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Entrevista com Francisco Brennand, realizada na sua Oficina de Cerâmica, na Várzea, Recife, dia 19 de setembro de 2014, pelo jornalista Romero Rafael. (Brennand:) As entrevistas modernas, é evidente, são gravadas para facilitar a memória das pessoas, mas a meu ver, embora seja uma moda, você repetir ou transcrever exatamente aquilo que a pessoa disse, e com todos os defeitos de linguagem, eu diria, como no cinema, I hate, eu odeio essa maneira de transcrever, entende? Eu acho que o repórter, isso no meu entender - isso não tem nada a ver com uma crítica aos processos modernos - deveria alinhavar depois a entrevista, para torná-la o mais clara possível. Porque existem pessoas que podem corresponder a tudo, menos à clareza. A começar pela nossa presidente da República. O senhor fica muito aqui? Todos os dias, imagino... Todos os dias, porque não é nada de excepcional, nenhuma originalidade, nenhuma mortificação. Nem sequer eu poderia dizer solidão, porque basta eu sair desse meu gabinete, ou desse meu ateliê, para encontrar, às vezes, dezenas de pessoas passeando por aí. E elas me pedem frequentemente para tirar fotografia e eu não me nego. E, às vezes, até pequenas conversas. Eu não posso dizer que isso é solidão. Nem tampouco um retiro religioso. Nada disso. É um lugar que faz parte de um cenário da minha infância e que, portanto, não me é estranho. Eu e meus irmãos brincávamos aqui, que era uma velha cerâmica de telhas e tijolos, fundada pelo meu pai em 1917, portanto vai fazer agora em 2017 cem anos. É a única fabrica da família que vai completar cem anos. É esta daqui, que eu encontrei em ruínas. E uma coisa engraçada: eu encontrei aqui no meu diário uma única frase: ‘Sou um especialista em reconstruir ruínas. Nada mais do que isto’. Pode ser uma frase de efeito, mas não é. Porque a casa onde eu morei, quando vim da Europa e tinha que me estabelecer aqui, estava numa

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Page 1: Com Francisco Brennand, aos 87 de vida e 60 de arte - Social1

Entrevista com Francisco Brennand, realizada na sua Oficina de Cerâmica, na Várzea, Recife, dia 19 de setembro de 2014, pelo jornalista Romero Rafael.

(Brennand:)

As entrevistas modernas, é evidente, são gravadas para facilitar a memória das pessoas, mas a meu ver, embora seja uma moda, você repetir ou transcrever exatamente aquilo que a pessoa disse, e com todos os defeitos de linguagem, eu diria, como no cinema, I hate, eu odeio essa maneira de transcrever, entende? Eu acho que o repórter, isso no meu entender - isso não tem nada a ver com uma crítica aos processos modernos - deveria alinhavar depois a entrevista, para torná-la o mais clara possível. Porque existem pessoas que podem corresponder a tudo, menos à clareza. A começar pela nossa presidente da República.

O senhor fica muito aqui? Todos os dias, imagino...

Todos os dias, porque não é nada de excepcional, nenhuma originalidade, nenhuma mortificação. Nem sequer eu poderia dizer solidão, porque basta eu sair desse meu gabinete, ou desse meu ateliê, para encontrar, às vezes, dezenas de pessoas passeando por aí. E elas me pedem frequentemente para tirar fotografia e eu não me nego. E, às vezes, até pequenas conversas. Eu não posso dizer que isso é solidão. Nem tampouco um retiro religioso. Nada disso. É um lugar que faz parte de um cenário da minha infância e que, portanto, não me é estranho. Eu e meus irmãos brincávamos aqui, que era uma velha cerâmica de telhas e tijolos, fundada pelo meu pai em 1917, portanto vai fazer agora em 2017 cem anos. É a única fabrica da família que vai completar cem anos. É esta daqui, que eu encontrei em ruínas. E uma coisa engraçada: eu encontrei aqui no meu diário uma única frase: ‘Sou um especialista em reconstruir ruínas. Nada mais do que isto’. Pode ser uma frase de efeito, mas não é. Porque a casa onde eu morei, quando vim da Europa e tinha que me estabelecer aqui, estava numa total ruína, ia cair, e eu reconstruí e fui morar nela - a casa do Engenho São Francisco.

Então, essa coisa da ruína lhe persegue naturalmente. Há uma relação...

