoca ou uma afirmaccedilatildeo principal na uacuteltima frase do primeiro pa-

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raacutegrafo ndash onde muitos de nossos alunos foram ensinados a procurar ndash A essecircncia eacute uma siacutentese de ideias diacutespares e um produto comum aos poderes interpretativos do leitorouvinte e agraves propriedades do discurso que eacute interpretado Natildeo eacute o que resta quando uma ideia supera a outra um trofeacuteu ou os louros para o vencedor eacute um ato criativo uma versatildeo retoacuterica da essecircncia no sentido ontoloacutegico No final das contas ensinamos argumento para isto para estimular o pensamento dos nossos alunos sobre o mundo para ajudaacute-los a aprender a compreender o julga-mento (para cultivar a arte do debate) de suas proacuteprias ideias bem como das dos outros para testaacute-lo de forma suficiente no rebate de ideias opostas e respeitar o resultado dessa combinaccedilatildeo

por Que os alunos preCisam argumentar

Ateacute aqui apresentamos uma definiccedilatildeo de argumento congruente com nossos propoacutesitos disciplinares e crenccedilas pessoais Nesta proacutexima seccedilatildeo mudamos nosso foco para as habilidades que podem ser esperadas dos alunos que fazem um curso baseado no argumento Qual o papel do estudo do argumento no curriacuteculo e na vida dos alunos Agrave medida que projetamos nossos cursos e nossos objetivos precisamos ter em mente esse papel e moldar nossa pedagogia em torno dele A seguir vamos nos concentrar em trecircs funccedilotildees particularmente importantes do argumento um meio de ensinar mais facilmente o conjunto de competecircncias que se pode aprender em um curso de escrita um meio de construccedilatildeo e defesa da identidade e um meio para o desenvolvimento do raciociacutenio eacutetico

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argumento e letramento CrIacutetiCo

Embora natildeo haja um uacutenico nome para o grupo altamente heterogecircneo de habi-lidades que os alunos podem aprender em um curso de escrita focado no argumento vamos nos referir a esse conjunto aqui como ldquoletramento criacuteticordquo um conceito que apresenta diferentes contornos e como veremos em breve eacute um pouco contro-verso Tentaremos precisar uma definiccedilatildeo proacutexima da forma como vamos usar e que minimize alguns de seus aspectos mais controversos Ao definir o letramento criacutetico conveacutem dizer que sabemos mais sobre o que natildeo eacute do que sobre o que eacute Certamente natildeo eacute o que era feito com a escrita na escola tradicional a ecircnfase em formas preacute-fabricadas e em leitores passivos O curriacuteculo tradicional natildeo soacute natildeo encorajava os alunos a pensar ldquofora da caixardquo como tambeacutem os encorajava a pensar em tudo como robocircs ateacute mesmo no que diz respeito agrave escrita que eacute um fenocircmeno inerentemente complexo e singular Seu objetivo aparente era o letramento no sentido mais antigo de competecircncia miacutenima embora fosse sendo ampliada ateacute a faculdade Natildeo encorajava o engajamento ou a reflexatildeo pessoal Certamente natildeo oferecia aos alunos muitas habilidades de compreensatildeo que pudessem ser usa-das fora da escola Poucos cursos de Filosofia na universidade exigem a escrita de narraccedilatildeo assim como cursos de Sociologia enfatizavam a funccedilatildeo da descriccedilatildeo (alguns outros cursos aboliram as aulas de escrita do primeiro ano exatamente porque acreditam que o modelo tradicional de escrita ou alguma variante dele eacute o modelo usado na vida profissional Se algueacutem acredita na existecircncia desse modelo estaacute certo)

Talvez a principal caracteriacutestica distinta do letramento criacutetico tal como o compreendemos e a que mais claramente o diferencia de sua versatildeo mais antiga e minimalista eacute sua ecircnfase no conhecimento reflexivo a capacidade que o poeta criacutetico e ensaiacutesta inglecircs Samuel Taylor Coleridge chama de ldquoconhecer seu conheci-mentordquo em relaccedilatildeo ao simplesmente possuir o conhecimento Isso significa dizer que em vez de focalizar as exigecircncias para a escrita de um bom artigo eacute preferiacutevel

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considerar as dificuldades enfrentados pelos alunos para construir um bom ar-gumento Eles devem ser capazes de imaginar os contra-argumentos antecipar a resposta do puacuteblico em particular o ceticismo e o desconhecimento e mover-se habilmente entre as pretensotildees de verdade as razotildees que justificam as alegaccedilotildees e as evidecircncias que apoiam as razotildees

Os alunos devem avaliar a adequaccedilatildeo da defesa agrave sua reivindicaccedilatildeo e analisar seu grau de conformidade Eles devem aprender a avaliar os elementos das provas resumir e questionar a autoridade a partir de pontos de vista diferentes Talvez o mais importante eacute preparar os alunos para arriscar suas crenccedilas e suposiccedilotildees sobre o mundo Natildeo eacute possiacutevel na arena do argumento simplesmente ldquoconectar [em uma foacutermula] e arriscar [uma resposta]rdquo Os alunos precisam entender as questotildees no contexto de uma conversa aceitando desde cedo que como Stanley Fish sugere nem todas as partes dessa conversa compartilharatildeo as mesmas crenccedilas e hipoacuteteses

No intuito de esclarecer ainda mais o conceito de letramento criacutetico pode ser uacutetil comparaacute-lo com outra abordagem de ensino de escrita que sucede ao modelo tradicional O movimento de reflexatildeo criacutetica na escrita foi proposto por Hayes e Flower (1980) Os autores mostram como os meacutetodos de resoluccedilatildeo de problemas podem ser aplicados na sala de aula para o ensino de escrita Eles estatildeo entre os primeiros no campo dos estudos sobre a escrita que tratam de forma plenamen-te desenvolvida a escrita como um ldquomodo de pensarrdquo e veem que a aquisiccedilatildeo da escrita implica um raciociacutenio de ordem superior Poreacutem enquanto o movimento de reflexatildeo criacutetica foi uacutetil para ajudar a disciplina a superar as abordagens tradi-cionais natildeo possibilitou uma reflexatildeo sobre a capacidade de compreensatildeo como o letramento criacutetico se propotildee a fazer Aleacutem disso as habilidades de resoluccedilatildeo de problemas focalizadas eram ensinadas sem um juiacutezo de valor como um conjunto de habilidades natildeo muito diferentes das que satildeo necessaacuterias para resolver um quebra-cabeccedila Isso limitou sua aplicabilidade ao ensino do argumento um gecirc-nero que muitas vezes nos leva longe em problemas que satildeo carregados de valor e emoccedilatildeo

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Uma das maneiras mais faacuteceis de distinguir a abordagem da reflexatildeo criacutetica de ensino de escrita da abordagem do letramento criacutetico eacute focar na noccedilatildeo de re-soluccedilatildeo de problemas Dito de maneira simples os proponentes da reflexatildeo criacutetica se concentram na maneira de resolver problemas enquanto os proponentes do letramento criacutetico se concentram na maneira de descobrir problemas Uma das figuras mais importantes ligadas ao letramento criacutetico nos anos 80 o filoacutesofo brasileiro Paulo Freire cunhou o termo ldquoproblematizaccedilatildeordquo para descrever o que ele pretendia fazer com seu programa educacional na Ameacuterica do Sul

O trabalho de Freire com as populaccedilotildees do campo provou ser tatildeo polecircmico que o governo resolveu interditaacute-lo No processo de alfabetizaccedilatildeo baacutesica Freire ensinava a poliacutetica revolucionaacuteria fazendo que o pensamento ldquomiacuteticordquo da preacute--alfabetizaccedilatildeo desse lugar ao letramento criacutetico O poder de nomear situaccedilotildees que os camponeses de Freire cedo descobriram conteacutem as sementes para desafiar e redefinir essas situaccedilotildees Em um niacutevel as experiecircncias pedagoacutegicas de Freire confirmaram uma das ideias mais importantes de Kenneth Burke os proveacuterbios que constituem uma espeacutecie de enunciado com poucas palavras para nomear situaccedilotildees recorrentes constituem ldquoestrateacutegias para lidar com essas situaccedilotildeesrdquo (BURKE 1941 p 296) Para Burke e Freire as palavras nunca satildeo neutras Antes de dizer qualquer coisa devemos primeiro dimensionaacute-la ldquodiscernir o geral que estaacute atraacutes do particularrdquo (BURKE 1941 p 301) e a palavra que escolhermos por sua vez implica uma atitude em relaccedilatildeo a ela Na medida em que uma atitude eacute um ato incipiente a linguagem e a poliacutetica estatildeo indissoluvelmente ligadas

Os educadores tecircm relutado em abraccedilar a dimensatildeo poliacutetica do letramento criacutetico por razotildees oacutebvias Conforme testemunhou a antipatia de John Leo pelas simpaacuteticas poliacuteticas ldquoterapecircuticasrdquo ldquomulticulturalistasrdquo da faculdade jaacute existe um grande receio sobre a possibilidade de as escolas serem doutrinadoras em vez de educar os alunos O fato de o letramento criacutetico pertencer a uma antiga tradiccedilatildeo de educaccedilatildeo que defende que ldquoa vida sem consciecircncia natildeo vale a pena ser vividardquo e que encoraja as virtudes natildeo partidaacuterias como autorreflexatildeo e autoquestionamento

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natildeo desencorajou criacuteticos conservadores de denunciaacute-la como uma ferramenta de propaganda Enquanto alguns dos mais fervorosos defensores do letramento criacutetico como os mais verdadeiros crentes de alguma causa parecem agraves vezes acreditar que a uacutenica verdadeira feacute eacute a sua e os natildeo crentes estatildeo em alianccedila com os ldquoJohn Leordquo do mundo muitos dos nossos mais reflexivos praticantes e professores inovadores professam lealdade ao letramento criacutetico em bases essencialmente pedagoacutegicas

Aleacutem disso aqueles que satildeo tentados a acreditar que ao ensinar os alunos a desafiarem o status quo ao questionar a tradiccedilatildeo e a autoridade e ao refletir dia-leticamente sobre o mundo asseguram a formaccedilatildeo de uma geraccedilatildeo de estudantes comprometida com poliacuteticas progressistas se sentiratildeo orgulhosos O letramento criacutetico eacute um instrumento muito complexo para servir simplesmente como uma ferramenta eficiente de doutrinaccedilatildeo A ecircnfase na forma de pensar nos processos de primeiro plano e de compreensatildeo taacutecita combinada com sua atitude ceacutetica em relaccedilatildeo ao conteuacutedo e agrave sua abordagem deixa inteiramente aberta a questatildeo sobre o que os estudantes podem fazer com sua formaccedilatildeo As muitas qualidades desenvolvidas atraveacutes do letramento criacutetico que podem ser prontamente aplicadas a outros cursos e o torna bastante adaptaacutevel aos cursos de Histoacuteria Economia e Sociologia satildeo as mesmas que o tornam um mal instrumento de doutrinaccedilatildeo Como lembra Michael Berude citando o que ele chama de ldquoreversibilidaderdquo natildeo haacute como garantir que a formaccedilatildeo de estudantes em letramento avanccedilado possa ser ldquo[] um veiacuteculo unidirecional para a mudanccedila poliacuteticardquo (BERUDE 1998 p 145) Nossos pensadores mais criacuteticos podem se ser tanto grandes conhecedores de Hedge Fund (Fundo de multimercado) como certamente revolucionaacuterios poliacuteticos

Para aleacutem do medo de parecermos partidaacuterios em nossa abordagem de ensino de escrita haacute um estiacutemulo mais profundo para o ensino reflexivo que natildeo o super-ficial papel poliacutetico O filoacutesofo Hans Blumenberg por exemplo observa a crescente pressatildeo sobre os educadores para deixar de lado o objetivo de vida consciente e ldquoabandonar a ideia que eacute governada pela norma de que o homem deve saber o que estaacute fazendordquo (BLUMENBERG 1987 p 446) em nome da busca de meios cada vez

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mais parcimoniosos de resolver os problemas Em resposta Blumenberg (1987 p 446) pede uma volta agrave Retoacuterica alegando que ela representa ldquo[] um modo de re-alizaccedilatildeo consumada do atraso [do tempo] A circunstancial idade a inventividade processual a ritualizaccedilatildeo implicam uma duacutevida na maneira de saber se o ponto mais curto para ligar dois pontos eacute tambeacutem o caminho humano de um para o outrordquo

O motivo que explica a volta de Blumenberg para a retoacuterica ressoa aqui um tema abordado por Burke que frequentemente expressa uma atitude ceacuteptica em relaccedilatildeo agrave Lei da Parcimocircnia e ao nonsense de Occam (por exemplo o behaviorismo e o monetarismo) que resulta na seguinte conclusatildeo

[] se uma grande parte do serviccedilo foi obtido seguindo a lei de Occam segundo a qual ldquoas entidades natildeo deveriam ser multiplicadas para aleacutem da necessidaderdquo uma falta de serviccedilo surgiu na ignoracircncia de uma lei que ser enunciada da seguinte maneira as entidades natildeo devem ser re-duzidas para aleacutem da necessidade (BURKE 1966 p 324)

Para Burke (1966) a idade moderna eacute caracterizada muito mais por crimes contra a segunda lei do que contra a primeira Se o pensamento criacutetico implica uma capacidade de resolver problemas de forma eficiente atraveacutes da simplificaccedilatildeo o letramento criacutetico implica uma capacidade de gerar complexidade atraveacutes da reflexatildeo Aleacutem disso implica tambeacutem a capacidade de natildeo soacute escrever com clare-za quando se pode mas de maneira complexa quando eacute preciso de se referir aos limites de um puacuteblico quando conveacutem e desafiar e expandir esses limites quando a deferecircncia vence os objetivos Embora os objetivos que buscamos no letramento criacutetico sejam de fato altos e embora natildeo tenhamos chegado a um consenso sobre a melhor maneira de alcanccedilaacute-los eacute claro que ensinar os alunos a escrever argu-mentos eacute uma dessas maneiras Nesse processo as liccedilotildees que os alunos aprendem em um curso sobre argumento com base nos princiacutepios do letramento criacutetico satildeo mais faacuteceis de serem levadas para outras aacutereas do curriacuteculo

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Essa uacuteltima afirmaccedilatildeo eacute corroborada pela experiecircncia de muitos de noacutes que trabalham na aacuterea da escrita atraveacutes do curriacuteculo (WAC ndash writing across the curri-culum ndash escrita atraveacutes do curriacuteculo) O que muitos de noacutes descobrimos quando am-pliamos nossa atuaccedilatildeo para ajudar os professores de outras disciplinas a melhorar a escrita de seus alunos foi o fato de que realmente estaacutevamos ajudando seus alunos a escrever melhores argumentos Ou para dizer de forma mais precisa estaacutevamos ajudando os professores de outras disciplinas a ensinar seus alunos tanto a argu-mentar sobre um assunto de uma disciplina como a escrever sobre esse assunto Ensinar os formatos de textos em Psicologia ou Fiacutesica era relativamente simples Ao contraacuterio ao sensibilizar os alunos sobre os pressupostos desses formatos as hipoacuteteses sobre o peso relativo da evidecircncia relativa os diferentes formatos em concordacircncia agraves fontes primaacuterias e secundaacuterias aos dados experimentais agrave teoria agrave anomalia etc provaram ser uma tarefa consideravelmente mais desafiadora

Noacutes os agentes do movimento WAC estaacutevamos retomando o papel de nossos ancestrais sofistas noacutes eacuteramos os metecos os estrangeiros que passeiam por um lugar simultaneamente incapacitados e capacitados por nosso status de estrangeiro O que pareceu talvez para um membro de uma comunidade disciplinar como uma demonstraccedilatildeo de verdade para muitos de noacutes sob nosso olhar foi uma artimanha persuasiva Como o Senhor Jourdain de Moliegravere que se surpreende ao saber que falava sempre em forma de sermatildeo muitos de nossos colegas de outras disciplinas ficaram surpresos ao saber que eles estavam usando e ensinando retoacuterica o tempo todo Quando alcanccedilaram essa consciecircncia muitos desses colegas se tornaram grandes defensores do foco no argumento natildeo apenas em seus proacuteprios cursos mas tambeacutem nos cursos de escrita nos quais preparamos os alunos para suas dis-ciplinas Como demonstraremos no capiacutetulo dois as abordagens usadas nos cursos de argumento contemporacircneos satildeo perfeitamente adaptaacuteveis a outras disciplinas

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argumento e identidade

Um dos aspectos mais controversos do letramento criacutetico diz respeito agraves conexotildees que ele estabelece entre pensamento criacutetico e identidade Ao incentivar os alunos a se tornarem pensadores mais reflexivos os defensores do letramento criacutetico chamam a atenccedilatildeo para vaacuterias forccedilas no mundo que minam o senso de ca-pacidade de accedilatildeo das pessoas e os incitam a querer atingir seus propoacutesitos Eles chamam tambeacutem a atenccedilatildeo para o fato de que as formas como tomamos decisotildees como consumidores trabalhadores e cidadatildeos decisotildees sobre o que comer sobre como progredir no trabalho sobre em quem votar revelam quem somos e refor-ccedilamos para o bem ou para o mal nossa autocompreensatildeo Vendedores de sabatildeo gurus de gestatildeo e consultores poliacuteticos tecircm um interesse natildeo soacute de compreender quem somos mas em formar uma identidade compatiacuteveis com seus interesses Os alunos precisam portanto ser reflexivos sobre essas escolhas conscientes das implicaccedilotildees de algumas de suas escolhas e alertas para as artimanhas persuasivas comuns agravequeles que os encorajam a assumir essas identidades

Isso pode revelar-se uma tarefa desafiadora Os alunos satildeo muitas vezes fortemente resistentes a estabelecer relaccedilatildeo entre quem eles satildeo e as escolhas diaacuterias que eles fazem Eles natildeo gostam da sugestatildeo impliacutecita de que eles podem ser as viacutetimas de algum grupo sombrio de ldquoperseguidores ocultosrdquo nem da ideia de ter que prestar atenccedilatildeo tanto nas escolhas como nas decisotildees que ateacute entatildeo tecircm feito de forma simples Natildeo estamos fazendo uma montanha de um pequeno morro dizem eles para que essa intensa atenccedilatildeo criacutetica para um simples anuacutencio ou para escolher um livro de negoacutecios pop

Qualquer um que tenha ensinado em um curso de literatura reconheceraacute a resposta Eles satildeo ceacuteticos quanto ao fato de uma coisa tatildeo simples superficialmen-te poder ter toda essa profundidade de significado As vaacuterias preocupaccedilotildees que os alunos expressam sobre a aplicaccedilatildeo das liccedilotildees de letramento criacutetico para sua vida cotidiana precisam ser levadas em conta Por um lado eles tecircm o direito de

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insistir na sua proacutepria maneira de resolver as coisas e na sua proacutepria capacidade de se distanciar das influecircncias de grupos de interesses diferentes Muitos deles tecircm pensado criticamente sobre pelo menos algumas dessas escolhas e sempre encontramos alguns em cada classe que estatildeo de fato militantemente atentos contra os ataques externos agrave sua identidade Por outro lado muitos subestimam a haacutebil capacidade dos que criam identidades ldquoprontas para o usordquo de utilizar do hu-mor da ironia da autodeclaraccedilatildeo depreciaccedilatildeo e autorrevelaccedilatildeo e de muitos outros recursos para desarmaacute-los Ao abordar a relaccedilatildeo entre argumento e identidade portanto eacute importante respeitar a posiccedilatildeo e experiecircncia dos alunos nessa aacuterea e conduzi-los lentamente ateacute o final Noacutes gostamos de comeccedilar a discussatildeo da iden-tidade com um olhar sobre algumas das teacutecnicas mais comuns usadas por aqueles que vendem identidades ldquopronta para o usordquo agraves quais todos somos vulneraacuteveis

Consideremos por exemplo um dos recursos mais eficazes usados por publici-taacuterios consultores poliacuteticos e gurus de gestatildeo para desarmar o puacuteblico americano o apelo ao individualismo poderoso Seja como poliacutetico que ignora as pesquisas e segue seu instinto como gestor que desdenha a sabedoria convencional e ousa ser genial ou como o modelo masculino em traje de vaqueiro que acende um cigarro e ri da morte os americanos tecircm sido muito suscetiacuteveis aos encantos do indiviacuteduo poderoso em todos os seus muitos disfarces Na verdade a maneira mais faacutecil de vender a um grande puacuteblico americano comportamentos ou escolhas que tecircm consequecircncias duvidosas eacute apresenta-los como uma expressatildeo de individualis-mo poderoso Esse individualismo constitui o que Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969 p 84) chamam de loci ldquo[] premissas de natureza geral que podem servir de base para valores e hierarquiasrdquo A premissa representada por esse modelo de indiviacuteduo eacute talvez sintetizada pelo imperativo categoacuterico do coacutedigo do heroacutei ldquoUm homem tem que fazer o que um homem tem que fazerrdquo Ouve-se a masculinidade interior para intuir o melhor plano de accedilatildeo e segue-se esse plano orientaccedilatildeo face agrave convenccedilatildeo agrave popularidade agrave legalidade e ao risco pessoal

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Como todos os loci o modelo de indiviacuteduo poderoso se desenha em muitos caminhos em particular na histoacuteria americana e na cultura popular americana Um paiacutes nascido da revoluccedilatildeo e nutrido da ldquoconquistardquo de uma fronteira recuada um paiacutes cujo sistema econocircmico eacute baseado no risco econocircmico e na competiccedilatildeo um paiacutes cuja induacutestria de entretenimento forneceu um fluxo constante de cowboys bandidos misteriosos ricos e influentes empresaacuterios e gangsters em todos os meios eacute um paiacutes com o individualismo poderoso profundamente marcado no seu DNA Por isso o simples ato de associar uma marca um produto uma escolha uma pessoa um candidato ou uma proposta a esse modelo de individualismo aacutespero tem sido tatildeo eficaz ao longo dos anos na transmissatildeo dos interesses de seus patrocinadores Atraveacutes do ato de escolher o que quer que seja que o patrocinador deseja que esco-lhamos reforccedilamos o imaginaacuterio nacional asseguramos sua repeticcedilatildeo contiacutenua e o status do indiviacuteduo poderoso como um modelo de comportamento

No entanto eacute sabido que essa visatildeo de indiviacuteduo ndash a versatildeo John Wayne ndash tem um apelo limitado para os diferentes grupos de compradores da segmentaccedilatildeo psi-cograacutefica Assim elaboram-se variaccedilotildees no modelo central para atingir de forma mais especiacutefica o grupo para o qual um produto eacute lanccedilado Para alguns a versatildeo ldquomachordquo natildeo cai muito bem por isso exigem uma versatildeo mais gentil mais suave Consideremos por exemplo a campanha publicitaacuteria encantadora e divertida da Apple Computing que exibe personificaccedilotildees das linhas de computador MAC e PC Enquanto o PC eacute apresentado com um homem gordo vestido de terno escuro com uma visatildeo estreita do seu trabalho que reclama das muitas demandas dos seus usuaacuterios o MAC eacute personificado como um homem magro jovem vestido de forma despojada aberto a novas possibilidades intrigado com as queixas de PC sobre as demandas de seus usuaacuterios e perplexo com essa personalidade Trata-se de um conflito claacutessico ainda que suavizado entre o ldquohomem de negoacuteciosrdquo e o rebelde o burocrata e o inovador

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Esse anuacutencio eacute uma versatildeo muito mais marcante do claacutessico anuacutencio da Apple Super Bowl de 1984 da linha Mac de computadores em que uma mulher escapa de uma guerra para quebrar uma enorme tela de televisatildeo onde o Big Brother eacute enaltecido diante de um auditoacuterio cheio de figuras curvadas (embora seja tentador pensar que a escolha dos anunciantes por uma figura feminina para o papel de um indiviacuteduo forte como um sinal de avanccedilada consciecircncia social eacute mais provaacutevel que isso seja um reflexo da preocupaccedilatildeo para atingir um determinado grupo de consu-midor) A versatildeo do anuacutencio com a oposiccedilatildeo entre conservadores e rebeldes sugere que estaacute muito mais em jogo a escolha entre conformismo e individualidade e por implicaccedilatildeo entre a escolha da Apple e qualquer outra marca de computadores A escolha do computador eacute uma escolha poliacutetica natildeo somente praacutetica ou de estilo de vida Como a marca Apple em 1984 era pouco conhecida quando a IBM domi-nou o mercado a diferenccedila de tom eacute compreensiacutevel As implicaccedilotildees ideoloacutegicas do estereoacutetipo do individual poderoso na publicidade tendem a ser cada vez mais precisas quanto mais inesperadas satildeo as escolhas que os consumidores podem fazer (vejamos o exemplo do Homem Marlboro)

Natildeo haacute nada inerentemente ruim sobre a criatividade da Apple de mobilizar os personagens do imaginaacuterio americano para vender seu produto Como toda simplificaccedilatildeo miacutetica ela exagera nas diferenccedilas entre os dois produtos para natildeo mencionar as diferenccedilas entre as duas grandes empresas americanas mas toda propaganda eacute para ser entendida em um piscar de olhos e o exagero natildeo eacute um pe-cado O mal estaacute em dar a uma premissa questionaacutevel o status de hipoacutetese inques-tionaacutevel e a um papel que todos noacutes ocasionalmente podemos querer interpretar o status de ideal essencialista a que todos deveriam aspirar O mal tambeacutem reside no constante reforccedilo dos valores individualistas sobre os coletivos Se os valores representados por MAC parecem irrelevantes no contexto do anuacutencio podem natildeo parecer se ampliados para o domiacutenio das virtudes das pessoas Indiviacuteduos pode-rosos no final das contas natildeo se relacionam bem com os outros Seu questiona-

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A construccedilatildeo do argumento

mento da autoridade raramente se estende ao questionamento da autoridade de seus proacuteprios sistemas de valores

Qualquer quer seja a razatildeo pela qual usem o adesivo ldquoQuestione a autoridade (Question authority)rdquo eles na verdade acreditam na sua proacutepria autoridade e natildeo estatildeo preparados para questionar a sua finalidade de promover uma accedilatildeo coletiva que assegura um bem comum De toda maneira a capacidade ou incapacidade dos poliacuteticos de se venderem de maneira plausiacutevel como indiviacuteduos poderosos tem sido decisiva no seu sucesso no paiacutes durante grande parte das uacuteltimas trecircs deacutecadas

Na anaacutelise do anuacutencio noacutes mesmos estamos levantando uma hipoacutetese sobre a identidade com a qual nem todos certamente nem todos os nossos alunos po-dem estar satisfeitos Assumimos o sentido de identidade conforme Burke (1989) chama de ldquoparlamentarrdquo uma identidade variaacutevel natildeo unitaacuteria natildeo essencial e reparaacutevel Conforme essa visatildeo de identidade desempenhamos muitos papeacuteis e a autenticidade natildeo eacute tanto uma questatildeo de permanecer fiel a um eu central mas uma questatildeo de selecionar conscientemente os papeacuteis que desempenhamos e se envolver totalmente nesses papeacuteis As hipoacuteteses dos retoacutericos sobre a identidade humana satildeo tatildeo fundamentais para a praacutetica de sua arte quanto as dos economistas neoclaacutessicos ndash personificadas no modelo de identidade seletiva dos economistas neoclaacutessicos o do homo economicus ndash para a fundamentaccedilatildeo da sua proacutepria praacute-tica A verdade literal da hipoacutetese de uma ou outra disciplina eacute sempre aberta agrave conjectura ainda que as hipoacuteteses da retoacuterica contemporacircnea sobre a identidade pareccedilam se ajustar melhor as atualmente dominantes nos campos da Psicologia e da Filosofia A hipoacutetese dos economistas de que os agentes humanos tomam deci-sotildees apenas com base no interesse pessoal racional combina bem com as hipoacuteteses utilitaacuterias do seacuteculo XIX sobre a natureza humana mas parece muitas vezes estar em desacordo com o comportamento humano real Ainda assim apesar de todas as suas falhas o modelo continua a funcionar bem o suficiente para servir de ponto de partida para a anaacutelise microeconocircmica e continua a ser usado ateacute pelos mais ceacuteticos mesmo com alteraccedilotildees e modificaccedilotildees crescentes

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A construccedilatildeo do argumento

Embora estejamos preparados para defender a validade do modelo remanes-cente da retoacuterica de identidade humana natildeo devemos pensar que temos de provar aos nossos alunos ou colegas de outras disciplinas que eacute inquestionaacutevel Como o modelo muito mais simplificado dos economistas ele serve para explicar uma seacuterie de comportamentos observados na anaacutelise retoacuterica e fornecer um quadro claro para a teoria retoacuterica

Entatildeo quais satildeo algumas das implicaccedilotildees do modelo ldquoparlamentarrdquo natildeo es-sencialista de identidade Primeiro e acima de tudo o modelo implica um forte senso de agente por parte de cada ator retoacuterico

O modelo supotildee que as pessoas tecircm a liberdade de fazer escolhas natildeo apenas escolhas de comportamento mas de identidade e a retoacuterica eacute uma forma principal pela qual essas escolhas podem ser sistematicamente examinadas realizadas e defendidas A liberdade assumida pela retoacuterica pode ser vista de um ponto de vista essencialista como uma maldiccedilatildeo na medida em que nunca eacute ldquoacabadardquo e segura Como o heroacutei existencialista de Sartre o homo rhetoricuseacute ldquocondenado agrave liberdaderdquo Nesse sentido Blumenberg (1987) compara os seres humanos a outros animais e observa que ao contraacuterio de outros membros do reino animal estamos privados de instintos que nos permitem saber ou ser qualquer coisa im-mediately Ateacute mesmo o autoconhecimento ou autocompreensatildeo tem a estrutura da ldquoautoexternalidaderdquo Um ldquodesviordquo eacute necessaacuterio para adquirir esse conhecimento um ato de mediaccedilatildeo para o outro ndash o phoros de uma analogia o veiacuteculo de uma metaacutefora o segundo termo de uma relaccedilatildeo as relaccedilotildees que mantemos com outros seres humanos Em alguns casos iniciamos esse processo de construccedilatildeo da identidade Em outros nos encontramos selecionando ou resistindo opccedilotildees que nos satildeo oferecidas ou impostas

Nesse uacuteltimo caso a retoacuterica desempenha um papel particularmente crucial na medida em que ldquo[] natildeo eacute apenas a teacutecnica de produccedilatildeo um efeito eacute sempre tambeacutem um meio de manter o efeito transparenterdquo (BLUMENBERG 1987 p 435-36) Essa segunda capacidade a capacidade de interpretar os efeitos sobre noacutes mesmos bem como de produzir efeitos sobre os outros faz que o domiacutenio da retoacute-

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A construccedilatildeo do argumento

rica seja particularmente crucial para nossos alunos neste momento da histoacuteria quando tantas forccedilas atuam fazem circular identidades disfuncionais para eles e negativizam processos perfeitamente funcionais

eacutetiCa e argumento

O modelo de identidade que prevalece na retoacuterica na medida em que enfatiza a accedilatildeo e a escolha do ser humano assegura a centralidade da eacutetica na nossa tarefa Como o filoacutesofo Charles Taylor (1989) observou ldquo[] a individualidade e o bem ou de outro modo a individualidade e a moralidade se tornam temas inextricavelmente interligadosrdquo (TAYLOR 1989 p 3) Ainda segundo Taylor (1989) falhamos ao levar formalmente em conta essa conexatildeo principalmente por causa do fasciacutenio da filoso-fia moral em ldquo[] definir o conteuacutedo da obrigaccedilatildeo em vez da natureza da boa vidardquo (TAYLOR 1989 p 3) A vida boa conforme entende o autor eacute fundamentalmente social na medida em que o eu eacute fundamentalmente uma construccedilatildeo social Eu sou quem eu sou em virtude de meus relacionamentos com outros seres humanos e a felicidade natildeo pode ser entendida para aleacutem desses relacionamentos Trata-se de uma visatildeo que contrasta com aquelas visotildees que equiparam a felicidade ao prazer ou maximizaccedilatildeo da utilidade ou no caso do individualista poderoso agrave completa autossuficiecircncia Ao contraacuterio do modelo dos economistas neoclaacutessicos de vida boa modelo que domina o imaginaacuterio popular americano o benefiacutecio social natildeo eacute um subproduto acidental da ganacircncia individual Para que um benefiacutecio social tenha um significado eacutetico ou retoacuterico deve ser um produto da intenccedilatildeo A vida boa eacute na simpaacutetica caseira de Kenneth Burke ldquo[] um projeto para se dar bem com as pessoasrdquo (BURKE 1984 p 256) Entender-se uns com os outros implica a identificaccedilatildeo coletiva desses ldquovalores particulares vividos que nos unem e satildeo assumidos pelas instituiccedilotildees que valorizamos e desejamos defenderrdquo como disse Stanley Fish Natildeo existe um padratildeo universal que dita esses valores e funda essas instituiccedilotildees ndash ou mais precisamente nenhuma das vaacuterias normas defendidas por

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seus adeptos como universais satildeo universalmente subscritas ndash daiacute a necessidade de articulaacute-las e estabelecer as diferenccedilas entre elas atraveacutes do uacutenico meio mais faacutecil ou como alguns filoacutesofos preferem o ldquodiaacutelogordquo

Quanto mais se considera a eacutetica natildeo apenas em termos das escolhas corretas dos indiviacuteduos mas em termos de uma determinaccedilatildeo coletiva sobre essas esco-lhas individuais mais o estudo da retoacuterica equivale ao estudo da eacutetica Dito isso qualquer um que ensinou argumento reconheceraacute a ligaccedilatildeo fundamental entre retoacuterica e eacutetica As questotildees eacuteticas surgem de todo tipos de argumento ateacute mesmo de alguns que parecem agrave primeira vista muito distantes da esfera do pensamento eacutetico A questatildeo natildeo eacute se devemos abordar a dimensatildeo eacutetica do argumento mas saber a melhor maneira de estudar a eacutetica em classe de argumentos Falaremos mais tarde de argumentos eacuteticos em si quando discutiremos uma teoria dos tipos de argumento conhecida como Stasis Theory Trataremos agora dos argumentos eacuteticos ou seja daqueles cujos princiacutepios gerais constituem um julgamento eacutetico um argumento especial de avaliaccedilatildeo que utiliza uma parte da linguagem tradicio-nalmente usada pelos filoacutesofos quando determinam o ldquoconteuacutedo da obrigaccedilatildeordquo em uma dada circunstacircncia e sistematizam os meios para se chegar a decisotildees eacuteticas Agora interessa-nos mais amplamente a relaccedilatildeo entre eacutetica e retoacuterica A seguir nos deteremos nas caracteriacutesticas comuns do raciociacutenio eacutetico e retoacuterico e da eacutetica do debate

Uma maneira de ressaltar o quanto tecircm em comum a retoacuterica e a eacutetica eacute considerar a questatildeo da melhor forma de se inserir a eacutetica em um curriacuteculo O processo que consiste em provar a eacutetica da eacutetica em um curso de escrita focado no argumento mostra o quanto as duas atividades estatildeo intimamente relaciona-das Tradicionalmente a eacutetica tem sido ensinada na faculdade seja nos cursos de Filosofia dedicados agrave consideraccedilatildeo das teorias eacuteticas sua histoacuteria e aplicaccedilatildeo seja nos seminaacuterios de teologia nas aulas de religiatildeo focadas na aplicaccedilatildeo dos princiacutepios e crenccedilas das religiotildees Taylor (1989) apontou algumas das limitaccedilotildees da eacutetica ensinada nos cursos de Filosofia porque ela se concentra no ldquoconteuacutedo

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da obrigaccedilatildeordquo em vez de determinar em que consiste uma boa vida Ao analisar vaacuterias ldquoexperiecircncias de pensamentordquo construiacutedas em torno de problemas morais os filoacutesofos tendem a ajudar os alunos a compreender mais as limitaccedilotildees de teorias morais existentes do que ajudaacute-los a definir para si uma vida digna de ser vivida Como os cursos de argumento natildeo tecircm a obrigaccedilatildeo de ldquocobrirrdquo nenhum conjunto particular de teorias morais estamos livres para oferecer aos alunos a oportuni-dade de buscar suas proacuteprias definiccedilotildees

Uma das maneiras mais eficazes de iniciar uma conversa entre os alunos sobre sua proacutepria concepccedilatildeo de vida boa ndash ao contraacuterio da maneira como vaacuterios filoacuteso-fos definiram essa concepccedilatildeo ndash eacute fazecirc-los discutir o belo conto de Ursula LeGuin (Aqueles que caminham longe de Omelas) Omelas eacute um reino utoacutepico imaginaacuterio onde pareceria que a vida boa conforme todas as medidas tradicionais foi atingi-da O uacutenico problema eacute o fato de que a felicidade constante de toda a comunidade depende do sofrimento constante de uma crianccedila que vive em um poratildeo e nunca deve ver nenhum gesto de bondade Toda crianccedila em Omelas entre oito e doze anos tomam conhecimento da existecircncia da crianccedila que sofre Aqueles que poste-riormente vatildeo embora muitas vezes perplexos pela histoacuteria para a perplexidade do narrador ndash aparentemente decidiram que a grande felicidade da comunidade natildeo justifica o sofrimento de uma crianccedila Sua escolha por sua vez reflete a cren-ccedila na natureza parlamentar da identidade ou seja a identidade eacute relacional e natildeo essencial Portanto todos os que vivem em Omelas e conhecem o sofrimento da crianccedila estatildeo implicados nesse sofrimento e sua vida boa aparente eacute tatildeo imperfeita como sua individualidade

Nesses dias eacute claro os cursos de Filosofia estatildeo longe de ser o uacutenico lugar onde a crescente demanda em mateacuteria de eacutetica estaacute sendo respeitada Como alternati-va aos cursos de Filosofia muitos cursos hoje oferecem suas proacuteprias disciplinas de eacutetica que enfatizam as questotildees eacuteticas recorrentes na aacuterea e os cacircnones de comportamento derivados das normas da profissatildeo Por mais bem intencionados que sejam esses cursos e embora claramente constituam um reconhecimento

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da necessidade de instruccedilatildeo eacutetica dentro da academia eles satildeo diriacuteamos espaccedilos problemaacuteticos de instruccedilatildeo eacutetica precisamente porque natildeo haacute conexatildeo funda-mental entre os objetivos da disciplina e objetivos eacuteticos Por outro lado tudo o que pudesse haver nos cursos de eacutetica para o equiliacutebrio dos estudantes em relaccedilatildeo agraves formas taacutecitas de eacutetica pode ser ofertado em outros cursos Como os alunos de muitas faculdades de artes liberais filiadas agrave igreja resistiram ao longo do uacuteltimo seacuteculo agrave frequecircncia obrigatoacuteria agrave ldquocapelardquo esses cursos apresentam uma infeliz tendecircncia para tocar esses alunos da melhor maneira como um conselho paternal para uma correccedilatildeo moral ou da pior maneira para se distraiacuterem do seu verdadeiro caminho acadecircmico

O campo dos negoacutecios por exemplo eacute o mais publicamente lembrado quando se fala de eacutetica nos uacuteltimos anos graccedilas a uma seacuterie de escacircndalos empresariais altamente divulgados na miacutedia Considerando as teorias econocircmicas de maior influecircncia na Ameacuterica hoje eacute provaacutevel que os estudantes sejam ensinados direta e indiretamente em muitos cursos diferentes supervisionados por pessoas dife-rentes que os mercados satildeo mais saacutebios do que os agentes humanos Se algueacutem pretende tomar uma decisatildeo prudente sobre as possiacuteveis consequecircncias de uma poliacutetica eacute aconselhaacutevel estudar o desempenho do mercado em situaccedilotildees seme-lhantes no passado Se algueacutem quer saber o que funcionou e estaacute funcionando a uacutenica opiniatildeo que realmente conta eacute a do mercado Um preccedilo ldquojustordquo portanto eacute o que o mercado suportaraacute enquanto um salaacuterio ldquojustordquo eacute o miacutenimo que o mer-cado permite pagar No contexto desse respeito quase onisciente pelo mercado qualquer curso de eacutetica que introduza criteacuterios estranhos agrave dinacircmica do mercado dinacircmico no processo de tomada de decisatildeo provavelmente teraacute pouco efeito sobre as prioridades ou os comportamentos dos alunos

O que falta em um curso de eacutetica empresarial eacute a ligaccedilatildeo clara entre ldquoindi-vidualidade e moralidaderdquo Qualquer curso que comece com um sentimento de individualidade um tipo de ldquoauto personal businessrdquo inevitavelmente deixaraacute uma

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visatildeo enviesada de obrigaccedilatildeo eacutetica Burke (1968) aborda a natureza da relaccedilatildeo entre identidade e obrigaccedilatildeo eacutetica no processo de definiccedilatildeo de sua noccedilatildeo central de ldquoidentificaccedilatildeordquo

O ser humano como agente que eacute natildeo eacute motivado unicamente pelos princiacutepios de uma atividade especializada mas esse poder especiali-zado em seu papel de sugerir imagem eacute capaz de afetar seu caraacuteter Qualquer atividade especializada participa de uma unidade de accedilatildeo maior ldquoIdentificaccedilatildeordquo eacute uma palavra usada no lugar de atividade au-tocircnoma nesse contexto mais amplo um lugar em que o agente pode ser indiferente O pastor enquanto pastor age para o bem das ovelhas para protegecirc-las do perigo e do mal Mas ele pode ser ldquoidentificadordquo com um projeto que estaacute criando as ovelhas para o mercado (BURKE 1968 p 27)

Da mesma maneira a administraccedilatildeo corporativa pode agir de forma conscien-te no interesse de seus acionistas para aumentar o retorno de seu investimento realizando accedilotildees que simultaneamente ldquoos identificamrdquo tanto com a degradaccedilatildeo quanto com a necessidade de preservar o meio ambiente

Mesmo uma consideraccedilatildeo breve das conexotildees entre os modos de pensar promovidos ao mesmo tempo tanto pela eacutetica como pela retoacuterica ressalta as vantagens de integrar o ensino da eacutetica em uma aula de argumentos Uma das caracteriacutesticas mais importantes compartilhadas pela eacutetica e pela retoacuterica eacute o foco no processo e na compreensatildeo do processo ndash ldquocomo fazerrdquo ndash mais que o conhe-cimento declarativo ndash ldquoo que eacuterdquo Eacute essa preocupaccedilatildeo com o processo que permite que tanto eacutetica como retoacuterica envolvam ldquoatividades especializadasrdquo de qualquer espeacutecie e se movam facilmente entre os campos pessoal e profissional Em ambos os casos os processos que envolvem a eacutetica e a retoacuterica envolvem duas etapas um processo de seleccedilatildeo ndash que identifica o melhor argumentoa escolha mais de-fensiacutevel e um processo de comunicaccedilatildeo ndash a formulaccedilatildeo de uma justificativa para

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o argumento ou escolha eou a promoccedilatildeo de uma forma mais ampla de adotar De acordo os pontos de vista mais comuns da retoacuterica o primeiro processo que termina na escolha eacute o uacutenico necessaacuterio Natildeo haacute obrigaccedilatildeo de explicar as razotildees para se fazer a escolha ou de compartilhar o processo pelo qual se chegou a ela No entanto como haacute argumentos para determinadas escolhas eacuteticas haacute uma eacutetica do argumento que exige que se crie uma situaccedilatildeo para as escolhas A diferenccedila aqui entre argumentos eacuteticos e outros tipos de argumentos eacute o grau natildeo o tipo Embora seja sempre uacutetil explicar as razotildees de se fazer escolhas e embora seja prudente fazer sempre que algueacutem quer contar com o apoio de outrem eacute neces-saacuterio optar pela escolha eacute eacutetica

A fonte dessa restriccedilatildeo eacute a natureza das escolhas eacuteticas Ao opinarmos por exemplo sobre uma faculdade para as pessoas que precisam escolher uma expli-camos nossos criteacuterios para ajudaacute-las a se decidirem sobre a escolha da faculdade No entanto se estamos fazendo uma escolha eacutetica sobre digamos justificativas para a tortura estamos falando sobre alguma coisa muito mais forte Ao reali-zarmos escolhas eacuteticas a escolha natildeo eacute apenas para noacutes mesmos no aqui e agora mas para os outros e para noacutes mesmos em situaccedilotildees futuras semelhantes Quando qualificamos um ato como eacutetico natildeo estamos simplesmente dizendo Eu fiz isso mas tambeacutem Isso deve ser feito

Se algueacutem eacute de iniacutecio obrigado sob a eacutetica do argumento a explicar um raciociacutenio sobre suas escolhas eacuteticas tambeacutem eacute obrigado a assegurar que seus motivos satildeo verdadeiros Isso significa dizer que a justificativa do raciociacutenio para que sirva de guia para outros atos eacuteticos natildeo deve ser apenas verdadeira mas extensiva Eacute preciso estar preparado para reconhecer toda a gama de esco-lhas ndash natildeo necessariamente todas mas todas que possam parecer plausiacuteveis ou provaacuteveis para a quem interessa ndash possiacuteveis antes de se fazer a seleccedilatildeo As razotildees para descartar ou hierarquizar alternativas provaacuteveis e selecionar a accedilatildeo final devem ser claramente indicadas

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Os princiacutepios que orientaram a avaliaccedilatildeo dessas escolhas e as evidecircncias que apoiam essa avaliaccedilatildeo devem ser claramente explicados O grau de certeza sobre a melhor escolha de uma pessoa deve ser explicitamente registrado (essas condiccedilotildees assim como o termo ldquolegitimidaderdquo que derivam do modelo de Stephen Toulmin seratildeo discutidos mais detalhadamente no proacuteximo capiacutetulo) Embora natildeo haja um coacutedigo formal de comportamento retoacuterico que obriga algueacutem a oferecer uma justificativa simultaneamente honesta e legiacutetima para o argumento presume-se a obrigaccedilatildeo de fazer caso seja solicitado Aleacutem disso a falha na condiccedilatildeo de legiti-midade de um argumento pode potencialmente tornaacute-lo menos eficaz Um argu-mento que tende a revelar o que se deixou de dizer ou que chama a atenccedilatildeo para as questotildees ignoradas pelo opositor pode enfraquecer a adesatildeo do puacuteblico a esse argumento tatildeo prontamente como se ele tivesse mostrado sua proacutepria falsidade

O processo de seleccedilatildeo em eacutetica eacute homoacutelogo ao que os retoacutericos chamam agraves vezes de estaacutegio de invenccedilatildeo O processo de descoberta e avaliaccedilatildeo das escolhas compreende grande parte da teacutecnica da retoacuterica e da eacutetica Como vimos ante-riormente Blumenberg (1987) associou esse processo ao ldquoatrasordquo do tempo que compreende a preocupaccedilatildeo de explicar a ldquocircunstancialidaderdquo as diferenccedilas particulares entre a situaccedilatildeo dada e outras para as quais se procura orientaccedilatildeo Enquanto enfatizamos anteriormente as recompensas cognitivas associadas a essa rejeiccedilatildeo de meios parcimoniosos de compreensatildeo destacamos aqui as restriccedilotildees eacuteticas para tal movimento Onde prevalece a automaticidade natildeo haacute lugar para a eacutetica ou para a retoacuterica Pode-se apenas fazer ou dizer ldquoo que algueacutem precisa fazer ou dizerrdquo sem hesitaccedilatildeo A eacutetica e a retoacuterica exigem escolha e escolha implica deli-beraccedilatildeo Ao chegar a essa conclusatildeo natildeo rejeitamos a ideia de que o fim apropriado da instruccedilatildeo eacutetica eacute o de tornar a virtude um haacutebito Os haacutebitos eacuteticos da mente por oposiccedilatildeo ao mero conhecimento da teoria eacutetica e da histoacuteria satildeo certamente os limites apropriados da instruccedilatildeo eacutetica Isso natildeo quer dizer todavia que esses haacutebitos sejam melhor expostos pela forma como as pessoas fazem suas escolhas eacuteticas Pode-se interpretar a noccedilatildeo de haacutebito de uma forma ampla rejeitando um

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acento behaviorista como resposta imediata a um estiacutemulo familiar Pode-se in-cluir nos haacutebitos eacuteticos da mente a inclinaccedilatildeo para buscar a dimensatildeo eacutetica das escolhas a consideraccedilatildeo de tantas alternativas plausiacuteveis quanto possiacuteveis e a avaliaccedilatildeo cuidadosa dessas escolhas

Combinando a instruccedilatildeo eacutetica e a instruccedilatildeo retoacuterica com ecircnfase nessa uacuteltima na ldquoinventividade processualrdquo e no exame disciplinado das alternativas podemos esperar melhorar as escolhas eacuteticas tornando mais complexas e aumentando o nuacutemero de escolhas para os nossos alunos Em vez de se concentrar na adequaccedilatildeo da escolha final uma eacutetica retoricamente influenciaacutevel enfatizaria as alternativas inventadas ou descobertas no processo de seleccedilatildeo e nas respostas uacutenicas da escolha final agraves particularidades do seu dilema eacutetico Eacute aiacute onde a natureza controversa da retoacuterica eacute mais evidente

Para alguns a medida da instruccedilatildeo eacutetica eacute exatamente ajudar os alunos a che-gar da maneira mais parcimoniosa possiacutevel agrave boa escolha que estaacute posta agrave espera deles Qualquer coisa que possibilita uma pessoa reconhecer e fazer essa escolha resulta de lacunas no seu caraacuteter Somente se se acredita que a melhor escolha pode ser um produto das deliberaccedilotildees antes de algo que existia a priori dessas deliberaccedilotildees pode ser um ldquoatrasordquo do tempo a recusa de reduzir ldquoas entidades para aleacutem da necessidaderdquo eacute justificaacutevel Nesse ponto aqueles que equiparam a virtude a uma injusta e raacutepida rejeiccedilatildeo da tentaccedilatildeo acusaratildeo algueacutem de relativista Para os absolutistas morais ndash e certamente o absolutismo moral eacute uma posiccedilatildeo eacutetica que um nuacutemero significativo de pessoas adota por mais diferentes que sejam os absolutismos ndash as provas de Satanaacutes devem ser respondidas com uma questatildeo dis-cursiva com o verdadeiro ou o falso Preparar-se para essa prova familiarizando-se com as respostas certas repetindo-as memorizando-as e depois recordando-as instantaneamente quando os desafios se apresentam Somente os inimigos devem deliberar e soacute os infieacuteis imaginam que poderiam por seu proacuteprio poder da razatildeo chegar a uma escolha melhor do que a prescrita pelos absolutos transmitidos pela leitura literal de alguns sacerdotes da sagrada escritura

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O fracasso do absolutismo a partir da perspectiva da eacutetica como retoacuterica eacute um fracasso da imaginaccedilatildeo5 Eacute a incapacidade de imaginar qualquer outra leitura de escritos sagrados diferente da que eacute sugerida por quem estaacute no puacutelpito Eacute a incapacidade de imaginar uma maneira de identificaccedilatildeo entre si e qualquer outra forma de realismo O fracasso do absolutismo tambeacutem envolve o simples equiacutevoco em observar coisas o equiacutevoco de natildeo observar que as respostas derivadas da es-critura sagrada ao longo dos seacuteculos mudam de tempos em tempos e de lugar para lugar e o equiacutevoco de natildeo constatar que natildeo haacute um tribunal com o poder de julgar as diferenccedilas entre os absolutismos nem de anular os recursos dos relativistas O problema principal que surge do fracasso dos absolutismos eacuteticos eacute o fato de que em uacuteltima instacircncia eles acabam por se fazer ouvir e nos fazem voltar ao lugar onde a eacutetica e a retoacuterica surgem o lugar onde o poder eacute certo Acima de tudo a eacutetica e a retoacuterica compartilham a rejeiccedilatildeo da forccedila como meio de resolver a diferenccedila

A retoacuterica comeccedila como Burke (1969) argumenta como um namoro na cria-ccedilatildeo de um senso de identificaccedilatildeo entre pessoas pertencentes a diferentes classes seja de gecircnero grupo socioeconocircmico posiccedilatildeo poliacutetica etc As obrigaccedilotildees da eacutetica surgem do reconhecimento do eu nos outros da capacidade de assumir a posiccedilatildeo do outro O absolutismo cria um mundo binaacuterio (NoacutesEles BomMal CorretoErrado) ndash e natildeo oferece meios civilizados para superar esses binarismos De fato o absolutismo aconselha a natildeo falar com o Outro nem mesmo identificaacute-lo Para ser fiel agrave visatildeo absolutista do mundo eacute preciso permanecer sempre no interior das suas fronteiras Deixar o reino dos absolutos eacute ser desafiado a cada passo por ideias e costumes diferentes e ter poucos recursos para negociar essas diferenccedilas Noacutes aprendemos todavia desde muito tempo com os sofistas a atravessar vaacuterios

5 Empregamos o termo Absolutismo para expressar uma mentalidade natildeo uma ideologia ou sistema de crenccedila Dentro de qualquer religiatildeo portanto haacute absolutistas que praticamente atuam dessa forma Haacute tambeacutem pessoas com mais imaginaccedilatildeo que conseguem conciliar suas crenccedilas religiosas com uma preocupaccedilatildeo pelo bem-estar dos que natildeo compartilhar suas crenccedilas

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reinados no processo de muacuteltiplas realidades sempre amarrados agrave nossa sanidade e seguranccedila Se esse antepassado mais benigno dos absolutistas Platatildeo venceu os sofistas em seus diaacutelogos Ele de fato sobreviveu para discutir novamente e nos ensinar a fazer o mesmo Em um mundo acometido por muita certeza sobre muitas ideias irreconciliaacuteveis e pouca vontade de natildeo usar forccedila e tentar a conciliaccedilatildeo nossos alunos se serviriam bem da instruccedilatildeo eacutetica influenciada pelo espiacuterito dos sofistas

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caPiacutetulO 1a histoacuteria da argumentaccedilatildeo6

Nosso objetivo neste capiacutetulo natildeo eacute o de apresentar uma histoacuteria exaustiva da argumentaccedilatildeo mas o de construir essa histoacuteria que possa ser bem usada por professores na contemporaneidade Eacute certo que nosso esboccedilo contempla algumas boas histoacuterias da Retoacuterica e do ensino da escrita e nossos leitores podem consultar nossas referecircncias caso desejem explorar essas histoacuterias com maior profundidade Mas no breve espaccedilo disponiacutevel para essa discussatildeo preferimos a economia ao detalhamento e a utilidade agrave novidade De modo a deixar o texto o mais utilizaacute-vel possiacutevel o dividimos em duas partes Na primeira apresentamos uma ldquofatiardquo ou amostra representativa da Retoacuterica preacute-moderna sob a forma de dois temas recorrentes ndash ou mais precisamente duas tensotildees recorrentes ndash que marcam a evoluccedilatildeo da teoria do argumento Tais tensotildees sobrevivem ateacute hoje e continuam a promover controveacutersias A primeira tensatildeo centra-se sobre o antigo antagonismo entre a Retoacuterica e a Filosofia enquanto a segunda estaacute focada na resistecircncia da Retoacuterica ao engessamento nem sempre bem-sucedido Apoacutes revisar essas tensotildees destacando sua aplicabilidade agraves escolhas que os professores ainda enfrentam realizamos na segunda parte uma discussatildeo mais aprofundada sobre as teorias modernas da argumentaccedilatildeo responsaacuteveis por alterar ndash ou que tecircm potencial para alterar ndash a maneira como eacute ensinada

Em funccedilatildeo da pequena mudanccedila nos uacuteltimos 50 anos de nossa compreensatildeo sobre o argumento e nos uacuteltimos 25 das nossas abordagens para o ensino dedi-camos maior tempo agrave histoacuteria mais recente da argumentaccedilatildeo Ao fazer isso natildeo temos a intenccedilatildeo de deixar de lado as contribuiccedilotildees dos sofistas de Aristoacuteteles de Ciacutecero de Erasmo de Santo Agostinho de Campbell entre outros De fato como

6 Traduccedilatildeo erik fernando Martins

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a maioria dos teoacutericos contemporacircneos aqui citados admite o conhecimento de nossos antepassados ainda resplandece nos melhores trabalhos desenvolvidos recentemente Na medida em que nosso objetivo eacute criar um passado utilizaacutevel ao indicar as fontes de nossa abordagem para o argumento o que segue compreende o coraccedilatildeo deste livro

filosofia versus retoacuteriCa

Em certo sentido tudo que eacute discutido neste capiacutetulo pode ser compreendido atraveacutes das lentes da oposiccedilatildeo entre Filosofia e Retoacuterica Eacute por meio dessa velha briga que muitas de nossas batalhas antigas e recentes surgiram Se antigamente muitos filoacutesofos definiam a si proacuteprios atraveacutes de suas diferenccedilas em relaccedilatildeo agrave Retoacuterica atualmente muitos filoacutesofos e criacuteticos como Hans Blumenberg Hayden White Richard Rorty Charles Taylor Stanley Fish Terry Eagleton entre outros definem-se e distinguem-se de seus pares ao abraccedilar em alguns casos explicita-mente a Retoacuterica e em outros ao abraccedilar ideias consoantes agrave Retoacuterica contempo-racircnea Na segunda parte deste capiacutetulo na qual destacamos as contribuiccedilotildees dos retoacutericos modernos veremos que um nuacutemero consideraacutevel delas possui raiacutezes na Filosofia Abordaremos essas tentativas recentes de redefinir a Filosofia em um momento posterior deste capiacutetulo No entanto na presente discussatildeo sobre a divisatildeo FilosofiaRetoacuterica vamos nos limitar aos temas principais que emergem da antiga ruptura entre essas duas disciplinas

