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COMÉRCIO JUSTO: impactos, desafios e tendências em uma análise do debate internacional GILMAR LAFORGA CPF 058.268.208-88. Engenheiro Agrônomo, Professor Doutor do Departamento de Administração da Universidade do Estado do Mato Grosso – UNEMAT (Campus de Tangará da Serra). Rua Antônio José da Silva, 231N. Centro. Apto. 74. Tangará da Serra, MT. CEP 78300- 000. Correio eletrônico: [email protected] GRUPO DE PESQUISA 2: ADMINISTRAÇÃO RURAL E GESTÃO DO AGRONEGÓCIO FORMA DE APRESENTAÇÃO: APRESENTAÇÃO EM SESSÃO SEM DEBATEDOR

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COMÉRCIO JUSTO: impactos, desafios e tendências em uma análise do debate internacional

GILMAR LAFORGA CPF 058.268.208-88. Engenheiro Agrônomo, Professor Doutor do Departamento de Administração da Universidade do Estado do Mato Grosso – UNEMAT (Campus de Tangará da Serra). Rua Antônio José da Silva, 231N. Centro. Apto. 74. Tangará da Serra, MT. CEP 78300-000. Correio eletrônico: [email protected]

GRUPO DE PESQUISA 2: ADMINISTRAÇÃO RURAL E GESTÃO DO AGRONEGÓCIO FORMA DE APRESENTAÇÃO: APRESENTAÇÃO EM SESSÃO SEM DEBATEDOR

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COMÉRCIO JUSTO: impactos, desafios e tendências em uma análise do debate internacional

RESUMO: As transformações observadas, e em curso, não apenas no meio rural brasileiro trouxeram grandes desafios e dificuldades como a exclusão de pequenos agricultores e de trabalhadores rurais substituídos pela crescente mecanização das atividades agropecuárias. Nessa perspectiva, o comércio justo surge como uma importante ferramenta para promover o acesso de pequenos produtores ao mercado. Em uma breve retrospectiva dos movimentos ligados ao comércio justo ou alternativo na Europa encontra-se seu possível embrião em fins do século XIX na Inglaterra e Itália com o desenvolvimento do movimento cooperativista o qual tentava e, ainda nos dias de hoje, construir uma via direta e integrada à economia cooperativa da produção ao consumidor final. Entendemos o termo “alternativo” como aquele que denota diferença, qual seja, os princípios e valores que orientam o comércio justo colocam pessoas e o seu bem estar, assim como a preservação cultural e do ambiente natural, antes do que essencialmente a busca do lucro. Nesse sentido, buscamos focar a análise no comércio justo a partir da perspectiva do debate internacional, demonstrando o impacto, as dificuldades e os desafios postos ao desenvolvimento desse tipo de iniciativa bem como identificar as principais mudanças em curso.

Palavras-chave: comércio justo; responsabilidade social, agricultura familiar.

1 Introdução

Nos últimos quinze anos, a consciência e a sensibilidade das condições sociais e ecológicas sob as quais os produtos foram produzidos tem crescido fortemente. Dessa forma, para algumas empresas, o risco de verem suas vendas caírem devido a uma imagem negativa é a principal razão para a implementação de critérios mínimos sociais e ambientais. Essa tendência, para maior consciência de padrões sociais, é uma extensão natural de tendências anteriores quando os consumidores em países desenvolvidos começaram a evitar comprar produtos com efeitos prejudiciais ao meio ambiente. A razão que se dá ao uso de códigos de conduta ou selos sociais é fruto, em especial, da decisão da primeira conferência ministerial da Organização Mundial do Comércio em 1996. Nessa conferência, ficou decidido que não seriam integradas cláusulas sociais em âmbito dos acordos multilaterais de comércio, e desde então, multiplicaram-se os mecanismos voluntários onde são incorporadas essas questões que ganham importância dia a dia. Desde então, uma variedade de instrumentos voluntários têm sido desenvolvidos na perspectiva de garantir a implementação de padrões sociais e ecológicos. Isso se tem dado especialmente no comércio entre produtores em países em desenvolvimento e consumidores de países desenvolvidos. Selos sociais do comércio justo Max Havelaar1, Transfair e outros organizados em torno da Fairtrade Labelling Organizations - FLO, e os códigos de conduta são duas concepções que tem recebido muita atenção desses consumidores.

A primeira organização de comércio justo em nível mundial foi fundada em 1959 na Holanda, e hoje se chama Fair Trade Organizatie - FTO. Essa organização

1 Max Havelaar era o nome de um romance do século 19 o qual fazia uma severa crítica ao tratamento dispensado aos trabalhadores nas plantações de café na Indonésia, à essa época uma colônia holandesa.

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utilizava um princípio diretor para decidir de quem comprar: “Wie wordt er beter van?”. Literalmente: “Quem se beneficia?” ou “Quais vidas se beneficiam quando compramos um determinado produto?”. Dessa forma essa organização somente comprava produtos onde, em sua origem, estavam os produtores (de produtos agrícolas, artesanatos etc) mais pobres, aqueles mais necessitados. Desde sua fundação até hoje, FTO, assim como a maior parte das organizações de comércio alternativo (ATOs), compram produtos das mais diversas estruturas de produção e de exportação. Por outro lado, já nos anos 80 uma auto-reflexão crítica conduziu à admissão que esse tipo de apoio refletia pouco em termos de comércio visto que as vendas de produto tendiam a permanecer insignificantes. A causa principal parecia óbvia: porque os produtos só estavam sendo vendidos em pontos alternativos e nas muitas formas de distribuição marginal, dessa forma o grande público consumidor não estava sendo alcançado. Novos modos precisaram ser achados para levar os produtos onde o consumidor comum realizava suas compras (supermercados principalmente). Surgi dessa reflexão a iniciativa de criar selos do comércio justo onde cada organização, inicialmente, tinha seus próprios padrões, comitês de produto e sistemas de monitoramento, o que culminou na criação de FLO em 1997, uma espécie de organização guarda-chuva. FLO é uma associação mundial das iniciativas de comércio justo que, entre outras atribuições, desenvolveu esforços para harmonizar critérios, criar um sistema de monitoramento independente para garantir credibilidade à certificação e transparência aos consumidores.

Nesse artigo buscamos focar a análise no comércio justo a partir da perspectiva do debate internacional, demonstrando o impacto, as dificuldades e os desafios postos ao desenvolvimento desse tipo de iniciativa. Para cumprir com esses objetivos, está organizado em 3 seções. A primeira parte trata de elencar os benefícios auferidos pelos pequenos produtores e por suas organizações ao alçarem acesso aos mercados do comércio justo – aqui a análise se dará especialmente para o café. A segunda seção trata de apontar e analisar as principais dificuldades e desafios e foca sua análise nas limitações da demanda e à criação de iniciativas por parte de grandes empresas no sentido de competir por esse espaço no mercado. Por fim, nas considerações finais, ressaltamos que parte das dificuldades do comércio justo em atender adequadamente às exigências características do mercado mainstream é fruto de sua própria trajetória (origem nas organizações do comércio alternativo, com feições mais ligadas à caridade), ou seja, está no mercado porém com práticas extracomerciais. Apontamos ainda as ameaças ao sistema oriundas das suas dificuldade de autofinanciamento.

2 Comércio justo internacional: algumas experiências na América Latina

A maior parte da literatura versa a respeito do produto pioneiro no comércio justo – o café – de maneira que pretendemos aqui apontar algumas das principais motivações e desafios encontrados nesses estudos além das conclusões apontadas por LAFORGA (2005) a partir da citricultura brasileira. O maior esforço liderado até o momento, ademais de algumas teses e trabalhos independentes, foi realizado por pesquisadores ligados à Universidade do Colorado - Fair Trade Research Group – FTRG.

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Em 2002 vários estudos foram levados a cabo em várias organizações de pequenos produtores de café2 na América Latina, especialmente no México, onde se encontram os grupos pioneiros e aqueles que mais tem participado das redes de comercialização do comércio justo, além de El Salvador, Guatemala, Costa Rica. Os produtores certificados pelo comércio justo para café apresentam características muito específicas, tais como uma grande presença de organizações que agrupam numerosas comunidades com forte presença indígena. LYON (2002) e VANDERHOFF BOERSMA (2002) apontam que a grande maioria do café produzido sob certificado comércio justo advém de comunidades indígenas e que as vendas sob condições justas tem contribuído à preservação dessas culturas e resgate de técnicas de produção ancestrais – a exemplo da cultura maia na cooperativa guatemalteca La Voz Que Clama en El Desierto ou nos agrupamentos indígenas de UCIRI.

