comerciantes e cristãos-novos em festa de nobre a transgressão da ordem “natural”

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    COMERCIANTES E CRISTOS-NOVOSEM FESTA DE NOBRE: A TRANSGRESSO

    DA ORDEM NATURAL

    Humberto Jos Fonsca *

    RESUMOPartimos, neste trabalho, do pressuposto de que na Bahia dos sculos XVII e XVIII estamosdiante de uma sociedade barroca, elitista e hierarquizada, cuja elite se caracterizava pela buscadesenfreada da nobilitao, pela exposio fustica dos smbolos de distino de status, pela constante

    procura e exposio de poder e prestgio social. Tal comportamento da elite, acreditamos, estavarelacionado s presses resultantes da conscincia de sua instabilidade estamental, sentindo-seameaada por elementos que, embora discriminados socialmente por questes religiosas, ou peloexerccio de funes consideradas pouco nobres, como os comerciantes e cristos-novos, uns sempreassociados aos outros, possuam caractersticas que permitiam ameaar a hegemonia social destaselites aristocrticas. Analisamos as representaes das elites na Bahia do Antigo Regime tendocomo pano de fundo seus ideais de vida nobre e honrada; as grandes festas promovidas pela Igreja,pelo Estado e pelas confrarias, inserindo-as no tempo longo das representaes coletivas que semodelam ao longo dos sculos. Pretendemos, com isso, colaborar para melhor situar a importncia

    histrica do fenmeno da sociabilidade pela festa, em sua viso didtica, como elemento de difusode novos motivos condutores que nortearam a sociabilidade nos sculos XVII e XVIII na Bahia,no fulcro do domnio de uma sensibilidade que chamamos barroca.

    PALAVRAS-CHAVE: Bahia. Colnia. Cultura Barroca. Elite.

    POLITEIA: Hist. e Soc. Vitria da Conquista v. 7 n. 1 p. 103-141 2007

    * Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Doutor em Histria Social da Culturapela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: [email protected].

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    INTRODUO

    Observar as cerimnias pblicas, nas quais o Estado, a Igreja ou seus

    membros e as elites participavam como promotores ou simples intervenientes determinante para captar a conscincia que os titulares de cargos maisproeminentes na hierarquia pblica ou eclesistica tm das suas funes, doseu lugar social, do seu prestgio e poder. Este postulado inicial faz sentidoparticularmente para os sculos XVII e XVIII, quando a importnciaconferida cerimonialidade e etiqueta e o fascnio exercido pelo ritualsagrado eram enormes.

    Das cerimnias de carter pblico, aquelas relacionadas s datas da

    famlia real, as procisses e as entradas, eram as que mais chamavam a ateno,exatamente pelo seu carter coletivo, e muitas delas passaram da representaoritual para formas progressivamente declaradas de diverso coletiva. Por umaespcie de transbordamento, tanto as festas litrgicas quanto as do Estado,migraram do interior das igrejas e das cortes para as ruas. Tais cerimnias,momentos nos quais se buscava ou se exibia poder e prestgio, representavam,por outro lado, ocasies de armao das hierarquias.

    Na Amrica portuguesa, o sentido do ldico das gentes constrangidas

    ao exerccio da obedincia civil ou da morticao e abstinncias em nomeda f iria inltrar-se pelos desvos dos rituais pblicos civis e religiosos,

    acabando por transformar em diverso pessoal o que era evento ocial ou de

    devoo. Esse fenmeno, disseminado em um meio social cuja simplicidadefavorecia em tudo o controle por parte das autoridades, dos padres eproprietrios, tornar-se-ia possvel graas profuso de oportunidadesque o prprio poder oferecia aos elementos do corpo mstico do Estadocomo aos is, a governados e fregueses, por meio da reiterao com que

    procurava consagrar-se publicamente.Na Bahia do sculo XVIII, a outrora discriminada, mas agora

    enriquecida, comunidade mercantil consegue inltrar-se, como participante

    ativa, nos eventos festivos ou festividades de rua promovidos pela Igreja oupelos representantes da Coroa. Essa comunidade passa a ocupar funes antesreservadas aos funcionrios rgios ou nobreza da terra, numa demonstraoclara de sua aceitao social e de que os alicerces do sentido de hierarquia doAntigo Regime na Bahia estavam sendo abalados.

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    COMERCIANTES E CRISTOS NOVOS: VENDENDO GATOPOR LEBRE

    No Brasil colonial, os comerciantes compunham uma camadaheterognea, que podia ser agrupada em trs grandes categorias. Naprimeira, estavam homens brancos, de origem portuguesa, que exerciamhegemonia sobre os setores de maior capital e especializao. Estes indivduosdominavam o comrcio por grosso, eram proprietrios dos estabelecimentosmercantis de maior importncia e nanciavam a atividade de pequenoscomerciantes. Na segunda categoria estavam os homens, tambm brancos,originrios da terra, que se dedicavam ao comrcio interno, ligando osportos ao interior da colnia e as regies de pecuria nordestina e sulista aosgrandes mercados consumidores de Minas e Rio de Janeiro. Finalmente, naterceira categoria havia negros, mestios e forros, especialmente mulheres,que eram numerosos no comrcio ambulante e nas vendas da periferia dosncleos urbanos, comerciando gneros alimentcios e bebidas (FURTADO;VENNCIO, 2000, p. 95).

    A cidade do Salvador no era apenas o centro administrativo da Capitaniae da Colnia; era tambm a rea urbana mais importante e possua um dosportos mais movimentados de toda a Amrica portuguesa, alm de abrigar

    uma ativa comunidade mercantil, com grandes e pequenos comerciantes. Porvolta de 1600, suas lojas e armazns j formavam uma parte vital da cidade, deimportncia bvia para uma colnia orientada para a exportao de produtosagrcolas e importao de produtos essenciais e de escravos. Em 1618,Ambrsio Fernandes Brando escrevia em seusDilogos:

    Muitos homens tm adquirido grande quantidade de dinheiro amoedadoe de fazenda no Brasil pela mercancia, posto que os que mais seavantajam nela so os mercadores que vem do Reino para esse efeito,os quais comerciam por dois modos, de que um deles o que vem deida por vinda, e assim depois de venderem as suas mercadorias fazem oseu emprego em acares, algodes e ainda mbar muito bom e gris, ese tornam para o Reino nas mesmas naus, em que vieram ou noutras.O segundo modo de mercadores so os que esto assistentes na terracom loja aberta, colmadas de mercadorias de muito preo, como sotoda sorte de louaria, sedas riqussimas, panos nssimos, brocadosmaravilhosos, que tudo se gasta, em grande cpia na terra, com deixargrande proveito aos mercadores que os vendem.1

    1 Ambrsio Fernandes Brando, Dilogos das Grandezas do Brasil, p. 132. Citado conforme edio de 1967(Belo Horizonte: Centro de Estudos Mineiros da UFMG).

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    O porto de Salvador era o centro da vida martima e comercial daCapitania. Para ele situado no eixo das rotas comerciais do Atlntico e do

    padro vertical do comrcio costeiro se dirigia o acar do Recncavo e deoutras Capitanias, como a de Ilhus, de onde era exportado para a Europa.Podiam ainda ser encontrados com facilidade no porto de Salvador, mandiocae muitos vinhos da Ilha da Madeira, das Canrias, os quais se vendem em lojasabertas, e outros mantimentos de Espanha, e todas as drogas, sedas e panosde toda a sorte, e as mais mercadorias acostumadas.2

    Os grandes comerciantes se incumbiam do embarque do acar paraa Europa e da venda e distribuio dele no velho continente. Alm disso,

    comercializavam os produtos vindos de Portugal, e como muitos deleseram tambm proprietrios de embarcaes, dedicavam-se ainda ao frete demercadorias, inclusive ao trco de escravos da frica para o Brasil. Era comumque eles concedessem emprstimos aos senhores da terra para a instalao emelhoramentos dos engenhos. Tais emprstimos podiam ser pagos em caixasde acar ou rolos de tabaco, que exportados davam bons lucros aos homensde negcio. Porm, no era raro que os senhores de engenho e lavradores seendividassem alm de suas capacidades e entrassem em conito com seuscredores. Em 1663, o Senado da Cmara pediu, no que foi atendido pelo rei,uma proviso para que por seis anos se no zessem penhora e execuo pordvidas nas fbricas dos engenhos e lavouras, e que fossem pagos os credorespelos rendimentos, e que o acar que viesse praa por execuo se noarrematasse.3Em seis de julho de 1683, o Senado renova o pedido, por queos credores por fraudarem os devedores executados faziam as suas execuesem o acar e mais gneros da terra de tempo que no tinham valor por noser tempo da carga das frotas, onde entendem seu justo preo.4Mais umavez foram atendidos os senhores de terra ao pedido que tinham feito ao rei

    via Senado da Cmara, dominado por eles.A economia colonial apoiava-se no trabalho escravo, na agricultura e no

    comrcio. Pressionada e inuenciada pela cultura senhorial, isto , pelo espritoescravista, antiburgus e aristocrtico, a categoria mercantil adotava o mesmo

    2 Gabriel Soares de Sousa,Notcia do Brasil, p. 139. Citado conforme edio de 1974 (So Paulo: Departamentode Assuntos Culturais do MEC), com comentrios e notas de F. A. de Varnhagem, Piraj da Silva e FredericoEdelweiss.

    3 Documentos Histricos do Arquivo Municipal (Salvador) DHAM, Cartas do Senado. 1673-1684. v. 2.Salvador: Prefeitura do Municpio de Salvador, 1952. p. 115-116.

    4 Idem.

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    tipo de comportamento social dos senhores: desejava possuir escravos, almejavaa condio de senhor de engenho e, principalmente, os ideais de nobreza e

    honra da aristocracia aucareira.No sculo XVII, o corpusgregoriano era profuso na stira s pretenses

    nobilirquicas da elite baiana: O Fidalgo esclarecido/ Traz longe adescendncia/ Mas dalgo de inuncia/ Sem ter solar conhecido,/ dalgointroduzido/ Enfronhado em Fidalguia (MATOS, 1990, v. II, p. 689).

    Membro de uma famlia de senhores de engenho, Gregrio de Matossatirizava, em especial, a nobreza adquirida pelo comrcio. Para ele, o nobrebrasileiro era aquele ligado ao engenho e aristocracia metropolitana, enquanto

    que o homem de comrcio, trapaceiro, estava marcado com o estigma do judeu;portanto, deveria ser excludo de qualquer nobreza por no possuir pureza desangue. O poeta mostra-se indignado com os mercadores que, com seus tantosmil cruzados adquiridos via trapaas, vendendo gato por lebre, conseguiammuito rapidamente, antes que quatro anos passem, comprar seus escravose viver senhorialmente no Iguape,5com um engenho e trs fazendas que ofazem homem grande.

