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Comida de gente: preferências e tabus alimentares entre os ribeirinhos do Médio Rio Negro (Amazonas, Brasil) 1 Andréa Leme da Silva Departamento de Ecologia – Unesp RESUMO: No presente artigo, analiso os aspectos relacionados às escolhas e aversões alimentares entre as populações ribeirinhas assentadas no Rio Negro (Amazonas, Brasil). Foram entrevistadas 104 pessoas (57 homens e 47 mulheres) e observadas as práticas cotidianas quanto às preferências e restrições alimentares em 47 unidades domésticas. As escolhas alimentares são influenciadas por preferências individuais, fatores ecológicos, econô- micos, sociais e culturais. Com relação ao sistema de tabus alimentares, os animais com caracteres híbridos ou difíceis de serem categorizados, como os peixes lisos e os animais de dieta generalista, são sujeitos a tabus. A sobreposição entre as diferentes correntes teóricas é utilizada para interpre- tar as variações estabelecidas entre as preferências e os tabus alimentares no Rio Negro. PALAVRAS-CHAVE: preferências alimentares, tabus, ecologia, populações ribeirinhas, Rio Negro, Amazônia. Introdução As preferências e aversões (restrições) alimentares são geralmente de ori- gem social ou cultural (MacBeth & Lawry, 1997). Quando partilhadas entre membros de um grupo, tais restrições podem constituir tabus ali-

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Comida de gente: preferências e tabusalimentares entre os ribeirinhos

do Médio Rio Negro (Amazonas, Brasil)1

Andréa Leme da Silva

Departamento de Ecologia – Unesp

RESUMO: No presente artigo, analiso os aspectos relacionados às escolhase aversões alimentares entre as populações ribeirinhas assentadas no RioNegro (Amazonas, Brasil). Foram entrevistadas 104 pessoas (57 homens e47 mulheres) e observadas as práticas cotidianas quanto às preferências erestrições alimentares em 47 unidades domésticas. As escolhas alimentaressão influenciadas por preferências individuais, fatores ecológicos, econô-micos, sociais e culturais. Com relação ao sistema de tabus alimentares, osanimais com caracteres híbridos ou difíceis de serem categorizados, comoos peixes lisos e os animais de dieta generalista, são sujeitos a tabus. Asobreposição entre as diferentes correntes teóricas é utilizada para interpre-tar as variações estabelecidas entre as preferências e os tabus alimentares noRio Negro.

PALAVRAS-CHAVE: preferências alimentares, tabus, ecologia, populaçõesribeirinhas, Rio Negro, Amazônia.

Introdução

As preferências e aversões (restrições) alimentares são geralmente de ori-gem social ou cultural (MacBeth & Lawry, 1997). Quando partilhadasentre membros de um grupo, tais restrições podem constituir tabus ali-

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mentares,2 os quais atuam como marcadores sociais para mostrar dife-renças entre indivíduos e grupos, influenciar atitudes e comportamen-tos e facilitar o funcionamento dos sistemas sociais (Garine, 1995).

Os tabus alimentares podem ser permanentes, estendendo-se portoda vida, ou temporários (segmentares), sendo restritos a certos perío-dos de vida3 (Colding & Folke, 2000). Os tabus temporários acom-panham períodos importantes dos ciclos de vida como gravidez, mens-truação, puerpério e puberdade, bem como podem ser permanentes eassociados a aspectos sociais e religiosos (Bynum, 1997).

A interpretação das preferências e restrições alimentares consiste numdos mais antigos debates da antropologia ecológica da literatura norte-americana, que foi dicotomizada em duas grandes abordagens, hoje con-sideradas integrativas e complementares (Begossi, 1997). Por um lado,a abordagem ecológico-funcionalista (materialista) baseia-se em princí-pios biológicos, ecológicos e econômicos, buscando compreender o va-lor adaptativo e funcional das escolhas alimentares ao ambiente físico esocial das populações humanas (Gross, 1975; Rappaport, 1968; Harris1974, 1977, 1985; Ross, 1978; Harris & Ross, 1987). Por outro lado, aabordagem idealista (simbólica) considera que as restrições alimentaressão ligadas a aspectos da estrutura cognitiva e social, orientadas segundocritérios simbólicos e ideológicos (Douglas, 1966; Sahlins, 1976; Lévi-Strauss, 1969, 1989; Soler, 1996).

Os estudos sobre escolhas e hábitos alimentares entre as populaçõesamazônicas têm sido largamente dominados pela dicotomia simplista,representada pelos estudos de abordagem sociocultural e de abordagemecológica e econômica (Murrieta, 2001, p. 40). Mais amiúde, a literatu-ra tem abordado aspectos socioestruturais e simbólicos dos sistemas derestrições alimentares (Motta-Maués & Maués, 1980; Maués, 1990),bem como aspectos ecológico-econômicos (Begossi, 1992; Begossi &Braga, 1992; Murrieta, 1999, 2001).

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Entre as proibições alimentares temporárias estudadas na Amazônia,está a reima4 (do grego rheum= fluido viscoso), utilizada para classificaro grau de segurança dos animais selvagens e domésticos para o consumo(Moran, 1974; Smith, 1979). A reima é caracterizada por um sistemaclassificatório de oposições binárias entre alimentos perigosos (reimosos)e não perigosos (não reimosos), sendo aplicado às pessoas em estadosfísicos e sociais de liminaridade ou estados de representação ritual e sim-bólica de transição ou passagem, como enfermidades, menstruação epós-parto (Murrieta, 1998, p. 121). Esses estados de liminaridade têmsido relatados por diversos autores, sendo difundidos entre diferentespopulações no Brasil e na América Latina (Begossi & Braga, 1992;Galvão, 1955; Maués & Motta-Maués, 1978; Motta-Maués & Maués,1980; Motta-Maués, 1993; Moran, 1974, 1981; Smith, 1979, 1981;Wagley, 1988). Alguns autores sugerem que a reima tenha surgido damedicina medieval hipocrática-galênica, sendo tais práticas cristãs trans-plantadas para a América portuguesa e disseminadas por meio da IgrejaCatólica no período colonial (Fleming-Moran, 1992; Rodrigues, 2001).Dessa forma, a matriz das proibições da reima na cultura cabocla teriaorigem européia, sendo indigeneizada na América portuguesa e adapta-da às condições locais (Murrieta, 1998, 2001).

O objetivo do presente trabalho consiste em confrontar o estudo decaso realizado sobre preferências e restrições alimentares no Rio Negrocom as principais hipóteses apresentadas sobre tabus alimentares naAmazônia. Os objetivos específicos são: (1) caracterizar o uso e consu-mo do pescado quanto às preferências e tabus alimentares, estabelecen-do comparações do conhecimento entre sexos (homens e mulheres) eentre diferentes localidades, incluindo comparações com estudos reali-zados na Amazônia; (2) determinar os critérios que influenciam as esco-lhas e aversões (tabus) alimentares.

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Área de estudo

A área deste estudo compõe diversas comunidades localizadas no Mé-dio Rio Negro. O ambiente local é caracterizado por inundações sazo-nais que dividem o clima em duas grandes estações, seca e chuvosa.A estação chuvosa, também chamada de inverno, estende-se entre osmeses de janeiro a julho, e a estação seca, ou verão, prolonga-se entre osmeses de junho e novembro. O clima da região é quente e úmido, comtemperatura média de 27,5ºC e precipitação variando entre 2.500 mma 3.500 mm anuais.

Os rios de águas pretas da Amazônia Central têm sua origem no platôdas Guianas, que consiste numa área de formação geológica antiga eerodida, datando do período Pré-cambriano (Sioli, 1985). Nessesecossistemas, os solos (do tipo spodsol) são caracterizados por uma altaconcentração de matéria orgânica não decomposta (responsáveis pelacor escura da água), elevada acidez, pobre concentração de nutrientes,alta porosidade e elevado conteúdo de areia (Moran, 1991). Assim, taisfatores limitantes tornam esses rios pouco produtivos5 (oligotróficos) emtermos de biomassa animal e vegetal, sendo a maior parte dos nutrien-tes oriunda dos ecossistemas terrestres (Goulding, 1980). Apesar de aárea estudada compor um ecossistema de águas pretas, o fluxo de nu-trientes trazidos pelos tributários em determinados trechos da bacia,como o Rio Branco (acima de Novo Airão, próximo a Carvoreiro) e osafluentes de águas claras, incluindo os rios Marauiá, Inambu e Padauiri,localizados na margem esquerda do Rio Negro, propicia o aumento daprodutividade e a ocorrência de espécies pouco freqüentes no alto cursodo rio. Apesar da escassez de nutrientes, a diversidade de espécies daictiofauna é considerada elevada, com cerca de 450 espécies de peixesidentificados – e mais de 40 espécies são endêmicas da bacia, entre elas

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o cardinal tetra (Paracheirodon axelrodi), bastante explorado pela pescaornamental (Goulding et al., 1988).

Os tipos de vegetação predominantes na região incluem a FlorestaTropical Densa e Aberta (floresta de terra-firme), florestas sazonalmen-te inundadas (igapó) e floresta de campinarana. A campinarana, tam-bém conhecida como caatinga amazônica, predomina principalmentenas áreas arenosas do Alto Rio Negro. Ainda, de ocorrência peculiar noalto curso do rio, são as extensas florestas de palmeira piaçava (Leopoldi-na piassaba), espécie endêmica da bacia que se distribui ao longo deigarapés, tendo sua ocorrência mais expressiva dentro do Rio Preto(Emperaire, 2000).

Informações etnográficas sobre a população estudada

Este estudo foi realizado nos municípios de Santa Isabel do Rio Negro eBarcelos (AM), localizados, respectivamente, a 781 quilômetros e 405quilômetros de Manaus na porção setentrional da Amazônia brasileira(Figura 1). A população de Barcelos totaliza 24.121 habitantes, com33% (7.954) vivendo na área urbana e 67% (16.243) na área rural.6

Santa Isabel do Rio Negro tem 10.561 habitantes, 40% (4.220) na áreaurbana e 60% (6.341) na área rural (IBGE, 2000).

A bacia do Rio Negro apresenta rica diversidade sociocultural, apesardo longo contato interétnico entre as populações indígenas e não indí-genas por mais de 300 anos (ISA/FOIRN, 2004). Os índios das águaspretas fazem parte de 22 etnias pertencentes a quatro famílias lingüísti-cas, Tukano Oriental, Maku, Aruak e Yanomami, sendo a língua geral7

ainda falada em algumas áreas (Ribeiro, 1995). Cerca de 20 mil índiosvivem nas terras indígenas da bacia do Rio Negro, localizadas principal-

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mente nas porções do alto e médio curso do rio. No baixo e médio cursodo rio, é notável a presença de caboclos8 e de índios destribalizados.