A antiga batalha entre Filosofia e Retoacuterica se reveste de muitas tensotildees mas nosso foco aqui eacute a tensatildeo principal entre elas e a ousada reivindicaccedilatildeo dos filoacuteso-fos de oferecer demonstraccedilotildees irrefutaacuteveis sobre a verdade para audiecircncias ideais contra a mais modesta reivindicaccedilatildeo dos retoacutericos para persuadir uma audiecircncia especiacutefica de que uma conclusatildeo particular garante anuecircncia O fato de que mesmo hoje dois mil e quinhentos anos depois do iniacutecio desse debate o prestiacutegio recai sobre aqueles que reivindicam demonstrar a verdade aos especialistas contra

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aqueles que reivindicam persuadir audiecircncias gerais enfatiza a difiacutecil batalha que a Retoacuterica encontra em sua luta com a Filosofia para garantir um nicho legiacutetimo dentro das ciecircncias humanas Parte do problema reside no fato de que a Filosofia foi declarada vencedora da batalha haacute muito tempo e consequentemente de que a histoacuteria desse debate foi escrita desse ponto de vista Como nos aponta Jarratt (1991) uma teoacuterica da Retoacuterica eacute difiacutecil entender os primeiros retoacutericos os Sofis-tas atraveacutes das lentes dos filoacutesofos antigos em particular Platatildeo e Aristoacuteteles com quem a histoacuteria alinhou-se por dois milecircnios (JARRATT 1991) A histoacuteria recente tem sido mais gentil com a Retoacuterica em parte graccedilas a intelectuais como Jarratt Assim tornou-se possiacutevel entendecirc-la em outros termos que os impostos pela Fi-losofia Isso natildeo significa dizer que as tensotildees desapareceram Elas simplesmente foram reconfiguradas dentro do campo da Retoacuterica Uma manifestaccedilatildeo particular dessa batalha por exemplo pode ser vislumbrada na tentativa de ldquoprofissionalizarrdquo a disciplina Retoacuterica de transformaacute-la em uma ciecircncia social capaz de apresentar se natildeo demonstraccedilotildees irrefutaacuteveis conclusotildees confiaacuteveis sobre o mundo baseadas em dados e de tornar-se mais ldquoautocircnomardquo ou menos parasitaacuteria de outras disci-plinas A resistecircncia a essas tentativas envolve a jaacute mencionada observaccedilatildeo de filoacutesofos contemporacircneos ndash em sua maioria rejeitam as tradiccedilotildees filosoacuteficas que demonizam a Retoacuterica ndash que casam perspectivas pragmaacuteticas e construtivistas como uma atividade transdisciplinar e sem apologias

A tensatildeo entre Filosofia e Retoacuterica ou entre demonstraccedilatildeo e persuasatildeo agraves vezes eacute caracterizada como uma tensatildeo entre verdade e efeito Em termos mais simples eacute o conflito entre aqueles que veem a verdade como independente da per-cepccedilatildeo humana e aqueles que entendem a anuecircncia da audiecircncia como condiccedilatildeo necessaacuteria para tornar algo verdadeiro Em nossa discussatildeo sobre os artigos de Fish e Leo cujo meta-argumento eacute com efeito uma retomada contemporacircnea da disputa aqui considerada cunhamos a visatildeo antiga como ldquoabsolutistardquo no sentido de que era natildeo contingente e natildeo relacional O filoacutesofo Hans Blumenberg (1987) rejeita essa visatildeo nos seguintes termos

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No relacionamento dos gregos com os gregos diz Isoacutecrates o meio apro-priado eacute a persuasatildeo enquanto no trato com os baacuterbaros eacute o uso da for-ccedila Essa diferenccedila eacute compreendida como sendo entre linguagem e edu-caccedilatildeo porque a persuasatildeo pressupotildee a partilha de horizontes alusotildees a materiais prototiacutepicos e uma orientaccedilatildeo providenciada por metaacuteforas e siacutemiles A antiacutetese entre verdade e efeito eacute superficial porque o efeito retoacuterico natildeo eacute uma alternativa a ser escolhida em oposiccedilatildeo a um insight que pode ser tido mas uma alternativa agrave evidecircncia definitiva que natildeo pode ser obtida que ainda natildeo pode ser obtida ou que em nenhuma me-dida pode ser obtida aqui e agora (BLUMENBERG 1987 p 435-6)

O que os filoacutesofos sugeriram por seacuteculos ser possiacutevel eacute justamente o que Blu-menberg (1987) estaacute aqui dizendo ser impossiacutevel ndash evidecircncias definitivas para a veracidade de asserccedilotildees no aqui e agora A recusa de Blumenberg (1987) em separar verdade de efeito aponta para uma aceitaccedilatildeo do fato de que como coloca Burke (1969) vivemos na ldquoBabel depois a quedardquo onde a uacutenica alternativa agrave forccedila eacute estabelecer uma identificaccedilatildeo entre falantes uma condiccedilatildeo que eacute conquistada atraveacutes de consideraacutevel exerciacutecio e astuacutecia graccedilas a todas as barreiras impostas pela linguagem pelo gecircnero pelas classes etc que sempre existiram

Tanto para Blumenberg (1987) quanto para Burke (1969) apenas quando falantes partilham um horizonte a conversaccedilatildeo e ainda menos a persuasatildeo e a identificaccedilatildeo se tornam possiacuteveis Em um mundo poacutes-lapsaacuterio (depois do lapso da entrada do pecado) a verdade eacute social Algueacutem eacute certamente livre para afirmar que as ldquoevidecircncias definitivasrdquo para seu ponto de vista existem fora da consciecircncia ou do entendimento das almas perdidas com quem se conversa mas essa afirmaccedilatildeo em si natildeo carrega a forccedila da disposiccedilatildeo dos outros em concordar Uma verdade sem efeito no mundo natildeo eacute bem uma verdade Um nuacutemero consideraacutevel de debates contemporacircneos confirma a inutilidade de se apelar para fontes natildeo autorizadas pelos objetivos do argumento de algueacutem O debate entre criacionistas (ou os pro-ponentes do intelligent design ndash projeto inteligente) e evolucionistas por exemplo

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eacute um choque entre linguagens incomensuraacuteveis e entre horizontes incongruen-tes Natildeo apenas a resoluccedilatildeo da questatildeo eacute inimaginaacutevel como uma conversaccedilatildeo significativa entre esses adversaacuterios eacute de difiacutecil visualizaccedilatildeo Se a minha verdade baseada em uma teoria coerente apoiada durante um seacuteculo por dados empiacutericos ou por uma poesia do texto sagrado ela natildeo seraacute vista como verdade se a audiecircn-cia natildeo partilhar desse mesmo horizonte Ateacute as provas geomeacutetricas podem ser ldquodemonstradasrdquo apenas se os axiomas nas quais se apoiam estejam garantidos A natureza incomensuraacutevel das vaacuterias verdades e vocabulaacuterios tem dado origem recentemente natildeo apenas a debates puacuteblicos rancorosos e inuacuteteis mas a violentos e sanguinaacuterios conflitos entre sistemas de crenccedila incomensuraacuteveis

O primeiro grande nome da perspectiva agrave que Blumenberg e Burke se opotildeem aqui foi Platatildeo que obviamente criticou a mais antiga escola retoacuterica a dos so-fistas Ironicamente a postura de Platatildeo em relaccedilatildeo aos filoacutesofos estaacute articulada a uma seacuterie de conjuntos de peccedilas oratoacuterias nas quais ele propaga uma gama de praacuteticas retoacutericas um pouco semelhantes agraves de seus adversaacuterios Para piorar as coisas as praacuteticas de Platatildeo satildeo menos respeitaacuteveis do que as dos filoacutesofos alvos de sua criacutetica Em particular a retoacuterica de Platatildeo eacute marcadamente assimeacutetrica para adotarmos um termo cunhado por Conley (1990) na medida em que o locutor Soacutecrates eacute ativo versado e possui uma agenda enquanto o interlocutor especial-mente os poetas ou os sofistas satildeo tipicamente passivos ingecircnuos e prenhes de conhecimento falso De maneira claramente ostensiva o Soacutecrates de Platatildeo possui no coraccedilatildeo os interesses mais nobres de seus interlocutores e o objetivo de suas perguntas eacute educaacute-los salvaacute-los dos erros de percurso tal como uma parteira que arranca a verdade de suas consciecircncias agastadas Em teoria Platatildeo natildeo possui um modelo de sua audiecircncia e eacute o mais puro dos persuasores Mesmo assim ele natildeo consegue persuadir sua audiecircncia a reconhecer as verdades que vatildeo aleacutem de seus horizontes A conversa natildeo pode transportar sua audiecircncia para as verdades inquestionaacuteveis que ele deseja compartilhar Ele precisa recorrer ao mesmo tipo de praacuteticas manipuladoras que ele atribui a seus adversaacuterios A genialidade de Platatildeo

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natildeo estaacute na habilidade em compor argumentos logicamente hermeacuteticos mas em sua inigualaacutevel habilidade de disfarccedilar sua retoacuterica assimeacutetrica como diaacutelogo

Em oposiccedilatildeo agrave dependecircncia de Platatildeo a retoacuterica assimeacutetrica atribui-se a Protaacutegoras o desenvolvimento de uma forma de ldquoantiloacutegicardquo que torna o diaacutelogo aberto o que permite que as crenccedilas (doxa) de cada locutor exerccedila um papel na resoluccedilatildeo de um problema

A visatildeo de Protaacutegoras parece ser bilateral no sentido de que os dois la-dos de uma questatildeo devem exercer pressatildeo umas sobre as outras para que se atinja uma resoluccedilatildeo agrave questatildeo em voga Como nenhum lado eacute privilegiado a priori e ambos estatildeo fundamentados na doxa dos ou-vintes podemos caracterizar a relaccedilatildeo entre orador e audiecircncia como ldquosimeacutetricardquo (CONLEY 1990 p 6-7)

A manipulaccedilatildeo de Platatildeo dessa forma de diaacutelogo deixa clara a dificuldade de conciliar uma feacute absolutista em uma crenccedila e um diaacutelogo genuiacuteno Caso sejam privilegiadas a priori algumas crenccedilas em detrimento de outras antes do iniacutecio de um diaacutelogo eacute impossiacutevel garantir que essas crenccedilas transcendentais possam ser alteradas no curso desse diaacutelogo A uacutenica maneira pela qual um diaacutelogo pode subs-tituir crenccedilas privilegiadas a priori por outras eacute criar um tipo de barreira Todas essas questotildees nos levam de volta ao debate entre Fish e Leo do capiacutetulo anterior Apenas os ldquorelativistasrdquo e os inclinados perigosamente aos ldquomulticulturalistasrdquo podem acreditar na possibilidade de que um diaacutelogo genuiacuteno entre adversaacuterios possa ser um evento positivo ou na de algueacutem poderia mudar de opiniatildeo nesse tipo de discussatildeo O fato de que o ldquoabsolutismordquo na versatildeo moderna do debate entre platocircnicos e sofistas natildeo defende universais absolutos e especiacuteficos eacute sintomaacutetico da diferenccedila entre o mundo de nossos antepassados e o nosso

Os absolutismos de hoje como nota de maneira irocircnica o criacutetico americano M H Abrams carecem de absolutos Como Leo a maioria dos platocircnicos recentes tende a apoiar-se em lamentaccedilotildees como principal veiacuteculo de persuasatildeo Ao focar o

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ataque ndash e a atenccedilatildeo da audiecircncia ndash em tudo que deu errado desde 1968 quando os relativistas tomaram conta do asilo Leo e sua personagem podem evitar referecircn-cias a outros absolutos aleacutem dos que desapareceram O tratamento desses valores universais eacute muito mais um exerciacutecio nostaacutelgico do que uma anaacutelise

Impliacutecitas agrave oposiccedilatildeo entre os antigos filoacutesofos e retoacutericos e suas versotildees atuais estatildeo diferentes assunccedilotildees sobre as finalidades da razatildeo A rejeiccedilatildeo pelos antigos filoacutesofos do efeito como um aspecto da verdade eacute parte da mais significativa diferenccedila entre as duas abordagens O fim da razatildeo para a filosofia eacute algum tipo de descoberta ndash da verdade da realidade ou do bem ndash que seraacute entatildeo conhecida e partilhaacutevel Por outro lado para a retoacuterica o fim da razatildeo eacute uma escolha eacute ter a certeza de que a escolha pode nos aproximar da verdade da realidade ou do bem (e se alguns dos trecircs eacute privilegiado pela retoacuterica seria o bem como indicamos) mas eacute o ato em si executado em um lugar e hora especiacutefica e com um resultado par-ticular e natildeo o conhecimento em si que motiva o processo De fato como propotildee Blumenberg (1987 p 441) a situaccedilatildeo retoacuterica eacute como ldquo[] uma (falta) de provas e (eacute) compelido agrave accedilatildeordquo ao contraacuterio de Platatildeo que ldquoinstitucionalizourdquo a noccedilatildeo de que o ldquoconhecimento eacute a virtuderdquo desse modo tornando ldquo[] o que eacute evidente em norma de comportamentordquo (BLUMENBERG 1987 p 431) Agrave luz de Platatildeo quando algueacutem deteacutem o conhecimento correto eacute compelido a accedilotildees virtuosas enquanto os retoacutericos entendem que a virtude deve ser compelida outra vez em cada situaccedilatildeo nova usando informaccedilotildees incompletas e meios especiacuteficos para essa situaccedilatildeo

Uma das principais vantagens dos filoacutesofos ao promover o conhecimento em detrimento da accedilatildeo jaacute que o fim da razatildeo em muitos casos reduz as escolhas a duas eacute o fato de que a escolha recomendaacutevel se aplica a todas as situaccedilotildees Como aponta Crosswhite (1996 p 36) esse processo pode gerar uma ideia redutora dos produtos da retoacuterica ldquoA necessidade da accedilatildeo de onde vem a necessidade de uma escolha agraves vezes forccedila a uma bivalecircncia ndash isto eacute demanda um sim ou natildeo agraves reivindicaccedilotildees colocadas nos argumentos ndash mas isso natildeo deve ser confundido com as demandas da razatildeordquo O que a razatildeo demanda e o que a retoacuterica eacute destinada a

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produzir eacute um campo amplo de escolhas selecionaacuteveis e um senso de criteacuterio claro e transparente para realizar a escolha Isso ocorre porque os filoacutesofos natildeo pre-cisam necessariamente agir sobre o conhecimento descoberto porque o maacuteximo que eles se aproximam do par escolha-accedilatildeo eacute a traduccedilatildeo ocasional de princiacutepios em regras (caso da eacutetica aplicada) eles estatildeo a salvo do consideraacutevel luto que vem apoacutes as escolhas errocircneas Enquanto isso a Histoacuteria apresenta diversos casos de argumentos retoricamente brilhantes e vencedores que levaram a consequecircncias malsucedidas natildeo intencionais ou ateacute mesmo desastrosas

Da perspectiva dos retoacutericos filoacutesofos como Platatildeo rotineiramente despreza a injunccedilatildeo proverbial que natildeo permite o perfeito ser inimigo do bem Enquanto os filoacutesofos tradicionais conjuraram respostas perfeitas agraves perguntas mais pro-fundas da vida eles precisaram colocar o peacute fora da histoacuteria para consegui-lo e suas respostas raramente satildeo retomadas de maneira intacta Os retoacutericos por outro lado sempre se restringiram a respostas imperfeitas poreacutem viaacuteveis para o aqui e agora Ao recusar o passo em direccedilatildeo a um passado dourado um futuro transcendente ou a algum paradigma novo e inimaginaacutevel os retoacutericos tornam a si proacuteprios uacuteteis agrave esfera puacuteblica

De fato muitos retoacutericos antigos eram figuras puacuteblicas dignas de nota que arguiram em casos legais ajudaram a passar leis e a definir os valores da proacutepria sociedade O soacutelido sistema dos filoacutesofos antigos ofereceu frameworks compreensi-vos e capazes de explicar inteiramente os sentidos do mundo e antecipou todas as perguntas importantes sobre a vida apesar de raramente apresentarem impacto significativo (com exceccedilatildeo poreacutem dos filoacutesofos morais) das atividades cotidianas do mundo em que viviam Hoje em dia poucos filoacutesofos arriscam-se a oferecer teorias unificadas das coisas Mas isso natildeo significa que seu papel tradicional no debate entre filosofia e retoacuterica desapareceu Hoje em dia esse papel eacute preenchido por uma classe de pensadores um subconjunto de absolutistas agraves vezes referidos como ideoacutelogos

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Enquanto ldquoideoacutelogordquo eacute um termo muitas vezes usado para designar uma pessoa radical tendenciosa em oposiccedilatildeo a uma pessoa racional desprovida de caracte-riacutesticas subjetivistas empregamos esse termo de maneira mais restrita Noacutes natildeo equacionamos racionalidade com objetividade e admitimos que todos possuem preconceitos pontos de vista e crenccedilas que constroem e suas percepccedilotildees ldquoUma maneira de verrdquo como nos lembra Burke (1984 p 49) ldquo[] eacute tambeacutem uma maneira de natildeo verrdquo Tambeacutem admitimos que nossas crenccedilas e assunccedilotildees satildeo corrigiacuteveis que elas podem e iratildeo mudar e que agraves vezes uma mudanccedila na crenccedila eacute um epi-fenocircmeno que segue uma mudanccedila na experiecircncia outras vezes eacute um resultado previsiacutevel de uma busca disciplinada e intencional de novas perspectivas ou de evidecircncias de provas e de intercacircmbio com os outros

Assumimos que a uacuteltima possibilidade representa uma condiccedilatildeo necessaacuteria agrave retoacuterica Tambeacutem nos juntamos a Aristoacuteteles ao admitirmos que eacute mais faacutecil mudar as mentes aos poucos e que a maneira mais praacutetica de mover as pessoas em direccedilatildeo a crenccedilas natildeo familiares eacute atraveacutes de crenccedilas familiares

Isto posto tambeacutem admitimos a existecircncia daqueles que deteacutem firmemente suas proacuteprias crenccedilas e satildeo tatildeo resistentes agrave mudanccedila que merecem uma de-signaccedilatildeo especial Em casos extremos podem ser conhecidos como fanaacuteticos No entanto dentro do esquema ordinaacuterio das coisas o termo ideoacutelogo parece bastante aplicaacutevel Os ideoacutelogos detecircm com notaacutevel tenacidade um bocado de ideias suficientes para explicar exaustivamente algum aspecto do mundo ou uma semente de uma explicaccedilatildeo universal Eles satildeo raramente afetados por ar-gumentos a que se opotildeem ou por evidecircncias que invalidam suas crenccedilas Face a fatos pouco cooperativos ou a contra-argumentos fatais eles podem optar por descaracterizar ou ignorar a oposiccedilatildeo Enquanto aceitam a remota possibilidade de que suas crenccedilas possam ser em um momento posterior estremecidas o ocircnus da prova imposto aos criacuteticos eacute quase inalcanccedilaacutevel A crenccedila em Deus (o deles natildeo o seu) no Livre Mercado no Indecidiacutevel ou no Novo Paradigma eacute completa e quaisquer consequecircncias maleacuteficas que possam resultar do agir em nome de sua

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forccedila-motriz satildeo postas de lados ou racionalizadas Eles enxergam quem prati-ca a ldquoantiloacutegicardquo e promovem a retoacuterica simeacutetrica como fracos e perigosamente vulneraacuteveis a ideias que ameaccedilam o nosso ndash vale dizer o deles ndash estilo de vida

Eacute por isso que ensaiar alguns dos principais argumentos de Platatildeo contra a retoacuterica prova ser uma importante preparaccedilatildeo para o debate com os ideoacutelogos de hoje e para antecipar argumentos que nossos estudantes incorporaram das inuacutemeras e bem divulgadas ideologias disponiacuteveis hoje em dia no mercado de ideias Enquanto alguns dos ideoacutelogos mais poderosos da atualidade defendem suas convicccedilotildees com a mesma sinceridade que Platatildeo usava ao defender as suas outros criaram nichos lucrativos em mercados midiaacuteticos ao se tornarem o que designamos ldquoideo-treinadoresrdquo (ideo-trainers) oradores profissionais que fazem declaraccedilotildees rigorosas geralmente extravagantes mais uacuteteis para a venda de li-vros e para ganhar tempo de exposiccedilatildeo na miacutedia do que para expor uma posiccedilatildeo legiacutetima ou ateacute mesmo coerente Nos anos recentes com o crescimento de canais pagos de notiacutecias e blogs de Internet a linha que separa entretenimento e notiacutecia quase desapareceu transformando em estrelas pessoas que atendem aos anseios de determinados grupos O tipo de ideoacutelogos artificiais que emergem nesse mer-cado e os diferentes crentes verdadeiros que operam principalmente no mercado impresso oferecem um modelo de argumento profundamente assimeacutetrico para nossos estudantes Por isso dedicar-se agrave antiga habilidade da ldquoantiloacutegicardquo ou dia-leacutetica pode ser uma habilidade crucial de sobrevivecircncia

Uma figura da retoacuterica antiga a quem vale a pena dedicar um pouco mais de espaccedilo na nossa histoacuteria eacute Aristoacuteteles Pode-se alegar que tudo o que eacute ne-cessaacuterio agrave compreensatildeo do argumento estaacute em Aristoacuteteles O resto eacute nota de rodapeacute Embora nossa admiraccedilatildeo por esse pensador seja enorme reconhecemos a necessidade de ldquodar um descontordquo ao tratamento aristoteacutelico do argumento para os estudantes de hoje em dia Aleacutem disso achamos que um bom nuacutemero de intelectuais recentes citados neste capiacutetulo fez exatamente isto expandiram a compreensatildeo aristoteacutelica sobre o argumento deixando de lado alguns de seus

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julgamentos pontuais sobre a audiecircncia e revendo suas ideias afim de dar conta de perspectivas sobre o efeito da miacutedia na comunicaccedilatildeo e sobre o papel ativo que a linguagem desempenha na compreensatildeo

Aristoacuteteles transcende a eterna batalha entre filosofia e retoacuterica e torna a retoacuterica uma ferramenta respeitaacutevel embora de segundo niacutevel para realizar nos-sos trabalhos sobre o mundo Ele eacute o primeiro grande sistematizador da retoacuterica o primeiro a oferecer uma anaacutelise profunda de sua dinacircmica bem como sobre a taxonomia de seus elementos Evita tambeacutem o problema crocircnico do filoacutesofo de permitir a busca pela perfeiccedilatildeo ndash representada pela ciecircncia e pela filosofia ndash para esconder a busca da retoacuterica pelo que eacute uacutetil Cria um espaccedilo intelectual para a retoacuterica apontando para o reconhecimento de verdades provaacuteveis e para o reconhecimento do impacto das circunstacircncias sobre a verdade Ele deixa claro ainda que o maior poder da retoacuterica natildeo reside apenas na concepccedilatildeo dos argumentos vencedores mas tambeacutem na capacidade de ldquose enxergar os meios de persuasatildeo disponiacuteveisrdquo Um elemento importante dessa capacidade reside na habilidade de argumentar de maneira persuasiva em qualquer um dos lados de uma discussatildeo Natildeo que isso seja um ensinamento jaacute que natildeo se deve persuadir sobre o que estaacute aviltado mas para que natildeo nos escape o real estado de coisas e para que possamos ser capazes de evitar que outra pessoa use o discurso de forma injusta (Retoacuterica Livro I)

Aristoacuteteles fez tambeacutem do estudo da audiecircncia uma ciecircncia rudimentar En-quanto sua psicologia da audiecircncia atinge provavelmente um leitor contemporacircneo imperfeito e estereotipado a precursora da ldquopsicologia dos humoresrdquo ele define um caso claro e convincente sobre a importacircncia de se estabelecer uma base comum com a audiecircncia considerando suas crenccedilas e convicccedilotildees Quaisquer que sejam as limitaccedilotildees de visatildeo de Aristoacuteteles sobre a psicologia da audiecircncia seu desejo em tomar a audiecircncia como elemento relevante representa um grande avanccedilo em relaccedilatildeo agrave posiccedilatildeo de Platatildeo

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Aristoacuteteles portanto privilegiou a arte da dialeacutetica e da demonstraccedilatildeo sobre a arte da persuasatildeo e foi consideravelmente menos igualitaacuterio do que boa parte dos sofistas Ele tambeacutem suspeitava das dimensotildees emocionais e natildeo racionais da verdade Parece que ele partilhou da desconfianccedila popular da tendecircncia dos sofistas de que ldquotornar-se fraco parece ser a melhor causardquo (Retoacuterica Livro II) Nesse uacuteltimo caso ele claramente tinha em mente o ldquoequivocadordquo uso da antiloacutegica pelos sofistas que apoacutes argumentar de maneira persuasiva em qualquer um dos lados de uma discussatildeo elege o lado mais fraco porque serve a seus interesses natildeo aos da verdade Poreacutem a quem cabe julgar qual eacute o lado mais forte e o mais fraco Evidentemente qualquer argumento que frustre ou enfraqueccedila os nossos nos pareceraacute mais fraco O argumento de Aristoacuteteles nesse ponto pode ser circular ele presume conhecer o que pode apenas ser determinado ao testar os argumentos de um lado contra o outro Deixando de lado alguns pontos fracos de Aristoacuteteles no tocante aos sofistas dedicamos nossa atenccedilatildeo a algumas das razotildees pelas quais ele continua importante e ainda mais agrave adaptaccedilatildeo do seu pensamento ao ensino do argumento na atualidade

A descrenccedila aristoteacutelica sobre os meios natildeo racionais de persuasatildeo eacute certa-mente compreensiacutevel no contexto de sua eacutepoca Assim como Platatildeo ele via a filo-sofia como um meio de substituir as formas retroacutegradas de raciociacutenio herdadas dos mitos gregos sob os quais os sofistas debruccedilaram-se enquanto fonte de doxa Como defendeu Jarratt (1991) a hostilidade dos filoacutesofos antigos em relaccedilatildeo agrave re-toacuterica pode ser entendida como uma hostilidade a qualquer forma natildeo racional de persuasatildeo Sobre Platatildeo por exemplo a autora aponta que ele temia ldquo[] a trans-ferecircncia poeacutetica de informaccedilatildeo cultural crucial por conta dos efeitos hipnoacuteticos e defendeu que ela abrigava uma absorccedilatildeo acriacutetica da ideologia dominanterdquo (1991 p xxi) Embora a oposiccedilatildeo de Aristoacuteteles tenha sido mais silenciosa que a de Platatildeo e embora ele certamente reconhecesse um lugar para as emoccedilotildees na argumentaccedilatildeo ndash desde que pelo menos essas emoccedilotildees sejam categorizadas de maneira apropriada e exaustiva e triadas em pares opostos com a virtude na posiccedilatildeo medial ndash parece

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que ele nunca esteve completamente confortaacutevel com a emoccedilatildeo e o espetaacuteculo duas das ferramentas primaacuterias dos bardos e sofistas e apenas hesitou a reconhecer explicitamente seu valor Ele inclui o espetaacuteculo nessas condiccedilotildees como um dos seis elementos do drama na Poeacutetica mas relega a ele a menor importacircncia entre esses elementos incluindo-o mais como trabalho do operador de palco do que como arte do poeta Aleacutem disso discorda de quem atribui mais valor ao espetaacuteculo do que ao funcionamento interno da trama na criaccedilatildeo de efeitos dramaacuteticos

Na Retoacuterica ele atribui aos autores de manuais isto eacute os sofistas a ecircnfase demasiada na retoacuterica forense ou de tribunal ldquo[] ataque verbal a prece a raiva e outras emoccedilotildees da alma natildeo estatildeo relacionadas ao fato mas satildeo apelos ao juacuterirdquo (Retoacuterica Livro I) Ao contraacuterio propotildee maior ecircnfase sobre a retoacuterica deliberativa com seus apelos mais racionais Impliacutecita agrave criacutetica de Aristoacuteteles ao espetaacuteculo e agrave emoccedilatildeo estaacute a desconfianccedila sobre as opiniotildees populares desconfianccedila potenciali-zada por sua tendecircncia nas palavras de Burke (1969 p 64) em ver a ldquo[] audiecircncia como algo puramente dadordquo ao inveacutes de em arte uma construccedilatildeo do orador De modo particular ele lembra em diversos momentos as habilidades limitadas desse tipo de audiecircncia de compreender cadeias complexas de raciociacutenio

O segredo para ajudar a superar a descrenccedila de Aristoacuteteles com o natildeo racional eacute olhar para aleacutem da tendecircncia de desprezar a opiniatildeo puacuteblica Enquanto a audiecircn-cia for associada a pessoas preconceituosas e emotivas as opiniotildees natildeo racionais na construccedilatildeo do argumento seratildeo vistas com ressalva Os estudantes precisam ser expostos a um entendimento mais complexo de audiecircncia De modo particular precisam entender que a audiecircncia como vaacuterios teoacutericos reconhecem eacute ao mesmo tempo direcionada suplicada servida e criada Por isso gostamos de dar iniacutecio a nossas aulas desde o primeiro dia ressaltando a metaacutefora do argumento como uma conversa e o processo de invenccedilatildeo colaborativa Essa noccedilatildeo da plasticidade da audiecircncia como conceito puramente intelectual que pode ser difiacutecil para os estudantes compreender eacute mais acessiacutevel no niacutevel da interaccedilatildeo entre pares

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Um segundo elemento uacutetil das ideias de Aristoacuteteles que precisa ser destacado em sala de aula diz respeito agraves situaccedilotildees de uso do argumento Parece que ele ima-gina um nuacutemero limitado de eventos e ocasiotildees em que o argumento eacute utilizado (sessotildees legislativas tribunais ocasiotildees solenes) mas o argumento atualmente estaacute muito mais difundido Pode-se ter contato com ele atraveacutes da televisatildeo do raacutedio dos jornais impressos ou on line Ele pode durar um longo periacuteodo de tempo e pode se consolidar aos poucos atraveacutes de chavotildees reacuteplicas e anuacutencios de ataque e contra-ataques Agraves vezes os argumentos na esfera puacuteblica tomam formas fluidas e expressam apoio ou criacutetica a uma posiccedilatildeo fazendo alusatildeo a outra e defendem uma alternativa sem designar a outra agrave qual ela se opotildee Os argumentos polecircmicos natildeo evoluem como evolui uma metaacutestase ou os interessados nas disputas dos talk shows nos noticiaacuterios blogs propagandas editoriais no vazamento de insinuaccedilotildees maldosas e assim por diante que oferecem novas nem sempre confiaacuteveis revela-ccedilotildees ldquofactuaisrdquo e linhas de raciociacutenio Geralmente esses tipos de argumento incluem mais de duas posiccedilotildees possiacuteveis agraves vezes mais de duas Nesse sentido considera-mos uacutetil que os estudantes conservem jornais nos quais observem controveacutersias em andamento em vez de se concentrarem estritamente em argumentos escritos descontextualizados Eacute interessante a propoacutesito observar como novas linhas de argumentaccedilatildeo que aparecem em seccedilotildees de revistas e editoriais satildeo retiradas da Internet e reproduzidas sem a identificaccedilatildeo da fonte Um dos nossos estudantes deu um exemplo recente a esse respeito Ele observou que a controveacutersia sobre a guerra no Iraque foi comparada ao Vietnatilde ndash que natildeo eacute um fato comumente evocado pelos apoiadores da guerra ndash nos argumentos de diversos conservadores proacute-guerra que apontaram o colapso quase imediato do exeacutercito Sul-Vietnamita apoacutes a saiacuteda dos americanos Como todas as analogias essa sugere possibilidades muacuteltiplas de conclusatildeo incluindo a de que mesmo se permanececircssemos no Iraque ou no Viet-natilde ou mesmo se perdecircssemos todas as vidas como as que perdemos ainda assim isso natildeo garantiria a soberania do governo iraquiano Os apoiadores da guerra de

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maneira unacircnime rejeitaram essa possibilidade ao favorecer a sugestatildeo de que a retirada das tropas seria responsaacutevel por todas as cataacutestrofes ocorridas no Iraque

Por fim a argumentaccedilatildeo de hoje em dia se comparado ao da eacutepoca de Aris-toacuteteles debruccedila-se mais fortemente sobre elementos visuais Particularmente no domiacutenio da publicidade e do marketing o apelo argumentativo pode ser puramen-te visual Em muitos domiacutenios o suporte visual provecirc um contexto criacutetico para a mensagem textual Em parte eacute evidente isso tudo tem a ver com o ambiente alta-mente midiaacutetico em que vivemos Raramente presenciamos um debate ou ouvimos um argumento de primeira matildeo Estamos muito mais inclinados a apreender as coisas atraveacutes de uma maneira que trata e filtra intencionalmente a mensagem Algueacutem pode passar um dia inteiro no Youtube e ver incontaacuteveis postagens sobre controveacutersias atuais versotildees editadas de viacutedeos de figuras puacuteblicas que apresen-tam argumentos Esses viacutedeos amadores podem ser ao mesmo tempo partidaacuterios e divertidos Outro motivo pelo qual o visual suplanta o textual na apresentaccedilatildeo do argumento atualmente tem a ver com um fenocircmeno jaacute percebido por Aristoacutete-les os argumentos que natildeo parecem ser tecircm maior chance de passarem desper-cebidos por nossos filtros cognitivos do que os apelos racionais expliacutecitos Esses argumentos podem apoiar-se substancial ou inteiramente no proacuteprio ldquoespetaacuteculordquo criticado por Aristoacuteteles no cenaacuterio no pano de fundo nos recursos visuais nos acircngulos da cacircmera e assim por diante e oferecem pouca ou nenhuma proposiccedilatildeo argumentativa A maioria dos manuais atuais sobre argumento dedica alguma atenccedilatildeo aos seus elementos visuais particularmente na propaganda impressa

Assim recomendamos fortemente a dedicaccedilatildeo de tempo da aula para discutir e aplicar algumas dessas liccedilotildees Dito isso o vocabulaacuterio especializado necessaacuterio agrave anaacutelise seacuteria dos argumentos visuais em suas diferentes modalidades eacute tatildeo grandioso que nas aulas de escrita focadas na argumentaccedilatildeo podemos esperar fazer um pouco mais que sensibilizar os estudantes para as dimensotildees visuais dos argumentos

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Em suma a retoacuterica de Aristoacuteteles permanece como uma excelente fonte para o entendimento da produccedilatildeo de textos e discursos persuasivos embora ofereccedila pouca ajuda para compreender como os eventos e os comportamentos natildeo pro-posicionais funcionam de forma persuasiva Aristoacuteteles privilegia os elementos racionais ocasionais e textuais da argumentaccedilatildeo e certamente esses elementos continuam importantes para qualquer discussatildeo contemporacircnea sobre persuasatildeo ndash em detrimento das dimensotildees visuais midiaacuteticas e natildeo racionais Se considerar-mos o assunto a partir da proacutepria terminologia de Aristoacuteteles (Retoacuterica Livro II) o equiliacutebrio entre os trecircs modos ldquoartiacutesticosrdquo de persuasatildeo (em oposiccedilatildeo aos modos natildeo artiacutesticos como a tortura) mudou radicalmente nos uacuteltimos anos do logos para o ethos e para o pathos Na apresentaccedilatildeo aristoteacutelica sobre a forma como interagem esses modos o ethos ou o caraacuteter do orador ndash a situaccedilatildeo retoacuterica eacute invariavelmente oral para Aristoacuteteles ndash eacute empregado para a elaboraccedilatildeo das observaccedilotildees da forma mais clara possiacutevel e desse modo chamar a atenccedilatildeo da audiecircncia Ao despertar as emoccedilotildees da audiecircncia (pathos) o orador possibilita a accedilatildeo ou uma boa recepccedilatildeo das decisotildees dessa audiecircncia O logos ou o argumento loacutegico eacute por sua vez empre-gado para tornar provaacutevel a causa do orador e as alternativas improvaacuteveis Ethos e pathos cumprem aqui uma funccedilatildeo importante mas suplementar nesse esquema

O cerne da questatildeo eacute a concepccedilatildeo da estrutura argumentativa e a seleccedilatildeo das razotildees e evidecircncias que iratildeo ter maior peso para a audiecircncia O logos atua de ma-neira central na retoacuterica de Aristoacuteteles assim como o enredo na sua poeacutetica por razotildees similares Eacute a alma da peccedila a forccedila-motriz do argumento No entanto como hoje em dia o ethos pode ser derivado da celebridade assim como da experiecircncia ou da virtuosidade linguiacutestica e como o pathos pode ser evocado por uma muacutesica ou uma imagem forte a persuasatildeo pode ser alcanccedilada com muito menos esforccedilo pelo logos como nos tempos de Aristoacuteteles Assim os estudantes precisam estar mais atentos a essas dimensotildees natildeo racionais do argumento

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A construccedilatildeo do argumento

o problema do engessamento da retoacuteriCa

A eterna batalha entre Retoacuterica e Filosofia apresenta implicaccedilotildees importantes para o nosso segundo tema da histoacuteria da Retoacuterica a transformaccedilatildeo recorrente dos poderes imaginativos da Retoacuterica em foacutermulas e sistemas riacutegidos A questatildeo colocada pelo engessamento contiacutenuo da Retoacuterica eacute a seguinte em que medida a Retoacuterica pode ser metoacutedica sem se tornar inerte Burke (1984 p 225) considera essa questatildeo agrave luz da ldquoburocratizaccedilatildeo da imaginaccedilatildeordquo entendida como um ldquopro-cesso histoacuterico baacutesicordquo que pode apenas ser desacelerado mas nunca paralisado ou superado Esse processo emerge quando uma das possibilidades geradas por um princiacutepio ou insight eacute colocada de lado em detrimento de outras Eacute evidente que para qualquer possibilidade se tornar factual outras devem ser ignoradas ou me-nos exploradas Todos passamos por experiecircncias desse tipo Quando precisamos escolher uma pessoa com quem iremos ficar ou o que fazer isso nos forccedila a colocar de lado outras escolhas Se sonhos devem tornar-se realidade se as promessas dos poliacuteticos devem tornar-se poliacuteticas puacuteblicas se os projetos devem tornar-se insti-tuiccedilatildeo ou produtos se crenccedilas filosoacuteficas e religiosas devem tornar-se leis outras possibilidades devem ser superadas ou abandonadas Assim como toda maneira de ver eacute tambeacutem uma maneira de natildeo ver toda maneira de atualizar uma perspectiva eacute tambeacutem uma maneira de natildeo atualizar outra

No entanto por mais inevitaacutevel que seja esse processo ele pode com o tempo apresentar implicaccedilotildees negativas Ideias originais tornam-se gradualmente em ortodoxia e os sistemas que elas nos oferecem engendram hierarquias que definem e datildeo prioridades a elementos nela presentes de acordo com o princiacutepio originaacuterio

Eventualmente a hierarquia muitas vezes problemaacutetica torna-se um peso burocraacutetico dedicada mais agrave autoperpetuaccedilatildeo do que agrave realizaccedilatildeo do princiacutepio de origem e agraves possibilidades sobre as quais a estrutura foi fundada Os que estatildeo no topo da burocracia reivindicam a ortodoxia como a posse de um tiacutetulo que lhes eacute proacuteprio e oferecem-se como personificaccedilatildeo do princiacutepio subordinante a tal ponto

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que ldquoos subprodutos natildeo intencionaisrdquo (BURKE 1984 p 226) de suas accedilotildees sobre-potildeem-se agraves gloriosas possibilidades que deram suporte ao princiacutepio originaacuterio Um exemplo claacutessico de burocratizaccedilatildeo diz respeito agrave inversatildeo da doutrina puritana da eleiccedilatildeo cujos sinais satildeo convertidos em causas e simultaneamente os ldquoeleitosrdquo quem quer que seja a empregam para herdar seus benefiacutecios tidos como presentes divinos enquanto o fracasso dos natildeo eleitos eacute atribuiacutedo agrave falta de piedade divina Um programa religioso destinado a encorajar a humildade e a abnegaccedilatildeo eacute assim transformado em apologia do status quo e um exerciacutecio insiacutepido de melhoria de posiccedilatildeo social A loacutegica baacutesica por traacutes dessa enganaccedilatildeo de trezentos anos ainda pode ser observada em argumentos presentes no discurso poliacutetico americano atual Como aponta Burke (1984) todos os sistemas designados para transformar ideais em accedilatildeo eventualmente atingem um ponto de rendimento decrescente quando a manutenccedilatildeo do status dentro do sistema torna-se a razatildeo de ser do proacuteprio sistema

Infelizmente as observaccedilotildees de Burke (1984) sobre a burocratizaccedilatildeo tornam--se verdade em todas as tentativas de sistematizaccedilatildeo ateacute mesmo em tentativas de sistematizar o entendimento retoacuterico Adotar uma metodologia da invenccedilatildeo significa ldquo[] que os desenvolvimentos satildeo treinados pela rotina Ciecircncia conhe-cimento eacute a burocratizaccedilatildeo do saberrdquo (BURKE 1984 p 228) A rotina para ser uacutetil deve apresentar um caraacuteter axiomaacutetico Ou nas palavras simples de Burke a rotina torna-se o ldquocaminho da roccedilardquo que foi ldquoconservado natildeo porque foi criticado avaliado e julgado como o melhor processo possiacutevel mas simplesmente porque nunca foi questionadordquo (BURKE 1984 p 228) Nem mesmo a metodologia de Burke estaacute excluiacuteda dessa criacutetica

Nossa foacutermula ldquoa perspectiva pela incongruecircnciardquo eacute uma ldquometodologia da invenccedilatildeordquo paralela em uma esfera puramente conceitual Ela buro-cratiza um recurso confinado a uma escolha de alguns de nossos pen-sadores ldquoreaisrdquo Ela torna a perspectiva barata e faacutecil (BURKE 1984 p 228-29)

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Embora esse movimento acarrete alguma deterioraccedilatildeo de ideias produzidas pelo meacutetodo tambeacutem resulta em ldquo[] um desenvolvimento correspondente na qualidade da sofisticaccedilatildeo popularrdquo (BURKE 1984 p 229) que para Burke (1984) justifica a mudanccedila Talvez o exemplo mais conhecido da metodologia desse au-tor em sala de aula de escrita eacute a difundida abordagem dramaacutetica na forma de pentaacutegono como um dispositivo heuriacutestico accedilatildeoato agente agecircncia propoacutesito cenaacuterio e agraves vezes atitude De nosso ponto de vista muitas tentativas de adaptar a abordagem dramaacutetica de Burke (1984) agraves aulas de escrita resultam em um mal uso das ideias e perda de conexatildeo com o contexto mais amplo no qual ela se ori-gina Dissociado do conceito de ratio (a relaccedilatildeo entre os conceitos do pentaacutegono) o sistema proposto por Burke funciona de maneira similar agraves perguntas tiacutepicas do lead no campo do jornalismo O que Quem Quando Onde Por quecirc e agraves ve-zes Como Poreacutem no final das contas cada professor deve pesar os ganhos com a compreensatildeo em oposiccedilatildeo agraves perdas com ldquosabedoriardquo na adoccedilatildeo de qualquer metodologia em sala de aula

Esse prefaacutecio estendido das ideias de Burke sobre o engessamento da retoacuterica tem por funccedilatildeo colocar o assunto em perspectiva jaacute que ele estaacute ausente quando o tema do meacutetodo eacute levantado no contexto do ensino do argumento No campo da escrita o processo pelo qual os insights satildeo convertidos em rotina e as heuriacutesticas em foacutermula eacute tipicamente visto como injustificado desnecessaacuterio e negativo A importacircncia de democratizar um recurso eacute consequentemente omitida e a mera presenccedila de uma rotina em um sistema levaraacute alguns a demonizaacute-la enquanto uma ldquocorrente tradicionalrdquo Para ser justo em nossa histoacuteria haacute uma abundacircncia de casos nos quais pedagogias desenhadas para ajudar iniciantes a dominar a arte da retoacuterica metamorfoseiam-se em sistemas que sufocam a imaginaccedilatildeo das pessoas deformam a prosa e afastam os assuntos que nos interessam

No entanto se natildeo aprendermos a tolerar um certo elemento de burocratiza-ccedilatildeo em nossas aulas corremos o risco de tornar a retoacuterica em uma arte elitista (e

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essencialmente incompreensiacutevel) dependente em grande parte do olhar aguccedilado de cada indiviacuteduo para a representaccedilatildeo ndash o que no seacuteculo XVII seria referido como ldquopreferecircnciardquo ndash ao inveacutes de uma maneira racional social e replicaacutevel de construir sentido O problema do engessamento ao cabo levanta questotildees fundamentais para o ensino do argumento incluindo a mais fundamental de todas o que de fato ensinamos quando ensinamos estudantes a produzir argumentos

Algumas evidecircncias desse engessamento jaacute aparecem nas referecircncias depre-ciativas aos primeiros manuais de retoacuterica precursores dos atuais livros didaacuteticos Apesar de parte dessa criacutetica ocorrer em funccedilatildeo do desdeacutem geral dos filoacutesofos pela retoacuterica uma parte dela parece ter meacuterito Depois de Aristoacuteteles de acordo com Kennedy (1999) a urgecircncia em codificar e sistematizar a Retoacuterica cresceu junto ao decliacutenio intelectual que atingiu o mundo antigo

A aceitaccedilatildeo de regras para a arte de respostas certas e erradas signifi-cou o iniacutecio de um processo de engessamento que sufocou toda a criati-vidade antiga A praacutetica dentro das artes foi controlada mais e mais por regras restritas O artista era cada vez mais um virtuoso exultante no jogo e nas regras O uacutenico lugar para o crescimento estava dentro das proacuteprias regras de modo que podemos encontrar a execuccedilatildeo dos temas desenhada nos primeiros manuais [] O desenvolvimento da retoacuterica em um sistema fechado foi preluacutedio para o conceito de vida e pensamen-to enquanto sistemas fechados (KENNEDY 1999 p 124)

Enquanto Aristoacuteteles elaborava os elementos da Retoacuterica explicava sua di-nacircmica e a situava no contexto de outras abordagens para o entendimento seus sucessores geralmente se contentavam com a enumeraccedilatildeo de elementos ignoran-do as preocupaccedilotildees mais importantes Por consequecircncia geraram terminologias elaboradas e cada vez mais distantes da linguagem cotidiana pouco aplicaacuteveis agraves preocupaccedilotildees praacuteticas enfatizadas pelos primeiros retoacutericos Tudo o que era necessaacuterio saber para argumentar com ecircxito eram as regras do argumento e as

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partes de um discurso persuasivo Cada caso era previsto pelas regras e catego-rias da retoacuterica enquanto as ldquocircunstacircncias mitigadas da vidardquo (KENNEDY 1999 p 267) eram ignoradas em prol do encaixe dos casos nas devidas categorias e do encontrar uma soluccedilatildeo ditada pela categoria Assim quando a Retoacuterica abandona as circunstacircncias mitigadas e particulares de uma situaccedilatildeo deixa de ser Retoacuterica em qualquer sentido vaacutelido

Em outras palavras esse foco que a Retoacuterica atribui agraves regras se daacute em funccedilatildeo da atenccedilatildeo agrave unicidade de cada situaccedilatildeo retoacuterica uma preocupaccedilatildeo que os pri-meiros gregos chamavam de kairos (oportunidade) O kairos era particularmente importante porque servia como ferramenta para resolver antinomias aparentes geradas pela abordagem antiloacutegica de compreensatildeo dos sofistas A propoacutesito da preocupaccedilatildeo de Goacutergias com o kairos Kennedy (1999 p 66) assinala ldquo[] qualquer problema posto envolve escolha ou compromisso entre duas antiacuteteses de modo que a consideraccedilatildeo do kairos isto eacute do tempo lugar e circunstacircncia [] pode resolver o dilema e levar agrave escolha da verdade relativa e agrave accedilatildeordquo Quando as leis e princiacute-pios (ou regras dos retoacutericos) se contradizem a loacutegica e os sistemas engessados deixam de ajudar a soluccedilatildeo do impasse As hierarquias cujos valores satildeo dados a priori natildeo poderatildeo ajudar a decidir qual regra legiacutetima entre duas ou mais eacute mais apropriada para um conjunto particular de circunstacircncias A menos que se possa tomar tais decisotildees natildeo se pode agir e a Retoacuterica torna-se uma atividade cerimo-nial virtualmente inuacutetil na esfera puacuteblica exceto enquanto forma degradada de entretenimento Algo que aprendemos a partir de praacuteticas derivadas das vaacuterias versotildees histoacutericas do problema do engessamento diz respeito ao entendimento de que a Retoacuterica eacute a ldquociecircncia das instacircncias particularesrdquo e de que ao cabo os meacutetodos devem acomodar as circunstacircncias

Nossa tendecircncia em esquecer a centralidade da circunstacircncia para o entendi-mento na Retoacuterica eacute literalmente visiacutevel em aulas de escrita haacute seacuteculos Qualquer um que tenha ensinado escrita na faculdade por mais de vinte anos iraacute reconhecer

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na pedagogia dos modelos tradicionais de escrita um resquiacutecio do ldquosistema fechadordquo da Retoacuterica que prevalece haacute mais de dois mil anos O argumento recebeu pouca atenccedilatildeo nesses cursos em grande parte porque a partir do momento em que se atribui as questotildees sobre letramento criacutetico a outros campos restou pouco material interessante para falar sobre persuasatildeo exceto dizer que a estrutura organiza-cional composta por cinco eacute a essecircncia de um bom argumento Os estudantes natildeo eram estimulados a trabalhar uns com os outros porque os modelos e estruturas dos cursos eram visuais e portanto prontamente disponiacuteveis para reproduccedilatildeo Aleacutem disso os aspectos inferiacuteveis da escrita da conversaccedilatildeo e todos os processos precedentes ao produto eram abolidos e o processo de criaccedilatildeo ficava reduzido a exerciacutecios de estruturaccedilatildeo de sentenccedilas

Para os professores de hoje a liccedilatildeo a ser aprendida a partir dessa batalha centenaacuteria tem duas faces De um lado devemos tomar grande cuidado em nossas aulas para salvaguardar contra a adoccedilatildeo ou o desenvolvimento de meacutetodos de en-sino que transformam a construccedilatildeo do argumento em processo muito ldquosimples e raacutepidordquo reduzindo-a a algo um pouco mais que o exerciacutecio de ldquoespremer e encaixarrdquo De outro lado devemos encontrar maneiras de materializar e tornar disponiacuteveis aos iniciantes as ferramentas para produzir insights e sentidos Se falharmos de um lado nossa disciplina continuaraacute como um formalismo inuacutetil se falharmos do outro nossos estudantes natildeo teratildeo acesso ao mais poderoso e menos misterioso ldquoinstrumento de sobrevivecircnciardquo disponiacutevel agraves pessoas comuns

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figuras-Chave da teoria moderna da argumentaccedilatildeo

Introduccedilatildeo a Kenneth Burke

A influecircncia de Kenneth Burke em nossa abordagem sobre o ensino do ar-gumento como jaacute deve estar claro eacute enorme Valemo-nos bastante de sua termi-nologia e de seu vocabulaacuterio agraves vezes peculiar para articular as ideias centrais em torno de teorias retoacutericas e pedagoacutegicas Burke eacute a lente que nos permite uma visatildeo tanto estreita quanto ampla do empreendimento retoacuterico e do papel da argumentaccedilatildeo nesse empreendimento Ele eacute podemos dizer o uacutenico desde Aris-toacuteteles a circunscrever o escopo da teoria retoacuterica dentro do contexto mais amplo das preocupaccedilotildees filosoacuteficas Ao mesmo tempo tambeacutem podemos dizer ele natildeo eacute um ldquosistematizadorrdquo filosoacutefico dada a inabalaacutevel atenccedilatildeo agrave relaccedilatildeo entre o geral e o particular a concepccedilatildeo e a percepccedilatildeo a cena e o ato

Essa eacute basicamente a maneira como temos usado suas ideias ateacute o momen-to Noacutes utilizamos o conceito de ldquoautointerferecircnciardquo para esboccedilar uma escala de praacuteticas argumentativas em curso focadas na audiecircncia de anunciantes e publi-citaacuterios centrados nos atos e de conselheiros que visam seus proacuteprios interesses Admitindo que no mundo haacute sempre a busca de vantagens em cada argumento a visatildeo geral de Burke sobre as praacuteticas argumentativas daacute menos importacircncia a conquista da audiecircncia do que a busca por verdades mais soacutelidas capazes de en-globar as posiccedilotildees inicialmente antagocircnicas e a guerra ldquopurificadardquo na dialeacutetica Reiteramos a ideia de que uma maneira de ver eacute tambeacutem uma maneira de natildeo ver e de que nossos instrumentos para ver satildeo terministic screens (enquadramento de termos) filtros linguiacutesticos que tornam a percepccedilatildeo e a avaliaccedilatildeo simultacircneas Eacute esse foco na linguagem enquanto instrumento do conhecimento que nos leva a colocaacute-lo ao lado de filoacutesofos chamados de ldquoedificantesrdquo por Rorty (1979 p 12)

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ou seja aqueles cujo foco eacute ldquo[] ajudar os leitores ou a sociedade como um todo a se livrar de vocabulaacuterios e atitudes ultrapassadas ao inveacutes de prover uma base para as intuiccedilotildees e costumes do presenterdquo

A principal questatildeo colocada por esses filoacutesofos edificantes eacute a de saber como evitar que nos tornemos viacutetimas da proacutepria linguagem da qual precisamos para ter acesso ao mundo Ou como o Lord de Burke lembra ao diabo no diaacutelogo con-clusivo de The Rhetoric of Religion (A Retoacuterica da Religiatildeo) ldquoOnde as pessoas satildeo implicadas qualquer terminologia eacute suspeita na medida em que ela natildeo permite a criacutetica dela mesmardquo (BURKE 1970 p 303) Para Burke (1970) o segredo para atingir esse tipo de autoconsciecircncia autocriacutetica eacute a sua abordagem dramaacutetica da compreensatildeo por ele alcunhada nos primeiros trabalhos como ldquoperspectiva por incongruecircnciardquo Hans Blumenberg (1987 p 439) refere-se a algo muito parecido com a perspectiva por incongruecircncia quando cita ldquo[] o procedimento de entender uma coisa por meio de outrardquo

Para Burke (1970) entender algo natildeo significa entender enquanto algo um membro de uma categoria mas significa ver uma coisa nos termos de outra Disso decorrem os ratios do seu meacutetodo chamado dramatismo De acordo com o drama-tismo haacute cinco (eventualmente seis) elementos que contribuem para um entendi-mento bem definido das motivaccedilotildees humanas ato cena agente meios propoacutesito e por uacuteltimo atitude (que eacute um ato incipiente) Ao analisar um discurso para entender por que algo foi feito ou por que deveria ser feito considerar-se idealmente todas as combinaccedilotildees possiacuteveis dos elementos ato-cena cena-ato agente-cena e assim por diante A relaccedilatildeo entre quaisquer dois elementos eacute expressa como um ratio Em qualquer ratio o segundo termo funciona como um tipo de parte essencial provi-soacuteria para o par Assim por exemplo em um ratio ato-cena o ato eacute entendido ldquonos termos dardquo cena que de fato eacute a lente atraveacutes da qual o ato eacute compreendido Vaacuterias escolas filosoacuteficas se caracterizam pela tendecircncia de privilegiar um dos termos continuamente enxergando todos os outros elementos ldquonos termosrdquo do elemento

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privilegiado Assim o naturalismo privilegia a cena de modo que os atos humanos satildeo entendidos como consequecircncias das condiccedilotildees cecircnicas

O ldquoparadoxo da substacircnciardquo proposto por Burke (1966 p 23) segundo o qual uma palavra ldquo[] usada para designar o que algo eacute deriva da palavra para designar o que algo natildeo eacuterdquo nos distancia da Lei da Identidade (A eacute A) e nos aproxima de um modo mais metafoacuterico de entendimento Por fim haacute ainda a noccedilatildeo de ldquoanedota representativardquo ldquo[] preocupaccedilatildeo tatildeo dramaacutetica que pode ser definida como abor-dagem dramaacutetica do dramatismordquo (BURKE 1966 p 60) atraveacutes da qual o todo eacute representado por uma de suas partes Para entender qualquer coisa devemos entendecirc-la em contexto agrave luz de assuntos extriacutensecos e de termos apropriados que natildeo satildeo idecircnticos agrave essa coisa mas estatildeo identificados com ela A relaccedilatildeo elementar representada na linguagem eacute portanto metafoacuterica (categoria Y eacute melhor entendida atraveacutes da Parte X) ao inveacutes de categoacuterica (tudo que precisamos saber eacute que Parte X eacutepertence agrave Categoria Y)