Outra característica da produção de uma das mais importantes commodities do mundo é que 70% de toda a produção se realiza em propriedades com área menor de 25 acres (sendo a maioria entre 2,5 e 12,5 acres3), e envolve cerca de 125 milhões de pessoas na América Latina e África, predominantemente pobres – o mapa da produção do café e o da pobreza são parecidos (MURRAY, et al, 2003). Em países como El Salvador a situação é semelhante, onde cerca de 78% tem menos de 7ha, e que juntos cobrem 70% de toda a área cultivada em café desse país (MÉNDEZ, 2002), bastante distinto da situação encontrada na análise da certificação do comércio justo realizada por LAFORGA (2005) na citricultura brasileira, especialmente a paulista, onde as estruturas produtivas concentram-se em grandes propriedades.

A situação desses pobres se viu agravada pelas bruscas baixas nos preços internacionais do café. Agravando também a situação de pequenos países que dependem majoritariamente das exportações desse produto, e ainda criando legiões de desempregados. Só para se ter uma idéia dessa redução, as exportações mundiais caíram do patamar dos US$ 14,72 bilhões em 1997, sucessivamente, até atingir US$ 6,52 bilhões em 2002 (BRASIL, 2004).

A introdução do selo do comércio justo, inicialmente Max Havelaar na Holanda, de fato aumentaram em muito as vendas por disponibilizar os produtos certificados nos locais de grande acesso público. Porém a entrada de grandes distribuidores, retalhistas/varejistas tradicionais nas redes de comércio justo trouxeram consigo maior pressão sobre os produtores para estarem em conformidade às expectativas tradicionalmente exigidas por industriais e comerciantes (RAYNOLDS, 2002a).

2 No México: Unión Majomut (PEREZGROVAS & CERVANTES, 2002); Unión de Comunidades Indígenas De La Región Del Istmo – UCIRI (VANDERHOFF BOERSMA, 2002); Unión de Sociedades de La Selva (GONZÁLEZ CABAÑA, 2002); Coordinadora Estatal de Productores de Café de Oaxaca – CEPCO (ARANDA & MORALES, 2002); Sociedad Cooperativa Tzotzilotic Tzobolotic (MARTINEZ, 2002). Na Guatemala: La Voz Que Clama En El Desierto (LYON, 2002). Em El Salvador: Cooperativa de La Reforma Agraria Las Colinas e El Sincuyo (MÉNDEZ, 2002). Costa Rica: Consorcio de Cooperativas de Caficultores de Guanacaste y Monte de Oro – COOCAFÉ (LUETCHFORD, 2003). 3 1 acre = 0,40468564224 hectares ou 4046,8564224 metros quadrados.

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Apesar de estarem registrados no comércio justo 199 grupos de produtores4 de café, perfazendo 596.150 membros na América Latina, África e Ásia, há que se considerar um forte desequilíbrio das vendas, revelado por muitos dos casos estudados pelo FTRG. Alguns dados de 2002 revelam que apenas 13 grupos vendem 47% de todo o café no comércio justo (84% de todo o café do comércio justo vem da América Latina), o que significa que existem muitos que vendem pouco ou nada, e outros que possuem uma forte posição (isso também é válido para bananas onde 33% dos grupos registrados vendem 50% e 11% dos grupos de chá vendem 65,3%). Situação semelhante encontrada por LAFORGA (2005) onde 2 grupos brasileiros concentravam 75,5% de todas as vendas de suco de laranja concentrado e congelado no comércio justo.

3 Benefícios observados para os produtores de café atuantes nas redes de comércio justo (produtores, famílias, organizações de produtores e comunidade)

Os preços pagos aos produtores pelo café “justo” têm-se mantido em torno do dobro àquele que alcançariam se vendidos sem a certificação. O preço mínimo garantido aos produtores é de US$ 121,00/quintal5, adicionalmente um prêmio de US$ 5,00/quintal como prêmio e outros US$ 15,00/quintal se for orgânico. Porém os benefícios individuais para cada produtor dificilmente podem ser calculados visto que as cooperativas, após deduzirem os custos de processamento e administração, pagam um só montante (café vendido através dos canais do comércio justo e convencional).

PEREZGROVAS & CERVANTES (2002) descrevem que os produtores cooperados de Majomut colhem, em média, cerca de 15 quintais de café. Durante a safra 2001/02 o preço pago aos seus sócios foi de $ 12 pesos por kg de café “pergamino” (café em estágio anterior ao benefício seco) e $ 18 pelo orgânico. Em média, os chamados coyotes (atravessadores locais) pagavam $ 6 pesos/kg. Dos 10.020 quintais de café colhidos na safra 2001/02 cerca de quase 60% era orgânico (colhidos em uma área de 1894 hectares). É preciso destacar que a organização da produção nas propriedades contempla ainda outros tipos de produtos mas a renda da família é dependente em 80% das vendas de café. A propriedade média encontrada em Majomut possui ao todo cerca de 4 hectares, e tem a seguinte distribuição de área: 1,2 ha de café; 2 ha para cultivo de grãos básicos (milho e feijão principalmente); 0,5 ha para a horta familiar e o restante para a habitação e outras construções.

Um outro exemplo da escala de produção dos produtores no café do comércio justo é o da Coocafé, onde a grande maioria dos sócios das 9 cooperativas que a integram possuem menos de 10 hectares (para as condições técnicas locais é possível produzir cerca de 200 fanegas6) que é o mínimo para se viver da produção de café na Costa Rica. Porém apenas 10% dos sócios produzem essa quantidade, sendo que a maioria produz, em média, apenas 23 fanegas por ano.

As vendas realizadas através do mercado justo, em relação ao total exportado, pelas organizações de produtores tem-se que: Majomut exporta 100% via comércio

4 Se consideradas apenas as organizações de primeiro nível esse número ultrapassa a 300 cooperativas. CONROY (2001) fala em 30% de todo o café produzido por pequenos produtores possuírem a certificação de FLO. 5 1 quintal = 100 libras. Cotação do café na bolsa é de centavos de dólar por libra peso (0,4536 kg). 6 1 fanega = 400 litros de café cereja (não processado).

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justo (1500 membros e 450 toneladas); UCIRI7 73% (2076 membros); ISMAM pouco mais de 50% (1500 membros e 3900 toneladas); CEPCO, 1600 membros e 60 a 70%); Coocafé vendeu em média 53% do café no mercado justo no período entre 1993 a 1998, se bem que esses patamares reduziram-se para 30% em 2002. Graças às vendas realizadas nesse mercado obtiveram uma média de preços de cerca de US$ 0,80/libra, o dobro do preço internacional (NIGH, 2002; LUETCHFORD, 2003; PEREZGROVAS & CERVANTES, 2002; ARANDA & MORALES, 2002; VANDERHOFF BOERSMA, 2002).

Para se ter uma idéia da diversificação de clientes, UCIRI vende 5000 sacos/ano através de Comercio Terzo Mondo (CTM, Itália) o qual é vendido com o nome de “Café Orgânico UCIRI” e ainda três containeres de café solúvel; 1000 sacos para GEPA (Alemanha); 1500 sacos de café orgânico para Sacheus (membro de Transfair Suécia) da qual possuem 15% de suas ações e mais 2800 sacos entre ATOs e Transfair na Áustria, Estados Unidos e Canadá, entre outros.

O pré-financiamento é outro ponto importante levantado pelos autores nas cooperativas estudadas - podem receber até 60% adiantado do volume de café comercializado. Esse benefício, como demonstrado nos vários estudos, além de seu impacto direto possui outros interessantes que são percebidos de forma indireta. O simples fato dos produtores e suas organizações receberem auditorias externas (por força da certificação), de fazerem eles próprios a exportação do café, a preços diferenciados e segundo uma relação estável de comercialização, entre outros aspectos, transformam-nos em tomadores de crédito de baixo risco para outras instituições (bancos privados ou públicos no mesmo país) ou ainda os qualificam a participar de programas de fomento dos governos locais ou de agências de desenvolvimento estrangeiras. Algumas vezes isso leva às organizações a utilizarem mais dessas fontes por serem, em alguns casos, mais baratas que as oferecidas pelo mercado justo (MURRAY et al, 2003; TAYLOR, 2002; NIGH, 2002).

Dessa forma, a combinação da garantia de preço e o acesso facilitado ao crédito, contribuem para uma maior estabilidade econômica e social para esses agricultores e suas organizações. A cooperativa Las Colinas, por exemplo, recebia até 60% de financiamento prévio do café para comércio justo a taxas que são a metade daquelas cobradas pelos bancos naquele país. No caso de UCIRI, o financiamento da colheita é obtido, além das antecipações de 60% do preço mínimo, sob condições de comércio justo e outras fontes como programas do governo mexicano (FONAES/SEDESOL), UCIRI criou ainda fundos próprios a essa finalidade.