    Para Gregrio de Matos, era inaceitvel o rompimento da xidez da

    ordem estamental. Portanto, a ascenso nobreza daquele pobrete de Cristo,que em quatro anos se transforma em homem grande, era uma sriatransgresso da ordem natural das coisas (MATOS, 1990, v. I, p. 334-336):Que se despache um caixeiro/ Criado na mercancia/ Com faro de dalguia/Sem nobreza de escudeiro!/ E que a poder de dinheiro/ E papis falsicados/Se vejam entronizados/ Tanto mecnico vil/ Que na ordem mercantil socriados! (MATOS, 1990, v. II, p. 689).

    Aos mercadores que, como os senhores de engenho, e concorrendocom eles, procuravam os ttulos de nobreza, Gregrio de Matos atribui toda asorte de ms inuncias na Bahia colonial.

    Triste Bahia! Oh quo dessemelhanteEsts, e estou do nosso antigo estado!Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,Rica te vejo eu j, tu a mi abundante.

    A ti tocou-te a mquina mercante,Que em tua larga barra tem entrado,

    5 Situado na regio do Recncavo, prximo cidade do Salvador, onde se encontravam os melhoresengenhos.

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    A mim foi-me trocando, e tem trocadoTanto negcio, e tanto negociante.

    Destes em dar tanto acar excelentePelas drogas inteis, que abelhudaSimples aceitas do sagaz Brichote.Oh se quisera Deus, que de repenteUm dia amanheceras to sisudaQue fora de algodo o teu Capote!(MATOS, 1990, v. I, p. 333)

    Desde o sculo XVI, existiam, entre os comerciantes, muitos quetem grossas fazendas de engenho e lavoura na prpria terra.6Na dcada de

    1580, pelo menos um tero dos engenhos do Recncavo era de propriedadede comerciantes que resolveram trocar ou aliar as atividades mercantis s daagricultura do acar.

    Membros de um grupo social marcado pelo estigma semita, desprezadospela populao como cristos-novos,7os comerciantes eram tolerados pelaCoroa como meio de provimento dos cofres reais. Em 1644, durante umsermo pregado na igreja de So Roque de Lisboa, o padre Vieira propunha,como soluo para salvar as nanas de Portugal e enfrentar a guerra com

    Castela, a formao de duas companhias de comrcio: era necessrio, apregoavao padre Vieira, conar nos comerciantes mal reputados na f. E, em 1649,d. Joo IV, a despeito das orientaes do Santo Ofcio, aceitou o dinheiro doscristos-novos para fundar a Companhia Geral do Brasil.

    A estrutura econmica da Amrica portuguesa exigia a presena docomerciante e o controle menos rgido fazia do Brasil um refgio para osque escapavam da Inquisio na Espanha e em Portugal.8O cristo-novocriou, pois, razes profundas na Bahia e, como o sucesso nanceiro sempreprecede a aceitao social, galgou posies representativas na vida social epoltica. Solicitados para importantes decises da Cmara e procurados comoconselheiros e nancistas (NOVINSKI, 1972, p. 60), os cristos novos nodeixavam de causar cimes na aristocracia. Em 1653, Bernardo Vieira Ravasco,

    6 Ambrsio Fernandes Brando, Dilogos das Grandezas do Brasil, p. 133. Cf. nota 1 supra.

    7 Para uma bibliograa sobre os cristos-novos, cf., dentre outros,NOVINSKY (1968); SALVADOR (1969);SIQUEIRA(1978) e SARAIVA(1985).

    8 Em algumas ocasies, a Coroa tentou limitar a migrao de cristos-novos para o Brasil e outros territriosportugueses. Tentativas infrutferas; o Brasil acabou se tornando local preferido para o banimento de cristos-novos apstatas. A unio com a Espanha (1580-1640) elevou o nmero de imigrantes cristos-novos noBrasil (cf. NOVINSKY, 1968, p. 417-437).

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    Secretrio do Estado e Guerra do Brasil, grande senhor de engenho e ligados mais poderosas famlias locais, queixa-se ao rei de ter assento inferior,

    quando os mercadores tm cadeiras de espaldar, diante do governador.9Atnas confrarias, rgos importantes na vida social e religiosa, os cristos novospenetraram. O cristo-novo Nuno Franco, ourives, foi tesoureiro da Confrariade So Francisco por volta de 1585 e, ao tempo da primeira visitao do SantoOfcio, dois cristos-novos estavam encarregados de recolher ofertas para asConfrarias s quais pertenciam. Ferno Gomes, por exemplo, administrava oservio do altar de Nossa Senhora da Ajuda, de Salvador, e tambm costumavapedir esmolas para a respectiva igreja (SALVADOR, 1969, p. 163).

    Segundo a legislao da poca, cabia ao cristo-novo, no quadro social,o mesmo lugar que ao negro, distinguidos, ambos, dos cristos-velhos pelaimpureza de sangue.10 Mas o fato de ter a mesma cor da pele do cristo-velho permitia-lhes frequentemente burlar os dispositivos legais e conquistarprivilgios destinados aos cristos de velha etnia (NOVINSKY, 1972, p. 59). Porexemplo, Manuel Serro Botelho, lho de Lope Botelho, um cristo-novoque servira na frica com d. Sebastio, requereu e foi aceito para um cargode ouvidor na Bahia, porque embora fosse um cristo-novo, havia se casadocom uma crist de velha cepa e demonstrara desejo de ser assim considerado.

    Tanto ele quanto seu pai no mais se davam com outros cristos-novos e amboseram homens muito honrados.11Tambm Diogo Lopes Ulhoa, condentedo Governador Diogo Luis de Oliveira, aos 80 anos solicitou o ingresso naOrdem de Cristo, o que lhe foi inicialmente negado porque por ambas aspartes, materna e paterna, descendente da nao hebria. No entanto, margem do processo, o rei deu o seguinte despacho: dispenso no defeitoda idade; e para suprimento no sangue oferecer breve de S. Santidade e amesa lho guardar.12Note-se que a Coroa portuguesa s concedia o ttulo de

    9 PROJETO RESGATE de documentao histrica Baro do Rio Branco. Documentos manuscritosavulsos da Capitania da Bahia (Luiza da Fonsca) (1599-1700). Ministrio da Cultura, Brasil; ArquivoHistrico Ultramarino; Instituto de Investigao Cientica Tropical-Lisboa. AHU. Doc. Bahia (Luiza daFonsca): cx. 12, docs. 1546 a 1548.

    10 Nos documentos da poca, nas clusulas relacionadas s proscries e impedimentos, geralmente vinhamexpressos os de natureza tnico-religiosas: no ter no sangue mistura com raas infectas de mouro, judeuou mulato.

    11 Requerimento de Manuel Serro Botelho que pede a propriedade do ofcio de Provedor da Fazenda da Bahia. AHU.Doc. Bahia (Luiza da Fonsca), cx.2, doc. 155.

    12 CALMON, Pedro. Introduo e notas ao Catlogo genealgico das principais famlias, de Frei Jaboato. A obra de FreiJaboato foi escrita em 1768, mas publicada pela primeira vez em 1889, na Revista do IHGB, tomo 52,parte 1. Reimpressa na Bahia em 1943, pelo Instituto Genealgico da Bahia, reeditada em 1945 e 1950.Para este trabalho estamos utilizando a edio com introduo e notas de Pedro Calmon, 2 v. Salvador:Empresa Grca da Bahia, 1985.

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    dalguia e a maior parte dos cargos governamentais aos antigos cristos queno tivessem mancha da raa de judeu, mouro ou negro.

    A despeito de estar relegado condio de pria na metrpole, o cristo-novo conseguiu conquistar status e honorabilidade na Amrica portuguesa.Em certa medida, a colnia oferecia uma situao de vigilncia menos intensae possua uma estrutura social mais aberta, o que a tornava particularmenteatrativa para o cristo-novo. Papel relevante nesta atrao teve o acar.

    Entre 1587 e 1592, de 41 engenhos cujos proprietrios puderam tersuas origens identicadas, doze deles eram de propriedade de cristos-novos.No perodo entre 1620-1660, entre 150 cristos-novos identicados, Anita

    Novinsky apura um percentual de 14% de senhores de engenho e 31% demercadores e homens de negcios.13

    A condio de senhor de engenho conferia ao cristo-novo, comoocorria com o cristo-velho, uma posio de relevo semelhante do dalgono Reino. Ser senhor de engenho como em Portugal ser senhor de vilas,comentava o padre Temudo em seu Relatrioenviado ao Santo Ocio. Mas bvio que o fato de um elemento identicado como inferior, um pria,desprezado e estigmatizado pela mentalidade popular, apenas tolerado pela

    Coroa por interesses econmicos, vir a ocupar uma posio igual da dalguiae do clero, que se consideravam, tradicionalmente, os herdeiros legtimos enicos de todos os privilgios, no foi recebido sem reao na Bahia.

    A honra, patrimnio exclusivo da nobreza, era o maior valor aspiradopela elite colonial. E para se ter honra, era preciso ser nobre. O cristo-novo, sem nome, sem estirpe, no podia almejar esse valor. Contudo, doponto de vista econmico, o senhor de engenho cristo-novo se colocava emuma posio igual do cristo-velho, ameaando, portanto, a hegemonia daortodoxia catlica. O sucesso econmico dos cristos-novos, cujo nmero einuncia cresciam cada vez mais na Bahia, estimulava reaes de cimes quelevaram ao aumento da perseguio. O cime econmico e social se traduzia,assim, na cobrana de ortodoxia e na perseguio religiosa.

