comeÇos literÁrios

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rem-se mais pollticamente (Diálogo, 93). dt I ual realismo, mas menor perspicácia, encontra-se nas rela- ções que o Pe. Fernão Cardim, na qualidade de Provincial, en- viava a seus superiores europeus relações que circulam enfeixa- das sob o título de Tratado da Terra e da Gente do Brasil ( s ). Anchieta. Assim como os cronistas se debruçaram sôbre a terra e o nativo com um espírito ao mesmo tempo ingênuo e prático, os missionários da Companhia de Jesus, aqui chegados nem bem criada a ordem, uniram à sua fé ( nêles ainda de todo ibérica e medieval ) um zêlo constante pela conversão do gentio, de que os escritos catequéticos são cabal documento. E, se um Nóbrega exprime em cartas incisivas e no Diálogo o traço prag- mático do administrador; ou, se um Fernão Cardim lembra Gân- ela có ia de informes que sabe recolher nas ap ániaselu eaper órre, só em José de Anchieta (") é que RODAPÉ ( a o aconselhável, a da Brasiliana (Cia. Rd. Nacional, 1939), com introdução de Rodolfo Garcia e notas de Capistrano de Abreu e Batista Caetano. ( 9 C JOSÉ DE ANCHIETA. NaSCeU naESllh tO Sá t xlem uma das Ca- nárias, em 1534 e faleceu em Reritiba ( p 1597. Veio para o Brasil ainda noviço em 1553; logo fêz sentir sua ação apostólica fundando com Nóbrega um colégio em Piratininga, núcleo da cidade de S. Paulo. Pelo zêlo religioso e pela sensibilidade humana, Anchieta ficou na história da colônia como exemplo de vida espiritual particularmente heróica nas condições adversas em que se exerceu. Suas Poesias em por- tuguês, castelhano, tupi e latim foram transcritas e traduzidas por M. de Lourdes de Paula Martins, S. Paulo, Comissão do IV Centenário, 1954. O De Beata Virgine foi traduzido pelo Pe. Armando Cardoso S. J· (5 o, Arquivo Nacional, 194O). Cf. Domingos Carvalho da Silva, "As origens da poesia", in A Lit. no Brasil, vol. I, t. 1, Rio, 1956. 22 acharemos exemplos daquele veio místico que tôda obra religio- sa, em última análise, deve pressupor. Há um Anchieta diligente anotador dos sucessos de uma vida acidentada de apóstolo e mestre; para conhecê-lo precisa- mos ler as Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Ser- nzões que a Academia Brasileira de Letras publicou em 1933. Mas é o Anchieta poeta e dramaturgo que interessa ao estudio- so da incipiente literatura colonial. E se os seus autos são de- finitivamente pastorais ( no sentido eclesial da palavra ), destina- dos à edificação do índio e do branco em certas cerimônias li- túrgicas (Auto Representado na Festa de S. Lourenço, Na Vila de Vitória e Na Visitação de Sta. Isabel), o mesmo não ocorre com os seus poemas que valem em si mesmos como estruturas literárias. A linguagem de "A Santa Inês", "Do Santíssimo Sacra- mento" e "Em Deus, meu Criador" molda-se na tradição medie-

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rem-se mais pollticamente (Diálogo, 93). dt

I ual realismo, mas menor perspicácia, encontra-se nas rela-ções que o Pe. Fernão Cardim, na qualidade de Provincial, en-viava a seus superiores europeus relações que circulam enfeixa-das sob o título de Tratado da Terra e da Gente do Brasil ( s ).

Anchieta. Assim como os cronistas se debruçaram sôbrea terra e o nativo com um espírito ao mesmo tempo ingênuo eprático, os missionários da Companhia de Jesus, aqui chegadosnem bem criada a ordem, uniram à sua fé ( nêles ainda de todoibérica e medieval ) um zêlo constante pela conversão do gentio,de que os escritos catequéticos são cabal documento. E, se umNóbrega exprime em cartas incisivas e no Diálogo o traço prag-mático do administrador; ou, se um Fernão Cardim lembra Gân- ela có ia de informes que sabe recolhernas ap ániaselu eaper órre, só em José de Anchieta (") é queRODAPÉ ( a o aconselhável, a da Brasiliana (Cia. Rd. Nacional, 1939),com introdução de Rodolfo Garcia e notas de Capistrano de Abreu eBatista Caetano. ( 9 C JOSÉ DE ANCHIETA. NaSCeU naESllh� tO Sá t � xlem uma das Ca-nárias, em 1534 e faleceu em Reritiba ( p 1597. Veiopara o Brasil ainda noviço em 1553; logo fêz sentir sua ação apostólicafundando com Nóbrega um colégio em Piratininga, núcleo da cidade deS. Paulo. Pelo zêlo religioso e pela sensibilidade humana, Anchieta ficouna história da colônia como exemplo de vida espiritual particularmenteheróica nas condições adversas em que se exerceu. Suas Poesias em por-tuguês, castelhano, tupi e latim foram transcritas e traduzidas por M. deLourdes de Paula Martins, S. Paulo, Comissão do IV Centenário, 1954.O De Beata Virgine foi traduzido pelo Pe. Armando Cardoso S. J· (5 o,Arquivo Nacional, 194O). Cf. Domingos Carvalho da Silva, "As origensda poesia", in A Lit. no Brasil, vol. I, t. 1, Rio, 1956.