Exatamente. Há uma relação. Quer dizer, uma casa que eu encontrei na cidade de Triunfo estava em ruínas, que é um ateliê que eu tenho lá no Sertão do Pajeú. Estava em ruínas e eu reconstruí também.

Eu li sobre seu ovo, que destruíram, e o senhor disse: o ovo é nascimento, é o novo. Qual a simbologia dessa sua criação?

O ovo, no caso, seria um emblema de imortalidade. As coisas são eternas porque se reproduzem, e o ovo, mais do que tudo, é um emblema disso, da reprodução. Mas esse é um elemento básico de toda a minha expressão

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artística. É exatamente a ideia da reprodução. O primado do elemento sexual reprodutivo com toda a sua parafernália; quer dizer, todas as nuances que você possa imaginar. E que isso representa a vida cotidiana, a nossa vida cotidiana e todas as especulações que, porventura, possam ser feitas sobre essa sexualidade. Você pode pegar um dicionário de palavrões que em vez de ser uma interpretação correta seria uma interpretação popular, mas de qualquer forma não deixa de ser a mesma ideia fixa de que nós somos condenados. Na realidade há uma condenação: nós não podemos escapar de nós próprios nem da nossa sexualidade. É impossível. Se não, não seríamos um homem nem a criatura humana. Isso se chama humano. O animal não tem nenhuma dessas preocupações, as coisas se realizam ciclicamente, dentro daquilo que a mãe natureza predetermina. Mas em relação ao humano, o sexo é coisa mental, está dentro da cabeça. Às vezes se culpa o corpo, se diz que a carne é fraca. Que conversa é essa? A carne não tem nada de fraca. Fraco é o espírito; fraco é a mente. A perversidade vem da mente, não vem do corpo.

O que é o espírito?

O espírito é exatamente aquilo que nos comanda, é a nossa mente. Pode ser o cérebro. Você pode interpretar como quiser. São forças estranhas, que nos dirigem desde a origem do mundo. Não só a nós, como a tudo o que é vivente, a todas as coisas vivas, incluindo até os minerais, que podem parecer inertes, mas têm lá, à sua maneira, uma vida, porque já foram fogo e têm lá suas matérias. Basta dizer que dentro de um mineral você encontra todos os componentes que estão dentro do nosso corpo.

Eu estava assistindo ao documentário sobre o senhor, de Mariana Brennand Fortes, e o senhor fala dessa janela no seu ateliê.

Exatamente dessa janela. Essa parede passou fechada por 15 anos e eu não me dei por falta disso. Eu ficava aqui dentro completamente confinado.

E quando ela surgiu?

Ela surgiu exatamente 15 anos depois de eu estar aqui. Quer dizer, a partir de 1971, por vota de 1985...

Por quê?

Eu comecei a sentir falta de luz. Uma vez um fiscal do trabalho verificou que várias das sessões desta fábrica estavam com iluminação insuficiente e ele chegou aqui no meu ateliê e disse: o senhor está trabalhando com iluminação insuficiente e é preciso ter mais luz. Por isso está cheio de luz. E eu disse: bom eu vou melhorar ainda mais, vou mandar abrir aqui uma janela de ateliê, e aí ela apareceu.

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No documentário, o senhor fala também que essa janela lhe conecta ao mundo.

Ao mundo exterior. Vou lembrar uma coisa: um pintor alemão visionário, que eu admiro muito, e que pouco interessa o nome, o nome dele era Gaspar, mas ele não queria saber do mundo, porque ele achava que se deveria pintar aquilo que você imaginava, e não o que você via. Como ele necessitava de luz, a janela era bastante alta, que nem se ele ficasse de ponta de pé poderia olhar o lado de fora. Isso ele não inventou, porque um amigo dele, igualmente pintor, representou-o pintando no seu cavalete e está lá a janela de ateliê tão alta que nenhum homem, por mais alto que fosse, poderia olhar para fora.

Falando desse mundo externo, quais são as imagens que o senhor, hoje, visualiza do mundo, de como ele está?