As populações do Rio Negro sofreram forte impacto com o processode colonização, determinado pelos violentos contatos interétnicos comcolonos e missionários pelo estabelecimento do sistema de aviamento9 epelos deslocamentos (descimentos)10 das populações indígenas do altopara o médio e baixo curso do rio (Leonardi, 1999). Dessa forma, a po-pulação indígena atual das margens do Rio Negro é constituída pela des-cendência de várias gerações de índios “descidos”, muitos dos quais forammestiçados com uma minoria de colonizadores brancos (Meira, 1997).

A maioria dos residentes que compõem a amostragem desta pesquisanasceu dentro da bacia do Rio Negro. Cerca de 80% dos entrevistadosnasceu no próprio município, em núcleos urbanos ou em comunidadessituadas ao longo do Rio Negro e seus afluentes (por exemplo, riosJurubaxi, Uneuixi, Aiuanã, Marauiá, Padauiri, Preto, Demene, Quiuini,Caurés, entre outros), 25% são migrantes do Alto Rio Negro (SantaIsabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira) e uma parcela menor(5%) de outras cidades do Amazonas ou outros estados brasileiros.A média de moradores foi de 7 indivíduos por unidade doméstica, e aidade dos entrevistados variou de 18 a 84 anos.

Por ocasião do trabalho de campo em 1999, três famílias indígenasmigradas do Alto Rio Negro (Tukano e Desâna) residiam na vila de Car-voeiro há cinco anos, e uma família baniwa, oriunda dos piaçabais doRio Preto, migrou para a comunidade em 1999. Em Cumaru, residiamduas famílias indígenas tukano oriundas do Rio Preto, ainda vinculadasao extrativismo da piaçava, que migravam sazonalmente para as áreas deextração do produto. Um dos entrevistados de Cumaru, proveniente doRio Solimões, é descendente macuxi. Em Santa Isabel do Rio Negro,cerca de 80% dos entrevistados declararam pertencer a alguma etnia,

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sendo elas Baré (47%), Baniwa (29%), Tukano (13%), Desâna (9%),Kuauí (1%) e Werekena (1%).

A intensificação da migração das populações indígenas para a cidadeou comunidades próximas dos centros urbanos do Rio Negro tem sidoassociada ao declínio do extrativismo a partir dos anos 80, à busca poracesso a educação formal, emprego e saúde, aos conflitos pela posse daterra e ao isolamento geográfico (Oliveira, 1995; Brandhuber, 1999;Leonardi, 1999). Os fatores adicionais apontados pelos entrevistadosincluem a escassez de recursos protéicos, sobretudo pescado, no altocurso do rio, os conflitos familiares e os incentivos de políticas públicaslocais11 (Silva, 2003).

A população estudada tem uma economia rural de base diversificada.As principais atividades econômicas incluem a pesca comercial de pei-xes comestíveis e ornamentais, a agricultura e as atividades sazonais deextrativismo florestal (por exemplo, castanha, piaçava etc.), a caça deanimais silvestres, a pesca de quelônios aquáticos e a coleta de seus ovos.Ainda, a aposentadoria representa um importante adicional na econo-mia familiar dos ribeirinhos (ibid.).

Metodologia

Os dados sobre preferências e tabus alimentares foram coletados por meiode entrevistas semi-estruturadas (Bernard, 1994). Foram efetuadas 104entrevistas, incluindo 47 mulheres e 57 homens (59 pessoas residentesna área urbana e 45 pessoas residentes na área rural), entre 1999 e 2005(Figura 1). Além disso, entre 1999 e 2000, foram observadas 37 unida-des domésticas na área urbana (Barcelos) e 10 unidades na área rural (Car-voeiro) quanto às práticas cotidianas de escolhas e restrições alimentares.

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Quanto à coleta e identificação do material biológico, os peixes cita-dos nas entrevistas foram comprados ou doados por pescadores e mora-dores locais. Os exemplares foram fixados em formol a 10% e, poste-riormente, em álcool a 70%. O material foi identificado por G. M. dosSantos, E. F. da Silva e J. A. S. Zuanon, e depositado na coleção Centralde Peixes do Inpa. A literatura consultada inclui Goulding et al. (1988),Sick (1985) e Emmons (1999). A identificação dos mamíferos foi revi-sada por E. Z. Setz (Unicamp) – não consta da bibliografia.

Análise estatística

A comparação entre as citações de animais categorizados como reimosose não reimosos entre sexos (homens e mulheres) foi efetuada pelo chi-quadrado (tabela de contingência). A relação entre as espécies citadascomo comuns e preferidas para consumo foi calculada pelo coeficientede correlação de Spearman (Zar, 1996).

Resultados e discussão

Preferências alimentares

Os peixes consistem na principal e mais segura fonte protéica consumidapelas populações do Rio Negro e da Amazônia em geral (Silva, 2003;Murrieta, 1998, 1999; Murrieta & Dufour, 2004; Adams et al., 2005).Cerca de 80 espécies de peixes destinados ao consumo foram coletadase identificadas, sendo tal diversidade um fator importante na diversifi-cação da dieta dos ribeirinhos (Silva & Begossi, 2007).

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As preferências alimentares são expressas pelos alimentos mais abun-dantes no ambiente local, fato este evidenciado pela correlação signifi-cativa entre as espécies de pescado mais citadas como comuns e preferi-das para consumo (r

s = 0.58, p<0.001). Entre os peixes citados como

mais comuns e consumidos pelos entrevistados, estão os tucunarés ecarás (ciclídeos), aracus (anastomídeos), piranhas e pacus (serrasalmí-deos), e os peixes lisos, incluindo o filhote, surubim e pirarara (pimelo-dídeos) (Tabela 1). Cerca de 20% dos entrevistados declararam que nãopossuem preferências alimentares com relação aos peixes.

Os fatores econômicos certamente exercem influências sobre as esco-lhas alimentares, sobretudo considerando o baixo poder aquisitivo dapopulação estudada. Em diversas situações, os entrevistados expressaramo desejo de consumo de carne de gado, o que raramente acontecia naprática devido a seu elevado preço no mercado local, correspondendo amais do dobro em relação ao preço do pescado. Como exemplo, o pes-cado tem um valor de mercado bem mais acessível (R$ 2,50 a 3,00/kg)em comparação aos alimentos protéicos de origem animal importados,como a carne de boi, cujo preço varia de R$ 6,00 a 12,00/kg, e o fran-go, comercializado entre R$ 3,00 e 3,50/kg em Barcelos (18/7/2000) eentre R$ 3,70 e 4,50/kg em Santa Isabel do Rio Negro (4/8/2005).

O pescado é classificado em duas categorias gerais: peixes lisos (pei-xes de pele) e peixes de escama. Ainda, os peixes de escama são cate-gorizados em dois grupos distintos de acordo com a coloração: peixesbrancos (por exemplo, pacu, aracu, matrinxã) e peixes pretos (por exem-plo, cará, tucunaré, traíra, aruanã). Os peixes brancos são mais valori-zados e destinados ao comércio local, enquanto os peixes pretos (comoo tucunaré e o cará) e os peixes lisos, considerados menos perecíveis emrelação aos peixes brancos, além de abastecer o mercado local, sãocomercializados em centros urbanos como Manaus e São Gabriel da

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Cachoeira. O tucunaré (Cichla spp.) está entre as espécies mais impor-tantes no consumo alimentar no verão e entre os peixes mais preferidospelas populações do Rio Negro (Silva, 2003). Entretanto, uma das es-pécies, o tucunaré-paca ou podrão (Cichla temensis), deteriora-se maisrápido que o usual, o que torna esta espécie em particular menos apre-ciada pelos consumidores.

Fatores como coloração, consistência, sabor, cheiro, densidade (prin-cipalmente a quantidade de gordura), aparência, comportamento e eco-logia do animal são critérios elegidos para a preferência de certas espé-cies de pescado. Espécies como aruanã (Osteoglossum spp.), traíra (Hopliasmalabaricus), jacundá (Creinicichla cf. lenticulata), carauaçu (Astronotuscrassipinnis) e cará-bicudo (Satanoperca lilith) foram citadas como poucoapreciadas para consumo por ter a “carne mole” e “sem gosto”. Por ou-tro lado, os peixes de dieta onívora com tendência à herbivoria (porexemplo, frutos, flores e artrópodes), como os pacus e aracus (Silvano etal., 2007), são apreciados e considerados de qualidade superior pelosabor mais suave da carne, sendo citados como preferidos por mais de60% dos entrevistados. Os grandes pimelodídeos, como a pirarara(Phractocephalus hemioliopterus) e o surubim (Pseudoplatystomafasciatum), são apreciados pelo sabor acentuado da carne e pela elevadaquantidade de gordura.

O consumo de peixe é determinado pelas variações ecológicas sazo-nais, pela oferta de captura nas pescarias e pelas escolhas do que écomercializado ou consumido. Antes de vender ou doar parte do pesca-do capturado, os pescadores guardam suas espécies favoritas e aquelascom baixo valor comercial. Carás, traíras e aruanãs são exemplos de pei-xes de escama não muito apreciados, mas bastante consumidos em Bar-celos durante o período de escassez de pescado no inverno. A cabeça degrandes pimelodídeos, como a piraíba (Brachyplatystoma filamentosum),também costuma ser reservada para consumo. Outro exemplo inclui os

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daguirus ou peixes da noite,12 diversas espécies de pequenos bagres per-tencentes às famílias Doradidae, Auchenipteridae e Heptapteridae, en-tre outras. Os daguirus geralmente destinam-se ao consumo, principal-mente em Santa Isabel do Rio Negro, devido a sua baixa aceitação nomercado local. O consumo de daguiru não foi registrado em Barcelos, oque pode estar associado às diferenças na distribuição geográfica dessasespécies ou à maior oferta de outras espécies preferidas para consumo.

Os animais de caça e quelônios são extremamente apreciados pelosribeirinhos por constituírem uma ruptura na monotonia alimentar docardápio diário, em geral constituído por peixe. As espécies animais decaça mais citadas como comuns e preferidas para consumo incluem osgrandes mamíferos terrestres, entre eles, a anta (Tapirus terrestris), a quei-xada (Tayassu pecari), o caititu (Tayassu tajacu) e a paca (Agouti paca)(Tabela 2). A carne de anta salgada e cozida no leite de castanha é consi-derada uma iguaria, da mesma forma que a carne de certos animais decaça cozida no suco (“vinho”) de frutas de palmeiras, como a bacaba e opatauá (Oenocarpus spp.).