22acharemos exemplos daquele veio místico que tôda obra religio-sa, em última análise, deve pressupor. Há um Anchieta diligente anotador dos sucessos de umavida acidentada de apóstolo e mestre; para conhecê-lo precisa-mos ler as Cartas, Informações, Fragmentos Históricos e Ser-nzões que a Academia Brasileira de Letras publicou em 1933.Mas é o Anchieta poeta e dramaturgo que interessa ao estudio-so da incipiente literatura colonial. E se os seus autos são de-finitivamente pastorais ( no sentido eclesial da palavra ), destina-dos à edificação do índio e do branco em certas cerimônias li-túrgicas (Auto Representado na Festa de S. Lourenço, Na Vilade Vitória e Na Visitação de Sta. Isabel), o mesmo não ocorrecom os seus poemas que valem em si mesmos como estruturasliterárias. A linguagem de "A Santa Inês", "Do Santíssimo Sacra-mento" e "Em Deus, meu Criador" molda-se na tradição medie-

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val espanhola e portuguêsa; em metros breves, da "medida ve-lha", Anchieta traduz á sua visão do mundo ainda alheia ao Re-nascimento e, portanto, arredia em relação aos bens terrenos: Não há . cousa segura. Tudo quanto se vê se vai passando. A vida não tem dura. O bem se vai gastando. Tôda criatura passa voando.

Contente n assim, n minh'alma, r do doce amor de Deus tôda ferida, o mundo deixa em calma, buscando a outra vida, na qual deseja ser absorvida. (Em Deus, meu Criador)

Os fragmentos que nos chegaram transpõem o tópico do"desengano" do mundo, constante do Cancioneiro Geral de Gar-cia de Resende e em Gil Vicente. Mas em Anchieta o traço as-cético, dominante nos Exercicios Espirituais do seu mestre Iná-cio de Loyola, não ocupa tôda a área de seu pensamento; aocontrário, está subordinado a valôres positivos de esperança ealegria. Pode-se dizer mesmo que o vetor afetivo de Anchietaé a consolação pelo amor divino. Assim, no poema citado acima:

23 Do pé do sacro monte meus olhos levantando ao alto cume, vi estar aberta a fonte do verdadeiro lume, que as trevas do meu peito tôdas consume. Correm doces licores das grandes aberturas do penedo. Levantam-se os errores, levanta-se o degrêdo e tira-se a amargura do fruto azêdo.

Uma análise mais detida das imagens que se reiteram nosmelhores poemas, "Do Santíssimo Sacramento" e "A Santa Inês"mostra que aquêles traços de mortificação ( exasperados maistarde pelo jesuitismo barroco ) nêles servem de contraponto aomotivo mais abrangente do alimento sagrado, símbolo da união

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com Deus: Õ que pão, ó que comida, ó que divino manjar se nos dá no santo altar cada dia!

Este dá a vida o imortal, êste mata tôda fome, porque nêle Deus e homem se contêm.

qu'êste manjar tudo gaste, porque é fogo gastador que com seu divino amor tudo abrasa. (Do Santissimo Sacramento)

Como ocorre na melhor tradição popular anterior à Renas-cença, são os similes mais correntes, tomados às necessidadesmateriais, como a nutrição, o calor e o medicamento, que o poe-ta prefere para concretizar a emoção religiosa: Cordeirinha linda, como folga o povo porque vossa vmda lhe dá lume nôvo!

24 Santa padeirinha, morta corn cutelo sem nenhum farelo é vossa farinha. Ela é mezinha com que sara o po ·o, que com vossa vinda terá trigo nôvo. O pão que amassastes dentro em vosso peito é o amor perfeito mm que a Deus amastes.

E, ao lado dêsse veio, outro, igualmente religioso, mas ti-rante a um cômico simples, quase simplório no trato das com-parações, como é o caso da glosa "O Pelote Domingueiro" queAnchieta compôs para o mote: "Já furtaram ao moleiro / o pe-lote domingueiro", onde o moleiro é figura de Adão a quem asmanhas de Satanás surripiaram a graça divina ( o pelote domin-gueiro), deserdando assim tôda a sua geração:' Os pobretes cachopinhos ficaram mortos de frio, quando o pai, com desvario, deu na lama de focinhos.

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Cercon todos os caminhos o ladrão, com seu bicheiro, e rapou-lhe o domingueiro.

Na segunda parte passa o mote para "Já tomaram ao mo-leiro / o pelote domingueiro", glosado como a redenção queJesus, "neto do moleiro", trouxe ao homem: Trinta e três anos andou, sem temer nenhum perigo, moendo-se como trigo, até que o desempenhou. Com seu sangue resgatou para o pobre do moleiro o pelote domingueiro.

Quanto aos autos atribuídos a Anchieta, deve-se insistir nasua menor autonomia estética: são obra pedagógica, que chegaa empregar ora o português, ora o tupi, conforme o interêsse ouo grau de compreensão do público a doutrinar. Formalmente ,o teatro jesuítico, nessa fase missionária inicial, está prêso à

24 tradição ibérica dos vilancicos, que se cantavam por ocasião das festas religiosas mais importantes. A documentação do teatro medieval português é, como se sabe, escassíssima; Leite de Vas- concelos refere-se a uns "arremedilhos" do período trovadoresco e a uma farsa incluída no Cancioneiro Geral ( * ). Assim, é na tradição oral que mergulha raízes o teatro de Gil Vicente, cujo; Monólogo do Vagueiro é o primeiro documento, sem dúvida tardio, do teatro português ( lo ). Os autos de Anchieta, como os mistérios e as moralidades da Idade Média, que estendiam até o adro da igreja o rito litúr- gico, materializam nas figuras fixas dos anjos e dos demônios os pólos do Bem e do Mal, da Virtude e do Vício, entre os quais oscilaria o cristão; daí, o seu realismo, que à primeira vista pa- rece direto e óbvio, ser, no fundo, alegoria. Dos oito autos que se costuma atribuir a Anchieta o mais importante é o intitula- do Na Festa de São Lourenço, representado pela primeira vez'. em Niterói, em 15O3. Consta de quatro atos e uma dança can- tada em procissão final. A maior parte dos versos está redigida em tupi, e o restante em espanhol e português. "Teatro de re- vista indígena , chamou-lhe um leitor moderno, não oferece, de fato, unidade de ação ou de tempo: cenas nativas, luta contra os franceses, corridas, escorribandas diabólicas e fragmentos de prédica mística superpõem-se nessa rapsódia e visam a converter recreando ( 11 ). Os versos em português, em número de qua- renta, trazem a fala do Anjo que apresenta as figuras simbóli- cas do Amor e Temor, fogos, segundo êle, que o Senhor manda para abrasar as almas, como o fogo material abrasara a de São Lourenço: Deixai-vos dêle queimar como o mártir São Lourenço