Eu vou lhe dizer: há uma série de temas que para mim são obsessivos e repetitivos. A quantidade deles é tamanha que a minha própria memória não poderia, no momento, satisfazer a sua pergunta. Mas, vamos dizer, assim, esquematicamente, a Torre de Babel, a confusão linguística, e mesmo a confusão que existe entre todas as etnias, entre todas as raças, enfim, a balbúrdia que o próprio ser humano provoca quando confrontado com o seu semelhante. O que nós estamos vendo agora? Nós acabamos de ver uma espécie de plebiscito na Escócia, que é um lugar que não nos parece muito distante, porque está muito ligado à história da Inglaterra, à historia da literatura. A grande peça dramática de Shakespeare foi o ‘Macbeth’, que foi passada na Escócia, na noturna e enevoada Escócia. Portanto, estavam lá fazendo um plebiscito para saber se a Escócia se livrava da Inglaterra; se ficava independente da Inglaterra. Olha, ia ser um problema seríssimo, porque os escoceses não iriam saber o que fazer da sua liberdade, que é uma coisa extremamente perigosa. Eles estão dentro do mesmo território, aquilo é uma ilha, por mais diferentes que sejam as etnias, porque os escoceses são celtas, e não propriamente anglo-saxões. Mas eles estão dentro do tabuleiro da grande ilha. Um pouco mais alto, por isso eles chamaram de highlander, aquelas pessoas que vivem no alto, mas de qualquer forma a Escócia é Inglaterra, como o País de Gales é Inglaterra. Iria acontecer uma balbúrdia muito séria. Portanto, a criatura humana está sempre em conflito, daí porque a Torre de Babel para mim é uma coisa básica de conflitos, mas pode ser Jonas e a Baleia, pode ser a figura de Joana D’Arc, as coisas mais díspares. Não existe uma ordem cronológica, nem eu privilegio a Bíblia ou o cenário religioso para nada do meu trabalho. E utilizo, até poderia dizer, uma mitologia pessoal. Eu passeio, sem nenhuma cerimônia, pela mitologia grega ou pela mitologia suméria, por tudo o que me interessa no momento. Pego fragmentos daquilo que me interessa e vou tentando me expressar e criando um mundo pessoal, que é pessoal ou babélico. Pode-se interpretar como um mundo babélico. Isso é um mundo confuso, não é fácil de você destrinchar, saber os motivos pelos

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quais eu fiz tudo isso. Se uma pessoa ler com atenção os quatro volumes do meu diário, que chegam a mais de mil páginas, seria muito fácil identificar o nascimento de todas essas obras que eu fiz. Todas sem exceção, seja de escultura, seja de pintura. Saberia quase todos os livros que eu li e que provocaram exatamente o aparecimento dessas obras. Eu sou também, além de ser uma pessoa apaixonada pela pintura, pela escultura, pelo desenho, pela gravura, enfim, por tudo aquilo que representa as artes plásticas, eu sou também uma pessoa apaixonada pela literatura. Isso desde a infância. Eu convivi com livros desde muito cedo, quando nem ainda sabia ler, mas sabia ver as gravuras dos livros. O ‘Dom Quixote de la Mancha’ eu conhecia porque abria e ficava encantado com aquelas gravuras de Gustave Doré, que era um gravador francês do século 19, fazia uma gravura especialíssima, como também Dante Alighiere, o inferno e o paraíso, tudo isso ilustrado pelo mesmo Gustave Doré. E afora Doré, por exemplo, um livro de história natural, de Buffon, que era um naturalista francês, todo ilustrado, e isso era o encantamento da minha infância, folheando a biblioteca da minha mãe, a biblioteca do meu pai, que eram diversas; a biblioteca da minha avó... Ela recebia uma revista vinda de Paris, a Revide du Monde, que era uma espécie da revista Vogue, hoje em dia, mas sendo uma revista Vogue também com colaboração literária, entende? Você tinha dentro de tudo aquilo que Paris podia propiciar como novidade social, de roupas, divertimentos, folguedos, etc, e tinha também artigos literários. Os artigos literários eu não lia, passava por cima, mas a Revide du Monde era fartamente ilustrada e era o mundo da época da minha avó, mas não importava, eram figuras humanas. A mim não importa o tempo, a silhueta humana é muito fácil de identificar. É tão misteriosa essa nossa atração pelo nosso próprio corpo, pelo nosso próprio formato, que nós começamos a distinguir figuras humanas naquilo que não tem nada a ver. A silhueta de uma montanha, a forma de uma nuvem, às vezes um galho de árvore ou qualquer coisa, enfim, pode lhe assustar. Você diz: eu vi ali uma pessoa, mas não tem pessoa nenhuma, é porque nós estamos sempre aflitos à procura do nosso próximo.

O senhor fala que aqui [a Oficina de Cerâmica] é uma cidade. Quem são os habitantes dessa cidade?