A carne e os ovos dos quelônios aquáticos (bichos de casco) são con-siderados uma iguaria na culinária amazônica em geral (Murrieta, 1998,2001; Rebêlo & Pezzuti, 2000). Os bichos de casco preferidos para con-sumo pelos entrevistados incluem a irapuca (Podocnemis erythrocephala)e o cabeçudo (Peltoderus dumerilianus) (Tabela 1). Os animais maiores,como a tartaruga (P. expansa) e o tracajá (P. unifilis), são direcionadospara os mercados urbanos como Manaus por serem mais valorizadoscomercialmente, enquanto os animais menores são consumidos pelaspopulações interioranas do Rio Negro, como foi observado também porPezzutti (2004) no Parque Nacional do Jaú, Baixo Rio Negro. Ainda, éimportante salientar que a extração de quelônios e animais de caça ocorrenum contexto de rigorosa proibição legal e de conflitos com as agênciasambientais governamentais.

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A captura dos bichos de casco e a coleta de seus ovos13 ocorrem emlugares praiados e arenosos, como restingas, campinas, damiçás (área deterra firme que na época da inundação transforma-se temporariamenteem ilha) e queimadas, principalmente durante o verão amazônico (esta-ção seca), entre os meses de setembro a dezembro. Os ovos do cabeçudosão mais difíceis de serem localizados porque sua desova ocorre entretroncos e galhos do igapó e nos buracos dos barrancos nos lagos na épo-ca da vazante (julho), motivo pelo qual essa espécie é mais abundantena natureza (Rebêlo & Pezzutti, 2000). Os “mais antigos” dizem que oóleo extraído dos ovos era utilizado na culinária local, mas esse hábitofoi abandonado devido à substituição pelos óleos industrializados. Ain-da, a extração de ovos de camaleão para consumo nas ilhas do Rio Ne-gro foi relatada por uma família em Barcelos, embora seu consumo nãoseja usual.

Aversões alimentares temporárias: o tabu da reima

Os animais reimosos são evitados por aqueles que tenham feridas, erup-ções cutâneas e doenças inflamatórias, ou ainda pelas mulheres nos pe-ríodos de menstruação, gravidez ou pós-parto (resguardo) (Tabela 3).O número de animais reimosos e não reimosos citados pelos entrevis-tados não diferiu entre homens e mulheres, entretanto, as mulheresapresentaram respostas mais homogêneas em relação aos homens (Ta-bela 4). Além disso, cinco homens14 disseram não conhecer o termo“reimoso”, enquanto, entre as mulheres, apenas uma entrevistada nãosoube defini-lo.

As observações realizadas nas unidades domésticas estudadas em Bar-celos e Carvoeiro, quanto ao consumo das espécies evitadas e permiti-das, são congruentes às citadas nas entrevistas (Tabela 5). Entre as espé-

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cies amplamente permitidas para consumo pelos convalescentes em es-tado de liminaridade, estão os “peixes de escama”, como aracus, pacus,carás e traíra, aves domésticas (frango) e pequenos mamíferos como acotia, considerada não ofensiva devido à dieta vegetariana à base de fru-tos. Entretanto, tais regras nem sempre são obedecidas porque, apesarde conscientes quanto aos riscos da quebra do tabu, o alimento proibi-do pode ser a única opção do cardápio da casa. Assim, como discutidopor Murrieta (2001), as práticas subjacentes parecem ser bastante nego-ciáveis e dependentes do contexto e do momento.

Os animais reimosos representam categorias liminares, tanto pelascaracterísticas morfológicas quanto comportamentais (Maués, 1990).A reima é associada aos animais de dieta carnívora (“come outro tipo depeixe”), como as piranhas e os peixes lisos, ou de dieta onívora (“peixeque come todo tipo de comida”), ao sabor (“carne mais forte, outro gos-to”), ao comportamento ou, ainda, às características físicas do animal,como tipo de coloração, presença de esporão, quantidade de gordura,entre outros. Entre os caiçaras da Mata Atlântica no Sudeste brasileiro,Begossi (1992) constata que as razões para os tabus segmentares de certasespécies de peixes incluem formato, aparência, cheiro ruim, comporta-mento agressivo, dentes conspícuos, ausência de escamas, carne forteou “carregada”, hábito de comer lodo e presença de sangue. Os critérioscomo o comportamento agressivo e a presença de dentes são associadosaos hábitos carnívoros, enquanto o comportamento de comer lodo re-laciona-se à alimentação detritívora.

Os peixes lisos ou peixes sem escamas (pimelodídeos) constituem ogrupo mais citado como reimoso pelos entrevistados (70% das citações).Exemplos incluem filhote (Brachyplatystoma spp.), surubim (Pseudopla-tystoma fasciatum), mandi (Pimelodus spp., Pimelodella spp.) e jandiá(Rhandia spp.), os quais são considerados reimosos pela presença de “es-porão”, que provoca dores nos ferimentos (“peixe com esporão faz mal

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devido às esporas”; “surubim e mandi espeta, faz mal para dores”; “su-rubim e jandiá é remoso porque tem esporão”). O esporão seria, por-tanto, a própria arma do peixe que, por meio do consumo da carne doanimal, atingiria a pessoa que transgrediu o tabu (Buchillet, 1988).

Os bagres em geral (siluriformes) são proibidos para consumo, tantoespécies marinhas quanto de água doce. Entre diversas populaçõeshumanas estudadas em áreas continentais e costeiras da Mata Atlânti-ca15 (Begossi, 1992; Begossi et al. 1999, 2004; Seixas & Begossi, 2001)e da Amazônia (Moran, 1974; Smith, 1979, 1981; Begossi & Braga,1992; Murrieta, 1999; Begossi et al. 2004), propõe-se que as restriçõesalimentares referentes aos peixes considerados reimosos ou carregados (emgeral carnívoros e detritívoros) seriam um comportamento adaptativohumano para evitar o consumo de substâncias tóxicas presentes nosanimais do topo da cadeia alimentar (Begossi & Braga, 1992; Begossiet al. 1999, 2004).

Ainda, certas espécies são consideradas reimosas devido o excesso degordura, como os peixes de couro (por exemplo, jandiaçu, pirarara), opirarucu (Arapaima gigas) e o peixe-boi (Trichechis inunguis). A reimado peixe-boi pode estar associada ainda a seu caráter híbrido e anormal,sendo ele “um peixe que mama”. Smith (1981), estudando comunida-des pesqueiras do Rio Amazonas, concluiu que os peixes consideradosreimosos são aqueles que contêm um elevado conteúdo de gordura. Poroutro lado, Begossi e Braga (1992) observaram que os peixes gorduro-sos não tendem a ser tabu alimentar entre as populações do RioTocantins, ao contrário, os autores observaram uma preferência por pei-xes gordos na região estudada. Entretanto, vale recordar que a maioriadas espécies de peixes de escamas, como a sardinha, o matrinxã e o pacu,tem muito mais gordura do que os peixes lisos ou de couro, devido avários fatores, como dieta alimentar, período de migração e desova, en-tre outros (Junk, 1976 apud Smith, 1981).

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As piranhas em geral foram citadas como reimosas por mais de 60%dos entrevistados. A reima é associada a seus atributos físicos, como pre-sença de dentes (“a piranha tem dente, ela rói a ferida”), dieta generalista(“piranha come tudo [...] por isso ela tem a carne contaminada”) e com-portamento de canibalismo – atributos que a incluem na categoria de“animal impuro”. Entre as populações caboclas do Rio Amazonas, a pi-ranha é considerada poluída e passível de restrições, pois “come carnede bicho morto” e, assim, pode apodrecer a carne do paciente (Murrieta,1998). Por outro lado, é considerada um alimento fortificante, por cau-sa da grande quantidade de sangue nos tecidos.

Os quelônios (“bichos de casco”) são apontados como reimosos, comexceção da irapuca, considerada como “não ofensiva”. Todos os bichosde casco são considerados reimosos por causa de seu comportamento(“todos eles arranham”). Parte dos entrevistados aponta os machos comoreimosos, mas estes perdem a reima quando castrados, enquanto as fê-meas são permitidas aos doentes (“[...] quiri [tracajá macho] e capitari[tartaruga macho] é remoso, mas se capar vivo pode comer”). Assim, apreparação do animal destinado ao consumo funcionaria como elimina-dor de risco, tal qual como para certos animais de caça, como o machoda anta, que pode ser consumido depois de castrado. Pezzuti (2004) rela-ta que as espécies com hábitos predominantemente herbívoros (Podocne-mis erythrocephala, a irapuca) são preferidas entre as populações ribeiri-nhas do Parque Nacional do Jaú no Rio Negro, enquanto aquelas dehábito carnívoro (Chelus fimbriatus, o matamatá) e onívoro (Geochelonecarbonaria e Geochelone denticulata, os jabutis) estão sujeitas a tabus.

Entre os animais de caça, o caititu ou porquinho (Tayassu tajacu) foio mais citado como reimoso, incluindo 70% dos entrevistados (Tabela3). O porquinho é reimoso devido a seu hábito onívoro (“[...] porquinhocome de tudo, do calango à cobra”), fato reforçado pela literatura (frutas,sementes de palmeiras, cobras e outros animais) (Emmons, 1999). Por

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outro lado, a queixada (Tayassu pecari) foi considerada reimosa por 18%e inofensiva por 36% dos entrevistados, pois sua dieta é baseada em fru-tas, sementes e plantas, de acordo com os entrevistados (“[...] queixadacome só frutos do mato, tucumã, inajá”) e a literatura (ibid.). Assim, ocaititu se assemelharia mais ao porco doméstico por causa de sua dietageneralista, por comer de tudo, inclusive, animais rejeitados para consu-mo humano, como é o caso de cobras e calangos.

Os grandes mamíferos terrestres como a anta, a paca e o veado, em-bora vegetarianos, estão sujeitos a tabus. A anta (Tapirus terrestris) foicitada como reimosa por 44% dos entrevistados e permitida para doen-tes por 19%. A classificação da anta como espécie reimosa foi associadaao hábito generalista (“animais reimosos, como a anta, comem de tudo”).A carne de veado foi citada como pouco apreciada por alguns entre-vistados, pois “embola o estômago”, “incha o olho e provoca tontura”.O veado-vermelho (Mazama americana) é considerado reimoso, en-quanto o veado-capoeira (Mazama gouazouriba) é permitido para doen-tes. A paca (Agouti paca) foi citada como reimosa por 33% dos entrevis-tados e não reimosa por 7% deles. A paca é reimosa porque mora emlocas (habitat) idênticas às da surucucu (“paca e surucucu moram namesma toca [...] paca é remosa porque tem o esporão da surucucu novergadinho dela”). Dessa forma, o consumo de paca, que tem contatocom a cobra, parece ser um fator de risco em situações liminares. Osribeirinhos acreditam também que a paca transforma-se em cobra (“[...]só não como também é surucucu, dizem que vira paca”). De modo si-milar, os mitos tukano contam que as cobras da terra, como a jararaca ea surucucu, transformam-se em paca e cotia, entre outros animais(Ñahuri & Kumarõ, 2003).