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e sereis um vivo incenso, que sempre haveis de cheirar na côrte de Deus imenso.RODAPÉ ( * ) Textos Arcafcos, 4' ed., Lisboa, Livraria Cléssica, Ed., 1959, p. 212. ( lo ) O Monólogo ( 15O2 ) foi escrito em espanhol, com notas cêni- cas em português. Segundo palavras do próprio G. Vicente ("e por ser cousa nova em Portugal..."), infere-se que o A. foi o primeiro a levar para fora do espaço religioso uma declamação teatral (Ob. Compl., Lisboa, Sá da Costa,1959, vol. I, p. 7). ( 11 ) Cf. Claude-Henri Frèches, "Le théâtre du P. Anchieta; con· tenu et structure", in Annali, Instituto Orientalc, Nápoles, 1961, vol. III, n " 1.

26 Mas Anchieta, homem culto, educado em colégios da Com-panhia na Coimbra humanistica dos meados do século XVI, étambém destro versejador latino no poema De Beata Virgine DeiMatre Maria, composto em 1563, na praia de Iperoig, onde seencontrava como refém dos Tamoios. A obra, que narra a vida e as glórias de Nossa Senhora,apesar de vazada em corretos disticos ovidianos, está impregna-da da linguagem bíblica e litúrgica, e de glosas de Santo Ambró-sio e São Bernardo. Trata-se de um livro de devoção marial aque o verso latino deu apenas uma pátina renascentista. EmAnchieta, êsse enxêrto clássico numa substância ingênuamentemedieval não produz nenhum conflito, dado o caráter ainda epi-dérmico do contato entre ambas as culturas. Só no séculoXVII, quando a Contra-Reforma já tiver formado mais de umageração em luta com a Renascença e a Reforma, é que nasceráum estilo feito de contradições entre a mente feudal ( que sobre-vive em nível polêmico ) e as formas do "Cinquee ento", quevicejam e se multiplicam por sua própria fôrça: êsse estilo seráa retórica do barroco jesuítico. Mas para o apóstolo dos tupis,o "maneirismo" ainda não ultrapassou o plano escolar e o seuverso é apenas o de um zeloso leitor de Virgflio e de Ovídio.( * )

Oa "Diálogos das Grandezas do Brastl" Nos primeiros decênios do século XVII, com a decadênciada extração de pau-brasil e o malôgro das "entradas", firmou-sea economia do açúcar como a base material da Colônia ( la ) : era,portanto, de esperar que insistissem nessa tônica os escritos deinformação e de louvor. O documento mais representativo, no caso, são os Diálogosdas Grandezas do Brasil, datados de 161O e atribuidos ao cris-tão-nôvo português Ambrósio Fernandes Brandão. A obra com-põe-se de seis diálogos entre Brandônio, que faz as vêzes do co-lonizador bem informado, e Alviano, recém-vindo da Metrópole

( * ) A Anchieta atribui-se também a composição do poema épicoDe Gestis Mendi de Saa, em que se narram as lutas do 3 " Governador

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Geral contra os franceses. Edição recomendável, a cuidada pelo Pe. Ar-mando Cardoso S. J., que também traduziu e comentou o tcxto ( S. Pau-lo, S. e., 197O). ( 12 . Cf. Von Lippmann, História do Açúcar, 2 vols., 1941-42; CelsoFurtado, História EconBmica do Brasil, Rio, 1954.

27e sequioso de noticias sobre as riquezas da terra. E o quad'rodestas já vem na abertura do livro: Brandfinio - ( . . . ) Pelo que, começando, digo que as rique- zas do Brasil consistem em seis coisas, com as quais seus povoado- res se fazem ricos, que são estas: a primeira a lavoura do açúcar, a segunda a mercancia, a terceira o pau a que chamam do Brasil, a quarta os algodões e madeiras, a quinta a lavoura de mantimentos, a sexta e última a criação de gados. De tôdas estas coisas o prin- cipal nervo e substância da riqueza da terra é a lavoura dos açúcares.

Os Diálogos continuam nesse diapasão justapondo mil e uminformes úteis para o futuro povoador da terra. Seria, talvez, precoce, nesta altura, tomar os elogíos doreinol cúpido por fatôres nativistas em nossa literatura. Mas ainsistência em descrever a natureza, arrolar os seus bens e his-toriar a vida ainda breve da Colônia indica um primeiro passoda consciência do colono, enquanto homem que já não vive naMetrópole e, por isso, deve enfrentar coordenadas naturais dife-rentes, que o obrigam a aceitar e, nos casos melhores, a repen-sar diferentes estilos de vida. E à medida que o mero conhecimento geográfico vai sendodominado, abre-se caminho para sentir o tempo que correu, con-dição primeira de tôda historiografia.