Quando nossas terminologias natildeo nos permitem fazer criacuteticas progressivas delas mesmas quando desistimos de buscar a perspectiva por incongruecircncia tornamo-nos presas entre outras coisas da tendecircncia jaacute discutida anteriormen-te de burocratizar a imaginaccedilatildeo Embora a burocratizaccedilatildeo da imaginaccedilatildeo seja um processo necessaacuterio em Burke nossa capacidade de autocriacutetica nos permite evitaacute-la e manter viva o maior tempo possiacutevel nossa consciecircncia imaginativa dos princiacutepios originais que definem a boa vida e nos animam a buscar realizaacute-la Se tudo isso parece distante do ensino retornemos aos ensaios de Fish e Leo discu-tidos no primeiro capiacutetulo Nossa criacutetica agrave posiccedilatildeo de Leo e a preferecircncia pela de Fish podem ser diretamente traccediladas a partir das posiccedilotildees tomadas em direccedilatildeo agrave autocriacutetica progressiva A rejeiccedilatildeo de Leo ao ldquomulticulturalismordquo como uma frente ao antiamericanismo eacute parte da rejeiccedilatildeo geral agraves tentativas de entender os eventos do 11 de setembro nos termos de ldquocausas-raizrdquo ou ldquoda necessidade de entender o terrorismo e ver seus atos em contextordquo Qualquer alternativa agrave visatildeo do 11 de se-

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tembro ldquonos termosrdquo de outra coisa ameaccedila a visatildeo de mundo de Leo que passa a ser desconsiderada Fish por outro lado vecirc que a tarefa diante de noacutes ultrapassa os vaacuterios ldquofalsos universaisrdquo que nos impedem de ver o mundo que eles nomeiam e de nos ldquocolocar no lugar do adversaacuteriordquo Apenas com essa maneira de desconstruir uma visatildeo de mundo eacute possiacutevel manter-se atento aos princiacutepios fundantes dessa visatildeo ldquoos valores particulares vividos que nos unem e satildeo assumidos pelas insti-tuiccedilotildees que valorizamos e desejamos defenderrdquo O argumento de Fish contra Leo em suma ilustra muitos dos princiacutepios baacutesicos do argumento que Burke delineou tatildeo eloquentemente em sua longa carreira

o realismo de burke

Burke (1969) oferece talvez a caracterizaccedilatildeo mais econocircmica de sua aborda-gem da retoacuterica na conclusatildeo da seccedilatildeo de abertura do livro A Rhetoric of Motives (The Range of Rhetoric ndash O alcance da retoacuterica) Para ele a Retoacuterica estaacute ldquoarraigada a uma funccedilatildeo proacutepria da linguagem uma funccedilatildeo totalmente realista e em contiacutenua renovaccedilatildeo o uso da linguagem como meio simboacutelico de induzir a cooperaccedilatildeo entre seres que por natureza respondem aos siacutembolosrdquo (BURKE 1969 p 43) O ldquorealismordquo de Burke refere-se aqui ao realismo filosoacutefico entendido agrave luz do debate medieval entre nominalistas e realistas O mais destacado proponente do nominalismo nesse debate Willian de Occam Segundo a proposiccedilatildeo hoje conhecida como Navalha de Occam as ldquoentidades natildeo devem ser multiplicadas aleacutem do necessaacuteriordquo (BURKE 1966 p 324) O realismo de Burke enquanto isso requer igualmente que ldquo[] en-tidades natildeo devem ser reduzidas aleacutem do necessaacuteriordquo No tocante agrave desnecessaacuteria multiplicaccedilatildeo de entidades o alvo primaacuterio de Occam eacute a linguagem empregada para aleacutem da nomeaccedilatildeo do assunto imediato Todos os termos geneacutericos e abstraccedilotildees satildeo responsaacuteveis por nomear toda sorte de entidades supeacuterfluas Esses termos satildeo vistos pelos nominalistas como ldquoconveniecircncias da linguagemrdquo e natildeo ldquosubstacircncias reaisrdquo (BURKE 1966 p 248) No entanto o paradoxo da substacircncia definido por

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Burke sugere que natildeo se pode usar a linguagem simplesmente para nomear um assunto imediato Toda palavra que designa o que algo eacute necessariamente designa o que algo natildeo eacute Consequentemente a conotaccedilatildeo de uma palavra eacute tatildeo crucial para Burke quanto o que ela denota

De fato natildeo temos acesso ao que eacute individual exceto atraveacutes do que eacute simboacutelico ou categoacuterico ldquo[] homem qua homem eacute um usuaacuterio de siacutembolo A esse respeito qualquer aspecto de sua lsquorealidadersquo eacute possiacutevel ser visto atraveacutes de uma neacutevoa de siacutembolos (BURKE 1969 p 136) Enquanto animais usuaacuterios de siacutembolos os huma-nos experienciam ldquo[] diferenccedilas entre esse fato e o que constitui uma diferenccedila entre um tipo de ser e outrordquo (BURKE 1969 p282) Essa tensatildeo entre o particular e o geral entre a funccedilatildeo denotativa e a conotativa da linguagem precisamente nos leva agrave ressonacircncia simboacutelica e nos permite ver uma coisa ldquonos termosrdquo de outra Sem essa ressonacircncia e a capacidade de ldquomultiplicar entidadesrdquo aleacutem do aqui e agora seria impossiacutevel a linguagem induzir agrave cooperaccedilatildeo entre indiviacuteduos marcados simultaneamente por similaridades e diferenccedilas

Outra vez essa discussatildeo sobre o realismo filosoacutefico de Burke pode parecer distante do ensino Certamente natildeo eacute Tomemos por exemplo a noccedilatildeo de politi-camente correto Como termo ostensivamente neutro tem sido manejado recen-temente de maneira mais eficaz pelos conservadores no debate puacuteblico nacional Liberais reticentes assim argumenta-se satildeo incapazes de ldquodizer como as coisas satildeordquo Estatildeo sempre a inventar expressotildees eufemiacutesticas para encobrir suas vaacuterias ldquoagendasrdquo Em tom rude os saacutebios conservadores ldquode fala simplesrdquo passam a atingir o verbalismo pretensioso dos liberais e a substituiacute-lo por uma linguagem ldquoclara e simples como a verdaderdquo transformando ldquoaccedilotildees afirmativasrdquo em ldquodiscriminaccedilatildeo reversardquo e assim por diante (o comediante Steven Colbert do programa ldquoColbert Reportrdquo faz paroacutedias sobre a franqueza do comentarista conservador Bill OrsquoReilly no quadro ldquoPalavra do diardquo

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Nesse quadro as palavras e expressotildees aparentemente inofensivas satildeo desvir-tuadas para aleacutem do reconhecimento de Colbert enquanto um contraponto textual acompanhada silenciosamente os esforccedilos de Colbert para defini-las e expotildee suas proacuteprias intenccedilotildees) Essas pessoas estatildeo operando na tradiccedilatildeo de Occam ansiosos em reduzir a multiplicaccedilatildeo desnecessaacuteria de sentidos e tambeacutem na tradiccedilatildeo mais recente de Jeremy Bentham que se dedicou a desarraigar a insidiosa ldquopergunta apelativardquo (BURKE 1969 p 92) que nomeia mais de uma coisa colocando o assunto sob uma luz ldquoelogiosardquo ou ldquopejorativardquo e prejudicando-o da mesma maneira que os arrazoados circulares antecipam a premissa principal da conclusatildeo

Subjacente ao uso politicamente correto e ao pensamento de Occam e Bentham estaacute a crenccedila em uma linguagem neutra e puramente denotativa que nomeia a rea-lidade ldquoobjetivardquo e que de fato diz como as coisas satildeo sem apontar o que elas natildeo satildeo O que a definiccedilatildeo de Retoacuterica proposta por Burke deixa imediatamente claro eacute a inexistecircncia dessa linguagem7 Toda palavra porta indiacutecios de sentidos ldquopositivosrdquo e ldquonegativosrdquo e para se entender um termo deve-se entendecirc-lo em uso dentro de um contexto e apropriadamente atualizado Como diz Burke ateacute o vocabulaacuterio utilitaacuterio de Bentham garante a certos termos nuanccedilas ldquopositivasrdquo independente do uso escapando ao mito da linguagem neutra que ele proacuteprio promovia

O realismo de Burke natildeo eacute apenas filosoacutefico mas tambeacutem um realismo cotidia-no Para todo poder atribuiacutedo agrave linguagem ele tambeacutem reconhece o consideraacutevel poder de veto que a realidade extralinguiacutestica possui sobre as palavras Qualquer que seja nossa visatildeo e quatildeo persuasivo seja nosso vocabulaacuterio a falha do mundo material em ratificar nossos argumentos eacute fatal para Burke A esse respeito o rea-lismo linguiacutestico de Burke deve ser distinguido de solipsismo e de visotildees maacutegicas

7 Burke (1969 p 183-4) assinala uma ldquoordem positiva dos termosrdquo capaz de nomear as coisas no aqui e agora e recomenda manter-se nessa ordem sempre que possiacutevel Mas aleacutem de terminologias altamente convencionalizadas como nas ciecircncias que evitam a linguagem natural e estipula termos nativos para o discurso as oportunidades para limitarmo-nos na ordem positiva satildeo extremamente limitadas

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sobre a linguagem O autor explicitamente rejeita a crenccedila de que o ldquo[] universo eacute mero produto de nossas interpretaccedilotildeesrdquo precisamente porque ldquo[] as interpre-taccedilotildees em si mesmas devem ser alteradas enquanto o universo apresenta a elas vaacuterios tipos de recorrecircnciardquo (BURKE 1984 p 256) Enquanto a linguagem nossa ldquoneacutevoa de siacutembolosrdquo recobre tudo o que positivamente sabemos o universo deteacutem o poder de negar e reformar nossas interpretaccedilotildees De fato para Burke (1966) a diferenccedila primaacuteria entre a falsa e a verdadeira magia da retoacuterica eacute o fato de que os praticantes da falsa usam os siacutembolos para induzir movimentos na natureza enquanto os praticantes da verdadeira usam os siacutembolos para induzir atos coope-rativos entre as pessoas O julgamento sobre a adequaccedilatildeo de instituiccedilotildees poliacuteticas e econocircmicas para Burke natildeo estaacute baseado em um padratildeo ideal e fixo mas na sua capacidade de atender agraves demandas materiais das pessoas a quem servem De acordo com a meacutetrica realista de Burke tais instituiccedilotildees apresentam um ldquo[] valor relativo pragmaticamente dependente no sentido darwinista da capacidade de dar conta de problemas de produccedilatildeo distribuiccedilatildeo e consumo atinentes agraves condiccedilotildees temporais e espaciais peculiaresrdquo (BURKE 1969 p 279)

Como apontamos em nossa discussatildeo sobre a ldquoburocratizaccedilatildeo da imaginaccedilatildeordquo o papel social mais importante da Retoacuterica eacute resistir agrave conversatildeo de possibilidades imaginativas que transformam as instituiccedilotildees em dogmas resistentes agrave realizaccedilatildeo dessas possibilidades Enquanto ideoacutelogos fazem vista grossa agraves falhas de seus programas de dar conta de problemas de produccedilatildeo distribuiccedilatildeo e consumo no aqui e agora a tarefa da Retoacuterica eacute adaptar o programa agrave situaccedilatildeo debruccedilando-se sobre os princiacutepios originadores para delinear novas estrateacutegias

Por fim o realismo de Burke natildeo eacute apenas um realismo filosoacutefico ou atrelado ao senso comum eacute tambeacutem um realismo no sentido que eacute agraves vezes empregado em ciacuterculos de poliacuteticas internacionais Eacute um tipo de realismo que nos encoraja a selecionar e escolher nossas lutas pesando as consequecircncias de nossas escolhas umas em relaccedilatildeo agraves outras em vez dos nossos princiacutepios independente de para onde nos levem Eacute um realismo que reconhece escolhas duras difiacuteceis Eacute esse aspecto do

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seu realismo que o leva a valorizar algueacutem como Willian James considerado um ldquomelioristardquo (BURKE 1984 p 3) algueacutem famoso por escolher em aceitar o universo ao inveacutes de contestar e que prefere acreditar em bases bastante pragmaacuteticas cuja feacute ldquoo permitiu ter o senso de mover-se em direccedilatildeo a algo melhorrdquo (BURKE 1984 p 5) Com frequecircncia o expresso ceticismo de Burke em relaccedilatildeo ao perfeccionismo eacute a contraparte de sua admiraccedilatildeo pelo meliorismo Da mesma forma sua destituiccedilatildeo como um ldquoperfeccionismo reversordquo (BURKE 1966 p 100) uma criacutetica bastante dura que extirpa as bases de uma posiccedilatildeo tomada eacute sintomaacutetica de um realismo balanceado que sempre encontra elementos das pessoas e sistemas que ele critica em sua proacutepria pessoa e crenccedilas Natildeo haacute oposiccedilotildees simples no realismo de Burke natildeo haacute certos ou errados absolutos natildeo haacute diferenccedilas categoacutericas Toda substacircncia conteacutem elementos de substacircncias extriacutensecas a ela mesma Em todos os pontos dos vaacuterios contiacutenuos que Burke supotildee residem elementos de ambos os extremos do contiacutenuo Burke (1969 p 23) aceita o fato de que vivemos em um mundo poacutes--Babel e que por consequecircncia a Retoacuterica deve perseguir seus temas ldquo[] dentro da luacutegubre regiatildeo da maliacutecia e da mentirardquo Dado que as soluccedilotildees perfeitas nunca estatildeo disponiacuteveis

[] a pessoa escrupulosa nunca abandonaraacute um propoacutesito que ela consi-dera absolutamente bom Poreacutem iraacute escolher os meios mais ideias dis-poniacuteveis na situaccedilatildeo Assim como na retoacuterica ideal de Aristoacuteteles ela iraacute considerar uma gama de meios mas escolheraacute o melhor permitido por um conjunto particular de circunstacircncias (BURKE 1969 p 155)

Todos que ensinam argumentaccedilatildeo deveriam saber um pouco sobre Burke no miacutenimo para ajudar a entender o lugar da argumentaccedilatildeo e da retoacuterica na or-dem mais ampla dos empreendimentos intelectuais e para lembrar o que entra em jogo para ensinar bem Ele nos oferece tanto uma teoria da Retoacuterica como um ldquocaminhordquo para se fazer retoacuterica como haacutebitos mentais que nos ajudam a evitar

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A construccedilatildeo do argumento

modos simplistas de pensar e modos agressivos de argumentar Brummett (1984 p 103) em ensaio fortemente apoiado sobre o pensamento de Burke sumariza com precisatildeo nossa tarefa

Se levarmos em consideraccedilatildeo as pessoas comuns (estudantes) como au-diecircncia primaacuteria da teoria retoacuterica e suas criacuteticas entatildeo o objetivo final e a justificativa satildeo pedagoacutegicos ensinar as pessoas a experienciar seus proacuteprios ambientes retoacutericos de maneira mais ricardquo

Certamente tambeacutem ensinamos a nossos estudantes a ldquotirar vantagemrdquo dos seus proacuteprios argumentos e que sempre haacute um elemento vantajoso para buscar o mais claro dos argumentos No entanto ao desafiaacute-los constantemente a submeter sua terminologia ndash ou ideologia se preferirmos ndash a ldquouma criacutetica progressiva de sirdquo estamos desafiando-os a reconsiderar sobre o que e para que eles deveriam buscar A Retoacuterica lembra-nos Burke (1984 p 102) eacute um domiacutenio no qual os ldquotestes de sucesso existem para serem testadosrdquo Ao cabo quando alargamos a capacidade dos estudantes de encontrar os modos disponiacuteveis de persuasatildeo em uma dada situaccedilatildeo e os encorajamos a escolher o meio mais claro estamos ensinando a argumentar tanto de maneira eacutetica como eficiente

introduccedilatildeo a Chaim perelman e luCie olbreChts-tyteCa

A Nova Retoacuterica (PERELMAN OLBRECHTS-TyTECA 1969) eacute um compecircndio enciclopeacutedico de pequenas histoacuterias retoacutericas citaccedilotildees exemplos e estratagemas organizados segundo um sistema extremamente fluido e flexiacutevel por um lado e extremamente confuso por outro Gage (1996 p 13) liga esse sistema ao de Burke na medida em que compreende uma ldquoperspectiva das perspectivasrdquo tratando a argumentaccedilatildeo natildeo como uma coleccedilatildeo a priori de partes de silogismos mas como

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A construccedilatildeo do argumento

um sistema cujas partes satildeo ldquo[] derivadas de processos de associaccedilatildeo e disso-ciaccedilatildeo ligamento e desligamento que torna o argumento uma rede de partes em relaccedilatildeo de variedade infinitardquo Do lado negativo Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969) parecem muitas vezes nomear cada uma das infinitas relaccedilotildees possiacuteveis do sistema atraveacutes de um sem-nuacutemero de termos ndash agraves vezes inventados agraves vezes emprestados de fontes desconhecidas ndash que dificultam mais do que facilitam um acesso raacutepido ao sistema Para o termo locus por exemplo pode-se encontrar vinte e quatro variedades listadas no iacutendice e sessenta e oito figuras ldquotradicionaisrdquo satildeo mencionadas a maioria de passagem em adiccedilatildeo a quinze tipos diferentes presu-midamente natildeo tradicionais

A versatildeo reduzida do tratado de Perelman ao tratado (The Realm of Rhetoric) (PERELMAN 1982) transforma o sistema em algo ligeiramente mais acessiacutevel e oferece uma versatildeo esquemaacutetica do corpus mas em detrimento da profundidade e da grande diversidade do original8 A utilidade da NR se deve sobretudo ao fato de que eacute um livro de sabedoria de razatildeo praacutetica ou phroacutenesis Assim eacute um livro para ser lido consultado mais do que um tratado para ser estudado Por outro lado The Realm of Rhetoric eacute muito mais uacutetil apoacutes a leitura de A Nova Retoacuterica e natildeo deve ser lido em substituiccedilatildeo ao seu extenso e complexo progenitor

Assim como o sistema de Burke o sistema de Perelman e Olbrecht-Tyteca empresta-se ao uso parcial mas de maneira muito distinta Apesar de toda comple-xidade do pensamento de Burke muito pode ser feito com algumas poucas grandes ideias que constituem uma ldquoperspectiva por incongruecircnciardquo No caso de A Nova Retoacuterica entretanto a obra pode ser melhor usada e de fato pode-se exploraacute-la extraindo ideias uacuteteis estrateacutegias e citaccedilotildees da mesma forma que alunos tiram ideia promissoras de livros comuns

8 o ensaio de Perelman publicado em 1970 The New Rhetoric A Theory of Practical Reasoning reimpresso em 2001 (PERELMAN 2001) representa uma siacutentese ainda mais eficiente do sistema

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A construccedilatildeo do argumento

De maneira a tornar uacutetil a nova retoacuterica aos professores noacutes seguiremos dois passos Primeiro faremos um breve panorama dessa abordagem e de seu lugar no campo das teorias modernas da argumentaccedilatildeo Em seguida de modo a apresentar tais ideias de maneira coerente apesar de menos ortodoxa adap-taremos alguns dos seus insights a uma abordagem consideravelmente menos pesada a Stasis Theory

um panorama de a nova retoacuteriCa

Assim como a maioria dos filoacutesofos que romperam barreiras e se voltaram para a Retoacuterica em meados do seacuteculo XX Perelman e Olbrechts-Tyteca basearam sua dissidecircncia na rejeiccedilatildeo ao modelo loacutegico-formal de argumento tradicional-mente privilegiado pelos filoacutesofos particularmente pelos positivistas loacutegicos da eacutepoca Ao citar a fusatildeo da dialeacutetica de Petrus Ramus com a loacutegica e o subsequente rebaixamento da Retoacuterica a uma arte ornamental Perelman (2001) reivindica a Dialeacutetica para a Retoacuterica e a declara complementar agrave demonstraccedilatildeo definida como

[hellip] um caacutelculo feito de acordo com as regras previamente dispostas [hellip] Uma demonstraccedilatildeo eacute considerada correta ou incorreta de acordo com sua conformidade ou natildeo agraves regras Uma conclusatildeo eacute tida como comprovada se ela pode ser atingida por meio de uma seacuterie de opera-ccedilotildees corretas e iniciadas nas premissas aceitas como axiomas Se tais axiomas satildeo considerados evidentes necessaacuterios verdadeiros ou hipo-teacuteticos a relaccedilatildeo entre eles e o que eacute demonstrado permanece intacta Para passar da inferecircncia correta agrave verdade ou agrave probabilidade com-putaacutevel da conclusatildeo deve-se admitir tanto a verdade das premissas como a coerecircncia do sistema axiomaacutetico (PERELMAN 2001 p 1390)

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A construccedilatildeo do argumento

Ao distinguir a argumentaccedilatildeo retoacuterica da demonstraccedilatildeo formal Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969 p 5) sublinham as seguintes caracteriacutesticas O ponto de iniacutecio de um argumento natildeo eacute um axioma invariante e universal mas uma premissa ou ldquoopiniatildeo geralmente aceitardquo Os autores entatildeo distinguem dois tipos de premissas ldquoa primeira concernente ao real que compreende fatos verdades e presunccedilotildees e a segunda concernente ao preferiacutevel que compreende valores hie-rarquias e linhas de argumentaccedilatildeo (ou loci) relativas ao preferiacutevelrdquo (PERELMAN OLBRECHTS-TYTECA 1969 p 66) As premissas natildeo satildeo objetivas ou impessoais como eacute o caso dos axiomas loacutegicos mas intersubjetivos ou pessoais na medida em que sua forccedila depende do grau de verdade coerecircncia plausibilidade e assim por diante a partir do qual a audiecircncia o aceita Por conta da natureza contingente das premissas distintas audiecircncias ofereceratildeo diferentes graus de aprovaccedilatildeo em mo-mentos distintos sob condiccedilotildees distintas Trata-se de um estado de coisas que quem argumenta deve levar em consideraccedilatildeo Enquanto o movimento de demonstraccedilatildeo eacute o de estender o alcance de verdades axiomaacuteticas a uma verdade particular e com-pelir o consentimento em direccedilatildeo a essa verdade o movimento de um argumento eacute o de aumentar a ldquointensidade da adesatildeordquo (PERELMAN OLBRECHTS-TyTECA 1969 p 45) de uma audiecircncia a uma conclusatildeo ao enviar as premissas para ldquo[] dentro de um conjunto de processos associativos e dissociativosrdquo (PERELMAN OLBRECHTS-TyTECA 1969 p 65) responsaacutevel por dar forma ao entendimento da audiecircncia sobre a relaccedilatildeo entre as premissas e a conclusatildeo O argumento pode aumentar o grau em que uma audiecircncia aceita uma conclusatildeo mas ela natildeo conse-gue compelir o consentimento da mesma maneira que a demonstraccedilatildeo Enquanto a finalidade da demonstraccedilatildeo eacute a descoberta de uma verdade a finalidade de um argumento eacute a de construiacute-la na ldquocomunidade de mentesrdquo (PERELMAN 2001 p 1388) de modo a ldquo[] colocar em movimento a accedilatildeo intencionada [] ou ao menos criar nos ouvintes um desejo de agir que apareceraacute no momento certordquo (PEREL-MAN OLBRECHTS-TyTECA 1969 p 45)

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A construccedilatildeo do argumento

O ponto de partida da abordagem presente em A Nova Retoacuterica agrave argumen-taccedilatildeo natildeo foi uma teoria tomada da Filosofia mas uma questatildeo sobre a forma como as pessoas de fato discutem os valores no mundo real Consequentemen-te os autores examinaram milhares de exemplos de argumentos sobre valores extraiacutedos de uma infinidade de fontes incluindo trabalhos poliacuteticos juriacutedicos filosoacuteficos religiosos e cientiacuteficos de diferentes eacutepocas Se o exame dessas fon-tes tornou a teoria mais potente eacute algo contestaacutevel mas natildeo haacute duacutevidas de que a enriqueceu9 Em certo sentido os exemplos sobrepotildeem-se ao quadro teoacuterico de modo a impossibilitar a reduccedilatildeo da teoria a um conjunto de preceitos Por conseguinte a linguagem da nova retoacuterica eacute decididamente natildeo categoacuterica mais nuanccedilada e metafoacuterica que a linguagem tiacutepica da retoacuterica da metade do seacuteculo Algumas ideias-chave demonstram esse fato Ao inveacutes de acarretamento loacutegico os autores falam em ldquoligaccedilotildeesrdquo entre ideias em vez de contradiccedilotildees preferem ldquoincompatibilidadesrdquo em vez da certeza ou ateacute de probabilidade da conclusatildeo preferem mencionar a ldquorazoabilidaderdquo em vez de falar em concordacircncia ou discor-dacircncia da audiecircncia sobre uma conclusatildeo falam sobre o aumento ou diminuiccedilatildeo da intensidade da adesatildeo a um argumento

Talvez o mais interessante dos possiacuteveis efeitos dessa metodologia eacute o lugar privilegiado da noccedilatildeo de ldquopresenccedilardquo na teoria a importacircncia de trazer ideias agraves audiecircncias em todo seu imediatismo De forma muito conveniente a maior vir-tude da Nova Retoacuterica eacute a abundacircncia de exemplos de ldquopresenccedilardquo que ilustram o quadro teoacuterico

9 Eacute claro que Lucie Olbrechts-Tyteca como pessoa ldquoerudita em ciecircncias sociais e literatura europeiardquo (BiZZeLL HeRZBeRg 2001 p 1371) merece um creacutedito especial por encontrar e selecionar exemplos pertinentes que tornam a teoria de Perelman significativamente mais uacutetil e mais atrativa

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A construccedilatildeo do argumento

Em muitos aspectos o movimento de Perelman e Olbrechts-Tyteca da Loacute-gica tradicional em direccedilatildeo agrave Dialeacutetica segue o percurso tomado por Burke que tambeacutem entende a Retoacuterica como expressatildeo do pensamento dialeacutetico O proacuteprio Perelman assinala essa conexatildeo ao citar a noccedilatildeo de identificaccedilatildeo proposta por Burke como o modelo para que o uso da Retoacuterica forme uma ldquocomunidade de mentesrdquo e assim ldquodespertar a disposiccedilatildeo para a accedilatildeordquo (PERELMAN 2001 p 1388) de uma audiecircncia Aleacutem disso a tensatildeo essencial na Nova Retoacuterica entre parte (exemplos) e todo (teoria) eacute como vimos uma peccedila criacutetica da abordagem de Burke agrave Retoacuterica Entender uma coisa ldquoem termos derdquo outra em vez de ldquocomordquo outra leva Burke a procurar ldquopequenas histoacuterias representativasrdquo (BURKE 1966 p 523) em vez de regras leis ou narrativas que exaustivamente datildeo conta do todo Esse mesmo modo sinedoacutequico de entendimento leva Burke (1996) a rejeitar contra-diccedilotildees aparentes entre ideias e a favorecer algo como as incompatibilidades que ele deseja superar atraveacutes de acordos em vez de aboli-las atraveacutes do desmonte

Aleacutem disso Burke assim como Perelman e Olbrechts-Tyteca tambeacutem en-fatiza a dimensatildeo inventiva da Retoacuterica em detrimento da funccedilatildeo ornamental Enquanto Burke subordina a funccedilatildeo persuasiva agrave inventiva Perelman e Olbrechts--Tyteca apoacutes reconhecerem a importacircncia da invenccedilatildeo continuam a assinalar a funccedilatildeo persuasiva Tanto na Nova Retoacuterica quanto na A Rhetoric of Motives de Burke somos sempre lembrados do contexto mais amplo que define as ativida-des de uma pessoa Para Burke o dever de uma pessoa enquanto cidadatilde precede o dever de uma pessoa enquanto especialista natildeo importando quanta ldquopsicose ocupacionalrdquo nos leve a confundir obrigaccedilotildees eacuteticas e profissionais Jaacute Perelman e Olbrechts-Tyteca baseiam seu estudo sobre retoacuterica na noccedilatildeo de justiccedila social e a enfatizam em todo o tratado

Por fim a controversa noccedilatildeo de ldquoaudiecircncia universalrdquo empregada na Nova Retoacuterica pode ser melhor entendida no contexto da noccedilatildeo burkeana de ldquopersuasatildeo purardquo Assim como natildeo existe uma instacircncia da persuasatildeo pura natildeo existe de

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A construccedilatildeo do argumento

fato uma audiecircncia universal Ambas satildeo ideais que norteiam quem argumenta para aleacutem da persuasatildeo ldquodirecionadardquo ndash ldquoo que me faraacute trazer essa audiecircncia para minha posiccedilatildeo rdquo ndash em direccedilatildeo ao trabalho de um entendimento completo do tema A audiecircncia universal natildeo eacute necessariamente uma audiecircncia mais po-pulosa que a particular Quando escrevemos para audiecircncias eruditas e criacuteticas em nossas especialidades presumimos seu ceticismo e sua perspicaacutecia que nos leva aos melhores e mais razoaacuteveis argumentos Os publicitaacuterios que empurram cerveja suave para homens brancos na faixa dos 18 aos 29 anos querem sem duacutevida atingir faixas menores

a stasis theory e a nova retoacuteriCa

Ao adaptar a Nova Retoacuterica agraves nossas aulas tentamos identificar esquemas simples que servem como veiacuteculos para selecionar e organizar os ricos insights do livro em um todo coerente de alcance razoaacutevel De nosso ponto de vista o esque-ma que melhor serve a essa funccedilatildeo eacute a Stasis Theory Originalmente essa teoria emergiu na Greacutecia antiga como uma categoria do discurso juriacutedico (ou forense) que junto ao discurso epidiacutetico (ou cerimonial) e ao deliberativo (ou legislativo) compreendem as trecircs formas do discurso Nos anos recentes a ideia de Stasis tem sido retomada e modificada para uso em aulas de argumento em reconhecimen-to ao fato de que como aponta Fulkerson (1996 p 40) eacute ldquo[] incrivelmente uacutetil [] porque natildeo se sobrepotildee e eacute sequencialmente progressiva e [] porque pode funcionar como uma heuriacutestica geradora que pode ajudar os estudantes a criar os argumentos necessaacuterios em um artigordquo Os dois estudiosos mais responsaacuteveis pelo renascimento da Stasis como uma caracteriacutestica integral da instruccedilatildeo argumenta-tiva satildeo Jeanne Fahnestock e Marie Secor O artigo Teaching Argument A Theory of Types (FAHNESTOK SECOR 1983) levou muitos professores de escrita a integrar a Stasis agraves aulas e muitos autores a incluir a discussatildeo em livros O artigo representa

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um caso exemplar de acadecircmicos contemporacircneos que adaptaram teorias antigas da Retoacuterica em aulas de escrita10

Antes de demonstrarmos como usar a ideia de Stasis para organizar estrateacute-gias narrativas e princiacutepios da Nova Retoacuterica apresentaremos um breve panorama dessa ideia

De acordo com Aristoacuteteles cada uma das trecircs categorias originais do discurso que antecipam as categorias da Stasis possuem um foco temporal distinto O discurso deliberativo lidava com propostas para o futuro particularmente as propostas legis-lativas o epidiacutetico lidava com o elogio e a culpa e apresentava ao puacuteblico ocasiotildees para reforccedilar os valores comunitaacuterios no presente o forense ndash de onde vecircm a Stasis ndash lidava com vereditos atribuiacutedos a eventos passados tipicamente na esfera legal Por conta da associaccedilatildeo primaacuteria com a lei a antiga Stasis tendia a seguir o modelo procedimental dos tribunais Desse modo o promotor em um caso era requerido a fazer trecircs tipos de teses reivindicatoacuterias representando trecircs pontos em questatildeo ou Stasis que a pessoa acusada cometeu o crime em questatildeo (reivindicaccedilatildeo do fato) que o ato cometido constitui um crime (reivindicaccedilatildeo da definiccedilatildeo) e que o ato natildeo pode ser mitigado pelas circunstacircncias (reivindicaccedilatildeo de valores)11

10 a contribuiccedilatildeo do ensaio produzido por fahnestock e Secor (1983) agraves teorias contemporacircneas do argumento eacute exemplar tanto em termos do importante impacto no campo quanto da abordagem particular sobre a teoria Boa parte dos melhores trabalhos recentes sobre retoacuterica e escrita se desenvolveu como adaptaccedilatildeo de abordagens antigas ou como uma adaptaccedilatildeo de abordagens de outros campos agraves necessidades do argumento contemporacircneo aleacutem do trabalho de fahnestock e Secor (1983) o criativo trabalho de John gage (1983) sobre o entusiasmo dos estudantes com a escrita exemplifica o primeiro tipo de contribuiccedilatildeo enquanto a adaptaccedilatildeo da psicanaacutelise ao domiacutenio da retoacuterica promovida por Richard Young Alton Becker e Kenneth Pike eacute um exemplo da segunda um grande nuacutemero de livros e artigos interessantes e uacuteteis sobre retoacuterica e escrita vem sendo escrito nos uacuteltimos anos por intelectuais do campo mas ainda natildeo presenciamos o desenvolvimento pleno de teorias do argumento para confrontar com as que satildeo desenvolvidas no campo da comunicaccedilatildeo e da Filosofia Agrave medida que consideramos essas uacuteltimas de utilidade limitada agrave sala de aula apreciamos o intercacircmbio rico e apaixonado sobre argumento regularmente desenvolvido nesses campos

11 A taxonomia da Stasis aqui utilizada proveacutem em grande parte de Ramage Bean e Johnson (2007)

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A construccedilatildeo do argumento

O esquema desenhado por Ramage Bean e Johnson (2007) possui cinco ele-mentos e inclui definiccedilatildeo (X eacutenatildeo eacute uma instacircncia de y) semelhanccedila (X eacutenatildeo eacute como y ndash os autores definem duas variedades de semelhanccedilas as precedentes e as analogias) causa (X eacutenatildeo eacute a causa de Y) avaliaccedilatildeo (X eacutenatildeo eacute um bom Y) e eacutetica (X eacutenatildeo eacute bom)12 As trecircs uacuteltimas Stasis satildeo derivadas dos dois primeiros tipos de discurso o deliberativo e o epidiacutetico enquanto as duas primeiras satildeo derivadas do juriacutedico Os autores enfatizam que cada uma eacute um tipo de reivin-dicaccedilatildeo oposto a um tipo de argumento (apesar de dispor de uma reivindicaccedilatildeo maior que pode ser usada para caracterizaacute-lo como um todo) e isso tipicamente inclui inuacutemeras reivindicaccedilotildees dos mais variados tipos O objetivo das Stasis natildeo eacute servir como uma taxonomia dos argumentos mas ajudar os estudantes a entender as demandas peculiares dos arrazoados e das evidecircncias geradas por um tipo de reivindicaccedilatildeo

Entender isso pode ser usado para antecipar as necessidades persuasivas dentro dos proacuteprios argumentos e para reconhecer os lugares dos outros nos quais tais demandas satildeo ou natildeo satildeo atendidas Os breves traccedilos associados a cada tipo de reivindicaccedilatildeo servem para representar o impulso geral das proposiccedilotildees incluiacutedas na categoria Nos argumentos reais tais reivindicaccedilotildees geralmente to-mam diferentes formas exigindo em alguns casos uma interpretaccedilatildeo significativa

Como foi dito em nossa discussatildeo sobre o possiacutevel engessamento da Retoacuterica sempre haacute um tipo de troca entre a facilidade com a qual uma metodologia pode ser aplicada e o perigo de que as conclusotildees dessa aplicaccedilatildeo sejam simplificadas em excesso Defendemos que o benefiacutecio de oferecer aos estudantes uma abor-dagem coerente ao argumento supera os perigos do engessamento mas deve-se

12 em versotildees mais recentes das Stasis Ramage Bean e Johnson tambeacutem esboccedilam uma distinccedilatildeo entre Stasis categoriais e definidoras a depender se os criteacuterios compotildeem a categoria Y ou se a correspondecircncia entre criteacuterios e caracteriacutesticas de um x particular constituem o foco do debate aqui continuamos a tratar ambos os casos sob a rubrica de definiccedilatildeo

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ter em mente o imperativo metodoloacutegico de Burke (1970 p 303) segundo o qual ldquo[] qualquer terminologia eacute suspeita na medida em que ela natildeo permite a criacutetica dela mesmardquo A esse respeito um papel importante da Nova Retoacuterica em relaccedilatildeo ao esquema das Stasis diz respeito a sua capacidade de nos lembrar os contextos argumentativos mais importantes dos argumentos bem como sua capacidade de complicar nosso entendimento da tarefa ao identificar o ocircnus da prova associado a cada uma das Stasis Sem duacutevida muitos dos princiacutepios e estrateacutegias da Nova Retoacuterica podem ser utilmente aplicados em conjunccedilatildeo com as Stasis

Na sequecircncia no entanto dispomo-nos a ilustrar o papel que a Nova Retoacuteri-ca pode assumir para evitar que as Stasis se transformem em foacutermula ao focar em um pequeno nuacutemero de questotildees centradas nas reivindicaccedilotildees de definiccedilatildeo e semelhanccedila por um lado e por outro nas reivindicaccedilotildees eacuteticas e avaliativas

As distinccedilotildees cuidadosamente esboccediladas na Nova Retoacuterica entre valores argumentativos e demonstraccedilatildeo loacutegica nos lembram do limite entre a reivin-dicaccedilatildeo da definiccedilatildeo e da semelhanccedila e reforccedilam a importacircncia de qualificar com cuidado tais reivindicaccedilotildees e de suportar as conexotildees mais tecircnues aqui realizadas A seccedilatildeo da Nova Retoacuterica que introduz a regra da justiccedila (seres ou situaccedilotildees do mesmo tipo devem ser tratadas de maneira idecircntica) eacute dedicada aos ldquoargumentos Quase-loacutegicosrdquo um tiacutetulo que chama a atenccedilatildeo tanto para as simi-laridades aparentes como para as diferenccedilas importantes entre a demonstraccedilatildeo formal e a argumentaccedilatildeo substantiva A regra da justiccedila adapta-se agrave descriccedilatildeo ldquoquase-loacutegicardquo na medida em que eacute uma regra formal ou equaccedilatildeo na qual pode-se substituir muitos valores particulares Poreacutem os argumentos dessa natureza satildeo menos rigorosos como classe de argumentos loacutegicos na medida em que a classe requer que ldquo[] os objetos aos quais se aplica devem ser idecircnticos isto eacute comple-tamente intercambiaacuteveisrdquo (PERELMAN e OLBRECHTS-TyTECHA 1969 p 219) Esse nunca eacute entretanto o caso no domiacutenio dos valores humanos nos quais a igualdade ldquosubstancialrdquo como quis Burke eacute o maacuteximo que podemos esperar Ao cabo deve-se fazer a mais retoacuterica das determinaccedilotildees o quanto os objetos em

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A construccedilatildeo do argumento

questatildeo satildeo parecidos e o quanto desse parentesco eacute suficiente para justificar a evocaccedilatildeo da regra da justiccedila

De fato assim todas as reivindicaccedilotildees de definiccedilatildeo na Nova Retoacuterica po-dem ser consideradas reivindicaccedilotildees de semelhanccedila Agrave media que aceitamos em princiacutepio essa equaccedilatildeo ndash se a linguagem eacute fundamentalmente metafoacuterica todas as relaccedilotildees assumidas de identidade tornam-se em um exame detalhado rela-ccedilotildees de identificaccedilatildeo ndash retemos a distinccedilatildeo entre a reivindicaccedilatildeo de definiccedilatildeo e de semelhanccedila por razotildees pragmaacuteticas (o que Burke chamaria de ldquorealistardquo) A distinccedilatildeo entre definiccedilatildeo e semelhanccedila eacute parte da linguagem ordinaacuteria e nomeia uma distinccedilatildeo real de graus ou como implicado de parentesco Enquanto as reivindicaccedilotildees de definiccedilatildeo obliteram as diferenccedilas entre os termos definidos as reivindicaccedilotildees de semelhanccedila colocam-nas em primeiro plano

Consequentemente a relaccedilatildeo entre ldquoseres ou situaccedilotildeesrdquo para quem reivin-dica semelhanccedilas eacute mais tentadora e o ocircnus da prova eacute mais fraco no tocante agraves relaccedilotildees estabelecidas sob as reivindicaccedilotildees de definiccedilatildeo De modo inverso quanto mais relaccedilatildeo reivindicada dos termos for definida ou comparada menos uma exceccedilatildeo ou um contraexemplo seratildeo inferiores agrave versatildeo da regra da justiccedila Eacute pragmaacutetico reter essa distinccedilatildeo aos estudantes desse modo tanto porque a distinccedilatildeo eacute significativa no cotidiano da linguagem natural como porque assina-lar essa distinccedilatildeo leva os estudantes a reconhecer as significativas diferenccedilas no ocircnus da prova decorrentes do tipo de Stasis adotado

Outra distinccedilatildeo do mesmo tipo pode ser esboccedilada entre os dois diferentes tipos de reivindicaccedilatildeo de semelhanccedila os precedentes e os analoacutegicos No pri-meiro caso a conexatildeo entre os termos eacute sequencial e ldquo[] os termos reunidos estatildeo no mesmo plano fenomecircnicordquo (PERELMAN OLBRECHTS-TyTECHA 1969 p 293) Assim por exemplo quando pensamos em precedentes temos em mente dois ou mais casos legais duas ou mais situaccedilotildees histoacutericas e assim por diante Assim que um precedente eacute estabelecido a extensatildeo da regra da justiccedila no caso em questatildeo eacute desse modo razoavelmente clara Jaacute no caso das analogias natildeo haacute

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clareza que pode equacionar entidades radicalmente diferentes De acordo com Perelman e Olbrechts-Tytecha (1969 p 381) analogias compreendem ldquotrans-ferecircncia de valoresrdquo de um termo a outro ou ldquodo phoros ao temardquo mas quando se clama que dois termos como ldquoamorrdquo e ldquorosas vermelhasrdquo apresentam valor aproximadamente igual isso natildeo implica estender a regra da justiccedila de um para outro e concluir que se deve por exemplo fertilizar o companheiro de algueacutem ou ter um encontro com uma rosa

Em suma ao escolher entre reivindicaccedilotildees de definiccedilatildeo de precedecircncia ou de analogia para preparar a extensatildeo da regra da justiccedila de um termo a ou-tro deve-se considerar o niacutevel de suporte disponiacutevel para uma reivindicaccedilatildeo e determinar o grau de qualificaccedilatildeo apropriado para uma conclusatildeo Enquanto a reivindicaccedilatildeo por definiccedilatildeo que implica igualdade substancial entre termos requer suporte maior analogias que implicam valores partilhados entre termos requer menor suporte

Eacute importante que os estudantes entendam essas distinccedilotildees entre os tipos de reivindicaccedilatildeo e as suas implicaccedilotildees para a regra da justiccedila Muitas das con-troveacutersias atuais de fato sustentam-se em termos de definiccedilatildeo e semelhanccedila e nas diferenccedilas entre ambas Talvez a ilustraccedilatildeo mais expressiva e clara da importacircncia de se distinguir entre reivindicaccedilotildees de identidade e de semelhan-ccedila eacute o conflito entre os juiacutezes da Suprema Corte quando a partir de uma regra da justiccedila aplicaacutevel na sociedade norte-americana atual Boa parte dos debates da Suprema Corte podem ser caracterizados como ruminaccedilotildees sobre o grau de similaridade entre casos variados ldquoseres e situaccedilotildeesrdquo e sobre como determinar que satildeo suficientemente similares para evocar a regra da justiccedila Entre os juiacutezes alguns ndash conhecidos como originalistas ou strict constructionists ndash concordam com o papel de destaque das reivindicaccedilotildees por definiccedilatildeo e sustentam que as diferenccedilas com as reivindicaccedilotildees por semelhanccedila natildeo satildeo apenas de grau mas

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A construccedilatildeo do argumento

de natureza Para eles a definiccedilatildeo original do termo como foi entendido pelos que pensaram a Constituiccedilatildeo eacute imanente ao texto que eacute a uacutenica fonte legiacutetima de sentido13

Historicamente as posiccedilotildees mais literais sobre a interpretaccedilatildeo juriacutedica satildeo difiacuteceis quando natildeo impossiacuteveis de serem mantidas daiacute ser frequente juiacutezes ldquode esquerdardquo defenderem uma visatildeo menos riacutegida da interpretaccedilatildeo durante anos sobre assuntos extremamente complexos de reivindicaccedilatildeo de definiccedilatildeo e de se-melhanccedila14 Entre os fatores que claramente influenciam os juiacutezes a tornarem-se mais flexiacuteveis em procedimentos interpretativos em face ao protesto de pares ori-ginalistas satildeo as mudanccedilas das circunstacircncias histoacutericas que envolvem os casos Aqui o axioma de Burke ldquoas circunstacircncias alteram os argumentosrdquo eacute um guia uacutetil Por exemplo muitos anos apoacutes a Corte ter rejeitado as leis de Jim Crow e outras que previam diferenccedilas categoacutericas entre afro-americanos e brancos e assim natildeo contemplados pelos mesmos direitos e garantias leis contraacuterias ao casamento entre raccedilas continuaram ativas Finalmente no despertar do movimento dos Direitos Civis dos anos sessenta a uacuteltima dessas leis foi derrubada Enquanto o princiacutepio de igualdade racial foi abraccedilado um seacuteculo antes a lei foi mais lenta para estender a regra da justiccedila a praacuteticas como a miscigenaccedilatildeo pois os haacutebitos tornavam as leis antimiscigenaccedilatildeo parecerem ldquonaturaisrdquo e foi necessaacuterio um levante histoacuterico para ajudar a Corte a elaborar uma nova perspectiva sobre o assunto

13 em mais de uma ocasiatildeo alguns juiacutezes citaram o Dicionaacuterio de Sam Johnson publicado em 1756 o uacutenico dicionaacuterio de liacutengua inglesa existente quando a Constituiccedilatildeo foi esboccedilada como uma tentativa de divinizar como os constituintes estavam empregando determinado termo Presumivelmente esses mesmos juiacutezes optaram por natildeo citar a definiccedilatildeo de ldquodemocraciardquo de Johnson presente nesse dicionaacuterio e ilustrada com uma citaccedilatildeo do Dr arbuthnot ldquoComo o governo britacircnico possui uma mistura democraacutetica dentro de si o direito de inventar tensotildees poliacuteticas reside parcialmente no povordquo

14 Talvez sem surpresa a mais notaacutevel exceccedilatildeo a essa regra o juiz Antonin Scalia que apoacutes mais de duas deacutecadas na Suprema Corte mantem-se um originalista ardente eacute o filho de um criacutetico formalista a versatildeo literal da teoria strict constructionism

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A construccedilatildeo do argumento

O processo continua Quando a Suprema Corte derrubou posteriormente as leis estaduais que criminalizam as praacuteticas homossexuais argumentou-se citando a lei preacutevia do casamento entre raccedilas que a decisatildeo constituiacutea precedentes para derrubar o banimento do casamento gay Enquanto alguns tribunais estaduais ndash e diversos tribunais estrangeiras ndash de fato decidiram que as similaridades entre os dois fenocircmenos eram suficientes para estender a regra da justiccedila da diversidade racial agrave diversidade sexual a Corte Suprema natildeo fez o mesmo De maneira suficien-temente apropriada oponentes dessa extensatildeo mas sofisticados o suficiente para reconhecer as incompatibilidades de suas proacuteprias posiccedilotildees valem-se de outras das vaacuterias ferramentas disponiacuteveis na Nova Retoacuterica para o trabalho de ldquovinculaccedilatildeo e desvinculaccedilatildeordquo de argumentos que servem a determinados propoacutesitos Nesse caso o dispositivo empregado por aqueles que delimitam uma linha niacutetida entre casamento inter-racial e o casamento gay eacute o ldquopar filosoacuteficordquo Enquanto dispositivo para categorizar fenocircmenos similares os pares filosoacuteficos inevitavelmente elevam um em detrimento do outro O mais notaacutevel desses pares ldquoaparecircnciarealidaderdquo ndash originalmente designado a desconectar a percepccedilatildeo sensorial da busca pela ver-dade ndash serve aos oponentes do casamento gay ao diminuiacute-lo a uma versatildeo falsa da coisa real o casamento heterossexual

Reivindicaccedilotildees avaliativas (X eacutenatildeo eacute bom) e reivindicaccedilotildees eacuteticas (X eacutenatildeo eacute um bom Y) podem ser enriquecidas ao valer-se da Nova Retoacuterica Muito da obra de fato eacute tomado por discussotildees sobre o valor e os autores satildeo particularmente eficientes em articular distinccedilotildees entre reivindicaccedilotildees por valores eacuteticos e por avaliaccedilotildees Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969) discutem inicialmente os valores no contexto dos ldquotipos de acordordquo entre os membros de um auditoacuterio que podem ser empregados como premissas argumentativas De maneira interessante os au-tores identificam as caracteriacutesticas uacutenicas dos valores e as que os distinguem de outros tipos de premissas ndash fatos verdades e presunccedilotildees ndash como sendo de natureza local rejeitando desse modo a noccedilatildeo de valores universais do tipo que pessoas como John Leo nos garantem que existem Em reveacutes direto agrave Loacutegica adotada por

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A construccedilatildeo do argumento

Leo os autores da Nova Retoacuterica afirmam que enquanto outros tipos de premissa apelam a uma audiecircncia universal os valores reclamam ldquoapenas a adesatildeo a gru-pos particularesrdquo (PERELMAN e OLBRECHTS-TYTEXA 1969 p 74) No tocante agraves reivindicaccedilotildees da universalidade de valores como ldquoo Verdadeiro o Bom o Belo e o Absolutordquo os autores datildeo a seguinte resposta

A alegaccedilatildeo de um acordo universal [] parece-nos devido apenas agrave sua generalidade Eles podem ser tratados como vaacutelidos por uma audiecircncia universal apenas sob a condiccedilatildeo de que o conteuacutedo natildeo seja especificado assim que entramos nos detalhes temos contato apenas com a adesatildeo de audiecircncias particulares (PERELMAN OLBRECHTS-TyTECHA 1969 p 76)

De modo a ilustrar como a Nova Retoacuterica pode nos ajudar a articular a diferenccedila entre reivindicaccedilotildees avaliativas e reivindicaccedilotildees eacuteticas consideraremos o papel do meacutedico e ex-senador Bill Frist no caso Terry Schaivo Cumpre lembrar que esse caso ocorreu na Floacuterida e envolveu um conflito entre os pais da mulher e o marido sobre a remoccedilatildeo de tubos de alimentaccedilatildeo que a levaram agrave morte Um nuacutemero de meacutedicos responsaacuteveis por Schaivo declarou seu ldquoestado vegetativo permanenterdquo condiccedilatildeo sob a qual as leis da Floacuterida permitem a eutanaacutesia O estado interveio a favor dos pais e os tribunais deram decisatildeo contraacuteria a tal ponto que membros do Congresso Norte-Americano tentaram intervir em favor dos pais O senador Frist chegou a alegar que Schaivo natildeo estava em estado vegetativo permanente ao assistir a um breve viacutedeo

Com esse pano de fundo consideremos as diferenccedilas entre um julgamento avaliativo das habilidades meacutedicas de Frist e o julgamento eacutetico de sua interven-ccedilatildeo no caso A excelecircncia de Frist como meacutedico eacute melhor mensurada por padrotildees gerais da profissatildeo meacutedica e pelos padrotildees de sua especialidade (cirurgia cardiacutea-ca) dentro dessa profissatildeo ldquoComparado a quemrdquo ele eacute um excelente cirurgiatildeo Os julgamentos impliacutecitos em reivindicaccedilotildees avaliativas satildeo sempre condicionados

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A construccedilatildeo do argumento

a esse tipo de perguntas Ao formar uma resposta para essas questotildees eacute nossa incumbecircncia selecionar o menor grupo de referecircncia aplicaacutevel e tirar daiacute nossos criteacuterios e agirmos com prudecircncia para que esses criteacuterios cumpram sua funccedilatildeo no grupo a que servem Desse modo enquanto todos os meacutedicos deveriam possuir uma confortante relaccedilatildeo meacutedico-paciente e um grau razoaacutevel de destreza manual os meacutedicos de famiacutelia devem ser julgados mais pela relaccedilatildeo meacutedico-paciente do que pela destreza manual Na medida em que as pessoas se opotildeem agraves funccedilotildees da classe e aos pesos atribuiacutedos por diferentes criteacuterios o debate ultrapassa o domiacutenio meacutedico e sua avaliaccedilatildeo Quem discorda tem de apresentar valores de seu repertoacuterio pessoal e fazecirc-los valer na profissatildeo meacutedica

Em relaccedilatildeo agrave oposiccedilatildeo de Frist de remover os tubos de alimentaccedilatildeo de Ter-ry Schaivo por outro lado o julgamento dessa accedilatildeo natildeo eacute condicional na mesma medida em que as reivindicaccedilotildees de avaliaccedilatildeo do tipo precedente costumam ser A accedilatildeo tomada por ele natildeo pertence agrave classe mais ampla de accedilotildees portadoras de criteacuterios derivados da funccedilatildeo da classe Os criteacuterios para julgamento da qualidade da accedilatildeo devem vir de crenccedilas pessoais e valores de quem julga Essa eacute a dimensatildeo ldquolocalrdquo do julgamento eacutetico aludida pelos autores da Nova Retoacuterica A fonte do jul-gamento eacute local mas as implicaccedilotildees do julgamento satildeo universais Certamente haacute casos como o do dos Nazistas citado por John Leo no qual a proporccedilatildeo dos que concordam com o julgamento eacute tatildeo ampla que chega a ser virtualmente universal Poreacutem poucas questotildees eacuteticas seriam pertinentes se a concordacircncia com todos os julgamentos fosse tatildeo assimeacutetrica

Desse modo enquanto apenas uma parcela de pessoas pode concordar com Frist no que diz respeito agrave remoccedilatildeo do tubo de alimentaccedilatildeo de uma pessoa em permanente estado vegetativo por quatorze anos a reivindicaccedilatildeo implica que to-dos devem concordar com o julgamento O fato de ele ser meacutedico nesse tempo daacute a ele pouco poder no debate moral sobre eutanaacutesia Qualquer argumento por ele oferecido agrave populaccedilatildeo norte-americano da qual trecircs quartos discordaram quando ele se opocircs agrave morte de Schaivo teria fundamento moral Enquanto em um niacutevel

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A construccedilatildeo do argumento

geral todos podem concordar com esse meacutedico de que uma ldquocultura da vidardquo eacute uma boa ideia o caso de Schaivo compeliu o puacuteblico a ldquoentrar em detalhesrdquo sobre o significado desse princiacutepio e quando assim o fizeram houve muita dissidecircncia Esse resultado eacute previsiacutevel por qualquer leitor da Nova Retoacuterica

No contexto da teoria proposta por Perelman e Olbrechts-Tyteca o que po-deria parecer agrave primeira vista ser uma tarefa simples no contexto da teoria das Stasis eacute ao fim bastante complicado De acordo com a Nova Retoacuterica as pessoas natildeo subscrevem monoliticamente a valores Indiviacuteduos e grupos hierarquicamente mantecircm valores e eacute por isso que dois indiviacuteduos que pertencem nominalmente ao mesmo grupo e admitem os mesmos valores podem ranqueaacute-los de maneiras significativamente diferentes Duas pessoas desse modo que admitem os valores sobre a ldquocultura da vidardquo podem concordar que o aborto eacute algo muito ruim e ao mesmo tempo se dividir sobre o papel da pesquisa com ceacutelulas-tronco Por sua vez tais diferenccedilas sobre a questatildeo do uso de ceacutelulas-tronco podem refletir outra distinccedilatildeo de tipos de valores discutida por Perelman e Olbrechts-Tyteca a distinccedilatildeo entre valores concretos e abstratos Natildeo importa o quatildeo ardentemente algueacutem se oponha ao sacrifiacutecio de vidas humanas em termos abstratos pode-se abrir uma exceccedilatildeo para o caso da pesquisa com ceacutelulas-tronco quando algum ente querido eacute atingido por uma doenccedila grave cuja possibilidade de cura eacute aumentada por esse tipo de pesquisa Novamente o que a Nova Retoacuterica nos ensina sobre a reivindica-ccedilatildeo por valores eacute que o julgamento sobre o niacutevel de bondade ou maldade eacute guiado pela natureza local dos valores em questatildeo Os valores em questatildeo raramente satildeo tomados como simplesmente bons ou maus Eles satildeo melhores ou piores que outros e a interaccedilatildeo entre eles pode atenuar ou intensificar os julgamentos baseados neles mesmos Por isso a probabilidade de algueacutem diminuir a adesatildeo da audiecircncia a um valor ao evocar uma alternativa mais estimada eacute maior se comparada agrave tentativa de desacreditar e desmerecer o valor contestado