A familiaridade/não familiaridade consiste em outro fator importantepara definir o grau de periculosidade dos alimentos. Os animais domés-ticos como a galinha e o boi, por exemplo, são considerados saudáveis e

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inofensivos, enquanto o não familiar, distante e selvagem é imprópriopara consumo ou potencialmente ofensivo. Por outro lado, as aves sil-vestres, como o pato-do-mato (Chairina moschata) e a arara (Ara spp.),são proscritas. Isso também se aplica às frutas que, por serem consumidasin natura ou não cozidas, têm a perspectiva de um alto potencial agres-sivo. Além dos animais, as frutas ácidas ou gordurosas (por exemplo,açaí, abacaxi, manga, cupuaçu) e a pimenta também são evitadas16 porserem alimentos considerados reimosos. Entre as frutas permitidas paraconsumo, estão o caju, a banana e o mamão.

De modo geral, entretanto, os atributos físicos, hábitos dietéticos ecomportamentais dos animais nem sempre consistem em fatores pre-dominantes para explicar o tabu da reima, tornando, por exemplo, aproscrição de animais carnívoros uma relação de causa-efeito questio-nável. A traíra (Hoplias malabaricus) é piscívora e, no entanto, ampla-mente indicada para a dieta dos convalescentes (Begossi, 1992; Begossi& Braga, 1992; este estudo). Os pacus e aracus são amplamente permi-tidos para doentes, enquanto o matrinxã (Brycon spp.) é consideradoreimoso, entretanto, todas estas espécies alimentam-se de frutos einvertebrados, de acordo com os informantes (“ele come é tudo o pacu,aranha, gafanhoto, fruta”) e a literatura (Goulding et al., 1988).

Uma das principais dificuldades de entender o que seja um alimentoreimoso é que a população pesquisada não tem um conceito claro sobrea reima. Quando inquiridos, respondem sempre com exemplos de co-midas reimosas e, se interrogados sobre o porquê do alimento ser consi-derado reimoso, as respostas não formam um padrão explicativo. Issoporque a reima não é uma qualidade inerente apenas ao alimento, masse associa sempre a uma situação: o alimento é reimoso para (referindo-se à associação do alimento com o organismo consumidor). Portanto, oalimento reimoso apresenta a relação individual entre cada organismo eo alimento que este ingere (Rodrigues, 2001, p. 142).

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Essa relação fica evidente quando observamos que as restrições ali-mentares observadas impactam principalmente as mulheres, sujeitoscentrais no sistema de tabus. O equilíbrio do corpo e da mente é o prin-cipal alvo de proibição das reimas: o pós-parto17 e a menstruação sãorepresentados como momentos de fragilidade e vulnerabilidade femini-na (Murrieta, 2001, p. 69). Segundo o autor, as proibições alimentaresteriam como conseqüência a proteção da mulher nas situações em queseu organismo está mais sujeito aos riscos de uma agressão externa e exis-te uma consciência da necessidade de resguardá-lo. Dessa forma, taisrestrições poderiam aumentar o controle sobre o corpo feminino do queé consumido por meio de uma rede de cuidados e atenções estabelecidaentre as mulheres, diminuindo as responsabilidades cotidianas de cui-dado com a prole e o trabalho doméstico. O frisson social em torno doparto criaria, assim, um universo de proteção social que diminuiria aatividade física e o estresse da mulher (id., 1998, 2000).

O consumo de certas espécies de peixes, como o carauaçu (Astronotusocellatus), pacu-galo (Myleus rubripinnis), aracu-pinima (Leporinusfasciatus) e tucunaré (Cichla spp.), é proibido especificamente para mu-lheres no puerpério, pois eles podem ocasionar manchas cutâneas namãe e/ou no recém-nascido durante o período de amamentação. Entreos povos tukano, no ritual de purificação e de transformação dos ali-mentos durante as fases de passagem, como o nascimento de umacriança, os rezadores limpam os desenhos e as “pinturas corporais” dospeixes. Essas pinturas, constituídas pelos mesmos materiais utilizadospelos índios (como o urucum que dá o tom vermelho do aracu-pinima),podem passar para o corpo do recém-nascido, tornando-o visível e maisvulnerável ao ataque dos Wai Masá (peixe-gente). As agressões dosWai Masá ocorrem principalmente nos períodos de passagem do ciclode vida, como nascimento, puerpério, ritos de iniciação e cerimoniais(Buchillet, 1988). Quando certas espécies de peixes não são citadas na

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reza de purificação, podem surgir doenças específicas relacionadas a es-pécies particulares (Cabalzar, 2005).

Em particular, o ritual da nomeação no momento do parto foi rela-tado por um curador baniwa residente em Barcelos, por ocasião do nas-cimento de seu neto, a fim de neutralizar o efeito nocivo dos alimentos.Os rezadores atuam por meio do acompanhamento de passagens do ci-clo de vida, que consiste na descontaminação e transformação dos ali-mentos, objetos e espaços, estabelecendo uma relação de sociabilidade ealiança entre os mundos animal e humano. Para tornar os alimentos se-guros, é necessário soprar encantamentos, que envolvem a listagem denomes exotéricos de todos os animais da classe relevante, junto com asinjunções perfomativas, que lavam, limpam, quebram ou neutralizamseus atributos maléficos e patogênicos (Buchillet, 1988; Hugh-Jones,2002). Na reza dos peixes e dos animais de caça, são citadas das espéciesmenores às maiores, e daquelas pouco gordurosas e com pouco sangueàs mais gordurosas e com muito sangue (Hugh-Jones, 1996).

A ingestão de um alimento reimoso pode prejudicar não apenas amulher (“mulher que come peixe reimoso sai sangue do umbigo dacriança”), mas aqueles que estão ligados física e emocionalmente a ela.Esse argumento também foi documentado entre os caboclos do Ama-zonas por Murrieta (1998, 2000). Entrevistados indígenas e não indíge-nas frisaram que o pai do recém-nascido deve resguardar-se do consumode todo tipo de carne, além de atividades como caçar e cortar madeira,sendo estes considerados comportamentos reimosos por prejudicar a ci-catrização do cordão umbilical do recém-nascido:

“[...] a criança ressente se começa a cortar pau, sangra o umbigo da criança

[...] homem de resguardo não pode cortar apuí, sororoca, nem descascar

envira, nem matá cobra [...] criança fica se espremendo, bota umbigo pra

fora.” (Piloto, 10/2/1999)

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“[...] no resguarde materno a mulher não come carne durante 6 dias, só

caribe […] o marido também faz resguardo […] a mulher grávida come

de tudo.” (Cumaru, 30/1/1999)

De modo similar, a aversão temporária ao consumo de carne pelospais do recém-nascido é comum entre diversas etnias indígenas alémdos povos tukano, tais como Kayapó, Sirinió, Xavante, Tukuna e outros(McDonald, 1977).

Outro exemplo de comportamento reimoso é o contato de mulheresmenstruadas ou gestantes com pessoas picadas por cobras (“ninguémpode ver a pessoa picada de cobra, porque tem muitos que tem olhosvenenosos [...] mulher menstruada, gestante, isso é o pior veneno domundo” – Barcelos, 10/4/2000). Além disso, muitas doenças deixamreima depois de curadas, como é o caso do sarampo, da malária e dasdoenças cerebrovasculares.18

Dessa forma, os alimentos nutrem, protegem e garantem a manu-tenção do equilíbrio do corpo, mas, se mal usados, tem a capacidade deagredir o organismo, provocando ou agravando doenças. SegundoRodrigues (2001, p. 139), a explicação para isso deve ser buscada tantonas categorias classificatórias dos alimentos quanto na relação do ali-mento com o corpo humano, que constituem um sistema de trocas di-retas e efeitos recíprocos. A compatibilidade do corpo com o alimentodeve ser entendida como a capacidade que o organismo tem para resis-tir a seu efeito, pois cada pessoa reagirá de maneira diferente, conformesua condição orgânica, à capacidade agressiva dos alimentos. Esse po-tencial está ainda acondicionado à forma como eles são preparados econsumidos (por exemplo, alimentos cozidos são menos perigosos quealimentos crus).

Assim, a condição de reimoso, atribuída a um alimento, não é per-manente nem é a mesma em qualquer circunstância. Ela nasce da rela-

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ção do alimento com o organismo que o ingere, e é só por essa relaçãoque ganha sentido. Etimologicamente, reima ou reuma origina-se dogrego e significa a corrente de um líquido ou o fluxo de um humor or-gânico, enquanto reimoso é tudo aquilo que provoca reima. Assim,reima é o fluxo dos humores, e reimoso é aquele alimento ou atitudecapaz de perturbar esse fluxo (Rodrigues, 2001, p. 141). Tanto o ali-mento quanto o comportamento reimosos estão relacionados a ocasiõesem que esses fluxos aparecem, durante a menstruação, puerpério, dis-túrbios intestinais, ferimentos ou expectoração. Nessas ocasiões, quan-do os humores são expostos, o organismo mostra-se mais vulnerável e oalimento reimoso possui a capacidade potencial de perturbar esse fluxo.A reima associa-se ainda ao sangue e a sua qualidade de ser quente, oque cria a tendência de definir reimoso como algo que é quente19 (ibid.).

Essa forma de definir o reimoso pode justificar a falta de uniformi-dade na classificação dos alimentos, pois o mesmo alimento pode ser ounão considerado reimoso dependendo da pessoa e do contexto. Essa as-sociação pode ser estabelecida com base em dois conceitos: a reima dadoença e as atividades reimosas. A interligação sugere que a reima é rela-cionada ao organismo e não aos alimentos. As doenças ou certas ativi-dades provocam a reima, ou seja, interferem no fluxo normal dos hu-mores e geram ou agravam estados patológicos (id., p. 142).

Animais rejeitados para consumo

Com relação às aversões alimentares, foram citadas 32 espécies de pes-cado e 28 espécies de animais de caça rejeitadas para consumo, 42% dosentrevistados disseram que consomem todas as espécies de peixes e 12%não fizeram restrições com relação aos animais de caça (Tabelas 2 e 3).Além dos peixes, certas espécies de répteis (cobras, quelônios e jacarés) e

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mamíferos (boto) que vivem no ambiente aquático são considerados“peixes” pela população ribeirinha, sendo evitados como alimento. Di-versos peixes lisos (Ordem Siluriformes) foram citados como poucoapreciados para consumo por serem considerados reimosos, tais como odaguiru, mandubé, jandiá e pacamum, entre outros.