    Gregrio de Matos, que no perdoava os comerciantes, no perdoariatambm os cristos-novos, pois Quantos com capa crist/ Professam ojudaismo,/ Mostrando hipocritamente/ Devoo lei de cristo (1990, v.I, p. 40). Revestido de zelo pela ortodoxia crist, que lhe dava um carter

    13 Cf. NOVINSKY(1972, p. 101-102 e apndice 2, p. 176).

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    religioso, o cime econmico e social foi uma das causas do estabelecimentodos Comissrios e Familiares do Santo Ofcio e das Visitaes da Inquisio

    ao Brasil.Em seu Relatrioao Santo Ofcio, o Padre Manuel Temudo, vigrio da

    S, queixava-se do grande nmero de judeus na Bahia, revelando que muitosso senhores de engenho e de muitas fazendas que possuem. Indignado, eledizia que a maioria desses judeus so poderosos e ricos e ocupam o melhorde todo o Estado.14O caso de Diogo Lopes Ulhoa foi o que mais indignou opadre Temudo. Ulhoa era um comerciante e senhor de engenho, cristo-novo,que se tornou prximo do governador Diogo Luis de Oliveira, na dcada de

    1620, e agente de conana dos jesutas. Sobre ele escreveu o Padre Temudoem seu Relatrio:

    Os cristos-novos procuram ter o Governador e Justias de sua mocom ddivas, e eles so vereadores e muitos deles juizes [...] e depresente o governador Diogo Luis de Oliveira tem por familiar amigo,ou conselheiro, ou secretrio ou tudo a Diogo Lopes Ulhoa [...]. Llhe chamam o Conde-Duque,15e pblico e notrio que ele lhe v ascartas Del-Rey, e que o dito Diogo Lopes lhe faz as respostas [...] e porassim o terem os governadores que a ele vo os favores e o que pior

    se governam por eles.16

    No era difcil, por outro lado, identicar o cristo-novo com o herege.De fato, muitos deles permaneceram judeus secretamente. Diogo LopesUlhoa foi acusado pela Inquisio, em 1591, de ter sinagoga domstica em seuengenho em Matoim. Diziam asDenunciaes do Santo Ofcioque em casa deDiogo Lopes Ulhoa, cristo novo mercador nesta cidade se fazia esnoga [sic]com ajuntamento de judeus e que quando uns estavam dentro fazendo esnoga,outros andavam de fora vigiando. Quando, em 1610, morreu uma das irms deDiogo Lopes Ulhoa, sua morte foi pranteada segundo os costumes judaicos.17Mas sabido que, tanto os que permaneceram judeus quanto aqueles queabandonaram verdadeiramente o judasmo foram discriminados e perseguidospela populao colonial. Os autos da Inquisio de 1618 mencionam 34

    14 Relatrio do Padre Manuel Temudo de 1632(NOVINSKY, 1968, p. 417-423).

    15 Aluso irnica ao Conde de Linhares, Ministro e condente de Felipe IV, da Espanha.

    16 Relatrio do Padre Manuel Temudo de 1632(NOVINSKY,1968, p. 422).

    17 Antnio de Santa Maria [Frei Jaboato], Catlogo Genealgico das Principais Famlias que Precederam deAlbuquerque, e Cavalcantes em Pernambuco, e Caramurus na Bahia, v. I, p. 304. Cf. nota 12 supra.

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    engenhos indiciados, 20 deles de propriedade de cristos-novos (NOVINSKY,1974, p. 259-292).

    A discriminao e o preconceito contra cristos-novos esto registrados,sem subterfgios, nas condies impostas para o ingresso nas Irmandades

    da Bahia colonial. A Santa Casa da Misericrdia da Bahia, fundada em 1549,

    era uma das mais prestigiosas da Colnia e fazer parte dela era uma tradio

    de famlia para os membros da aristocracia baiana. O cargo de Provedor da

    Santa Casa era monopolizado pela aristocracia rural, que o ocupou por todo o

    sculo XVII e parte do sculo XVIII, e, muitas vezes, era passado de pai para

    lho. Segundo o Compromisso de 1618, o provedor da Santa Casa devia

    ser sempre um homem dalgo de autoridade, prudncia, virtude, reputao,e idade, de maneira, que os outros irmos o possam reconhecer por cabea,

    e o obedeam com mais facilidade, e ainda que todas as sobreditas partes o

    merea, no poder ser eleito de menos idade de quarenta anos.18At incios do

    sculo XVII, a Santa Casa era regida pelo compromisso de Lisboa de 1516, que

    exigia que os postulantes Irmandade fossem de boa fama, e s conscincia

    e honesta vida, temente a Deus, e guardadores de seus mandamentos, mansos

    e humildes a todo servio de Deus e da dita confraria.19Em 1618, um novo

    compromisso passa a viger na Santa Casa. Este estipulava sete condies para

    o ingresso na Irmandade. A primeira delas determinava que o candidato

    seja limpo de sangue sem alguma raa de mouro, ou judeu no somenteem sua pessoa, mas tambm em sua mulher se for casado, como pratica,e usa na Irmandade de Misericrdia por um acordo da Mesa, e Junta,que esto no livro primeiro dos acordos a fol. 254 feito em 25 de maiode 598, e conrmado por outro acordo de Mesa e Junta feito a 8 dejunho de 603, que est no dito livro a fol. 301.20

    Isto implicava uma modicao de natureza social com relao aocompromisso de Lisboa de 1516. Alm de introduzir uma clusula exigindoa pureza de sangue religioso, embora fosse comum s Ordens Terceiras aexigncia de pureza de sangue, o novo compromisso impunha a pureza desangue tnico.

    18 Compromisso de 1618, cap. VIII, pargrafo I, apud RUSSEL-WOOD(1981, p. 89).

    19 Compromisso de 1516, cap. II apud RUSSEL-WOOD(1981, p. 95).

    20 Compromisso de 1618, cap. I, pargrafo IV, apud RUSSEL-WOOD(1981, p. 95).

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    A despeito de toda a perseguio que se abateu sobre os cristos-novos, eles acabaram por se misturar por todos os segmentos da sociedade

    baiana e, no sculo XVIII, estavam j totalmente assimilados, inclusive entreas famlias aristocrticas.

    A princpio, na tentativa de distinguir-se o mais que pudessem dasoutras classes sociais da Colnia, os senhores de engenho procuravamsalientar sua pureza de sangue. O status nobilirquico, teoricamente,dependia da pureza racial e religiosa, constituindo, por isso, um meio deenfatiz-la. As famlias de senhores de engenho tentavam assegurar-se deque nenhum de seus membros reverteria o processo.21Nem sempre, no

    entanto, tais expedientes davam resultado e unies com cristos-novoseram relativamente comuns. Por exemplo, a famlia Moniz Barreto, umadas principais da aristocracia baiana, cujo genearca, Egas Moniz Barreto,dalgo da Casa Real, foi um dos fundadores da cidade do Salvador, eraligada por vrios laos de parentesco, adquiridos por meio de casamentos,com cristos-novos. Henrique Moniz Teles, pai de Henrique Moniz Barretoe proprietrio de um engenho em Matoim, casou-se em segundas npciascom d. Leonor Antunes, lha de d. Ana Rodrigues, processada pelaInquisio por prticas judaicas e queimada na fogueira em Portugal.22Almdisso, Muitas famlias de origem crist-nova no Recncavo permaneceramimportantes durante todo o perodo colonial, como, por exemplo, os LopesFranco, Ulhoa, Parede, Gomes Vitria etc.

    FORMAS DE REPRESENTAO DA COMUNIDADEMERCANTIL DA BAHIA

    No se pode armar que o grupo mercantil da Bahia possusse, nesseperodo, uma identidade coletiva. Todavia, certo que havia uma certa

    comunidade de interesses sucientes para permitir alguma cooperao entreeles, manifestada em aes como no caso da oposio Relao da Bahia,implantada em 1609. Os comerciantes faziam chegar Cmara, e da ao Tribunalda Relao, sua insatisfao (SCHWARTZ, 1979, p. 83).

    21 O Governador Mem de S incluiu em seu testamento uma clusula que exclua seus descendentes daherana caso desposassem algum que no fosse cristo-velho. Jernimo de Burgos fez o mesmo. O fundopara dotes legado Misericrdia por Joo Matos de Aguiar destinava-se apenas a candidatas crists-velhas.Cf. SCHWARTZ(1988, p. 231).

    22 Antnio de Santa Maria [Frei Jaboato], Catlogo Genealgico das Principais Famlias que Precederam deAlbuquerque, e Cavalcantes em Pernambuco, e Caramurus na Bahia, v. I, p. 285-297 e notas de Pedro Calmon.Cf. nota 12 supra.

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    Em 1649, foi criada, em Portugal, uma Companhia Geral deComrcio do Brasil, cujos estatutos, submetidos ao Conselho Ultramarino,

    foram aprovados por alvar rgio de 10 de maro do mesmo ano.23Estacompanhia tornou-se to impopular na Bahia que, apesar das vrias tentativasdo Conselho Ultramarino, foi impossvel a criao, mais tarde, de outrasCompanhias de Comrcio.

    A notcia da criao em Lisboa da Companhia Geral do Brasil no foirecebida com muito entusiasmo na Bahia, apesar do que pode deixar parecer ostermos elogiosos que se vem no incio da resposta do Senado da Cmara:

    A carta de Vossa Majestade sobre a aceitao da Companhia Geralrecebemos em treze do ms de agosto. Para se dar a execuo, chamamoso Povo a esta Cmara, ao qual junto se leu a mesma Carta de VossaMajestade e os captulos da instituio da Companhia Geral, que todosabraamos com alegria geral, rendendo a Deus as graas e a VossaMajestade pela lembrana que tem em socorrer a todo este Estado toperseguido... com as contnuas vexaes das armas inimigas...

    No entanto, continuando a carta, os vereadores apresentam uma sriede reclamaes contra a Companhia:

    Porm, como Vossa Majestade foi servido conceder CompanhiaGeral por estanque os quatro gneros com o preo excessivo, dapipa de vinho por quarenta mil Ris, o barril de azeite por dezesseisa arroba, a farinha por mil e seiscentos e de bacalhau pelo mesmo,por se dizer, a Vossa Majestade ser este preo mais acomodadoque neste tempo se venderam nesta praa, que foi o que moveu a

    Vossa Majestade para ser servido conceder Companhia Geral ospudesse vender pelo mesmo, sendo este dos mais subidos, que notempo de mor carestia chegar a valer os ditos gneros e no tempo daconrmao que Vossa Majestade fez da Companhia Geral estando

    valendo nesta praa a pipa de vinho trinta e cinco mil Ris, o barrilde azeite dez a arroba, de farinha mil e cem Ris. Pede a VossaMajestade este povo seja servido, como Rei e Senhor, mandar quehaja alguma diminuio em preo to excessivo, para sobrar forae servir a Vossa Majestade como to leais vassalos. Guarde Deus aCatlica e Real Pessoa de Vossa Majestade.24

    23 Alvar de 10 de maro de 1649. Arquivo Pblico do Estado da Bahia. APEB. Alvars e Ordens Rgias, v.121, . 18.

    24 Registro de uma carta que os Ociais da Cmara escreveram a Sua Majestade. APEB. Alvars e Ordens Rgias, v.121, . 18v. No datada, classicada entre 4/06 e 19/10/1650.