Logo à entrada, por onde vocês passaram, existe primeiro um símbolo, que é o símbolo de Oxóssi, o deus da caça e da floresta, que é um símbolo africano que eu encontrei em Salvador, na Bahia, há muitos anos atrás, e me pareceu muito apropriado para ser colocado aqui nesse meu ateliê, neste meu local de trabalho, por conta da presença da floresta. E, de qualquer forma, é um símbolo de caçadores, é um arco e uma flecha, simbolizando Oxóssi. Ao lado dessa marca de Oxóssi, você encontra uma menção dizendo ‘imóvel, mas não inerte’ - aliás, está escrito em latim e traduzido em português: imóvel, mas não inerte. Isso está se referindo a todas as esculturas que habitam esses grandes espaços. O que quer dizer? Se elas parecem mortas ou imóveis, mas elas não

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são inertes, porque elas têm vida e, algum dia, talvez, como dizem os judeus e os árabes, que não cultivam a figura e que acham que você toda vez que cria uma figura está criando um compromisso com ela, que vai fazer as suas cobranças no dia do juízo final... Então, nesse caso, essas figuras vão fazer a sua cobrança. Você encontra na Bíblia o episódio do Êxodo em que Moisés punia com pena de morte aqueles que faziam esculturas que não correspondem à ideia do deus dos judeus, Jeová. Daí essa desconfiança em torno dos ídolos. Mas eu sou um fabricante de ídolos, eu convivo com eles desde a mais tenra infância, e os persigo, não só na modelagem e na escultura, como também na pintura.

Os visitantes que vêm para cá seriam os turistas dessa cidade. Quando o senhor sai do ateliê e encontra esses visitantes, o que eles falam? Porque eles vêm?

O nível de compreensão das pessoas é sempre dirigido em diferentes níveis de avaliação. É evidente que um sociólogo tira uma visão totalmente diversa de um arqueólogo, que por sua vez teria uma visão diversa de um psicanalista. Mas, curiosamente, eu posso lhe dizer, sem nenhum temor de desacerto, que uma bióloga chilena - ela não era critica de arte nem psicóloga, ela era uma bióloga - trazida aqui por professores de biologia, pesquisadores ligados à Universidade Federal, chamada Cecilia Toro, escreveu uma pequena placa que, pode-se dizer, é um resumo de tudo o que ela viu e fotografou de uma maneira quase que obsessiva. Ela passou dias e dias aqui fotografando. Quando eu fiz uma exposição em São Paulo, na Pinacoteca do Estado, ela saiu de Santiago do Chile e foi lá fotografar ainda mais. Finalmente mandou um estudo, não foi propriamente uma tese. Ela fez isso com grande humildade, sendo uma mulher de uma penetração muito grande, de poder de avaliação, porque ela era acostumada a trabalhar com microscópio de varredura e, sobretudo, com formas primárias – com vermes, com elementos que ela achava semelhantes às formas de minha escultura. Ela ia gotejando, jogando no seu estudo as fotografias das minhas peças ao lado daquilo que era retirado das lâminas do microscópio. E há uma associação curiosíssima, que inclusive perturbou a mim. E ela botou o título do trabalho dela ‘Brennand: as matrizes da vida’. Veja que coisa fantástica. Que poder tem a palavra. Matriz é tudo, realmente é o começo, o início de tudo. As matrizes da vida...

Mas então ela foi a pessoa que melhor sintetizou toda a sua obra?

O que acontecia em matéria da eclosão da vida e de todas as manifestações de vida que culminaram na espécie humana é o que preocupa os biólogos; a vida em si, na sua totalidade. A tese da Cecilia Toro seria as raízes da vida, os primórdios da vida; é Brennand ousando dizer aquilo que é o nascimento de tudo... Esse resgate que a Cecilia conseguiu, em matéria de observação, foi para mim de uma utilidade enorme. Quer dizer: eu não estava trabalhando com

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formas inexistentes. Aliás, eu diria que é impossível você trabalhar com formas inexistentes. Nem a arte dita abstrata, porque se você está usando uma forma que lembra um cubo, é um cubo; se ela lembra um cilindro, é um cilindro. Não é abstrato. Você diz: existe o abstrato do artista que joga a cor à vontade, como se fosse pintado por um rabo do cavalo espantando moscas, mas mesmo assim esse mundo é reconstruído, porque o olho se apodera daquelas pinceladas abstratas. Mesmo sem nenhuma tentativa de criar figuras, o olho acaba rearticulando aquilo e transformando em figuras. Porque nós estamos vendo figuras em todas as partes. Não há possibilidade de você fugir.