Da crônica à história: Frei Vicente, lo ntonil

Nem sempre é fácil distinguir a cronica da história quandose lida com textos coloniais. Entretanto, se é um fato que aspáginas de Gândavo e de Gabriel Soares de Sousa sabem antesa relatório que a reflexão sôbre acontecimentos, já na Históa iado Brasil de Frei Vicente do Salvador ( 13 ) reponta o cuidadode inserir a experiência do colono em um projeto histórico lu-so-brasileiro. O que explica as críticas de Fr. Vicente à relutân-cia do português em deixar o litoral seguro ( onde vive "comocaranguejo") e o conseqüente desleixo em face da riqueza po-tencial da terra. Pela vinculação constante que o historiador estabelece en-tre in f ormação e poder, lembra de perto o autor dos Diálogos. ( a ) FREI VICENTE DO SALVADOR ( nO séCulo, Vicente Rodrigues Pa-lha). Nasceu em Matoim, Bahia, em 1564 e morreu na mesma capitaniaentre 1636 e 1639. A História do Brasil foi concluída em 1627, mas sóveio a ser publicada em 1OO9 por obra de Capistrano de Abreu.

2O

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A atitude atravessará, de resto, todo o periodo colonial, que trans-correu sob o signo da política mercantilista do Antigo Regime:bom exemplo dela seria, no princípio do século XVIII a obrado jesuíta italiano Antonil ( pseudônimo de João Antônio An-dreoni,165O-1716? ), Cultura e Opulência do Brasil, quase tôdacentrada na economia e na política açucareira ( já então em cri-se ), motivo, ao que parece, da sua apreensão e destruição pelogovêrno luso. E prova que, na condição colonial, a informa-ção é útil até certo ponto . . , ( 14 ) Um balanço da prosa do primeiro século e meio da vidacolonial dá-nos elementos para dizer que o puro caráter infor-mativo e referencial redomina e pouco se altera até o adventodo estilo barroco. só com a presença dêste na cultura euro-péia, e sobretudo ibérica, que surgirá entre nós uma organiza-ção estética da prosa: os sermões de Vieira, a historiografia gon-górica de Rocha Pita e mesmo a alegoria moral de Nuno Mar-ques Pereira ( apesar do didatismo que a marca ) já serão exem-plos de textos literários, isto é, de mensagens que não se esgo-tam no mero registro de conteúdos objetivos, o que lhes acresceigualmente o pêso ideológico.

( 14 ) texto de Antonil há uma edição prefaciada por Afonso deTaunay ( S. Paulo, Ed. Melhoramentos, 1923 ) e outra pela Profa. AliceCanabrava, Cia. Ed. Nacional, 1967. Cf. José Paulo Paes, "A Alma doNegócio", in Mistério em Casa, S. Paulo, Comissão de Literatura, 1961.

29# ll

ECOS DO BARROCO#O Barroco: espírito e estilo

Seja qual fôr a interpretação que se dê ao Barroco ( 16 ), ésempre útil refletir sôbre a sua situação de estilo pós-renascen-tista e, nos países germânicos, pós-reformista. A Renascença, fruto maduro da cultura urbana em algunscentros italianos desde o princípio do século XV, foi assumindoconfigurações especiais à medida que penetrava em nações aindamarcadas por uma poderosa presença do espírito medieval. Nocaso português e espanhol, os descobrimentos marítímos leva-ram ao ápice uma concepção triunfalista e messiânica da Coroae da nobreza ( rural e mercantil ), concepção mais próxima decertos ideais césaro-papistas da alta Idade Média que da dou-trina do príncipe burguês de Maquiavel. E durante todo oséculo XVI vincaram a cultura ibérica fortes traços arcaizantes,que a Contra-Reforma, a Companhia de Jesus e o malôgro deAlcácer-Quibir viriam carregar ainda mais ( lg ). Ora, o estilo barroco se enraizou com mais vigor e resistiu

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mais tempo nas esferas da Europa neolatina que sofreram oimpacto vitorioso dos novos estados mercantis. É na estufada nobreza e do clero espanhol, português e romano que seincuba a maneira barroco-jesuítica: trata-se de um mundo já emdefensiva, orgânicamente prêso à Contra-Reforma e ao Impériofilipino, e em luta com as áreas liberais do Protestantismo e doracionalismo crescente na Inglaterra, na Holanda e na França. E instrutivo observar que o barroco-jesuitico não tem níti-das fronteiras espaciais, mas ideológicas. Floresce tanto na Áus-tria como na Espanha, no Brasil como no México, mas já nãose reconhece nas sóbrias estruturas da arte coetânea da Suécia e

( t s ) V. Bibliografia, in f ine. ( lg ) O século XVI foi o período áureo da Escolástica em Coimbrae em Salamanca. Na literatura, a "medida velha", o teatro vicentino comsua descendência espanhola, a novela de cavalaria, a crônica de viagens e aprosa ascética e devota ilustram a permanência das formas medievais.

33 da Alemanha, cujo "barroco" luterano ( que enforma a música de Bach ) é infenso a extremos gongóricos da imagem e do som. Há, portanto, um nexo entre o barroco hispânico-romano e tô- da uma realidade social e cultural gue se inflecte sôbre si mes- ma ante a agressão da modernidade burguesa, científica e leiga. Tal inflexão não poderia ser, e não foi, um mero retôzno ao medieval, ao gótico, à mente feudal da Europa pré-humanís- tica. A atmosfera do Barroco está saturada pela experiência do Renascimento e herda as suas formas de elocução maduras e crepusculares: o classicismo e o maneirismo. No entanto, a vi- da socíal é outra; outra a retórica em que se traduzem as rela- ções guotidianas. Decaída a virtù renascimental em discrición astuta guando não hipócrita, mortificados os anseios humanísti- cos, de gue eram alto e belo exemplo a filosofia de Pico della Mirandola, a pintura de Leonardo, o riso sem pregas de Ariosto e Rabelais, ensombra-se de melancolia o contato entre o artis- ta e o mundo: Tasso e Camões, Cervantes e o último Shakespea- re já são mestres de desengano. Mas o esfriamento da antiga euforia não destrói os andai- mes de uma linguagem construída desde Giotto e Petrarca; ao contrário, são os puros esquemas que restam e sustentam, não raro solitàriamente, a vontade-de-estilo dos artistas. O código sobreleva a mensagem: triunfa o maneirismo. A apreciação do Barroco tem oscilado entre a sêca recusa, comum aos críticos da mensagem ( De Sanctis, Taine, Croce ) e a quente apologia, peculiar aos anatomistas do estilo ( Woelfflin, Balet, Spitzer, Dámaso Alonso). As lacunas de ambas as pers-p gç pectivas não são difíceis de a ,ontar: a ne a ão da arte barroca pela sua "carência de conteúdo é cega, pois é claro que o alhea- mento da realidade, a fuga ao senso comum, enfim o descom- uanto à atitude for- promisso histórico é também conteúdo. Q gue se to-