Um aspecto que se mostra crucial é o relacionado ao processo de aprendizagem quanto às exigências de qualidade, às preferências e tendências da parte dos consumidores. O diferencial recebido pelos produtores no comércio justo proporciona a criação e manutenção de departamentos técnicos nas cooperativas que irão realizar treinamentos/cursos quanto às técnicas de colheita, pós-colheita, beneficiamento,

7 Os outros 27%, também a preços do comércio justo, porém sem a certificação FLO ou via ATOs (organizações de comércio alternativo).

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manejo de solos (fertilidade e conservação), e principalmente desenvolver e implementar programas de produção orgânica e acompanhamento técnico8.

O processo de aprendizagem, por exemplo, da comercialização ocorre através de interações com as próprias organizações do comércio justo (FLO ou ATOs), e também encontra guarida em várias ações de importadores integrantes da rede, notadamente aqueles mais comprometidos com os seus ideais. Como exemplo pode-se citar Majomut e Tzotzilotic que tiveram ajuda de Twin Trading England, do importador Simon Levelt (Alemanha). La Voz recebeu apoio de Elan Organic (Estados Unidos) para melhoria da qualidade e informações de funcionamento de mercados, preferências, desenvolvimento de produtos.

No caso de UCIRI, essas interações se deram através de Gesellschaft zur Förderung der Partenerschaft mit der Dritten Welt mbH - GEPA, Comercio Terzo Mondo - CTM, Equal Exchange (Estados Unidos) com quem aprenderam a se posicionar no mercado de café orgânico e de qualidade. Mais recentemente essas interações se deram preponderantemente com compradores de café licenciados para usar o selo de FLO - Van Weely9 (Holanda) e com a firma Malongo (também licenciada FLO, França), ambas tradicionais especialistas no mercado de café gourmet.

Outro exemplo foi o suporte oferecido para a cooperativa La Selva através da chamada “Frente Solidario10” que abriu as portas para um ousado projeto de uma rede de cafeterias, atualmente 18 estabelecimentos, em países como México, Estados Unidos, Alemanha e Espanha com a marca La Selva para vender exclusivamente café de seus sócios. Assim, ao longo do tempo, o relacionamento especificamente entre produtores, importadores e distribuidores (que também operam no mercado convencional) acabam por estabelecer novas redes de contatos e oportunidades, algumas vezes à parte do comércio justo.

Nos relatórios de inspeção, os pontos a serem melhorados ou de atenção por parte da organização de produtores, também contribuem com esse processo de aprendizagem, e ainda os contatos diretos com consumidores. Também são citadas as participações em feiras e conferências especializadas como a Speciality Coffee Association of América – SCAA, Biofach entre outras. Isso fica claro nos relatos de Majomut e Tzotzilotic que citam as inspeções anuais de FLO: o relatório recebido das mãos do inspetor são uma ajuda concreta por meio de orientações e recomendações claras e específicas (PEREZGROVAS & CERVANTES, 2002; MARTINEZ, 2002). No entanto, podem resultar problemas nas rotinas de inspeção. Alguns desses problemas podem ser resumidos nas palavras do assessor de UCIRI:

8 GONZÁLES CABAÑAS (2002) identificou, em depoimento de um técnico de La Selva, uma interpretação distinta da normalmente encontrada onde o mercado justo serve como motivador de ganho em qualidade, participação dos produtores, segundo ele os produtores entenderam que:

“.....para estar en el comercio justo es necesario ser pobre”, es como si entendiesen que ser pobre, sirve para tener más dinero”. Este tipo de ideas, refuerza la idea de la pobreza como una de sus características, inhibiendo en muchos casos su capacidad de cambio.”(p. 31)

9 Norbert Douqué, seu proprietário, foi membro do Conselho de Administração de FLO nos anos de 2002 e 2003. 10 Organização fundada em 1991 com o apoio das seguintes organizações do comércio justo: Max Havelaar Holanda, Transfair Alemanha, Fundação Friedricht Ebert e a Ecumenical Cooperative Development Society of Holland.

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“....... la inspeción depende mucho del inspetor y que tipo de evaluación el hace. Nunca hemos recibido un informe de la inspección para poder mejorar en caso necesario.” (VANDERHOFF BOERSMA, 2002, pag. 16)

NIGH (2002) também fala da falta de experiência e sensibilidade dos inspetores sobre o contexto local que acabaram prejudicando alguns grupos produtores, levando-os à perda da certificação (a exemplo de La Selva11 e Tzotzilotic).

Desconsiderando-se esses problemas pontuais, os aspectos anteriormente mencionados, somados, acabam por criar um ambiente de confiança, esperança que resulta por elevar a auto-estima desses agricultores. Esses, por sua vez, trazem um incentivo fundamental para elevar a transparência dos procedimentos e atos cooperativos bem como a democracia interna através do aumento na participação e do interesse em acompanhar cursos, reuniões e assembléias promovidas pelas cooperativas12. Os cooperados também são reconhecidos pelos êxitos coletivos proporcionados inicialmente pelo comércio justo e depois também com os orgânicos. Essa maior participação, por outro lado, é principalmente observado por aqueles que trabalham com café orgânico visto uma maior necessidade em participar de cursos e treinamentos para o manejo dos cafezais orgânicos e em conversão.

O fato de a certificação orgânica demandar maiores cuidados na condução do processo produtivo é mais percebido pelos agricultores do que a certificação do comércio justo que não lhes exige mudanças ou cuidados adicionais aos já realizados diariamente nos cultivos (se restringe muito mais a uma análise documental em nível de suas organizações – cooperativas ou associações). A medida que vêem seu trabalho ser recompensado por melhores preços (justo ou orgânico, justo e orgânico), aumenta o interesse próprio e o de outros que buscam alternativas aos baixos preços pagos pelo café.

A queda nos preços do café, como já dito, levou a que muitos agricultores se vissem forçados a buscarem trabalho nas cidades mais próximas, em regiões distantes ou mesmo fora do país. Os produtores que lograram se inserir nas redes de comércio justo conseguiram uma relativa estabilidade e assim fixarem-se em suas regiões de origem. Dessa forma, o comércio justo contribui para que essas famílias não se desagreguem visto as necessidades de migrarem, fortalecendo ainda os pequenos negócios na economia local.

LUETCHFORD (2003, p. 11) aponta, para as condições da Costa Rica, além da falência dos acordos da Organização Internacional do Café (ICO), pivô da crise de preços a partir de 1989, vê-se internamente o avanço da onda da política neoliberal. Dessa forma, o preço mínimo pago através do mercado justo, nas palavras do autor, “imunizou” as cooperativas registradas contra o declínio de preços e abrandou o choque das medidas políticas neoliberais. Afirma também que visto a garantia de preços e estabilidade no relacionamento comercial permitiu-se que os agricultores mantivessem 11 Também pesaram contra supostas denúncias de participação no movimento armado zapatista Ejercito Zapatista de Libertación Nacional – EZLN. 12 No estudo realizado no grupo guatemalteco La Voz alguns membros queixaram-se, nas entrevistas, que o gerente detém o controle e algumas vezes parecem ser de fato donos da cooperativa, porém isso pode estar relacionado ao baixo nível de educação formal dos dirigentes que em alguns casos falam apenas a sua língua nativa (LYON, 2002; TAYLOR, 2002; MURRAY et al, 2003).

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seus investimentos, protegidos da instabilidade do mercado, conseguiram manter-se em suas terras, enquanto outros foram à ruína.

Além da maior estabilidade social e econômica proporcionada pelo comércio justo, onde houve a conversão dos cafezais para o manejo orgânico observa-se um aumento na demanda de trabalho13, encontrado inicialmente no emprego de familiares e depois de trabalhadores que se beneficiam do trabalho local evitando, para alguns, a necessidade de migrarem. Em tempo, é preciso ressaltar que essas mudanças promovidas essencialmente em seu início pela participação nas redes de comércio justo não são suficientes para reverter o estado de pobreza, eliminar o fenômeno da migração, porém, foram observadas em várias das organizações participantes do comércio justo uma diminuição desses problemas (PEREZGROVAS & CERVANTES, 2002; VANDERHOFF BOERSMA, 2002).