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A construccedilatildeo do argumento

introduccedilatildeo a stephen toulmin

A uacuteltima de nossas figuras da Retoacuterica contemporacircnea o filoacutesofo britacircnico Stephen Toulmin talvez seja o mais controverso A abordagem desse autor jaacute foi considerada a-retoacuterica ndash e certamente sua escolha infeliz de casos ilustrativos datildeo suporte a essa acusaccedilatildeo ndash e com frequecircncia a aplicaccedilatildeo em sala de aula eacute evitada Alguns professores descrevem tal abordagem como muito limitada outros recla-mam que eacute confusa Da mesma forma que as outras figuras discutidas neste capiacutetulo deve-se estar atento agraves expectativas para a aplicaccedilatildeo desse autor O que se espera da sua abordagem Quando se responde a essa pergunta de maneira especiacutefica e com expectativas modestas em mente em geral natildeo haacute frustraccedilatildeo Comumente problemas com essa abordagem decorrem de expectativas natildeo realistas Os autores deste livro nunca se apoiam primariamente e menos ainda exclusivamente na abordagem de Toulmin ndash muito tempo de aula dedicado a analisar argumentos a partir do esquema desse autor pode ser uma experiecircncia enlouquecedora Sempre lembramos nossos estudantes de que essas anaacutelises acarretam uma boa interpre-taccedilatildeo e que assim como os comerciais confessam suas mentiras discretamente no canto da tela ldquoos resultados apresentados podem natildeo ser tiacutepicosrdquo quando deixam de ser ilustraccedilotildees ad hoc para ser casos reais Essa abordagem eacute melhor utilizada em conjunccedilatildeo com a reivindicaccedilatildeo mais importante de um argumento como meio de ldquochecarrdquo e ter certeza de que essa reivindicaccedilatildeo diz algo muito similar agravequilo que algueacutem tem por intenccedilatildeo deixar claro aleacutem de clarificar as obrigaccedilotildees impos-tas a si ao realizaacute-la Por consequecircncia geralmente pedimos a nossos estudantes que submetam a reivindicaccedilatildeo mais importante agrave anaacutelise de Toulmin depois de completados os rascunhos Assim como na Nova Retoacuterica funciona bem em com-binaccedilatildeo com a abordagem sobre as Stasis em parte porque ambas enfatizam a reivindicaccedilatildeo Enquanto as Stasis satildeo eficazes para a expansatildeo das reivindicaccedilotildees a proposta de Toulmin eacute particularmente eficaz para refinaacute-las e delimitaacute-las Ao fim a forccedila peculiar da abordagem de Toulmin o acesso que ela permite ao fun-

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A construccedilatildeo do argumento

cionamento interno do argumento e a consciecircncia sobre as nuances linguiacutesticas do argumento fazem valer a pena evocaacute-la Isso posto vejamos as origens dessa abordagem e seus princiacutepios fundamentais

o esQuema de toulmin ndash o natildeo silogismo

Assim como na Nova Retoacuterica o ponto de partida de Toulmin em Os usos do argumento eacute a demonstraccedilatildeo loacutegico-formal (TOULMIN 1958) O que distingue a abordagem desse autor eacute o fato de que ele se manteacutem proacuteximo ao modelo loacutegico inventando uma variaccedilatildeo do silogismo categorial para apontar as deficiecircncias do arrazoado silogiacutestico ndash em particular a natildeo atenccedilatildeo dada agraves circunstacircncias e agrave in-diferenccedila sobre verdades substantivas e analiacuteticas ndash enquanto preserva algumas caracteriacutesticas especialmente a habilidade de tornar os argumentos mais trans-parentes A abordagem de Toulmin mais estreita que as outras tratadas neste capiacutetulo supre sua falta de riqueza com a capacidade de tornar os argumentos mais coerentes e mais transparentes

Em oposiccedilatildeo ao silogismo categorial e seus trecircs elementos (premissa maior premissa menor e conclusatildeo) Toulmin evoca seis (1) dado (2) garantia (3) tese (4) reforccedilo (5) reserva (6) qualificador Para ilustrar um esquema tiacutepico de Toul-min tomaremos emprestado um dos famosos exemplos ldquoa-retoacutericosrdquo Em poucas palavras o ldquoargumentordquo tal como eacute segue este caminho Petersen eacute sueco e como sueco pode ser considerado quase certamente como natildeo catoacutelico Petersen eacute quase certamente natildeo catoacutelico O argumento inclui quatro dos seis elementos ldquoPetersen eacute suecordquo eacute o dado ou ldquoo que permanecerdquo ldquoUm sueco pode ser considerado quase certamente como natildeo catoacutelicordquo eacute a garantia a generalizaccedilatildeo ou a regra que licen-cia as inferecircncias sobre o dado e leva agrave tese ldquoPetersen natildeo eacute catoacutelicordquo O ldquoquase certamenterdquo representa o qualificador ou medida de confianccedila que se pode ter na conclusatildeo baseada na forccedila da garantia e no poder do dado Um argumento pode tambeacutem incluir os outros dois elementos ldquoreservardquo e ldquoreforccedilordquo O primeiro

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A construccedilatildeo do argumento

aponta para exceccedilotildees agrave regra implicada pela garantia No caso de nosso amigo sueco a possibilidade digamos de ter passado feacuterias na Itaacutelia ter-se apaixonado por uma catoacutelica e converter-se para poder casar na igreja Jaacute o ldquoreforccedilordquo inclui todas as certezas de que a garantia por noacutes usada eacute aceitaacutevel Nesse caso podem ser dados estatiacutesticos que apontam para a pequena proporccedilatildeo de suecos adeptos do catolicismo

Eacute usual encontrar o esquema de Toulmin reduzido a apenas trecircs dos elemen-tos dado-garantia-tese ou como proposto em alguns livros didaacuteticos evidecircncia--razatildeo-conclusatildeo Esse trio eacute provavelmente menos difiacutecil para os novatos mas quando se simplifica o esquema dessa maneira perde-se muita da precisatildeo da abordagem do autor muitas garantias podem ser definidas como razotildees mas eacute impossiacutevel converter razotildees em garantias Aleacutem disso razotildees tambeacutem servem como motivaccedilatildeo A simplificaccedilatildeo do esquema acarreta igualmente uma perda de transparecircncia ou aquilo que o autor cunhou como a ldquosinceridaderdquo A funccedilatildeo primaacuteria desses elementos afinal eacute extrair informaccedilotildees das partes de um argumento que podem passar despercebidas Quando solicitamos aos estudantes para indicarem o qualificador e o reforccedilo conveacutem lembrar que esses elementos operaram no do-miacutenio das probabilidades e das contingecircncias e natildeo satildeo categoacutericos forccedilando-os a calibrar cuidadosamente o grau de confianccedila na tese e assinalar as possibilidades sob as quais ela natildeo se sustenta

Indo mais ao ponto o esquema de Toulmin pode ldquosubstituirrdquo um auditoacuterio ceacutetico ou aquilo que o autor se refere como um ldquodesafianterdquo A esse respeito Os Usos do Argumento assim como a Nova Retoacuterica eacute fortemente influenciado pelo modelo juriacutedico de argumento Ao passo que o silogismo categorial representa em uacuteltima instacircncia um argumento por autoridade ndash o sistema da loacutegica natildeo oferece uma maneira de questionar a veracidade dos termos ou de desafiar suposiccedilotildees ndash o esquema de Toulmin antecipa questotildees sobre a veracidade levantadas por um ldquoconselho opositivordquo em cada circunstacircncia Dito de outra forma os slots no esque-

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A construccedilatildeo do argumento

ma de Toulmin representados pela reserva e pelo qualificador antecipam desafios que podem ser postos em relaccedilatildeo agrave adequaccedilatildeo das motivaccedilotildees e da relevacircncia da garantia Jaacute o reforccedilo antecipa o desafio agrave legitimidade da garantia Dada a dificul-dade que muitos de noacutes ndash especialmente os estudantes ndash apresentam para desafiar os proacuteprios argumentos Toulmin provecirc uma maneira sistemaacutetica de antecipar desafios reforccedilando nosso argumento de acordo com eles (Sem mencionar oacutebvio a criacutetica aos argumentos alheios)

No entanto Toulmin tambeacutem eacute cuidadoso ao delimitar os desafios que podem ser colocados aos argumentos Se em teoria todos os elementos de um argumento estatildeo abertos a desafios de fato a vulnerabilidade dos seis elementos eacute a limitaccedilatildeo pela convenccedilatildeo Ou seja Toulmin aceita que diferentes campos do argumento apre-sentam acordos ndash alguns taacutecitos outros expliacutecitos ndash sobre o que constitui dados suficientes e relevantes reforccedilos legiacutetimos e o que tornam irrelevantes muitos dos desafios colocados ao argumento De fato em alguns casos nomear as garantias e os reforccedilos pode ser um insulto agrave audiecircncia Por convenccedilatildeo os elementos do modelo de Toulmin satildeo menos questionaacuteveis do que parece agrave primeira vista Aleacutem disso o autor impotildee um padratildeo rigoroso ao reforccedilo exigindo um status de ldquocomo um fatordquo a ele presumidamente para evitar o prospecto inapropriado de um infinito regresso de justificativas de reforccedilos empilhados Mesmo dentro da mais rigoro-sa das convenccedilotildees disciplinares entretanto a loacutegica do modelo de Toulmin estaacute longe de ser utilitarista e estreita como a imposta pelo silogismo categorial Como mostram os trabalhos de pessoas como a economista Deirdre McCloskey em anos recentes ateacute os argumentos quantitativos da economia e de outros campos das ciecircncias sociais satildeo menos objetivos e convincentes do que faz crer as estruturas pseudo-logiacutesticas

Por fim o modelo de Toulmin tem sido aplicado e usado livremente a argu-mentaccedilatildeo sobre eacutetica e poliacuteticas puacuteblicas nas quais poucos elementos carregam definiccedilotildees aceitas por todas ou quase todas as partes do debate De fato nessas

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A construccedilatildeo do argumento

instacircncias o valor principal do modelo reside no poder de revelar a vulnerabili-dade das premissas (garantias e reforccedilo) sobre as quais se assenta o argumento e na capacidade em oferecer uma ideia mais clara do quanto pode ser provaacutevel uma conclusatildeo

a apliCaccedilatildeo do modelo de toulmin

Para ilustrar a abordagem de Toulmin eacute preciso que nos movamos das teses diretas e pouco controversas de que ele se vale em direccedilatildeo a teses mais contro-versas e abertas que os estudantes podem de fato empregar ou encontrar em um discurso persuasivo Para tomarmos emprestada uma controveacutersia recente no discurso poliacutetico norte-americano consideremos a seguinte ldquouma parte da contribuiccedilatildeo dos trabalhadores norte-americanos agrave seguridade social deve ser colocada em contas de investimento pessoalrdquo Como geralmente eacute o caso essa tese aparece com o miacutenimo de reserva ou qualificaccedilatildeo De maneira a acessar a validade da tese devemos perguntar o que o orador pode ter em mente para servir de dado garantia reforccedilo qualificador ou reserva Em outros casos como nesse devemos supri-las ou inferi-las de outras declaraccedilotildees feitas pelo mesmo orador

O mais proeminente dos dados aduzidos para justificar a tese eacute algo da se-guinte ordem ldquoo sistema de seguridade social estaraacute falido em breverdquo A primeira coisa a ser notada sobre esse dado em particular eacute o fato de que ele proacuteprio eacute uma tese De fato as bases para os argumentos do mundo real satildeo geralmente reivindicaccedilotildees natildeo imunes a questionamentos particularmente quando se estaacute engajado em temas relativos a poliacuteticas puacuteblicas diferente das controveacutersias de outros campos bem definidos cujas regras satildeo expliacutecitas e acordadas por con-venccedilatildeo Os dados raramente sobem ao niacutevel dos ldquofatosrdquo (mantendo-se em mente que ldquofatosrdquo satildeo aqui entendidos como medida de concordacircncia de uma audiecircncia e natildeo da correspondecircncia entre uma proposiccedilatildeo e a realidade extralinguiacutestica) e satildeo suscetiacuteveis a desafios Satildeo para ficarmos seguros uma reivindicaccedilatildeo mais

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A construccedilatildeo do argumento

amplamente aceita do que a que serve como conclusatildeo do argumento No entanto muitas pessoas questionaram esses dados levando em conta as definiccedilotildees qual o significado de ldquoem breverdquo e de ldquofalirrdquo

Ambas as perguntas poderiam ser respondidas por prediccedilotildees econocircmicas de longo prazo que satildeo notoriamente instaacuteveis Isso posto um consenso sobre opiniotildees econocircmicas concluiu que se nada fosse feito o sistema comeccedilaria a gas-tar mais do que recebe a partir de 2017 e que teria de reduzir os benefiacutecios entre 20 a 30 em algum momento entre os anos de 2042 e 2052 Outra previsatildeo mais terriacutevel dos defensores da mudanccedila foi rejeitada com base no fato de que eles se valeram de um conjunto de suposiccedilotildees diferentes se comparadas a outras previsotildees econocircmicas para chegar agrave conclusatildeo O sistema nunca foi projetado para falir De fato diversas anaacutelises econocircmicas das propostas mais severas que envolvem contas pessoais indicaram que em 2042 os beneficiaacuterios receberiam quantia similar ou inferior ao pior caso o cenaacuterio do ldquonada a fazerrdquo O termo ldquofali-dordquo desse modo revelou relativo em oposiccedilatildeo ao julgamento categorial Na mesma moeda oponentes da proposta enfatizaram que ldquoem breverdquo tambeacutem eacute um termo relativo e perguntaram ldquocomparado a quecircrdquo a seguridade social estaacute em um beco sem saiacuteda e ldquocomparado a quecircrdquo essa ameaccedila eacute urgente Como vimos em nossa discussatildeo sobre a Nova Retoacuterica o valor de uma reivindicaccedilatildeo seraacute afetado pelas reivindicaccedilotildees associadas por questotildees como essas Por consequecircncia quando os oponentes da privatizaccedilatildeo da seguridade social mediram os perigos que ela enfrenta face ao seguro de sauacutede o puacuteblico considerou esse uacuteltimo muito mais preocupante Comparado ao impacto da crise do sistema de sauacutede os problemas da seguridade social pareceram eminentemente mais administraacuteveis

Quaisquer que sejam os problemas com a adequaccedilatildeo dos dados agrave urgecircncia e magnitude da tese os problemas mais interessantes com a proposta segundo a perspectiva assumida no esquema de Toulmin concernem ao ato que poderia justificar a passagem do dado tese movimento que vai das bases ndash iremos assu-mir por ora a adequaccedilatildeo dos dados para justificar a instaacutevel condiccedilatildeo financeira

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A construccedilatildeo do argumento

do sistema de seguridade social ndash agrave tese Como algueacutem pode ir da afirmaccedilatildeo ldquoo sistema de seguridade social em breve estaraacute falidordquo agrave tese ldquoparte da contribui-ccedilatildeo dos trabalhadores norte-americanos agrave seguridade social deve ser colocada em contas de investimento pessoalrdquo Como eacute geralmente o caso em questotildees de poliacuteticas puacuteblicas nenhuma garantia foi articulada deixando a tarefa agravequeles que questionam a tese Ao imaginar uma garantia adequada agrave tarefa o desafiador precisa discernir o grau de certeza dos que fazem as reivindicaccedilotildees em relaccedilatildeo agrave sua adequaccedilatildeo No caso da tese em questatildeo o fato de que natildeo foi acompanhada por qualificadores ou reservas sugere a necessidade de uma garantia de forccedila consideraacutevel Ou seja qualquer regra ou princiacutepio aduzido deve fazer a conclusatildeo ser altamente provaacutevel ou certa

Para alguns inferir uma garantia eacute uma questatildeo muito simples uma vez que jaacute se estimou o grau de certeza que ela deve possuir Basicamente deve-se reafir-mar em niacutevel mais geral a relaccedilatildeo entre os dados e a tese algo como ldquosempre que dado entatildeo teserdquo ou ldquosempre que dado frequentemente teserdquo No exemplo prosaico de Toulmin em Os usos do argumento a garantia parece autoevidente a ponto de ser supeacuterflua No caso em questatildeo poreacutem a declaraccedilatildeo da garantia pode ser ao mesmo tempo autoevidente e controversa Haacute como esperado boas razotildees para natildeo declarar o oacutebvio No caso da proposta sobre a seguridade social um candidato oacutebvio para a garantia eacute algo do tipo ldquoquando um programa puacuteblico estaacute com pro-blemas privatizar ao menos parte dele eacute a melhor soluccedilatildeordquo Tudo o que fizemos foi converter os dados (o sistema social em breve estaraacute falido) e a tese (uma parte da contribuiccedilatildeo deve ser colocada em contas de investimento pessoal) em versotildees um pouco mais gerais e combinaacute-las Os proponentes do plano abandonaram os termos ldquoprivadordquo e ldquoprivatizarrdquo porque os julgaram demasiado controversos Mas quando o fizeram jaacute empregavam-no por mais de duas deacutecadas para descrever a proposta que promoviam e os sinocircnimos que julgavam ultrapassados

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A construccedilatildeo do argumento

A vantagem de reafirmar as coisas agrave moda de uma garantia eacute tornar o racio-ciacutenio subjacente ao argumento muito mais transparente Nesse processo eacute inevi-taacutevel o surgimento de questotildees que podem passar despercebidas desde que o foco seja o caso particular em apreccedilo Assim garantias para teses propositivas como a proposta da seguridade social implicam uma relaccedilatildeo causal entre um problema e uma soluccedilatildeo (problema X portanto soluccedilatildeo Y) Estabelecer tais relaccedilotildees de forma tipicamente requer o recurso a precedentes histoacutericos (soluccedilatildeo Y eacute muito parecida com soluccedilatildeo Z que jaacute funcionou em situaccedilatildeo similar) e conexotildees fiacutesicas (soluccedilatildeo y funciona do seguinte modo A entatildeo B entatildeo C) Essas preocupaccedilotildees empiacutericas estatildeo ausentes nos exemplos pouco problemaacuteticos de Toulmin nos quais o reforccedilo eacute uma simples questatildeo de conferir dados censitaacuterios No caso da seguridade social o reforccedilo agrave garantia implicada de que a privatizaccedilatildeo iraacute resolver os problemas eacute necessariamente menos ldquofactualrdquo e mais aproximado de uma reivindicaccedilatildeo por semelhanccedila (nos casos em os programas X tiveram problemas a privatizaccedilatildeo os salvou) Os exemplos de Toulmin natildeo requerem muito reforccedilo empiacuterico em parte pela similaridade com os silogismos categoriais Nesses a premissa maior simplesmente afirma pertencimento a uma categoria No exemplo de Toulmin a garantia ndash ldquoSuecos raramente satildeo catoacutelicosrdquo ndash serve agrave funccedilatildeo prosaica Apesar de natildeo ser estritamente falando uma proposiccedilatildeo categoacuterica a garantia eacute suficien-temente similar a um fato para tornar o reforccedilo algo supeacuterfluo A garantia para o argumento sobre a seguridade social eacute consideravelmente menos factual e requer reforccedilo significante para garantir a adesatildeo Em que casos a privatizaccedilatildeo foi tentada no passado onde funcionou ou natildeo e por quecirc Como a privatizaccedilatildeo da seguridade social eacute parecida com esses casos precedentes Exatamente como passo a passo a privatizaccedilatildeo levaraacute agrave salvaccedilatildeo do programa

As vaacuterias tentativas de responder tais questotildees se mostraram pouco convin-centes para a grande maioria do puacuteblico norte-americano De fato criaram mais questotildees do que respostas Como as contas privadas teriam apoio sem cortar con-

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A construccedilatildeo do argumento

tribuiccedilotildees aos benefiacutecios a que eram destinadas Qual o efeito da perda de trilhotildees de doacutelares em contribuiccedilotildees para a sauacutede financeira dos programas de seguridade social existentes Ao cabo proponentes das contas privadas recuaram na alegaccedilatildeo de que resolveriam os problemas da seguridade social e as recomendaram por razotildees distintas

Ter garantias expliacutecitas significa que podemos ser mais especiacuteficos sobre os requisitos para um reforccedilo apropriado Quais evidecircncias haacute de fato de que a pri-vatizaccedilatildeo eacute um meio eficaz para solucionar problemas com programas puacuteblicos Aqui os proponentes poderiam se voltar para um conjunto misto de evidecircncias os casos nos quais a privatizaccedilatildeo foi ou natildeo eficaz Um precedente frequentemente citado que pode servir de reforccedilo agrave nossa garantia eacute o caso do Chile que privatizou integralmente o sistema no final da deacutecada de 1970 No entanto mesmo esse pre-cedente falhou em prover um reforccedilo soacutelido agrave garantia que a tese desqualificada parecia apelar No geral o sistema chileno funcionou bem mas muitas anaacutelises sugerem que funcionou melhor para a classe meacutedia e para a classe alta do que para os mais pobres cuja maioria teria se beneficiado mais com o programa social Considerando que a seguridade social eacute um instrumento para diminuir a margem de pobreza entre idosos norte-americanos a mais ou menos dois terccedilos (de cerca de 30 para 10) desde a deacutecada de 1970 esse foi um aspecto preocupante da experiecircncia chilena Aleacutem disso a vida do programa chileno em paralelo ofere-ceu condiccedilotildees para o maior aumento de preccedilo de accedilotildees na histoacuteria da negociaccedilatildeo de bens puacuteblicos o que levou algumas pessoas a questionarem o valor preditivo dessa accedilatildeo O programa chileno estaacute neste momento sendo reformulado de modo a tentar atenuar a tendecircncia de encurtamento de benefiacutecios aos mais pobres

Hoje em dia a proposta de privatizaccedilatildeo do sistema de seguridade social nos Estados Unidos estaacute parada em funccedilatildeo do crescente volume de criacuteticas mas ainda permanece como uma possibilidade no horizonte das poliacuteticas puacuteblicas As reivin-dicaccedilotildees ousadas e natildeo modificadas que defendem as contas privadas falharam na tarefa de ganhar amplo apoio puacuteblico apesar do grande volume de capital financeiro

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A construccedilatildeo do argumento

e poliacutetico investido Quanto mais o puacuteblico ouvia os argumentos dos proponentes menor era o apoio agrave proposta A fraqueza dos argumentos poderia ser facilmente expressa sem o modelo de Toulmin No entanto a linguagem do autor oferece uma maneira precisa de expressar problemas de articulaccedilatildeo entre aacutereas distintas Retroceder agrave falha geral da qualificaccedilatildeo da tese maior serve para se reconhecer o ocircnus da prova assumido pelo argumento No contexto dessa certeza os dados que reforccedilam tanto a urgecircncia quanto a magnitude do problema parecem insu-ficientes Aleacutem disso a incompatibilidade entre o problema (a seguridade social estaacute falindo) e a soluccedilatildeo (investir parte da contribuiccedilatildeo em contas privadas) pode ser mais visiacutevel apoacutes a desconstruccedilatildeo do argumento Mais do que isso a falta de qualquer elemento proacuteximo a um fato para a garantia erodiu a confianccedila puacuteblica no argumento

Apesar dos pesares o sucesso ou fracasso de um argumento correlaciona-se com a sonoridade tal qual estabelecida por Toulmin Ao final da anaacutelise o contex-to mais amplo as circunstacircncias nas quais os proponentes deveriam ldquoencontrar meios disponiacuteveis para a persuasatildeordquo provavelmente estaacute associado ao fracasso do argumento Um sem nuacutemero de eventos recentes levaram as pessoas a serem mais adversas aos riscos em particular no que toca agrave renda da aposentadoria As quedas dos mercados de accedilotildees em 2002 seguidas de trecircs anos de fraca recupe-raccedilatildeo deixaram as pessoas muito preocupadas em relaccedilatildeo a qualquer proposta que transferissem renda para esse mercado Mais do que isso ao longo da deacutecada anterior muitos descobriram que os planos privados de aposentadoria eram insol-ventes ou severamente subfinanciados quase ao ponto de serem abolidos ou ainda o silencioso fato de que os benefiacutecios definidos foram convertidos em benefiacutecios flutuantes dependentes da performance das accedilotildees no mercado Por fim entre os fatores que levaram aos problemas do mercado em 2002 estava o relaxamento de poliacuteticas regulatoacuterias do governo federal que levaram agrave falecircncia da Enron e de muitas outras operadoras de serviccedilos financeiros A maioria dos argumentos emerge ou afunda com base em assuntos ldquosubstanciaisrdquo como esses em oposiccedilatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

agrave fraqueza ldquoanaliacuteticardquo ou formal dentro de um argumento Poreacutem ao assumir que se pode recorrer ao contexto mais amplo e a familiaridade com circunstacircncias re-levantes a proposta de Toulmin permanece uma ferramenta poderosa para checar se um argumento eacute a melhor expressatildeo desses elementos

resumo

Em siacutentese o que os professores podem extrair dessa breve histoacuteria Das anti-gas contendas com a Filosofia podemos aprender a abraccedilar as bases ldquorealistasrdquo de nosso empreendimento a aceitar o fato de que natildeo podemos prometer certezas ou verdades com ldquovrdquo maiuacutesculo como efeito da argumentaccedilatildeo Podemos entretanto oferecer meios para atingir um entendimento mais completo e mais complexo do mundo e uma probabilidade maior de que esse entendimento seraacute traduzido em accedilotildees e decisotildees Podemos lembrar o fato de que o primeiro livro abrangente de teoria retoacuterica A Retoacuterica de Aristoacuteteles eacute um manual para a participaccedilatildeo cidadatilde na democracia grega e que de iniacutecio precisamos preparar natildeo especialistas a cumprir com suas obrigaccedilotildees como cidadatildeos Podemos oferecer sem desculpas meios sistemaacuteticos para a formulaccedilatildeo e teste de argumentos mesmo se nos man-temos cautelosos de que esses meios natildeo oferecem soluccedilotildees baratas e raacutepidas Podemos na aurora da ldquovirada linguiacutesticardquo da Filosofia em que o poder da lingua-gem em construir e tambeacutem representar a realidade eacute algo reconhecido aceitar a responsabilidade em ajudar as pessoas a ldquoquebrar as correntes de um vocabulaacuterio desgastadordquo e assegurar que qualquer terminologia por noacutes empregada eacute capaz de um ldquoprogresso criacutetico de si mesmardquo Quando a linguagem eacute entendida como funda-mentalmente metafoacuterica e carregada de valor em vez de literal e neutra quando o entendimento eacute compreendido como maneira de ver uma coisa em termos de outra (identificaccedilatildeo) e natildeo como consciecircncia de que uma coisa eacute outra (identidade) a interpretaccedilatildeo deixa de ser um exerciacutecio de desambiguaccedilatildeo de linguagem pouco

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A construccedilatildeo do argumento

elaborado e passa a ser um requisito baacutesico de todo o entendimento uma traduccedilatildeo de uma compreensatildeo geral para algo especiacutefico e circunstanciado

Na mesma moeda a relaccedilatildeo entre regras ou princiacutepios gerais e casos particu-lares eacute tal que os princiacutepios natildeo satildeo assumidos para explicar os casos no modelo de conversatildeo de leis para a explicaccedilatildeo de fenocircmenos fiacutesicos Na Retoacuterica a relaccedilatildeo entre princiacutepios e casos eacute de matildeo dupla Agrave medida que os princiacutepios oferecem meios para interpretar os casos esses desafiam e alteram os princiacutepios Em suma as mudanccedilas recentes na Filosofia moveram a Retoacuterica das margens em direccedilatildeo ao centro e transformaram os focos maiores da disciplina argumentaccedilatildeo e interpre-taccedilatildeo em operaccedilotildees essenciais e natildeo mais acessoacuterias

Em termos das praacuteticas em sala de aula a Retoacuterica nos ensina que as liccedilotildees da histoacuteria satildeo muito uacuteteis para irmos aleacutem da proacutepria histoacuteria Os antigos e os primeiros modernos os grandes sistematizadores dos seacuteculos passados podem nos levar longe mas temos de adaptar seus princiacutepios gerais agraves circunstacircncias que enfrentamos A Retoacuterica tradicional era vista ndash atraveacutes das lentes distorcidas da Filosofia ndash como versatildeo de baixa qualidade da demonstraccedilatildeo loacutegica um inqueacuterito para obtenccedilatildeo de provas A esfera do argumento foi cuidadosamente delimitada e o modelo de persuasatildeo era a ocasiatildeo uma apresentaccedilatildeo oral e formal operada em poucos locais Pouca atenccedilatildeo era dada aos meios atraveacutes dos quais as mensagens eram transmitidas e os seus possiacuteveis efeitos As audiecircncias eram tratadas como dadas como algo a ser estrategicamente endereccedilado seguindo um modelo de com-preensatildeo da natureza humana que lembra uma versatildeo crua das grades psicoloacutegicas aplicadas por publicitaacuterios para a manipulaccedilatildeo da audiecircncia

Ao transmitirmos as liccedilotildees da histoacuteria em sala de aula muitas generalizaccedilotildees uacuteteis satildeo aplicaacuteveis A argumentaccedilatildeo contemporacircnea raramente eacute operada em apenas um lugar ou miacutedia Ela avanccedila em muitas frentes atraveacutes de meios diver-sos cada qual responsaacutevel por colocar demandas uacutenicas a quem argumenta Em particular os efeitos dessas miacutedias vatildeo do texto escrito ou falado ao modo de apre-

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A construccedilatildeo do argumento

sentaccedilatildeo aos filtros atraveacutes dos quais as mensagens satildeo direcionadas ao puacuteblico agrave maneira pela qual cacircmeras microfones iluminaccedilatildeo e cenaacuterios prendem a atenccedilatildeo em determinadas caracteriacutesticas em detrimento de outras Devemos atentar agraves maneiras pelas quais os gecircneros ndash discurso poliacutetico editorial carta ao editor talk shows anuacutencios impressos e televisionados etc ndash afetam nossa percepccedilatildeo do texto Muitas vezes as dimensotildees natildeo racionais ndash natildeo confundir com ldquoirracionaisrdquo ndash do argumento satildeo mais importantes do que os fatores racionais para determinar a eficaacutecia de um dado argumento Por isso devemos aprender uma maneira de ler isso Devemos oferecer oportunidades aos nossos estudantes para trabalharem com os argumentos em suas diferentes facetas e natildeo limitaacute-los a operar com coleccedilotildees antoloacutegicas de argumentos muito longos geralmente direcionados a audiecircncia de escopo muito limitado

Ao adaptar as teorias contemporacircneas para a sala de aula nossos desafios satildeo mais especiacuteficos Como organizar uma aula focalizada em torno das diversas abordagens aqui discutidas Sem sermos muito doutrinaacuterios encorajamos algo da seguinte ordem Ler profundamente a obra de Burke em especial A Rhetoric of Motives e Perelman e Olbrechts-Tyteca especialmente o Tratado da Argumentaccedilatildeo ndash A Nova Retoacuterica de forma a desenvolver um quadro conceitual a partir do qual se ensina a argumentar Entretanto a abordagem mais adaptaacutevel e uacutetil para o ensino a nosso ver eacute a abordagem da Stasis Theory Ela tem espaccedilo de sobra para acomodar qualquer assunto funciona bem para a formulaccedilatildeo e anaacutelise do argumento e ofe-rece aos novatos uma linguagem razoavelmente simples para discutir argumento Por fim recomendamos o uso cuidadoso e limitado de Toulmin em conjunccedilatildeo com a leitura profunda das reivindicaccedilotildees maiores nos argumentos dos estudantes A aplicaccedilatildeo das ideias desse autor pode ser muito uacutetil para o segundo estaacutegio do esboccedilo na escrita quando os estudantes conhecem o argumento o suficiente para perceber os pontos fortes e fracos e estatildeo suficientemente comprometidos a ponto de serem desafiados mas natildeo derrotados pelas severas interrogaccedilotildees advindas do esquema proposto por Toulmin

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caPiacutetulO 2 Questotildees sobre argumentaccedilatildeo15

Neste capiacutetulo vamos examinar quatro questotildees conexas que delineiam nosso entendimento sobre o argumento e seu valor em sala de aula Primeiro criticamos a praacutetica tradicional de ldquofalaacutecias informaisrdquo dando especial atenccedilatildeo agrave lacuna entre os modelos formais de falaacutecias e sua aplicaccedilatildeo atual Segundo vamos estender essa criacutetica agrave pragma-diaacuteletica influente escola de teoria do argumento e seu esforccedilo para construir um paradigma em que as falaacutecias podem ser mais precisamente definidas e avaliadas Terceiro usando a taxionomia das praacuteticas composicionais de Fulkerson (1996) recentemente atualizada vamos verificar as principais al-ternativas para o ensino do argumento em aulas de escrita e situar o ensino do argumento entre essas praacuteticas Finalmente vamos considerar os proacutes os contras e os desafios do ensino da propaganda em uma aula dedicada agrave construccedilatildeo do argumento

o debate sobre a falaacuteCia

O tratamento de falaacutecias informais nas aulas de escrita sobre argumento eacute muito frequente Apesar dos esforccedilos de muitos da aacuterea em pocircr fim a essa praacutetica e a despeito de alguns autores de livros didaacuteticos que gostariam de bani-las de seus livros as falaacutecias permanecem Haacute aparentemente uma espeacutecie de apelo inerente agraves falaacutecias como eacute o apelo agrave gramaacutetica prescritiva nas aulas de escrita Em uma aacuterea tatildeo fluiacutedica e complexa as falaacutecias satildeo finitas concretas e oferecem

15 Traduccedilatildeo Siacutelvio Luis da Silva

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A construccedilatildeo do argumento

aos praticantes a perspectiva perturbadora de permitir um julgamento positivo ou negativo de ser capaz de proclamar argumentos natildeo simplesmente fracos ou fortes mas completamente errados ou certos Assim exatamente como o professor de escrita solitaacuterio e preocupado em justificar uma nota ao estudante pode achar pertinente a chance de apontar a ocorrecircncia de concordacircncia verbal inadequada ou construccedilotildees sem paralelismo (natildeo discuta com o livro meu amigo) a criacutetica distraiacuteda de um argumento inconsistente do aluno pode igualmente apontar a pre-senccedila absolutamente inequiacutevoca do argumento ad hominem tu quoque (natildeo discuta com o latim meu amigo) Ao passo que ajudar os alunos a entender que uma tese eacute evidente ou vaga ou que as suas evidecircncias satildeo irrelevantes para o que pretende pode ser difiacutecil e levar tempo penalizaacute-los pelas falaacutecias e erros gramaticais gasta menos tempo e exige menos justificativas

Por certo aqueles que usam as falaacutecias informais no ensino do argumento tecircm um motivo mais nobre Haacute uma longa tradiccedilatildeo na maneira de ensinar as falaacutecias que remonta aos seus primoacuterdios A gecircnese da abordagem das falaacutecias pode ser atribuiacuteda a Aristoacuteteles que primeiramente em De Sophisticis Elenchis (e tambeacutem em Prior Analytics e Rhetoric) tratou das falaacutecias como uma coleccedilatildeo de argumentos intencionalmente enganadores propostos pelos sofistas para confundir e cativar seus oponentes Algumas das treze falaacutecias enumeradas por ele satildeo completamente dependentes de artimanhas linguiacutesticas mas outras satildeo independentes da lin-guagem Contudo os problemas de obscuridade que envolvem as falaacutecias atraveacutes dos seacuteculos estatildeo presentes desde a primeira vez que se fez essa distinccedilatildeo Como mencionado por Eemeren et al (1996) os exemplos de falaacutecias linguiacutesticas e natildeo linguiacutesticas de Aristoacuteteles natildeo satildeo particularmente esclarecedores Na verdade muitos estudantes atuais de falaacutecia satildeo pressionados a encontrar algumas que natildeo sejam dependentes do uso evasivo alterado ou ambiacuteguo da linguagem Con-sideremos o seguinte argumento sofiacutestico retirado do Euthydemus de Platatildeo que eacute mencionado como um exemplo de falaacutecia dependente da linguagem vocecirc tem um cachorro seu cachorro eacute pai dos filhotes seu cachorro eacute seu pai (citado por

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Eemeren et al 1996 p 58-59) Posto dessa forma o argumento pareceria ser o mais completo absurdo e incapaz de enganar o mais creacutedulo dos interlocutores Ateacute em seu formato original de diaacutelogo parece ser completamente evidente Agrave luz do pensamento de Aristoacuteteles essa eacute uma falaacutecia dependente da linguagem ba-seada em ldquouma mudanccedila ilegiacutetima de um atributo de uma propriedade acidental de um sujeito [] ao proacuteprio sujeito ou vice-versa O que Aristoacuteteles entende aqui por lsquoacidentalrsquo natildeo eacute clarordquo (EEMEREN et al 1996 p 59) Mesmo se pudeacutessemos imaginar o que precisamente Aristoacuteteles tinha em mente ao designar um atributo ldquoacidentalrdquo a maioria de noacutes acharia a sua explicaccedilatildeo desnecessariamente tortuosa e complexa O simples fato de um cachorro ser o pai de alguns filhotes natildeo o faz pai de toda pessoa no mundo assim como designar algueacutem como esposa natildeo implica designar todo o resto no mundo como seu marido Essa eacute uma grande categoria de erro do tipo que pessoas na vida real simplesmente natildeo cometem

A uacutenica razatildeo para classificar isso como uma ldquofalaacutecia dependente da lingua-gemrdquo eacute o fato de que eacute tatildeo absurdamente grosseira que poucas pessoas satildeo passiacuteveis de serem enganadas pela artimanha linguiacutestica que transforma ldquoseurdquo e ldquopairdquo em propriedades universalmente aplicaacuteveis De fato muitos dos exemplos de falaacutecias paradigmaacuteticas de hoje satildeo por si mesmos mal engendrados como os exemplos antigos Isso natildeo surpreende uma vez que muitos deles parecem ter sido retirados de exemplos de falaacutecias de livros didaacuteticos tambeacutem antigos

Mesmo assim as falaacutecias continuam a ser um ponto essencial nas aulas de escrita dedicadas ao argumento a despeito do fato de que como Fulkerson (1996 p 96) ressaltou ldquo[] nunca houve uma definiccedilatildeo consensual ou uma classificaccedilatildeo utilizaacutevel de falaacuteciasrdquo e o nuacutemero atual de falaacutecias mencionado nos livros didaacuteticos varia demais inclusive com nomes diferentes Na tentativa de tornar o estudo das falaacutecias mais uacutetil para os professores de escrita Fulkerson (1996) cita o trabalho da loacutegica informal em especial uma definiccedilatildeo de falaacutecia desenvolvida por Kahane (1971) De acordo com a anaacutelise de Fulkerson (1996 p 97) dessa definiccedilatildeo existe uma falaacutecia se algueacutem natildeo puder responder ldquosimrdquo para as seguintes questotildees

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1 As premissas ndash tanto as expliacutecitas quanto as impliacutecitas ndash satildeo aceitaacuteveis2 Todas as informaccedilotildees relevantes e importantes satildeo levadas em con-sideraccedilatildeo3 A forma do argumento satisfaz as regras relevantes da loacutegica

Fulkerson (1996) deixa de lado a terceira questatildeo com base no fato de que ela trata das regras de deduccedilatildeo formal que a torna difiacutecil de ser aplicada sem se dispensar um tempo extenso com o ensino de loacutegica tempo que poderia ser melhor utilizado em questotildees mais relevantes Aleacutem disso problemas de loacutegica formal ra-ramente ocorrem em argumentos do mundo real Ele entatildeo passa a citar as onze maiores falaacutecias que define como ldquorelevanterdquo no sentido de que elas satildeo natildeo formais e enquadram-se nas duas questotildees apresentadas pela definiccedilatildeo de Kahane (1971)

A discussatildeo de Fulkerson (1996) eacute uacutetil e clara e qualquer pessoa determinada a ensinar falaacutecias nos argumentos deveria se referir a ela Como o autor esclarece desde o iniacutecio e ao longo de sua discussatildeo que ldquoa falaacutecia das falaacuteciasrdquo por assim dizer eacute confundir um defeito relevante com um defeito formal Pressupotildee-se como muitos fazem que ldquo[] qualquer argumento cuja falaacutecia natildeo eacute identificaacutevel seja um bom argumentordquo (FULKERSON 1996 p 15) eacute semelhante a presumir que qualquer argumento sem erros factuais seja aceitaacutevel A ausecircncia de falaacutecia natildeo garante um argumento persuasivo da mesma maneira que a ausecircncia de erros formais na deduccedilatildeo garante um argumento aceitaacutevel Da mesma forma encontrar um argu-mento particular apresentado da mesma maneira que um argumento falacioso natildeo garante que seja falacioso No caso de um argumento ldquoem cadeiardquo se algueacutem argumenta que fazer A leva a B que levaraacute a C e assim por diante esse argumento pode ou natildeo ser defeituoso Algumas cadeias satildeo afinal de fato escorregadias e algumas cadeias casuais mesmo as muito longas satildeo hermeacuteticas

O simples fato de um argumento seguir um padratildeo que geralmente eacute seguido por argumentos que acabam por ser falaciosos natildeo garante que o argumento em questatildeo seja falacioso O erro que alguns cometem ao pensar assim eacute o mesmo da

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falaacutecia de post horc ergo proper hoc (depois disso portanto por causa disso) Even-tos conectados em ordem sequencial satildeo apenas um indiacutecio de causalidade e ateacute que algueacutem possa realmente mostrar a relaccedilatildeo causal natildeo se tem nada provado O mesmo acontece com argumentos falaciosos Ao final deve-se sempre mostrar com bases soacutelidas exatamente por que eles satildeo falaciosos Uma vez mostrado conclusivamente que uma linha especiacutefica de raciociacutenio eacute falaciosa tipicamente apenas se enfraqueceu um argumento geral natildeo o anulou

Poreacutem como as objeccedilotildees anteriores agrave abordagem das falaacutecias sugerem alguns insights uacuteteis podem surgir ao se observarem os argumentos com as lentes das falaacutecias Vista como heuriacutestica ou como sintoma que levanta as questotildees aponta-das sobre dado argumento ao inveacutes de um algoritmo que classifica ou avalia um argumento a falaacutecia pode nos levar a uma linha de investigaccedilatildeo frutiacutefera Muitas falaacutecias realmente aparecem em argumentos do mundo real sob formas reconhe-ciacuteveis Por exemplo as falaacutecias mencionadas na conjunccedilatildeo com causalidade as veneraacuteveis post hoc ergo propter hoc e as falaacutecias ldquoem cadeiardquo aparecem frequen-temente especialmente em conjunccedilatildeo com argumentos poliacuteticosincitativos De forma diferente os argumentos nas ciecircncias por causa das regras mais riacutegidas de evidecircncia e dos meios mais precisos de se medir e por causa de uma tradiccedilatildeo de se fazerem afirmaccedilotildees cuidadosamente qualificadas tendem a produzir afirma-ccedilotildees menos controversas (ou pelo menos em relaccedilatildeo agraves do domiacutenio puacuteblico) Os argumentos de causalidade no cenaacuterio poliacutetico puacuteblico tendem a ser tanto mais difiacuteceis de qualificar quanto mais faacuteceis de manipular para fins poliacuteticos No caso das provas escolares por exemplo o estabelecimento de provas mais elaboradas nas escolas primaacuterias e secundaacuterias eacute tido como uma evidecircncia de que algo estaacute sendo feito para melhorar o sistema escolar e ainda melhor para garantir que ldquonenhuma crianccedila [seja] deixada para traacutesrdquo Nesse contexto o aumento de dois ou trecircs pontos nas notas escolares eacute entendido como uma validaccedilatildeo de um ldquomovimen-to de prestaccedilatildeo de contasrdquo No entanto um aumento na nota que vem ldquodepois das provasrdquo natildeo garante nem que as melhores notas sejam ldquopor causa da provardquo nem

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mais importante que a prova meccedila aprendizagem e proficiecircncia reais O resultado da prova pode muito bem indicar que os professores estatildeo ensinando melhor para a prova e que os estudantes estatildeo indo melhor nas provas ou que estatildeo sendo faacuteceis

Quando os resultados das provas estaduais usados para medir o progresso do aluno satildeo contestados pelos resultados de provas nacionais projetados para medir a proficiecircncia do aluno sem viacutenculos com o financiamento ou o credenciamento escolar o ldquoprogressordquo na prova estadual precisa ser reexaminado Como um nuacutemero consideraacutevel de criacuteticos do movimento das avaliaccedilotildees educacionais tem mostrado as provas por si mesmas nada fazem para melhorar a aprendizagem dos alunos Ou como alguns criacuteticos tecircm ilustrado ldquonatildeo se engorda um porco pesando-ordquo

Exemplos desse raciociacutenio falacioso podem ser encontrados em vaacuterios deba-tes puacuteblicos e para dizer a verdade natildeo satildeo desconhecidos pela impressa Ter em mente padrotildees falaciosos pode potencialmente ajudar as pessoas a reconhecer os sinais de raciociacutenio falacioso quando se deparam com eles e a organizar a resposta para os argumentos que eles trazem nas entrelinhas A decisatildeo de se discutir ou natildeo as falaacutecias informais em uma aula de escrita tem menos a ver com a prevalecircncia do problema que elas engendram ou da utilidade das falaacutecias para detectar tais problemas do que com os desafios pedagoacutegicos que elas trazem Para os conhece-dores de falaacutecias as que satildeo reais satildeo facilmente distinguiacuteveis das aparentes Por outro lado a forma eacute facilmente confundida com a substacircncia pelos inexperientes Algueacutem que procura argumentos post hoc ergo propter hoc pode achar um que faz adequadamente uma alegaccedilatildeo tiacutemida de relaccedilatildeo causal baseada em correlaccedilotildees es-tatiacutesticas altamente persuasivas e ainda assumir que todo o argumento eacute falacioso

Haacute mais problemas pedagoacutegicos com a abordagem das falaacutecias O filoacutesofo Michael Scriven um antigo liacuteder do movimento do pensamento criacutetico opocircs de acordo com Eemeren et al (1996 p 182) ldquo[] o uso de falaacutecias com o objetivo de criticar o argumento alegando que fazer isso requer construir durante o processo de identificaccedilatildeo do argumento todas as habilidades necessaacuterias para a anaacuteliserdquo Por que ensinar os estudantes o vocabulaacuterio ldquoteacutecnico das falaacuteciasrdquo Scriven ques-

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tiona se determinar o estado real do argumento pode ser feito da mesma maneira na ldquolinguagem naturalrdquo de alegaccedilatildeo evidecircncia razatildeo e assim por diante usada na anaacutelise retoacuterica tradicional Aprender a terminologia latina das falaacutecias eacute na visatildeo de Scriven um passo desnecessaacuterio A ldquoprecipitada generalizaccedilatildeordquo universal das falaacutecias por exemplo natildeo oferece nada de novo no sentido de fornecer uma ferramenta para se saber o quatildeo bem embasado um argumento eacute Evidecircncia fraca natildeo eacute apenas uma falaacutecia eacute a base de enfraquecimento de muitos argumentos Eacute prudente julgar a adequaccedilatildeo de uma sustentaccedilatildeo no acircmbito da compreensatildeo e no grau de ceticismo que uma determinada audiecircncia empresta ao argumento

Em linhas gerais entatildeo noacutes partilhamos do ceticismo de Scriven a respeito da utilidade da terminologia das falaacutecias em nossas aulas Da mesma forma sem-pre tentamos oferecer pelo menos uma breve exposiccedilatildeo de um grupo selecionado de falaacutecias como aquelas que lidam com a causalidade que realmente surgem no mundo real e que podem se tornar mais reconheciacuteveis com o uso do vocabulaacuterio das falaacutecias Na nossa experiecircncia pelo menos alguns alunos acreditam que a abordagem eacute uacutetil

a abordagem pragma-dialeacutetiCa das falaacuteCias

A criaccedilatildeo da Sociedade Internacional para o Estudo do Argumento (ISSA) com sede na Universidade de Amsterdatilde e composta majoritariamente por linguistas europeus e canadenses filoacutesofos retoacutericos e teoacutericos da comunicaccedilatildeo eacute um tema que merece atenccedilatildeo apenas porque os principais membros publicaram muito sobre o assunto e satildeo frequentemente citados por estudantes americanos de argumento16 Em certa medida a pragma-dialeacutetica (P-D) representa uma tentativa de resgatar a

16 O extremamente uacutetil Fundamentals of Argumentation Theory que temos citado tem a participaccedilatildeo de dez membros do iSSa e os dois autores principais van eemeren e grootendorst satildeo os fundadores da abordagem

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abordagem das falaacutecias das vaacuterias criacuteticas apresentadas anteriormente e daacute con-tinuidade ao trabalho promissor iniciado pela loacutegica informal e os movimentos do pensamento criacutetico dos anos 1970 e 1980

A maioria dos estudantes americanos de argumentaccedilatildeo vai achar o nome dessa abordagem no miacutenimo um pouco intrigante A tradiccedilatildeo pragmaacutetica da filo-sofia americana que inspira o trabalho de muitos retoacutericos americanos e muitos filoacutesofos americanos contemporacircneos que apoiam as abordagens retoacutericas do argumento vai muito aleacutem do que os defensores da P-D parecem ter em mente Para os pragmatistas americanos a adoccedilatildeo de uma abordagem pragmaacutetica impli-ca certas assunccedilotildees a respeito da centralidade da linguagem para a compreensatildeo do mundo e consequentemente modelos de construccedilatildeo do conhecimento como a ldquoconversa da humanidaderdquo de Oakeshott (1975) e Rorty (1979) e a metaacutefora da ldquosalardquo de Burke (1941)17 Isso implica uma rejeiccedilatildeo agraves abordagens formalistas e sis-temaacuteticas da Filosofia em favor de uma abordagem ldquoedificanterdquo e interativa O fim da Filosofia em favor do pragmatismo se repousa natildeo em uma maior quantidade de conhecimento ou maiores certezas a respeito da Verdade mas em decisotildees e atos que levam algueacutem substancialmente para mais perto de uma visatildeo da ldquoboa vidardquo uma visatildeo que pragmatistas continuamente questionam e modificam em respostas agraves mudanccedilas na base O movimento P-D entretanto parece identificar ldquopragmaacuteticardquo principalmente com o ato de considerar premissas natildeo expressas de argumentos de acordo com ldquopadrotildees de discurso fundamentadordquo (EEMEREN et al 1996 p 14) A parte pragmaacutetica da P-D portanto licencia as pessoas a consultar ldquoinformaccedilotildees contextuais e conhecimento preacuteviordquo (EEMEREN 1966 p 15) para a avaliaccedilatildeo da validade de um argumento e a teoria dos atos de fala para determinar a funccedilatildeo de uma dada afirmaccedilatildeo

17 Burke (1941) se utiliza da metaacutefora da ldquosalardquo para esclarecer que quando entramos em uma sala na qual haacute outras pessoas e tentamos participar da conversa precisamos ouvir e tentar compreender o que estaacute acontecendo e que soacute conseguimos participar da conversa depois de termos informaccedilotildees suficientes a respeito do assunto

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Essa compreensatildeo mais modesta da Pragmaacutetica pode ser levada ao ponto de partida para a abordagem P-D a abordagem dedutivista tradicional do argumen-to baseada inteiramente em regras internas para os argumentos bem formados Comparada agrave essa uacuteltima abordagem o desejo dos analistas de P-D de consultar o extraverbal os elementos natildeo formais do argumento e considerar os motivos e propoacutesitos pode ser visto como significativo poreacutem a sua semelhanccedila eacute miacutenima com compreensotildees mais robustas de pragmatismo por estudantes americanos de argumento

Da mesma forma a parte ldquodialeacuteticardquo da anaacutelise P-D eacute quando comparada com os usos americanos do termo igualmente modesta A abordagem dialeacutetica de Burke para a compreensatildeo como exemplificado em seu meacutetodo dramaacutetico eacute por exem-plo um grande instrumento de compreensatildeo Enxergar algo ndash leia-se ldquoatordquo ndash em termos de outra coisa ndash leia-se ldquoagenterdquo ndash resulta em uma uacutenica compreensatildeo do fenocircmeno em questatildeo A inversatildeo do par em questatildeo ou a substituiccedilatildeo por termos diferentes resulta em uma compreensatildeo radicalmente diferente Isso eacute um meio de compreensatildeo do mundo que resiste agrave conclusatildeo e certeza o que eacute acima de tudo heuriacutestico A compreensatildeo do termo P-D entretanto se baseia na assunccedilatildeo de que ldquo[] toda argumentaccedilatildeo se daacute entre dois (ou mais) participantes que estatildeo engajados em uma interaccedilatildeo muacutetua e sincrocircnica com o objetivo de solucionar um problemardquo (FULKERSON 1996 p 15) Eacute uma compreensatildeo entusiasmada de argumentaccedilatildeo ndash de acordo com EEMEREN et al (1996 p 277) mais um exerciacutecio de ldquoresoluccedilatildeo conjunta de problemasrdquo do que de persuasatildeo ndash e natildeo por acaso di-ficilmente encontrado no mundo real Enquanto os propositores da P-D poderiam felizmente garantir que poucos argumentos atingem seu ideal ndash ldquopor muitas razotildees a realidade argumentativa nem sempre se assemelha com o ideal de uma discussatildeo criacuteticardquo (EEMEREN et al1996 p 295) ndash eles defenderiam o modelo na medida em que isso fornecesse um padratildeo uacutetil que avaliasse o mundo real dos argumentos

Isso nos leva de volta ao iniacutecio da discussatildeo a tentativa da P-D de salvar fa-laacutecias Eles dizem que faltava nas abordagens tradicionais de falaacutecia um padratildeo

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A construccedilatildeo do argumento

para distinguir os argumentos que se parecem com argumentos falaciosos dos que satildeo realmente falaciosos Embora seu proacuteprio padratildeo seja eles diriam muito rigoroso natildeo eacute irrealista Eles podem estar certos O maior obstaacuteculo para usar a abordagem com a maioria dos estudantes americanos de argumento que opotildeem Retoacuterica agrave Filosofia ou agrave Linguiacutestica eacute a grande complexidade do modelo Se al-gueacutem usa P-D em sua aula deve estar preparado para usaacute-la sozinha porque boa parte do semestre vai ser dispensada para elucidar os elementos do sistema e ilustrar esses elementos com exemplos extremamente simples e muito distantes dos tipos de controveacutersias que os alunos realmente encontram no mundo Como a P-D eacute uacutetil para interpretar a apresentaccedilatildeo de um argumento mais simples ela lembra a abordagem de Toulmin No entanto nesse aspecto ela requer a aquisiccedilatildeo de uma gama maior de vocabulaacuterio necessaacuterio para traduzir a linguagem natural da argumentaccedilatildeo em padratildeo P-D apropriado o que eacute algo como Toulmin elevado ao quadrado Talvez ao cubo Consideremos os elementos do sistema haacute quatro princiacutepios teoacutericos dos quais derivam normas para o estudo do argumento haacute quatro estaacutegios de ldquoresoluccedilatildeo diferentesrdquo haacute dez regras de discussatildeo criacutetica haacute quatro tipos de atos de fala usados em vaacuterios estaacutegios para se chegar agrave soluccedilatildeo treze usos possiacuteveis de cinco atos de fala nos quatro estaacutegios e quarenta e trecircs possiacuteveis regras de violaccedilatildeo

Estaacute aberto o debate sobre o fato do benefiacutecio da enorme complexidade que a P-D defende para esclarecer quando um argumento natildeo eacute apenas formalmente mas substantivamente falacioso leva a uma anaacutelise mais efetiva Para a maioria dos professores a ideia de que os meios justificam os fins eacute aparentemente menos questionaacutevel Na medida em que a P-D eacute uma ferramenta para anaacutelise de argumento ela eacute por hora provavelmente melhor aplicada por profissionais

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A construccedilatildeo do argumento

alternativas para enfatizar a argumentaccedilatildeo em uma aula de esCrita estudos CrIacutetiCo-Culturais

Em um artigo sobre a escrita na virada do seacuteculo XXI Fulkerson (2005) procura estabelecer o cenaacuterio dos estudos da escrita contrastando o panorama atual com o que encontrou em 1990 quando ele realizou um trabalho parecido na deacutecada de 1980 O autor descobre em sua uacuteltima leitura profunda sobre o assunto que a escrita ldquo[] se tornou uma disciplina menos unificada e mais controversa no iniacutecio do seacuteculo XXI do parecia ser nos anos 1990rdquo (FULKERSON 2005 p 654) Ele identificou trecircs axiologias ou teorias de valor que datildeo origem a trecircs abordagens distintas da escrita18 As trecircs axiologias incluem a visatildeo de ldquoconstruccedilatildeo socialrdquo que daacute origem agrave abordagem dos ldquoestudos criacutetico-culturaisrdquo (ECC) uma visatildeo expressi-vista que daacute origem ao expressivismo e uma visatildeo ldquoretoacuterica multifacetadardquo que origina o que ele define como ldquoretoacuterica processualrdquo (FULKERSON 2005 p 655) Essa uacuteltima abordagem eacute entretanto dividida em trecircs formas de ldquoretoacuterica proces-sualrdquo ldquo[] escrita como argumentaccedilatildeo escrita baseada em gecircneros e escrita como introduccedilatildeo ao discurso da comunidade acadecircmicardquo (FULKERSON 2005 p 671) Segundo o autor no ambiente atual ldquomenos unificado e mais controversordquo escolher uma dessas abordagens pode facilmente se constituir em um ato controverso

Concordamos com Fulkerson (2005 p 681) sobre a divisatildeo da disciplina um estado que talvez seja melhor captado na sua citaccedilatildeo da contenccedilatildeo de Gary Olson de que os estudos da escrita estatildeo agrave beira de uma ldquoguerra de novas teoriasrdquo Somos tambeacutem simpaacuteticos com a sua clara preferecircncia agrave retoacuterica processual em geral e a uma ecircnfase argumentativa em particular Somos por outro lado menos criacuteticos a abordagens alternativas do que ele parece ser e em alguns casos nossa

18 uma quarta abordagem a aparentemente imortal corrente tradicional eacute relutantemente reconhecida mas pouco discutida por fulkerson (2005)

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A construccedilatildeo do argumento

fundamentaccedilatildeo para preferir o foco no argumento e natildeo em outra abordagem eacute diferente Parte dessas diferenccedilas indubitavelmente se deve agrave inevitaacutevel reduccedilatildeo de perspectiva que Fulkerson teve de fazer para construir um mapa legiacutevel Como ele reconhece todas essas abordagens satildeo mais complexas e heterogecircneas do que se pode abarcar no acircmbito de uma visatildeo geral Aleacutem disso natildeo estaacute claro para noacutes se uma ecircnfase no argumento eacute pedagogicamente em vez de ideologicamente incompatiacutevel com algumas dessas abordagens19