Eu entrevistei um compositor de música, recentemente, e ele disse que a música dele dava sentido à vida, à existência, dele. Sua arte também tem essa função?

Eu acredito que nada é em particular, que tenho sensações diversas daquilo que conheço nos artistas que conheço, daqui mesmo no Recife, ou alguns pouquíssimos que conheci fora daqui, alguns em São Paulo e outros mesmo na Europa. Nenhum deles é diverso de mim, todos nós fazemos uma grande irmandade. Agora isso pouco importa. Uns têm mais talento, outros menos. Isso não importa. Importa a obra realizada, se ela foi conseguida ou não; se você conseguiu fazer ou não. De qualquer forma, isso não é uma derrota, porque o próprio Pablo Picasso, que é um dos mestres da arte contemporânea, diz que os seus quadros não são senão a soma de muitas destruições. Quer dizer, ele não consegue fazer, destrói e recomeça. Não consegue fazer, destrói e recomeça. Isso aí é uma maneira também de se caminhar. Com essa soma das destruições acaba chegando a um resultado, porque é uma luta, uma batalha, que se organiza e acaba vencendo.

Fala-se muito que o senhor gosta da reclusão, de estar em silêncio e sozinho.

Enquanto o artista é jovem, 19, 20, até 30 anos, até 40 mesmo, está em plena ebulição, é a época dos cafés, dos bares, etc, etc, precisa trocar ideias. Você encontra irmandades, pessoas que estão de acordo com você, às vezes se formam grupos. Aqui teve a Oficina de Gravura, fundada por João Câmara, que reuniu uma série de artistas; teve o Ateliê Coletivo, feito por Abelardo da Hora, que também formou uma série de artistas, e isso é natural nos artistas jovens. Depois, gradativamente, todos vão se recuando à procura de uma solidão maior para poder realizar a sua obra, porque nós precisamos de um espaço e de um tempo também, físico, para poder trabalhar. Durante o trabalho, se você é interrompido, aquilo não recomeça do mesmo jeito. Atrapalha e isso é comum. Quer dizer, eu não vejo em mim nada que os outros artistas não tenham. Eu vejo Zé Claudio, ele participa muito mais da vida, ele mora em Olinda, recebe amigos, mas eu também recebo aqui. Aliás, eu trabalho aqui ao

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lado das minhas filhas. Nada mais íntimo do que isso. Esta aí a nossa querida Helena Viktoria, que é uma espécie de guardiã.

Qual é a melhor companhia para o senhor?

Bom, para mim é o meu diário. Ela [Helena Viktoria] própria pergunta: ‘papai, você acha o seu diário mais importante do que a própria oficina?’. Eu digo: o diário é a oficina. É olhar meu diário e os livros que me acompanham. Há livros que li quando eu tinha dezoito anos e que voltei a ler com o mesmo interesse; aliás, até com o interesse redobrado. O Jorge Luís Borges, que é um escritor argentino que eu aprecio muito, diz que o leitor é o escritor duplicado, que não existiria escritor sem o leitor. Não existiria o artista plástico sem as pessoas que estão ávidas de ver o mundo. O pintor, o escultor, o gravador, na época que não existia fotografia... Está aí o fotógrafo materializando essa nossa conversa, senão poderiam desconfiar quando você dissesse ‘eu estive com Brennand e ele me deu essas declarações’. Não é uma delação premiada, no entanto está sendo fotografado e eu não posso dizer que não disse nada disso. Ele está me mostrando de boca aberta aqui falando. O que é que eu estava falando? Tem aí o gravador, compreende? Essas coisas todas têm um significado.

A gente falou sobre companhia, vamos falar sobre despedida, que é desacompanhar-se. O senhor foi muito amigo de Ariano Suassuna. Como lida com a morte dele?