Do preço mínimo pago pelo café - US$ 121,00/quintal - deduz-se gastos de operações e vão direto ao agricultor. Uma parte do prêmio é direcionada pelas cooperativas de café a vários projetos tais como hortas orgânicas, construção e melhoria de habitações, alternativas para geração de emprego e renda, criação de farmácias comunitárias, padarias, armazéns, transporte público, construção e melhorias de caminhos programas de redução de analfabetismo, entre outros destinos. Um exemplo do uso do prêmio (US$ 5,00/quintal) pode-se encontrar em UCIRI onde a decisão de investir em projetos sociais é tomada pelos delegados em assembléia na forma de projetos locais do grupo ou ainda na forma de melhorias das habitações (esgotamento sanitário, estufas Lorena14). Considerando-se café orgânico existe um diferencial de US$ 15,00/quintal que são destinados especificamente para o programa orgânico – Centro de Treinamento e Educação, assistência técnica e em espécie (dinheiro) para os produtores.

Através do fortalecimento econômico de UCIRI, via comércio justo, estende serviços que vão desde manter linhas de transporte público até clínicas médica e odontológica. Outros serviços são: criação de postos de trabalho (fábrica de doces e de confecção de roupas) e melhorias ambientais. Entre os benefícios já citados proporcionados pelo comércio justo tais como melhorias de qualidade, produção orgânica, criação de infraestrutura, criação de canais próprios de comercialização, entre outros, VANDERHOFF BOERSMA (2002) aponta ainda o aspecto da recuperação do orgulho de ser indígena, não de uma forma romântica, senão como habitantes ancestrais de suas terras. O trabalho de BOYCE (2004), “A Future for Small Farms? Biodiversity and Sustainable Agriculture”, aponta ainda uma importante reflexão sobre o papel da pequena produção agrícola15. Uma defesa que se pode alinhar rapidamente é: “se 13 Segundo PEREZGROVAS & CERVANTES (2002), nas áreas de café orgânico – quase 1900 hectares - na cooperativa Majomut (1500 membros) houve um aumento na demanda por trabalho de quase 180.000 dias adicionais ao ano. 14 Permite melhorar o rendimento no processo de queima da madeira e reduz problemas respiratórios ligados à presença de fumaça no ambiente doméstico. 15 O autor identifica essa pequena agricultura como cultivadora da diversidade, e afirma “Small farms play a crucial role in conserving the agricultural biodiversity that underpins longterm food security worldwide. Particularly in centers of crop genetic diversity – such as Mesoamerica in the case of maize (corn) and the Andean region in the case of potatoes – small farmers are the ‘keystone species’ in agricultural ecosystems of great value to humankind.”(p. 6). No entanto, continua o autor, a conjunção das forças de mercado e políticas tem ameaçado a ambos - a pequena agricultura e a biodiversidade que ela sustém.

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comércio justo permite, ou ainda viabiliza a permanência desses na terra, por menor que seja seu alcance, não há duvidas que se justifica o grande interesse atual por essa iniciativa”.

A melhora no ambiente natural visto o manejo orgânico beneficiam a todo o entorno dessas áreas. Por exemplo, recuperam-se áreas degradadas por erosão com técnicas de conservação de solo, com reflexos na “produção” de água naquelas microbacias hidrográficas, ganhos em termos de biodiversidade (fauna e flora) visto os cafezais serem sombreados por espécies nativas16 e também se vê aumentada ainda a consciência em torno da conservação dos recursos naturais de uma forma geral.

Todas as oito organizações estudadas no projeto liderado por FTRG, entre outras relacionadas na literatura, apontam aos benefícios percebidos pelas organizações como sendo os de maior alcance (MURRAY et al, 2003; LUETCHFORD, 2003). Os benefícios observados são importantes porque possuem um efeito multiplicador sobre os indivíduos na forma de prestação de serviços, e alguns outros indiretos como, por exemplo, uma referência para que as cooperativas implementem formas de incrementar a participação dos sócios nas tomadas de decisões (democracia), permitindo uma maior transparência17 no uso dos recursos coletivos e ainda produzindo efeitos positivos no desempenho administrativo.

A medida que a decisão do uso do prêmio deve ser tomada em assembléia, permite-se que os produtores tenham maior controle de como utilizar esses recursos. O processo de solicitar a certificação, passar pelas sucessivas auditorias (importantes mudanças em nível da organização e menos percebidas na rotina dos processos produtivos agrícolas) permitem às cooperativas melhorarem sua capacidade administrativa e esse trabalho acaba servindo de base, somadas ao fortalecimento econômico, a buscarem outros mercados a exemplo da certificação orgânica.

Os estudos apontam ainda que o período no qual as organizações passam pela certificação do comércio justo, beneficiando-se das condições para comercialização (preço mínimo; pré-financiamento; prêmio; aprendizado da qualidade através dos contatos com compradores, consumidores), funciona como um tipo de “incubação”, de preparação para enfrentar a dura realidade e as práticas injustas do mercado. Assessores de La Selva falam em um subsídio a um período de “aprendizagem” (GONZALES CABAÑA, 2002), enquanto outros falam ainda de um “subsídio à aprendizagem para comercialização” ou de um “ambiente de baixa pressão para aprendizagem”.

No entanto, é preciso cuidado com esse otimismo, e talvez seja prudente relativizar a expressão “baixa pressão” visto as grandes exigências de qualidade, e também pela crescente demanda por produtos certificados justo e orgânico, que nem todas organizações de produtores estão aptas a alcançar no curto prazo18. Pode ser “baixa pressão” para aqueles grupos que já se encontram efetivamente inseridos (já 16 Café cultivado sob sombra possui até 64 espécies em 3 diferentes extratos de vegetação (PEREZGROVAS & CERVANTES, 2002). 17 Sob risco de perderem a certificação. 18 É importante salientar que grupos de produtores estão sendo encorajados por FLO a se moverem em direção da certificação orgânica. Alguns grupos, como Majomut, inclusive chegam a condicionar a entrada de novos membros desde que esses já possuam a certificação orgânica; estejam em conversão ou ainda aceitem a participar de programas já existentes. É importante salientar que Majomut já era certificada orgânica quando entrou no registro de produtores de FLO (PEREZGROVAS & CERVANTES, 2002; TAYLOR, 2002).

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alcançaram os patamares de qualidade e conquistaram os contratos) nas redes de comércio justo, porém é bom lembrar que isso ainda está restrito a poucos19 (13 organizações de produtores comercializam 47% de todo o volume de vendas).

O fortalecimento econômico das organizações de produtores, através do uso de uma parte do diferencial de preço entre comércio justo e o mercado, permitiram a essas que se equipassem com, por exemplo, máquinas modernas para seleção, beneficiamento, torrefação e embalagem. Permitiu que construíssem a infraestrutura tais como armazéns, sedes próprias com adequada comunicação e recursos tecnológicos necessários para alcançar melhorias da qualidade, ampliando sua participação dentro do comércio justo e alcançando novos mercados a exemplo do orgânico. Também foi fundamental a contratação de técnicos e gerentes profissionais, conhecedores dos processos de produção e comercialização. Como afirma VANDERHOFF BOERSMA (2002), o comércio justo tem incentivado às cooperativas a criar seus próprios canais de comercialização a medida que informa regularmente, a partir de uma lista de compradores e importadores. A partir dessas listas as cooperativas podem enviar amostras de seus produtos, fazer visitas, enfim, tratar de ampliar seus contratos e obviamente as vendas (em outras palavras, competir).

Como afirma TAYLOR (2002) no trecho abaixo, exemplificando para a cooperativa Tzotzilotic, muitas vezes a inexistência de habilidades básicas, alcançadas por assessorias ou gerência profissionalizada, levam a dificuldades em penetrar no mercado justo.

“Cooperatives lacking advisors and leaders with the language and other skills to be effective international interlocutors have found entry into Fair Trade markets much more difficult, as illustrated by the case of Tzotzilotic, which held certification for ten years before selling in the Fair Trade market in 2001.” (p. 3)

Outro aspecto é que mesmo conseguindo firmar contratos de venda de café no mercado justo, dessa vez exemplificando para a cooperativa La Voz, a obtenção de pré-financiamento não é automática.

“As in conventional markets, Fair Trade market buyers require assurance that producer organization will reliably fulfill contracts and consistently deliver quality coffee.” (p.3)

Dessa forma, dirigentes de CEPCO observaram que o mercado justo tem sido “capturado” por poucas organizações. Obviamente essas organizações de produtores foram capazes de manter seus contratos com a qualidade e quantidades demandadas, outras como La Selva descumpriram contratos e perderam a certificação20 (ARANDA & MORALES, 2002).

As organizações que obtém maior êxito nessa tarefa acabam por se destacar das demais pela preferência dos compradores, a partir da construção de uma forte imagem

19 Resta saber de quanto tempo deve ser esse período de “proteção” ou se realmente essas organizações sobreviveriam fora. O que parece é que lutam para não perdê-la e ainda aumentar sua participação no mercado justo. 20 Aparentemente também por falhas administrativas, além dos inspetores suspeitarem da ação de gerentes corruptos.