De qualquer maneira atualmente a decisatildeo de enfatizar ou em certa medida simplesmente incluir a argumentaccedilatildeo em uma aula de escrita eacute uma escolha poliacutetica para a qual se deve estar bem preparado para defender dos defensores de outras abordagens Em programas cujas decisotildees curriculares satildeo feitas coletivamente esse debate aqui ensaiado pode ser feito muito rapidamente agraves vezes arduamente

Certamente a maior mudanccedila na ecircnfase da escrita nos uacuteltimos vinte anos envolve o surgimento das abordagens dos ECC Defendida mais notadamente por James Berlin essa abordagem engloba uma gama de ecircnfases diferentes incluindo o feminismo a aprendizagem de serviccedilo ou serviccedilo comunitaacuterio e a pedagogia criacutetica (que natildeo deve ser confundida com as abordagens de pensamento criacutetico de-cididamente neutros dos anos 1970 e 1980) Fulkerson (2005 p 660) eacute criacutetico dos ECC essencialmente por enfatizar demais questotildees de justiccedila social e ldquolibertaccedilatildeo dos discursos dominantesrdquo e pela sua tendecircncia a privilegiar o empoderamento dos alunos em detrimento da melhora da escrita como um resultado do curso Ele tambeacutem eacute reticente ao foco na interpretaccedilatildeo de textos e artefatos culturais em oposiccedilatildeo agraves estrateacutegias de inventividade e revisatildeo dos textos dos alunos Ele vecirc uma inquietante semelhanccedila entre os cursos de ECC

19 No proacuteximo capiacutetulo (Introduccedilatildeo a algumas boas praacuteticas) na verdade nos atentamos a uma gama de diferentes abordagens pedagoacutegicas para o ensino da escrita que parecem perfeitamente compatiacuteveis com o foco no argumento

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A construccedilatildeo do argumento

[] e os cursos de escrita baseados em literatura popular e de resistecircn-cia Em ambos os tipos os alunos leem textos que os professores julgam importantes Eles escrevem a respeito desses textos e o seu trabalho eacute avaliado a partir do quatildeo bem demonstram que eles entendem e podem fazer uma abordagem interpretativardquo (FULKERSON 2005 p 662-63)

Cursos desse tipo supotildee Fulkerson (2005) satildeo motivados em parte pelo que ele define como ldquociuacuteme de conteuacutedordquo dos professores de escrita

Nossa preferecircncia por cursos de escrita baseados na argumentaccedilatildeo agrave abor-dagem ECC natildeo implica uma rejeiccedilatildeo total a cursos de escrita ricos em conteuacutedo mesmo quando esse conteuacutedo eacute compatiacutevel com o ensinado em um curso tiacutepico de ECC Oferecer aos alunos um conjunto de textos eou artefatos para serem lidos e discutidos natildeo impede uma instruccedilatildeo direcionada para a argumentaccedilatildeo ou a escrita Aleacutem disso em uma aprendizagem baseada na colaboraccedilatildeo ou coo-peraccedilatildeo textos e assuntos comuns podem ser extremamente uacuteteis na promoccedilatildeo da discussatildeo e negociaccedilatildeo de sentido Dito isso noacutes partilhamos de algumas das reservas de Fulkerson (2005) quanto ao que muitas vezes realmente acontece em cursos ricos em conteuacutedo especialmente quando o conteuacutedo em questatildeo eacute uma paixatildeo do professor A discussatildeo de textos selecionados e de artefatos pode custar a discussatildeo dos proacuteprios textos dos alunos e o tempo dedicado agrave invenccedilatildeo e agrave revisatildeo de seu trabalho Poucos livros didaacuteticos aparentemente feitos para o uso em cursos de ECC oferecem o bastante na forma de instruccedilatildeo ou invenccedilatildeo ou revisatildeo e menos ainda discutem seriamente princiacutepios retoacutericos Muito do que se demanda dos alunos em cursos assim eacute a escrita baseada em argumentaccedilatildeo aleacutem disso haacute pouca instruccedilatildeo clara em como produzir um argumento ou como pensar sobre ele e os exerciacutecios como os exerciacutecios sobre a construccedilatildeo do argumento nem sempre satildeo claramente focados

Certamente muitos professores que usam essa abordagem criam o seu proacuteprio material por razotildees natildeo relacionadas ao seu compromisso com o foco em ECC De qualquer forma qualquer um que usa uma abordagem ECC que deseja garantir um

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A construccedilatildeo do argumento

equiliacutebrio entre o foco no conteuacutedo e o foco na escrita do aluno deve estar prepa-rado para realizar um levantamento pedagoacutegico bem extenso

Em alguns casos os cursos de ECC baseados em um uacutenico tema podem apre-sentar temas e artefatos com o mesmo ponto de vista e apontar para uma uacutenica direccedilatildeo desencorajando as discordacircncias racionais e a reflexatildeo criacutetica a respeito dos assuntos em questatildeo Ateacute mesmo cursos essencialmente pensados para criar uma consciecircncia criacutetica podem dificultar o desenvolvimento dessa capacidade agrave medida que ignoram a maacutexima de Burke de que qualquer terminologia eacute suspeita agrave medida que natildeo permite uma criacutetica progressiva de si mesma Ao desmerecer e criticar o vocabulaacuterio dos outros eacute importante que nos mantenhamos atentos aos nossos proacuteprios limites vocabulares que seratildeo mencionados e questionados por muitos alunos cuja visatildeo poliacutetica pode ser decididamente diferente daquela dos defensores tiacutepicos da ECC

Reiteramos que natildeo achamos que os cursos de ECC necessariamente incorrem nessas falhas natildeo mais do que acreditamos que os cursos baseados na argumen-taccedilatildeo necessariamente incorrem no formalismo vazio ou noccedilotildees panglossianas de pluralismo Certamente como deixamos claro no primeiro capiacutetulo em que discutimos a instruccedilatildeo criacutetica em sentido mais geneacuterico partilhamos muitos dos objetivos libertadores anunciados pelos defensores de ECC Acreditamos que os alunos podem ser empoderados pelos cursos de escrita e que eles podem se tornar mais conscientes dos modos como o discurso e a ideologia dominantes reduzem o ciacuterculo do pensamento criacutetico Acreditamos que podem fazer isso ateacute mesmo agrave medida que se tornam melhores escritores No entanto devemos concordar eacute possiacutevel se alcanccedilarem esses objetivos sem usar exclusivamente ou mesmo signi-ficativamente os materiais comumente vistos nos cursos de ECC Na verdade em alguns casos os alunos tendem a achar ambiciosos os objetivos delineados pelos defensores da ECC em um ambiente que daacute mais ecircnfase aos processos de leitura reflexatildeo escrita discussatildeo e escuta dos proacuteprios alunos do que nos materiais pri-maacuterios e secundaacuterios normalmente encontrados no curso

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A construccedilatildeo do argumento

Qualquer curso que deseja combinar com sucesso uma ecircnfase nos materiais de ECC e na melhora da escrita dos alunos deve deixar clara a ligaccedilatildeo do trabalho entre a interpretaccedilatildeo de textos e dos artefatos feitos pelos alunos e a construccedilatildeo de seus proacuteprios textos a respeito desse material Aqui novamente nossa pers-pectiva se diferencia da de Fulkerson Enquanto ele tende a tratar a interpretaccedilatildeo como uma atividade separada que prejudica as habilidades de escrita dos alunos noacutes tendemos a ver as duas atividades como complementares e concordamos com Berthoff (1983) para quem interpretamos como escrevemos No contexto de um curso de escrita a interpretaccedilatildeo pode se tornar uma atividade inventiva um meio de gerar o texto original No entanto isso soacute pode funcionar se ficar claro para os alunos que natildeo existe ldquouma maneira certardquo de ler o material e se as muacuteltiplas formas de leitura do texto satildeo delineadas para eles pelo professor pelos colegas e pelo material que eles estatildeo interpretando Se somos tentados a limiar o desen-volvimento dos alunos como pensadores independentes em nome de conclusotildees corretas talvez desejemos cutucaacute-los ou ateacute mesmo empurraacute-los fariacuteamos bem se nos lembraacutessemos mais uma vez do conceito de ldquoreversibilidaderdquo de Berude (1998) e da nossa incapacidade de prever os fins aos quais nossos alunos datildeo aos meios intelectuais que pomos agrave disposiccedilatildeo deles

pedagodia expressivista

A criacutetica de Fulkerson (2005 p 655) agraves abordagens expressivistas que ldquo[] a despeito dos vaacuterios golpes dos canhotildees do poacutes-modernismo e dos decorrentes elogios estaacute de fato silenciosamente expandindo seu campo de atuaccedilatildeordquo indica que elas incluem ldquo[] um aumento da conscientizaccedilatildeo e a chegada de uma ala com vozrdquo (FULKERSON 2005 p 666) que em nome de uma sauacutede psicoloacutegica comete os mesmos pecados contra o ensino da escrita cometidos pelos defensores da ECC em nome da libertaccedilatildeo poliacutetica O fato de Fulkerson dedicar menos da metade do espaccedilo que usa para criticar o expressivismo do que dedica agrave criacutetica da ECC ou aos

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procedimentos retoacutericos parece refletir um pouco de desprezo por essa abordagem Ao comentar o principal exemplo um estudioso defensor do curriacuteculo expressivis-ta ele rejeita a premissa baacutesica do autor com base na ldquo[] inclusatildeo de uma uacutenica narrativa autobiograacutefica no primeiro curso ser uma praacutetica completamente padratildeo e natildeo justifica designar o curso como lsquoexpressivorsquordquo (FULKERSON2005 p 668)

Nossa visatildeo sobre o expressivismo eacute mais positiva do que a de Fulkerson Na verdade vemos como uma estrateacutegia convincente a ser adotada para pedir aos alunos que componham narrativas pessoais nas aulas de escrita focadas na argu-mentaccedilatildeo e para ensinar a ler narrativas pessoais como uma forma de argumentar Enquanto vemos cursos baseados em argumentaccedilatildeo melhor delineados para atingir os fins da Retoacuterica e em longo prazo para servir a ambos os objetivos cognitivos e de desenvolvimento dos alunos noacutes aceitamos a importacircncia do engajamento da pessoa nos cursos de escrita e reconhecemos as contribuiccedilotildees dos estudiosos feministas e expressivistas dos uacuteltimos tempos para alcanccedilarmos esse objetivo Embora a criacutetica ao expressivismo de Fulkerson (2005) seja bem formulada ele ignora alguns trabalhos interessantes que vecircm sendo feitos pela ldquosegunda geraccedilatildeordquo de acadecircmicos expressivistas e relega a segundo plano um dos mais poderosos e igualitaacuterios instrumentos de persuasatildeo

Na verdade um trabalho aacuterduo deve ser feito no desenvolvimento de meios de avaliar interpretar e responder a narrativas pessoais para atingir seu total potencial em aulas de argumentaccedilatildeo Alguns acadecircmicos expressivistas contem-poracircneos jaacute comeccedilaram a trilhar esse caminho Na sequecircncia oferecemos algumas das nossas proacuteprias observaccedilotildees destinadas a identificar armadilhas das narrativas pessoais persuasivas e formas de abordar essas armadilhas

A esse respeito citamos o artigo Argument and Evidence in the Case of the Personal de Spigelman (1993) como um caso exemplar que situa o expressivismo na tradiccedilatildeo retoacuterica (especialmente a tradiccedilatildeo Aristoteacutelica) e o concebe como uma teoria contemporacircnea que explica o papel do pessoal no contexto da escrita persu-asiva Spigelman (1993) usa a escrita pessoal ldquo[] para fazer referecircncia aos modos

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A construccedilatildeo do argumento

com os quais os escritores atribuem sentido a suas vidas por meio da organizaccedilatildeo de suas experiecircncias em histoacuterias em primeira pessoardquo (SPIGELMAN 1993 p 65)

Independentemente de sua extensatildeo essas histoacuterias ldquo[] servem a finalidades que ultrapassam a pura expressatildeo de suas opiniotildees ou de confissotildees cartaacuterticasrdquo (SPIGELMAN 1993 p 66) Uma das finalidades mais importantes a que essas nar-rativas servem eacute mostrar comprovaccedilotildees O que conta como comprovaccedilatildeo enfatiza Spigelman (1993) eacute qualquer elemento que um auditoacuterio se dispotildee a permitir como tal Nas disciplinas tradicionais isso significa que apenas aquelas formas de comprovaccedilatildeo reconhecidas pelos especialistas da aacuterea seratildeo contabilizadas Isso significa por outro lado que quem estaacute de fora dessas disciplinas tradicionais ndash frequentemente as mulheres ndash cujas experiecircncias pessoais contradizem as conclu-sotildees dos especialistas natildeo seratildeo facilmente reconhecidas por esses especialistas A narrativa pessoal entatildeo ldquoeacute entendida como lsquoum ato significativo e subversivorsquo que daacute voz e autoridade agraves reivindicaccedilotildees das mulheres para o conhecimento ao nomear as suas experiecircncias como dados admissiacuteveis e relevantesrdquo (SPIGELMAN 1993 p 66)

Ainda que a narrativa de fato desempenhe um papel importante para em-prestar autoridade agraves reivindicaccedilotildees dos excluiacutedos pode parecer que natildeo eacute sub-versiva Na sequecircncia desses desenvolvimentos como a thick description (descriccedilatildeo consistente)20 na Antropologia no novo historicismo na Literatura e na proacutepria Histoacuteria sem mencionar os trabalhos de vaacuterios teoacutericos como Paul Feyerabend e Michel de Certeau as narrativas hoje possuem a funccedilatildeo de comprovaccedilatildeo tanto para os incluiacutedos quanto para os excluiacutedos Por certo como enfatiza Spigelman (1993 p 69) alguns ldquo[] poacutes-modernistas questionam a representaccedilatildeo [das nar-

20 o termo thick description(descriccedilatildeo consistente) se tornou conhecido pelo trabalho de Clifford geertz e eacute entendido como uma forma de escrever que inclui natildeo apenas a descriccedilatildeo e a observaccedilatildeo geralmente do comportamento humano mas tambeacutem as circunstacircncias em que esse comportamento se daacute assim se vale mais do que das aparecircncias pois inclui o contexto as emoccedilotildees os detalhes e toda a rede de relaccedilotildees sociais

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rativas pessoais] de sujeitos como indiviacuteduosrdquo mas esses questionamentos satildeo mais frequentemente direcionados para a maneira como a qual a representaccedilatildeo eacute construiacuteda do que para a legitimaccedilatildeo da narrativa pessoal como tal Certamente muitos de nossos alunos vatildeo encontrar narrativa pessoal e vaacuterias formas de pes-quisa etnograacutefica na universidade e devem estar preparados para responder a isso criticamente e a reproduzi-las inteligentemente

Como Fulkerson (2005 p 662) ressalta nossa proacutepria aacuterea tem adotado ldquoum construtivismo vagamente interacionistardquo nos uacuteltimos vinte anos e no processo legitimado ateacute mesmo privilegiado a narrativa pessoal comprova a nossa pesquisa Como era de se esperar Fulkerson (2005) natildeo eacute otimista a respeito dessa evoluccedilatildeo Apoacutes termos brevemente mostrado as suas consideraccedilotildees a respeito da corrente expressivista e da nossa versatildeo significativamente revisitada dessas considera-ccedilotildees vamos retornar agrave defesa de Spigelman (1993) da narrativa pessoal como uma ferramenta educativa e persuasiva e ponderar as formas como essa defesa deve ser expandida para tornar a narrativa pessoal mais prontamente uacutetil em aulas de escrita com ecircnfase no argumento

Citando pesquisas realizadas por teoacutericos da ECC Fulkerson (2005 p 662) aponta que ldquoo apelo pedagoacutegico embora algumas vezes seja baseado em estudos de caso etnograacuteficos nunca eacute geral mas sempre local Seu status epistemoloacutegico eacute o da erudiccedilatildeo sofisticada lsquoEu vi isso acontecerrsquo ou lsquoEu fiz isso e isso ajudou meus alunosrsquordquo O questionamento de Fulkerson aqui nos parece um tanto quanto ultrapassado A primeira imperfeiccedilatildeo da pesquisa etnograacutefica ele defende eacute a de que ela natildeo pode ser generalizada No entanto eacute evidente que ela pode ser generalizada natildeo pelo seu autor mas pelo auditoacuterio De fato essas pesquisas geralmente satildeo generalizadas seja por aqueles que a conduzem ou por aqueles que a citam Nossa preocupaccedilatildeo a respeito do uso de estudos de caso eacute o fato de que natildeo fica exatamente claro ateacute que ponto ou para qual direccedilatildeo as generalizaccedilotildees podem nos levar uma vez que os limites expliacutecitos satildeo raramente conhecidos ou articulados no acircmbito dos estudos

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propriamente ditos21 Nesse sentido as pesquisas etnograacuteficas natildeo satildeo diferentes de tantos outros substratos de narrativas pessoais que intencionalmente ou natildeo deixam obscuro exatamente a funccedilatildeo para a qual a narrativa estaacute a serviccedilo ou quais regras ou generalizaccedilotildees podem ser legitimadas pelas evidecircncias que apresentam

De fato os auditoacuterios de narrativas literaacuterias poderiam considerar esse co-mentaacuterio inoportuno desnecessaacuterio e ateacute mesmo completamente ofensivo Como forma de esclarecer a funccedilatildeo e o real status de casos de narrativa em pesquisa retomamos Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969 p 350) e a sua discussatildeo sobre a confusatildeo a respeito de trecircs funccedilotildees diferentes de ldquocasos particularesrdquo exemplos ilustraccedilotildees e modelos O caso particular que eles mencionam eacute o das revistas ame-ricanas O perfil de celebridade nas revistas tem a seguinte caracteriacutestica

[] descreve a carreira de pessoas de negoacutecios poliacuteticos ou estrelas de cinema sem explicitamente tirar proveito dele Os fatos satildeo evidenciados apenas como uma contribuiccedilatildeo para a histoacuteria ou satildeo uma complementa-ccedilatildeo a ela Os exemplos estatildeo sugerindo uma generalizaccedilatildeo espontacircnea Eles satildeo ilustraccedilotildees de receitas conhecidas para o sucesso social Ou as figuras centrais estatildeo nessas narrativas sendo elevadas a modelos ex-traordinaacuterios a serem imitados pelo puacuteblico Eacute impossiacutevel de ter certeza Provavelmente uma histoacuteria como essa tem a intenccedilatildeo de ndash e com frequ-ecircncia efetivamente fazem ndash satisfazer todos esses papeacuteis para diferentes classes de leitores (PERELMAN OLBRECHTS-TYTECA 1969 p 351)

21 Um dos exemplos recentes mais conhecidos do fenocircmeno que citamos aqui o fato de pesquisador se basear fortemente em evidecircncias e narrativas natildeo comprovadas para estabelecer uma categoria de julgamentos quantitativa sobre o seu tema eacute trabalho de Debora Tannen enquanto a maioria de seus pares no campo da Sociolinguiacutestica baseia a ldquodireccedilatildeordquo de suas descobertas nas diferenccedilas na forma como os homens e mulheres se comunicam alguns se preocupam com a intensidade do impacto e a universalidade dessas diferenccedilas Para concluir a partir das descobertas de que os homens satildeo 5 ou 10 mais propensos do que as mulheres a responder a uma situaccedilatildeo especiacutefica de uma maneira especiacutefica que haacute categoacutericas diferenccedilas nas suas respostas (ou seja que eles tipificam ldquoestilosrdquo de respostas masculinas ou femininas) parece ser exagerado Para anaacutelises retoacutericas mais completas da metodologia de Tannen consultar Ramage (2005)

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Dadas as diferenccedilas de escopo de generalizaccedilotildees legitimadas por diferentes tipos de casos particulares o prejuiacutezo que resulta de relatar um caso e entatildeo cui-dadosamente evitar ldquotirar uma liccedilatildeo delerdquo pode ser significativo O caso em ques-tatildeo eacute primeiramente um exemplo que sugere um padratildeo maior mesmo se ajudar a estabelecer a existecircncia desse padratildeo Ou eacute um modelo um ideal inquestionaacutevel que o auditoacuterio deveria desejar Ou talvez seja uma ilustraccedilatildeo de um padratildeo es-tabelecido que eacute aceito como tal Deixar duacutevida a respeito dessa questatildeo eacute dar espaccedilo para se oferecer ostensivamente um evento uacutenico para o entretenimento de um auditoacuterio que eventualmente se torna uma regra imposta a esse auditoacuterio

Ao mesmo tempo em que reconhecemos alguns dos problemas de empregar casos particulares e narrativas pessoais na pesquisa acreditamos que esses proble-mas satildeo sobrevalorizados pelos valores da narrativa pessoal As narrativas pessoais satildeo uma ferramenta de pesquisa uacutetil e tambeacutem uma ferramenta de persuasatildeo po-derosa ndash assim eacute o poder da narrativa pessoal que torna o seu abuso tatildeo perigoso Ao inveacutes de distanciar os alunos das narrativas pessoais entatildeo noacutes defendemos que eles devem ser ensinados a construiacute-las e a criticaacute-las Dito isso voltamo-nos agora para o artigo de Spigelman (1993) e para algumas das preocupaccedilotildees que ela partilha sobre os perigos da narrativa no contexto da escrita persuasiva Iremos entatildeo tentar desenvolver o que a autora comeccedilou a esboccedilar

Spigelman (1993 p 79) estaacute particularmente preocupada com ldquo[] a proble-maacutetica de teste de validade em pesquisas empiacutericasrdquo e cita a questatildeo que Richard Flores levanta a respeito de seu proacuteprio trabalho

Como os meus colegas avaliadores fazem para acessar o meu trabalho acadecircmico que estaacute ligado agrave minha experiecircncia de crescer no Texas sob o olhar atento daqueles cujas visotildees dos mexicanos eram abertamente racistas Os meus colegas poderiam escrever nas suas resenhas que mi-nhas consideraccedilotildees satildeo incorretas e que eu deveria reconsiderar a mi-nha praacutetica (SPIGELMAN 1993 p 79)

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Para responder agrave questatildeo levantada por Flores Spigelman (1993) se volta para duas narrativas sobre a escrita uma de uma professora de escrita de uma faculdade comunitaacuteria outra do contista Raymond Carver

As conclusotildees contraditoacuterias a que chegaram os dois escritores ilustram a ldquoproblemaacutetica do teste de validaderdquo pelo menos para aqueles que leem as nar-rativas na esperanccedila de se depararem com insights sobre seu proacuteprio trabalho em oposiccedilatildeo agravequeles que leem por puro entretenimento No caso da professora a maior generalizaccedilatildeo ou alegaccedilatildeo que emerge da histoacuteria aponta para a futilidade de comentar a respeito da escrita dos alunos A afirmaccedilatildeo se baseia na discussatildeo que a professora teve com seu marido a respeito de um texto que ele escreveu durante o ensino meacutedio e obteve a nota 95 sem nenhum comentaacuterio No caso de Carver entretanto a maior generalizaccedilatildeo ou afirmaccedilatildeo que emerge da histoacuteria diz respeito ao feedback detalhado e agrave avaliaccedilatildeo baseada em aulas que ele teve com o romancista John Gardner Como poderia algueacutem avaliar essas duas conclusotildees aparentemente contraditoacuterias a partir de experiecircncia pessoal

Sigelman se volta para a abordagem de James Raymond oriunda das discussotildees de Aristoacuteteles sobre exemplo e entimema Ele direciona a atenccedilatildeo dos alunos para as premissas que subjazem agrave narrativa e agrave questatildeo Em que o leitor deveria acredi-tar para aceitar que os argumentos satildeo persuasivos Spigelman entatildeo expande as anaacutelises de Raymond voltando-se ao paradigma da narrativa de Walter Fisher e a sua assunccedilatildeo sobre as narrativas

[] podem ser avaliadas e criticadas por sua validade ou racionalidade aplicando-se os princiacutepios da probabilidade narrativa o que constitui uma histoacuteria coerente e fidelidade narrativa se as histoacuterias que eles [o auditoacuterio] experienciam conectam realidade com histoacuterias que eles sa-bem serem reais em suas vidas (SIGELMAN 1993 p 80)

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Para avaliar a probabilidade narrativa eacute preciso prestar especial atenccedilatildeo agraves accedilotildees e agraves falas dos personagens agrave medida que o padratildeo de adequaccedilatildeo eacute oriundo das suas accedilotildees e falas anteriores e dos valores que implicam A fidelidade narrativa entretanto demanda que examinemos as suposiccedilotildees subjacentes agraves alegaccedilotildees do escritor a respeito da importacircncia e do significado de sua histoacuteria e confrontemos essas suposiccedilotildees com nossas proacuteprias suposiccedilotildees e com as que partilhamos com outros Quando aplica essa meacutetrica agraves duas histoacuterias Spigelman descobre que a histoacuteria da professora ignora muitas variaacuteveis possiacuteveis que baseadas em suas proacuteprias experiecircncias como professorapesquisadora poderiam explicar bem mais a eventual fluecircncia na escrita de seu marido advogado do que a nota 95 sem comentaacuterios que conseguiu com o seu professor de inglecircs do segundo ano

A pesquisa de Carvey por outro lado parece mais consistente com as suposi-ccedilotildees a respeito do ensino da escrita do que ela partilha com muitos de sua aacuterea e apresenta por conseguinte maior fidelidade narrativa A habilidade de Spigelman em avaliar os dois textos sem paracircmetros impressionistas enfatiza a sua crenccedila de que se pode ensinar a outros como fazer esse trabalho Aleacutem disso como ela enfatiza depois ldquoa narrativa pessoal natildeo questionada e natildeo avaliada eacute sedutora e consequentemente perigosardquo (SPIGELMAN 1993 p 83) e natildeo podemos permitir que natildeo se ensine a escrita pessoal retoricamente constituiacuteda em nossas aulas

Acreditamos que o artigo de Spigelman eacute sugestivo e ao que parece persu-asivo No entanto como ela admite haacute ainda muito trabalho a ser feito no campo da avaliaccedilatildeo de alegaccedilotildees provenientes de experiecircncia pessoal Ainda que sempre possamos avaliar as alegaccedilotildees (quase sempre expliacutecitas) em artigos expositivos com maior grau de certeza do que podemos avaliar em alegaccedilotildees (geralmente taacutecitas) oriundas de exposiccedilotildees pessoais com certeza podemos conseguir um maior grau de confianccedila do que o estado da arte atual permite Talvez a melhor maneira de iniciar o trabalho que resta a ser feito nessa aacuterea seja perceber algumas das limitaccedilotildees dos criteacuterios avaliativos de Spigelman (1993) O primeiro passo eacute considerar a sua principal razatildeo para criticar o trabalho da narrativa pessoal da

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professora ndash o seu descuido na fidelidade narrativa A professora tira conclusotildees de sua experiecircncia pessoal sobre a falta de importacircncia do feedback que natildeo coin-cide com as crenccedilas e valores de Spigelman (1993 p 80) ou dos seus colegas A professora parece ldquo[] ignorar mais de vinte anos de pesquisas sobre a escrita em favor de uma nota raacutepidardquo No entanto Spigelman natildeo menciona nada a respeito de ldquomais de vinte anos de pesquisa sobre a escritardquo que subsidiam o que eacute consensual a respeito da importacircncia dos comentaacuterios nos textos dos alunos nem que essa lacuna eacute significativa Certamente haacute um vago consenso a respeito da importacircncia da revisatildeo e do feedback e haacute conhecimento acadecircmico desse consenso mas a) o conhecimento em questatildeo eacute menos unacircnime do que Spigelman sugere tanto na questatildeo sobre para onde os professores devem direcionar seus comentaacuterios quanto a respeito da quantidade de feedback que devem oferecer e b) pouco ou nenhuma dessas pesquisas satildeo muito recentes

Talvez o mais frequentemente citado ensaio sobre a resposta agrave escrita dos alunos Minimal Marking de Haswell (1983) natildeo encoraja a resposta zero mas efetivamente defende uma resposta econocircmica agrave escrita dos alunos Mais pontu-almente os valores e as premissas da obra de Haswell estatildeo muito longe das que motivam as dez revisotildees de Carver de um conto e as respostas cuidadosas de Gard-ner a cada um (HASWELL 1983) O artigo de Haswell (1983) parece assumir que poucos professores de escrita na universidade teriam tempo de oferecer a todos os seus alunos o grau de atenccedilatildeo que Gardner dispensa para Carver e que poucos alunos teriam a habilidade e o compromisso de aproveitar os apontamentos da forma como Carver o faz Para fazer justiccedila com os alunos poucos deles possuem o tipo de vocabulaacuterio teacutecnico requerido por Gardner para processar as observaccedilotildees meticulosas que Gardner faz Em suma o caso de Carver poderia funcionar mais como um exemplo fascinante de uma relaccedilatildeo de aprendizagem entre dois escritores extremamente talentosos do que um exemplo de relaccedilatildeo professor-aluno aplicada a aulas de escrita na graduaccedilatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

Aleacutem disso a maioria das pesquisas a respeito da revisatildeo e do feedback tem vinte anos ou mais em boa parte por causa das ldquovoltas pessoaisrdquo nas pesquisas em escrita agraves quais fizemos alusatildeo anteriormente Independentemente de suas falhas ndash e reconhecemos muitas delas ndash a pesquisa empiacuterica realmente proporcionou aos membros da comunidade da escrita uma base para o consenso nas preocupaccedilotildees baacutesicas da pedagogia como revisatildeo e feedback e hoje muitos de noacutes incluindo os que desdenham a pesquisa empiacuterica continuamos a contar com ela como base para um consenso instruiacutedo contra a ldquoerudiccedilatildeo sofisticadardquo Talvez uma parte do trabalho que mais claramente articula esse consenso o artigo de Hillocks (1984) What Works in Teaching Composition A Meta-analysis of Experimental Treatment Studies tem mais de vinte anos Ele natildeo poderia ser repetido atualmente justamen-te porque natildeo haveria estudos empiacutericos suficientes a respeito do que funciona e do que natildeo funciona na escrita para se chegar a qualquer conclusatildeo significativa

Assim como o artigo pessoal da professora ignora certas variaacuteveis importan-tes que poderiam explicar melhor o desenvolvimento do marido como escritor a anaacutelise comparativa de Spigelman (1993) das duas narrativas tambeacutem ignora certos aspectos que poderiam desempenhar um papel importante na sua avaliaccedilatildeo final Em primeiro lugar ao discutir a fidelidade narrativa ela trata o padratildeo de julgamento ndash ldquo[] as histoacuterias que [noacutes] sabemos serem verdadeiras nas [nossas] vidasrdquo (SPIGELMAN 1993 p 80) e os valores e crenccedilas partilhados em nossa comunidade ndash como relativamente natildeo problemaacuteticos Ela dispensa pouco tempo para justificar esse padratildeo e foca a sua avaliaccedilatildeo nas falhas dos valores impliacutecitos na histoacuteria da professora para combinar com o padratildeo que ela traz agrave tona No en-tanto como Fulkerson (2005) deixa claro a nossa proacutepria comunidade eacute menos homogecircnea do que era e hoje poucos de noacutes nos sentiriacuteamos confiantes de que nossas proacuteprias praacuteticas valores e crenccedilas coadunam com a maioria dos outros da aacuterea No lugar desse consenso os criacuteticos de uma narrativa pessoal devem se basear mais profundamente nas histoacuterias que sabem serem reais em suas proacuteprias

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A construccedilatildeo do argumento

vidas para o julgamento Para contabilizar as alegaccedilotildees impliacutecitas questionaacuteveis em uma narrativa eles satildeo provavelmente incentivados a basear suas contra-alegaccedilotildees em suas experiecircncias algo que Spigelman natildeo faz e talvez sabiamente Mesmo natildeo sendo algo ruim a praacutetica de responder a narrativas com narrativas significa que nossas alegaccedilotildees seratildeo dotadas de menos certeza e nossa evidecircncia de menor autoridade do que se pudeacutessemos evocar uma visatildeo consensual

Um segundo aspecto natildeo salientado na anaacutelise de Spigelman diz respeito agrave desproporcionalidade entre a autoridade de suas duas fontes Eacute inevitaacutevel que natildeo se preocupe com o papel que o ethos desempenha na sua avaliaccedilatildeo dos dois relatos e da nossa proacutepria resposta ao seu julgamento O relato pessoal de uma professo-ra universitaacuteria sobre seu marido eacute contrastado com o relato pessoal de um dos mais ilustres representantes da literatura americana do final do seacuteculo XX e seu igualmente ilustre mentor De certa forma Carver e Gardner satildeo o tipo de pessoas ndash ldquomodelosrdquo nas palavras de Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969) ndash cujos atos satildeo autoautorizados na medida em que eles definem ideais que os meros mortais se esforccedilam para alcanccedilar Se um professor universitaacuterio viola uma norma consen-sual da comunidade temos menos tendecircncia a questionar nossas normas do que a pessoa mas se uma figura importante viola a mesma norma podemos nos voltar para a questatildeo ou ignorar essa norma O ethos que atribuiacutemos a escritores do cali-bre de Carver e Gardner tem mais a ver com uma funccedilatildeo do que com sua essecircncia

O ethos desses escritores como o de todo escritor depende muito da qualidade de sua escrita apresentada no texto especiacutefico que estaacute sendo avaliado A qualida-de da prosa de Carvey eacute muito boa Apresenta histoacuterias ardilosamente complexas contadas de maneira direta quase de maneira espontacircnea Enquanto noacutes tende-mos a concordar com Spigelman e outros que a qualidade da prosa Carver se deve mais ao trabalho consciente e minucioso (veja as suas dez revisotildees) do que a um dom misterioso tambeacutem percebemos que poucos escritores por quaisquer razotildees que sejam produzem um trabalho de qualidade comparaacutevel Muitos efetivamen-

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A construccedilatildeo do argumento

te tentam escrever narrativas pessoais com os modelos de Carver em mente Na verdade muito mais pessoas sentem-se compelidas a escrever narrativas pessoais do que a lecirc-las

A distacircncia entre quem escreve e quem ler na universidade tem a ver com a promessa ilusoacuteria de que a escrita pessoal eacute destinada agraves pessoas cansadas de trabalhar com a impessoalidade e serve para falar sobre assuntos que natildeo satildeo de sua proacutepria escolha em liacutenguas que natildeo suas seguindo roteiros que natildeo satildeo criaccedilotildees suas ndash o que diz respeito ao que eacute feito no mundo todo dia Voltar-se para a narrativa pessoal garante agraves pessoas uma oportunidade de dizer o que importa a elas sobre assuntos de sua proacutepria escolha na sua liacutengua materna seguindo ro-teiros tatildeo perfeitamente assimilados atraveacutes dos anos que eles natildeo sentem que satildeo roteiros No entanto como o espaccedilo entre o escritor e o leitor na narrativa pessoal eacute sugerido a promessa permanece ilusoacuteria Narrativas pessoais satildeo relativamente faacuteceis de escrever mas narrativas pessoais legiacuteveis satildeo difiacuteceis de escrever e nar-rativas pessoais engajadas satildeo muito mais difiacuteceis de escrever

Exemplos de narrativas pessoais ruins estatildeo agrave nossa volta nas universidades nas salas de aula e ateacute mesmo nas listas de best-sellers Elas satildeo certamente ruins de diferentes maneiras As piores narrativas pessoais de nossos alunos tendem a ser natildeo muito coerentes releituras de mitos populares natildeo muito plausiacuteveis textos de 750 palavras para um anuacutencio da MasterCard A pior das narrativas pessoais de um colega por sua vez tende a apresentar homilias religiosas contos previsiacute-veis lentos que terminam com uma admiraacutevel se natildeo oacutebvia moral Ao ler essas palavras as pessoas se lembram de que a liberdade da narrativa pessoal tem um preccedilo significativo e uma boa parte desse preccedilo eacute a obrigaccedilatildeo nas palavras do famoso ditado de Henry James ldquoacima de tudo ser interessanterdquo Para que natildeo nos desanimemos com a leitura dos piores trabalhos de nossos colegas e alunos ler os seus melhores trabalhos ndash para natildeo mencionar aqueles de pessoas como Raymond Carver ndash nos lembraraacute por que eacute tatildeo importante continuar tentando

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A construccedilatildeo do argumento

Essas satildeo apenas duas das muitas complicaccedilotildees que enfrentamos ao propor avaliar alegaccedilotildees oriundas das narrativas pessoais Com a ajuda de Spigelman ape-nas comeccedilamos a separar os problemas Qualquer padratildeo que eventualmente seja desenvolvido para nos ajudar a fazer julgamentos plausiacuteveis nos pareceraacute razoaacutevel Noacutes devemos desenvolver esse padratildeo Haacute algumas verdades que apenas podem ser descobertas ou adequadamente justificadas por meio da narrativa pessoal Satildeo tipos de verdades muito importantes para serem excluiacutedas das aulas de escrita argumentativa em nome da rejeiccedilatildeo ao retorno do ensino da escrita como terapia

retoacuteriCa proCessual

Quando trecircs possibilidades satildeo exploradas por um estudioso da escrita a ter-ceira eacute frequentemente a escolhida seja por devoccedilatildeo agrave ordem nestoriana ou pelas lembranccedilas de Cachinhos Dourados de deixar as coisas ldquoexatamenterdquo nessa esco-lha Eacute evidente que Fulkeson (2005) estaacute mais agrave vontade para discutir e elaborar a seu proacuteprio tertium quid ldquoabordagem retoacuterica processualrdquo Por isso ele inicia a discussatildeo da abordagem citando um documento da associaccedilatildeo Council of Writing Program Administrators (WPA)22 ldquo[] oficialmente aprovado pelo corpo de pessoas que efetivamente dirigem os programasrdquo (FULKESON 2005 p 670) A declaraccedilatildeo de ldquoresultadosrdquo da WPA enfatiza Fulkeson (2005) em sua maior parte exclui os objetivos da ECC e as abordagens expressivas dos resultados esperados e focaliza os objetivos retoacutericos tradicionais O autor acrescenta ainda que a desatenccedilatildeo agrave retoacuterica processual nos principais jornais tem mais a ver com a natureza estabe-lecida com o status quo da abordagem do que com qualquer falha inerente a ela Como ele sugere a argumentaccedilatildeo pode parecer uma das abordagens dominantes

22 NT A WPA eacute uma associaccedilatildeo de escritores profissionais que defendem e sediam conferecircncias workshops e programas acadecircmicos A organizaccedilatildeo representa professores e pesquisadores cujo enfoque acadecircmico satildeo os aspectos intelectuais e pedagoacutegicos do planejamento do ensino da escrita e de sua gestatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

efetivamente ensinadas na sala de aula Em adiccedilatildeo agrave argumentaccedilatildeo ele menciona duas outras abordagens retoacutericas sob esse tiacutetulo geral ldquo[] a escrita baseada em gecircneros e a escrita como introduccedilatildeo ao discurso de uma comunidade acadecircmicardquo (FULKESON 2005 p 671)

A escrita baseada em gecircneros recebe grande atenccedilatildeo acadecircmica Para que natildeo seja confundida com as antigas abordagens de gecircnero ou com seus parentes mais temidos os ldquotiposrdquo (narraccedilatildeo descriccedilatildeo processo etc) eacute consideravelmente mais flexiacutevel e teoricamente mais sofisticada Oriunda em parte de Bakhtin e de antro-poacutelogos como Clifort Geertz essa abordagem foi adaptada para o trabalho com a escrita por vaacuterios teoacutericos da comunicaccedilatildeo e da escrita Em particular o artigo de Miller (1984) Genre as Social Action (Gecircnero como accedilatildeo social) eacute frequentemente citado por acadecircmicos da nossa aacuterea juntamente com os trabalhos subsequentes de Carol Berkenkotter e Thomas Huckin Aviva Freedman e Peter Medway A definiccedilatildeo de gecircnero de Miller (1984 p 164) desenvolvida para descrever especificamente os gecircneros orais eacute ldquo[] contextualsituacional [] e oposta agrave ideia anterior de gecircnero como uma formafunccedilatildeordquo A relaccedilatildeo entre os membros de uma classe de gecircneros eacute entendida como mais familiar do que homogecircnea A abordagem de gecircnero assume que a maioria dos eventos de escrita acontece em situaccedilotildees recorrentes As simi-laridades dessas situaccedilotildees no que tange a assuntos objetivos e audiecircncia criam discursos muito parecidos adaptados agraves especificidades da situaccedilatildeo

Dessa forma estamos muito distantes dos tipos que satildeo antes de tudo for-mas estruturais Tem-se pouca noccedilatildeo sobre o propoacutesito de um texto descritivo ou narrativo ou sobre o auditoacuterio para o qual satildeo dirigidos Geralmente o que se sabe eacute apenas o que se passa Enquanto a abordagens baseada em gecircneros natildeo necessa-riamente exclui as consideraccedilotildees formais ela inverte a ordem da abordagem tradi-cional do tipo Ao inveacutes de comeccedilar pela assunccedilatildeo de que a forma motiva a escrita comeccedila-se a olhar para as situaccedilotildees recorrentes que datildeo origem e condicionam as escolhas formais ndash e outros inuacutemeros tipos de escolhas ndash que os escritores fazem

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A construccedilatildeo do argumento

em uma dada situaccedilatildeo para determinar qual ldquofamiacuteliardquo de escolhas formais podem ser adequadas Por causa do foco em situaccedilotildees recorrentes a audiecircncia ldquotiacutepicardquo para um dado gecircnero gera determinadas expectativas a respeito da resposta apro-priada e os escritores devem trabalhar com essas expectativas satisfazendo-as ou habilidosamente desrespeitando-as para obter um maacuteximo efeito

Assim como a abordagem ECC a abordagem de gecircnero enfatiza a importacircncia de ler cuidadosamente os modelos textuais dos gecircneros que os alunos devem pro-duzir Como a ECC ela ldquo[] presume que os textos satildeo socialmente construiacutedos em relaccedilotildees intertextuaisrdquo (MILLER 1984 p 165) Para compreender a instacircncia de um gecircnero eacute preciso ter natildeo apenas informaccedilotildees formais a respeito desse gecircnero mas compreensatildeo substancial da sua importacircncia ou modelos paradigmaacuteticos que escritores e audiecircncia devem ter em mente ao escrever ou interpretar qualquer instacircncia especiacutefica do gecircnero Enquanto a abordagem de gecircnero enfrenta alguns dos perigos que os cursos de ECC enfrentam quando se pesa a atenccedilatildeo dispensa-da aos textos e a atenccedilatildeo dispensada aos processos dos alunos o foco retoacuterico da abordagem assegura que atividades de interpretaccedilatildeo realizadas em sala devem se traduzir mais diretamente na construccedilatildeo do texto do aluno

Diante disso a abordagem baseada em gecircnero talvez seja a mais faacutecil entre as abordagens alternativas para se unir ao foco no argumento A compreensatildeo do argumento na abordagem baseada em gecircnero eacute desenvolvida em praticamente todas as principais abordagens da argumentaccedilatildeo e nos principais livros didaacuteticos do assunto A Stasis Theory na verdade eacute uma teoria de gecircnero segundo a maneira de entender por grande parte dos teoacutericos contemporacircneos A maioria das Stasis eacute derivada indutivamente dos tipos de situaccedilotildees recorrentes e dos objetivos recor-rentes dos locutores nessas situaccedilotildees O valor da Stasis como qualquer abordagem baseada em gecircnero natildeo eacute o fato de que ela dita uma estrutura especiacutefica mas o de permitir que se antecipem as respostas do auditoacuterio e dos pontos importante na construccedilatildeo de um argumento Natildeo se trata exatamente de uma forma preacute-fabricada

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A construccedilatildeo do argumento

que surge de uma preocupaccedilatildeo com a Stasis em questatildeo ndash ainda que dependendo do contexto do argumento uma forma preestabelecida pode ser necessaacuteria ndash mas de uma seacuterie de movimentos adaptados agraves especificidades da situaccedilatildeo

Ensinar em um curso de escrita baseado no argumento usando a Stasis theory tambeacutem permite que se adapte mais rapidamente agrave abordagem ldquoescrita como intro-duccedilatildeo ao discurso de uma comunidade acadecircmicardquo Nesse sentido Fulkeron (2005 p 672) cita a posiccedilatildeo de Gerald Graff em Clueless in Academe segundo a qual ldquo[] todo discurso acadecircmico eacute um argumento caracterizado por certos lsquomovimentosrsquo intelectuais preferidos que poderiam ser explicitamente compartilhados com os estudantesrdquo O estudante que entende o argumento como semelhante a uma seacuterie de movimentos realizados em resposta a uma Stasis que pede uma alegaccedilatildeo causal ou avaliativa tem pouca dificuldade em se adaptar a uma abordagem que enfa-tiza os modos particulares como um socioacutelogo entende avaliaccedilatildeo ou um quiacutemico entende causalidade

Dito isso a escrita como introduccedilatildeo ao discurso de uma comunidade acadecircmica eacute problemaacutetica por uma seacuterie de razotildees Como diz Fulkerson (2005) essa abor-dagem tem sido criticada por focalizar certos valores e padrotildees que favorecem os estudantes brancos da classe meacutedia De fato ela tem estado sob crescente ataque nas disciplinas nos uacuteltimos anos Aleacutem disso as dificuldades praacuteticas de introduzir os estudantes ao discurso acadecircmico geneacuterico trazem alguns problemas para o professor Indubitavelmente o melhor lugar para se aprender o discurso acadecircmico eacute a comunidade onde ele eacute usado Por que perder tempo em querer saber habilidades e competecircncias que natildeo podem ser transpostas para outras disciplinas Deixemos que essas disciplinas ensinem os estudantes a forma apropriada de escrever Para aprender como escrevem psicoacutelogos fiacutesicos ou cientistas poliacuteticos precisariacuteamos aprender o vocabulaacuterio a metodologia e o raciociacutenio reconhecido pelos membros de cada uma dessas comunidades o que eacute uma atividade impossiacutevel para uma uacutenica aula Na realidade na medida em que se compreende que a funccedilatildeo preciacutepua de um curso de escrita do primeiro ano eacute apresentar os alunos ao discurso acadecircmico natildeo

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A construccedilatildeo do argumento

se pode exigir mais que isso Os membros do chamado movimento ldquoabolicionistardquo um movimento que reivindica a extinccedilatildeo da escrita do primeiro ano e em alguns casos da extinccedilatildeo de cursos de escrita no primeiro constantemente mencionam a ausecircncia de convenccedilotildees e normas disciplinares nessas aulas como razatildeo para extingui-las

Embora natildeo tenhamos tempo ou espaccedilo neste trabalho para apresentar um exemplo completo de ensino de argumento em aulas de escrita como um antiacutedoto para os vaacuterios males mencionados pelos abolicionistas podemos perceber nas entrelinhas que seus argumentos apresentam as mesmas fragilidades que Burke (1941 p 171) observa nos argumentos vagos como testemunham as falhas que ele encontra em The Folklore of Capitalism (O folclore do capitalismo) de Thurman W Arnold ldquoPara atacar as sustentaccedilotildees subjacentes dos argumentos de seus opositores ele aperfeiccediloa um modelo de argumento que poderia se levado a cabo consistentemente tambeacutem atacar as sustentaccedilotildees subjacentes aos seu proacuteprio argumentordquo Dessa forma se algueacutem rejeitar a importacircncia da escrita no primeiro ano de todos os outros cursos universitaacuterios poder-se-ia com a mesma funda-mentaccedilatildeo negar a importacircncia da retoacuterica para o argumento em todas as outras disciplinas Realmente o que eacute mais surpreendente a respeito do renascimento da retoacuterica nos uacuteltimos anos eacute o ganho que esses estudos trouxeram para as pessoas em outros campos notadamente a Biologia e a Economia para reavaliar a sua proacutepria praacutetica argumentativa Pela mesma razatildeo a importacircncia da retoacuterica para outras disciplinas por meio do programa Escrita atraveacutes do curriacuteculo (em inglecircs Writting across curriculumndash WAC) proporcionou a muitos professores de outras disciplinas revisar suas abordagens de ensino de escrita Embora obviamente a escrita e a retoacuterica sejam sempre em certa medida atividades secundaacuterias melhor compreendidas como escrita sobre algo e retoacuterica de alguma coisa essa obviedade natildeo contradiz a natureza transdisciplinar dessas atividades a existecircncia de grandes semelhanccedilas e coincidecircncias entre as suas vaacuterias aplicaccedilotildees e a capacidade tanto de uma como de outra de alterar as coisas agraves quais se ligam Aleacutem disso mesmo

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A construccedilatildeo do argumento

que os abolicionistas estivessem corretos em sua perspectiva sobre a irrelevacircncia da escrita baacutesica para a escrita acadecircmica por exemplo ainda haacute uma loacutegica pode-rosa para o ensino da escrita como ldquodiscurso ciacutevicordquo uma capacidade que prepara os alunos para cumprir seus deveres como cidadatildeos ao inveacutes de preparaacute-los para escrever academicamente

ensinar ou natildeo ensinar propaganda

Por muitos anos os professores de escrita compreensivelmente se esqui-varam de usar o termo ldquopropagandardquo em sala de aula e mais ainda de ensinar aos alunos o que o termo poderia significar No uso comum trata-se mais de um termo pejorativo do que descritivo Virtualmente a uacutenica vez em que se ouviu o termo sendo invocado foi no contexto de uma demissatildeo partidaacuteria ldquoElesrdquo usam propaganda enquanto ldquoNoacutesrdquo oferecemos argumentos razoaacuteveis O termo parece causar muito alarde para uma anaacutelise corrente da persuasatildeo O clima atual natildeo eacute inteiramente saudaacutevel para lidar com questotildees pesadas como a propaganda na sala de aula No nosso estado do Arizona por exemplo um projeto de lei que corre no legislativo quer proibir professores de ensino meacutedio e superior de se valer de posiccedilotildees poliacutetico-partidaacuterios em sala de aula Mesmo natildeo sendo claro o que eacute um comentaacuterio ldquopartidaacuteriordquo os alunos poderiam ser estimulados a denunciar o que eles percebem como ofensas e as autoridades poderiam entatildeo resolver o caso com os acusados O projeto eacute aparentemente semelhante aos apresentados em outros estados na esteira de protestos de pessoas como David Horowitz Dinesh DrsquoSousa e Ann Coulter que alegam que a ldquolavagem cerebralrdquo liberal se tornou comum nas escolas puacuteblicas americanas Pouco importa que em ambientes como esse as pessoas poderiam relutar em analisar atos particulares de discurso poliacutetico como sendo possivelmente propagandiacutesticos

Dito isso a propaganda apresenta um cenaacuterio muito real de praacuteticas persuasi-vas que estatildeo em certa medida presentes em muitos argumentos aparentemente

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A construccedilatildeo do argumento

natildeo propagandiacutesticos Como visto anteriormente em nosso contiacutenuo de praacuteticas de argumentaccedilatildeo natildeo existe praacutetica pura de persuasatildeo no mundo real e alguns elementos das piores praacuteticas persuasivas podem ser encontrados ainda que fracos nas melhores Nossa habilidade em detectar essas praacuteticas no trabalho com qual-quer argumento e confrontaacute-las com os piores argumentos eacute cada vez mais criacutetica Natildeo haacute duacutevidas de que estamos mal preparados para lidar com a propaganda de um modo racional especialmente porque a dinacircmica da persuasatildeo na propaganda natildeo eacute amplamente compreendida ndash ou ainda pior essa dinacircmica eacute largamente mal compreendida ndash e recebe pouca atenccedilatildeo na sala de aula

Para ser mais especiacutefico o uso dessas praacuteticas tem aumentado significativa-mente nos uacuteltimos anos na medida em que a miacutedia tem assumido novas formas mais adequadas agrave dinacircmica da propaganda A tentaccedilatildeo de usaacute-la tem sido intensi-ficada em uma sociedade em que se propaga a ideia de que ldquoo vencedor leva tudordquo e a resistecircncia a isso tem sido enfraquecida pelo sistema puacuteblico de educaccedilatildeo cada vez menos comprometido com o ensino do letramento criacutetico e cada vez mais com-prometido com o ensino que prepara para exames padronizados

Antes de comeccedilar a analisar exatamente o que a propaganda eacute vamos ver o que ela natildeo eacute Vamos fazer isso porque acreditamos que os erros conceituais a respeito da propaganda a que aludimos anteriormente ainda satildeo as maiores barrei-ras para uma compreensatildeo contemporacircnea do fenocircmeno Um dos equiacutevocos mais recorrentes eacute a crenccedila de que a propaganda eacute majoritariamente uma ferramenta de um estado totalitaacuterio A Alemanha nazista a China comunista a Coreia do Nor-te a antiga Uniatildeo Sovieacutetica o Iraque na eacutepoca de Sandam Russein ndash na cabeccedila da populaccedilatildeo esses satildeo os modelos de uso da propaganda Em nome do controle da populaccedilatildeo os monopoacutelios midiaacuteticos dirigidos pelo estado alimentam um fluxo constante de ldquoverdades oficiaisrdquo muacutesicas motivadoras e mensagens pessoais de seus ldquoqueridos liacutederesrdquo do povo ldquoDocumentaacuteriosrdquo que apresentam os inuacutemeros triunfos do Estado satildeo artisticamente construiacutedos com a finalidade de fundir os liacutederes poliacuteticos com os seus mitos Outdoors e cartazes por toda parte apresen-

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A construccedilatildeo do argumento

tam imagens de liacutederes e citaccedilotildees de heroacuteis do passado Os cidadatildeos satildeo levados a participar de celebraccedilotildees organizadas em torno de exibiccedilotildees de forccedilas militares Aqueles que natildeo satildeo receptivos agraves mensagens das propagandas satildeo encaminhados para instituiccedilotildees governamentais para serem ldquoreabilitadosrdquo As fronteiras satildeo her-meticamente fechadas para que os cidadatildeos natildeo possam buscar as suas proacuteprias verdades fora disso e para prevenir que ldquoagitadores estrangeirosrdquo mostrem histoacute-rias alternativas Mesmo que esse modelo seja historicamente preciso e em alguns casos como na Coreacuteia do Norte ainda esteja em vigor hoje eacute simplesmente muito custoso mantecirc-lo mesmo para um ditador mais determinado Aleacutem disso com o advento da Internet eacute praticamente impossiacutevel policiar a expressatildeo de opiniotildees Hoje em dia a propaganda eacute ao mesmo tempo mais difundida e menos oacutebvia do que era no passado

o Que eacute propaganda burke e ellul

No final desta seccedilatildeo vamos deixar resumidamente algumas das caracte-riacutesticas principais da propaganda para que as pessoas as reconheccedilam e possam entender melhor seu impacto negativo No entanto neste momento vamos re-troceder um pouco e dar uma olhada mais acurada na propaganda tendo como nossos guias dois pensadores que na nossa opiniatildeo oferecem as mais profundas anaacutelises retoacutericas do fenocircmeno Kenneth Burke especialmente em seu ensaio de 1941 Rhetoric and Hitlerrsquos Battle e o filoacutesofo social francecircs Jacques Ellul Talvez o ponto de partida mais uacutetil para essa anaacutelise seja a distinccedilatildeo de Burke (1966) entre retoacuterica realista e retoacuterica maacutegica a que aludimos no primeiro capiacutetulo Ao fazer essa distinccedilatildeo Burke (1966) enfatiza a capacidade realista da retoacuterica de ldquoinduzir a cooperaccedilatildeordquo entre as pessoas em oposiccedilatildeo ao poder maacutegico da linguagem de ldquoprovocar o movimento nas coisasrdquo (BURKE 1966 p 42) Burke rejeita essa visatildeo maacutegica da linguagem com base no fato real de que o domiacutenio extraverbal ao mesmo tempo em que depende da linguagem para a sua compreensatildeo e entendimento eacute

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A construccedilatildeo do argumento

independente da linguagem na medida em que ele tem o poder de contrariar nos-sas perspectivas linguiacutesticas sobre ele Apenas para lembrar Burke natildeo faz isso

A propaganda pode ser compreendida nesse contexto como uma tentativa de reduzir as audiecircncias a um estado de coisificaccedilatildeo para nelas ldquoinduzir o movimen-tordquo que satisfaz as necessidades do anunciante Com esse fim o empreendimento da propaganda eacute altamente redutor reduz a audiecircncia ao menor denominador e apela para os elementos baacutesicos do caraacuteter humano infantiliza a audiecircncia ao en-fatizar a onisciecircncia divina do anunciante e o poder que ele tem para garantir sua seguranccedila limita o acesso da audiecircncia agraves informaccedilotildees e aos contra-argumentos excluindo-os do apelo propaganda descaracterizando-os ou impedindo que os concorrentes os conheccedilam

O resultado de tudo isso de acordo Ellul (1973) eacute o que ele chama de ldquoorto-praxiardquo Como o seu primo etimoloacutegico ortodoxia a ortopraxia se refere mais ou menos a um nuacutemero de crenccedilas sem reflexatildeo mas na medida em que a ortopra-xia indica um vasto motor inconsciente de resposta a estiacutemulos que ldquodatildeo curto--circuito em todos os pensamentos e decisotildeesrdquo (ELLUL 1973 p 27) ela vai muito aleacutem da ortodoxia Na verdade a ortopraxia eacute mais reconhecida por fazer ldquo[] o indiviacuteduo viver em um mundo separado ele natildeo pode ter referecircncias exteriores A ele natildeo eacute permitido um momento de meditaccedilatildeo ou reflexatildeo a respeito de como se vecircrdquo (ELLUL1973 p 17) Como jaacute sugerimos os meios tradicionais de alcanccedilar esse objetivo dados os aportes massivos de dinheiro e matildeo de obra necessaacuterios natildeo satildeo mais vistos como viaacuteveis para a maioria dos governos Nos dias de hoje como veremos versotildees menos draconianas disso podem ser feitas relativamente de forma mais faacutecil com muito menos investimentos de recursos