Entre os peixes evitados para consumo, por ter paladar, cheiro e/ouaparência desagradável, estão a arraia (Potamotrygon spp.), o jeju (Hople-rythrinus unitaeniatus) e o candiru (Cetopsidae). Os elasmobrânquios,incluindo as arraias e cações, são evitados tanto em comunidades pes-queiras da Amazônia quanto da Mata Atlântica, mesmo por pessoas sau-dáveis (Begossi & Braga, 1992; Begossi et al., 2001). A aversão humanaa elasmobrânquios é evidenciada pela associação ao “cheiro ruim” deurina, por causa das altas concentrações de amônia na carne desses ani-mais, que se deteriora muito rapidamente. O candiru e o mamaiacu(Asterophysus batrachus) são evitados por sua aparência (“o bicho é mui-to feio”). O candiru é ainda conhecido como parasita, inclusive de teci-dos humanos. O jeju é evitado porque tem a carne “adocicada”, “semgosto” e “solta leite da toba” (o “leite” foi descrito como o esperma dopeixe que é liberado durante o período reprodutivo).

Certos animais de caça também são evitados para consumo por ra-zões utilitárias associadas a paladar, aparência e/ou cheiro desagradável.O cheiro ruim (“pitiú”) é atribuído ao tipo de dieta consumida por ani-mais como tamanduá, tatu, raposas, jacarés, porco-espinho, preguiça,quati e felinos, entre outros. O tamanduá, por exemplo, é evitado pelosabor ruim, cheiro forte de formiga e consistência dura da carne (“nãogosto da carne”; “já provei, não vai”; “nunca comi a carne, diz que édura”). As raposas (mambira, mucura, ariri) são evitadas por causa docheiro ruim e sabor desagradável devido à dieta desses animais, consti-tuída por cupins e formigas (“o bicho fede que só”; “ele só come cupim,tem um gosto de cupim doido”). A irara (Eira barbara) é evitada porque

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come mel e por isso sua carne tem sabor adocicado. Os tatus e jacaréssão evitados por causa do cheiro desagradável e da consistência “dura”da carne (“tem um cheiro ruim”; “o bicho fede que só”; “eu já experi-mentei e não vai”; “eu nunca comi, não tenho vontade”; “tem carne dura,tem um pichézinho de formiga”; “eu já comi e não deu certo”; “porquenão vai mesmo”). Do mesmo modo, a capivara não tem sabor aprecia-do por ser considerada uma carne dura.

As cobras e os animais que possuem aspectos físicos semelhantes aelas, como o matamatá (Chelus fimbriatus), o sarapó (Sternarchorhynchusmormyrus, Sternopygus cf. macrurus, entre outros peixes da famíliaGymnotidae) e o poraquê (Electrophorus electricus), são rejeitados peloaspecto desagradável, cuja aparência provoca forte incidência de horror(Rea, 1981). O poraquê foi o peixe mais citado como rejeitado paraconsumo pelos entrevistados por causa do cheiro forte (“é muito pitiú”)e da aparência do corpo (“dá uma impressão que é cobra”). As cobrassão animais carregados de significados mitológicos em diversas culturase, em particular, representam o símbolo da criação humana na mitolo-gia indígena dos índios rionegrinos (Ñahuri & Kumarõ, 2003). As co-bras aquáticas, como a sucuri (cobra grande) e a surucucu, bem comocertas espécies de peixes, como o poraquê, o tucunaré e o mussum, sãoconsideradas entidades protetoras dos peixes20 (“mães de peixe”).Reichel-Dolmatoff (1971, p. 207) afirma que as cobras aquáticas ocu-pam uma posição especial em relação aos peixes, sendo consideradasprogenitoras deles. Elas aparecem no começo da estação chuvosa, quan-do os peixes sobem para desovar nas cabeceiras, e protegem a desova(Ribeiro, 1995).

Os macacos constituíram o terceiro grupo mais citado como rejeita-do para consumo pelos entrevistados. Em torno de 13% dos entrevista-dos declararam não comer carne de macaco devido a sua semelhançacom humanos (“ele tem jeito de gente”; “achei ruim, parecia cabeça de

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gente”; “não gosto de macaco, é imoral que só”). Parte dos entrevistados(sobretudo indígenas) mencionou que os macacos já foram humanos(“macaco antigamente era gente, gente antigamente era macaco”; “a car-ne desses animais era da gente, então não dá pra comer, faz mal”).Na cosmologia ameríndia, os mitos contam que os animais são espíritos(“ex-humanos”) que perderam os atributos herdados ou mantidos peloshumanos (Viveiros de Castro, 1996).

Os macacos são evitados ainda por causa do cheiro desagradável dacarne (“tem um pichézinho de cachorro”). Durante as observações decampo em Carvoeiro, um homem recusou-se a comer carne de guariba(“a carne é até sadia, mas não sei por quê”). Não obstante, o tabu domacaco revela uma situação ambígua entre discurso e práxis. Prova dis-so é que o consumo de macacos foi observado em diversas ocasiões du-rante o trabalho de campo. Em 119 registros de caça realizados em Bar-celos, foram efetuadas 12 capturas de diferentes espécies (por exemplo,guariba, macaco-prego, macaco-bicó e macaco-uacari) para consumo ecomércio (Silva & Begossi, 2004). Como enfatizado pela literatura, osprimatas são largamente consumidos por populações humanas na re-gião amazônica, tanto por indígenas quanto por mestiços (Alvard, 1993,1998; Bodmer et al., 1994; Robinson & Bennett, 2000).

Os botos constituem outro grupo consensualmente evitado para con-sumo. Quando inquiridos do porquê de não comerem carne de boto,os entrevistados citaram o fato de o animal ter cheiro forte (“é muitopitiú”). O boto é visto como um competidor pelos pescadores, pois fre-qüentemente captura peixes no espinhel e estraga as redes de pesca21

(“não gosto do bicho”; “o boto é um bicho antipático, pega todo nossopeixe no espinhel”), mas raramente é morto propositalmente. Ademais,os botos são carregados de significado simbólico, sendo narrados comoanimais que se transfiguram em seres humanos e seduzem mulheres, ouainda como ex-humanos (“encantados”) que vivem em cidades submer-

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sas no fundo do rio. Na cosmologia desâna, o boto é um wái mahsá dosantigos, por isso não é morto nem comido pelos índios, às vezes, trans-forma-se em homem atraindo o sexo oposto, tendo capacidade aindade prever o futuro, a doença e o nascimento de uma criança (Ribeiro,1995, p. 181). O boto é um animal híbrido, sendo considerado “peixe”porque vive na água, entretanto, possui características como a amamen-tação e a sociabilidade, entendidas como essencialmente humanas.

A onça foi outro animal citado com freqüência como tabu alimentarpelos entrevistados, sendo notável sua importância como elementomítico entre os ribeirinhos. Segundo eles, o consumo da carne de onçapode ocasionar dor de cabeça, inchaço dos olhos e tontura. Por ocasiãodo trabalho de campo em 1999, um antigo morador de Carvoeiro rela-tou a transformação do pajé tukano em onça. Ainda, numa de suas pes-carias noturnas no igapó, ele teria ouvido sons emitidos pelo matinta-pereira, que também seria o pajé metamorfoseado em “encantado”(sobrenatural), conforme transcrevo das anotações do diário de campo:

Dois caboclos antigos de Carvoeiro relataram-me certa vez que o pajé

desâna, vindo do Alto Rio Negro, tem poderes mágicos de se transformar

em matinta-pereira e onça, um deles confirmando o fato com a evidência

de que “não tinha onça no varador antes de ele chegar”. Sr. Abílio disse

ainda que, quando o pajé era “novato” na área, ele ouviu o tal matinta

gritando três vezes durante sua pescaria no igapó à noite, então ele gritou:

“compadre, se tu fores meu amigo, vai tomar café em casa amanhã de ma-

nhã”. E adivinha o que aconteceu? O pajé foi o primeiro a aparecer para

tomar café na casa dele no dia seguinte.

A anta, embora freqüentemente capturada e apreciada para consu-mo de maneira geral, também é relatada como um animal que tem po-deres mágicos de se transformar em ser sobrenatural. Os pescadores

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relatam, por vezes, o aparecimento de uma anta “malhada” em certoslocais à noite, entre eles, no Lago do Limão, no Rio Quiuini:

“[...] a anta é mandingueira e perigosa, ela já me levou pro centro da mata

[...]. Anta se transforma em tanto bicho! [...] Eu já vi anta apitando e não

era anta, nunca mais vou pro centro do mato sozinho [...] você ouve apito

de anta, e vai ver não é anta, é visagem.” (pescador, Barcelos, 19/10/1999)

Diversas restrições alimentares são determinadas às pessoas que so-frem de doenças espirituais (“doenças de encante”). Por ocasião do tra-balho de campo, foram obtidos relatos orais de três homens que foramacometidos por “doenças de encante” durante as atividades produtivas.No primeiro caso, o pescador foi atingido pelo sapo-cunauaru duranteas atividades de pesca, por meio de feitiçaria (estrago), por não acreditarnos poderes mágicos do animal. O sapo-cunauaru foi descrito por di-versos informantes como um animal mandigueiro, feiticeiro e potencial-mente perigoso. Segundo Buchillet (1988), entre os povos indígenas doRio Negro, os seres protetores da natureza (“encantados”) são simboli-zados pelos animais-pajé, ex-humanos ou intermediários entre o mun-do animal e humano. Assim, o sapo seria um animal encantado, capazde castigar as pessoas que agem em desacordo com a ética da natureza.

No segundo caso, o pescador relatou ter visto um tucunaré gigantedurante as atividades de pesca, cuja visão teria ocasionado a ele um esta-do de “quase loucura”. No Rio Negro, tucunarés gigantes são considera-dos mães de peixe, que punem os pescadores que pescam excessivamen-te (Silva & Begossi, 2004). O tucunaré-paca, tucunaré-podrão ousarabiano (Cichla temensis), maior entre seus congêneres, é consideradomãe de peixe, sendo uma espécie carregada de significados míticos:

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“[...] tucunaré sarabiano é filho de açu, tem muita gente que não come.

Ele tem contato com a cobra, eu já vi a cobra dentro da boca dele. Eles

chamam de mãe de peixe, ela é vermelha e preta [...]. A gente não faz ques-

tão de pegar ele, quando ele sai da água já sai meio podre.” (Santa Isabel

do Rio Negro, 2/8/2005)

No terceiro caso, um pescador relatou que foi acometido por umadoença de “bicho do fundo” durante a pesca de bodó-seda (peixe orna-mental). O “encantado” teria atingido-o por meio de objetos, como ocacuri (armadilha de pesca) e o tajá (designação genérica de plantas dafamília Araceae).