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    Essas queixas iro se reproduzir ao longo do sculo. Em 10 de junhode 1651, o Senado mandava outra longa carta de reclamaes contra uma

    srie de abusos cometidos pela Companhia Geral, que terminava com aqueixa contra os Ministros da Companhia que vem a estancar no s quatro,mas todos os gneros com notvel perda e escndalo dos vassalos de VossaMajestade.25O excessivo encarecimento dos preos das quatro mercadoriasestancadas (vinho, farinha, azeite e bacalhau salgado) tornaria a Companhiacada vez mais impopular. Finalmente, por Alvar de 9 de maio de 1658, seusprivilgios foram suprimidos; em 1684, ela foi incorporada pelo Estado; e, em1720, nalmente extinta.26

    A partir da segunda metade do sculo XVII, o comrcio da Bahia sofreuum grande impulso com o desenvolvimento da cultura do tabaco. Este j eraplantado na Bahia desde incios da colonizao. Segundo Antonil, depoisde cultivada por grande parte dos moradores dos campos, que chamam daCachoeira, e de outros do serto da Bahia, o tabaco

    passou pouco a pouco a ser um dos gneros de maior estimao quehoje saem desta Amrica meridional para o Reino de Portugal e paraos outros reinos e repblicas de naes estranhas. E, desta sorte, uma

    folha antes desprezada, e quase desconhecida, tem dado e d atualmentegrandes cabedais aos moradores do Brasil e incrveis emolumentos aoserrios dos prncipes.27

    Desde o nal da primeira metade do sculo XVII, o fumo j possuiimportncia como produto comercial. At 1648, Angola achava-se ocupadapelos holandeses. Estes, no entanto, haviam autorizado os portugueses a tracarescravos em quatro portos da frica Grande Popo, Uid (ou Ajud), Jaquime Ap a leste e ao longo da costa do Daom, atual Benin 28 com a condio

    de no trazerem nenhuma mercadoria da Europa, alm de fumo. Acontece queera proibido por lei a introduo em Portugal de fumo de terceira categoria,que cava na Bahia para consumo local.

    25 Procedimentos e excessos dos Ministros da Companhia Geral e dos feitores deste Estado . APEB. Alvars e OrdensRgias, v. 121, . 27.

    26 APEB. Alvars e Ordens Rgias, v. 395, docs. 07, 32 e 95 respectivamente.

    27 Andr Joo Antonil [Joo Antnio Andreoni, S. J.], Cultura e opulncia do Brasil, p. 149. Citado conformeedio de 1982 (Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Edusp).

    28 Esta costa era conhecida como costa da Mina, em funo da dependncia para com o Castelo de SoJorge da Mina, fundado em 1642. Cf.VERGER(1987, p. 21).

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    As folhas de fumo de terceira categoria, s quais faltava substncia,alm de serem de pequeno tamanho ou quebradas, sofriam um tratamento

    especial para evitar ressecamento ou apodrecimento. Para isso, untavam-namais abundantemente com melao que as de primeira qualidade, quando eramtorcidas e colocadas em rolos. O aroma que se desprendia deste fumo o faziaespeciaria admirada nos portos da costa da Mina. Assim, a mediocridade destamercadoria fazia a sua qualidade.

    A qualidade inferior do tabaco, portanto, tornou-se um fator de sucessopara o produto na costa da Mina. Alm disso, a necessidade que os holandesestinham de dispor da mercadoria para fazer seu prprio trco estava na base da

    permisso outorgada aos navios portugueses para tracarem na costa da Mina,sob a condio de deixarem dez por cento de seu carregamento de tabaco.

    Por um decreto de 12 de janeiro de 1644, d. Joo IV autorizava os naviosportugueses, carregados de tabaco, a irem diretamente da Bahia para os portos dafrica em busca de escravos e traz-los para o Brasil. Dessa forma, na Bahia otrco no se fazia segundo o clssico esquema das viagens triangulares, o comrcioestabeleceu-se diretamente entre as duas regies, pelos navios armados na Bahiaque faziam viagens de ida e volta, sem passar pela Europa. Este movimento est

    associado mudana de rota do trco de escravos para a Bahia, at ento feitopredominantemente no sentido Angola-Bahia, para a costa da Mina.29

    Foram constantes os esforos da Coroa para que os negociantes daBahia enviassem seus navios para o trco na Guin, Angola e Congo, regiesconsideradas conquistas da Coroa de Portugal. Mas l, os comerciantes baianosno tinham mercado para um tabaco de terceira, preferindo continuar a tracarcom a costa da Mina. Disto resultou uma intensa oposio entre os homensde negcio de Portugal e os da Bahia.

    Em 1698, os comerciantes da Bahia zeram proposta de criao de uma

    Companhia de Comrcio, cujos estatutos seriam inspirados nos da CompanhiaGeral do Comrcio do Brasil. Aps parecer desfavorvel do ConselhoUltramarino, em 1699, alegando prejuzos que causariam Companhia de Cacheue Cabo Verde, que faziam o trco com o Gabo e a Costa da Mina, em 7 dejunho de 1700, o Governador Geral do Brasil, d. Joo de Lencastre recebia deSua Majestade um despacho em que declarava, dentre outras coisas que:

    29 Sobre o ciclo do trco de escravos da costa da Mina, cf.VERGER(1987) eVIANAFILHO(1988). Para aimportncia do fumo na economia colonial, LAPA([s.d.]) e SANTOS(1974). Ver, tambm, Antonil, Cultura eopulncia do Brasil(cf. nota 27 supra).

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    no que toca Companhia que pretendem os homens de negcio dessacidade em que se insinua, podero entrar os de Pernambuco e Rio de

    janeiro, hei por bem de prometer esta companhia, com declarao,porm, que ser livre a todos os moradores, assim desse Estado, comodeste Reino, poderem mandar as suas embarcaes livremente, comoat agora faziam, com condio de que sero obrigados pagar a mesmacompanhia o comboio que se entender conveniente.30

    Na resposta dos negociantes da Bahia, redigida confusamente, cadifcil saber se eles aceitavam admitir sem distino todos os vassalos do reide Portugal, quer fossem do Brasil, do reino ou de suas conquistas. Mas, em1702, d. Pedro II entrega ao recm designado Governador Geral do Brasil, d.

    Rodrigo da Costa, instrues nas quais dizia que:

    No havia ainda nesta [resposta dos homens de negocio da Bahia] todaaquela clareza, e individuao, de que necessita para o ltimo ajuste deum negcio de tanta importncia, e por ar de vosso zelo, atividade eprudncia, que tomando vs uma inteira notcia deste particular assimna Bahia, como das mais praas daquele Estado, me informeis sobreele com tal exao que eu possa tomar a ltima resoluo.31

    A resposta do novo governador foi muito clara, tendo-a expressada num

    despacho datado de 9 de outubro de 1702:

    A formao da companhia proposta por alguns negociantes da Bahia Sua Majestade impossvel, tanto em razo dos enormes capitaisnecessrios, quanto das mudanas de inteno de alguns dos que haviamfeito tal proposta.32

    Neste mesmo ms de outubro, foi criada a Superintendncia doTabaco, um rgo alfandegrio especial cuja funo era promover e controlar

    o comrcio deste produto. Pelo regimento de 18 de outubro de 1702,

    33

    cabia-lhes administrar o comrcio do tabaco, zelar por sua qualidade, coibir e punir ocontrabando. Foi criada uma casa na Bahia e outra em Pernambuco, compostacada uma delas de um superintendente, Juiz da balana, Escrivo do registrodo tabaco, Escrivo da ementa do tabaco, Marcador do tabaco, Guarda mor,Escrivo do guarda mor e Guarda livros.

    30 APEB. Alvars e Ordens Rgias, v. 395, doc. 126.

    31 APEB. Alvars e Ordens Rgias, v. 395, doc. 5.

    32 APEB. Correspondncia do Governo da Bahia para Lisboa, v. 133, . 46.

    33 APEB, Cartas da Corte para o Governo da Bahia, v. 766, doc. 8.

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    A rivalidade entre os negociantes de Lisboa e os da Bahia continuousem grandes mudanas at 1720, quando da chegada de d. Vasco Fernandes

    Csar de Meneses, quarto Vice-rei do Brasil. Logo no incio de sua regncia,que durou quinze anos, o Vice-rei favoreceu as iniciativas dos negociantes daBahia contra os de Lisboa. A Bahia via-se, nalmente, livre do peso que havia

    constitudo para sua economia os privilgios dos quatro gneros concedidos em1649 Companhia Geral do Comrcio e, em 1723, atendendo s solicitaesdos negociantes da Bahia, o Vice-rei responde a uma consulta da Corte comum Parecer, datado de 14 de junho, mostrando-se favorvel criao de umaespcie de Cmara de Comrcio. Reconhecendo a importncia adquirida pelos

    homens de negcio na Bahia, ele declara:

    sendo esta cidade cabea do Estado e achando-se com mais negcioque nenhuma outra do Reino, porque o tinha com Lisboa, Porto, Sena,Ilhas de Madeira e Aores, e com todas as Conquistas de Angola,Costa da Mina, Cacheu, Ilhas de So Tom e do Prncipe, e do Cabo

    Verde, e tambm com todos os portos do Brasil e minas, com tantafreqncia que eram poucos os moradores que no negociassem paraumas e outras praas.Disso resultava haver muitas dvidas e por esse motivo se fazia preciso

    haver Procurador Comum do Comrcio, que faa os requerimentos quea ele tocassem, e Mesa e Junta que os resolvesse, como se observa naCorte, porque s daquela maneira se poria melhor o comrcio com maisutilidade ao Reino, aumento do Estado, sossego dos Governadores delee menos confuso dos Ministros.34

    D. Joo V aprova o parecer, conrma Domingos de Azevedo do Couto,

    que fora nomeado Procurador do Comrcio pelos homens de negcio da

    Bahia, e acrescenta que,

    [...] concedo que possam estabelecer a dita Mesa de negcio nestacidade, escolhendo para seu estabelecimento a parte mais conveniente,e tambm a praticar-se nela o mesmo Regimento e Estilos que seobservam nas da Corte e cidade do Porto, enquanto Sua Majestade nomandar o contrrio [...].35

    34 Parecer do Vice-rei, Vasco Fernandes Csar de Meneses sobre haver Junta de Comrcio na Bahia. APEB, Cartas doGoverno da Bahia para Sua Majestade, v. 132, . 127.

    35 Proviso de Sua Majestade sobre Mesa de Comrcio que se h de haver nesta cidade. APEB, Cartas do Governo daBahia para Sua Majestade, v. 132, . 127.

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    A Mesa do Bem Comum dos Homens de Negcio da Bahia, como couconhecida, provocou algumas reaes contrrias a ela. Numa carta dirigida a d.

    Joo V, em 5 de novembro de 1736, o Senado da Cmara de Salvador queixava-se das taxas impostas pela Mesa de Negcio, considerando-as intolerveis. OSenado questionava a prpria existncia da Mesa:

    [...] no nos consta que a referida Mesa de negcio esteja conrmada porVossa Majestade e nem aprovado o subsdio para ela aplicado [...] de umvintm em cada volume despachado na Alfndega e em cada cativo quevem dos portos da frica e Guin, que pagam os mercadores e donosdas fazendas e escravos [...] representamos a Vossa Majestade, a quems pertence levantar e desfazer tribunais, em pr e extinguir tributos,para mandar neste particular o que a Vossa Majestade parecer justo.36

    Em 12 de fevereiro de 1738, o Intendente do Ouro,37DesembargadorWenceslau Pereira da Silva, que j havia exercido a funo de Juiz de Fora naCmara de Salvador, funcionrio devotado aos interesses da Corte e oposto saspiraes dos negociantes da Bahia, escreveu um longo parecer em que propeos meios mais convenientes para suspender a runa dos trs principais gnerosdo comercio do Brasil, acar, tabaco e sola. Aps apontar as diversas causas

    desta runa, aponta os remdios que devem ser aplicados: o primeiro coibiros abusos de luxo que se vem na cidade, lanando um rigoroso tributo sobreos gneros estrangeiros, que sendo desnecessrios para o preciso sustento edecente trato, s servem de fomento para a vaidade.