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malista, resume-se em atribuir a priori um valor ao mará por objeto preferencial, os esquemas, herdados pela tradi- ção clássica e apenas transfigurados por fôrça de um complexo ideológico. Em suma, desvalorizar um poema barroco porque "vazio" ou mitizá-lo porque rebuscadamente estilizado é, ainda e sempre, cometer o pecado de isolar espírito e forma, e não atingir o plano da síntese estética que deve ó o a áee esto tlp- instância, o julgamento de uma obra. A ten ç , rece fatal e não sei de homem culto, por equilibrado que se professe, gue não tenha alguma vez caído nela; mas o impor-

34tante é vigiar-se para que o dogmatismo de uma opção não nosfaça mergulhar na ininteligência de uma das poucas atividadesque resgatam a estupidez humana: a arte. Suposto no artista barroco um distanciamento da praxis( e do saber positivo ), entende-se que a natureza e o homem seconstelassem na sua fantasia como quadros fenomênicos instá-veis. Imagens e sons se mutuavam de vário modo sem que pu-desse determinar com rigor o pêso do idêntico, do ipse idem. A paisagem e os objetos afetam-no pela multiplicidade dosseus aspectos mais aparentes, logo cambiantes, com os quais aimanínação estética vai compondo a obra em função de analo-gias sensoriais. O orvalho e a pele clara podem valer pelo cris-tal; o sangue pelo cravo ou pelo rubi; o espelho pela água purae pelo metal polido. No mundo dos afetos, a "semelhança" en-volve os contrastes, de modo a camuflar tôda percepção nítidadas diferenças objetivas: Inccndio em mares d'água disfarçado, Rio de neve em fogo convertido ( Gregório de Matos )

Igual processo de identificação ( ilusória, sensorial-não ra-cional ) opera nos jogos de palavras, nos trocadilhos e nos enig-mas, fundados na similitude da imagem sonora de têrmos semân-ticamente díspares: Jaz a ilha chamada Itaparica A qual no nome tem também ser rica. ( Fr. Manuel Itaparica )

O labírinto dos significantes remete quase sempre a con-ceitos comuns que interessam ao poeta não pelo seu pêso con-teudístico, mas pelo fato de estarem ocultos. s o princípio mes-mo do conceptismo usar "de palavra peregrina que velozmenteindique um objeto por meio de outro" ( Gracián, Arte de Inge-nio). O que importa, pois, é não nomear plebèiamente o obje-to, mas envolvê-lo em agudezas e torneios de engenho, critériosbásicos de valor na arte seiscentista. Os teóricos da época são,nesse ponto, concordes: Esta é a Argúcia, grande mâe de todo conceito engenhoso, cla- rlssimo lume da Oratória e Poética Elocução, espírito vital das mortas páginas; prazerosíssimo condimento da Civil Conversação;

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35 último esfôrço do Intelecto, vestígio da Divindade na Alma Humana. O falar dos Horno ns Enge nhosos tanto se diferencia dos Pleheus, quanto o falar dos Anjos do dos liomens (Emmanuele Te- sauro ) ( 17 ) ,

Baltasar Gracián define a agudeza como "esplêndida con-cordância, correlação harmoniosa entre dois ou três extremos ex-pressos em um único ato de entendimento" (la). A obsessão do nôvo a qualquer preço é contraponto de umaretórica já repetida à saciedade. Valoriza-se naturalmente o quenão se tem: é mister "procurar coisas novas para que o mundoresulte mais rico e nós mais gloriosos", diz o maior estilista bar-roco italiano, Daniele Bartoli ( la ). A poética da novidade tanto no plano das idéias ( conceptis-mo ) como no das palavras ( cultismo ) deságua no efeito retóri-co-psicológico e na exploração do bizarro: E del poeta il fin la maraviglia, chi non sa far stupir vada alla striglia (Giambattista 1farirro)

O limite inferior dessa arte é o cerebrino. Como diz Octa-vio Paz: "Góngora não é obscuro: é complicado" ( 2o ). E foiêsse o limite dos imitadores de Góngora e de Marino, como umcerto Claudio Achillini que, apostrofando o fogo no trabalho daforja, clamava: Sudate o fochi a preparar metalli.

O rebuscamento em abstrato é sem dúvida o lado estéril doBarroco e o seu estiolar-se em barroquismo. Contra essa dete-rioração do espírito criador íriam reagir em Portugal e Espanha,nos meados do século XVIII ( e meio século antes, na Itália ) ospoetas árcades, já imbuídos de neoquinhentismo e do "bomgôsto" francês. E o Rococó do século XVIII pode-se explicarcomo um Barroco menor, mais adelgaçado e polído pelo consen-

( 17 ) Apssd Anceschi, Del I3arocco e altre prove, Florença, Vallecchi,1953, p. 1O. Apud R. Wellek, Hsstória da Critica llloderna, São Paulo, Her-der, vol. I, p. 3. Apud Anceschi, op. cit., p. 15. ( zo ) Em Corriente Alterna, México, Siglo XXI, 1965, p. 6.