Nessa mesma mesa, depois do falecimento prematuro de Aluísio Magalhães, que foi enterrado aqui no Cemitério de Santo Amaro, um dia depois Ariano aparece aqui com Zé Laurindo de Melo, senta em torno da mesa e, de repente, Ariano se levanta como quem procura uma posição mais cômoda. E diz: ‘bom, eu venho aqui solenemente fazer com que vocês jurem que jamais vão morrer. É um juramento que vocês têm de fazer; que não vão aceitar a morte’. E sentou-se. O poeta Zé Laurindo ficou ali olhando, embasbacado, e eu igualmente. O juramento foi feito e Ariano já faleceu, mas para mim ele continua vivo. Aliás, eu vi há poucos dias, ontem, eu vi o retrato dele. É como se tivesse vendo Ariano. Não há ninguém que algum dia não seja esquecido. Todos nós vamos ser esquecidos. Às vezes dura algum tempo e às vezes esse esquecimento é cíclico, porque pessoas que foram esquecidas durante trezentos anos ressurgem, uma nova geração vai à procura de determinados artistas ou de determinadas pessoas, que coincidem com as suas ideias supostamente novas. Supostamente novas. O jovem tem direito a dizer que ele é novo, diferente, original; é um direito que assiste à juventude, tenho dúvida nenhuma. Agora, logo adiante ele vai encontrar gerações mais novas que a dele, que já estão despontando, porque hoje em dia os meninos de dois, três, anos já estão nos computadores, compreende? Já competindo com os que têm 20, e daí essa precocidade de gerações vai ser cada vez mais próxima uma da outra. Mas há um caso curioso, que posso exemplificar: El Greco ganhou fama

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na Espanha, não na Corte, onde ninguém de interessou pelo que ele fazia, mas ele foi para Toledo, que já tinha sido capital da Espanha, que na época era Madri, e hoje ainda é Madri, e lá junto aos frades, nos conventos, ele (El Greco) teve um grande sucesso. Ele era um pintor de cenas religiosas, era extremamente místico e talvez um dos grandes artistas de todos os tempos. Depois de morto, ele ficou esquecido. Não era nem citado nos manuais da pintura espanhola. Trezentos anos ele ficou esquecido até que, no fim do século 19 e começo do século 20, alguns artistas que tinham preocupações semelhantes às de El Greco, pelas deformações peculiares a ele, trouxeram ele de volta com toda a foça e originalidade que lhe era devida. Ele ressurgiu. Isso ninguém pode saber que vai ressurgir. Jules Verne, um escritor francês do século 19, é hoje atualíssimo, por conta das conquistas do espaço. As mil léguas submarinas, sobre andar por baixo d’água... Tudo aquilo que parecia impossível, ele [Jules Verne] anteviu.

Falando sobre esse pós, o senhor se preocupa com a perpetuação da sua obra? Sobre como ela será mantida?

É claro que o artista gostaria que a sua obra permanecesse. Eu disse que era um cultor de ruínas, eu sou um especialista em ruínas. Eu refiz tudo isso e povoei com esses ídolos, com esses troféus, que para mim foram feitos todos com grande dificuldade, mas com muito empenho de que tudo desse certo. Eu cheguei aqui com os cabelos tão escuros quanto os de vocês, e de repente eu tenho aqui um quarto por cima do meu ateliê, mas que não tinha um banheiro e eu tinha que descer para ir ao banheiro. Eu desci e defronte de todo banheiro tem um espelho. Quando me olhei estava de cabeça branca. Mas acontece que tinham passado 40 anos, entende? Eu estou aqui há 42 anos. É toda uma vida. Então, o que tem aqui representa 42 anos de trabalho, somados ao que eu fiz antes de vir para cá, são 60 anos de trabalho. E eu gostaria - e isso não é só um gosto meu - de perpetuar. Não é supervalorizar o que eu faço, como se o que eu faço já merecesse um museu e eu próprio criei o meu próprio museu. Não, nas cartas de [Paul] Gauguin a um amigo, ele diz que deixou na França cerca de 300 cerâmicas, porque Gauguin, o grande pintor, admirável, um dos maiores de todos os tempos, fez também cerâmica. A cerâmica foi abordada por Picasso, Miró, Fernand Léger, Henri Matisse, todos os grandes pintores da escola de Paris incursionaram pela cerâmica. A cerâmica não é novidade, é uma grande arte que precisava ser ressuscitada. E os grandes pintores modernos fizeram isso. Eu apenas os acompanhei. Quando eu fui para a Europa, eu não tinha feito cerâmica nenhuma, eu só fazia pinturas a óleo e achava que era o máximo daquilo que um artista poderia pretender. Passado um tempo, eu descobri em Paris que os outros pintores, com dificuldade, porque não tinham cerâmica à disposição, já estavam incursionando pela cerâmica; enquanto eu, que tinha nascido dentro de um universo cerâmico, rejeitava essa arte como se fosse uma arte meramente decorativa, menor. Então, eu fiquei seriamente prejudicado por conta disso e fiz o juramento que

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voltando ao Brasil eu iria encarar a cerâmica com seriedade, que foi o que eu fiz. Mas só a partir de 1971, quando eu vim para cá, porque antes eu fazia murais e não abordava ainda a forma escultórica. Eu trabalhava mais nas superfícies, porque coincidia com meu trabalho de pintor. Deixava de pintar sobre tela, papel ou madeira e passava a pintar sobre cerâmica, que não deixa de ser uma obra de pintura.