    O segundo remdio para os males procedidos de falta e carestia deescravos, que so as mos e os ps deste corpo, sem os quais nopodemos subsistir, consiste em se aplicar todo o cuidado e buscarmeio de o prever deles todos os anos com abundncia, para que cresaa lavoura se aumentem as fbricas e lavras das minas em utilidade

    comum das Reais Rendas, dos vassalos e do comrcio nacional. Paraesse efeito o melhor e mais proporcionado arbtrio que se oferece naconjuntura presente o estabelecimento de uma nova Companhia Geral imitao das que em outros reinos, cujo trco e principal empregoser resgatar escravos, conduzi-los de frica e vend-los nos portos domar do Brasil. [...] Estabelecida esta se pode interessar nela a mercancia

    36 APEB. Cartas do Senado, v. 131, . 106.

    37 As Intendncias do Ouro foram criadas em 1735, num momento de grande ascenso da atividademineradora. Viria substituir a Superintendncia das Minas, criada em 1702. Estabelecidas nas comarcasdedicadas minerao, incumbiam-se no apenas da arrecadao dos tributos, mas tambm de controlartoda a atividade mineradora (SALGADO, 1985, p. 293-294).

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    do Portugal com a deste Estado, concorrendo todos e fazendo o fundode 500 at 600 mil cruzados de aes para os primeiros empregos e

    fornecimentos necessrios.

    38

    A proposta de criar uma nova Companhia Geral de Comrcio rejeitadapelos negociantes da Bahia e, no relatrio que o Vice-rei d. Vasco FernandesCsar de Meneses, Conde de Athouguia desde 1729, mandou a d. Joo V,justica-se a rejeio pelos inconvenientes e prejuzos, que precisamente seho de encontrar para o seu estabelecimento.39

    Em 1751, com o intuito de controlar o comrcio por meio de grandescompanhias, nos moldes das dos holandeses, ingleses e franceses, o Primeiro

    Ministro de d. Jos, Sebastio Jos de Carvalho e Mello, criou a companhiado Gro Par e Maranho e a de Pernambuco e Paraba. Na ausncia decompanhia que assegurasse esse controle na Bahia, o Primeiro Ministro crioua Junta de Inspeo do Acar e Tabaco, pelas leis de 16 e 27 de janeiro de1751.40O Desembargador Wenceslau Pereira Silva, Intendente do Ouro, foinomeado presidente dessa nova organizao, que contrariava os interesses dosnegociantes baianos agrupados em torno da Mesa do Bem Comum dos Homensde Negcio da Bahia, criada por proviso de 14 de junho de 1723.41

    Em 1756, a Mesa do Bem Comum foi dissolvida, passando a Junta

    de Inspeo a chamar-se Mesa de Inspeo, tornando-se o nico rgoencarregado das questes comerciais daquele Estado do Brasil.

    E para que tudo seja dirigido com a maior [...] satisfao [...] na referidaCasa de Inspeo, sendo governada por maior nmero de votos, houveS. Majestade por bem criar nela mais dois deputados, escolhidos dos queservem ou tiveram servido na tal Mesa do Bem Comum, que ca abolida,com tanto que tenham as qualidades requeridas, sendo um deles homemde negcio e outro lavrador de tabaco, e assim o manda ordenar referidaCasa por uma carta rmada pelo Real punho do mesmo Senhor.42

    38 PROJETO RESGATE de documentao histrica Baro do Rio Branco. Documentos manuscritos avulsos daCapitania da Bahia (Castro e Almeida) (1613-1807). Ministrio da Cultura, Brasil, Arquivo Histrico Ultramarino; Institutode Investigao Cientica Tropical, Lisboa. 25 CDs. AHU. Doc. Bahia (Castro e Almeida): cx. 03, doc. 347.

    39 Relatrio do Vice-rei, Conde de Athouguia, de 9 de maro de 1744 . APEB, Cartas do Governo da Bahia a vriasautoridades, v. 145, . 13v.

    40 AHU. Doc. da Bahia (Castro e Almeida): Cx. 54, doc. 10356. Regimento das casas de Inspeo, que novamentese estabeleceram no Estado do Brasil, pelas leis de 16 e 27 de janeiro de 1751, que deram nova forma ao comrcioe navegao dos tabacos e acares daquele continente. Lisboa, 1 de abril de 1751. Anexo ao doc. 10319.

    41 APEB, Alvars e Ordens Rgias, v. 395 f. 127.

    42 APEB, Alvars e Ordens Rgias, v. 395, f. 123. A de Lisboa fora suprimida por decreto de 30 de setembrode 1755, por ter protestado contra a criao da companhia do Gro Par e Maranho, na qual estavainteressado Francisco Xavier de Mendona Furtado, irmo do Primeiro Ministro.

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    A importncia adquirida pelos homens de negcio da Bahia, na primeirametade do sculo XVIII, pode ser avaliada pelo que eles prprios dizem, num

    relatrio anexado ao despacho do Conde de Sabugosa, sobre a proposta decriar uma Companhia para o comrcio com Cabo Verde, Cacheu, Angola,Madagascar e Moambique, abandonando-se aos holandeses o comrcio daCosta da Mina. O procurador dos homens de negcio da Bahia, em 7 de janeirode 1731, esclarecia os inconvenientes conservao dos engenhos, fazendas elabor das minas e os motivos que levaram os negociantes a no se interessarpela Companhia proposta. No comeo do relatrio, diz que

    este corpo de que se compe a mercancia desta cidade se verica hoje,bem se pode dizer unicamente, da negociao que de quarenta anos aesta parte tem introduzido nos portos da Costa da Mina, fazendo tile conveniente servir-se, quase no todo, para o resgate de escravos emtroca dos gneros da terra, com o que adiantaram as rendas Reais destacidade em quatro partes mais do que avultavam antes delas.Da mesma se seguiu a ereo de tantos templos ornados com custosaspeas de prata e ouro, quantos admira a piedade e pode celebrar repetidasformas de louvar toda a posteridade; dela tem resultado a nobreza eesplendor dos edifcios pblicos e particulares desta cidade ampliando-se sua extenso em mais trs partes do que era.Dela vivem quase todos os habitadores [...] com ela se sustentam todosos lavradores de po da terra, em que se ocupam milhares. Com ela, e porrazo dela, se cultivam os ridos campos da Cachoeira, em que tambmse empregam os milhares de lavradores, dando ocasio com sua laboriosacultura do tabaco no s a estes avaliados produtos, mas a crescidasquantias, que resultam dos contratos deste gnero em Portugal.43

    Concorrendo com a nobreza da terra, isto , com os senhores deengenho, em termos de riqueza, prestgio e poder, os homens de negcio adotaroo mesmo modelo de comportamento em termos de estilo de vida e religiosidade,

    exibidas com pompa e luxo sempre que a ocasio se lhes oferecer.

    CAVALHADAS, TOURADAS E OUTROS JOGOS EQESTRESA cavalhada uma reminiscncia da Idade Mdia quando os cavaleiros se

    exibiam e combatiam entre si, mostrando destreza no manejo de seus cavalos earmas. Segundo Mario Melo (1955), antes da conquista da Espanha pelos mouros,a cavalhada era conhecida em toda a Pennsula Ibrica. Teodorico, rei dos godos,

    43 Carta do Vice-rei, Conde de Sabugosa, para Sua Majestade. APEB, Cartas do Governo da Bahia para SuaMajestade, v. 133, 98, doc. 79a.

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    costumava mesmo custear o espetculo. Depois da invaso da Pennsula Ibricapelos mouros, em toda a Europa, mas principalmente na Frana, o torneio e a justa,

    formas atualizadas da cavalhada, passaram a ser uma espcie de preparao para oscombates que sempre ocorriam entre os cristos e os mouros (MELO, 1955).

    O termo cavalhada, no sentido usual de torneio eqestre, s comea aser utilizado nos documentos da Amrica portuguesa a partir do sculo XVIII,embora seu emprego em Portugal seja muito antigo, segundo informa Mriode Andrade em seu pioneiro ensaio Cavalhadas, de 1938.44O mais comumera a referncia a festas de cavalo. Muito praticado em Portugal desde osculo XV, era constante o torneio das cavalhadas nas festas da Corte, nasquais os prprios monarcas tomavam parte, com os prncipes e dalgos da casareal, at que depois constituiu, em geral, um predileto divertimento popular(COSTA, 1952, v. III, p. 160).

    Entre a nobreza portuguesa existiam obras literrias de cunhodoutrinrio, como o Livro da montaria, de d. Joo I, e o Livro da ensinana de bemcavalgar toda sela, de d. Duarte, que embora destinados a uma prtica desportivaespecca (a caa) no se reduziam a meros tratados de gineta, prestando-setambm a propsitos educativos mais elevados, de fundo moral, pois o alvo deseus nobres escritores era o homem em suas dimenses fsica e moral.

    Na Amrica portuguesa, a durao das cavalhadas era determinadapelos Senados e Cmaras. A exemplo de outros festejos, como touradas edanas, eram repetidas durante trs dias. Segundo Jos de Andrade Morais, emdiscurso proferido durante a festa do ureo Trono Episcopal, de 1748, emMinas Gerais, eram trs os harmoniosos bailes, porque o nmero ternrio omais perfeito, por isso no deviam ser menos os tripdios, para se inculcaremde maior perfeio (apudVILA, 1967, p. 123).

    Desde cedo, as cavalhadas se constituram em forma de demonstraode poder pessoal na Amrica portuguesa, pois o cavalo, artigo de luxo, era

    um dos elementos que acrescentava prosperidade da elite local a marca desua autoridade, nobreza e honra. Entre julho e outubro de 1584, o jesutaFerno Cardim, em visita a Pernambuco em companhia do padre VisitadorCristvo de Gouveia, conta como ali os homens so to briosos que compramginetes de 200 e 300 cruzados, e alguns tem trs, quatro cavalos de preo. Somuito dados a festas.45Algum tempo depois, no comeo do sculo XVII,Ambrsio Fernandes Brando, nos Dilogosobserva que, no Brasil, os homens

    44 Cf.ANDRADE(1938).

    45 Ferno Cardim, Tratados da Terra e Gente do Brasil, p. 164. Citado conforme edio de 1980 (Belo Horizonte:Itatiaia; So Paulo: Edusp).