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da organização frente aos consumidores que passam a reconhecer suas histórias e trajetórias. Ainda nesse sentido, é tal o êxito de algumas cooperativas dentro do comércio justo que acabam por não possuir o volume demandado. Dessa forma, a solidariedade entre os grupos de produtores leva a incluir aqueles que ainda não haviam obtido êxito em estabelecer relações de comercialização ou ainda não se encontravam certificadas. Isso pode ser mais bem observado no México onde os grupos que obtiveram maior êxito acabaram por incluir novos grupos, seguramente isso também justifica a maior concentração dos grupos produtores nesse país. Como exemplo, o grupo pioneiro UCIRI ajudou a incluir La Selva, que por sua vez o fez em favor de Majomut e esse em favor de Tzotzilotic. Porém, muitas vezes isso ocorreu quando a demanda se encontrava acima das capacidades de suprimento da organização de produtores.

Para alguns essa solidariedade beira à fraude, observe no trecho reproduzido por GONZÁLEZ CABAÑA (2002) a partir de entrevistas realizadas em La Selva:

“Así, las organizaciones que han dado ayuda en capacitación e información a otras, es porque han dado aquello que les sobraba. Tal sería el caso de las organizaciones que no reúnen los volúmenes de café que comercio justo les ofrece comprar y, proponen a otras hacer el papel de intermediarios. La Selva entiende que esta es una práctica que no es aceptada bajo los criterios del comercio justo pero, reconocen que existe.”(p. 30)

De toda maneira, as organizações que obtiveram êxito em comercializar no comércio justo acabam por formar redes mais amplas para defender seus interesses dentro ou fora do comércio justo e ainda nos mercados internacional e nacional. CEPCO, UCIRI e MAJOMUT, juntamente com outras organizações de produtores, criaram uma entidade nova – Agromercados – que apóia atualmente o desenvolvimento do comércio justo no México. Essas redes logicamente ampliam as habilidades para negociar com novos clientes (MURRAY et al, 2003).

Por sua vez, NIGH (2002) tem duas observações a respeito da formação de estruturas como Agromercados que tenderá a ser uma espécie de exportador oficial de todas as organizações de produtores registradas no México. Por um lado, o que chamou de “fair trade monopolies”, tem uma certa lógica particularmente à luz das novas estratégias de empresas como Starbucks, Neumann Coffee Group. No entanto, pode criar situações altamente excludentes, difíceis e injustas para muitos pequenos produtores (“ ......have the potential of creative a highly exclusive, dificult and injust situation for many smallholders.” p. 16).

4 As principais questões, obstáculos e problemas

O problema identificado nos estudos realizados por FTRG é o de que o mercado justo para café (FLO ou ATOs), em muitos países, cresce pouco ou ainda se encontra totalmente estagnado. Dessa forma, produtores buscam alternativas que são condenadas pelas próprias organizações do comércio justo, a exemplo de UCIRI que desenvolveu esquemas paralelos ao do comércio justo juntamente com grandes empresas. Estes, no entanto, se justificam que ao agir dessa forma buscam não “entupir” o mercado justo com mais café.

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Outro aspecto importante verificado se deve ao volume ofertado (certificado) ser maior que o efetivamente demandado. Criam-se assim tensões entre as organizações de produtores que se tornam competidoras entre si no mercado justo. Murray nos fala de um volume de café certificado para o mercado justo 7 vezes maior (99.231 toneladas) o que se consegue efetivamente vender (MURRAY et al, 2003). O fato de fazer parte dos grupos produtores de café no registro de FLO não lhes garante um comprador. Comércio justo, a partir dessa perspectiva, não é uma estratégia de nicho porque não oferece uma política de organização (controle) da oferta, o que seria contrário aos princípios políticos da iniciativa que tem como meta permitir que um número cada vez maior de produtores se beneficiem (RAYNOLDS, 2002b).

Por outro lado, quando os preços de mercado são superiores à garantia do mercado justo (US$ 121,00/quintal) o diferencial fica em apenas US$ 5,00/quintal (e mais US$ 15,00 se for orgânico) e aí surgem outros problemas: honrar contratos, atuais e futuros, visto a atuação agressiva dos coyotes – pagamentos à vista contra uma relativa longa espera para liquidar contratos via comércio justo. O fato de alguns grupos de produtores preferirem entregar sua produção fora do mercado justo em anos onde o preço de mercado se eleva, é justificado em parte à rápida liquidação dos contratos. No comércio justo as cooperativas devem aguardar um longo período até que possam saber exatamente quanto foi efetivamente entregue em condições de mercado justo, no caso da Coagrosol esse período chegou a mais de 12 meses quando de sua primeira remessa de suco para esse mercado. Da parte dos produtores, outro ponto importante, observado em vários autores, se deve a falta de informação/conscientização à respeito do próprio comércio justo, suas motivações21 que estão essencialmente embasadas nas interações produtor-consumidor (TAYLOR, 2002; MURRAY et al, 2003; RENARD, 2004; RAYNOLDS, 2002b).

Por sua vez, LUETCHFORD (2003, p. 14) para explicar esse comportamento, sugere que existe um hiato entre as componentes ética e comercial. A participação no comércio justo mostra como esse é incorporado nas estratégias profissionais de venda. A chamada componente ética dos dirigentes (gerentes) é diretamente condicionada ao desenvolvimento de estratégias que maximizem os preços que serão repassados aos seus membros (cooperados) antes de exibir qualquer nível de comprometimento com os canais do comércio justo. E, similarmente, do lado do consumo (consumidor), os produtos certificados pelas organizações do comércio justo são primeiramente considerados dentro de uma operação normal de comércio.

Para demonstrar esse último ponto, o autor argumenta sobre a questão da qualidade. O excesso de oferta de café, que resultou na maior baixa de preços em 30 anos, significa que os compradores podem dar-se ao luxo de escolher somente café da mais alta qualidade enquanto os de menor qualidade são simplesmente rejeitados. Como a atual crise continua, e com um número cada vez maior de produtores interessados em

21 PEREZGROVAS & CERVANTES, 2002; GONZÁLES CABAÑAS, 2002; ARANDA & MORALES, 2002; MÉNDEZ, 2002; VANDERHOFF BOERSMA, 2002, entre outros autores apontam um certo desacordo com o sentimento de que há uma tendência em descaracterizar o comércio justo enquanto movimento de pequenos produtores. Para que isso não ocorra de fato, necessitam-se de investimentos em uma adequada educação dos produtores, consumidores, inclusive com uma intensificação desses contatos diretos visto eles admitirem que antes da criação de FLO estes eram mais freqüentes (principalmente via M.Havelaar Holanda). Essa sim, a falta de educação e contatos diretos, poderá levar a uma descaracterização do comércio justo.

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participar no comércio justo, então as organizações do comércio justo (ATOs e FLO) mencionam cada vez mais sobre as exigências em termos de qualidade. Isso é perfeitamente entendido pelo lado de que para ser um sucesso comercial essas organizações devem oferecer um produto de qualidade. No entanto, os grupos de produtores submetidos aos maiores obstáculos não são aqueles que estão produzindo café de alta qualidade, mais propriamente são aqueles em áreas de maior marginalidade que estão muito provavelmente sofrendo mais com o declínio do mercado. E conclui, “Here again, the ethical mission to help poor, marginal farmers is likely to be compromised by commercial considerations.”( LUETCHFORD, 2003. p. 14).

O sucesso de algumas organizações de produtores, a exemplo de Coocafé22, entendido pelo autor como modernização e profissionalização de sua estrutura de produção, comercialização e burocrática, na visão local, não se deve ao seu envolvimento no comércio justo. Contrariamente à relação normalmente estabelecida, afirmam que o envolvimento no comércio justo se deveu aos bons resultados obtidos pelo desenvolvimento de Coocafé em âmbito local e regional. Frente a visão dos atores locais, o autor observa:

“Their achievements cannot and should not be seen as a mere “gift” coming from Alternative Trade Organisations or, for that matter, attributable to the benevolence of European consumers.”(p.14)

Para insistir um pouco mais nesse assunto, GONZÁLES CABAÑAS (2002) cita depoimento de gerente de La Selva sobre o problema que o desequilíbrio entre oferta e demanda, visto que o associa com a elevação das exigências de qualidade e competição entre grupos de produtores.