“[...] quando chegou o dia de domingo, eu fui pescar bodó-seda [...]. Pare-

ce que veio alguém e deu uma panelada na minha cabeça, aí pulei na água

e, quando mergulhei, parece que levei uma pedrada no meu olho. Aí co-

meçou a arder e fui-me embora... Passei a noite com febre, no dia seguinte

apareceu uma pipoca no meu olho, aí ficou tudo infestado... Fomos atrás

do velho Alonso (pajé), acima do São Domingos. Aí o velho jogou água e

esmigalhou esse tal de pitiú. Da segunda vez que ele jogou água, saiu um

cacuri... Depois foi sarando, mas ainda ficou esse talo de tajá no meu olho

[...]. Aí ele fez outro trabalho, e no meio desse tajá tinha um espeto. Ele

disse que era a ponta desse espeto que eu sentia.” (Barcelos, 19/5/2000)

Nas três situações relatadas, os pescadores descreveram como sinto-mas das doenças de encante a ocorrência de alucinações, estados febris efortes dores de cabeça (“[...] pegou espírito na pessoa, aí ela adoece, ficaassustada, vendo gente, bicho, não pode dormir, fica com medo”). Oprocesso de cura ocorre por meio de benzimentos e orações realizadas

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por xamãs iniciados,22 banhos com plantas medicinais e defumações(Silva et al., 2007), além de eventuais restrições alimentares, incluindoa proibição do consumo de peixes grandes e de animais de caça de gran-de porte. As restrições alimentares nas doenças de encante, denomina-das “manjuba” (palavra da língua geral) no Alto Rio Negro, são relata-das também por Schweickardt e Gentil (2004, p. 49). A manjubaconsiste numa “situação de doença, ou um encantamento dos espíritos,que faz encontrar os preceitos morais da cultura e da natureza, ou seja,traduz o processo de desobediência às regras que estabelecem as relaçõesentre os seres humanos e a natureza”.

Assim, quem provoca a doença espiritual são os vários tipos de gen-te, os peixes, as pedras, as árvores e as águas. Isso nos remete à cosmo-visão indígena de criação do universo, segundo a qual o “Pai-Sol” crioulimitado número de animais e plantas, colocando tais categorias sob cui-dados específicos de seres espirituais ou “Mestres dos Animais”, que vi-vem dentro de rochas e no fundo dos rios, para protegê-los de eventuaisabusos (Reichel-Dolmatoff, 1976). Segundo Ribeiro (1995, p. 182), osDesâna acreditam que no centro da mata existem árvores onde se alo-jam os peixes, que eclodem dos troncos depois de chuvas prolongadas edo inchamento dos igarapés. Acreditam, ainda, que os peixes transmu-dam-se em aves.

Buchillet (1988) relata que os “encantados” atingem a pessoa quecomete excessos contra a natureza de duas formas: pelas armas ou pormeio da ingestão de carne contaminada (tabus alimentares). As armassão partes de seu corpo que podem atingir o indivíduo (como bater avítima ou projetar armas como flechas, machados e bastões). Comoexemplo, um curador baniwa relatou que realiza a cura de doenças deencantes por meio de sonhos e oração:

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“Doença de encante tem da água e do ar [...]. O encantado bate com fle-

cha quando ele quer levar pro mundo encantado [...] doença de encante

do mato é causada pelo mapinguari [...] ele bate na gente, fica aleijado,

com a perna toda adormecida, ele dá todo tipo de doença [...]. Tem mui-

tos, mas aquele é o chefe mesmo [...]. Mulher na mata atrai encante, o

homem pega como um tipo de estrago [...] aparece mais pra rezar bicho

batendo [...] estrago de bicho do mato e bicho da água às vezes é talo, às

vezes é pedra ou fio de cabelo.” (Barcelos, 20/05/2000)

Segundo Viveiros de Castro (2002, p. 348), as cosmologias amazô-nicas desconhecem a dicotomia entre natureza e cultura, ou seja, há umasociabilidade englobante, da qual a natureza é uma parte da sociedadecósmica onde coexistem humanos, plantas e animais. Dessa forma, aconcepção ameríndia suporia uma unidade de espírito e uma diversida-de de corpos, “o que há é uma diferença não de natureza, mas de grausentre os seres humanos, as plantas, os animais e as coisas”. Para Fausto,guerra e doença podem significar perspectivas de um mesmo evento:“aos olhos humanos, temos um ato de feitiçaria, que conduz a estadosmórbidos, mas, da perspectiva dos animais, trata-se antes de uma guer-ra de captura” (apud Schweickardt & Gentil, 2004). O xamã identificae nomina os elementos patogênicos (tipo e procedência da doença) pormeio de alucinógenos ou de sonhos, dialogando com outros seres pormeio dos encantamentos mágicos. Desse modo, há uma relação entreos mitos e a cura, é o xamã quem conhece essa origem, e sua interven-ção pressupõe o conhecimento do mito, que representa o início do pro-cesso de cura (Buchillet, 1988).

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Preferências, tabus alimentares e identidade

As preferências e aversões alimentares consistem numa expressão deidentidade que opera por meio da experiência e socialização (MacBeth& Lawry, 1997). Assim, as variações culturais do sistema de restriçõesalimentares atuam como um marcador étnico ou de grupo que podeexpressar o diversificado contexto étnico cultural do Rio Negro.

As “pessoas vindas do alto”, como os moradores locais designam osmigrantes indígenas provenientes do Alto Rio Negro, são apontadaspelos hábitos alimentares distintos, que incluem o consumo de certosalimentos socialmente rejeitados, como invertebrados (formigas, cupins,larvas de borboletas e gafanhotos), anfíbios (rãs) e répteis (cobras ecalangos). Com relação ao consumo de invertebrados, a maniuara, umaespécie de cupim,23 descrita como saborosa e de aroma agradável, éconsumida crua com sal, com tucupi ou no pirão de peixe cozido. Doistipos de saúva comestíveis, preta e vermelha (possivelmente do gêneroAtta sp.), foram relatados como sendo utilizados para consumo, os quaissão preparados fritos “como torresmos”. As lagartas de coleópteros dafamília Cerambycidae (Macrodontia cerviconis), localmente chamadas demuxiua, são capturadas nos frutos e troncos de palmeiras (inajá, tucumãe buriti) para consumo; sua gordura é utilizada como remédio parainchaço do baço. O consumo de diversas espécies de artrópodes temconsiderável relevância protéica no Alto Rio Negro (Dufour, 1987;Paoletti et al., 2001; Ribeiro, 1989). Ribeiro (1989) traz uma descriçãodetalhada dos invertebrados comestíveis entre os Desâna do Rio Tiquié,suas técnicas de captura, e o surgimento deles associados a certas cons-telações e chuvas ligadas aos ciclos econômicos naturais.

O consumo de cobra sucuriju foi relatado por uma Tukano em rela-ção a seus vizinhos içaneiros (etnia baniwa, família lingüística aruak daregião do Alto Rio Negro) (“[...] ela é içaneira, tem costume diferente

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da gente [...] come sucuriju” – Carvoeiro, 20/3/2000). Outro exemplorelatado por um caboclo, em tom de aversão, foi o consumo de jacuraru24

(espécie de lagarto), larvas de caba (espécie de vespa) e sapo juí (pro-vavelmente uma espécie de rã, visto que juí é o nome genérico das rãsem nhengatu) durante o inverno pelos Tukano residentes em Carvoei-ro. Rosin et al. (1997) expõem que as aversões alimentares adquiridaspor meio de estímulos culturais são freqüentemente utilizadas sobre oque os outros comem e bebem e que, por meio de tais aversões, diferen-tes grupos étnicos efetivamente mantêm nichos ecológicos distintos.Enquanto a aversão alimentar ontogenética relaciona-se essencialmenteà predisposição genética contra substâncias ofensivas, a aversão interpes-soal pode servir como marcador étnico ou de grupos. Em última ins-tância, a aversão é a “emoção da civilização” – proibição cultural pode-rosa que internaliza a rejeição de pensamentos e valores ofensivos.

Escolha versus disponibilidade

Os tabus alimentares tendem a se associar a comunidades humanas comelevada disponibilidade de recursos protéicos. Os tabus representam umluxo na medida em que ocorrem entre populações humanas com eleva-da disponibilidade de recursos (Ross, 1978) – o que se torna evidentepara as populações estudadas, as quais têm ampla disponibilidade e di-versidade de pescado. Portanto, é possível que as populações ribeirinhas,de modo geral, não necessitem consumir cobras, lagartos, arraias e ou-tros animais consensualmente rejeitados devido à relativa abundânciade pescado e outros recursos protéicos preferidos para consumo.

Por outro lado, as escolhas alimentares podem sofrer mudanças pelanecessidade, derivadas de fatores como condições ecológicas, desigual-dades socioeconômicas, variações sazonais ou migrações (MacBeth &

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Lawry, 1997; Mead, 1997). Alguns exemplos ilustram a influência des-ses fatores sobre o consumo de animais proscritos no Rio Negro. O ta-manduá foi o animal mais citado pelos entrevistados (25% das entrevis-tas) como tabu alimentar permanente devido ao sabor ruim, cuja carnecausa repugnância, sendo consumida apenas em caso de absoluta neces-sidade, ou seja, em situações de extrema penúria. Assim ocorreu emBarcelos, durante a pesquisa de campo numa das famílias observadas,no período de enchente, quando o pescado se torna escasso. Por causado insucesso na pescaria, o pescador dessa família capturou umtamanduá-bandeira (Myrmecophaga trydactila) para consumo. Assim,devido ao sabor desagradável da carne, acentuado pelo forte cheiro deformigas, os tamanduás são consumidos apenas em situações específicasde escassez alimentar.

Outro exemplo relatado pela agente de saúde de Carvoeiro foi o con-sumo da onça-pintada (Panthera onca) durante o inverno, apesar de elaser apontada como tabu alimentar permanente nas entrevistas. Um ter-ceiro exemplo foi o consumo do jacaretinga (Caiman crocodilus), regis-trado três vezes durante o trabalho de campo em Barcelos, apesar de osjacarés terem sido mencionados como o segundo grupo mais evitadopara consumo pelos entrevistados. Ainda, o consumo de aves de peque-no porte, como andorinhas, beija-flores e japiins, também foi observa-do no inverno. Segundo Huss-Ashmore e Johnston (1997), da escassezà extrema situação de fome, parece haver uma escala de mudanças emque alimentos geralmente evitados são consumidos. Os autores exem-plificam a ruptura de restrições alimentares em populações na África,onde as escolhas progridem da preferência pelo valor nutritivo até a sen-sação de saciedade e, em condições extremas, ultrapassam os limites dosabor, toxidade e proscrições culturais. Assim, as preferências alimenta-res humanas podem ser expressas onde as condições sociais e econômi-cas trazem a “luxúria de escolha”.

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Considerações finais

As escolhas e aversões alimentares resultam da interação entre diversosfatores, cujas motivações podem ser influenciadas por preferências indi-viduais, condições socioeconômicas, sazonalidade dos ciclos ecológicosdos recursos naturais e dinâmicas político-econômicas dos mercadoslocais e regionais (por exemplo, urbanização, acesso aos mercados consu-midores, entre outros) (Murrieta, 2001). O próprio conceito de prefe-rência alimentar pode mudar em diferentes sociedades. Como exemplo,a familiaridade e a saciedade são aspectos valorizados em sociedades tra-dicionais, o que se aplica ao Rio Negro, enquanto a idéia de monotoniaconduz à rejeição nas sociedades mais prósperas e industrializadas, ondeos indivíduos requerem status e novidade (McBeth & Lawry, 1997).