Curiosamente, há um fetichismo em torno da pintura a óleo. Os leilões são todos de pintura a óleo, seja aqui, seja nos grandes leilões londrinos ou nova-iorquinos. Ninguém faz leilão de cerâmica. Os grandes preços só são dados pra os quadros. Eu vi, há poucos dias atrás, um Van Gogh que foi vendido por 86 milhões de dólares. Um pequeno Van Gogh, retrato na realidade até influenciado por um desenho de Gauguin. Essa espécie de fetiche prejudicou muito, de certa forma, a minha abordagem da cerâmica, mas quando eu abordei foi para valer, que é toda essa obra que está aqui. E Gauguin diz na carta - que estou voltando ao assunto - ao amigo Daniel de Monfreid: ‘eu deixei 300 cerâmicas em Paris e gostaria de presentear a você, porque só assim elas não serão dispersas pelo mundo afora nem caiam em mãos de pessoas que são incapazes de compreendê-las. Mas o próprio Daniel de Monfreid talvez nessa época não lhe ocorresse que o seu amigo tinha um gênio tamanho e não deu a menor importância a esse presente; desdenhou desse presente de 300 cerâmicas que lhe poderiam ter feito a fortuna. Essa cerâmica foi dispersa pelos quadrantes do mundo.

O meu desejo é que parte dessa obra - porque uma grande parte também já saiu daqui - que faz, vamos dizer assim, a estrutura; e que faz com que todos esses espaços signifiquem, permaneçam aqui e se transformem. Na realidade, no momento é uma fábrica com aspecto de museu, uma fabrica sui generis, pois acredito que não exista em parte nenhum do mundo uma que tenha todas essas esculturas. É um lugar onde nós fabricamos ladrilhos e, ao mesmo tempo, está cheio de esculturas nos jardins, nos galpões, etc. Espero que isso permaneça, é uma dádiva para todos nós porque representa uma continuidade de pensamento de uma família que se dedica há cerca de cem anos ao trabalho cerâmico. Meu pai, que não era nenhum artista, mas era um colecionador, tinha uma coleção imensa de porcelanas da China. Ele antecipava, não sabia fazer, mas colecionava. Quem não sabe fazer coleciona. E eu continuei a trajetória dele. Quando eu encontrei essa cerâmica em ruína, essa cerâmica não era traduzida por escombros. Na realidade era uma ideia abandonada, e eu não fiz mais do que colocar tijolo em cima de tijolo, pedra em cima de pedra, e reconstruir tudo isso, entende? O meu mérito só foi esse: um especialista em reconstruir ruínas. Aliás, todo esse conjunto foi uma reconstrução de ruínas. Tem uma igreja aqui ao lado que é projeto de Paulo Mendes da Rocha, mas em cima de uma ruína. Não é que ele tenha feito uma igreja, não, ele construiu em cima de uma ruína que tinha sido, possivelmente, a casa do Barão de Muribeca, que era dono aqui do Engenho Santos Cosme e

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Damião. Por falar nisso, eu queria lembrar uma inscrição de Ludwig Wittgenstein que fala sobre porque é que existe arquitetura. A frase desse alemão diz: ‘arquitetura eterniza e glorifica alguma coisa, por isso não pode haver arquitetura onde não há nada a glorificar’. Veja bem: eu falei que eu continuei a eternizar as ideias do meu pai, que foi um colecionador. Em grande parte esse foi o sinal de largada. Mas depois aconteceram várias outras coisas, inclusive a noção de que eu estava trabalhando num território sagrado, porque essas terras todas da Várzea, todas sem exceção, estão ligadas diretamente à Restauração Pernambucana. Essas terras pertenceram a João Fernandes vieira e André Vidal de Negreiros. Eles se reuniam aqui para conspirar. É como se estivéssemos nós quatro aqui conspirando para botar para fora daqui os holandeses. Então, isso aqui passou a ser um território sagrado, era um lugar onde a arquitetura tinha sentido, porque existia algo a glorificar, entende? Esse foi o sentido disso tudo que tomou uma proporção talvez demasiada, excessiva. Mas não importa, está feito e é o meu legado.