“En la forma en que se está dando el comercio justo, realmente está incidiendo en una elite de productores y formando cacicazgos nuevos. Las reglas del mercado justo no están funcionando para esto. En esta perspectiva, el mercado justo debió haber propuesta la entrada al mercado justo a las organizaciones pero, comprometiéndolas a incorporar también a los desposeídos”.(p. 37)

TAYLOR (2002, p. 25) também afirma existir esse sentimento em muitas das cooperativas estudadas, onde o comércio justo estaria beneficiando as mais fortes e bem estabelecidas organizações de produtores. Assim, para as cooperativas mais novas, menos desenvolvidas, verifica-se difícil encontrar uma brecha de entrada no mercado justo. Pois, ainda que alguns grupos de produtores como UCIRI, Majomut e La Voz vendam atualmente todo seu café segundo condições do mercado justo23 poucos grupos conseguem fazê-lo.

22 Para demonstrar o sucesso financeiro de Coocafé, no final de 1998 o capital total encontrava-se em quase 1 milhão de libras esterlinas. A participação nas redes de comércio justo é mais um fator, porém não se pode desqualificá-lo pois o relacionamento com o mesmo iniciou-se ainda antes de existir Coocafé. Isso ocorreu com uma de suas sócias fundadoras – Coopecerroazul – no início dos anos 1980 quando embarcava cerca de 750 sacos de café a cada ano através de SOS Wereldhandel e ainda para outras ATOs nos Estados Unidos. 23 Como já dito, parte do café de UCIRI, apesar das condições serem as mesmas do mercado justo não usam as vias de FLO ou ATOs.

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RENARD (2004) fala da ambivalência que acompanha o comércio justo desde seu início. Entre os seus fins sociais e a inserção no mercado, e entre seus propósitos éticos e imperativos mercantis porque “......funciona a la vez en el mercado y con mecanismos extra mercantiles”(p. 1).

No caso do café, o selo do comércio justo inicialmente alcançou o mercado através de pequenos importadores, torrefadores e comerciantes que ao aceitarem as condições impostas – preço mínimo, pré-financiamento, entre outros – se colocavam a salvo da ação dos gigantes do setor agroalimentar (a exemplo de Sara Lee em café). Desse ângulo, comércio justo para esses é uma estratégia de diferenciação de produtos que permite evitar a competição via preços entre bens idênticos, e então ganhar parcelas do mercado (RENARD, 2004, p. 5).

Do ponto de vista dos Estados integrantes da União Européia, na atualidade o comércio justo não passa de políticas de ajuda aos países do terceiro mundo ou periféricos visto que os países importadores ainda não estão interessados em incorporar essa filosofia em suas linhas diretrizes das políticas comerciais, exceção na forma de orientações para um código de conduta “genérico” – OECD Guidelines for Multinational Enterprises.

RENARD (2004) reforça que a convergência de interesses diversos entre atores que conformam a rede de comercialização do comércio justo24 não se constrói sobre uma adesão geral aos princípios ideológicos ou éticos dos seus promotores (FLO). Na visão da autora, a participação de todos eles se explica, em última instância, pela existência de uma demanda real. Na dimensão de cada ator, vê-se:

produtores individuais buscam aumentar seus ingressos (renda) e melhorar sua condição de vida;

cooperativas buscam sobreviver em meio à crise (referência ao café);

transformadores buscam proteger-se dos gigantes do setor agroalimentar, ganhando para si este segmento de mercado (sem contar o efeito positivo sobre a imagem da empresa). Porém, acordos das iniciativas nacionais, a exemplo de Transfair EUA, com empresas multinacionais – Procter & Gamble, Green Mountain, Starbucks25, Dunkin’ Donuts – deixam o sinal de que pequenas e médias empresas deixaram de ter essa exclusividade;

Distribuidores, por sua vez, buscam responder adequadamente à demanda.

RAYNOLDS (2002b) mostra que um dos grandes êxitos do comércio justo foi ter criado uma nova relação entre consumidores e produtores, que em geral estavam “invisíveis” (anônimos) no mercado. O que reafirma a idéia original dos pioneiros, UCIRI e Solidariedade, quanto a pressionar, através do poder dos consumidores, os gigantes do setor agroalimentar a melhorarem as condições de compra dos seus produtos (ROOZEN & VANDERHOFF BOERSMA, 2002).

24 Entenda-se pela interação de múltiplos atores, desde as unidades de produção até os consumidores. 25 Starbucks vende café justo em todas as suas lojas pelo mundo, apenas uma vez por mês, dentro da promoção “Café do Dia”. Isso representa apenas 1% de todo o café comprado pela empresa (RAYNOLDS, 2002b)

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5 Terceira fase: superação ou captura? Os grupos de produtores percebendo a perda de dinamismo nas vendas de café

no mercado justo buscam outras alternativas: esquemas paralelos ao que ajudaram a criar no caso de UCIRI, ou ainda expandindo as iniciativas de comércio justo a exemplo da criação de Comércio Justo México. No primeiro caso, são favorecidos pela forte imagem de serem pioneiros no mercado justo e as ATOs terem divulgado suas organizações, de conhecerem os circuitos de comercialização (importadores, compradores), construção da qualidade, etc.

Assim, essas dificuldades de ampliação do mercado justo levam UCIRI, nas palavras de VANDERHOFF BOERSMA (2002), a uma terceira fase26, ainda embrionária, que seria uma conseqüência natural do desenvolvimento do mercado justo27. Por sua vez, existe uma forte reação por parte das organizações do comércio justo (selado ou não) quanto às novas alternativas que os produtores estão começando a operar diretamente com as grandes empresas, sobretudo os supermercados.

Essas alternativas, apesar de manter as mesmas condições de preço do comércio justo, ocorrem fora das vias de FLO ou das ATOs. Os pretendentes são muito variados, tais como: Starbucks, SaraLee, Phillip Morris, Neumann Coffee Group (todas grandes empresas do setor28). Porém, o caso mais conhecido e de impacto é o acordo para venda de café orgânico de UCIRI nas lojas francesas do grupo Carrefour, sem o uso do selo de FLO – o programa chama-se “Café Sustentável”.

Ainda justificando a iniciativa dos produtores, afirma que se esses estiverem vendendo 25% de toda sua produção sob condições de comércio justo, e o resto a condições do mercado (a preços do ano 2002), o preço final alcançado por quintal não chegaria a US$ 67,60. Porém, se venderem 50% comércio justo e 50% mercado poderiam chegar a US$ 94,30/quintal. A constatação é de que pouquíssimas organizações de produtores conseguem vender esse percentual através do comércio justo. Então necessitam desenvolver alternativas às baixas taxas de crescimento do comércio justo em café (apesar das estatísticas mostrarem crescimento de 26% no volume comercializado entre 2002 e 2003 – essencialmente verificado no mercado norte americano). VANDERHOFF BOERSMA (2002) ressalta:

“Comercio Justo es donde existe una interiorización en el costo de producción: la producción propiamente dicho, los costos sociales del productor, los costos de mejorar medio ambiente y las inversiones necesarias para mejorar la calidad, homogeneidad etc. El sistema ‘FLO” es un segmento importante y punto de referencia (bajo condiciones

26 Estágios do desenvolvimento do comércio justo que levam a 3 tipos de mercado:

ATOs não levaram a grandes volumes de venda senão acumulou experiência de mercado, conscientização e divulgação do conceito junto aos consumidores;

FLO alcançou mercados mais amplos, porém ainda insuficientes visto o volume de produção certificada;

Contatos diretos entre grupos de produtores e grandes empresas tais como: Neumann Group com Unión de Ejidos Otílio Montaño (café orgânico); ISMAM – Wall Mart (já encerrado) e UCIRI – Carrefour.

27 “Los clientes que no son ATO ni miembro de FLO pagan los mismos precios que estos mercados - sobre todo Carrefour. (VANDERHOFF BOERSMA, 2002,pag.11, grifos meus) 28 Na verdade, essas empresas somente se interessam por cafés de alta qualidade, e dessa forma, os preços refletem essa qualidade.

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Mercado Justo, con o sin sellos del sistema) en esta cadena, pero una parte de la industria se interesa también en este sistema. Las motivaciones de estos últimos no son de todo iguales: algunos lo hacen como una política de maquillaje, otros ven este mercado como un mercado de punta.” (p. 29)

Um importante impacto que o comércio justo tem representado, leva a que grandes corporações revejam suas práticas. Um exemplo disso, nas palavras de NIGH (2002), é Starbucks (Estados Unidos):

“This company has been the villain of the movie for decades, refusing repeatedly to buy organic coffee, to buy from smallholder coops or to acknowledge the social dimensions of the coffee trade.“(p. 13)

No entanto, a poucos anos, anuncia com grande destaque sua parceria com Conservation International para comercializar blends de café cultivado sob sombra (Shade Grown29 ou Eco-Friendly), orgânico e comércio justo.