36so de uma sociedade que já se liberou do absolutismo por direitodivino e começa a praticar um misto de Ilustração e galante li-bertinagem. E na acepção estrita de "retórica pela retórica" BenedettoCroce esconjurou o Barroco definindo-o "forma prática e não es-tética do espírito" ( isto é, da vontade e não da intuição ) e co-mo tal, "varietà del brutto" ( 21 ) .

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Seja como fôr, a rejeição de uma certa poética do Barroconão dispensa o crítico de esmiuçar os traços de estilo dos poe-mas da época nem de sondar-lhes a gênese cultural e afetiva. O primeiro passo para o deslinde da morfologia barrôca foidado pelo historiador de arte Heinrich Woelfflin, cujo textoRenaissance und Barock ( 18oo ) abriu uma nova problemáticaque ainda hoje preocupa os estudiosos da forma. Mas só nosCotaceitos Fundamentais de História da Arte ( Kunstgeschichtli-che Gründhegrif fe), definiria a passagem ideal do clássico aobarroco em têrmos de uma passagem do linear ao pictórico, da visão de superfície à visão de profundidade, da forma fechada à forma aberta, da multiplicidade à unidade, da clareza absoluta dos objetos à clareza relativa. Pictórico inclui "pitoresco" e "colorido"; pro f undo impli-ca desdobramento de planos e de massas; aberto denota pers-pectivas múltiplas do observador; uno subordina, por sua vez, osvários aspectos a um sentido; clareza relativa sugere a possibili-dade de formas de expressão esfumadas, ambíguas, não-finitas. Na mesma esteira de análise interna, e contrapondo Classi-cismo e Barroco, de forma supratemporal, como duas categoriaseternas da arte, Eugenio D'Ors ( Du Barogue, 1913 ) inclui naprimeira "as formas que pesam" e na segunda "as formas quevoam". Todos ésses caracteres quadram bem a um estilo voltadopara a alz<são ( e não para a cópia ) e para a ilusão enquanto fugada realidade convencional.

Em Storia dcll'ctd ha>'occa in It`zlia, Bari, Laterza, 1929.

37 Pela riqueza de pormenores que encerra, transcrevo abaixouma descrição da arquitetura barrôca feita pelo crítico de arteLeo Balet, que acentua a volúpia do movimento: Na arquitetura o movimento já apazece nas plantas baixas que em plena expansão rornpem com as formas geométricas fundamen- tais e por meio de curvas e dobras caprichosas, saliências e reen- trâncias abrandam tôda a zigidez. As fachadas de igrejas, dividi- das muitas vêzes em cinco partes, os muros que se torcem como serpentes, os tetos que se arqueiam e as tôrres que se alargam e se afinam, saltam e se precipitam para cima sempre com novos arre- messos e uando pensamos que a sua indocilidade vai finalmente acalmar-se, atiram asnda, atrevidamente, por cima das massas arqui- tetônicas algumas pontas semelhantes a foguetes em direção à imen- sidade do céu. Nas igrejas e castelos, onde êstes eram de certo mo- do acessíveis, antepunha-se um sistema de escadarias que, como cas- catas de edza, pareciam irromper do interior e larga e pesadamen- te precippax-se sôbre o terreno. Até mesmo a coluna de suporte, o mais estático dos elementos construtivos, foi animada. Torciam-se em espirais pelos altares acima. Tudo o que era áspero se abran- dava. Frisas bojudas saíam das superfícies planas, encurvavam-se

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os ângulos, as volutas volteavam-se sôbre si mesmas e rolavam como vagas. O interior dos edifícios era atapetado de ornamentos em forma de fôlhas e ramos e, depois, de rocalhas, que se esgueiravam pelas molduras. Nenhum móvel permanecia, afinal, estável. Tuqdo oscilava e dançava sôbre pernas recurvadas, através das salas ue palpitavam de uma vida misteriosa, e que com as paredes de espe- lhos, eram inatingíveis, ilimitadas e infinitas. Tudo era constnxído sôbre luz e sombras para assim completar a ilusão dos edifícios que se moviam e respiravam em tôdas as suas paztes (zz)·

É de esperar que os recursos dessa visão do mundo sejam, na poesia, as f iguras: sonoras ( aliteração, assonância, eco, ono- matopéia. . . ), sintáticas (elipse, inversão, anacoluto, silepse. . . ) e sobretudo semânticas ( metáfora, metonímia, sinédoque, anti- tese, clímax. . . ), enfim todos os processos que reorganizam a linguagem comum em função de uma nova realidade: a obra, o texto, a composição. Se artirmos da exegese do estilo barroco em têrmos de cri- se defensiva da Europa pré-industrial, aristocrática e jesuítica, erante o avanço do racionalismo burguês, então entenderemos o quanto de angústia, de desejo de fuga e de ilimitado subjetivis- mo havia nessas formas. Aos espíritos zacionalistas do século

(zz) Apud Hannah Levy A Propósilo de Três T'eorias sôbre o Bar- roco, Publ. do Grêmio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Univ. de S. Paulo, 1955, p· 1g·

35XVIII pareceram de desvairado mau gôsto, como já pareciamperversões do Classicismo a um Galileo, última voz da inteli-gência florentina, e aos cartesianos da côrte de Luís XVI ( 23 ) aE entenderemos também a imagem barrôca da vida como um so-nho (La vida es sueno, de Calderón), como uma comédia (Elgran teatro del mundo ), como um labirinto, um jôgo de espe-lhos, uma festa, na lírica de Góngora, de Marino, de Lope Emsuma, entenderemos o triunf o da ilusão que um desenganado` mo-ralista napolitano, Torquato Accetto, louvou sob o nome de dis-simulazione onesta" e o seu contemporâneo Gracián estimavacomo o "dom de parecer".