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    tem seus cavalos em que costumam andar, com os trazerem bem ajaezados,principalmente quando entram com eles em algumas festas.46

    Na Bahia, tem-se notcia de jogos eqestres desde 1564. A primeirareferncia a do Jubileu da povoao do Esprito Santo, distante seislguas do centro de Salvador.47Outra referncia ocorre ainda no ano de1564, no Jubileu do povoado de So Paulo, distante trs lguas de Salvador.Ao m da procisso e demais funes sacras, pretendia-se fazer muitasfestas, como a de correr touros e argolinha: mas a chuva, que sobreveio oimpediu.48Embora no se tenham realizado as cavalhadas, esta refernciaindica o quo populares j eram elas na Bahia na segunda metade dosculo XVI. do padre Ferno Cardim, durante visita feita a Pernambuco,mais uma das primeiras referncias prtica das cavalhadas na Amricaportuguesa.49 Ainda em Pernambuco, no sculo XVI, diz F. A. Pereirada Costa, baseado em crnicas coevas, que o dalgo orentino FilipeCavalcanti, tendo chegado a Pernambuco em 1558, constituindo famlia,vivendo abastada e faustosamente, era referido pela crnica coeva comoalgum que montava cavalos de raa ricamente ajaezados, organizava etomava parte em cavalhadas e torneios pblicos, e vestia-se com grandedistino e elegncia, orando as suas despesas anuais perto de oitenta mil

    ducados (COSTA, 1952, v. III, p. 160).50As cavalhadas popularizam-se nos sculos XVII e XVIII, sendo parte

    quase que obrigatria em quase todos os programas festivos. Celebradas emocasies especiais, ora estavam ligadas igreja (Pentecostes), ora vinculadasao Estado (aclamaes de reis, casamentos e nascimentos de prncipes eprincesas51, ou natalcios de governadores gerais e Vice-reis),52e at em festasde particulares, ligados s elites locais.

    46 Ambrsio Fernandes Brando, Dilogos das Grandezas do Brasil, p. 247. Cf. nota 1 supra.

    47 Hoje compondo o subrbio ferrovirio, distante oito quilmetros do centro da cidade.48 Carta do Padre Antonio Blasquez do Colgio da Bahia de Todos os Santos do Brasil para Portugal eEscrita a 13 de setembro de 1564 (In: NAVARRO,1988, p. 448).

    49 Ferno Cardim, Tratados da Terra e Gente do Brasil, p. 164. Cf. nota 45 supra.

    50 Pereira da Costa, todavia, no cita a tal crnica coeva.

    51 Exemplo: Jos Ferreira de Matos, Dirio Histrico das celebridades, que na Cidade da Bahia se zeram em aode graas pelos felicssimos casamentos dos Serenssimos Senhores Prncipes de Portugal, e Castela, dedicado ao IlustrssimoSenhor Arcebispo da Bahia d. Luis lvares de Figueiredo, Metropolitano dos Estados do Brasil, Angola, e S. Thom, doConselho de Sua Majestade, &. Escrito pelo licenciado Jos Ferreira de Matos, Tesoureiro mor da mesma S da Bahia. LisboaOcidental: na Ocina de Manoel Fernandes da Costa, impressor do Santo Ofcio. MDCCCCIX (1729).

    52 Por exemplo, as festas que se zeram na Bahia, em 1716, pelo aniversrio do Vice-rei, Marques de Angeja,d. Pedro de Noronha. Cf. Dirio Panegrico das festas que na famosa cidade da Bahia se zeram em aplauso do feliznatalcio do senhor dom Pedro de Noronha. Lisboa, 1716.

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    Desde o incio do sculo XVII, a ligao das festas de espritocavaleiresco com o poder, portanto, ser uma constante. Matias de Albuquerque,

    por exemplo, ao ser enviado em 1629 por Madri a Pernambuco, com o ttulode comandante em chefe, tendo encontrado as fortalezas desmanteladas, semarmamento nem guarnio, e ante a iminncia de invaso pelos holandeses,preferiu promover a comemorao do nascimento do prncipe herdeiro dacoroa da Espanha, lho de Felipe IV. Jos Incio de Abreu e Lima, que nosd a informao acima em sua Sinopse dos fatos mais notveis da histria do Brasil,de 1845, acrescenta:

    Longe, porm, de cuidar em reparar estas faltas com diligncia,entreteve-se em frvolas ocupaes, promovendo festa pelo nascimentode um prncipe herdeiro da coroa de Espanha, de cuja notcia fora elemesmo portador.53

    A observao de Abreu e Lima, acerca das festas, lembra a de JosAntnio Maravall. Para ele, tal chegou a ser a extenso da festividade nasociedade barroca [...] que ameaava com o abandono das mais urgentes eimprescindveis obrigaes pblicas (MARAVALL, 1999, p. 377).

    Na Bahia, em 1641, segundo Frei Manuel Calado no Valeroso Lucideno,quando da Restaurao da Coroa portuguesa, o Marqus de Montalvo, aps ascerimnias ociais e da ao de graas na Igreja da S, tanto que se chegou a

    noite [...] celebrou a aclamao del-rei Nosso Senhor com muitas encamisadas,e com festas de cavalos....54

    Recorrendo ao corpus gregoriano, camos sabendo por ele que, na segundametade do sculo XVII, ocorreram vrias festas de cavalo em Salvador e quea Bahia possua muitos bons cavaleiros. Em um poema do corpus, o autor

    elogia o garbo do Capito Francisco Moniz de Souza,55

    correndo cavalona festa das Onze mil virgens, promovida pelos estudantes do Colgio daCompanhia de Jesus:

    53 Jos Incio de Abreu e Lima, Sinopse ou reduo cronolgica dos fatos mais notveis da histria do Brasil, p. 84.Citado conforme edio de 1983 (Recife: Fundao de Cultura da Cidade do Recife).

    54 [Frei] Manuel Calado, O valeroso Lucideno, p. 166. Citado conforme edio de 1987 (Belo Horizonte:Itatiaia; So Paulo: Edusp).

    55 Pertencia a uma das principais famlias da Bahia. Foi Capito da Ordenana do distrito do Socorro, peladiviso da companhia de Egas Moniz Barreto, a 7 de maro de 1587. Cf. APEB. Registro de Patentes de1678 a 1688, . 263.

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    Amigo capito forte, e guerreiro,sempre vos observei no pensamento

    por homem de grandssimo talento,mas nunca por to grande cavaleiro

    Quando vos vi na festa do terreiroTorreo cavalgado sobre o vento,onde ir parar (disse) este portento,seno na admirao do povo inteiro.

    Dito, e feito; porque vos aplaudiramDe tal modo os Mires daquela praa,Que de vos dar um gabo me excluram.

    Mas se os cus vos formaram de tal traa,Que de prendas to nobres vos urdiram,Eu me dou por contente em vossa graa(MATOS, 1990, v. I, p. 275)

    Em outra ocasio, descreve o poeta as festas de cavalo que se zeramno Terreiro em louvor das Onze Mil Virgens, sendo escrivo Euzbio da CostaReymo lho de Maria Reymoa; em que assistiram estes dois prncipes pai, elho com o maior da nobreza no Colgio de Jesus.56Como de costume, toda

    a elite local estava presente a estas festividades:

    Sua excelncia assistia,o conde, e toda a nobreza,e os padres por naturezalhes fazia companhia:estava sereno o dia,a esfera toda anilada,a gua do mar estanhada,brando o vento e lisonjeiro,

    e contudo no terreirohouve muita carneirada.(MATOS, 1990, vol. I, p. 485).

    As carneiradas eram mais uma das funes includas nos programas dosjogos eqestres, que eram compostos tambm de jogos de patos e pombos.Consistiam em testar a destreza dos cavaleiros, cortando espada, em plenacavalgada, estes animais. Na Amrica portuguesa, o jogo de patos possua duas

    56 Salientemos que os ttulos dos poemas, no corpus gregoriano, foram colocados pelo Licenciado Rebelo.

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    variaes: em uma, o pato deveria ser agarrado pelo cavaleiro com as mos;na outra variante, os patos ou pombos pendurados pelos ps em palanques

    iguais aos da argolinha, deveriam ser cortados espada. Segundo Jos Artur T.Gonalves, (2001, p. 960), o despedaamento de animais, alm de tornar maisntida a violncia da festa, era tambm uma forma de celebrar a fartura doalimento e de combater simbolicamente a penria do cotidiano. Todavia, comosugere Jamil Almansul Haddad, em sua Introduo a Vieira,57a crueldade um dos traos que [...] fundamentalmente caracterizam o barroco.

    Outra modalidade marcante de jogos nas festas barrocas da Amricaportuguesa, tornando-se mesmo sinnimo de cavalhadas, eram os jogos de

    argolinhas, ou de manilhas, como eram tambm conhecidos. Gregrio de Matosrefere-se a um deles que se realizou na Bahia:

    Logo e da primeira entradahouve jogo de manilhaque para isso a quadrilhaplo lindo era pintada:quem lhe dava uma encontrada,tudo ento nos agradava,pois conforme ouvi julgar

    ali entre dar, e levarpouca vantagem se dava.(MATOS, 1990, p. 485)

    Segundo Antnio Cantos Lopz, a origem destes jogos encontra-se nos exerccios eqestres dos cavaleiros muulmanos espanhis, sendo,ademais, privativa da nobreza, nico estamento que podia pratic-la. Oscristos o aprenderam dos muulmanos e tambm, como eles, sua nobreza omonopolizou (LOPZ, 1982, p. 189).

    O jogo de argolinha consistia em retirar prendas, amarradas por cordasem argolinhas, com a ponta da lana e correndo a cavalo. As prendas, que depoiseram geralmente oferecidas s damas ou a autoridades presentes, podiam seranis ou as prprias argolas, algumas de ouro. Em linguagem chula, como eraseu costume, o Boca do Inferno descreve esse ato: Cada qual sem maistardana,/ dama a quem mais se aplica, / levou na ponta da pica, / o queganhou pela lana (MATOS, 1990, p. 485). Uma das melhores descries dessejogo, no entanto, nos dada pelo Frei Manuel Calado, em seu j citado Valeroso

    57 Introduo a Vieira. Os elementos barroco e clssico na composio dos Sermes (In:VIEIRA, 1963).

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    Lucideno. O jogo foi disputado em 1641, durante as festas da aclamao de d.Joo IV em Pernambuco. Aps as primeiras carreiras,

    se armou a corda da argolinha; estavam postos muitos anis de ourocom custosas pedras, e trancelins do mesmo, e voltas de cadeias de ouro,e cortes de tela, e seda, e comearam todos a correr, sendo o Prncipe

    Joo Mauricio de Nassau o primeiro, com umas lanas de um pau muiagudo, e de comprimento de dez at doze palmos, e os Portugueses comlanas de vinte e cinco palmos. E o primeiro premio levou HenriquePereira, que foi uma cadeia de ouro mida de trs voltas... Enm osPortugueses correram com tanto ar, e com tanta bizarria, que algumasdamas Inglesas, e Francesas, tiraram os anis dos dedos, e os mandaramoferecer, por prmios, s por os ver correr.58

    Uma outra festa de cavalos descrita pelo corpus gregorianoaconteceutambm na festa das Onze Mil Virgens. Foi juiz dela o Secretrio de Estadoe Guerra do Brasil, Gonalo Vieira Ravasco Cavalcante, que a fez no terreiroestrondosamente, e nela gastou com liberal mo. A durao das cavalhadas,geralmente, no excedia aos trs dias, salvo em ocasies muito especiais.Todavia, nesta festa de cavalos que estrondosamente ofereceu o Secretriodo Brasil, segundo o coronista,

    Seis dias de cavaleiroshouve com bastante graa,foram bons, e maus praaem ginetes, e sendeiros:tambm houve aventureiros,prmios, o mantenedor,touros, que foi o melhor,porm sem ferocidade,que os touros nesta cidadeno so de muito furor.