Essa recusa inicial, de forma semelhante, também enfrentaram os pioneiros do comércio justo onde a indústria além de refutar a hipótese de participar desses esquemas, argumentando que não se devia misturar política e comércio, tentou sabotar por várias vezes os poucos que se atreviam a tentar - pequenos compradores e torrefadores de café (ROOZEN & VANDERHOFF BOERSMA, 2002).

Atualmente, além do caso já citado Dole, também a empresa Chiquita, busca certificação social para as bananas que comercializam, reflexos dos resultados alcançados pelo comércio justo na Suíça. Esse ambiente, da competição no mercado, encontra-se em constante mudança, e encontra as primeiras iniciativas nas grandes redes de supermercado como cita VANDERHOFF BOERSMA (2002):

“En un documento reciente sobre capacitación interna de una de las cadenas de supermercados más importantes de Holanda, figuraba la siguiente pirámide:

29 Existe uma verdadeira profusão de selos, certificados, diferenciações para a produção/comercialização de café. Somente para pontuar, segundo GIOVANUCCI (2003), o mercado de café pode mostrar 12 diferentes tipos de certificação (voltadas à produção do chamado café sustentável). Segundo a autora, “Shade grown or eco-friendly coffee is certified to be grown in shaded forest settings in a manner that is good for biodiversity, bird habitat, etc. (certified by Rainforest Alliance or Smithsonian Migratory Bird Center)”(p. 24). Uma outra designação que se encontra, relacionado à produção sob sombra é o chamado “bird friendly” que tem o seguinte histórico “In the early 1990s, the Smithsonian Migratory Bird Center (SMBC), linking the decline in certain bird species to habitat degradation, was among the early pioneers that identified naturally shaded coffee farms as refuges for many bird species. Coffee farms meeting this criteria are consequently sometimes called "bird-friendly"(p.52).

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Según este documento no hay duda de que la cadena productor-consumidor representada por esta pirámide será materializada. En cuanto a las diferentes fases del desarrollo señaladas por la figura, quedó constatado que la fase de la integración en el mercado de los aspectos ecológicos y sociales ya había empezado.”(p. 28)

Segundo TAYLOR (2002), a repentina preocupação das grandes empresas, as mesmas que permitem a manutenção do presente status quo no mercado convencional, se deve a uma clara reação aos resultados observados pelo mercado justo em um significativo número de consumidores conscientes e cada vez mais informados sobre os problemas social e ambiental no local da produção e das iniqüidades nas relações de mercado.

Essas empresas buscam, dessa forma, lavar sua imagem pública tornando-a mais “soft”, mais “fair” através de algumas compras, “`a conta gotas”, a preços de mercado justo porém sem respeitar as condições de pré-financiamento, e além do mais, compram apenas os produtos da mais alta qualidade a exemplo de café para o mercado gourmet.

De um lado, é difícil culpar ou proibir produtores a participarem desses esquemas, porque é mais uma possibilidade, por menor que seja, de poder oferecer melhores condições aos sócios, e por outro lado, a visão estratégica de FLO não é ainda clara suficientemente (cooperar ou lutar contra). No entanto, há que se ressaltar que as grandes corporações perceberam rapidamente como se inserir, aproveitando-se da presente notoriedade do comércio justo e assim no argumento de vários autores, e em nosso próprio, lavar sua imagem de maneira pública e agregar valor aos seus acionistas. Como já visto, é preciso lembrar que o aprendizado obtido ao longo dos anos no mercado justo por parte das organizações de produtores levou também a estratégias interessantes, entre outras, a que se observou em La Selva com a criação de sua rede de cafeterias (uma franquia); a promoção do comércio justo em seus países de origem a exemplo de Comércio Justo México – CJM, ou ainda a união de organizações de produtores com o intuito de comercializar produtos com identidade étnica30 – a exemplo do Café de Chiapas.

6 A lógica por detrás Nas palavras de MURRAY et al (2003), o comércio justo busca desafiar as

relações existentes na economia global pelo exemplo, usando alianças consumidor-produtor para criar um sistema de preços alternativos que se baseiam tanto nas preocupações de justiça social como dos fatores econômicos; eliminar intermediários; transformar as práticas das empresas multinacionais que atuam fortemente nas cadeias agroalimentares. Nesse sentido, citando APPADURAI (1996), conclui:

“….. we live in a world characterized by rapid transcontinental travel and the instantaneous transmission of images and information via television and the Internet. This new reality has created the basis for a collective consciousness in which images and ideas can, for the first time, take on

30 “..... nuestra historia, nuestra identidad étnica, la manera de vestir, de vivir y el valor que tiene la conservación de nuestro ambiente natural”(GONZÁLEZ CABAÑAS, 2002, p. 36).

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both an immediate and global character. Fair Trade, along with a wide range of other global and local movements that have emerged in recent years, has the potential to stimulate this global collective imagination. There in lies the hope for a truly fair and sustainable global economy.”(p. 28)

Por seu turno, CONROY (2001) afirma existirem evidências suficientes para demonstrar que a globalização está começando a prover novas oportunidades à coalizões globais de grupos de pressão – advocacy. Esses grupos pressionam empresas, multinacionais são os alvos prediletos, de maneira que essas promovam uma elevação de seus padrões de responsabilidade social e ambiental nos processos produtivos e nas relações de comércio. Sustenta que a emergência e crescimento de iniciativas que utilizam selos, como o FSC e o comércio justo, são exemplos dessas evidências.

Para esse último, e especificamente no caso de Transfair Estados Unidos, a mudança de prática por parte de Starbucks se deve a pressões feitas por grupos ligados à organização de ativistas Global Exchange (Oakland, Califórnia). Essas pressões decorreram da ameaça desses realizarem demonstrações públicas das políticas de compra de Starbucks, ressaltando seus efeitos negativos em pelo menos 30 cidades dos Estados Unidos. A campanha estava sendo articulada a mais de um ano devido as sucessivas recusas da empresa (a mais importante do segmento – 20% do mercado) em introduzir a venda de café certificado do comércio justo (e também orgânico). Apenas a 4 dias do lançamento da campanha a empresa assina uma carta de intenções com Transfair. Campanhas semelhantes ocorreram contra outras empresas exigindo mudanças visto uma suposta atitude irresponsável de suas políticas de compra.

Do lado das empresas, o interesse em participar de esquemas de certificação podem ser muitos, porém alguns deles baseiam-se em (CONROY, 2001, p. 11-12):

Branding: dado o crescimento via concentração de poder do setor varejista e o alto nível de importância para firmar o estabelecimento de marcas por parte das empresas. Nesse caso, o reconhecimento público é o “nome do jogo” em termos de se obter o crescimento de sua produção;

Vulnerabilidade: quanto mais uma empresa tornar-se dominante em uma indústria em particular, quanto mais êxito obter no reconhecimento de sua logomarca, mais vulnerável será a pressões no campo social e ambiental;

Redução de risco: sistemas de certificação podem se constituir em uma estratégia de redução de risco para empresas de marcas mundiais, uma espécie de seguro contra críticas. No entanto, existe uma preocupação das empresas em adotar sistemas de certificação (selos) porque os consumidores podem se perguntar “Então o que há de errado com os outros?”, ou ainda, “O que há de errado com a parte da produção da empresa que não recebeu a certificação?”.

Por outro lado, segundo CONROY (2001, p. 13), os grupos de pressão encontraram nos sistemas de certificação uma forma eficiente de engajar corporações a incrementarem suas performances social e ambiental. E assim, os avanços verificados nos últimos 50 anos em termos de comunicação tornam possível a estratégia de realizar campanhas efetivamente em escala mundial, pois isso permite articulações simultaneamente nos 5 continentes.

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A certificação incrementa a habilidade dos grupos de advocacy para pressionar mercados, objetivando incrementar desempenho social e ambiental, pois reside na possibilidade de oferecer alternativas mais eficazes (diferentes apelos via selos) que simplesmente invocar o altruísmo e/ou a responsabilidade social das corporações. Isso se mostra particularmente importante em um mundo cada vez mais “privatizado”, com restrições aos Estados em legislar sobre matérias como sistemas de comércio global – as batalhas se darão entre empresas e ONGs, da mesma forma que empresas contra regulamentações governamentais. Essas batalhas, por sua vez, podem efetivamente levar ao engajamento das empresas, e poderão tornar-se importante força “civilizadora da globalização”, assegurando que os benefícios social e ambiental não excedam seus custos.