O Barroco no Brasil

No Brasil houve ecos do Barroco europeu durante os séculosXVII e XVIII: Gregório de Matos, Botelho de Oliveira, FreiItaparica e as prirneiras academias repetiram motivos e formasdo barroquismo ibérico e italiano. Na segunda metade do século XVIII, porém, o cido doouro já daria um substrato material à arquitetura, à escultura eà vida musical, de sorte que parece lícito falar de um "Barrocobrasileiro" e, até mesmo, "mineiro", cujos exemplos mais signifi-cativos foram alguns trabalhos do Aleijadinho, de Manuel da

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Costa Ataíde e composições sacras de Lôbo de Mesquita, MarcosCoelho e outros ainda mal identificados ( z" ) . Sem entrar no mé-rito destas obras, pois só a análise interna poderia informar sôbreo seu grau de originalidade, importa lembrar que a poesia coetâ-nea delas já não é, senão residualmente, barrôca, mas rococó, ar-cádica e neoclássica, havendo portanto uma discronia entre asformas expressivas, fgenômeno que pode ser vàriamente expli-cado. Acho razoável a hipótese de que o nível de consciência

( 23 ) Galileo rejeita o cultismo e declara preferir a clareza de Ariostoàs sombras de um Tasso pré-barroco (Considerazioni intorno alLa Geru-salemme Liberata). Na França cai logo em ridículo a "préciosité" e, noplano ético, um Pascal jansenista satiriza o laxismo dos jesuítas tão gratoà nobreza ( Les Provinciales; cf. a bela análise de L. Goldmann, Le Dieucaché, Gallimard, 1956). ( 2 ) Cf. Fernando Correia Dias, "Para uma sociologia do Barrocomineiro", in Barroco, Revista de Ensaio e Pesquisa, ano 1, n 1, 1969,pp· 63·74.

39#dos produtores da literatura arcádica se achava muito mais pró-ximo da Ilustração burguesa européia do que o dos mestres-de--obra e compositores religiosos de Minas e Bahia ( cujos modelosremontam ao Barroco seis-setecentista). Assim, o Aleíjadinho,que esculpe e constrói nos fins do século XVIII, ignora o Neo-classicismo; e a música de Lôbo de Mesquita e de Marcos Coe-Iho Neto lembra ivaldi e Pergolese e quando Vnos sugere ca-dências de Haydn, trata-se antes do Haydn sacro, melódico eitalianizante ( logo, ainda barroco ) do que do mestre da sinfo-nia clássica ( 25 ) · ) poe- De qualquer modo, é possível distinguir: a ecácademias)sia barrôca na vida colonial ( Gregório, Botelho, ase b um estilo colonial-barroco nas artes plásticas e na música, ) quando a exploraçãoque só se tornou uma realidade culturaldas minas permitiu o florescimento de núcleos como Vila Rica,Sabará Mariana, São João d'EI Rei, Diamantina, ou deu vida no-va a velhas cidades quinhentistas como Salvador, Recife, Olindae Rio de Janeiro.

Cf. Curt Lange "La música en Minas Geraisldem , u tt s t sKUr XVIII", in Revista S.O.D.R.E. Montevidéu, 1957. anização musical durante o período colonial brasileizo", nas Actas do V Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, Universida<le cie Coim- bra,1966, vol. IV.

4O AUTORES E OBRAS

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A "Prosopopéia" de Bento Teixeira

Na esteira do Camões épico e das epopéias menores dosfins do século XVI, o poemeto em oitavas heróicas A Prosopo-péia, de F3ento Teixeira ( 2o ), publicado em 16O1, pode ser con-siderado um primeiro e canhestro exemplo de maneirismo nasletras da colônia (2T ). A intenção é encomiástica e o objeto do louvor Jorge deAlbuquerque Coelho, donatário da capitania de Pernambuco, queencetava a sua carreira de prosperidade graças à cana-de-açúcar.A imitação de Os Lusiadas é assídua, desde a estrutura até o usodos chavões da mitologia e dos torneios sintáticos. O que há denão-português ( mas não diria: de brasileiro ) no poemeto, comoa "Descrição do Recife de Pernambuco", "Olinda Celebrada" eo canto dos feitos de Albuquerque Coelho, entra a título de lou-vação da terra enquanto colônia, parecendo precoce a atribuiçãode um sentir:ento nativista a qualquer dos passos citados.

2G) BENTO TEIXEIRA (15a 5, Pôrto - ? Pi rnambUCO). CrlSteO--nôvo, primeiro caso de intelectual leigo na história do Brasil: formou-seno Colégio da Bahia onde ensinou até fugir para Pernambuco onde sehomiziou por ter assassinado a espôsa. A redação da Prosopopéia datadêsse período e terá sido ditada pela urgência de assegurar o beneplácitodos podcrosos. (2T) O tcrmo entcnde-se aqui: a) na sua acepção mais pobre deestilo d ma>:eira de um autor já consagrado, no caso, à maneira de Ca-mões; b) na acepção de pré-barroco, só enquanto ilustra a tendência lite-rária, própria dos fins do século XVI, de retomar como valôres em simodos de expressão do Renascimento tardio (Cf. Fidelino dc Figueiredo,A d pica Porlt<gr<êsa no Século XVl, S. Paulo, Faculdade de Filosofia,Ciências e Letras da Universidade rte S. Pnulo. 193O),