Neste ponto do nosso texto natildeo precisamos mais fazer uma introduccedilatildeo a Burke Jacques Ellul provavelmente precisa Seu trabalho mais relevante Propa-ganda The Formation of Menrsquos Attitudes (Propaganda A Formaccedilatildeo das Atitudes do

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A construccedilatildeo do argumento

Homem) foi escrito em 196223 mas ainda permanece indiscutivelmente como o trabalho mais completo e racional sobre o assunto disponiacutevel para os estudantes de retoacuterica especialmente pela sua explicaccedilatildeo de como as forccedilas sociais modernas interagem para nos tornar mais vulneraacuteveis aos apelos da propaganda Certa-mente vaacuterias das tendecircncias que ele menciona nesse estudo como responsaacutevel pelo crescimento da propaganda em meados do seacuteculo XX ainda satildeo evidentes atualmente Particularmente ele sugere que um sistema educacional que ensina as pessoas a ler mas natildeo a pensar criticamente eacute um preacute-requisito para a difusatildeo da propaganda Em certa medida isso eacute muito simples porque uma populaccedilatildeo alfabetizada ndash mas natildeo criacutetica ndash eacute necessaacuteria para a formaccedilatildeo de uma miacutedia de massa a serviccedilo da propaganda Nesse sentido a criacutetica de Ellul agrave educaccedilatildeo anteci-pa a criacutetica de Paulo Freire nos anos 1970 que ajudou a estabelecer o movimento de letramento criacutetico Uma das maiores diferenccedilas entre os dois pensadores e o nosso ponto de divergecircncia em relaccedilatildeo a Ellul eacute o recente ceticismo em relaccedilatildeo agrave ldquoeducaccedilatildeo de massardquo e a sua capacidade de se autorreformar Em geral a atitude de Ellul com ldquoas massasrdquo expressa sua posiccedilatildeo como um homem do seu tempo e do lugar onde viveu

Entatildeo o que eacute propaganda Ellul (1973 p 61) apresenta a seguinte definiccedilatildeo que natildeo ajuda muito na nossa perspectiva

A propaganda eacute um conjunto de meacutetodos empregados por um grupo or-ganizado que quer promover a participaccedilatildeo ativa ou passiva nas suas accedilotildees de uma massa de indiviacuteduos psicologicamente unidos por meio de manipulaccedilotildees psicoloacutegicas e inseridos em uma organizaccedilatildeo

23 a ediccedilatildeo usada neste trabalho eacute a de 1973

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A construccedilatildeo do argumento

Natildeo nos deteremos nessa definiccedilatildeo mas podemos fazer uma observaccedilatildeo A definiccedilatildeo de Ellul aparentemente poderia ser estendida para incluir questotildees como a doutrinaccedilatildeo dos consumidores pelos anunciantes e marqueteiros No entanto o seu estudo enfatiza a propaganda poliacutetica caminho que tambeacutem percorremos em nossa discussatildeo Seguimos esse caminho mesmo que como demonstraremos a seguir as praacuteticas e teacutecnicas dos publicitaacuterios e marqueteiros se sobrepotildeem mais e mais publicitaacuterios emergem da publicidade do marketing e das relaccedilotildees puacuteblicas e a persuasatildeo implacaacutevel na esfera do consumo por certo torna as pessoas mais suscetiacuteveis aos apelos da propaganda na esfera puacuteblica Isso posto os objetivos e os impactos dos que oferecem elementos de convencimento em nome de produtos e os que oferecem elementos persuasivos em nome de causas poliacuteticas satildeo signi-ficativamente diferentes

A maior diferenccedila entre as duas esferas tem a ver com o fato de que a esfera do consumo pelo menos no niacutevel das escolhas individuais eacute essencialmente amoral ao passo que a esfera poliacutetica em todos os niacuteveis eacute essencialmente moral A seme-lhanccedila entre as esferas poliacutetica e moral recebeu grande atenccedilatildeo mais recentemente de Lakoff (2002 p 41) que parte da premissa de que ldquo[] as perspectivas poliacuteti-cas satildeo derivadas de sistemas de conceitos moraisrdquo e exaustivamente explora as implicaccedilotildees dessa assunccedilatildeo para a poliacutetica americana contemporacircnea Por traacutes de questotildees sobre cuidados com a sauacutede aborto seguranccedila social tributaccedilatildeo entre outras haacute questotildees fundamentais sobre justiccedila e felicidade e sobre o caraacuteter sagra-do da vida Na medida em que nos distanciamos das questotildees morais e poliacuteticas e priorizamos a escolha entre marcas concorrentes de cerveja trivializamos essas questotildees e potencialmente alienamos os cidadatildeos acerca do processo poliacutetico

O ponto mais relevante de Lakoff (2002) poreacutem natildeo eacute tanto o fato de que a dimensatildeo moral da poliacutetica eacute ignorada nos uacuteltimos anos mas o fato de que a dimensatildeo moral da poliacutetica tem sido grosseiramente muito simplificada a fim de que se manipulem as audiecircncias de uma forma que ao nosso ver parece ser propagandisticamente Para que as questotildees morais digam algo corretamente agraves

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A construccedilatildeo do argumento

questotildees poliacuteticas a perspectiva moral predominante deve ser suficientemente inclusiva para assegurar que qualquer posiccedilatildeo moral importante seja ouvida e que um consenso moral nasccedila de algum tipo de processo dialeacutetico Na medida em que o discurso poliacutetico na esfera puacuteblica eacute dominado por um uacutenico conjunto de valores morais que natildeo tolera oposiccedilatildeo e na medida em que em contrapartida esses valores natildeo satildeo vistos como um fim em si mesmos mas muito mais como meios de controlar aqueles que se filiam a eles e de se atingir objetivos poliacuteticos a qualidade das nossas decisotildees poliacuteticas e a precisatildeo de nossas sensibilidades poliacuteticas sofreratildeo igualmente

Embora a definiccedilatildeo de propaganda de Ellul (1973) abarque o uso de ldquomani-pulaccedilotildees psicoloacutegicasrdquo como parte do empreendimento da propaganda conforme acabamos de descrever natildeo se estende automaticamente para a praacutetica de mentir De fato a crenccedila de que uma mensagem deve ser intencionalmente natildeo verdadeira para qualificar como propaganda eacute umas das maiores barreiras para o seu reco-nhecimento Embora os profissionais de propaganda possam por vezes recorrer agrave propagaccedilatildeo da ldquodesinformaccedilatildeordquo os riscos de serem apanhados numa grande mentira satildeo suficientemente grandes para desencorajar a disseminaccedilatildeo de uma mentira em larga escala A mensagem ideal da propaganda deveria ser plena de informaccedilotildees precisas e rica em insinuaccedilotildees especulativas repetidas constante-mente em um longo periacuteodo de tempo ateacute que as insinuaccedilotildees assumam o status de fatos Na linguagem dos anunciantes antigos ldquorepeticcedilatildeo eacute reputaccedilatildeordquo uma foacutermula que funciona muito por causa da nossa tendecircncia de confundir familiaridade com convicccedilatildeo o ldquofilme dos costumesrdquo como verdade

Novamente tomando emprestado o pensamento de Lakoff (2002) a propagan-da eacute mais uma questatildeo de ldquoconstruirrdquo informaccedilatildeo de forma a induzir as pessoas a delinearem as conclusotildees desejadas do que uma questatildeo de prover as pessoas com as informaccedilotildees que faltam e isolaacute-las da informaccedilatildeo verdadeira Essa construccedilatildeo eacute tipicamente concebida como uma seleccedilatildeo cuidadosa de um vocabulaacuterio que faz um prejulgamento das questotildees discutidas As implicaccedilotildees metafoacutericas taacutecitas da

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A construccedilatildeo do argumento

escolha de palavras vatildeo direcionar a audiecircncia para a direccedilatildeo desejada Usando um dos exemplos favoritos de Lakoff conceber uma discussatildeo de poliacutetica tributaacuteria sob a rubrica de ldquoaliacutevio fiscalrdquo em oposiccedilatildeo a ldquocortes de impostosrdquo implica que os impostos satildeo uma carga opressiva sobre os contribuintes Embora possa haver um limite a respeito do tamanho do ldquocorterdquo que querem fazer nos impostos natildeo haacute limite quanto agrave questatildeo de saber a medida que algueacutem pode pedir no ldquoaliacuteviordquo de impostos

Para nossos propoacutesitos esse enquadramento pode ser estendido de questotildees de vocabulaacuterio e metaacutefora para o meio atraveacutes do qual a mensagem eacute recebida Nas miacutedias altamente sofisticadas de hoje em dia essas questotildees satildeo literalmente construiacutedas pelo cenaacuterio em que satildeo apresentadas Para mencionar um exemplo atual Hannity and Colmes um programa de notiacutecias do canal Fox apresenta um ponto de vista ldquoequilibradordquo (Hannity) por intermeacutedio de um ponto de vista liberal (Colmes) No entanto mesmo uma visatildeo superficial do programa pode convencer alguns de que uma matildeo pesada perturba o equiliacutebrio Hannity tem a aparecircncia de um acircncora de jornal Eacute um sujeito vigoroso agitado muito seguro que domina seu suposto inimigo liberal Colmes um sujeito fuacutenebre com aparecircncia de um apresentador de previsatildeo do tempo e tendecircncia a balbuciar que frequentemente apresenta argumentos de forma melancoacutelica e pessimista Raramente Colmes faz muitos pontos nas discussotildees muito menos consegue muitas vitoacuterias Natildeo eacute preciso ldquomentirrdquo nesse formato porque verdades ineficazes funcionam bem

Na construccedilatildeo da informaccedilatildeo os profissionais da propaganda podem distorcer o significado exagerar ou amenizar as suas implicaccedilotildees futuras obscurecer ou disfarccedilar as intenccedilotildees do falante ou atribuir motivaccedilotildees duvidosas geralmente as menos apresentaacuteveis aos seus adversaacuterios (ELLUL 1973) Como alguns programas de TV populares os profissionais da propaganda adoram ldquoestampar histoacuterias nas manchetesrdquo que convertem os assuntos correntes especialmente eventos sensacio-nalistas condizentes com os mitos populares como se fossem crises que precisam da atenccedilatildeo das massas Nas palavras de Ellul (1973 p 44)

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A construccedilatildeo do argumento

[] eacute evidente que a propaganda pode ser bem sucedida apenas quando o indiviacuteduo se sente desafiado Natildeo tem qualquer influecircncia quando o sujeito estaacute equilibrado tranquilo sentindo-se em total seguranccedila Nem os eventos passados nem os maiores problemas metafiacutesicos desafiam o indiviacuteduo meacutedio o homem comum atual Ele natildeo eacute sensiacutevel ao que eacute traacute-gico na vida e natildeo estaacute angustiado por questotildees que Deus possa imputar--lhe Ele natildeo se sente desafiado exceto por fatos poliacuteticos e econocircmicos atuais Por isso a propaganda precisa comeccedilar pelos fatos atuais

Vale salientar que noacutes natildeo partilhamos nem aqui nem em qualquer outro local o desprezo de Ellul pelo ldquohomem comum dos dias atuaisrdquo mas a sua alegaccedilatildeo de que as notiacutecias satildeo uma constante fonte de panfletagem propagandiacutestica parece pelo menos mais verdadeira hoje na era dos ciclos de 24 horas de notiacutecias do que quando ele a formulou haacute deacutecadas Algumas distorccedilotildees dos fatos atuais estatildeo eacute certo inevitavelmente inseridos nas reportagens sobre esses fatos pelos princi-pais meios de comunicaccedilatildeo No entanto essas miacutedias representam uma parcela em decliacutenio do que eacute entendido como notiacutecia atualmente Na maioria das propagandas seacuterias exibidas hoje em dia podemos ver um segmento de difusatildeo de notiacutecias em plena expansatildeo que eacute ldquosecundaacuteriordquo agraves notiacutecias jornaliacutesticas Esse eacute um mundo de Hanity and Colmes de especialistas e de consultores poliacuteticos de blogueiros edito-rialistas e de analistas especializados que reviram e interpretam as notiacutecias por meio de vaacuterias formas de infoentretenimento que satildeo muito mais baratas do que coberturas jornaliacutesticas de verdade Uma forma de avaliar a tendecircncia propagan-diacutestica desses programas eacute perceber como eles satildeo veiculados ldquo[] na linguagem da indignaccedilatildeo um tom que eacute quase sempre uma marca da propagandardquo (ELLUL 1973 p 58) Em casos extremos ndash pensemos nos programas populares de raacutedio ndash esses programas apelam para os sentimentos mais crueacuteis como ldquooacutedio fome orgulhordquo (ELLUL1973 p 38) e temem agitar as paixotildees de seus espectadores

Burke (1941) toca em muitas dessas questotildees na sua discussatildeo sobre Hitler cuja retoacuterica eacute um modelo de retoacuterica ldquoimpurardquo Ao iniciar a anaacutelise de Minha luta

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A construccedilatildeo do argumento

Burke chama a atenccedilatildeo simultaneamente para as impurezas da retoacuterica de Hitler e para a responsabilidade dos retoricistas para articular essa retoacuterica Os criacuteticos tecircm a obrigaccedilatildeo de analisar livros ldquoincocircmodos e ateacute mesmo repulsivosrdquo como os de Hitler (BURKE 1941 p 191) Ele compara uma anaacutelise raacutepida desinteressada de Minha luta ao fato de queimaacute-lo em uma pira como fazia Hitler com as pesso-as Ao fazer isso Burke defende noacutes perdemos uma oportunidade de descobrir como Hitler conseguiu inventar um remeacutedio que foi tomado com tanto prazer por milhotildees de pessoas e assim ldquo[] prevenir a invenccedilatildeo de um remeacutedio parecido na Ameacutericardquo (BURKE 1941 p 191) Burke ainda destaca que embora os norte--americanos possam acreditar que suas virtudes iratildeo protegecirc-los das palavras de Hitler na verdade isso eacute ldquoo conflito no meio dos seus viacuteciosrdquo (BURKE 1941 p 192) eacute a discussatildeo parlamentar de suas diferenccedilas ndash a proacutepria retoacuterica ndash que os protege dos encantos do sistema ldquoperfeitordquo do Hitler a sua teoria de campo unificado da natureza humana

Um dos temas da anaacutelise de Burke que ecoou anos depois na teoria de Ellul eacute a associaccedilatildeo entre propaganda moderna e as teacutecnicas de marketing e publici-dade A propaganda moderna em oposiccedilatildeo agraves suas formas mais antigas como as ldquopropagandas comunistasrdquo ou invenccedilotildees usadas para provocar furor partidaacuterio eacute consideravelmente mais sutil e cientiacutefica Segundo as consideraccedilotildees de Burke Hitler possui a ldquoracionalidaderdquo de um haacutebil publicitaacuterio que planeja a sua nova campanha de vendas ldquoA poliacutetica ele diz deve ser vendida como se vende sabone-te ndash e natildeo se vende sabonete em transerdquo (BURKE 1941 p 216) Elul (1973 p 25) na mesma direccedilatildeo caracteriza os profissionais da propaganda como ldquo[] cada vez mais o teacutecnico que trata de seus clientes de vaacuterias maneiras mas se manteacutem frio e indiferente escolhendo suas palavras e accedilotildees por razotildees puramente teacutecnicasrdquo O que era caracteriacutestica da propaganda em meados do seacuteculo XX parece hoje ser paradigmaacutetico Graccedilas aos avanccedilos tecnoloacutegicos as convergecircncias entre a propa-ganda e o marketing satildeo muito mais evidentes no ambiente altamente midiaacutetico A linha que separa as duas atividades eacute ainda menos visiacutevel e muito mais atravessada

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A construccedilatildeo do argumento

por um grupo ldquoprofissionalmente psicoacuteticordquo de pessoas que torcem por candidatos poliacuteticos guerras e veiacuteculos utilitaacuterios esportivos com a mesma serenidade e da mesma maneira

Uma das liccedilotildees mais importantes que os profissionais da propaganda aprende-ram com os anunciantes diz respeito agraves cuidadosas teacutecnicas de separar o puacuteblico uma arte aperfeiccediloada por uma legiatildeo de pesquisadores demograacuteficos e psicograacute-ficos que trabalham para os marqueteiros A propaganda eacute para usar o termo de Ellul (1973 p 212) ldquoparticionada ou para usar a descriccedilatildeo retoacuterica tradicional de Burke a propaganda eacute ldquodirecionadardquo uma retoacuterica de ldquobusca de vantagensrdquo Em uma palestra famosa que Burke deu em 1935 para o Congresso Americano de Escritores ele descreveu a relaccedilatildeo parasitaacuteria dos profissionais da propaganda com o seu puacuteblico da seguinte maneira ldquo[] natildeo eacute o trabalho de um profissional da propaganda convencer os convencidos mas pleitear os natildeo convencidos o que lhe requer o uso do vocabulaacuterio deles valores deles siacutembolos deles tanto quanto for possiacutevelrdquo (SIMONS MELIA 1989 p 271-72) Eacute por isso que os profissionais da propaganda assim como os anunciantes estudam seu puacuteblico tatildeo profundamente e sua mensagem eacute expressa com siacutembolos valores e vocabulaacuterio apropriado que se reflete nos grupos cuidadosamente selecionados cujas necessidades desejos e medos satildeo meticulosamente mapeados

Em uma sociedade fechada e homogecircnea como a Alemanha de Hitler isso significa que a propaganda pode ser canalizada atraveacutes de um uacutenico meio para apelar a um grupo imenso de ldquoincluiacutedosrdquo cujas necessidades ansiedades aspira-ccedilotildees sem mencionar mitos e fantasias satildeo integralmente compreendidas agraves custas de uma minoria de ldquoexcluiacutedosrdquo que representa os piores medos dos incluiacutedos Por outro lado em uma sociedade pluralista como a norte-americana isso significa que a propaganda para ser efetiva tem de ter acesso a muacuteltiplos canais e usar mensagens personalizadas para os consumidores e direcionadas a um eleitorado variado Assim ironicamente a nossa imprensa aparentemente livre e robusta e os inuacutemeros canais de informaccedilatildeo que ela proporciona pode revelar-se indispensaacutevel

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A construccedilatildeo do argumento

para os profissionais da propaganda assim como para os anunciantes na divisatildeo e na conquista da audiecircncia

Como esses uacuteltimos apontamentos sugerem por mais inestimaacutevel que seja uma imprensa livre para combater a propaganda isso eacute apenas uma necessidade natildeo condiccedilatildeo suficiente para a resistecircncia Como Ellul (1973 p 212) destaca ldquoToda propaganda tem de separar seu grupo de todos os outros gruposrdquo assegurando que cada grupo tenha seu canal dedicado agraves suas crenccedilas ldquoEles aprendem mais e mais que o seu grupo estaacute correto que seus atos satildeo justificadosrdquo (ELLUL 1973 p 213) ao mesmo tempo em que os grupos rivais satildeo repetidamente rotulados como equivocados e erroneamente fundamentados

Essa criacutetica ao proacuteximo que natildeo eacute ouvida por esse proacuteximo eacute conheci-da pelos integrantes do grupo que a expressa O anticomunista ficaraacute cada vez mais convencido da maldade do comunista e vice-versa Como resultado as pessoas ignoram mais e mais umas agraves outras Elas natildeo se permitem se abrir a um intercacircmbio de pontos de vista argumentos e raciociacutenio (ELLUL 1973 p 213)

Muitos anos depois com o advento da TV digital e por sateacutelite que oferece centenas de canais e informaccedilatildeo a Internet com seus inuacutemeros portais blogs e sites sem mencionar o raacutedio a criacutetica de Ellul parece ser ainda mais proeminente Noacutes realmente vivemos como diz Burke em ldquoBabel depois da queda da torrerdquo e na medida em que a miacutedia moderna multiplica e acirra a divisatildeo entre os cidadatildeos ela devolve o antiacutedoto retoacuterico a esse estado ndash algo como a conversa de Rorty e Oakeshott sobre a humanidade ndash que eacute muito menos eficaz

O problema da divisatildeo entre os cidadatildeos se agrava quando se leva em consi-deraccedilatildeo os efeitos indiretos da miacutedia sobre os que satildeo eleitos para representar o cidadatildeo Por causa dos custos sempre ascendentes para se ganhar eleiccedilotildees devi-do primeiramente pelos altos custos de se comprar tempo na miacutedia e produzir os anuacutencios poliacuteticos que por si mesmos exibem incrivelmente tendecircncias pro-

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A construccedilatildeo do argumento

pagandiacutesticas os altos escalotildees da poliacutetica tornam-se mais e mais dependentes de interesses especiais dispostos a financiar as suas campanhas A fidelidade a interesses particulares por sua vez torna cada vez mais difiacutecil para os oacutergatildeos puacuteblicos suplantar as disputas partidaacuterias e conciliar seus interesses em nome do bem puacuteblico A reduccedilatildeo ndash muitas vezes perceptiacutevel ndash da conversa produtiva e cortecircs no Congresso Americano eacute um sinal de que o modelo de divisatildeo proposto por Ellul se expandiu do eleitorado para os oacutergatildeos legisladores Na realidade Burke sugere que isso sempre aconteceu e que a mudanccedila da natureza da miacutedia deve ter simplesmente agravado uma afliccedilatildeo crocircnica dentro dos oacutergatildeos legisladores

As conclusotildees de Burke quanto agraves causas que subjazem agraves divisotildees legislativas surgem no contexto de sua discussatildeo sobre a psicologia de Hitler desenvolvida agrave luz das ideias de Freud Burke alega que o proacuteprio ldquoeu parlamentarrdquo de Hitler era profundamente cindido entre ego superego e id Hitler por sua vez projetou as prodigiosas lutas interiores que cercam sua personalidade para o mundo es-pecialmente para o extremamente dividido e em colapso parlamento do Impeacuterio Habsurg Impor a sua visatildeo totalitaacuteria ao mundo representou uma cura maacutegica para as suas divisotildees interiores Todas as evidecircncias de heterogeneidade de dife-renccedilas se tornavam para Hitler sintomas de ldquodemocracia falida em dias difiacuteceisrdquo (BURKE 1941 p 200) O processo poliacutetico democraacutetico inevitavelmente confuso com ecircnfase no debate no compromisso e no consenso eacute convertido por Hitler em uma Babel de vozes

[] e pelo meacutetodo de fusotildees associativas usando ideias como imagens Viena tornou-se na retoacuterica de Hitler lsquoBabilocircniarsquo como a cidade da po-breza prostituiccedilatildeo imoralidade coalisotildees meias medidas incesto de-mocracia (ou seja regras da maioria que leva a lsquofalta de responsabilidade pessoalrsquo (BURKE 1941 p 200)

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A construccedilatildeo do argumento

Em qualquer das conversas calorosas dos programas de raacutedio pode-se ouvir anaacutelises similares conduzidas com os mesmos tons de indignaccedilatildeo moral dos conta-dores de faacutebulas das notiacutecias de hoje De acordo com Burke os editores dos jornais de seu tempo seguiam o modelo talvez no mesmo tom da retoacuterica de Hitller Essa eacute uma observaccedilatildeo que ainda parece ressoar

Qualquer conflito entre os porta-vozes parlamentares representa um conflito correspondente entre os interesses materiais dos grupos pe-los quais eles estatildeo falando Hitler natildeo discute a Babel por esse acircngu-lo Ele discutiu isso com bases puramente sintomaacuteticas A estrateacutegia da nossa imprensa ortodoxa de ridicularizar a verborragia cacofocircnica do Congresso eacute oacutebvia ao centralizar o ataque aos sintomas dos assuntos conflituosos como eles se revelam nos indiacutecios das disputas poliacuteticas e ao deixar a causa nas entrelinhas e os assuntos conflituosos fora de pauta satisfazem o povo que poderia de outra forma ficar alienado no-meadamente os empresaacuterios que satildeo os membros ativos de seu puacuteblico leitor (BURKE 1941 p 201)

O resultado desse cenaacuterio eacute o enfraquecimento da crenccedila do povo no gover-no Na medida em que as regras instituiccedilotildees princiacutepios e tradiccedilotildees do governo podem limitar o poder dos profissionais da propaganda ou impedir um programa especiacutefico que eles queiram engrenar eles natildeo veem isso como uma coisa neces-sariamente ruim Daiacute decorre a afirmaccedilatildeo de Ellul (1973 p 191) de que na medida em que os cidadatildeos se ldquodesinteressam das questotildees poliacuteticasrdquo eles (o estado eou os que o controlam) ficaratildeo ldquoabanando as matildeosrdquo Por outro lado ao mesmo tempo haacute um ponto de atenuaccedilatildeo jaacute que continuar a enfraquecer a crenccedila do povo no go-verno pode natildeo ser do interesse proacuteprio daqueles que controlam ou gostariam de controlar as reacutedeas do poder do governo Se o puacuteblico tem receio em relaccedilatildeo aos entremeios do governo a propaganda ldquo[] natildeo tem absolutamente efeito nos que vivem na indiferenccedila ou ceticismordquo (ELLUL 1973 p 190) Como entatildeo fazem os

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A construccedilatildeo do argumento

marqueteiros poliacuteticos para simultaneamente enfraquecer a confianccedila no gover-no como instituiccedilatildeo e expandir os poderes governamentais que servem aos seus propoacutesitos

O truque de acordo tanto com Burke quanto com Ellul eacute personalizar o go-verno identificando-o cada vez mais com a personalidade ou as personalidades de seu liacuteder De acordo com Ellul (1973 p 172) ldquo[] o culto ao heroacutei eacute o complemento absolutamente necessaacuterio para a massificaccedilatildeo da sociedaderdquo Atraveacutes do heroacutei diz o autor a pessoa mediana ldquovive vicariamenterdquo e o heroacutei eacute uma celebridade das telas ou o presidente Na esfera poliacutetica Ellul vecirc esse tema aparecer mais claramente nos partidos poliacuteticos cujos marqueteiros (ou publicitaacuterios se preferem) exploram ldquo[] a inclinaccedilatildeo das massas em admirar o poder pessoal criando a imagem de um liacuteder e investindo nela com atributos de onipresenccedila e onisciecircnciardquo (ELLUL 1973 p 217) Para reforccedilar a sua argumentaccedilatildeo aqui Ellul cita a corrida presidencial americana de 1952 na qual Eisenhower explorou com sucesso essa inclinaccedilatildeo agraves custas de Adlai Stevenson a quintessecircncia do intelectual reservado que viu as suas ideias mas natildeo a sua pessoa como a chave para as suas reivindicaccedilotildees agrave presidecircncia

Ellul (1973 p 172) de passagem observa como o fascismo repetidamente afirmava ter ldquorestaurado a personalidade ao seu lugar de honrardquo uma questatildeo que por sua vez ocupa um enorme espaccedilo na anaacutelise de Burke sobre a propaganda de Hitler Em especial Hitler eacute habilidoso em ldquoespiritualizarrdquo e ldquoeticizarrdquo os viacutenculos materiais que une os diferentes estratos da sociedade ao ldquopersonalizarrdquo esses viacuten-culos tornando ldquogrosseiro o ato de tratar empregadores e empregados como classes diferentes e classificar de forma tambeacutem diferente os seus interessesrdquo (BURKE 1941 p 217) Ao inveacutes disso as relaccedilotildees entre empregador e empregado devem se dar na base ldquopessoalrdquo de liacuteder e seguidorrdquo (BURKE 1941 p 217)24 O vocabulaacute-

24 Pelo mesmo motivo enquanto os que hoje apontam as injusticcedilas entre as classes satildeo acusados de instigar a ldquoluta de classesrdquo a populaccedilatildeo em geral eacute inundada com livros fitas e seminaacuterios sobre ldquolideranccedilardquo uma qualidade miacutestica que eacute recompensada com montantes de dinheiro cada vez mais fabulosos

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A construccedilatildeo do argumento

rio que Hitler usa para efetivar essa transformaccedilatildeo maacutegica vem da terminologia prestigiada da religiatildeo que ele desvia impunemente

Aqui novamente o uso corrompido que Hitler faz dos padrotildees religiosos vecircm agrave tona O pensamento religioso primeiramente preocupado com as questotildees de ldquopersonalidaderdquo com problemas de aperfeiccediloamento moral naturalmente e eu acho que corretamente enfatiza a natureza essencial do ato de vontade individual Daiacute decorre a resistecircncia a uma explicaccedilatildeo puramente ldquoambientalrdquo dos males humanos Daiacute a ecircnfase na ldquopessoardquo Daiacute a tendecircncia a buscar uma explicaccedilatildeo natildeo econocircmica para os fenocircmenos econocircmicos (BURKE 1941 p 201)

Essa personalizaccedilatildeo de todas as relaccedilotildees no estado nazista eacute por fim esten-dida para a imagem do proacuteprio estado Com o intuito de alcanccedilar paz e harmonia ldquoa discussatildeo do parlamentar eacute para ser acalmada pela concessatildeo de uma voz para todo o povo a lsquovoz interiorrsquo de Hitler tornada uniforme em toda a Alemanha como a do liacuteder e as pessoas estavam totalmente identificadas umas com as outrasrdquo (BURKE 1941 p 207) Assim Hitler oferece ao povo alematildeo ldquo[] o conteuacutedo mau de uma necessidade boardquo (p 210) ao perverter o desejo de supremacia Ao fazer essa unificaccedilatildeo Hitler se volta para a criacutetica de um tipo especiacutefico de propaganda

Natildeo um criticismo no sentido ldquoparlamentarrdquo de duacutevida de ouvir a oposi-ccedilatildeo e de tentar amadurecer uma poliacutetica agrave luz das contra poliacuteticas mas o tipo unificado de criticismo que simplesmente busca modos conscientes de tornar a oposiccedilatildeo de algueacutem mais ldquoeficienterdquo mais cheia de si (BURKE 1941 p 211)

O mundo que Hitler cria com a propaganda censurando a oposiccedilatildeo excluindo contradiccedilatildeo identificando a unidade essencial do estado com o ldquosanguerdquo da raccedila ariana eacute a distopia da propaganda segundo Ellul (1973) um mundo hermetica-mente fechado no qual o indiviacuteduo ldquonatildeo tem pontos de referecircncia externosrdquo

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A construccedilatildeo do argumento

A despeito de a propaganda ser normalmente identificada com retoacuterica tanto a compreensatildeo de Ellul quanto a de Burke do termo torna-o antirretoacuterica O que acontece com a propaganda na Alemanha de Hitler e na democracia Ocidental de Ellul eacute o que acontece com qualquer termo que se permite transformar-se em ldquoum fim em si mesmordquo Na linguagem de Burke (1941) o termo sucumbe ao paradoxo da pureza e se torna diferente na sua natureza de cada uma das instacircncias pelas quais a sua uacuteltima definiccedilatildeo foi concebida Simplesmente inverte-se o processo pelo qual noacutes chegamos ao conceito de pura persuasatildeo eliminando toda e qual-quer sugestatildeo de sacrifiacutecio e impasse de dialeacutetica e de invenccedilatildeo ateacute que se torna puramente ldquodirecionadordquo e qualquer potencial interlocutor se transforma em um movimento

Para entender melhor exatamente a razatildeo de a propaganda ter se tornado uma forccedila mais penetrante na nossa avanccedilada democracia supostamente imune aos seus encantos voltamos a Ellul (1973 p 129) e a um ponto importante que ele estabelece a respeito do funcionamento da democracia ocidental ldquoPara o ocidental mediano o desejo das pessoas eacute sagrado e o governo que falha em representar esse deseja eacute uma ditadura abominaacutevelrdquo Para qualquer governo democraacutetico manter a sua legitimidade ele deve manter o apoio popular na forma de opiniatildeo puacuteblica de apoio eleitoral ou ambos No entanto a opiniatildeo puacuteblica como todos que seguem as pesquisas sabem eacute sabidamente inconstante O apoio agraves poliacuteticas militares ou econocircmicas de uma administraccedilatildeo puacuteblica ou de um partido sobe e desce dependendo de quatildeo boas ou ruins satildeo as notiacutecias das esferas econocircmica ou militar Poreacutem para serem efetivas as poliacuteticas devem ser estaacuteveis e os operado-res da poliacutetica precisam enxergar mais longe se as notiacutecias seratildeo contra eles ndash e inevitavelmente seratildeo contra eles por um tempo ndash eles devem modificar ou ateacute mesmo inverter a sua poliacutetica aceitar derrotas ou persuadir as pessoas de que as suas decisotildees estatildeo efetivamente dando certo ou prestes a dar certo

A dificuldade no acircmbito poliacutetico eacute perfeitamente capturada por Ellul (1973 p 132) que observa que toda administraccedilatildeo de qualquer filiaccedilatildeo partidaacuteria ldquo[]

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A construccedilatildeo do argumento

daacute a impressatildeo de obedecer a opiniatildeo puacuteblica ndash depois de tecirc-la criado O ponto eacute fazer as massas solicitaram ao governo o que ele jaacute tinha decidido fazerrdquo Em al-guns casos noacutes podemos ndash agraves vezes corretamente ndash atribuir um motivo sinistro para essas tentativas iliacutecitas de influenciar a opiniatildeo puacuteblica As poliacuteticas que vatildeo sendo promovidas podem de fato beneficiar interesses especiacuteficos agraves custas do bem puacuteblico Ateacute mesmo essas poliacuteticas de interesse puacuteblico enfrentaratildeo muitas das mesmas dificuldades que enfrentam as praacuteticas corruptas O fato de as praacuteti-cas aparentemente mais civilizadas poderem ser mais facilmente defendidas com bases racionais natildeo garante a sua popularidade ou nega a necessidade pelo menos aos olhos de seus proponentes de se utilizar a propaganda em seu benefiacutecio Por isso a eacute inevitaacutevel

A propaganda portanto natildeo eacute algo que podemos esperar erradicar ou nas palavras de Burke (1941) desbancar Podemos retardar a sua propagaccedilatildeo e enca-minhaacute-la para formas mais legiacutetimas de persuasatildeo por meio do questionamento e da criacutetica Como as praacuteticas de marketing e de publicidade agraves quais a propaganda estaacute tatildeo intimamente ligada ela tambeacutem pode ser mais ou menos honesta mas apenas se falhar nas formas mais rudes ndash propaganda disfarccedilada de boletins in-formativos do governo que divulga os benefiacutecios de programas duvidosos pes-quisas falsas financiadas pela induacutestria usadas seletivamente por membros do governo para apoiar poliacuteticas duvidosas falsos jornalistas que fazem perguntas natildeo embaraccedilosas aos membros do governo comentaristas que datildeo depoimentos falsos em apoio a programas e poliacuteticas sem dizer que satildeo pagos para isso e de-putados vereadores que realizam sessotildees em cenaacuterio de Potemkin Village25 com

25 O termo Potemkin Village refere-se agrave histoacuteria de que o marechal russo Grigory Alexander Potemkin (1739-1791) amante da imperatriz russa Catarina ii (1729-1796) teria construiacutedo uma cidade falsa para impressionaacute-la durante sua viagem agrave Crimeacuteia em 1787 Conta-se que eram feitas construccedilotildees falsas ao longo do rio Diepner que eram desmontadas e montadas novamente agrave frente do trajeto da imperatriz que as via como se fossem novas

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A construccedilatildeo do argumento

participantes cuidadosamente escolhidos para fazer perguntas preacute-estabelecidas ndash porque os jornalistas de verdade fazem seu trabalho eou porque o puacuteblico mais sofisticado aprendeu a ldquodar um descontordquo para as alegaccedilotildees duvidosas e questionar criticamente accedilotildees simboacutelicas

Para ajudar a compreensatildeo desse assunto oferecemos a seguir um breve re-sumo das praacuteticas dos profissionais de propaganda

a propaganda em resumo

Antes de ponderarmos os sintomas e a dinacircmica das praacuteticas da propagan-da deixamos a seguinte advertecircncia as diferenccedilas entre a propaganda e outras formas legiacutetimas de praacuteticas retoacutericas satildeo de intensidade Toda e qualquer praacutetica retoacuterica eacute mais ou menos honesta ou desonesta e nenhuma delas pode ser aplicada categoricamente a um ato qualquer Se reduzirmos a coisa toda a uma uacutenica frase nossa visatildeo da propaganda poderia ser chamada de ldquopublicidade de esteroides por razotildees poliacuteticasrdquo Muitas das condiccedilotildees que se seguem caracterizam tanto discursos poliacuteticos comuns quanto a propaganda Determinar quando um discurso poliacutetico se torna propaganda requer ldquodisputas poliacuteticasrdquo entre pessoas de diversas convic-ccedilotildees Consequentemente talvez fosse melhor pensar nessas condiccedilotildees mais como dicas do que traccedilos taxionocircmicos

1 A propaganda poliacutetica requer um palco se natildeo o placo Sem um palco deixa-se de natildeo apenas disseminar uma mensagem a uma massa mas de enquadrar o debate de forma a cercear as mensagens adversaacuterias Em-bora nem todos os que divulgam uma mensagem precisem ter crachaacutes de uma organizaccedilatildeo ou ser parte interessada de um projeto para se en-gajar na divulgaccedilatildeo da propaganda aqueles que criam e produzem uma mensagem propagandiacutestica devem fazecirc-lo conscientemente em nome de

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A construccedilatildeo do argumento

um sistema de crenccedilas Na forma como se encontra hoje a propaganda frequentemente se dissemina como uma fofoca na cultura oral por meio da expansatildeo de mensagens de propaganda conscientemente elaboradas que se originam na miacutedia de massa e se proliferam pela Internet nos programas de raacutedio em programas de TV em que os telespectadores participam em cartas aos editores e assim por diante Cada vez mais a direccedilatildeo desse movimento eacute inversa na medida em que os blogueiros comeccedilam a criar mensagens propagandiacutesticas que parodiam as mensa-gens dos liacutederes ldquooficiaisrdquo

2 Assim como os anunciantes os profissionais de propaganda satildeo exigen-tes ldquointegrantesrdquo do mercado cujas mensagens frequentemente refletem pesquisas extensas sobre a estrutura psicoloacutegica e demograacutefica de seu puacuteblico Eles se baseiam muito na ldquoartimanhardquo de que fala Burke (1941) na busca de vantagens para as suas ideias falando dos medos anseios e desejos especiacuteficos do seu puacuteblico alvo numa tentativa de contornar as anaacutelises racionais e induzir o ldquomovimentordquo nos sujeitos aos quais se dirigem Seu apelo se baseia menos nas evidecircncias e nas razotildees do que no ldquosenso comumrdquo que ldquonatildeo tem origemrdquo Tambeacutem como os anunciantes os profissionais da propaganda satildeo adeptos da persuasatildeo de grandes audiecircncias (ldquoVocecircrdquo) para as quais eles estatildeo falando individualmente (vocecirc) e persuadindo-as a aderir a uma linha partidaacuteria em nome de seus proacuteprios pensamentos

3 Ainda que muitas das teacutecnicas usadas para criar e promover a pro-paganda sejam tomadas emprestadas dos anuacutencios existem diferenccedilas cruciais Em geral os anunciantes conseguem seu palco em negocia-ccedilotildees comerciais diretas Os profissionais da propaganda por sua vez normalmente usam a miacutedia puacuteblica especialmente a miacutedia de notiacutecias

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A construccedilatildeo do argumento

para divulgar a sua mensagem Aleacutem disso os anuacutencios satildeo abertamente apresentados como anuacutencios ao passo que a propaganda eacute raramente apresentada como propaganda Na medida em que um puacuteblico sabe que uma mensagem eacute uma propaganda a efetividade da mensagem tende a diminuir Agraves vezes os profissionais da propaganda adotam medidas extremas (por exemplo plantam notiacutecias falsas nas principais miacutedias e criam falsas organizaccedilotildees partidaacuterias de terceiros e assim por diante) para transmitir a sua mensagem enquanto dissimulam as suas intenccedilotildees

4 O texto da mensagem da propaganda normalmente eacute fruto de fatos atuais Muitas vezes ele se concentra em um problema ou crise que atrai a atenccedilatildeo do puacuteblico em virtude de sua natureza dramaacutetica eou sua analogia com um tema miacutetico popular (por exemplo um indiviacuteduo humilde [Davi] toma o posto de um grande governador [Golias]) As consequecircncias materiais do problema satildeo menos importantes para os profissionais da propaganda do que sua repercussatildeo simboacutelica Em al-guns casos realmente o problema eacute fabricado para desviar a atenccedilatildeo de outros problemas que tecircm consequecircncias puacuteblicas consideravelmente maiores mas que satildeo menos manejaacuteveis eou que refletem bem menos nos que fazem a propaganda

5 Ao se vincularem a um problema que jaacute ganhou a atenccedilatildeo do puacuteblico os profissionais da propaganda ampliam o tema que inspirou a sua men-sagem Ao adequar o significado de um evento problemaacutetico aos seus temas ideoloacutegicos eles podem persuadir o puacuteblico de que sua interpre-taccedilatildeo de um evento singular eacute na verdade a confirmaccedilatildeo de uma ordem subjacente Assumir uma soluccedilatildeo ndash ao contraacuterio de simplesmente culpar outra ideologia ndash reflete a ideologia dos profissionais da propaganda mais claramente do que adequar o problema Muitas vezes o problema eacute refor-

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A construccedilatildeo do argumento

mulado como uma questatildeo moral e a soluccedilatildeo proposta seraacute mais espiritual ou moral do que pragmaacutetica Consequentemente a propaganda vai dire-cionar nossa atenccedilatildeo para a dimensatildeo pessoal do problema e para longe das causas que o circundam Em suas formas mais danosas as soluccedilotildees da propaganda apelam para a puniccedilatildeo a exclusatildeo ou o impeachment de bodes expiatoacuterios cujos comportamentos justificam o tom de indignaccedilatildeo ou ultraje moral beneficiado pelos profissionais da propaganda

6 Os profissionais da propaganda mostram pouco entusiasmo por ldquoau-tointerferecircnciardquo ou ldquocontraditoacuteriordquo Seus argumentos satildeo frequentemente construiacutedos em segredo com poucos elementos de fontes variadas Eles distorcem demonizam ou excluem por completo as visotildees opostas ao assunto em questatildeo Falam para o menor denominador comum do seu puacuteblico Se os argumentos dos profissionais da propaganda satildeo depara-dos com fatos inconvenientes ou contra-argumentos contundentes uma vez que eles estatildeo postos no mundo os que os defendem natildeo hesitam nem procuram apresentar justificativas Eles vatildeo repetir o argumento infinitamente mostrando firmeza de propoacutesito que em alguns casos passa como lideranccedila26

7 Enquanto a propaganda em sociedades fechadas eacute frequentemente criada em torno de um ldquoculto agrave personalidaderdquo nas sociedades abertas tende a ser frequentemente criada em torno de um ldquoculto agrave celebridaderdquo As biografias das personalidades que falam em nome de uma ideologia seratildeo interpretadas para adaptar os mitos que permeiam essa ideologia

26 Burke (1941 p 212) observa que Hitler se recusou a alterar um uacutenico item de sua plataforma nazista original de 25 itens porque achava que a fixidez da plataforma era mais importante para propoacutesitos da propaganda do que qualquer revisatildeo de seus slogans mesmo que as revisotildees em si mesmas tivessem muito a dizer a seu favorrdquo

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A construccedilatildeo do argumento

e acabaratildeo por personificaacute-la da mesma forma como as estrelas do cine-ma frequentemente satildeo identificadas aos personagens que interpretam

8 Quanto mais ansioso eacute o puacuteblico mais efetiva eacute a propaganda Para ser bem recebida a propaganda requer um puacuteblico indeciso fraacutegil e ateacute mesmo temeroso Um sentimento de crise a sensaccedilatildeo de estar sob ata-que rendem uma audiecircncia mais tolerante a argumentos unilaterais e agrave reduccedilatildeo dos oponentes a figuras de desenhos animados Os profissionais da propaganda inventam crises mas mais comumente eles simplesmente transformam problemas reais de pequenas proporccedilotildees em problemas apocaliacutepticos de proporccedilotildees homeacutericas Os criacuteticos internos de suas cria-ccedilotildees satildeo prontamente agrupados como seus inimigos amorfos

Isso eacute entatildeo a propaganda em resumo Com a intenccedilatildeo de sermos ldquojustos e equilibradosrdquo gostariacuteamos de convidar nossos estudantes a aplicar essas observa-ccedilotildees natildeo apenas agraves praacuteticas administrativas do governo mas tambeacutem aos filmes de Michael Moore e aos programas da emissora Air America

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caPiacutetulO 3 introduccedilatildeo a algumas boas praacutetiCas27

Neste capiacutetulo vamos revisar algumas abordagens de ensino de escrita ba-seadas na argumentaccedilatildeo ndash ou que podem facilmente ser adaptadas para esse fim Embora os professores que se concentrem digamos na retoacuterica da libertaccedilatildeo em suas aulas de escrita possam natildeo se considerar adeptos da pedagogia do argu-mento sua abordagem tende a focalizar a argumentaccedilatildeo e inclusive a requerer estrateacutegias tiacutepicas de construccedilatildeo de argumento Qualquer abordagem que facilite o ensino da argumentaccedilatildeo e envolva um ensino de escrita inovador seraacute conside-rada aqui como parte integral de boas praacuteticas na aacuterea Poreacutem antes de revisar-mos essas praacuteticas detalhadamente ofereceremos um breve panorama geral dos princiacutepios baacutesicos de um curso de escrita bem sucedido e das melhores praacuteticas que o integram

o Que funCiona no ensino de esCrita

Como jaacute sugerimos em diversas ocasiotildees poucos pesquisadores nas aacutereas de retoacuterica e escrita ainda se dedicam agrave avaliaccedilatildeo empiacuterica das praacuteticas adotadas em sala de aula Ao nos referirmos a uma determinada abordagem como ldquouma boa praacuteticardquo natildeo estamos apenas nos referindo necessariamente agrave didaacutetica associada a essa praacutetica nem aos seus resultados Na verdade pouco sabemos sobre esses resultados aleacutem do que dizem os seus criadores Favorecemos uma determinada praacutetica ou abordagem apenas por sentir que ela se alinha melhor com nossa opi-

27 Traduccedilatildeo felipo Bellini Souza e Maria Hozanete alves de Lima

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A construccedilatildeo do argumento

niatildeo sobre o ensino de escrita e porque elas natildeo entram em conflito direto com os princiacutepios baacutesicos do ensino que no nosso ponto de vista pessoal permeiam o ensino adequado da escrita

Ao articularmos conscientemente nosso raciociacutenio pessoal a respeito do en-sino de escrita e dos princiacutepios baacutesicos da instruccedilatildeo em geral podemos destacar dois trabalhos que nos influenciaram especialmente na elaboraccedilatildeo deste estudo O primeiro The Rhetoric of Reason Writing and the Attractions of Argument de James Crosswhite (CROSSWHITE 1996) oferece instruccedilotildees filosoacuteficas extensas a respeito de como fundamentar o ensino de escrita baseado na argumentaccedilatildeo Inspirado pelos trabalhos de diversos filoacutesofos como Platatildeo Aristoacuteteles Heideg-ger Perelman e Olbrechts-Tyteca Levinas Cavell Habermas Schrag e Gadamer Crosswhite (1996) desenvolve o conceito de ldquoretoacuterica da razatildeordquo e o posiciona como uma alternativa ao ceticismo radical da desconstruccedilatildeo como foi exemplificado por Derrida e Man28 O livro eacute recomendaacutevel a todos os professores por uma seacuterie de motivos ele defende com sucesso a eficaacutecia e a importacircncia da educaccedilatildeo geral como parte da educaccedilatildeo superior nos Estados Unidos estabelece paracircmetros para a compreensatildeo da argumentaccedilatildeo sobretudo como um ato como forma de abordar problemas praacuteticos e tomar decisotildees corretas ao inveacutes de defini-la apenas como um apanhado de sugestotildees de comportamento e oferece um caminho para neutrali-zar doutrinas natildeo essenciais ndash poreacutem presentes na maior parte dos curriacuteculos ndash a respeito da verdade e da identidade como forma de responsabilizar o indiviacuteduo por suas escolhas pessoais

O livro de Crosswhite tambeacutem aborda uma seacuterie de questotildees de natureza teoacuterica filosoacutefica e pedagoacutegica de maneira muito mais completa que satildeo tocadas aqui apenas brevemente Embora haja ainda pontos de vista conflitantes entre a

28 nesse processo Crosswhite ainda destaca os pontos em que Derrida pode servir como base ou apoio para a retoacuterica da razatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

nossa opiniatildeo como autores e os conceitos defendidos por Crosswhite (fazemos objeccedilatildeo especialmente agraves conclusotildees duramente pessimistas apresentadas no final do livro) acreditamos que a obra oferece uma espeacutecie de macrovisatildeo que engloba nossas premissas a respeito do ensino da argumentaccedilatildeo em aula de escrita

Da mesma forma o livro Teaching Writing as Reflective Practice (Ensinar es-crita como praacutetica reflexiva) de George Hillocks (HILLOCKS 1984) oferece uma micro visatildeo de nossa filosofia pedagoacutegica Embora seus meacutetodos para a compre-ensatildeo do ensino de escrita estejam fora de moda nas aacutereas da retoacuterica e escrita as conclusotildees de Hillocks e a aplicaccedilatildeo baacutesica de seus conceitos satildeo relevantes para a nossa abordagem Como jaacute mencionamos os que desmerecem o autor e sua obra continuam fundamentando o ensino de escrita com base nos seus conceitos ainda que inconscientemente Na verdade quando defendemos e explicamos ao longo dos anos os fundamentos dos nossos cursos (por que vocecircs natildeo datildeo mais relevacircncia aos fundamentos da escrita e da gramaacutetica em seus cursos) e a busca de recursos financeiros junto a gestores de instituiccedilotildees de ensino verificamos que o trabalho de Hillocks era bastante eficaz para convencer esses gestores na sua maioria de formaccedilatildeo em Ciecircncias ou Ciecircncias Sociais Assim mesmo correndo o risco de simplificar as ideias do autor aleacutem do razoaacutevel enumeramos os seguintes fundamentos da praacutetica em sala de aula baseados amplamente nos trabalhos de Hillocks

1 A aprendizagem ativa eacute muito mais eficaz que a aprendizagem passiva Algumas particularidades desse princiacutepio incluem

a Reduza o tempo de aula expositiva (o que Hillocks chama de ldquomoacutedulo de apresentaccedilatildeordquo durante o ensino) ao miacutenimo possiacutevel Se vocecirc pre-cisa dar uma aula expositiva (com grande tempo de explanaccedilatildeo em que apenas o professor fala como no ensino tradicional) ndash agraves vezes todos noacutes precisamos fazer isso ndash faccedila que essa etapa seja o mais

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A construccedilatildeo do argumento

breve possiacutevel quinze minutos ou menos Certifique-se o maacuteximo possiacutevel de que seu tempo com exposiccedilatildeo seja usado para interagir com os alunos e natildeo como uma agenda pessoal e necessidade de ldquocobrirrdquo toda mateacuteria

b Ao maacuteximo possiacutevel construa um curso em torno da aprendizagem indutiva em vez de focar-se na assimilaccedilatildeo de conteuacutedo ou na livre expressatildeo Quando as aulas se baseiam no argumento isso pode requerer mais atenccedilatildeo a assuntos locais pessoais que permitam aos alunos se concentrarem em fontes primaacuterias e secundaacuterias A aprendizagem indutiva parte da ldquo[] estrateacutegia baacutesica do questiona-mento que integra todos os campos do conhecimentordquo (HILLOCKS 1984 p 100) natildeo de estrateacutegias especializadas de questionamento Quando falamos de um curso baseado no argumento destacamos os seguintes pontos do recurso agrave aprendizagem indutiva a criaccedilatildeo de um inventaacuterio do conhecimento preacutevio e pressupostos existentes a respeito de um determinado assunto a formaccedilatildeo de hipoacuteteses a criaccedilatildeo de uma ldquosuposiccedilatildeo justificadardquo de uma alegaccedilatildeo principal o teste dessa alegaccedilatildeo primeiramente a partir de novos conheci-mentos e informaccedilotildees adquiridos com a leitura o questionamento a pesquisa e afins e em um segundo momento a partir da discussatildeo em grupo do conhecimento acumulado

c Concentre-se em estudos individualizados ou em grupo dentro da sala de aula O questionamento eacute algo que deve ser conduzido den-tro e fora da sala de aula Hillocks (1984 p 55) usa o termo ldquoensino ambientalrdquo para descrever o ensino que ldquo[] cria ambientes que introduzem e apoiam o aprendizado ativo de estrateacutegias complexas que os alunos ainda natildeo satildeo capazes de utilizar sozinhosrdquo

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A construccedilatildeo do argumento

2 A transparecircncia eacute tatildeo importante para o ensino eficiente quanto o eacute para o bom governo Deixe suas expectativas e metas para cada aula ndash e para cada tarefa ndash perfeitamente claras Encoraje os alunos a compartilha-rem e discutirem juntos cada rascunho e atividade durante o processo Quando possiacutevel apresente hipoacuteteses iniciais de outros alunos como exemplo para esclarecer ainda mais os criteacuterios e expectativas adotados Ofereccedila feedback especiacutefico mas ao mesmo tempo de forma que englobe toda a sala (por exemplo diga que os alunos natildeo ofereceram evidecircncias suficientes que justifiquem essa ou aquela hipoacutetese ou que a hipoacutetese proposta natildeo satisfaz as necessidades do puacuteblico alvo ou que ldquohaacute quebra de paralelismo nessas frasesrdquo)

3 Estabeleccedila metas altas mas crie processos que permitam aos alunos atingi-las Uma das bases teoacutericas da abordagem de Hillocks deriva de Vygotsky ndash particularmente do conceito de ldquozona de desenvolvimento proximalrdquo (ZDP) Essa zona eacute definida como a aacuterea localizada entre a capacidade real da pessoa e sua capacidade potencial que pode ser atingida com orientaccedilatildeo e cuidado Nesse caso a ldquoorientaccedilatildeo cuidadosardquo inclui atividades em sala de aula em especial as oportunidades de usar a criatividade em atividades orais ou escritas a correccedilatildeo intermediaacuteria dos demais alunos ou do professor e em seguida a confecccedilatildeo de novos rascunhos baseados no feedback recebido ateacute entatildeo

4 Coloque em praacutetica seus princiacutepios seja tambeacutem um aluno quando esti-ver em sala de aula Hillocks encoraja professores a praticarem a mesma abordagem baseada no questionamento quando estatildeo em sala de aula Ao informar aos alunos os seus objetivos antes de atribuir-lhes uma tarefa ou atividade vocecirc oferece na verdade uma hipoacutetese inicial sobre

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A construccedilatildeo do argumento

o caminho para atingir esses objetivos Preste atenccedilatildeo ao que acontece depois disso e teste a sua hipoacutetese Quando alguma coisa falhar descubra porque e repense suas estrateacutegias

5 Adapte-se da melhor forma possiacutevel aos diferentes estilos de aprendiza-do e inteligecircncia de seus alunos Use diferentes maneiras de pesquisar assimilar e apresentar informaccedilotildees Se vocecirc natildeo tiver recursos digitais em sala de aula faccedila o possiacutevel para encorajar o uso de miacutedias visuais e computadores fora da sala

6 Use seus pontos fortes quando estiver em sala de aula (isso deriva menos das teorias de Hillocks do que de nossa experiecircncia como autores e pro-fessores) Da mesma forma que fazemos o possiacutevel para nos adaptarmos aos alunos precisamos respeitar nossas particularidades Alguns de noacutes satildeo palestrantes realmente brilhantes ndash apesar de nossa experiecircncia provar que os brilhantes satildeo menos numerosos que aqueles que pensam que satildeo Outros criam tarefas extraordinaacuterias em grupo Alguns tecircm um verdadeiro talento para aulas particulares Qualquer que seja seu maior talento como professor seja qual for o motivo pelo qual vocecirc escolheu essa profissatildeo busque sempre uma maneira de utilizar esse talento

boas praacutetiCas

O que propomos a seguir natildeo eacute absolutamente uma exaustiva lista de orien-taccedilotildees para introduzir a argumentaccedilatildeo em sua sala de aula Trata-se apenas de uma compilaccedilatildeo de algumas boas praacuteticas Acima de tudo essa seccedilatildeo busca auxi-liar professores a se valerem do argumento como forma de engajar seu puacuteblico Qualquer pessoa que tenha lecionado e pedido a seus alunos que redijam textos

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A construccedilatildeo do argumento

argumentativos sabe que natildeo existe uma ldquomelhor formardquo de estruturar essa aula haacute diversas maneiras eficazes Aqui vamos apenas enumerar algumas

Para os professores que satildeo calouros no campo da argumentaccedilatildeo esta seccedilatildeo oferece um mapa dessa abordagem pedagoacutegica Para os que jaacute tecircm mais experiecircncia com o assunto esta seccedilatildeo oferece uma lista de ideias de como reestruturar aulas jaacute criadas Se pedimos a nossos alunos constantemente que questionem suas su-posiccedilotildees acerca de argumentos por eles apresentados precisamos tambeacutem estar dispostos a questionar as nossas suposiccedilotildees a respeito do ensino