Os tabus alimentares proscrevem os mamíferos terrestres de médio egrande porte (por exemplo, macaco, anta, paca, veado), enquanto osanimais de pequeno porte (como aves e cotia) são geralmente permiti-dos para consumo no Rio Negro. Diversos tabus alimentares têm sidoassociados à proteção de espécies endêmicas, predadores de topo e espé-cies-chave, o que tem sido associado ao manejo e à conservação dabiodiversidade das florestas tropicais (Harris, 1977; McDonald, 1977;Rappaport, 1968; Reichel-Dolmatoff, 1976; Ross, 1978; Berkes, 1999;Colding & Folke 1997, 2000; Gadgil et al., 1993, 1998). Gross (1975)sugere que diversos tabus alimentares consistem num padrão adaptativodas populações nativas relacionado ao controle da caça, sobretudo deanimais de grande porte. Dessa forma, na interpretação materialista eecológica, a proteção de espécies terrestres de grande porte pode ter umarelação com as teorias de controle econômico e ecológico dos recursosnaturais, sobretudo considerando a baixa densidade desses animais emsistemas oligotróficos como o Rio Negro (Ross, 1978). Por outro lado,diversos autores têm demonstrado que justamente as espécies de grande

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porte são as mais caçadas por diversos grupos humanos (Hill & Hawkes,1983; Robinson & Bennet, 2000). Alvard (1993, 1998) propõe que abaixa densidade populacional humana, entre outros fatores, pode ope-rar como um mecanismo responsável pela manutenção dos estoquesnaturais de presas nas sociedades de caçadores-coletores.

As doenças espirituais têm sido interpretadas como proscrições decomportamentos humanos que podem evitar a exploração excessiva derecursos naturais, como caça, pesca ou coleta de produtos florestais(Moran, 1974; Reichel-Dolmatoff, 1976). Assim, tais regras podem terse desenvolvido na cosmologia indígena no passado como forma de pre-venção da sobrecaça no limitante ambiente das florestas tropicais.As narrativas míticas sobre as entidades sobrenaturais protetoras dos ani-mais (mães de peixe, cobra-grande etc.), relatadas pelos ribeirinhos, su-gerem que essas entidades representam agentes punitivos que contro-lam o uso dos recursos naturais por meio de feitiçaria ou da ingestão decarne contaminada (tabus alimentares). Com relação à carne contami-nada, as propriedades nocivas dos alimentos podem ser consubstanciadasno corpo humano: as manchas corporais de determinados peixes e ani-mais de caça, transmitidas por meio do aleitamento materno, expõemos recém-nascidos aos riscos da reima ou, na mitologia indígena, ao ata-que de seres sobrenaturais.

Por outro lado, diversos tabus alimentares podem estar relacionadoscom animais de importância mitológica e simbólica na cosmologia in-dígena do Rio Negro. Mais amiúde, os tabus alimentares revelam as re-lações entre o mundo humano e animal. A transmutação de animais éassociada aos mitos de criação indígenas, evidenciada em certos relatos,como a transformação da paca em surucucu, do pajé em onça, do botoem gente ou da cobra-grande em mulher. A cobra aparece em diversosmomentos: transforma-se em outros animais (como a paca), é um agenteprotetor (protege a desova dos peixes) e, ao mesmo tempo, punitivo

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àqueles que se comportam em desacordo com os princípios ético-mo-rais da natureza.

Com relação à reima, aspectos como dieta, comportamento e apa-rência física são fatores importantes para categorizar um animal comoreimoso ou não. Os animais com caracteres híbridos, difíceis de seremcategorizados (categorias confusas), como os peixes lisos (sem escamas)e os animais de dieta generalista (como as piranhas e o porquinho) sãoconsiderados impuros e, portanto, proscritos. Como enfatizado porDouglas (1966), a lógica de classificação da mente humana tende acategorizar os animais transacionais (híbridos) como potencialmenteperigosos. Finalmente, a sobreposição entre as diferentes correntes teó-ricas pode explicar as variações estabelecidas entre as preferências e ostabus alimentares. O sistema classificatório tem um eixo central, poden-do ser flexibilizado sob diferentes condições ecológicas e culturais.

Notas

1 Em primeiro lugar, gostaria de agradecer aos ribeirinhos do Rio Negro pelos sa-beres compartilhados, cuja preciosa e imprescindível colaboração consiste na es-sência desta pesquisa. Agradeço em especial a Rui S. S. Murrieta (Instituto deBiociências, USP) e Eduardo Viveiros de Castro (Museu Nacional do Rio de Janei-ro) pelas valiosas críticas e sugestões ao manuscrito. A Miguel Petrere Jr. e AlpinaBegossi pelo estímulo e oportunidade de realização deste estudo. A Salvador CarpiJr. pela digitalização do mapa. A Geraldo M. dos Santos, Janzen A. S. Zuanon(Inpa), pela identificação dos peixes coletados, a Antonio Vanin, pela identificaçãodos artrópodes, a Eleonore Z. F. Setz (Unicamp), pela revisão dos mamíferos cita-dos no trabalho, e a Jorge Tamashiro (Unicamp), pela identificação das plantascoletadas. Agradeço em especial à Fapesp que, por meio dos projetos de pesquisafinanciados (processos no 98/06027-6 e no 00/06098-0), possibilitou a realizaçãodesta pesquisa.

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2 De acordo com Colding e Folke (1997), tabus representam regras sociais não es-critas que regulam o comportamento humano, podendo ainda ser consideradasinstituições locais que limitam e definem o uso de recursos em ecossistemas porcomunidades humanas.

3 Colding e Folke (2000) classificam os tabus alimentares de acordo com as seguin-tes categorias: tabus segmentares, que determinam a utilização do recurso em fun-ção de categorias específicas (idade, sexo, status social); tabus de método, que regu-lam as técnicas de obtenção dos recursos naturais; tabus de história de vida, quandose restringe o uso das espécies dependendo do estágio ou ciclo de vida; tabus dehabitat, que restringem o acesso aos recursos no espaço; tabus temporais, com aces-so restrito no tempo; e tabus específicos, que conferem proteção total a determina-das espécies.

4 Nas regiões Nordeste, Sudeste e Sul do Brasil, a expressão reimoso costuma sersubstituída por carregado, que pressupõe uma série de supostos atributos como car-ne forte, gordurosa, capaz de causar inflamações em pessoas com doenças eferimentos (Begossi, 1992; Rodrigues, 2001).

5 Devido às características oligotróficas resultantes das condições supracitadas, os riosde água preta na Amazônia Central são comparados à “água da chuva” ou à “águadestilada”, dada sua pobreza em termos de nutrientes, sendo referidos na literaturacomo “rios de fome” (Chernela, 1985).

6 Os entrevistados da área rural do município de Barcelos compreendem as comuni-dades de Carvoeiro, Piloto e Cumaru, com, respectivamente, 159, 150 e 72 habi-tantes (dados de 1999).

7 Nheengatu ou língua geral é uma deformação do tupi-guarani, idioma dos grupostupinambá que ocupavam a costa durante a descoberta do Brasil, introduzida du-rante o século XVII pelos carmelitas, sendo importante na ampla rede de comércioestabelecida na região amazônica (Parker, 1985, 1989; Oliveira, 1995).

8 Os caboclos constituem o principal representante demográfico da Amazônia brasi-leira, correspondendo aos descendentes da miscigenação entre índios, europeus eafricanos (Moran, 1974; Parker, 1985, 1989). O termo caboclo tem sido usadocom muitos significados, em geral, referindo-se ao campesinato amazônico, con-trastando, primariamente, com ameríndios e colonizadores e, secundariamente,com populações urbanas e de classe média ou alta (Wagley, 1985; Parker, 1985;

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Nugent, 1993). Ainda, a relevância do termo em regiões particulares enfatiza anoção de identidade ou conotações de classe e ocupacionais, geralmente com cará-ter pejorativo (Chibnik, 1991).

9 Crédito informal concedido pelo patrão ao extrator, sob a forma de mercadorias desubsistência, em troca do trabalho extrativista (Leonardi, 1999).

10 Os comerciantes e missionários subiam até o alto curso dos rios para capturar (“des-cer”) índios para o trabalho escravo durante o período colonial (Nimuendaju apudOliveira, 1995).

11 Nos municípios de Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos têm sido construídosdiversos conjuntos habitacionais na periferia urbana nos últimos dez anos, cujascasas são doadas à população rural durante a campanha eleitoral como estratégiada (re)candidatura de políticos locais.

12 Conforme Ribeiro (1995), a pescaria de daguirus, segunda modalidade de pescamais utilizada no Rio Tiquié durante o inverno (cheia), é um termo em línguageral para designar a pesca de peixes noturnos (peixes da noite) associados a habi-tats específicos, como igarapés, corredeiras e lajes de pedra ao longo do rio. A iscautilizada é o daracubi, uma minhoca que sobe pelas árvores e se aloja nas orquíde-as durante a enchente, capturada nos igapós.

13 Diversos pratos são preparados com os bichos de casco: eles são assados ou cozi-dos (guisados); com seus órgãos internos, como o fígado, é preparado o paxicá e afarofa; e com o sangue faz-se o sarapatel. Os ovos de quelônios são consumidos devários modos: crus com farinha amarela de tapioca e açúcar (arabu); cozidos naágua com sal, misturados com farinha de trigo e açúcar e fritos no óleo (bolinhode trigo); guisados ou na caldeirada de peixe.

14 Quando indagado sobre os animais reimosos, um dos entrevistados comentou que“[...] hoje em dia não tem mais isso, tem uma ferida, tomou antibiótico, não temmais nada a ver” (Santa Isabel do Rio Negro, 15/4/2005).

15 Os peixes marinhos sem escama (denominados peixes de couro) da família Ariidaeou peixes que apresentam escamas muito pequenas ou ausentes (como bonito,cavala e sororoca, da família Scombridae) são evitados para consumo pelos caiçarasda costa litorânea brasileira por serem considerados carregados (Hanazaki &Begossi, 2000). Por outro lado, os mugilídeos (tainha e parati), consideradosreimosos, alimentam-se de substrato vegetal.

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16 As aversões alimentares com relação aos vegetais têm sido pouco exploradas naliteratura. Murrieta (1998) menciona os tabus temporários para frutas ácidas en-tre as comunidades caboclas do Pará.

17 As mulheres são proibidas de ingerir espécies reimosas durante o resguardo, quedura de 7 a 45 dias, pois a reima pode ocasionar problemas inflamatórios na mãeou atingir o recém-nascido por meio do leite materno. Nos primeiros dias depoisdo parto, é permitido apenas o consumo do caribé (mingau de farinha), passandodepois a certos tipos de carnes e frutas.