    Como em toda festividade da Bahia barroca, as autoridades rgias e locaise toda a nobreza mazomba estavam presentes, com todo o seu luxo e pompa.

    Nestes dias festivaiscom suma gala, e grandezaassistiu toda a nobrezados homens mais principais:

    58 [Frei] Manuel Calado, O valeroso Lucideno, p. 169-170. Cf. nota 54 supra.

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    Ministros, e ociaisde guerra e Damas mui belas,

    que em palanques e janelasmostravam com arrebol,que estando ali posto o sol,bem podiam ser estrelas

    No sculo XVIII, as festas pblicas ociais da Amrica portuguesairiam insistir na tendncia exibio dos dotes da nobreza na arte da cavalaria,que sublimava em justas e torneios a memria de antigas glrias guerreiras. Oesprito cavaleiresco medieval das festas eqestres encamisadas, cavalhadas,jogos de argolinha, touradas etc. persistir, e at evoluir no setecentos.

    Em 20 de janeiro de 1716, nas festas pelo aniversrio do Marqus deAngeja, a cidade do Salvador assistiu a um torneio noturno, com escaramuas,que terminou com uma encamisada pelas ruas da cidade. Segundo o DirioPanegricoque descreve as festas,

    entraram a ocupar o Terreiro seis iguais parelhas de airosos cavaleiros,vestidos de alegres cores, com tochas nas mos, [...] que depois depassarem praa com grave, e vagaroso movimento, a trilharam comrepetidas escaramuas, que terminando com uma acelerada correria,

    tornaram a compor as parelhas, e retirando-se, correram as principaisruas da cidade, que festejou o acerto, e compostura da encamisada.59

    As encamisadas eram festas eqestres, normalmente realizadas noite,com cavaleiros vestidos mourisca ou mascarados, e geralmente precediamas cavalhadas. Reminiscncia de torneios da nobreza medieval, na Amricaportuguesa era a principal diverso da elite mazomba. Na cidade da Bahia,em 1760, nos festejos para a comemorao do casamento dos prncipesportugueses, as festas de cavalaria foram feitas pelos senhores de engenho,pois, como diz o cronista, como constituem corpo de nobreza devia sermais nobre e magnco o seu obsquio. Antes, porm, das cavalhadas, quese realizariam no dia quinze, na noite de quarta feira, dia quatorze, os senhoresde engenho,

    Vestidos mourisca em soberbos e briosos cavalos por costume antigoem semelhante funo praticado zeram encamisada. Antes porm de

    59 Dirio panegrico das festas que na famosa Cidade da Bahia se zeram em aplauso do feliz natalcio do senhor d. Pedrode Noronha, p. 121. Lisboa, 1716.

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    descer dar princpio lhes foi preciso pela tenebridade da noite mandaremalumiar com tochas e archotes todo o Terreiro que cou por isso to

    lustroso, que lhe no zeram falta os brilhantes resplendores do Sol.

    60

    O Senado da Cmara havia mandado colocar um mastro pintado debranco, vermelho e azul, no qual foi hasteada uma bandeira de tafet brancocom as sempre triunfantes armas de Portugal pintadas e os postossinalizando que, no dia seguinte, haveria cavalaria. Neste mesmo dia, os senhoresde engenho zeram uma encamisada e, ao nal dela,

    Saiu logo da parte da igreja de S. Francisco um carro ornado de

    chamalote carmesim e branco enramado de verdes folhas, que levandodiante de si o alvoroo de pouco para si granjeou o aplauso, e para queno faltasse magnicncia o luzimento, oito tochas acesas em rodao faziam parecer carroa do mesmo Phebo. Dentro vinha um coro demsica que ao som de bem temperados instrumentos entoava os vivasaos nossos prncipes o tempo todo que o Terreiro rodeou o carro.61

    Exerccio de dalgos, as cavalhadas s teriam espao para a ral nasarquibancadas mandadas construir pelo Senado da Cmara, ou como auxiliaresdos cavaleiros, os pajens. Nas festas de 1760, em Salvador, os pajens de lanas

    eram sem nmero e vestiam ricas librs. A presena dos homens de negcionas funes eqestres era uma novidade. E o corpo de comrcio no queriadecepcionar. Mandou fazer no Terreiro de Jesus um grande curro, e porquequeria para si a glria que a funo fosse feita a sua custa, pediu ao Senado quemandasse retirar os arquibancos que haviam sido feitos, comprometendo-sea mandar fazer novos assentos para todos e t-los prontos a tempo da festa.Alm dos assentos para o povo, feitos em volta do curro, levantou-se tambmum espaoso e especioso palanque de dois sobrados, no primeiro dos quaishavia de assistir o Chanceler governador com toda a nobreza, Tribunal daInspeo e corpo de comrcio; o segundo foi reservado para os clrigos eoutras pessoas distintas.62

    60 [Pe] Manuel de Cerqueira Torres, Narrao panegrico-histrica das festividades com que a Cidade da Bahiasolenizou os felicssimos desposrios da Princesa, Nossa Senhora, com o Serenssimo Sr. Infante d. Pedro, oferecida a El ReiNosso Senhor por seu autor. p. 419. AHU. Doc. Bahia (Castro e Almeida): cx. 27, doc, 5099 anexo ao 5097.A Narrao encontra-se na forma de manuscrito e suas pginas no so numeradas. O texto que se achaimpresso nos ABNRJ, v. 31, p. 408-424, apenas um extrato da disposio da festa. Estamos chamandode introduo parte inicial do manuscrito, depois das dedicatrias e antes da disposio da festa. Paraas outras partes utilizaremos a numerao do texto dos ABNRJ.

    61 [Pe] Manuel de Cerqueira Torres,Narrao panegrico-histrica..., p. 419. Cf. nota anterior.

    62 [Pe] Manuel de Cerqueira Torres,Narrao panegrico-histrica..., p. 421. Cf. nota 60.

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    No dia dezesseis, determinado para aquelas funes, a uma hora da tarde,estava j a praa do Terreiro de Jesus cheia de povo. s duas horas, chegou o

    Chanceler governador, a quem aguardava um setial, sob o qual sentou-se em umacadeira de damasco carmesim. O palanque estava igualmente coberto de damascocarmesim, com franja de ouro e no meio pintado o braso das glrias da monarquiaportuguesa. Nos outros lugares do palanque, acomodaram-se os Ministros daRelao, Tribunal da Inspeo, nobreza e outras distintas personagens.

    Para concluir as festas, no podiam faltar os fogos de artifcio. Nas festasbarrocas, a pompa e a articiosidade andam juntas. Elas so prova da grandezae do poder social daquele que a oferece e, ao mesmo tempo, de seu poder

    sobre a natureza. Sintomtico que os fogos de artifcio, nestas festas de 1760,tenham sido oferecidos tambm por aquele grupo social que se encontravaem franca ascenso. Assim que, no ltimo dia das festas, domingo, os fogosforam o ltimo complemento com que o comrcio quis coroar estas rgiasfestas. Todo o artifcio consistiu em ser formado em um castelo em quadra.Constava de quatro faces, cada uma composta de vrias guras, ores eoutras curiosidades. Todas traziam pintadas as armas de Portugal.

    Na primeira face, foi colocado pelo engenho de seu autor umlampadrio grande aluminado a um sol que se desfazia em luzes, e se abrazava

    entre os resplendores. Na segunda, se via uma real cornija onde estavaescrito o seguinte ttulo: Viva El-Rei d. Jos o I e, em cima do ttulo, as quinasportuguesas, entre muitos candeeiros de luzes; na terceira, entre engraadasores estava o seguinte letreiro: Dos Prncipes no amor arde a Bahia. Naquarta, nalmente, debaixo da real bandeira se lia: Vivam os Prncipes doBrasil. E ao p desta uma Aurora abrazando-se em fogo. No meio do casteloestava como plantada uma grande rvore com todos os artifcios de fogo.63

    Todos estavam ainda admirados com tais artifcios, quando de repente,

    ao som de trombetas, charamelas, trompas, atabales, vrios foguetescomearam a correr, soltos pelo ar dando muita ocasio de riso, pelobrilhante de suas luzes e alegres fascas, ou porque desciam com tristeslgrimas. Por m, ateou-se fogo nas candeias de plvora, que servindo deluminrias deram luzes para se ver que tambm os morteiros e girndolas,com violentos mpetos punham em graciosa desordem as guras querodopiavam no ar. Ao mesmo tempo, abriram-se muitas bombas, que nodeixaram de divertir com seu festivo estrondo.

    63 [Pe] Manuel de Cerqueira Torres,Narrao panegrico-histrica..., p. 424. Cf. nota 60.

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    A exibio de fogos de artifcio durou largamente duas horas. E opovo no parava de aplaudir. O certo que no pode ser nem mais grandioso;

    nem mais plausvel, porque era justo, que to luzidas festas tivessem por coroato lustroso m.

    COMERCIANTES EM FESTAS DA NOBREZA: PROPINASCOSTUMADAS

    Em uma carta escrita para o Conde de Oeiras,64em 29 de novembro de 1760,o Intendente Geral da Mesa de Inspeo do Acar e do Tabaco, Joo BernardoGonzaga, fala da participao do corpo do comrcio nos festejos do casamento daprincesa do Brasil com o Infante d. Pedro. Nestas festas, escreve ele,

    No houve quem no excedesse as suas prprias possibilidades parafazer pblico o contentamento do prprio corao. Depois de outrosfestejos, de que Vossa Excelncia ter individual relao, tambm tevea Mesa de Inspeo com os principais homens de negcio, a honra dea festejarmos com trs tardes de touros com a grandeza, que coube nopossvel, e s zeram falta para ser completa a funo, os touros dachamusca; ontem noite coroamos a festa com um grande fogo; e parano faltar nada para a grandeza dos nimos, at se zeram palanque emtodos os lados do curro para todos verem sem despesa alguma particular.