As informaccedilotildees a seguir representam uma abordagem ecleacutetica sobre a retoacuteri-ca e a construccedilatildeo de argumento como uma diferente forma de ver o mundo e natildeo apenas como fins que podem ser alcanccedilados com a mera repeticcedilatildeo de uma foacutermula (ainda que em certas ocasiotildees os pesquisadores que adotam essa metodologia sugerem um processo um tanto quanto formal) Algumas das melhores praacuteticas partem do desejo de ajudar alunos a irem aleacutem de sua posiccedilatildeo isolada de indiviacuteduo e a se colocarem em um contexto mais abrangente Esse esforccedilo social baseado na identidade grupal inclui a retoacuterica da libertaccedilatildeo o argumento feminista e a aprendizagem-serviccedilo

A retoacuterica da libertaccedilatildeo eacute um movimento educacional que surgiu como reaccedilatildeo aos modelos de educaccedilatildeo para alunos passivos Ela foi fundamental para o esforccedilo de evidenciar questotildees ligadas agrave representatividade dentro da sala de aula e ao reconhecimento da educaccedilatildeo como um processo natildeo neutro ndash a ideologia eacute sempre transmitida junto com o conhecimento Ao incorporar a retoacuterica da libertaccedilatildeo agrave aula sobre argumento criamos um ambiente abertamente politizado que tem a cultura como ponto focal de discussatildeo e chama os alunos a questionar de manei-ra criacutetica o conteuacutedo do curso e as experiecircncias e ideologias que eles trazem agrave discussatildeo como falantes ou escritores A escrita eacute um veiacuteculo que pode ser usado de diferentes maneiras na formaccedilatildeo do aluno que se engajaraacute de forma criacutetica ao mundo agrave sua volta

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O argumento feminista tambeacutem contesta o status quo Ao tentar eliminar a oposiccedilatildeo perdedorganhador de um argumento atraveacutes de uma abordagem mais eacutetica as feministas nos clamam a buscar estrateacutegias menos agressivas e mais cooperativas especialmente focadas na importacircncia do ouvir compreender e dialogar numa troca de argumentos Na sala de aula as abordagens feministas podem ser implementadas em doses homeopaacuteticas e natildeo precisam ser adotadas com exclusividade

A abordagem aprendizagem-serviccedilo vecirc a linguagem como uma atividade so-cial que eacute ao mesmo tempo interpretativa e construtiva Da mesma forma que a retoacuterica da libertaccedilatildeo auxilia o aluno a explorar seu potencial maacuteximo a apren-dizagem-serviccedilo busca fomentar uma simpatia precoce pelo engajamento ciacutevico Em muitos casos essa abordagem se manifesta na relaccedilatildeo entre aulas de escrita e interaccedilotildees in-loco focadas em projetos reais desenvolvidos com organizaccedilotildees ou empresas da comunidade Essa no entanto natildeo eacute a regra O engajamento ou a pesquisa aprofundados de uma questatildeo pertinente que afeta a mesma comunidade podem ser alternativas interessantes A aprendizagem-serviccedilo oferece ao aluno a oportunidade de vivenciar uma situaccedilatildeo hipoteacutetica com exigecircncias e limitaccedilotildees reais sobre as quais eacute necessaacuterio ponderar Ela tambeacutem expotildee o aluno a um aspecto da academia que natildeo eacute limitado pela disciplina tradicional

Da mesma forma o movimento escrita atraveacutes do curriacuteculo (writing across the curriculum- WAC) objetiva diminuir as limitaccedilotildees das disciplinas Tem como princiacutepio central a ideia de que o aluno aprende mais quando se confronta com o conteuacutedo escrito do curso No caso de professores que natildeo ensinam liacutengua (InglecircsPortuguecircs) essa abordagem oferece uma justificativa racional para a utilizaccedilatildeo da escrita em todas as disciplinas pois postula que o argumento eacute a pedra fundamental de uma educaccedilatildeo superior As disciplinas satildeo diferenciadas principalmente pelas regras de construccedilatildeo de argumento e de apresentaccedilatildeo de evidecircncias favoraacuteveis Em aacutereas que tradicionalmente natildeo requerem extensiva dedicaccedilatildeo agrave escrita as atividades de escrita podem ser usadas para fortalecer os princiacutepios disciplinares

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A construccedilatildeo do argumento

e apresentar aos alunos os meacutetodos de questionamento que satildeo aceitos por deter-minada aacuterea do conhecimento

O raacutepido avanccedilo de possibilidades tecnoloacutegicas forccedilou os professores a reava-liarem o papel e o impacto das diferentes tecnologias de escrita sobre o poder do argumento A escrita com computadores eacute um exemplo disso Como os alunos da atualidade constantemente se sentam agrave frente de um teclado eacute importante levar em consideraccedilatildeo a linguagem que eles trazem agrave sala de aula A tecnologia tambeacutem pode expandir os limites do que eacute considerado ldquoescritardquo especialmente quando o hipertexto eacute utilizado em sala de aula para mudar a perspectiva sobre um deter-minado argumento Os avanccedilos tecnoloacutegicos tambeacutem afetaram mecanismos de pesquisa ndash a confiabilidade de fontes e autoria de ideias estatildeo entre alguns dos assuntos recentemente controversos

A retoacuterica visual tambeacutem se concentra em tecnologias que impactam nossas vidas Ela busca ampliar as discussotildees sobre o argumento para incluir nelas o exame de imagens visuais que constantemente complementam ou substituem as palavras Mesmo que as imagens sejam mais memorizaacuteveis e capazes de maior res-sonacircncia psicoloacutegica seu impacto passa comumente despercebido Haacute mensagens ocultas na miacutedia visual que exigem que repensemos nossa habilidade de processar informaccedilotildees A partir da exploraccedilatildeo da produccedilatildeo e consumo de textos visuais os alunos podem se tornar mais conscientes sobre a forma como as imagens sutis podem transmitir conteuacutedos persuasivos

Por que a construccedilatildeo do argumento e mais amplamente a retoacuterica deveriam receber toda essa atenccedilatildeo em sala de aula Precisamos ensinar retoacuterica para que possamos nos proteger dela As mensagens persuasivas nos rodeiam a todo tem-po ndash elas perfazem um amaacutelgama de nossos ldquoeurdquo coletivos Quanto melhor noacutes ndash e nossos alunos ndash identifiquemos essas mensagens em sua forma real (pontos de vista natildeo verdades monoliacuteticas) melhor atuaremos nesse mundo de ldquoBabel apoacutes a quedardquo Essa seccedilatildeo de boas praacuteticas seraacute mais uacutetil se for empregada como ponto

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A construccedilatildeo do argumento

de partida para uma exploraccedilatildeo mais detalhada do que essas posiccedilotildees teoacutericas e pedagoacutegicas tecircm a oferecer no contexto de uma determinada aula Esses resumos de praacuteticas destacam as diferenccedilas entre os praticantes

retoacuteriCa da libertaccedilatildeo

O conceito de retoacuterica da libertaccedilatildeo tambeacutem chamado pedagogia criacutetica ou retoacuterica da criacutetica foi definido de diferentes formas no estudo da escrita A ideia de a pedagogia libertadora adveacutem dos trabalhos de Paulo Freire educador brasi-leiro que acreditava que a educaccedilatildeo bancaacuteria ndash um modelo de educaccedilatildeo que pinta os alunos como recipientes vazios que precisam ser preenchidos de conhecimento por professores versados (FREIRE 2000) ndash contribuiacutea para a opressatildeo poliacutetica ao condicionar as pessoas a natildeo questionarem seu entorno O papel central da retoacuterica da libertaccedilatildeo eacute o de ajudar na compreensatildeo da natureza profundamente poliacutetica da educaccedilatildeo Essa abordagem pressupotildee um mundo injusto onde as diversas formas de afirmar manter e distribuir poder satildeo veladas e frequentemente ignoradas Dessa forma a educaccedilatildeo natildeo seria neutra professores e alunos tecircm pressuposiccedilotildees expectativas e valores acerca da ldquoideologia dominanterdquo que frequentemente satildeo ignorados em sala de aula (SHOR FREIRE 1987 p 13) Como as opiniotildees poliacuteticas satildeo frequentemente transmitidas de professor para aluno durante o processo de aprendizagem os alunos precisam assumir a responsabilidade de compreender a natureza doutrinadora dos sistemas educacionais se quiserem ser capazes de questionar os princiacutepios que norteiam o conhecimento recebido A Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire surgiu a partir do trabalho com camponeses analfabe-tos no Brasil um grupo verdadeiramente oprimido e lanccedilou a base para uma educaccedilatildeo realmente libertadora ndash fora do controle do Estado Consequentemente as ideias de Paulo Freire precisam ser adaptadas aos diferentes estilos de sala de aula ao redor do mundo levando em consideraccedilatildeo as necessidades dos alunos dos diferentes grupos sociais

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A construccedilatildeo do argumento

Na segunda metade da deacutecada de 70 e iniacutecio dos anos 80 o trabalho de Paulo Freire influenciou os campos da retoacuterica e da escrita conforme os professores da eacutepoca tentavam incorporar a teoria progressista ao trabalho aparentemente apo-liacutetico de instruccedilatildeo da escrita (BIZZELL 1997) O componente mais uacutetil da teoria de Paulo Freire para os professores de argumento eacute a atenccedilatildeo especial ao exame criacutetico de interaccedilotildees problemaacuteticas em niacutevel local (SHOR 1996) Em vez de se concentrar em interaccedilotildees dialeacuteticas abstratas de ideias valores e conceitos Paulo Freire pede um maior foco sobre ldquotemas geradoresrdquo o ponto principal que funda-menta a discussatildeo abstrata O tema de estudo se origina nos artefatos cotidianos de uma comunidade especiacutefica que pertence a uma determinada cultura (FREIRE 2000) No caso dos camponeses brasileiros com quem Paulo Freire trabalha isso quis dizer comeccedilar os estudos pela percepccedilatildeo do homem que sacia sua sede com aacutegua natildeo com o conceito de justiccedila social

Para os professores norte-americanos de escrita na atualidade os temas gera-dores de Paulo Freire podem envolver a interaccedilatildeo sustentaacutevel atraveacutes de assuntos que interessam aos alunos como aumentos nas mensalidades da universidade ou protestos contra discriminaccedilatildeo racial divulgados pela televisatildeo Tal foco permite que os alunos atuem sobre ideias em vez de consumi-las passivamente aleacutem de fomentar um ambiente em que a educaccedilatildeo eacute inteiramente voltada agrave conquista do potencial pleno Como argumenta Berthoff (1983 p 41) eacute importante ldquo[] (ensinar) escrita como uma forma de pensar e aprenderrdquo e ldquo[] de fazer que nossos alunos se apropriem desse incomparaacutevel recurso []rdquo Em outras palavras ldquo[] a subjetivida-de eacute um sinocircnimo de motivaccedilatildeo [hellip] O material de teor subjetivo eacute definitivamente relevante para aqueles que estudamrdquo (SHOR 1987 p 24) Dessa forma a ecircnfase sobre o raciociacutenio criacutetico a respeito de questotildees locais provavelmente eliminaraacute a reflexatildeo natildeo criacutetica de assuntos banalizados pela repeticcedilatildeo ndash como o aborto e a pena de morte ndash e acessaraacute a capacidade de imaginaccedilatildeo dos alunos como ponto de partida para a invenccedilatildeo de uma nova retoacuterica (BERTHOFF 1983)

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A construccedilatildeo do argumento

A retoacuterica da libertaccedilatildeo natildeo estaacute completamente livre de criacuteticas no entanto Alguns pesquisadores questionam a politizaccedilatildeo aberta da sala de aula como for-ma de entregar o poder aos alunos Ellsworth (1989) faz uma ampla criacutetica a essa pedagogia Seu argumento central se baseia na crenccedila de que a maior parte dos cursos que se dizem adeptos dessa pedagogia na verdade tecircm intenccedilotildees poliacuteticas veladas escondidas atraacutes do clamor por ldquoconsciecircncia criacuteticardquo o que cria dessa forma mais um ambiente em que uma determinada doutrina poliacutetica eacute defendida em detrimento de outras Lazere (1992 p 9) questiona outra premissa da retoacuterica da libertaccedilatildeo ao declarar que

[] os esquerdistas erram terrivelmente ao rejeitar a restauraccedilatildeo de uma ecircnfase nas habilidades e conhecimentos fundamentais que podem impulsionar a real liberaccedilatildeo ndash natildeo opressatildeo ndash caso sejam transmitidos com bom senso abertura e pluralismo cultural aleacutem de uma aplicaccedilatildeo desses conhecimentos baacutesicos agrave habilidade de pensar de forma criacutetica especialmente a respeito de questotildees sociopoliacuteticas em vez de buscar a mera memorizaccedilatildeo de conceitos

A inquietaccedilatildeo de Lazere eacute irrelevante visto que caso um indiviacuteduo queira superar o poder sistemaacutetico da sociedade ele deve poder empregar o discurso de poder da forma correta para se comunicar de maneira bem sucedida com quem deteacutem o poder Mesmo os mais fervorosos apoiadores da retoacuterica da liberaccedilatildeo vis-lumbram problemas potenciais nesses fins especiacuteficos Bizzell (1997 p 320) por exemplo critica a sugestatildeo de que o reconhecimento da desigualdade ldquo[] tambeacutem desperta automaticamente o desejo progressivo de reforma poliacuteticardquo Reconhecer o status dos alunos necessariamente atribui-lhes o poderio de se manter imoacuteveis especialmente quando eles percebem que seus proacuteprios privileacutegios satildeo colocados agrave prova quando o status quo tambeacutem o eacute

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A construccedilatildeo do argumento

Apesar dos pontos de vista divergentes acerca dos valores da pedagogia liber-tadora estudiosos da aacuterea ainda atribuem valor agrave busca por lutas ideoloacutegicas na sala de aula de escrita A praacutetica da retoacuterica da liberaccedilatildeo no entanto pode tomar diversas formas de acordo com o professor e o material didaacutetico Shor (1980 p 162-69) parte dos artifiacutecios cotidianos jaacute que integram o ldquouniverso geradorrdquo dos alunos Eacute o caso da atividade que propotildee (Worldrsquos Biggest Hamburger ndash Atividade do maior hambuacuterguer do mundo) criada quando a autora trouxe um hambuacuterguer para a sala de aula para que seus alunos o examinassem de acordo com o meacutetodo de Descriccedilatildeo-Diagnoacutestico-Reconstruccedilatildeo

O hambuacuterguer eacute o nexo de muitas realidades cotidianas Natildeo apenas eacute o rei dos fast food a refeiccedilatildeo curta de almoccedilo lanche ou jantar mas eacute tam-beacutem a fonte de renda de muitos alunos que trabalham nesses restauran-tes Eu pude entatildeo segurar em minhas matildeos um interstiacutecio valioso da experiecircncia da massificaccedilatildeo Levei um hambuacuterguer para a sala de aula e com isso interferi em um grande aspecto da cultura de massa Agora que reflito a respeito muitos dos alunos acharam aquele hambuacuterguer nojento Quando reli para a sala um conjunto de suas descriccedilotildees o ham-buacuterguer tomou uma forma bastante negativa Em seguida pedi aos alu-nos que tentassem diagnosticar o objeto O problema oacutebvio sugerido por nosso trabalho ateacute o momento era Se o hambuacuterguer natildeo eacute atraente por-que consumimos muito Porque haacute tantos fast food Porque satildeo usados muitos ingredientes em hambuacutergueres Eles satildeo nutritivos Onde pro-curaacutevamos alimento antes desses impeacuterios de comida raacutepida existirem

Depois de os alunos considerarem o hambuacuterguer sob uma temaacutetica inquisi-tiva mais polecircmica foi-lhes atribuiacuteda a tarefa de reconstruiacute-lo ndash salas diferentes desenvolveram essa fase de maneiras distintas Um dos grupos criou alternativas saudaacuteveis enquanto outro recriou todo o processo de produccedilatildeo e distribuiccedilatildeo para desvendar a complexa relaccedilatildeo entre comida e cultura Shor (1980) acredita que ati-vidades dessa natureza satildeo poderosas porque descaracterizam objetos cotidianos

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A construccedilatildeo do argumento

ao apresentaacute-los sob uma nova perspectiva e contexto o que permite aos alunos a oportunidade de reinterpretar o corriqueiro Professores de argumento devem introduzir exerciacutecios dessa natureza porque eles satildeo abertamente argumentativos Os alunos teratildeo opiniotildees distintas inevitavelmente a respeito da natureza do que eacute corriqueiro em suas vidas No entanto se observado sob a oacutetica ideal o exerciacutecio pode deixar claro que as tentativas de descrever diagnosticar e reconstruir satildeo na verdade conceitos pessoais unidos uns aos outros por posicionamentos poliacuteticos

Outra forma que a retoacuterica da liberaccedilatildeo assume eacute exemplificada por Berlin (2003) quando trata sobre ldquoretoacuterica socioepistecircmicardquo Uma sequecircncia de exerciacutecios comeccedila

[] com uma mateacuteria do Wall Street Journal intitulada The Days of a Cowboy are Marked by Danger Drudgery and Low Pay (O dia a dia de um vaqueiro eacute marcado por perigo labuta e salaacuterio piacutefio) escrito por William Blundell As instruccedilotildees satildeo ao mesmo tempo variadas e acessiacuteveis aos alunos Inicialmente a turma deve levar em conta o contexto da mateacute-ria explorando as caracteriacutesticas da relaccedilatildeo entre o jornal e os eventos histoacutericos que circundam a produccedilatildeo do texto O objetivo da anaacutelise eacute determinar quais aspectos serviram de significantes principais para os leitores originais O significado da palavra cowboss (capataz ou patratildeo) eacute estabelecido pela relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo entre cowboy (vaqueiro ou peatildeo de boiadeiro) e o chefe que trabalha na cidade longe da fazenda (Essas) dicotomias sugerem outras como natureza-civilizaccedilatildeo e peatildeo-peatildeo ur-bano Os alunos passam entatildeo a notar que essas dicotomias satildeo estabe-lecidas de forma hieraacuterquica com um dos lados em posiccedilatildeo de privileacutegio em relaccedilatildeo ao outro Eles tambeacutem veem o quanto essas hierarquias satildeo instaacuteveis Os alunos analisam discutem e escrevem sobre posiccedilotildees acer-ca de certos aspectos determinantes dentro dessas narrativas social-mente preacute-fabricadas e descobrem que o texto busca posicionar o leitor sobre um determinado tipo de papel masculino Eles podem entatildeo ex-plorar sua proacutepria cumplicidade e resistecircncia ao se adequar a esse papel (BERLIN 2003 p 125-27)

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A construccedilatildeo do argumento

Essa metodologia se adeacutequa bem aos objetivos propostos pelo autor a saber mostrar aos alunos que ldquonarrativasrdquo ndash praacuteticas significantes que parecem naturais e natildeo preacute-fabricadas ndash na verdade moldam suas vidas O conteuacutedo associado a essa sequecircncia estaacute centralizado no ldquo[] posicionamento de aspectos fundamentais in-seridos na textura da narrativa socialmente preacute-fabricadardquo (BERLIN 2003 p 126) Por exemplo embora individualidade e liberdade sejam aspectos frequentemente associados a peotildees de boiadeiro o artigo tambeacutem descreve essas personagens como merecedoras de respeito e submissas ao cowboss (o patratildeo) Uma vez que a narra-tiva eacute destrinchada uma anaacutelise mais consciente do conteuacutedo permite aos alunos situar cada narrativa em um cenaacuterio econocircmico social e poliacutetico mais abrangente

Schutt (1998 p 126) sugere basear o conteuacutedo do curso em espaccedilos sociais

Os benefiacutecios da utilizaccedilatildeo de casos especiacuteficos como texto base pare-cem ter surgido recentemente em conjunto com o conceito emergente de ldquozonas de contatordquo Como definido por Mary Louise Pratt essas zo-nas satildeo ldquoos espaccedilos sociais nos quais culturas distintas se encontram se confrontam e debatem entre si frequentemente em contextos permea-dos por relaccedilotildees de poder profundamente assimeacutetricasrdquoNo caso de E306 esses espaccedilos sociais eram os tribunais americanos No entanto em muitos cursos sobre argumento nenhum espaccedilo (ou even-to) de natureza social pode ser confrontado jaacute que frequentemente ne-nhum espaccedilo dessa natureza eacute assim definido o que cria uma profunda confusatildeo a respeito de quando e como os alunos podem iniciar uma dis-cussatildeo

A soluccedilatildeo para esse problema apresentada pelo autor eacute o agrupamento de leituras em torno do toacutepico da pena de morte que consequentemente leva a dis-cussotildees a respeito da forma como os tribunais administram a justiccedila em nossa sociedade Os exerciacutecios de escrita variam de uma anaacutelise criacutetica de documentos e transcriccedilotildees do processo legal (com comentaacuterios acerca do sucesso particular desse ou daquele argumento legal) agrave produccedilatildeo de textos sobre o impacto perceptual na

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A construccedilatildeo do argumento

opiniatildeo puacuteblica de relatos fictiacutecios de filmes sobre a pena de morte e finamente a anaacutelises criacuteticas e ensaios sobre o impacto do texto jornaliacutestico sobre a opiniatildeo puacuteblica em geral

Certamente natildeo haacute uma forma uacutenica de incorporar a retoacuterica da libertaccedilatildeo agrave aula sobre argumento Apesar de natildeo faltarem inconsistecircncias um programa de aulas desenhado para preparar alunos para o engajamento criacutetico em relaccedilatildeo ao mundo agrave sua volta necessariamente contribuiraacute para a expansatildeo de seus pontos de vista acerca das possibilidades abertas pela retoacuterica indutiva Assim que eles passarem a questionar as figuras de autoridade o reino da invenccedilatildeo retoacuterica poderaacute se expandir exponencialmente Jaacute que muitos dos espaccedilos para discussatildeo estatildeo situados em torno de objetos corriqueiros natildeo seraacute difiacutecil encontrar pontos discutiacuteveis ou engajar alunos em diaacutelogos que exijam deles o questionamento criacute-tico dos pressupostos que possuem

feminismo e argumentaccedilatildeo

A abordagem feminista da argumentaccedilatildeo surgiu da necessidade de encon-trar alternativas aos modelos claacutessicos de argumentaccedilatildeo e da necessidade de se focalizar menos os modelos agonistas e antagonistas que criam ldquovencedoresrdquo e ldquoperdedoresrdquo ou os modelos que pregam que a utilizaccedilatildeo de certas ferramentas de persuasatildeo eacute vaacutelida apenas para se conseguir o que se deseja Em movimento contraacuterio a estrateacutegia feminista se concentra em novas formas de abordar a argu-mentaccedilatildeo a partir de alternativas eacuteticas que reposicionam as partes exteriores ao debate para que a argumentaccedilatildeo a mediaccedilatildeo a negociaccedilatildeo e a cooperaccedilatildeo sejam vistos de forma menos antagonista

Em suas primeiras manifestaccedilotildees as correntes alternativas agrave abordagem aristoteacutelica tentaram se inspirar na obra de Carl Rogers um psicoterapeuta cujos trabalhos se centraram em torno da comunicaccedilatildeo terapeuta-cliente O trabalho de Roger influenciou os campos da retoacuterica e escrita desde 1970 e foi mencio-

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A construccedilatildeo do argumento

nado como uma ldquoalternativa agrave argumentaccedilatildeo tradicionalrdquo por Young Becker e Pikes (1970 p 270) Segundo os autores a abordagem rogeriana foi considerada adequada a ldquo[] situaccedilotildees em que haacute diacuteade comunicativardquo A retoacuterica rogeriana foi ardentemente contestada no final da deacutecada de 1970 e durante toda a deacutecada de 1980 em textos como Carl Rogersrsquos Alternative to Traditional Rhetoricrdquo (HAIRSTON 1976) Aristotelian vs Rogerian Argument A Reassessment (LUNSFORF 1979) Is Rogerian Rhetoric Really Rogerianrdquo(EDE 1984) Rogerian Problem Solving and the Rhetoric of Argumentation (TEICH 1987) e Feminist Responses to Rogerian Argu-ment (LASSNER 1990)

O trabalho de Carl Roger quando adaptado agrave escrita e agrave retoacuterica apresentou uma teoria da argumentaccedilatildeo baseada na ldquoaudiccedilatildeo e compreensatildeordquo repletas de em-patia e na habilidade das partes de enxergarem uma discussatildeo especiacutefica a partir de um ponto de vista diferente de forma que fosse possiacutevel ldquosentir realmenterdquo o que significa trilhar os passos de outra pessoa para se comunicar de forma efi-caz (yOUNG BECKER PIKES 1970 p 285) O trabalho tornou-se atraente para ideologias feministas emergentes no estudo de escrita jaacute que a retoacuterica rogeriana oferecia ldquo[] empatia em vez de oposiccedilatildeo diaacutelogo em vez de discussatildeordquo (LASSNER 1990 p 220) Mesmo assim a retoacuterica rogeriana nunca foi abertamente feminista como defende Lamb (1991 p 17) porque eacute ldquomais feminina do que feministardquo jaacute que ldquocompreender o outro sempre foi a lsquoobrigaccedilatildeorsquo da mulherrdquo

Teorias e abordagens da argumentaccedilatildeo feminista visam entatildeo a oferta de alternativas que se preocupem com a representaccedilatildeo de poder ao mesmo tempo em que se ocupam da empatia e do cuidado De acordo com Lamb (1991 p 18) entender a construccedilatildeo do argumento como um processo de negociaccedilatildeo e media-ccedilatildeo eacute uma alternativa vaacutelida ao argumento masculino porque o ponto central da discussatildeo ldquo[] deixa de ser o ganhador e passa a ser a habilidade de se atingir uma soluccedilatildeo justa adequada a ambas as partesrdquo da mesma forma que a concepccedilatildeo de poder muda ldquode algo que eacute possuiacutedo e pode ser usado contra o outro para algo que estaacute agrave disposiccedilatildeo de ambos e tem o potencial de ser usado para benefiacutecio muacutetuordquo

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A construccedilatildeo do argumento

Abordagens cooperativas que envolvem negociaccedilatildeo e mediaccedilatildeo satildeo pontos de vista populares na representaccedilatildeo feminista da argumentaccedilatildeo mas natildeo satildeo desprovidas no entanto de criacuteticas advindas do proacuteprio movimento feminista Muitos pesquisadores apontam que esse estilo de argumento se baseia numa visatildeo truncada da visatildeo claacutessica (ver por exemplo LUNSFORD 1979) ou na metaacutefora excessivamente simplista da ldquodiscussatildeo como forma de guerrardquo (FULKERSON 1996) Como ilustra Jarratt (1991 p 106) pedagogias da argumentaccedilatildeo centradas na negociaccedilatildeo e mediaccedilatildeo frequentemente exigem que os alunos especialmente os do sexo feminino a estarem ldquo[] insuficientemente preparados para argumentar contra os discursos opressivos do racismo sexismo e divisatildeo de classes que ten-dem a surgir em ambientes onde se estuda escritardquo no dia a dia e nos processos democraacuteticos De forma similar Easley (1997) diz que a melhor estrateacutegia a ser empregada por um professor de escrita ao abordar as diferenccedilas e conflitos ine-rentes agrave argumentaccedilatildeo tradicional em contraste com as linhas de argumentaccedilatildeo alternativa eacute mostrar o contraditoacuterio da posiccedilatildeo diferente de dois alunos que deve por sua vez ser resolvido atraveacutes da produccedilatildeo textual Easley (1997) acredita que os alunos devem ter acesso a ferramentas de argumentaccedilatildeo da mesma forma que devem aprender a utilizaacute-las de maneira eacutetica reflexiva e responsaacutevel Aleacutem disso Fulkerson (1996) sugere que reparar as metaacuteforas de abordagem da argumentaccedilatildeo que refletem menos violecircncia porque focam mais os trabalhos desenvolvidos por meio de parcerias pode levar a um entendimento de argumentaccedilatildeo

[]como uma forma interativa de discurso [hellip] construiacuteda sobre uma estrutura de reivindicaccedilatildeo e apoio e (reiterando a ideia) de que seu pro-poacutesito eacute engajar interlocutores em uma parceria dialeacutetica com a espe-ranccedila de atingir um entendimento muacutetuo que amplie a compreensatildeo (FULKERSON 1996 p 7)

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Fraser (1992 p 73) aborda o conceito de argumentaccedilatildeo e discurso domi-nante ao sugerir que em sociedades estratificadas ldquoarenas discursivas especia-lizadasrdquo ndash na forma de esferas puacuteblicas subalternas ndash satildeo uacuteteis e necessaacuterias para os que lidam diretamente com identidades marginalizadas Extensotildees de teorias da argumentaccedilatildeo feminista tambeacutem podem ser encontradas na teoria retoacuterica moderna por pesquisadores que incorporem o trabalho de Kenneth Burke (FOSS e GRIFFIN 1992) a hermenecircutica posicional (RyAN NATALLE) e a retoacuterica de atraccedilatildeo (FOSS e GRIFFIN 1995)

Ainda que as teorias feministas da argumentaccedilatildeo sejam elas mesmas nego-ciadas as praacuteticas que emergem no ensino do argumento refletem alguns dos princiacutepios essenciais do pensamento e da accedilatildeo feministas Fulkerson (1996) sugere que os alunos escrevam propostas de poliacuteticas que requeiram a investigaccedilatildeo e a escrita de algum pequeno procedimento ou projeto de poliacuteticas locais para ser-viccedilos que eles acreditam natildeo estar funcionando de maneira adequada Esse texto argumentativo deve ser endereccedilado natildeo a um oponente que precisa ser vencido mas sob a forma de um memorando agrave pessoa ou comitecirc responsaacutevel pelo proble-ma O autor propotildee ensinar aos alunos as principais caracteriacutesticas e padrotildees de raciociacutenio utilizados nesse gecircnero textual apresentar exemplos de outros grupos sugerir locais onde se possa pesquisar toacutepicos interessantes entrevistar pessoas conhecedoras do assunto (especialmente as envolvidas com o problema) e seguir o processo tradicional de produccedilatildeo de diferentes rascunhos que deve ser revisado pelos proacuteprios colegas Ele tambeacutem discute

[] a relativa capacidade de persuasatildeo de um ataque enervado ou agressi-vo versus uma criacutetica razoaacutevel com soluccedilotildees propostas que sejam de faacutecil adoccedilatildeo Assim que os textos apresentem um formato adequado ele pede aos alunos que as enviem a quem satildeo de direito para verificar o potencial sucesso de seu trabalho no mundo real (FULKERSON 1996 p 3-4)

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A construccedilatildeo do argumento

Nesse ponto Fulkerson sugere que o gecircnero textual que propotildee novas poliacute-ticas eacute o que aborda injusticcedilas perpetradas na comunidade imediata da mesma forma que aborda uma argumentaccedilatildeo em parceria com ndash direcionada a buscar um consenso mutuamente satisfatoacuterio sobre a criaccedilatildeo de mudanccedilas no processo democraacutetico

Miller (1996) aborda teorias femininas de forma diferente em um curso online Feminism and Expository Writing (Feminismo e a escrita expositiva) Baseando a tarefa proposta em ldquoassuntos pertinentes agrave retoacuterica feministardquo a autora afirma que

[] a argumentaccedilatildeo eacute uma das principais formas de praticar o ldquosaber me-todoloacutegicordquo ou seja um pensamento sistemaacutetico Como habilidades ar-gumentativas satildeo valorizadas nessa cultura eacute importante aprendecirc-las Mesmo assim muitas feministas aleacutem de outras pessoas apresentam objeccedilotildees agrave argumentaccedilatildeo tradicional baseadas em diferentes aspectos inerentes agrave teoria Elas dizem tratar-se de posiccedilatildeo frequentemente in-tolerante de visotildees opositoras e focada na conversatildeo ou destruiccedilatildeo do oponente (MILLER 1996 p 8)

Para deixar a tensatildeo mais palpaacutevel para os alunos Miller propotildee uma tarefa em que ela pede

[] que os alunos se unam a outra pessoa para ldquocolaborarrdquo na estrutu-raccedilatildeo de um argumento em que cada uma das partes assume um pon-to de vista diferenteoposto a respeito de um assunto de sua escolha Eles devem trabalhar juntos para desenvolver formas de argumentar que natildeo possuam caracteriacutesticas tradicionalmente agoniacutesticas Como discordar de forma respeitosa que reconhece perspectivas pluralis-tas e ainda assim consegue apresentar seu ponto de vista Eacute possiacutevel durante uma discussatildeo se manter amaacutevel e em conexatildeo com o outro (MILLER 1996 p 8)

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A construccedilatildeo do argumento

Assim Miller sugere Easley (1997) permite que os alunos articulem e nego-ciem as tensotildees inerentes aos modelos de argumentaccedilatildeo feminista por si mesmos

Praacuteticas e abordagens da argumentaccedilatildeo feminista satildeo contraditoacuterias No entanto eacute razoaacutevel dizer que essas contradiccedilotildees fazem essas abordagens viaacuteveis e sustentaacuteveis Utilizar respostas e abordagens feministas em nossa sala de aula natildeo apenas beneficia os alunos porque lhes oferecer uma ampla gama de estrateacute-gias argumentativas que se somam agraves ferramentas retoacutericas jaacute agrave disposiccedilatildeo mas tambeacutem porque encoraja os professorespesquisadores a ldquo[] romperem com abordagens calcificadas acriacuteticasrdquo tanto na abordagem do argumento quanto no ensino (PALCZEWSKI 1996 p161)

aprendizagem-serviccedilo e argumentaccedilatildeo

As raiacutezes da aprendizagem-serviccedilo na retoacuterica da escrita se encontram na ldquomudanccedila socialrdquo da aacuterea conforme detalha Cooper (1986) A autora faz alusatildeo agrave pedagogia que se preocupa com o proacuteprio processo de escrita assim como a reflete

[] a crescente consciecircncia de que a linguagem e os textos natildeo satildeo ape-nas os meios pelos quais os indiviacuteduos decodificam e comunicam infor-maccedilatildeo mas essencialmente atividades sociais que como tal dependem de estruturas e processos sociais natildeo apenas na interpretaccedilatildeo mas tam-beacutem na construccedilatildeo (COOPER 1986 p 366)

Os objetivos da aprendizagem-serviccedilo estatildeo ligados tanto ao trabalho realiza-do por John Dewey para quem a educaccedilatildeo tem uma funccedilatildeo democraacutetica expliacutecita quanto agraves pedagogias da libertaccedilatildeo que baseadas nos trabalhos de Paulo Freire buscam a formaccedilatildeo de cidadatildeos com consciecircncia criacutetica a respeito das instituiccedilotildees de poder e capazes de trabalhar para combater injusticcedilas sociais Desde meados da deacutecada de 1990 alguns pesquisadores tentam estabelecer a aprendizagem-

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A construccedilatildeo do argumento

-serviccedilo como um toacutepico relevante para os estudos sobre argumento a exemplo de Herzberg (1994) Cushman (1997) e Adler-Kassner Crooks e Watters (1997) Recentemente a aprendizagem-serviccedilo tambeacutem esteve ligada agrave ideia que a escrita eficiente eacute situada ou seja ocorre em espaccedilo para aleacutem da sala de aula para garantir que estudantes tenham acesso a situaccedilotildees retoacutericas reais29

Apesar de intimamente ligada agrave teoria da argumentaccedilatildeo a aprendizagem--serviccedilo tem uma linhagem muito mais antiga o pensamento de Quintiliano se-gundo o qual quem argumenta bem eacute um ldquobom homem que fala bemrdquo Em outras palavras o pressuposto de que a habilidade de persuasatildeo de um determinado indiviacuteduo estaacute tanto ligada a seu caraacuteter eacutetico e ao dever ciacutevico de agir com retidatildeo quanto agrave questatildeo retoacuterica em si A pedagogia da aprendizagem-serviccedilo portanto trata da formaccedilatildeo de um cidadatildeo-orador algueacutem que ldquo[] pode trazer agrave tona suas habilidades discursivas quando a comunidade a que serve for obrigada a enfrentar uma decisatildeo poliacutetica ou judicial difiacutecil ou precisa celebrar seu valor cultural iacutempar ou apenas sinta-se carente de uma injeccedilatildeo de moralrdquo (CROWLEY 1989 p 318)

Essa pedagogia no entanto natildeo estaacute inteiramente livre de criacuteticas A apren-dizagem-serviccedilo vem sendo criticada como ldquo[] hiperpragmaacutetica porque precisa manter a anaacutelise criacuteticardquo (SCOTT 2004 p 301) como excessivamente idealista em suas expectativas de transformaccedilatildeo social (ROZyCKI 2002) e como desatenta agraves relaccedilotildees de poder entre as universidades e as comunidades em que se situam especialmente quando levada em conta a repentina popularidade de iniciativas para captaccedilatildeo de recursos baseadas apenas na aprendizagem-serviccedilo sem qual-quer avaliaccedilatildeo criacutetica (MAHALA e SWILKy 2003) Agrave medida que as universidades satildeo impelidas de divulgar suas parcerias comunitaacuterias para arrecadar fundos e adaptam cada vez mais suas declaraccedilotildees de missatildeo para incluir o compromisso com o serviccedilo agrave comunidade (WILLIAM AND MARy UNIVERSITy WEB 2004) ou

29 ver tambeacutem Heilker (1997) e Mauk (2003)

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A construccedilatildeo do argumento

a outros grupos locais regionais nacionais e internacionais muitos podem se sentir pressionados a buscar iniciativas ligadas agrave aprendizagem-serviccedilo sem que haja qualquer intenccedilatildeo real de transformaccedilatildeo social Aleacutem disso muito se tem questionado ndash de ambos os lados ndash a autenticidade dos propoacutesitos dos trabalhos de escrita que as situaccedilotildees retoacutericas reais podem oferecer aos estudantes para produzir textos30

Entretanto apesar do aparente apogeu da aprendizagem-serviccedilo estar chegan-do ao seu inevitaacutevel fim alguns pesquisadores tecircm se dedicado agrave defesa de inicia-tivas dessa natureza produzindo material que atesta a sustentabilidade em larga escala de programas de aprendizagem-serviccedilo em todo territoacuterio norte-americano (ROBINSON 2005 CUSHMAN 2002) Essa pedagogia adveacutem de um compromisso com a accedilatildeo democraacutetica e o serviccedilo comunitaacuterio e frequentemente eacute composta por aspectos da aprendizagem experiencial que transcende a sala de aula e trata das necessidades da comunidade local e inclui a reflexatildeo estruturada da experi-mentaccedilatildeo (SCOTT 2004) Assim as melhores praacuteticas da aprendizagem-serviccedilo e da argumentaccedilatildeo satildeo aquelas que apoiam a filosofia de Quintiliano e ao mesmo tempo contribuem para um melhor entendimento da aprendizagem experiencial da comunidade da geografia e da reflexatildeo criacutetica

A utilizaccedilatildeo de praacuteticas de aprendizagem-serviccedilo na sala de aula para o en-sino da argumentaccedilatildeo pode ser tatildeo simples quanto a sugestatildeo de um argumento proposto para combater alguma injusticcedila que assola a comunidade imediata ao mesmo tempo em que pode como sugere Mauk (2003 p381) ser uma forma de provocar nos estudantes a reflexatildeo criacutetica a respeito de cidadania e de cuidados de sauacutede

Uma investigaccedilatildeo ou tarefa comeccedila com a leitura de uma accedilatildeo poliacutetica Os alunos satildeo levados a levantar os nomes de funcionaacuterios puacuteblicos elei-

30 ver Deans (2000) e Petraglia (1995)

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A construccedilatildeo do argumento

tos ou natildeo nos acircmbitos municipal estadual ou federal Eles satildeo depois levados a produzir um pequeno texto [argumento] ou desenvolver um panfleto que explique detalhadamente como um cidadatildeo comum pode se colocar em contato com esse representante Os alunos entatildeo entregam esse texto a seus vizinhos e em um trabalho subsequente exploram o impacto do trabalho previamente divulgado Para esse segundo texto os alunos podem organizar encontros ou recorrer a outros textos sobre accedilotildees ciacutevicas

Os argumentos ligados a atividades de aprendizagem-serviccedilo podem ser ligeiramente mais complexos e servirem para que os alunos critiquem suas vi-vecircncias durante as atividades de aprendizagem ou ideais como a de ldquoalfabetizaccedilatildeo ciacutevicardquo que satildeo centrais para o modelo de Quintiliano Os estudantes tambeacutem podem discutir a escrita argumentativa e como ela se insere em aulas baseadas em aprendizagem-serviccedilo apostando diretamente como explicam Cooper e Julier (2011 p 86)

Nossos alunos pesquisaram e coletaram informaccedilotildees a respeito da emenda proposta [para proteger cidadatildeos da discriminaccedilatildeo baseada em altura peso origem familiar orientaccedilatildeo sexual porte ou presenccedila de deficiecircncia fiacutesica] publicadas na imprensa local Eles entatildeo solicitaram declaraccedilotildees de posicionamento de diferentes indiviacuteduos e organizaccedilotildees Outros alunos acompanharam o debate quando a cacircmara municipal se isentou das discussotildees atribuindo-as ao Conselho de Relaccedilotildees Humanas Contra esse pano de fundo contextual pedimos que nossos alunos dese-nhassem e conduzissem uma pesquisa de opiniatildeo puacuteblica para ajudar o Conselho de Relaccedilotildees Humanas da cidade de Lansing a decidir se reco-mendaria ou natildeo agrave cacircmara a adoccedilatildeo da regulamentaccedilatildeo [o que resultou no rascunho de um memorando] para o Conselho sugerindo medidas acerca da regulamentaccedilatildeo

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A construccedilatildeo do argumento

O que eacute primordial entre as melhores praacuteticas de argumento em cursos de aprendizagem-serviccedilo que observem um modelo democraacuteticoretoacuterico de ensino de escrita eacute a ecircnfase sobre os valores ciacutevicos da resoluccedilatildeo de conflitos aleacutem do compromisso com o engajamento de estudantes ao discurso puacuteblico de forma a ldquo[] forjar declaraccedilotildees duradouras de reciprocidade ciacutevica e obrigaccedilatildeo eacuteticardquo (COOPER e JULIER 2011 p 92) Em resumo produzir bons homens e mulheres capazes de falar (e escrever) bem

esCrita atraveacutes do CurrIacuteCulo (writing across the curriculum ndash WaC) e esCrita nas disCiplinas (writing in the disciplines ndash Wid)

A escrita atraveacutes do curriacuteculo (WAC) eacute um movimento pedagoacutegico que tem como princiacutepio central a ideia de que os alunos retecircm melhor o conhecimento quando estatildeo envolvidos em atividades de escrita O modelo padratildeo do movimen-to prevecirc cursos especiacuteficos de escrita em uma variedade de disciplinas Nesses cursos os alunos sintetizam analisam e aplicam conhecimentos que adquiriram necessariamente atraveacutes da escrita Apesar de serem constantemente fundidos e confundidos a WAC e a escrita nas disciplinas(WID) possuem fundamentos dis-tintos A WID eacute um ldquo[] movimento de pesquisa que busca compreender quais os tipos de escrita que realmente ocorrem em diferentes aacutereas disciplinaresrdquo (BA-ZERMAN et al 2005 p 10) que se seguiu ao movimento WAC e preencheu um vazio teoacuterico deixado pelos especialistas que estudaram esse movimento (JONES e COMPRONE 1993) Enquanto a WAC estaacute fundamentalmente preocupada com o desenvolvimento de uma atmosfera em que a escrita eacute sistematicamente encorajada atraveacutes do treinamento de professores e do estiacutemulo aos alunos para a escrita a WID visa desvendar as distinccedilotildees teoacutericas que as diferentes visotildees disciplinares exercem no papel da escrita e examinar a fundo os tipos de escrita que ocorrem

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A construccedilatildeo do argumento

nas diversas disciplinas (BAZERMAN 2005) A WAC e a WID satildeo relevantes para as boas praacuteticas de ensino de argumento de duas formas diferentes

1 Aqueles que ensinam segundo um programa de WAC ou os que desenvol-vem pesquisas na aacuterea de WID se concentram em teorias do argumento como a base para suas atividades Diferentes formas de escrever nas disciplinas resultam tipicamente em diferentes formas de argumentar nas disciplinas2 As liccedilotildees ndash e em alguns casos os debates ndash deixados pelo estudo de WAC e WID frequentemente podem ser aplicados agrave realidade da escrita durante os cursos

Como aponta Bartholomae (1997 p 589)

[] cada vez que um aluno se senta para escrever ele precisa ldquoinventarrdquo uma universidade que se adapte agrave ocasiatildeo que ele vive ndash inventar aqui refere-se tanto agrave universidade em si quanto a suas subdivisotildees como o Departamento de Antropologia Economia ou Inglecircs O aluno nessa cir-cunstacircncia precisa aprender a falar a liacutengua de seu professor a falar como fala o acadecircmico a experimentar as diferentes e peculiares formas de saber selecionar avaliar reportar concluir e argumentar que defi-nem o discurso dessa comunidade em particular

Uma das mais antigas tentativas de teorizar sobre a construccedilatildeo de argumen-tos em diferentes disciplinas foi realizada por Toulmin (1999) em seu The Uses of Argument O autor sugere a necessidade de primeiramente se levar em conta a distinccedilatildeo entre elementos campo-invariaacutevel e campo-dependente antes de cri-ticar um determinado argumento Os elementos do campo-invariaacutevel denotam a existecircncia de convenccedilotildees como as mencionadas por Bartholomae (1997) Essas convenccedilotildees mantecircm-se relativamente em uma variedade de disciplinas Indepen-dente do campo a induccedilatildeo tem iniacutecio na proposiccedilatildeo de um problema leva em conta

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A construccedilatildeo do argumento

limitaccedilotildees e se fia em evidecircncias para construir um argumento Jaacute os elementos do campo-dependente por outro lado estatildeo em constante mutaccedilatildeo Eles incluem por exemplo os padrotildees usados para determinar quais os assuntos satildeo proacuteprios para o estudo e quais afirmaccedilotildees requerem ou natildeo uma base argumentativa Basica-mente as diferenccedilas entre as formas de escrita de historiadores e bioacutelogos estatildeo nas formas especiacuteficas que essas aacutereas defendem para a criaccedilatildeo suporte e eluci-daccedilatildeo de argumentos Os elementos do campo-dependente tambeacutem podem variar dentro de uma mesma disciplina Um exemplo disso satildeo as visotildees divergentes dos pesquisadores do ensino de escrita em inglecircs a respeito do que constitui um dado vaacutelido em uma pesquisa alguns defendem dados etnograacuteficos e observacionais enquanto outros preferem dados quantitativos e empiacutericos Essas diferenccedilas de entendimento remontam agrave compreensatildeo que os membros desses grupos especiacuteficos tecircm do que constitui induccedilatildeo e argumento vaacutelidos

Em seu claacutessico artigo Writing as a Mode of Learning Emig (1997) foi quem primeiro associou o estudo da escrita a certas questotildees sobre a WAC e WID Ela se vale das teorias de Vygotsky James Britton e outros para argumentar que a escrita eacute uma forma de aprendizagem ldquouacutenicardquo em parte porque ldquopode subsidiar o apren-dizado jaacute que consegue acompanhar seu ritmordquo (EMIG 1997 p 12) A natureza recursiva da escrita permite ao indiviacuteduo processar e compreender a informaccedilatildeo de maneira que a fala e o raciociacutenio sozinhos tendem a dificultar Foram os ensaios de Emig que legitimaram algumas tentativas pioneiras de implementar a WAC

Alguns dos debates associados agrave WAC tambeacutem tecircm implicaccedilotildees relevantes para a leitura de textos argumentativos apresentados em cursos de escrita O trabalho de Russell (1995) sobre a Teoria da Atividade desafia a noccedilatildeo de que a escrita pode ser usada em todas as disciplinas Russell (1995) se utilizou nes-se caso da teoria de Vygotsky a teoria da atividade pressupotildee a existecircncia de ldquosistemas de atividaderdquo similares a campos ou comunidades discursivas que se utilizam de contextos especiacuteficos para produzir conhecimento Esses sistemas de atividade tecircm histoacuterias de interaccedilatildeo canonizadas pela literatura e se utilizam de

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ferramentas tanto fiacutesicas (computadores calculadoras) quanto semioacuteticas (fala e escrita) para articular ideias e produzir conhecimento a partir do mundo Eles se modificam atraveacutes de discussotildees que ocorrem dentro deles mesmos aleacutem de emprestar e transformar ferramentas de outras disciplinas para atingir seus fins Partindo desse ponto de vista existem apenas alguns ndash se eacute que de fato existem ndash elementos do campo-invariaacutevel e nenhuma parte da escrita pode ser considerada uma habilidade autocircnoma

Para verificar a relevacircncia que os trabalhos acerca da WACWID tecircm sobre a construccedilatildeo do argumento consideremos o trabalho realizado por alunos de um curso de Economia focado em ajudaacute-los a definir construccedilotildees e termos da aacuterea Para despertar a sensibilidade para esses conceitos Palamini (1996 p 206) sugere o uso de rhetorical cases (casos retoacutericos)

O caso retoacuterico ndash ou estudo de caso retoacuterico ndash eacute um problema de uma histoacuteria independente que simula uma situaccedilatildeo real de comunicaccedilatildeo O caso disponibiliza informaccedilatildeo acerca de contextos experienciais e edu-cacionais de escritores e leitores Mais importante ele especifica uma situaccedilatildeo particular de escrita (ou foacuterum) e portanto o tipo de relacio-namento que existe entre autor e leitor ou seja seus papeacuteis organizacio-nais muacutetuos e seus propoacutesitos O aluno entatildeo assume o papel de autor e se esforccedila para explicar de maneira persuasiva como a anaacutelise econocirc-mica pode ajudar o leitor a compreender seu negoacutecio ndash ou outro tipo de problema econocircmico ndash e tomar decisotildees positivas

Para ilustrar seu meacutetodo Palamini (1996) usa o exemplo de um economista de um sindicato que discute informaccedilotildees referentes ao custo de vida com um grupo do mesmo sindicato responsaacutevel pela negociaccedilatildeo de um contrato O autor aponta o valor que esses ldquocasos retoacutericosrdquo tecircm sobre a necessidade de se considerar o puacuteblico alvo de um discurso em um determinado contexto Os economistas po-dem compreender a maneira ideal de se comunicar com seus semelhantes mas a

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A construccedilatildeo do argumento

natureza de seu trabalho envolve tambeacutem a habilidade de transmitir informaccedilotildees abstratas em uma linguagem que leigos possam compreender e utilizar No final Palamini delimita de forma mais extensiva um caso retoacuterico especiacutefico

A divisatildeo da responsabilidade do ensino de escrita eacute uma ideia que vem sendo aceita de forma lenta ndash mas constante ndash nos ciacuterculos acadecircmicos Os sistemas edu-cacionais massificados frequentemente ignoram a natureza da escrita e os alunos sofrem com o resultado de modelos redutores acriacuteticos de escrita encontrados na academia Se realmente existe a intenccedilatildeo de incentivar os estudantes a realmen-te encontrar e utilizar ferramentas de persuasatildeo mais eficazes o conhecimento da retoacuterica especializada e adequada a uma disciplina especiacutefica deveria ser um dos fundamentos das disciplinas comuns baacutesicas nas faculdades e universidades Refletir mais cuidadosamente sobre o papel da escrita na educaccedilatildeo pode levar os educadores a se interessarem mais por melhores praacuteticas de ensino e aprendi-zagem de escrita Apenas a compreensatildeo sobre como os modelos de escrita e de argumento ensinados em outros cursos diferem ou se assemelham aos modelos tradicionalmente ensinados em cursos de escrita pode permitir ajustes apropriados ao desenvolvimento de cursos e materiais didaacuteticos

Computador e esCrita

Para a maior parte dos alunos inscritos em cursos de escrita o computador e a escrita compotildeem uma parceria natural os rascunhos podem ser escritos e re-visados com a ajuda de vaacuterios programas de ediccedilatildeo de textos e-mails e papos on line satildeo redigidos e enviados agraves duacutezias diariamente A escrita produzida eletroni-camente jaacute domina atualmente os estudos sobre a escrita mas obviamente nem sempre foi assim Haacute alguns anos quando os programas de ediccedilatildeo de texto eram ainda restritos a uma ou outra plataforma e a disponibilidade de computadores pessoais se resumia a um sonho futuriacutestico os especialistas em escrita se dividiam sobre o impacto que a tecnologia e os computadores teriam sobre o campo

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A construccedilatildeo do argumento

Em 1983 foi criada a revista Computers and Composition que discutia ndash e ainda discute ndash a teoria e a praacutetica do uso de computadores na escrita Nos artigos publicados surgiram os mais importantes debates sobre o assunto Aleacutem disso nas paacuteginas de Computers and Composition os principais especialistas do campo (como Kate Kiefer Cynthia Selfe e Gail Hawisher que compotildeem um triunvirato pioneiro) continuam publicando seus estudos Qualquer professor interessado em compreender a histoacuteria e a evoluccedilatildeo do papel dos computadores no campo da escrita deve iniciar seus estudos consultando esse perioacutedico

Considerando-se que esse campo eacute ainda novo e as reaccedilotildees polarizadas de muitos professores agrave utilizaccedilatildeo da tecnologia diferentes visotildees sobre computador e escrita podem ser encontradas em vaacuterios artigos Um dos primeiros desses artigos publicado em Computers and Composition apresenta um debate entre professores de escrita teria a escrita por computador ldquo[] o potencial para produzir uma me-lhora global na qualidade dos textos dos nossos alunosrdquo (MORAN 2003 p 347) Brownell (1984 p 3) atesta que ldquo[] os editores de texto possibilitam escrever mais em menos tempo e realmente fazem de noacutes melhores escritoresrdquo Essa declaraccedilatildeo no entanto foi prontamente contestada por McAllister (1985) Sommers e Collins (1985) e mais tarde tambeacutem por Dowling (1994) e Collier (1995) Os professores interessados no assunto podem utilizar esse argumento para verificar a origem da polaridade entre tecnoacutefilos que acreditam no impacto positivo dos computadores sobre a escrita e os especialistas mais cautelosos (HARRIS 1995 BANGERT-DRO-WNS 1993) que acreditam serem necessaacuterias mais avaliaccedilotildees e mais evidecircncias concretas da eficaacutecia ou falecircncia do meacutetodo antes de incluir computadores nas aulas de escrita E o debate continua Muitos pesquisadores acreditam e utilizam as opiniotildees dos alunos para direcionarem sua proacutepria avaliaccedilatildeo acerca do ensino de escrita em salas de aula computadorizadas como fazem Gos (1996) Duffelmeyer (2001) e LeCourt e Barnes (1999) pioneiros na aacuterea

Igualmente eacute bastante debatida a forma como as tecnologias emergentes impactam o estudo e o ensino de argumentaccedilatildeo O avanccedilo contiacutenuo na criaccedilatildeo de

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hardware software e perifeacutericos abre muitas possibilidades (e potenciais armadi-lhas) agrave vida de professores de argumentaccedilatildeo Stephens (1984) foi um dos primeiros especialistas a teorizar a respeito do impacto dos computadores sobre a argumen-taccedilatildeo e a declarar que essas ferramentas aumentam as habilidades argumentativas dos estudantes Eacute loacutegico que no momento em que Stephens pensava suas teorias em 1984 os computadores eram sinocircnimos de editores de texto Conforme o seacuteculo XX avanccedila no entanto ocorre uma variedade nova de meacutetodos agrave disposiccedilatildeo de um professor muitos especialistas criaram hipoacuteteses acerca de como argumentar em ambientes hipertextuais de maneira eficaz por exemplo Marshall (1987) Conklin e Begeman (1987) Bolter (1991) Landow (1992) e Kolb (2005) Carter (2003) dis-cute a argumentaccedilatildeo em hipertexto de maneira bastante detalhada utilizando-se extensivamente do trabalho realizado por Perelman (2001) Williams (2002) a partir do ponto de vista de Toulmin declara que a interaccedilatildeo eacute fundamental para a utilizaccedilatildeo da persuasatildeo na Web Kajder e Bull (2003) e Williams e Jacobs (2004) exploram como os blogs podem oferecer aos estudantes uma consciecircncia a respeito do puacuteblico alvo aleacutem de oferecer um componente dialoacutegico crucial para a constru-ccedilatildeo de argumentos eficazes

Para os professores que datildeo aulas em ambiente digital McAlister Ravenscroft e Scanlon (2004) e Coffin e Hewings (2005) apresentam sugestotildees de como usar esses espaccedilos para garantir suporte agrave colaboraccedilatildeo e agrave construccedilatildeo de argumentos de maneira mais eficaz Para os especialistas que buscam um tratamento mais teacutecnico sobre a forma como a tecnologia pode se relacionar agrave argumentaccedilatildeo as ciecircncias da computaccedilatildeo jaacute dedicaram consideraacutevel espaccedilo ao assunto como pode ser observado nos trabalhos de Andriessen (2003) Baker (2006) Reed e Norman (2004) Kirschner Buckingham e Carr (2003) e McElholm (2002)

Para professores que buscam uma abordagem mais praacutetica haacute uma seacuterie de websites acadecircmicos agrave disposiccedilatildeo A citaccedilatildeo e confiabilidade de fontes online no entanto permanece ocupando uma posiccedilatildeo de suma importacircncia jaacute que os estu-dantes tendem cada vez mais a confiar em websites para fundamentar e pesquisar