Ainda insistindo nessa linha, o que VANDERHOFF BOERSMA (2002) chama de terceira fase, com a venda direta dos produtores às grandes corporações (principalmente supermercados), RENARD (2004) chama de captura ou recuperação pelo mercado da estratégia desenvolvida pelas iniciativas de comércio justo. Pondera que, se por um lado, as vendas no mercado justo não representam uma ameaça no curto prazo, por outro, atraiu a atenção das grandes corporações ao tema. O que está em jogo na atualidade, visto a apropriação das estratégias de marca e de selo por parte dos distribuidores, é impor-se como interlocutor privilegiado dos consumidores.

Para demonstrar a importância de ser o “interlocutor” dos consumidores, RAYNOLDS (2002b) explica a diferença entre cadeias produtivas orientadas pelos produtores (producer-driven) e aquelas dominadas pelos compradores (buyer-driven). A primeira, a exemplo da indústria automobilística, tem na concentração de capital e a propriedade do conhecimento os ingredientes principais de dominação de uma determinada indústria. As chamadas “buyer-driven”, a exemplo da indústria de moda e vestuário, são aquelas onde as marcas próprias (brand-names) dos distribuidores dominam a cadeia via seu controle sobre o processo de design e o acesso ao mercado.

Por seu turno, estudos recentes argumentam que as cadeias agroalimentares estão se tornando cada vez mais “buyer-driven” onde os distribuidores mantêm firme controle sobre a organização do sistema de suprimento e sobre as especificações dos produtos (GEREFFI & KORZENIEWICZ, 1994; DOLAN & HUMPHREY, 2000; GIBBON, 2001; PONTE, 2002 citados por RAYNOLDS, 2002b).

As formas de como executar uma eventual apropriação, no caso do selo do comércio justo, podem ser desde a compra direta dos mesmos produtores registrados por FLO (UCIRI31); a permissão da venda dos produtos certificados em suas lojas (na França isso ocorre através de café da marca Malongo e na Bélgica o fornecedor é uma ATO - Oxfam); ou ainda desenvolvendo seu próprio selo social (em vias de fazê-lo). Apesar do registro do selo mundial de FLO proteger a denominação “Fair Trade”, isso não impede a criação de outros similares – porém aqui sem as garantias dadas aos produtores em termos de preços, pré-financiamento, a exemplo dos programas Utz

31 Contrato de 10 anos a preços do comércio justo. Nas lojas francesas do Carrefour, o café da mesma origem (UCIRI), processado e embalado pelo mesmo importador (Malongo), é distribuído na forma da marca do importador (Malongo), com o selo de FLO; e também disponibilizado como produto da marca Bio-Mexique ou UCIRI Orgânico, sem o uso do selo mas com a identificação de um programa chamado de Café Sustentável.

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Kapeh32 ou Shade Grown. Esse último, utilizado por Starbucks, possui nas palavras de Renard, critérios “light”33 se comparados ao comércio justo ou ao café orgânico. Significa, que se esses selos são exitosos no intento de ganhar para si, por exemplo, o bloco dos consumidores do mercado justo “ ...... terminan de lavar su imagen, a muy bajo costo” (RAYNOLDS, 2002b.p. 14).

7 Considerações Finais FLO ao utilizar as vias do mercado mainstream deve atender às exigências

características a essa nova dinâmica, distinta dos desafios exigidos nas lojas do mundo, das vendas descontinuadas ou da qualidade como não sendo um atributo importante ao consumidor. Dessa forma, a questão primordial é: ao utilizar as vias desse mercado, se não responder rapidamente à dinâmica desses canais, poderá ser capturado por esses? Ou seja, passa a não mais incluir produtos do comércio justo mas, por outro lado, uma alternativa à esse – por exemplo, comércio ético via códigos de conduta ou mesmo esquemas paralelos que Vanderhoff Boersma chamou de “terceira fase”.

No entanto, para responder como o mercado quer, passa a perder alguns de seus pilares para que possa responder à altura contra a proliferação de seus “concorrentes” (códigos de conduta a exemplo de Utz Kapeh). Poderíamos então dizer que FLO flerta com o mercado, pois ainda uma parte importante é comercializada via comércio justo tradicional, mas não responde rapidamente como os códigos de conduta, e tampouco esses últimos possuem uma preocupação real quanto a incluir pequenos produtores, bem como desenvolvê-los em suas potencialidades e remunerá-los adequadamente.

FLO ainda está preso a idéias e práticas do comércio justo original, pois muitos dos seus sócios ainda são resistentes em utilizar a via mainstream sem que o mesmo considere mudanças em sua forma de atuar, por exemplo, redução da margem de lucro dos supermercados. Dessa forma, existem conflitos pela perda de parte de sua prática original e também por não atender plenamente as necessidades de mudança para responder rapidamente à demanda, às várias ofertas para ampliar sua presença no mercado e então romper com sua condição de nicho.

Também merece destaque o fato de FLO ainda estar dependente de doações externas para execução de seu orçamento. Isso pode ser constatado em seu balanço (FLO, 2003a), o que não lhe garante sustentabilidade econômica34. Devem portanto buscar tornar o modelo viável financeiramente através do aumento dos ingressos via licenças e tornando os custos com a certificação, inspeções e auditorias autofinanciáveis

32 Utz Kapeh surge em 1999 e significa “bom café” na linguagem indígena maia (Guatemala). O Utz Kapeh Certified Responsible Coffee é um código de conduta desenvolvido na Holanda pela multinacional Ahold Coffee Company especificamente para o mercado de café e disputa pelos consumidores juntamente com o café do comércio justo de Max Havelaar Holanda. Pode-se acessar o conteúdo de seu código de conduta através de http://www.utzkapeh.org . 33 Para aprofundamentos sobre os conceitos e critérios dos diversos tipos de certicação em café ver o importante estudo de GIOVANUCCI (2003). 34 Em 2002 a contribuição dos sócios – iniciativas nacionais – alcançou a cifra de 1.040.646 euros, por sua vez, as doações das mais diversas fontes (União Européia é uma delas) a cifra de 662.969 euros. O total de 1.703.615 euros são gastos com a certificação e inspeção, desenvolvimento de padrões e outros projetos específicos, inclusos aqueles da rede de apoio aos produtores - PSN (FLO, 2003a, p.17).

21

através da contribuição por parte dos produtores35 e comerciantes. Vale lembrar que esses custos estão internalizados na fórmula de preços a serem pagos aos produtores.

Um outro fato importante a destacar é que os atores envolvidos no comércio justo são os mesmos tanto na Europa quanto nas iniciativas dos empreendimentos de economia solidária no Brasil – ONGs, igreja, sindicatos, grupos de trabalhadores, pequenos produtores, consumidores, estudantes, voluntários, entre outros. Por sua vez, a medida que promovem a auto-organização como condição básica para ingressarem na certificação, seja em associações ou cooperativas estão promovendo para que cada vez mais pequenos produtores pratiquem coletivamente a autogestão. Dessa forma as dificuldades em se obter escala, qualidade, e a formação de redes da chamada Economia Solidária, pouco a pouco, podem vir a serem superadas.

A solidariedade, seja para com outros trabalhadores ou ainda em relação ao meio ambiente, está inscrita na decisão de compra do consumidor, porém, não se pode desconsiderar outras motivações. Um modo de ver o comércio justo, por parte dos consumidores, é que ao financiar a criação de esquemas de comércio que apóie produtores em países pobres estar-se-ia ajudando a reduzir o contingente de imigrantes em se pensando o contexto europeu, visto o fluxo migratório oriundo de algumas regiões da África, Ásia e Europa, e também reduzir o envolvimento de pequenos produtores com a produção de matérias primas para as drogas (coca na Bolívia, Peru, ou ainda Colômbia, por exemplo). Uma confirmação a isso pode ser encontrada em vários estudos realizados através de entrevistas aos consumidores europeus, a exemplo do EUROBAROMETER 50.1 (1999) e EUROPEAN COMMISSION (1999).

Por fim, o comércio justo, ainda em construção, enfrenta desafios e contradições ao atuar no mainstream visto que está no mercado, porém com práticas extracomerciais – preços mínimos, prêmio social, garantias de relacionamento comercial. Dessa forma, não se pode exigir como sendo uma oportunidade que por si só altera a situação de exclusão do mercado do conjunto de agricultores familiares pois não se encontra a altura do problema, mas fortalece a perspectiva de formação de um novo modelo de desenvolvimento que se baseia na organização local da produção em bases mais adequadas em relação ao meio ambiente e aos trabalhadores. Neste sentido, uma parcela se vê incluída nesta dinâmica, e outros buscam se inserir visto o gap existente entre volume de produto certificado e aquele que se pode vender.

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35 Em várias ocasiões os grupos de produtores registrados em FLO para suco de laranja manifestaram sua preocupação no que afirmam ser alto o custo de certificação e a taxa cobrada anualmente. Afirmam que essa poderá ser uma barreira para grupos mais “desvantajados”.

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