    Admirei nos sobreditos a excessiva vontade com que todos ofereceramentrar nesta despesa as primeiras vezes, com que intentei persuadi-los,convocando-os nesta casa para esse efeito, com os deputados da Mesa,o que atribuo delidade com que os Americanos desejamos distinguir-nos no servio, e obsquio dos nossos soberanos.65

    O que o Intendente Geral participava ao futuro Marqus de Pombalera uma grande novidade. At ento, no era comum a participao doscomerciantes nos jogos eqestres durante as festas. Sua participao, assimcomo a de todos os ofcios, era determinada pelo Senado da Cmara, queregulamentava a forma como deviam se apresentar tanto nas procissescomo nas festas pblicas. Por exemplo, em 1673, a Cmara, regulamentandoa participao na procisso de Corpus Christido ano seguinte, determinou queos padeiros e padeiras e confeiteiros dessem para a procisso dois gigantes,e uma giganta, e um ano que o vulgo chama Pai dos gigantes. 66J pela Ata

    64 Ttulo concedido ao Primeiro Ministro Sebastio Jos de Carvalho e Mello, pelos bons servios prestados Coroa quando do atentado contra d. Jos, rei de Portugal.

    65 Carta do Intendente Geral Joo Bernardo Gonzaga. AHU. Doc. Bahia (Castro e Almeida): cx. 28, doc. 5160.

    66 DHAM, Atas da Cmara (1669-1684), v. 5. Salvador: Prefeitura do Municpio de Salvador, 1950. p. 114.

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    da Cmara de 1699, os padeiros e confeiteiros so obrigados a dar as mesmasguras de gigantes e ano, e quem carregue, enquanto que os vendeiros e

    vendeiras de porta eram obrigados pela Cmara a dar quatro danas, trs deponto. E, aparecendo pela primeira vez diferenciadamente, os Marchantesso obrigados a dar trs tourinhos.67

    Nos festejos que se estavam fazendo em Santo Amaro neste ano de1760, a Cmara havia determinado que os homens de negcio dessem umacomdia.68E de fato, no dia 18 de dezembro, se representou a comdiaintitulada Porar amando custa dos homens de negcio.69

    A presena do corpo de comrcio de Salvador, em uma das funes

    consideradas nobres nos festejos que ento se faziam, era um sinal daimportncia que esses homens estavam adquirindo e que novos temposcomeavam a se fazer sentir na Bahia.

    Outra novidade trazida com a ascenso dos negociantes no sculoXVIII foi o costume deles levarem propinas nos festejos rgios, costumeimplantado desde 1711, nas festas que aconteceram na Bahia pelo bomsucesso, que houve no primeiro assalto que o francs deu no Rio de Janeiro.70Em 16 de fevereiro de 1761, o superintendente da Mesa de Inspeo doTabaco, Desembargador Joo Bernardo Gonzaga, enviava um ofcio71 aoConde de Oeiras pedindo que este levasse presena de Sua Majestadea deciso da Mesa de estender as propinas pagas nas ocasies de festatambm aos Deputados da Mesa. Dizia, no ofcio, que desde a criao daSuperintendncia do Tabaco nesta capital, sempre se pagou propinas aoDesembargador Superintendente, assim como a todos os ociais destaRepartio segundo as suas graduaes.

    Ao ofcio do Superintendente foi anexada a certido passada peloEscrivo da ementa, receita e despesa da Casa de Arrecadao do Tabaco,

    67 DHAM, Atas da Cmara (1697-1702), v. 6. Salvador: Prefeitura do Municpio de Salvador, 1950. p. 83.

    68 Francisco Calmon, Relao das Faustssimas Festas, p. 2. Citao conforme reproduo fac-similar da edio de1762. Introduo e notas de Oneyda Alvarenga. Transcrio de Ronaldo Menegaz. Rio de Janeiro: Funarte/INF, 1982. Mantemos, aqui, data e numerao da edio original reproduzida em fac-simile.

    69 Francisco Calmon, Relao das Faustssimas Festas, p. 14. Cf. nota anterior.

    70 Certido do Escrivo da ementa, receita e despesa da Casa da arrecadao do tabaco, Plcido Pereira de Azevedo, emque declara as diversas ocasies em que os ministros superintendentes e mais ociais da mesma casa receberam propinas, emcomemorao de casamentos e nascimentos reais, etc.AHU. Doc. Bahia (Castro e Almeida): cx. 27, doc. 5195, anexoao doc. 5194.

    71 Ofcio da Mesa de Inspeo, no qual participa ter r esolvido que aos Deputados da Mesa e seus Escrives, fossem abonadasas propinas que era costume receberem por ocasio dos casamentos e nascimentos das pessoas r eais, em comemorao do casamentodo Infante d. Pedro. AHU. Doc. Bahia. (Castro e Almeida): cx. 27, doc. 5194.

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    que lista, de 1711 at 1751, ano da aclamao de d. Jos como rei de Portugal,todas as festas feitas em Salvador por casamentos e nascimentos na famlia real.

    Muito raro era o ano em que no ocorresse pelo menos uma destas festas. Emtodas elas foram distribudas propinas aos ociais dos rgos encarregados daadministrao dos assuntos do comrcio.72

    Nas festas do casamento da Princesa d. Maria com Infante d. Pedro,tambm foram distribudas propinas de cera pela mesa de inspeo, assimcomo o fora quando da chegada e posse do Vice-rei, Marqus do Lavradio,em janeiro de 1760. A dvida que acometera o Superintendente Joo BernardoGonzaga, dizia respeito questo se deviam ser dadas propinas tambm aos

    deputados da Mesa, os quais, pelo Regimento da Mesa se transferiu a jurisdioda Superintendncia na Administrao dos Tabacos, com seus escrives queacresceram com a criao da mesma Mesa. Isto , quando a mesa do bemcomum foi dissolvida, em 1756, foram criadas duas vagas de Deputados naMesa de Inspeo a serem preenchidas por ex-funcionrios da extinta, comtanto que tenham as qualidades requeridas, sendo um deles homem de negcioe outro lavrador de tabaco.73

    O problema que o Superintendente colocava, ento, dizia respeito

    origem dos recursos para pagar as propinas de cera destes Deputados, umavez que o Contratador dos Tabacos, quem arcava com as despesas da Mesa,s faz por sua conta as despesas que haviam com a Superintendncia antesda criao da Mesa, isto , antes da extino da Mesa do Bem Comum e daincorporao nela dos dois Deputados com seus escrives. Aps reexo,ponderou o superintendente que no seria justo que, pagando-se propinas atodos os ociais subalternos,

    no as tivessem seus superiores Deputados da Mesa, a qual Sua

    Majestade quis unir a mesma Superintendncia, e se resolveu que sedessem tambm aos Deputados dela e aos seus escrives segundo assuas graduaes, sem excederem as que levavam os Superintendentes.

    As custas destas propinas foram pagas pelas despesas da Mesa, quesaem da Real Fazenda. Assim, tambm com os homens de negcio, v-se queprticas recm estabelecidas logo viravam costume.

    72 Certido do Escrivo da ementa.... Cf. nota 70.

    73 APEB, Alvars e Ordens Rgias, v. 396, . 127.

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    No entanto, tais prticas no eram facilmente aceitas pela Coroa. Em 24de abril de 1761, o Chanceler da Relao, Jos Carvalho de Andrade,74recebia

    correspondncia do conde de Oeiras que se referia a uma carta enviada ao reipelo Guarda mor do Tabaco da Bahia, em 16 de novembro de 1760, falandodas despesas feitas pela Mesa de Inspeo, de um conto, quatrocentos mil eseiscentos Ris, com o pagamento das propinas que se deram aos inspetores, aointendente geral do ouro, e a ele Guarda mor do Tabaco na chegada do Vice-rei desse Estado o Marqus do Lavradio.75O conde de Oeiras, atendendo sordens reais, pede informaes ao Chanceler sobre a lei ou ordem com quese pagam tais propinas, porque para elas no pode haver costume atendvel,

    sendo a Mesa de Inspeo de to moderna data, e no podendo haver algumque prevalecesse contra a Fazenda Real sem preceder faculdade Rgia.76

    O Chanceler, j ento compondo a junta governativa da Bahia, pede,por carta de 17 de agosto de 1761,77as explicaes ao superintendente Geralda Mesa de Inspeo, Desembargador Joo Bernardo Gonzaga, que conrmao pagamento das propinas, persuadidos os Deputados que a deviam fazer, aexemplo dos demais Tribunais, e Senado da Cmara.78Embora, por motivode doena, o superintendente no estivesse presente reunio da Mesa que

    deliberou pelo pagamento das propinas, diz ele que no lhe pareceu que tivessejurisdio para revogar esta resoluo. Arma que sempre deu conta delas aSua Majestade pela Secretaria de Estado dos Negcios do Reino e, como noobteve resposta, julgou que eram contas aprovadas. Agora, porm, com estepedido de explicao, reconhece ele que

    no havendo Proviso ou costume antigo, como h para as que selevaram pela ocasio do feliz casamento da Augustissima Princesa NossaSenhora, e outras semelhantes, sem aquela aprovao licitamente nose podem reter aquelas propinas.79

    74 Que viria assumir o governo interino da Bahia, em junho de 1761, juntamente com o coronel GonaloXavier de Barros e Alvim, em substituio ao Ex-Chanceler Tomas Roby de Barros. Aos dois governadoresinterinos se juntaria, em 1763, completando a junta provisria de governo, o Arcebispo eleito, d. FreiManuel de Santa Ignez.

    75 Carta do Conde de Oeiras para o Chanceler Jos de Carvalho Andrade. AHU. Doc. Bahia (Castro e Almeida):cx. 28, doc. 5370, anexo ao doc. 5369.

    76 Cf. nota anterior.

    77 AHU. Doc. Bahia (Castro e Almeida) cx. 28, anexo ao doc. 5363.

    78 Carta do Superintendente Geral da Mesa de Inspeo. AHU. Doc. Bahia (Castro e Almeida) Cx. 28, anexoao doc. 5363.

    79 Cf. nota anterior.

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    Informa ento que de sua prpria bolsa reps, na mo do tesoureiroda Mesa, que as pagou, no apenas a limitada quantia que lhe coube, mas

    tambm as que receberam os demais deputados e ociais da Mesa, que tudoimportou em 57$200.

    Esta ltima informao, o valor total das propinas, no confere comaquela prestada pelo Guarda mor do Tabaco, em sua carta ao rei. O Chancelerescreve ao conde de Oeiras,80prestando as informaes solicitadas e corrigindoo valor das propinas. O valor mencionado pelo Guarda mor, na verdade,dizia respeito s propinas pagas por motivo dos Augustos e felicssimosdesposrios da Serenssima Senhora Princesa do Brasil, e do serenssimo

    Infante d. Pedro.81

    Com relao origem do costume de se pagar propinas aos ociais daMesa de Inspeo, o Chanceler remete proviso de 1727, dada ao Vice-reiVasco Fernandes Csar de Meneses e s festividades pela Paz com Castela,de 1668.

    A Superintendncia do