18 A classificação dos alimentos como “quente” e “frio” relaciona-se aos tabus seg-mentares em situações específicas, cujas proibições alimentares referem-se ao equi-líbrio corporal dos balanços humorais (Maués & Motta-Maués, 1978; Moran,1981). O conceito “quente” e “frio”, provocado por choques bruscos de tempera-tura, gera doenças como derrame, paralisia facial e corporal, que englobam epi-lepsia e acidentes cerebrovasculares em adultos ou se referem ainda a convulsõesinfantis devido a febres muito altas (Amorozo & Gely, 1988).

19 Segundo Rodrigues (2001), enquanto a oposição seco-úmido perdeu-se no cami-nho pelo qual esses conhecimentos chegaram até nós, a oposição quente-frio foiidentificada em vários estudos realizados no Brasil e na América Latina.

20 As mães de peixe remetem à categoria dos wái mahsá (peixe-gente), presentes namitologia sobre a criação do universo entre os povos indígenas do Alto Rio Negro(Buchillet, 1988; Ribeiro, 1995).

21 Os olhos e órgãos genitais dos botos mortos em malhadeiras são retirados e usadoscomo remédio caseiro ou amuleto para atrair o sexo oposto.

22 Os iniciados na arte da cura e magia também são proibidos de comer peixe gran-de, pois, de acordo com a tradição tukano, a carne de caça de alguns animais,como macacos, antas e onças, não pode ser comida porque estes podem vir a serseus inimigos. Os animais tinham antes a forma humana, e hoje utilizam másca-ras que ocultam sua verdadeira natureza (Schweickardt & Gentil, 2004).

23 Rainha de uma espécie de cupim amarelo, que sai em abundância do buraco dealgumas árvores depois da chuva em certas épocas do ano, da família Termitidae,do gênero Cornitermes (Ribeiro, 1995). Segundo os ribeirinhos, a maniuara é ali-mento do tamanduá e do tatu, proscritos por causa do forte cheiro de formiga nacarne desses animais.

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24 O jacuraru tem uso medicinal, sua banha é utilizada como remédio para incha-ção. Com a pele dele, faz-se defumação para “doença-de-criança” (derrames ouacidentes cerebrovasculares).

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FIGURA 1: Área de estudo

RORAIMA

AMAZONAS

0o

1 So

Cumaru (5)

Canafé (1)

Tapera(1)

Área de estudoe número de entrevistas

65 Wo 64 Wo 63 Wo 62 Wo

Sta Izabel (26)

ARQUIPÉLAGO DE MARIUÁ

Barcelos (33)

Piloto (6)

Carvoeiro (13)

Baunilha (1)

Laranjal (1)

Ilhinha(4)Maricota(2)Boa Vista(4) Chile(4)

Paricatuba (3)

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TABELA 1: Peixes e quelônios citados (%) como comuns (Co), preferi-dos (Pref ), proibidos (Tab), permitidos para doentes (Ntab) e rejeitadospara consumo (Rej) pelos entrevistados (n=104 entrevistas; espécies ci-tadas em mais de 1% das entrevistas)

Nome local Nome científico Co Pref Tab Ntab Rej

Anujá Parauchnepilens sp. 5 1 1

Aracu Leporinus spp. 99 60 101 50

Araripirá Chalceus macrolepidotus 6 6 1

Arraia Potamotrygon spp. 6

Aruanã Osteoglossum spp. 18 3 7 8 3

Barbado Pinirampus pirinampus 11 1

Branquinha Cyphochorax abramoides 2

Cabeçudo Peltocephalus dumerilianus 34 13 9 1

Cará Cichlidae (diversas espécies) 98 16 52 2

Carauaçu Astronotus ocellatus 3 2

Filhote, piraíba Brachyplatystoma filamentosum 59 11 29 3

Iaçá Podocnemis sextuberculata 1

Irapuca Podocnemis erythrocephala 28 16 8

Jacundá Creinicichla cf. lenticulata 20 2 3 5 3

Jandiá Rhandia spp. 8 3 9 1

Jaraqui Semaprochilodus spp. 2 4 5 3 1

Jeju Hoplerythrinus unitaeniatus 2 1

Mandi Pimelodus spp., Pimelodella spp. 11 1 15 2

Mandubé Ageneiosus spp. 12 2 3 1

Matrinxã Brycon cephalus 8 4 9 1

Pacu Metynnis spp., Myleus spp. 100 67 2 61

Pacu-galo Myleus schomburky 14 7

Peixe-boi Trichechis inunguis 1 14 1 1

Pescada Plagioscion spp., Pachyurus spp. 13 3 4 8 1

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Pirandira Hydrolycus tatauaia, H. wallacei 8 1 4

Piranha Serrasalmus spp. 49 12 58 2 3

Pirarara Phractocephalus hemioliopterus 56 13 8 8 2

Pirarucu Arapaima gigas 1 1 19

Poraquê Electrophorus electricus 10

Sardinha Triportheus spp.Argonectes longiceps 2 1 3

Surubim Pseudoplatystoma fasciatum 52 7 57 3 1

Tartaruga Podocnemis expansa 6 3 3 5

Tracajá Podocnemis unifilis 13 8 5 2 1

Traíra, privora Hoplias aff. malabaricus 50 6 3 31 1

Tucunaré Cichla spp. 80 16 15 21

Número de citações 917 296 359 324 131

1 Aracu-canati (Leporinus falcipinnis) e arucu- pinima (Leporinus fasciatus).

TABELA 2: Animais de caça citados (%) como comuns (Co), preferi-dos (Pref ), reimosos (Tab) e permitidos para doentes (Ntab) por maisde 1% dos entrevistados (n=67 entrevistas)

Nome local Nome científico Co Pref Tab Ntab Rej

Anta apirus terrestris 67 52 44 19 1

Capivara Hydrochaerus hydrochaeris 3 3 6

Arara Ara spp. 3 1 1 3 1

Ariri Didelphidae 1

Caititu, porquinho Tayassu tajacu 28 4 70 1 1

Calango Não identificado 3

Cobras Diversas espécies 13

Cotia Dasyprocta fuliginosa 24 6 28 1

Cotivara Dasyproctidae 4

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Guariba Alouatta seniculus 1 4 1 3

Inambu Tinamus sp. 3 16

Irara Eira barbara 6

Jabuti Geochelone spp. 4 12 1

Jacamim Psophia crepitans 3 1 8

Jacu Penelope (jacquacu) 6 1 6

Macaco cairara Cebus albifrons 3

Macaco-prego Cebus apella 3 1 1 3

Macacos Cebidae 12

Mambira Didelphidae 10

Maracajá Leopardus wiedii 3

Mico-de-cheiro Saimirus sciurus 1

Mucura Didelphidae 6

Mutum Crax spp. 4 3 7

Onça Panthera onça 7

Paca Agouti paca 49 24 33 7 1

Papagaio Amazona spp. 3 1 4

Pato-do-mato Chairina moschata 1 4 1

Porco-espinho Coendou prehensilis 3

Preguiça Bradypus variegatus 3

Quati Nasua nasua 3

Queixada Tayassu pecari 58 28 18 36

Tamanduá Myrmecophaga tridactyla 3 25

Tatu Dasypus novemcinctus, 4 1 3 12

Priodontes sp.

Tucano Ramphastus spp. 1 1 6

Urumutum Mitu sp. (?) 1

Veado Mazama americana, 40 10 10 21 1

M. gouazouriba

Numero de citações 212 105 173 111 98

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TABELA 3: Situações liminares relacionadas à reima, mencionadas du-rante as entrevistas

Estados fisiológicos proibitivos Total %

Ferida, inflamação, golpe, infecção, cicatrização 56 54

Mulher de resguardo (puerpério) 15 15

Todas as enfermidades 10 10

Mulher menstruada 8 8

Doenças de pele (coceira, impingem1) 5 5

Doença feia (câncer, tumor) 3 3

Mulher (operada, com inflamação, anêmica) 3 1

Febre 1 1

Malária 1 1

Dor de dente 1 1

Número de citações 103

1 Micose.

TABELA 4: Animais citados como reimosos e permitidos para consu-mo pelos entrevistados (n=57 homens e 47 mulheres)

Homem Mulher

Reimoso Não reimoso Reimoso Não reimoso

Média 4.631 4.04 4.721 4.35

DP 2.58 3.01 2.01 1.93

Citações 241 213 222 209

1 Chi-quadrado= 0,22; g.l.=1; p>0,05.

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TABELA 5: Restrições alimentares observadas nas unidades domésticasem Barcelos (n=37) e Carvoeiro (n=10), entre 1999 e 2000.

Sexo Idade Estado Alimentos Alimentos

de liminaridade proibidos consumidos

M 65 Derrame Piranha, Surubim Pacu, aracu, cará

Peixes lisos

M 60 Ferimento Piranha, Pimenta Jabuti, peixes lisos2, tartaruga2

M 20 Cachumba Piranha Papagaio

M 7 Febre Manga Frango

M 3 Ferida cutânea Anta Paca

F 51 Ferimento Jaraqui Traíra

F 50 Febre Pirarara Carne de gado

Frutas ácidas e açaí Mamão, caju, banana

F 20 Febre, gripe forte Peixes lisos Pacu-galo, matrinxã1

Castanha, açaí1

F 18 Pós-parto Carauaçu, tucunaré1 Frango

F 39 Aborto - Aracu, tucunaré, cará, traíra

F 65 Problemas Filhote, surubim Cotia

na vesícula e fígado

F 65 Derrame - Cará-peneira

F 78 Derrame - Mingau de farinha

F 40 Ferimento Surubim, Piranha Frango

Caititu, Açaí

F 60 Febre forte Açaí Paca

F 22 Pós-parto Tucunaré Frango

F 25 Pós-parto Abacaxi, açaí Frango, banana

F 32 Pós-parto Abacaxi Frango

1 A observada ingeriu, mas relatou que passou mal.2 O observado mencionou que pode fazer mal, mas ele comeu por falta de opção.

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REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2007, V. 50 Nº 1.

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ABSTRACT: At present article, I analyze the aspects related to choices andfood taboos among riverine populations settled in the Rio Negro (Amazonas,Brazil). It was interviewed 104 people (57 men and 47 women) and it wasobserved 47 domestic units the everyday practices regarding preferences andfood restrictions. The food choices are influenced by individual preferences,ecological, economic, social and cultural factors. Concerning the food ta-boo system, animals with hybrid characters or difficult to categorized, suchas scaless fishes and omnivorous animals, are subject of taboos. The overlapamong different theoretical chains is used to interpret the variations estab-lished among preferences and food taboos in the Rio Negro.

KEY-WORDS: food preferences, taboos, ecology, riverine population, RioNegro, Amazônia.

Recebido em novembro de 2006, aceito em julho de 2007.