41Gregório de Matos Poesia muito mais rica, a do baiano Gregório de Matos Guer-ra ( 1623-1696 ), que interessa não só como documento da vidasocial dos Seiscentos, mas também pelo nível artístico queatingiu ( 2s ) . Gregório de Matos era homem de boa formação humanís-tica, doutor in utrogue jure pela Universidade de Coimbra: ma-zelas e azares tangeram-no de Lisboa para a Bahia quando já seabeirava dos cinqüent'anos; mas entre nós não perdeu, antes es-picaçou o vêzo de satirizar os desafetos pessoais e políticos, mo·tivo de sua deportação para Angola de onde voltou, um ano an-tes de morrer, indo parar em Recife que foi a sua última morada. Têm-se acentuado os contrastes da produção literária de Gre-gório de Matos: a sátira mais irreverente alterna com a contri-ção do poeta devoto; a obscenidade do "capadócio" ( José Verís-simo ) mal se casa com a pôse idealista de alguns sonetos petrar-quizantes. Mas essas contradições não devem intrigar quem co-

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nhece a ambigüidade da vida moral que servia de fundo á edu-cação ibérico-jesuítica. O desejo de gôzo e de riqueza são mas-carados formalmente por uma retórica nobre e moralizante, masafloram com tôda brutalidade nas relações com as classes servisque delas saem mais aviltadas. Daí, o "populismo" chulo queirrompe às vêzes e, longe de significar uma atitude antiaristo-crática, nada mais é que válvula de escape para velhas obsessõessexuais ou arma para ferir os poderosos invejados. Conhecem-seas diatribes de Gregório contra algumas autoridades da colônia,mas também palavras de desprêzo pelos mestiços e de cobiça pelasmulatas. A situação de "intelectual" branco não bastante pres-tigiado pelos maiores da terra ainda mais lhe pungia o amor-pró-prio e o levava a estiletar às cegas tôdas as classes da nova so-ciedade: A cada canto um grande conselheiro, Que nos quer governar cabana e vinha; Não sabem governar sua cozinha, E podem governar o mundo inteiro. Em cada porta um bem freqüente olheiro, Que a vida do vizinho e da vizinha Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinlv a, Para o levar à praça e ao terreiro.

( 2s ) Cf. a edição mais completa de suas poesias, em 7 vols. pelaEditôra Janaína, Bahia, 196O. Sôbre o poeta: S. Spina, Gregório de e fatos,em A Literatura no Brasil (dir. de Afrânio Coutinho), Rio, Ed. Su1-·Americana, 1955, vol. I, t. 1, pp. 363-376.

42 Muitos mulatos desavergonhados, Trazidos sob os pés os homens nobres, Postas nas palmas t“da a picardia, Estupendas usuras nos mercados, Todos os que não furtam muito pobres: E eis aqui a cidade da Bahia ("Descreve o gue era naquele tempo a cidade da Bahia")

As suas farpas dirigiam-se de preferência contra os fidalgos"caramurus" em que já acusa a presença de sangue índio: Que é fidalgo nos ossos cremos nós, Pois nisso consistía o mor brasão Daqueles que comiam seus avós. E como isto lhe vem por geração, Lhe ficou por costume em seus teirós Morder os que provêm de outra nação. ( "A certo f idalgo caramuru" )

Araripe Júnior, no estudo que dedicou a Gregório, deixouclaro que o tipo de comicidade peculiar ao sátiro baiano é o opos-to da "alegria gaulesa" de Rabelais, tolerante no seu descansadoepícurismo. "Nada disso se encontra em Gregório de Matos.Pessimismo objetivo, alma maligna, caráter rancoroso, relaxado

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por temperamento e costumes, o poeta do "Marinícolas" vertefel em tôdas as suas sátiras; e, apesar de produto imediato domeio em que viveu, desconhece a sua cumplicidade, pensa rea-gir quando apenas o traduz, cuida moralizar quando apenas seenlameia" ( 2D ). A truculência do juiz é a outra face do trovador obsceno:contraste primário que, dada a mediania humana e artística deGregório, não deságua no eros religioso atingido pela alta poesiabarrôca de Tasso e Donne, Silesius e Sor Juana Inés de la Cruz. Resta ver a fôrça artesanal, que é patente em um verseja-dor hábil como Gregório. Alguns de seus sonetos sacros e amo-rosos transpõem com brilho esquemas de Góngora e de Queve-do e valem como exemplos do gôsto seiscentista de compor si-miles e contrastes para enfunar imagens e destrínçar conceitos. Concretizando, por exemplo, a intuição do tempo fugaz,assim fecha um sonêto quase-plágio de Góngora: Em Gregório de Matos, Rio, 1849; citado da Obra C,ritáca,Rio, MEC,196O, vol. II, p. 3R9.

43# 6 não aguaxdes, que a madura idade Te converta essa flor, essa beleza, Em terra, em cinza, em pó, em sombra, em nada.

Ou, moralizando sôbre a vaidade da vida terrena, motivobarroco por excelência, distribui sàbiamente as imagens da rosa,da planta e da nau para reuni-las enfim no último terceto: É a vaidade, Fábio nesta vida, Rosa, que da manhã lisonjeada, Púrpuzas mil, com ambição dourada, Airosa rompe, arrasta presumida. R planta, que de abril favoxecida Por mares de soberba desatada, Florida galeota empavesada, Sulca ufana, navega destemida. É nau enfim, que em breve ligeireza, Com a presunção de Fênix generosa, Galhardias apresta, alentos preza: Mas ser planta, ser zosa, nau vistosa De que importa, se aguarda sem defesa Penha a nau, ferro a planta, tarde a rosa? (Desenganos da vida humana mes aJòricamente)

Botelho de Oliveira

Mas nada ilustra tão cabalmente a presença do gongorismo entre nós do que a obra de Manuel Botelho de Oliveira ( 1636- -1711 ), também baiano e bacharel o ô Dár oleçãoldó s ús poe- de de Coimbra. Deu a público em 1 a em quatro co- mas sob o título de Música do Parnaso - dividid ros de rimas portuguêsas, castelhanas, italid aiass[e`Hay asm go p eu