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seus argumentos ndash sem no entanto atribuir a devida atenccedilatildeo ao ethos da fonte As livrarias online da Cornell University da UC Berkeley University e da New Mexico State University oferecem uma amostra abrangente de perguntas a serem realiza-das na hora de avaliar fontes digitais Muitas outras universidades oferecem em seus ambientes online recursos de ensino e aprendizagem

O laboratoacuterio Purdue Online Writing Lab (OWL) foi um dos primeiros laboratoacute-rios de escrita digital nos Estados Unidos e se manteacutem entre os mais importantes oferecendo uma variedade de heuriacutesticas e ideias para uma escrita eficaz A Dart-mouth College oferece um site abrangente inteiramente devotado ao ensino online incluindo materiais didaacuteticos artigos sobre o ensino atraveacutes do uso de tecnologia e estudos de caso de professores que se utilizaram da Internet como ferramenta de ensino O website da Schoolcraft College oferece materiais do mesmo tipo incluindo exerciacutecios planilhas moacutedulos de ensino e materiais sobre o ensino de argumenta-ccedilatildeo A comunidade virtual Lingua MOO tambeacutem oferece a professores um espaccedilo em que materiais didaacuteticos adicionais relacionados agrave tecnologia e argumentaccedilatildeo podem ser encontrados

As fontes listadas aqui oferecem um bom ponto de partida para professores que querem explorar o impacto de tecnologias da computaccedilatildeo sobre a escrita e o ensino de argumentaccedilatildeo Os professores que desejem encontrar mais materiais acerca das aplicaccedilotildees praacuteticas e teoacutericas do ensino de argumentaccedilatildeo atraveacutes de uma variedade de aplicativos espaccedilos e ferramentas eletrocircnicos devem comeccedilar acompanhando as discussotildees dos artigos de Computers and Composition seja na versatildeo impressa ou digital Outro excelente ponto de partida satildeo os sites acadecircmi-cos como o Lingua MOO em que a aplicaccedilatildeo praacutetica de tecnologias de ponta pode usualmente ser encontrada em primeira matildeo

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retoacuteriCa visual

Em A New Rhetoric Perelman e Olbrechts-Tyteca (1969) discorrem sobre a importacircncia da ldquopresenccedilardquo para a argumentaccedilatildeo No texto os autores descrevem presenccedila como a combinaccedilatildeo de forma e substacircncia que influencia psicologica-mente a audiecircncia atraveacutes do uso de teacutecnicas como omissatildeo ecircnfase escolha e seleccedilatildeo Ainda que os autores natildeo discutam profundamente os usos extra verbais do recurso visual parece claro que esse conceito que enfatiza a necessidade de se colocar algo frente a frente com a audiecircncia eacute particularmente importante para a retoacuterica visual Aliaacutes pode-se afirmar que se trata do tipo de apelo mais pene-trante e frequente em nossa cultura As retoacutericas visuais de revistas (um anuacutencio brilhante em paacutegina dupla na revista Vanity Fair em que a marca Lancocircme mostra uma jovem modelo relaxando num belo vestido de veratildeo cor de rosa convidando os leitores a ldquodespertar para a nova primaverardquo) da televisatildeo (o jogador de baseball Alex Rodrigues com um sorriso paciente ajudando crianccedilas a aprender os funda-mentos do jogo num comercial para os clubes infantis de baseball da liga Boys and Girls Clubs of America) e da Internet (no site internacional do Greenpeace a imagem de um bebecirc orangotango com seus grandes olhos arredondados ao lado do texto ldquoEssa Terra fraacutegil precisa de uma voz Ela precisa de soluccedilotildees mudanccedilas accedilatildeordquo) estatildeo entre as cerca de 3000 mensagens que o cidadatildeo meacutedio encontra dia apoacutes dia que satildeo predominantemente visuais em seu apelo persuasivo

No entanto temos sido relativamente lentos em nossa capacidade de realmente abraccedilar a retoacuterica visual como parte dos estudos de escrita retoacuterica e argumen-taccedilatildeo Handa (2004 p 305) aponta esse fato mais claramente

As disciplinas de escrita e de retoacuterica claacutessica abordam a retoacuterica e a argumentaccedilatildeo em termos estritamente verbais Nos estudos de escrita os especialistas natildeo concordam sob nenhum aspecto universalmente a respeito da capacidade que as imagens tecircm ou natildeo de apresentar ar-gumentos especialmente quando levada em consideraccedilatildeo a definiccedilatildeo

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claacutessica de argumento uma sequecircncia linear de alegaccedilotildees contra ale-gaccedilotildees e evidecircncias Se as imagens satildeo capazes de apresentar um argu-mento completo quando utilizadas sozinhas ou se isso soacute acontece ao combinaacute-las a palavras e frases eacute um assunto ainda mais contencioso

Para os leitores que cresceram em uma cultura dominada pelo imaginaacuterio e natildeo pela miacutedia impressa o poder persuasivo de imagens signos e siacutembolos parece um fato oacutebvio Porque entatildeo nossas disciplinas tecircm resistido tanto em considerar a retoacuterica visual como um campo legiacutetimo de estudo

Stroupe (2000 p 10) ajuda a situar esse fenocircmeno ao salientar que os pro-gramas de ensino de retoacuterica e escrita estatildeo frequentemente limitados aos depar-tamentos de idiomas satildeo justamente os responsaacuteveis por uma defesa estanque da cultura da palavra impressa e sua ldquo[] costumeira rejeiccedilatildeo do discurso popular predominantemente visualrdquo O medo da tecnologia (especialmente do computador) e o desdeacutem pelo texto ldquopopularrdquo contribuiacuteram profundamente para essa margi-nalizaccedilatildeo precoce da retoacuterica visual na disciplina de escrita A retoacuterica visual complementa claramente uma seacuterie de disciplinas No entanto como ocorre com outros ldquonovosrdquo campos de estudo tambeacutem pode ameaccedilar a hegemonia de disci-plinas academicamente estabelecidas ao colocar sua coerecircncia interna limites e pressuposta completude sob questionamento Tendo esses obstaacuteculos em vista eacute mais faacutecil compreender o ritmo lento do (re)aparecimento e total estabelecimento dos estudos visuais

A reticecircncia demonstrada pelos estudos de retoacuterica e escrita em dar as boas--vindas ao estudo da retoacuterica visual eacute bastante irocircnica haja vista a importacircncia da imagem visual ao longo da histoacuteria para as duas disciplinas desde seus primoacuter-dios Aristoacuteteles reconheceu o poder da metaacutefora e da visualizaccedilatildeo e Quintiliano afirmou que a visualizaccedilatildeo eacute uma das formas mais claras de manipular emoccedilotildees Platatildeo atribuiu grande importacircncia agrave luz e agrave visatildeo tanto no mundo extrassensorial quanto no sensorial Curtius (1973) descreve como em tempos medievais a retoacuterica epidiacutetica (com maior ecircnfase na apresentaccedilatildeo visual) se tornou mais importante

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que a retoacuterica deliberativa Hobbs (2002) afirma que Francis Bacon ao chamar emblemas de imagens aceitou a premissa de que as imagens satildeo mais memoraacuteveis que as palavras A autora recorre agrave uma citaccedilatildeo de Bacon para essa constataccedilatildeo

Eacute mais faacutecil reter a imagem de um esportista que caccedila uma lebre de um farmacecircutico que organiza suas caixas de um rapaz que recita versos ou de um ator durante uma performance do que reter as noccedilotildees correspon-dentes de invenccedilatildeo disposiccedilatildeo eloquecircncia memoacuteria (e) accedilatildeo (HOBBS 2002 p 60)

Os ldquonovos retoacutericosrdquo do Iluminismo Escocecircs (Smith Blair Lord Kames e Cam-pbell entre outros) tambeacutem foram influenciados pela centralizaccedilatildeo da imagem e da imaginaccedilatildeo propostas por Bacon Os termos e conceitos hoje reconhecidos como parte integral e relevante dos estudos visuais apresentam a maior riqueza de seus antecedentes histoacutericos da retoacuterica Hunter Gardner (2004) Kress e Van Leeuwen (1996) estatildeo entre os especialistas que lideram as discussotildees acadecircmicas acerca da necessidade de se dar maior atenccedilatildeo agrave retoacuterica visual

Haacute vaacuterias aplicaccedilotildees relevantes da retoacuterica visual em sala de aula Um dos primeiros textos a demonstrar como incorporar o estudo da imagem nas aulas de escrita foi Seeing the Text de Bernhardt (1986) Neste ensaio o autor afirma que ateacute a palavra impressa eacute inerentemente visual por depender de arranjos espaciais e decisotildees (como estilo e tamanho de fontes localizaccedilatildeo de espaccedilos em branco e divisatildeo de paraacutegrafos etc) que satildeo de natureza retoacuterica Ele tambeacutem apresenta uma lista de fatos relevantes acerca do ambiente produzida por cidadatildeos conservadores e poliacuteticos em busca de proteccedilatildeo legislativa de aacutereas de manancial e alagadiccedilas A forma como Bernhardt analisou a construccedilatildeo dessa lista serve como importante introduccedilatildeo agrave noccedilatildeo de que a retoacuterica visual natildeo precisa necessariamente incluir fotos desenhos signos ou siacutembolos aleacutem de servir como ponto de comparaccedilatildeo para as milhares de publicaccedilotildees dessa natureza sejam elas listas de importacircncia ciacutevica panfletos que defendem causas ou websites

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No texto Reading the Visual in College Writing Classes Hill (2003) partilha al-gumas de suas proacuteprias teacutecnicas para introduccedilatildeo da retoacuterica visual na sala de aula Seus exemplos satildeo diversificados e cobrem desde o arranjo dos espaccedilos entre as linhas do texto e o tamanho dessas linhas (como faz Bernhardt 1996) passando pela anaacutelise retoacuterica de fotografias famosas (como a dos fuzileiros navais dos Es-tados Unidos erguendo a bandeira americana no solo de Iwo Jima no Japatildeo) ateacute a desconstruccedilatildeo de valores culturais escondidos de maneira subliminar em um anuacutencio impresso de uma empresa que vende seguros de vida A anaacutelise apresen-tada por Hill (2003) de cada um desses exemplos ajuda a demonstrar claramente a diversidade de apelos visuais de persuasatildeo e oferece a professores e alunos uma fundamentaccedilatildeo pedagoacutegica firme a partir da qual pode explorar outros exemplos de retoacuterica visual

Para os professores que pretendem continuar explorando as conexotildees entre retoacuterica e cultura visual os artigos de Frascina (2003) e Zagacki (2005) oferecem uma anaacutelise complementar das pinturas de Norman Rockwell Frascina compara os originais de Rockwell inspirados na Segunda Guerra Mundial com as versotildees digitalmente alteradas produzidas pelo jornal The New York Times apoacutes os aten-tados de 11 de setembro de 2001 numa tentativa de demonstrar a ldquomemoacuteria cul-tural coletivardquo que imagens poderosas podem construir Zagacki usa as pinturas de Rockwell sobre direitos civis para ilustrar como as obras de arte visuais ldquo[] podem operar na retoacuterica para articular o conhecimentordquo e moldar a percepccedilatildeo do puacuteblico Os dois trabalhos oferecem excelentes oportunidades para os professores apresentarem aos seus alunos os conceitos e meacutetodos da retoacuterica visual aleacutem de orientaacute-los a respeito de como os apelos imageacuteticos persuasivos podem ser ana-lisados e desconstruiacutedos

Exemplos praacuteticos de outros gecircneros da retoacuterica visual tambeacutem existem Em Understanding Comics The Invisible Art McCloud (1994) utiliza quadrinhos de forma criativa para analisar as praacuteticas retoacutericas aiacute empregadas A anaacutelise dos componentes retoacutericos verbais e visuais do filme The Usual Suspects (Os Suspeitos

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filme de 1995 lanccedilado no Brasil em 1996 e dirigido por Brian Singer) realizada por Blakesley (2003) oferece um raciociacutenio estrutural que pode ser aplicado ao estudo da retoacuterica visual no cinema Jaacute Television News as Rhetoric de Smith (1977) funciona bem em conjunto com The Rhetoric of Television News de Nydahl (1986) e com Uses of Television Hartley (1999) para oferecer exemplos representativos de estudo e aplicaccedilatildeo da retoacuterica televisiva Os professores que desejam combinar estudos sobre televisatildeo e cinema podem optar pelo artigo de Rosteck (1989) que analisa a estrutura argumentativa de Report on Senator McCarthy de Edward R Murrow uma parte integrante da seacuterie documental See It Now Esse artigo tambeacutem analisa o filme de George Clooney Good Night and Good Luck 2005) que apresenta outra visatildeo sobre o mesmo episoacutedio histoacuterico

Aqueles que se interessem pela retoacuterica aplicada aos videogames e pelas cons-tantes discussotildees acerca dos impactos nocivos de jogos violentos podem consultar Lachlan (2003) e Smith (1977) aleacutem das incontaacuteveis mateacuterias jornaliacutesticas que cobrem o debate entre Joseph Lieberman designers de jogos e jogadores de todo o mundo (o site wikipediaorg oferece uma excelente cobertura desse assunto) Todo esse material pode tambeacutem ser combinado aos videogames Doom Doom 3 e ao filme Doom The Movie (2005 dirigido por Andrzej Bartkowiak) para exemplificar de forma praacutetica a maneira como as diferentes retoacutericas visuais impactam o assunto

Os proacuteximos anos veratildeo os estudos da retoacuterica visual ganhando cada vez mais status em todas as disciplinas acadecircmicas relevantes incluindo retoacuterica e escrita Os professores que vislumbram o futuro comeccedilaratildeo a ampliar seus conhecimentos da teoria e pedagogia da retoacuterica visual (aproveitando a proliferaccedilatildeo de exemplos culturais disponiacuteveis a seu redor) como forma de se prepararem para a crescente consciecircncia acadecircmica do apreccedilo pelo poder de persuasatildeo de uma imagem e de textos visualmente persuasivos

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GlOssaacuteriO31

Neste glossaacuterio tentamos ser concisos na definiccedilatildeo e descriccedilatildeo dos termos Trata-se de um glossaacuterio especiacutefico para nossa forma de tratar o ensino da cons-truccedilatildeo do argumento neste livro Isso significa que alguns termos especiacuteficos do recorte terminoloacutegico de Kenneth Burke aparecem entre os termos tradicionais Tambeacutem natildeo se trata de uma lista definitiva ou exaustiva jaacute que satildeo muitos os termos da retoacuterica usados quando se fala de ensino do argumento

Para outras definiccedilotildees de termos-chave retoacutericos os leitores interessados devem consultar um dos trabalhos de referecircncia da aacuterea como a Encyclopedia of Rhetoric editado por Thomas Sloane a Encyclopedia of Rhetoric and Composition editado por Theresa Enos ou Sourcebook on Rhetoric de James Jasinski

Accedilatildeo vs Movimento ndash Em A Grammar of Motives Burke (1966 p 14) define accedilatildeo como o ldquo[] corpo humano em movimento consciente e intencionalrdquo Accedilatildeo eacute algo que apenas humanos satildeo capazes de fazer A capacidade de agir por sua vez eacute um preacute-requisito para escolhas morais Uma bola de baseball eacute capaz de movimentar mas natildeo de agir porque ela ldquo[] nem eacute moral e nem imoral ela natildeo pode agir pode apenas mover ou ser movidardquo (BURKE 1966 p 136) Para Burke a accedilatildeo envolve o ato de mover em direccedilatildeo ao ideal criando novidade durante o percurso As transformaccedilotildees afetadas pela accedilatildeo satildeo necessariamente parciais por necessidade devido ao paradoxo da substacircncia Ver tambeacutem Maacutegica Paradoxo da Substacircncia

31 Traduccedilatildeo Marcus Mussi

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Argumento agoniacutesticoeriacutestico ndash Do grego agon que significa concurso ou conflito e eris que significa contenda o argumento agoniacutestico ou eriacutes-tico representa um modelo de argumento que enfatiza conflito e disputa e ocorre quando a perspectiva de algueacutem avanccedila em detrimento de outrem O argumento agoniacutesticoeriacutestico tem sido visto por escolas feministas entre outras como um modelo patriarcal baseado na polecircmica que pro-move dissenso mais do que consenso Aleacutem disso o argumento eriacutestico tem sido criticado por ser irrealista Muitos modelos contemporacircneos de argumento satildeo complexos e natildeo defendem a derrota do adversaacuterio mas um propoacutesito mais realista como aumentar ou diminuir a adesatildeo de participantes ou a identificaccedilatildeo com a posiccedilatildeo argumentativa eou a perda de adesatildeo ou identificaccedilatildeo com posiccedilotildees alternativas

Analogia ndash Ver Invenccedilatildeo

Argumento rogeriano ndash Eacute um tipo de argumento que tenta explorar eou resolver problemas atraveacutes da escuta empaacutetica O princiacutepio funda-mental eacute considerar a comunicaccedilatildeo do ponto da compreensatildeo de outra pessoa Para participar da comunicaccedilatildeo autecircntica exige-se que as ideias e as atitudes de outras pessoas sejam vistas tatildeo profundamente a ponto de ser possiacutevel sentir como a pessoa sente O objetivo eacute promover uma mudanccedila de perspectiva ou modificar a concepccedilatildeo da realidade de ou-tra pessoa de modo que uma cooperaccedilatildeo uacutetil seja possiacutevel Existem trecircs estrateacutegias (1) tranquilizar a pessoa sobre o fato de que ela estaacute sendo compreendida (2) descobrir a validade do posicionamento da pessoa e (3) encontrar aacutereas de similaridade Um dos problemas do argumento rogeriano eacute a praacutetica de identificar no iniacutecio da argumentaccedilatildeo um possiacutevel

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resultado Potencialmente pode tambeacutem ser usado para fins manipu-lativos Se usado como teacutecnica a identificaccedilatildeo pode natildeo ser vista como sincera criando uma falsa sensaccedilatildeo de empatia

Atitude ndash Burke usa cinco termos para explicar os motivos humanos accedilatildeoato agente agecircncia propoacutesito e cenaacuterio Mais tarde ele adicionou atitude para descrever a maneira como o ato eacute conduzido Eacute um precursor do ato que ele chama de ldquoato incipienterdquo A retoacuterica conduz as pessoas para o ato ou a moldar suas atitudes de tal forma que cheguem ao ato As pessoas natildeo satildeo forccediladas a agir satildeo convencidas Os atos entatildeo se tornam as representaccedilotildees de nossas atitudes

Casuiacutestica ndash ldquoAs direccedilotildees geral e particular da retoacuterica se sobrepotildeem na medida em que todos os casos uacutenicos necessariamente envolvem a aplicaccedilatildeo dos toacutepicos universais para a questatildeo particular Assim mesmo as situaccedilotildees consideradas muito amplas podem apresentar exclusivida-derdquo (BURKE 1969 p 72) Para Burke a casuiacutestica eacute uma filosofia um princiacutepio geral que se aplica a situaccedilotildees especiacuteficas Embora a casuiacutestica assuma conotaccedilotildees negativas para muitos analistas contemporacircneos Burke ver isso como inevitaacutevel Entretanto ldquoa extensatildeo casuiacutesticardquo eacute fre-quentemente necessaacuteria para persuadir as pessoas de que em um sistema original (como a Constituiccedilatildeo dos Estados Unidos por exemplo) ainda eacute viaacutevel apesar de novas variaacuteveis temporais e espaciais Ver tambeacutem Identificaccedilatildeo Paradoxo da substacircncia

Consubstancialidade ndash Ver Identificaccedilatildeo

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Cortejo ndash Para Kenneth Burke o cortejo eacute uma forma de persuasatildeo que opera atraveacutes da identificaccedilatildeo em que uma ldquoentidaderdquo persuade outra Para que o cortejo exista cada entidade deve pertencer a uma classe separada o que leva ao que Burke se refere como ldquoestranhamentordquo No acircmbito individual esse estranhamento reside na diferenccedila entre os se-xos No mundo social a diferenccedila entre os sexos equivale agraves diferenccedilas entre classes sociais Burke refere-se agrave comunicaccedilatildeo entre as classes como cortejo ldquoabstratordquo No acircmbito do cortejo abstrato os membros de classes sociais mais altas tentam a controlar as classes menos privi-legiadas atraveacutes da ldquodoutrinardquo e da ldquoeducaccedilatildeordquo Assim ldquoo princiacutepio do cortejordquo na retoacuterica quer dizer ldquoo uso de dispositivos persuasivos para a transcendecircncia do estranhamento socialrdquo (BURKE 1969 208) Nessa relaccedilatildeo de estranhamento social os grupos satildeo ldquomisteacuteriosrdquo uns para os outros e esse misteacuterio pode ser convertido em poder Um professor por exemplo pode permanecer em silecircncio durante grande parte de tempo de modo a dar gravidade agraves perguntas que ele faz parecendo assim ldquoinspecionar as profundezas de coisasrdquo aos olhos do aluno (BURKE 1969 p 210) O cortejo de Burke difere do de Perelman e da noccedilatildeo de adesatildeo de Olbrecht-Tyteca na medida em que natildeo prever explicitamente que a persuasatildeo aumenta o grau de concordacircncia com o locutor Um grau de adesatildeo da audiecircncia ao argumento do locutor pode variar muito Em contraste o cortejo focaliza principalmente a relaccedilatildeo desigual entre o persuasor e os persuadidos em vez de empregar significados geralmente considerados ldquopersuasivosrdquo Atraveacutes do cortejo o ldquocortesatildeordquo jaacute comanda uma certa ldquocaptaccedilatildeordquo do puacuteblico Assim essa audiecircncia ldquocortejadardquo an-seia transcender a abertura do estranhamento social para unir-se com o persuasor quando ele ldquotimidamenterdquo manteacutem essa distacircncia e portanto a captaccedilatildeo e o poder

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A construccedilatildeo do argumento

Dialeacutetica ndash Na primeira frase da Retoacuterica Aristoacuteteles define retoacuterica como a contrapartida da dialeacutetica Retoacuterica e dialeacutetica satildeo faculdades de provimento de argumentos Historicamente a dialeacutetica eacute vista agraves vezes como a contrapartida da retoacuterica agraves vezes como competidora da retoacuterica Aristoacuteteles distingue o raciociacutenio demonstrativo (causal) do raciociacutenio dialeacutetico (natildeo causal ou contingente) definindo o uacuteltimo como ldquoraciociacute-nio de opiniotildeesrdquo que satildeo geralmente vistas como verdades provaacuteveis O raciociacutenio dialeacutetico pode ocorrer entre interlocutores ou pode ser uma interrogaccedilatildeo interna O Meacutetodo Socraacutetico eacute o mais conhecido exemplo de um raciociacutenio dialeacutetico se caracteriza por uma proposiccedilatildeo inicial seguida de uma conclusatildeo por perguntas e respostas e da aplicaccedilatildeo da lei da contradiccedilatildeo O raciociacutenio dialeacutetico eacute um teste para a verdade um processo de criaccedilatildeo de significado As proposiccedilotildees devem ser garanti-das antes do argumento Uma proposiccedilatildeo eacute dialeticamente assegurada quando ela passa pela lei da contradiccedilatildeo O modelo hegeliano de dialeacutetica envolve a tese (uma proposiccedilatildeo) a antiacutetese (a contradiccedilatildeo da proposiccedilatildeo) e a siacutentese (uma incorporaccedilatildeo dos dois primeiros elementos)

Doxa ndash Eacute a palavra grega que significa opiniotildees comuns ou populares Eacute a raiz de palavras como ldquoortodoxiardquo (opiniatildeo reta) e ldquoparadoxordquo (opini-otildees opostas) Doxa satildeo as opiniotildees agraves vezes sistematizadas geralmente aceitas por uma comunidade A noccedilatildeo de doxa situa o locus da autoridade fora do individual e no interior da comunidade As opiniotildees de pessoas individuais satildeo natildeo somente delas mas tambeacutem de muitas outras o que confere maior importacircncia a essas opiniotildees Situar as opiniotildees fora do escopo do indiviacuteduo tambeacutem abre a porta para que a persuasatildeo ocorra

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A construccedilatildeo do argumento

Entimema ndash Agraves vezes chamado de ldquosilogismo truncadordquo o entimema deixa de fora uma premissa e espera que seja fornecida tacitamente pela audiecircncia O entimema portanto natildeo deve ser julgado pelas convenccedilotildees de validade formal mas pelas leis da probabilidade Quanto mais ampla-mente a premissa eacute aceita mais provaacutevel eacute o consentimento da audiecircncia com o argumento do entimema Aristoacuteteles rotulou o entimema a ldquosubs-tacircncia da persuasatildeo retoacutericardquo Como haacute pouca coisa que pode ser tomada como certa os oradores devem confiar nas crenccedilas e pressupostos de sua audiecircncia

Espeacutecies de retoacuterica ndash Para Aristoacuteteles existem trecircs tipos de discurso cada um com sua proacutepria ecircnfase temporal Em primeiro lugar o discurso epidiacutedico (cerimonial) tem a ver com louvor ou culpa Um exemplo des-se tipo de discurso eacute o elogio O orador usa o discurso cerimonial para reforccedilar atitudes e crenccedilas importantes no presente Em segundo lugar discurso deliberativo eacute um apelo para algum tipo de accedilatildeo tipicamente legislativa que ou exorta ou dissuade de um determinado plano de accedilatildeo Em terceiro lugar o discurso forense (judicial) determina a culpa a inocecircncia ou a causalidade baseado em um exame de eventos passados

Esquema de Toulmin ndash O esquema e a terminologia de Toulmin para analisar e criar argumentos satildeo frequentemente usados no ensino do argumento No centro do modelo de Toulmin encontram-se vaacuterios termos-chave Todos os argumentos apresentam uma demanda com base em dados Uma garantia eacute uma proposiccedilatildeo geral que estabelece uma conexatildeo entre a demanda e os dados As garantias geralmente precisam de apoio ou suporte (evidecircncias que ajudam a provar a garantia) A demanda pode precisar tambeacutem de um qualificador (para evitar a

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A construccedilatildeo do argumento

linguagem absolutista) e condiccedilotildees de refutaccedilatildeo (exceccedilotildees para a regra formulada pela demanda) para maximizar seu potencial persuasivo O esquema de Toulmin provou ser aplicaacutevel em disciplinas acadecircmicas a argumentos populares

Ethos ndash Ver Pisteis

Exemplo Ilustraccedilatildeo Modelo ndash Perelman e Olbrechts-Tyteca analisam como os oradores procuram estabelecer uma comunhatildeo com o puacuteblico atraveacutes de um caso particular sob a forma de exemplo que torna possiacute-vel a generalizaccedilatildeo ilustraccedilatildeo que fornece suporte para a generalizaccedilatildeo estabelecida e modelo que incentiva a imitaccedilatildeo Esses termos podem ser definidos da seguinte forma

a Exemplo uma instacircncia especiacutefica que fornece uma base para uma regra e atua como ponto de partida de uma generalizaccedilatildeo Um exemplo deve ser pelo menos provisoriamente um fato Os exemplos servem tan-to para ilustrar uma generalizaccedilatildeo como para estabelecer a verdade da generalizaccedilatildeo De acordo com Perelman grande parte de um argumento eacute concebido para levar a audiecircncia a reconhecer fatos natildeo vaacutelidos (ou seja os exemplos que contradizem generalizaccedilotildees ou regras que tambeacutem admitem) Para Aristoacuteteles as provas surgem na forma de entimema ou exemplo Um exemplo natildeo eacute a relaccedilatildeo da parte com o todo nem do todo com a parte nem de um todo com outro todo Ao contraacuterio o exemplo eacute a relaccedilatildeo da parte com a parte de um igual com outro igual Os exemplos podem ser histoacutericos (que faz referecircncia a eventos passados) ou inventa-dos (Aristoacuteteles identificou a faacutebula como um tipo de exemplo inventado)

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A construccedilatildeo do argumento

b Ilustraccedilatildeo A ilustraccedilatildeo procura criar uma regra abstrata ou uma ideia concreta atraveacutes de um caso particular Ela promove a compreensatildeo da regra Enquanto os exemplos devem ser inquestionaacuteveis as ilustraccedilotildees natildeo precisam As ilustraccedilotildees podem ser detalhadas mas os exemplos devem ser concisos para evitar distraccedilatildeo

c Modelo Os modelos satildeo ilustraccedilotildees idealizadas de uma regra geral Os modelos natildeo devem ser apenas compreendidos devem ser imitados

Falaacutecias Informais ndash No sentido mais geral falaacutecias satildeo argumentos imperfeitos Os argumentos podem ser falaciosos devido a falhas em sua estrutura e na sua forma Isso constitui as falaacutecias formais Os argumentos que satildeo invaacutelidos por qualquer outro motivo aleacutem da forma constituem as falaacutecias informais As falaacutecias informais aparecem de muitas formas Um exemplo de uma falaacutecia informal eacute uma ldquorelaccedilatildeo falsardquo a alegaccedilatildeo de que dois grupos diferentes que natildeo tecircm nenhum viacutenculo loacutegico estatildeo contudo conectados A Wikipedia apresenta como exemplo de uma re-laccedilatildeo falsa a anaacutelise de venda de sorvete em uma cidade Satildeo vendidos mais sorvetes quando a taxa de afogamentos da cidade eacute maior Alegar que as vendas de sorvete causam afogamento seria implicar uma relaccedilatildeo falsa entre esses dois eventos Na realidade uma onda de calor pode ser a causa de ambos Para um tratamento mais completo sobre relaccedilatildeo entre as falaacutecias informais e a construccedilatildeo de argumentos ver Fulkerson (1996)

Heuriacutestica ndash Ver Invenccedilatildeo

Identificaccedilatildeo ndash Para Burke o conceito de identificaccedilatildeo eacute central para a retoacuterica e para o argumento A identificaccedilatildeo nos termos de Burke se ba-seia nos conceitos de fusatildeo e divisatildeo Uma pessoa A deseja se relacionar

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com uma pessoa B se elas tecircm interesses em comum ou se for persuadida a acreditar que esses interesses existem ldquo[] ao ser identificado com B A eacute lsquosubstancialmente umrsquo em relaccedilatildeo a outra pessoa que natildeo seja ela mesmardquo (BURKE 1969 p 21) No processo de agir em conjunto os in-diviacuteduos compartilham sensaccedilotildees conceitos ideias e atitudes O termo de Burke para isso eacute consubstancialidade uma maneira de ldquoagir juntosrdquo Para esclarecer isso Burke fala de consubstancialidade em termos de relaccedilotildees entre pais e filhos Por exemplo uma crianccedila eacute consubstancial com seus pais no sentido de que eacute ao mesmo tempo sua prole e um su-jeito autocircnomo Um miacutenimo de separaccedilatildeo (divisatildeo) sempre existe pois cada pessoa eacute ldquo[] uacutenica um locus individual de motivosrdquo (BURKE 1969 p 21) Atraveacutes da identificaccedilatildeo a retoacuterica e a argumentaccedilatildeo se tornam possiacuteveis pois os argumentos usam os princiacutepios de fusatildeo e divisatildeo para permitir atitudes e persuadir Ver tambeacutem Paradoxo da substacircncia

Ilustraccedilatildeo ndash Ver Exemplo

Imparcialidade ndash Eacute a condiccedilatildeo de ser membro de um grupo que seraacute afetado pelo efeito de um argumento sem ter sua decisatildeo influenciada por isso como ldquoum juiz imparcialrdquo que aplica as leias a todos inclusive a ele mesmo A imparcialidade portanto envolve o equiliacutebrio entre todos os pontos de vista de um argumento Isso contrasta com a objetividade conforme proposta por Perelman pois nesse caso a neutralidade eacute man-tida porque o orador espera natildeo ser atingindo pelo efeito do argumento

Ineacutercia ndash Em A Nova Retoacuterica Perelman e Olbrechts-Tytecha usam o termo ldquoineacuterciardquo para designar a resistecircncia humana agrave mudanccedila Inspirando-se na Fiacutesica os autores descrevem a ideia de que as atitudes as crenccedilas e

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A construccedilatildeo do argumento

os comportamentos de um puacuteblico tendem a ser conservados atraveacutes dos haacutebitos As atitudes as crenccedilas e os comportamentos tambeacutem car-regam valores que conservam os haacutebitos Assim a ineacutercia favorece a norma Ao passo que natildeo eacute necessaacuterio persuadir algueacutem sobre o que jaacute estaacute aceito qualquer mudanccedila seraacute questionada e exigiraacute justificaccedilatildeo A ineacutercia natural de uma audiecircncia atribui o ocircnus da prova agrave parte que deseja promover a mudanccedila

Invenccedilatildeo ndash Do latim invenire ldquoencontrarrdquo a invenccedilatildeo eacute o primeiro dos cinco cacircnones claacutessicos da Retoacuterica seguido pela disposiccedilatildeoarranjo elocuccedilatildeoestilo memoacuteria e entregaaccedilatildeo Como Aristoacuteteles define retoacute-rica como ldquoa faculdade de descobrir os meios de persuasatildeo disponiacuteveisrdquo grande parte de sua Retoacuterica centra-se na invenccedilatildeo A invenccedilatildeo consiste em buscar algo para dizer consequentemente refere-se ao logos ou seja o que o orador diz ao inveacutes do como diz A heuriacutestica (do grego heuriskein que significa ldquodescobrirrdquo) satildeo estrateacutegias pelas quais o orador pode des-cobrir de forma sistemaacutetica seguindo um conjunto de procedimentos Um orador pode fazer uma seacuterie de perguntas como um meio de explorar e investigar um problema ou questatildeo No acircmbito do argumento a Stasis Theory funciona principalmente como uma heuriacutestica na medida em que cada tipo de demanda levanta questotildees diferentes para quem propotildeem ou para quem ouve Na construccedilatildeo do argumento existem cinco tipos de demanda principais definiccedilatildeo (eacute X um y) causa (X causa y) avaliaccedilatildeo (eacute X um bom ou mau Y) proposta (devemos fazer X) e semelhanccedila (eacute X como Y) Os argumentos de semelhanccedila satildeo as primeiras versotildees contemporacircneas das analogias cuja formulaccedilatildeo mais geral eacute A eacute para B assim como C eacute para D No entanto essa formulaccedilatildeo pode ter apenas trecircs termos como em B eacute para A assim como C eacute para B ou A eacute para B

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A construccedilatildeo do argumento

assim como A eacute para C Perelman e Olbrechts-Tyteca citam a analogia de Aristoacuteteles ldquo[] assim como os olhos dos morcegos satildeo ofuscados pela claridade do dia a razatildeo da nossa alma eacute ofuscada pelas evidecircncias das coisas rdquo para explicar o theme (razatildeo da alma coisas evidentes) e o phoros (olhos de morcegos claridade do dia) Em analogia o theme e o phoros devem pertencer a diferentes esferas Se estiverem na mesma esfera haacute exemplo ou ilustraccedilatildeo A analogia depende de transferecircncias de valor do phoros para o theme e vice-versa A analogia eacute frequentemente vista com desconfianccedila quando usada como prova Perelman vecirc como um tipo instaacutevel de argumento semelhante agraves falaacutecias informais Ver tambeacutem Stasis Theory

Kairoacutes ndash Kairoacutes e chronos traduzidos grosso modo do grego representam o conceito de tempo Aristoacuteteles usou kairoacutes em seu sentido claacutessico como um momento criacutetico no desenrolar de um argumento quando algueacutem tem uma oportunidade de despertar seu puacuteblico Mais recentemente o kairoacutes tambeacutem tem sido traduzido como adequaccedilatildeo e oportunidade James Kinneavy usa o termo para se referir agrave ldquocontexto situacionalrdquo Nesse sentido o kairoacutes desempenha um papel na construccedilatildeo de todo o argumento e de toda escolha retoacuterica

Logos - Ver Pisteis

Mediaccedilatildeo - Ver Negociaccedilatildeo

Modelo ndash Ver Exemplo

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A construccedilatildeo do argumento

Mistificaccedilatildeo ndash Termo usado por Kenneth Burke A mistificaccedilatildeo ocorre quando a linguagem eacute usada entre diferentes classes soacutecias mais para enganar do que para comunicar A mistificaccedilatildeo reduz o potencial feacutertil do misteacuterio ldquoburocratizandordquo a hierarquia em um esquema definido que privilegia um grupo sobre o outro eliminando as diferenccedilas misteriosas entre as classes em detrimento de sua identidade Essa retoacuterica mal dire-cionada se preocupa principalmente com a coerccedilatildeo e o controle Misteacuterio e mistificaccedilatildeo satildeo diferentes da magia Como uma forccedila sobrenatural a magia eacute baseada em uma concepccedilatildeo primitiva de autoridade mas tem semelhanccedilas com a retoacuterica em seus fins persuasivos Enquanto a ma-gia tenta erroneamente induzir uma accedilatildeo agraves coisas (ou reduzir os seres humanos a objetos a serem movidos) a retoacuterica (muitas vezes atraveacutes de discurso exortativo) tenta induzir a accedilatildeo nas pessoas Burke observa que a magia eacute tambeacutem associada agrave novidade na medida em que cria algo fora do nada Cada ato retoacuterico envolve assim uma sugestatildeo de magia na medida em que usa a novidade na induccedilatildeo da accedilatildeo Ver tambeacutem Cortejo

Negociaccedilatildeo ndash A negociaccedilatildeo eacute um modo de acordo orientado para alcanccedilar consenso por meio da comunicaccedilatildeo ou ldquosoluccedilatildeo de diferenccedilasrdquo O conceito de negociaccedilatildeo foi aceito por muitas estudiosas feministas como alterna-tiva ao modelo agoniacutestico de argumento e como modelo para a interaccedilatildeo em sala de aula Outros e outras inclusive algumas feministas criticam a negociaccedilatildeo na medida em que evita conflitos em situaccedilotildees em que o conflito eacute preciso A ideia de negociaccedilatildeo criacutetica tambeacutem tem crescido no meio acadecircmico como Thomas West que conecta o conceito de negocia-ccedilatildeo agrave teoria poacutes-colonial agrave formaccedilatildeo de identidade e agrave hibridizaccedilatildeo A mediaccedilatildeo eacute um tipo particular de negociaccedilatildeo Na mediaccedilatildeo uma parte desinteressada ajuda a orientar o curso de um argumento em vez de se envolver ou fazer um julgamento a favor de qualquer participante Na

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mediaccedilatildeo o mediador natildeo tem poder sobre qualquer participante na construccedilatildeo do argumento em oposiccedilatildeo agrave arbitragem em que a terceira parte tem poderes para decidir o resultado de um argumento A mediaccedilatildeo eacute cada vez mais utilizada em soluccedilatildeo de disputas juriacutedicas

Objetividade ndash Eacute a condiccedilatildeo de natildeo ter interesse e natildeo ser afetado pelo resultado de um argumento A maioria das teorias de argumento con-temporacircneas rejeita a objetividade como uma postura praacutetica realista ou mesmo desejaacutevel para um orador ou puacuteblico Perelman por exemplo reconhece que fora da ciecircncia as controveacutersias satildeo resolvidas entre as partes O melhor que se pode esperar natildeo eacute objetividade mas imparcia-lidade atraveacutes da qual as pessoas agem em nome do que eacute melhor para todos ao inveacutes do que eacute melhor para si ou seus aliados

Ofiacutecio (ensino e informaccedilatildeo prazer movimento e submissatildeo) ndash esses trecircs propoacutesitos retoacutericos originaram-se nas ideias de Ciacutecero sobre os trecircs ofiacutecios do orador Cada ofiacutecio tem um estilo apropriado Mais especifica-mente o primeiro ofiacutecio (ensinar informar instruir) eacute pensado para ter um estilo simples O segundo ofiacutecio (agradar) deve ter um estilo mais temperado O movimento e a submissatildeo na oratoacuteria entretanto reque-rem um estilo mais eloquente que serve de forma mais suficiente para persuadir um puacuteblico para a accedilatildeo

Paradoxo da substacircncia ndash ldquoLiteralmente a substacircncia de uma pessoa ou de uma coisa seria algo que fica abaixo ou apoia a pessoa ou a coisardquo (BURKE 1966 p 22) Aqui Burke rastreia as raiacutezes etimoloacutegicas da pa-lavra ldquosubstacircnciardquo para ajudar a explicar o seu conceito de paradoxo da substacircncia mostrando que a proacutepria palavra implica a presenccedila do que eacute exterior O conceito de substacircncia de Burke contrasta marcadamente

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A construccedilatildeo do argumento

com o de Aristoacuteteles Para Aristoacuteteles a substacircncia de uma entidade seria inteira para si mesma Burke inclina-se agrave opiniatildeo de Spinoza segundo o qual nenhuma entidade uacutenica poderia ser compreendida como idecircntica mas apenas pelo que natildeo eacute (ldquo[] toda a determinaccedilatildeo eacute negaccedilatildeordquo (BURKE 1966 p 25)) Esse conceito estaacute no cerne do paradoxo da substacircncia a fim de ser capaz de entender o que dada coisa eacute eacute preciso primeiro colocaacute--la ldquoem termos derdquo outra coisa Isso eacute a loacutegica fundamental subjacente ao dramatismo de Burke Para Burke haacute um ldquo[] inevitaacutevel paradoxo de definiccedilatildeo uma antinomia que deve dotar a noccedilatildeo de substacircncia de uma ambiguidade irresoluacutevelrdquo (BURKE 1966 p 24) A substacircncia de alguma coisa soacute pode ser conhecida em termos do que substancialmente ela natildeo eacute Ver tambeacutem Identificaccedilatildeo e Dialeacutetica

Pathos - Ver Pisteis

Pisteis ndash Aristoacuteteles identificou dois tipos de provas retoacutericas (1) artiacutes-ticas (teacutecnicas ou intriacutensecas) e (2) natildeo artiacutesticas (natildeo teacutecnicas ou ex-triacutensecas) As provas extriacutensecas natildeo se originam nos esforccedilos proacuteprios de um orador mas em dados preexistentes que o orador deve descobrir e usar confissotildees contratos escritos etc As provas intriacutensecas satildeo for-necidas por meacutetodos retoacutericos atraveacutes dos proacuteprios esforccedilos do orador Os Pisteis (proveniente da palavra grega que se refere aos meios de persuasatildeo disponiacuteveis em um argumento) satildeo os trecircs tipos de provas artiacutesticas disponiacuteveis para o orador logos ethos e pathos O ethos (termo grego para ldquocaraacuteterrdquo) do orador refere-se agrave sua credibilidade Na eacutepoca de Aristoacuteteles a confianccedila era criada a partir do proacuteprio discurso e natildeo a partir do status do homem que falava Mais recentemente no entanto ethos muitas vezes natildeo eacute mais que o cargo ou a posiccedilatildeo de algueacutem Por exemplo noacutes confiamos naqueles que satildeo peritos em suas aacutereas de atu-

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accedilatildeo mais do que naqueles que satildeo generalistas O Pathos (termo grego para ldquosofrimentordquo ou ldquoexperiecircnciardquo) refere-se agraves emoccedilotildees do puacuteblico quando elas satildeo trazidas para uma situaccedilatildeo favoraacutevel agrave adesatildeo ao proacute-prio argumento O orador pode apelar eficazmente para o pathos porque conhece as crenccedilas e os valores do puacuteblico e empregar vaacuterias estrateacutegias retoacutericas apropriadamente O logos (termo grego para ldquopalavrardquo) refere-se agrave racionalidade do proacuteprio argumento O argumento deve ser consistente coerente racional bem fundamentado e plausiacutevel em seu apelo loacutegico

Praacutexis ndash Eacute uma alternativa ao par bifurcado teoriapraacutetica em que a praacutetica eacute subordinada agrave teoria A praacutexis existe como praacutetica teorizada conhecida e situada No ensino de escrita eacute o que separa a aula ldquoCultrdquo (criticada por natildeo promover a reflexatildeo como ad-hoc abstrata e super teorizada) do ensino reflexivo fundamentado em criacutetica em formas pe-dagogicamente situadas de saber e aprender

Presenccedila ndash Refere-se aos elementos de seleccedilatildeo arranjo eou omissatildeo de fatos julgamentos ou linhas de raciociacutenio que agem diretamente em nossa sensibilidade Esses elementos dotam um argumento de presenccedila e permitem que um puacuteblico perceba o que de outra forma seria apenas imaginado Dotar o argumento de presenccedila atraveacutes de metaacuteforas exem-plos viacutevidos graacuteficos atraentes aumenta muito a identificaccedilatildeo do puacuteblico com o argumento

Propaganda ndash Eacute um tipo de persuasatildeo retoacuterica que objetiva atingir uma massa em vez de um puacuteblico indiviacuteduo Eacute expliacutecita e produzida por uma instituiccedilatildeo ou grupo (como um governo) A propaganda eacute tambeacutem notaacutevel pela sua natureza egoiacutesta natildeo faz nenhuma questatildeo de ter compromis-so com o orador e a audiecircncia Baseando-se fortemente na repeticcedilatildeo de

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siacutembolos e imagens nas miacutedias sociais a propaganda frequentemente assume conotaccedilotildees negativas na sociedade ocidental mas governos orga-nizaccedilotildees religiosas e anunciantes corporativos (entre outros) continuam a produzir propaganda em altos niacuteveis Os argumentos (muitas vezes de natureza visual) produzidos pela propaganda fornecem exemplos claros que promovem discussatildeo produtiva em salas de aula de argumento

Pentaacutegono de Burke ndash Kenneth Burke acredita que a comunicaccedilatildeo so-cial eacute melhor analisada e compreendida como um drama o que o levou a propor um pentaacutegono de termos para o estudo retoacuterico accedilatildeoato agente agecircncia cena e propoacutesito Os resultados das accedilotildees retoacutericas satildeo determi-nados pelos iacutendices (relacionamentos) entre esses cinco elementos Ver tambeacutem Situaccedilatildeo retoacuterica

Relaccedilatildeo ndash Ver Pentaacutegono de Burke

Retoacuterica da burocracia ndash Refere-se a uma retoacuterica de gesto geralmente de natureza simboacutelica Um exemplo moderno nos EUA de retoacuterica da burocracia eacute a derrubada da estaacutetua de Saddam Hussein apoacutes a invasatildeo das forccedilas dos EUA em Bagdaacute Esse tipo de gesto retoacuterico significa a vi-toacuteria das forccedilas dos Estados Unidos e a derrota do Iraque

Retoacuterica deliberativa ndash Ver Espeacutecies de retoacuterica

Retoacuterica epidiacutetica ndash Ver Espeacutecies de retoacuterica

Retoacuterica forense ndashVer Espeacutecies de retoacuterica

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A construccedilatildeo do argumento

Regra de justiccedila ndash Termo que estaacute no cerne das teorias de Perelman e Olbrechts-Tytecha (1969 p 218) sobre argumentaccedilatildeo A chave para essa regra formal eacute dar ldquo[] tratamento idecircntico para seres ou situaccedilotildees da mesma naturezardquo Observar a regra da justiccedila eacute necessaacuterio para a constru-ccedilatildeo de argumentos juriacutedicos Atraveacutes dessa regra os precedentes tambeacutem adquirem maior importacircncia casos anteriores podem influenciar casos futuros (desde que as categorias sejam essencialmente as mesmas)

Sofisma ndash Na linguagem popular o sofisma refere-se a qualquer argu-mento intencionado a enganar em vez de persuadir legitimamente um ouvinte O termo data do seacuteculo V aC Os sofistas eram um grupo de filoacutesofos preacute-platocircnicos e professores de retoacuterica Em geral os sofistas ensinavam a partir da experiecircncia em vez da teoria e enfatizavam as habilidades persuasivas do mundo real ao inveacutes da busca de uma forma particular de verdade Assim atraveacutes de suas teacutecnicas ensinavam a ldquoargumentar para ganharrdquo Nos Diaacutelogos de Platatildeo os sofistas satildeo vistos como espantalhos e usavam a retoacuterica de forma egoiacutesta e amoral (ver Goacutergias de Platatildeo) De forma oposta agrave retoacuterica de Platatildeo os sofistas emer-gem como trapaceiros astutos que usam a linguagem para enganar em vez de encontrar a verdade As perspectivas contemporacircneas da retoacuterica tecircm reabilitado muitos conceitos sofistas incluindo a atenccedilatildeo para am-biguidade da liacutengua e o contexto natural da verdade e do conhecimento O ldquofeminismo retoacutericordquo de Susan Jarratt por exemplo liga o foco poliacutetico do feminismo contemporacircneo agraves abordagens sofistas sobre o poder real do uso da linguagem

Situaccedilatildeo retoacuterica ndash Refere-se agrave contextualizaccedilatildeo da maneira de persu-adir se eacute oral ou escrito Como melhor determinar o impacto persuasivo em um determinado puacuteblico-alvo Quais satildeo os elementos de uma dada

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situaccedilatildeo retoacuterica Natildeo haacute uma resposta faacutecil a essas questotildees e os estu-diosos continuam a oferecer quadros praacuteticos e teoacutericos Uma estrutura comum utilizada no ensino de escrita eacute o triacircngulo retoacuterico com foco no inter-relacionamento da mensagem do escritor e do puacuteblico Outros quadros satildeo ainda mais especiacuteficos e identificam cinco componentes principais da situaccedilatildeo retoacuterica ocasiatildeo propoacutesito toacutepico audiecircncia e escritor O pentaacutegono de Kenneth Burke tambeacutem identifica cinco elemen-tos essenciais accedilatildeoato agente agecircncia cena e propoacutesito Observa-se que embora diferentes essas estruturas apresentam elementos centrais similares proporcionando variaccedilotildees no triacircngulo retoacuterico Natildeo importa qual estrutura terminoloacutegica eacute usada A chave para a compreensatildeo da situaccedilatildeo retoacuterica loacutegica consiste em reconhecer o raacutetio dos termos que elementos satildeo mais importantes para a situaccedilatildeo dada

Stasis Theory ndash Da palavra grega staseis que significa ldquotomar uma po-siccedilatildeordquo Na teoria retoacuterica a Stasis theory pode ser usada para encontrar pontos comuns de uma questatildeo ou como uma estrateacutegia de criaccedilatildeo que fornece ao orador uma seacuterie de perguntas que servem para descobrir o ponto de discordacircncia entre dois opositores Desde o seacuteculo II da nossa era tradicionalmente tem havido uma ordem hieraacuterquica das questotildees de Stasis No entanto recentemente alguns pesquisadores argumentam que as questotildees natildeo necessariamente tecircm de ser feitas numa ordem especiacutefica e dependendo da situaccedilatildeo retoacuterica algumas das questotildees podem natildeo ser aplicaacuteveis Encontrar o ponto de origem de um desacordo eacute desnecessaacuterio se o objetivo do argumento eacute chegar a uma resoluccedilatildeo ou pelo menos a uma compreensatildeo mais clara do problema por oposiccedilatildeo agraves disputas que satildeo muitas vezes o resultado de um argumento em que a Stasis natildeo foi alcanccedilada antes do engajamento As Stasis satildeo divididas em quatro perguntas

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1 Conjectura ndash existe um ato a ser considerado2 Definiccedilatildeo ndash como o ato pode ser definido3 Qualidade ndash quatildeo seacuterio eacute o ato Quais satildeo as circunstacircncias atenuantes4 Procedimento ndash o que deveriacuteamos fazer Existe alguma coisa sobre o ato que exige uma decisatildeo natildeo padratildeo ou pena menor

Topoi (Toacutepicos) ndash Originalmente delineado por Aristoacuteteles os toacutepicos satildeo significados disponiacuteveis de persuasatildeo e satildeo utilizados durante a fase de criaccedilatildeo da argumentaccedilatildeo Aristoacuteteles classificou os toacutepicos em dois grupos (1) os comuns a todos os sujeitos (lugares comuns) e a todas as circunstacircncias e (2) os de aacutereas especializadas como Fiacutesica ou poliacutetica Perelman tem uma abordagem diferente para os toacutepicos Ele aplica o termo loci apenas a premissas de natureza geral que podem servir como bases para valores e hierarquias e que se relacionam com escolhas que fazemos Ele classifica loci em (1) loci de quantidade (por exemplo um maior nuacutemero de bens eacute mais desejaacutevel do que um nuacutemero menor de mercadorias) (2) de qualidade (por exemplo uma verdade deve ser desejada acima de cem erros ou o uacutenico eacute valorizado aleacutem do usual do ordinaacuterio ou do vulgar) (3) de ordem (por exemplo o que eacute anterior eacute superior ao que estaacute depois por exemplo o original eacute superior agrave coacutepia) (4) de existecircncia (por exemplo o que eacute atual ou real eacute superior ao pos-siacutevel ao contingente ou ao impossiacutevel) (5) de essecircncia (por exemplo a superioridade do valor dos indiviacuteduos que incorpora a essecircncia por exemplo uma raccedila melhor exibiria as qualidades daquela raccedila melhor do que seus concorrentes) e (6) de pessoa (por exemplo a dignidade o valor ou a autonomia da pessoa)

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A construccedilatildeo do argumento

AA

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sObre Os autOres

John RamageFoi professor por mais de trinta anos na Montana State University e na Arizona State University Ensinou literatura escrita teoria retoacuterica e argumentaccedilatildeo na graduaccedilatildeo e na poacutes-graduaccedilatildeo Tambeacutem foi coordena-dor de programas de escrita por mais de uma deacutecada supervisionando centros de escrita programas curriculares e de suporte acadecircmico Seu livro Writing Arguments em co-autoria com John Bean e June Johnson jaacute estaacute na oitava ediccedilatildeo

Zachary WaggonerEacute professor do Departamento de Inglecircs na Arizona Satate University En-sina retoacuterica escrita teoria de jogos eletrocircnicos e atua na formaccedilatildeo de professors Eacute autor de My Avatar My Self Identity in Video Role-Playing Games e de vaacuterios artigos sobre o ensino da escrita

Micheal CallawayEacute professor residente no Mesa Community College em Mesa Arizona Aleacutem do ensino atualmente tem se dedicado ao desenvolvimento de curriacuteculo para cursos de educaccedilatildeo para o desenvolvimento Aleacutem de atividades de ensino ele tambeacutem se interessa por questotildees de avaliaccedilatildeo

Jennifer Clary-LemonEacute professora assistente de retoacuterica na University of Winnipeg Os seus interesses de investigaccedilatildeo incluem a retoacuterica da representaccedilatildeo e a histoacute-ria da escrita e da disciplinaridade Eacute co-autora com Peter Vandenberg e Sue Hum de Relations Locations Positions Composition Theory for Writing Teachers Tambeacutem tem publicaccedilotildees em revistas como American Review of Canadian Studies e Handbook of Research on Writing

264

sObre Os traDutOresClemilton Lopes Pinheiro Doutor em Letras aacuterea de Filologia e Linguiacutestica Portuguesa pela Uni-versidade Estadual Paulista Juacutelia de Mesquita Filho Realizou estaacutegio de poacutes-doutorado em Linguiacutestica na Universiteacute Sorbonne Nouvelle Paris 3 Eacute professor de linguiacutestica na Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Erik Fernando MartinsDoutor em Linguiacutestica pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Univer-sidade Estadual de Campinas Eacute professor de linguiacutestica na Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Felipo Bellini SouzaLicenciado em Letras e mestrando em Estudos da Linguagem pela Uni-versidade Federal do Rio Grande do Norte Eacute tradutor e administrador da empresa Traduzabiz

Karine Alves DavidLicenciada em Letras pela Universidade Estadual do Cearaacute Mestre em Linguiacutestica pela Universidade Federal do Cearaacute Doutoranda em Estudos da linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte com estaacutegio na University of California Santa Barbara

Marcus MussiDoutorando em Linguiacutestica pela Universidade Federal da Paraiacuteba Eacute pro-fessor de inglecircs no Centro de Formaccedilatildeo de Professores da Universidade Federal de Campina Grande

265

Maria Hozanete Alves de LimaDoutora em Linguiacutestica pela Universidade Federal de Alagoas Realizou estaacutegio de poacutes-doutorado no Institut de textes et manuscrits modernes unidade de pesquisa ligada ao CNRS da Franccedila Eacute professora de estudos claacutessicos na Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Siacutelvio Luis da SilvaDoutor em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte aacuterea de Linguiacutestica Aplicada Eacute professor de linguiacutestica e liacutengua portuguesa na Universidade Federal da Paraiacuteba

a construccedilatildeo do argumento fornece uma ampla gama de

recursos para o ensino da escrita as ideias dos principais

teoacutericos da Retoacuterica claacutessica e contemporacircnea de aristoacuteteles a

Burke Toulmin e Perelman e sua relevacircncia para a instruccedilatildeo

satildeo apresentadas sucintamente Os autores classificam de forma

clara e expotildeem suas posiccedilotildees sobre a pedagogia das falaacutecias

informais da propaganda e apresentam as razotildees para preferir

uma abordagem a outra entre as disponiacuteveis para o ensino da

escrita os autores igualmente destacam o papel do argumento

em abordagens que natildeo satildeo diretamente vinculadas ao tema

como as que destacam o movimento feminista a retoacuterica da

liberaccedilatildeo os estudos culturais criacuteticos o movimento escrita

atraveacutes do curriacuteculo as novas tecnologias e a retoacuterica visual as

referecircncias bibliograacuteficas datildeo a oportunidade de aprender mais

sobre essas abordagens

AA

isbn 978-85-66530-81-0

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