Aos 87 anos, o senhor descobriu o segredo da vida?

Eu não descobri segredo nenhum, meu caro amigo. Para mim, o grande segredo - e isso me conforma enormemente, porque eu me concilio com Deus - é que a vida é um enigma. Esse enigma é o próprio Deus, é aquilo que não pode ser pronunciado. O nome de Deus, dentro das sagradas escrituras, era escrito com letras que não faziam um sentido, era impronunciável, para você não utilizar o santo nome de Deus em vão. Você não pode querer materializar a ideia de um ser supremo, de um comando supremo sobre todas as coisas. Isso nos escapa, nós não somos feitos para construir o universo. Nós não entendemos nem a nossa sexualidade, quanto mais o resto, entende? Talvez esse olhar turvo sobre o mundo seja o nosso encanto, quem sabe.

O que é o tempo?

O tempo é alguma coisa quase espantosamente ligada também a esse enigma. Nós pensamos e partimos de um zero à esquerda, um zero imóvel e nos projetamos para um infinito, um sentido de horizontalidade, de um caminho permanente para um destino que seria o futuro. Eu acho que isso é um abuso de confiança. Eu acredito mais num eterno retorno, num tempo circular e que não há nada de novo. Como diz o próprio Eclesiastes, não há nada de novo entre o céu e a terra. Eu acredito que as coisas que aconteceram estão acontecendo e irão acontecer. Mas nós podemos ter esse privilégio de pensarmos que nós somos novos. Vocês têm esse privilégio. Eu já não tenho. Mas de todo o caso me defronto com essa palavra que você me perguntou. O tempo para mim é um enigma também. Ele não é claro, ele é turvo, e isso me faz dormir em paz, porque senão eu não dormia.

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Ficaria só se perguntando...

A você, como todos os jovens, com toda a sua juventude, isso deve ser perguntado. É claro que deve ser perguntado. E eu tenho, com a minha idade, a sem cerimônia de não lhe responder e de criar a interrogação, o enigma. Você chega lá e já está chegando. Mesmo com a juventude nós temos as nossas predestinações, as nossas desconfianças de que algo mais do que aquilo que a gente vê ou escuta ou sente está acontecendo, porque milhares de fatos estão acontecendo neste momento, completamente exteriores a nós e, no entanto, absolutamente ligados a nós, porque estão acontecendo com seres humanos. Está acontecendo na África uma verdadeira mortandade, um vírus que é até agora incontrolável. São os sinais que nos esperam... O papa há poucos dias atrás disse: ‘nós estamos vivendo uma terceira guerra mundial’. Difusa, mas estamos vivendo, porque em todo lugar há conflitos. Estão cortando cabeça de americano e aparecendo na televisão. A gente se habitua a isso, mas parece que não é natural, não é?

O senhor tem algum medo?

Se eu tenho algum? Eu sou o próprio medo. Existe um escritor russo, Dostoievski, que dizia que todos nós descendemos do ‘Capote’. Era uma novela genial que Nikolai Gogol escreveu. Uma novela que realmente teve uma influência imensa sobre toda a literatura russa. Gogol, dizem, morreu louco. Mas em todo caso ele dizia: ‘eu tenho medo’. Mas medo de que? Ele disse: ‘medo de todas as coisas que podem me acontecer e acontecer aos meus próximos e a toda a humanidade’. Leia o jornal com atenção e se você não tiver medo você é um herói.

Para o senhor o que é a beleza?

Há muitas controvérsias sobre o problema. Há uma frase de um grande escritor da época de Shakespeare, Francis Bacon, que dizia: ‘a verdade não é a beleza’. A verdade não é a beleza e isso é muito desanimador. Mas existe outra, de um poeta moderno, que diz: ‘não pode se falar na beleza, que a beleza está em algum lugar, porque ela está em toda parte. Não existe nada que não seja belo’. O que é que, porventura, poderia não ser belo? Talvez a sujeira... Talvez o lixo... Talvez qualquer coisa que seja uma excrecência, não é? Aquilo que deve ser afastado, que na realidade é um dos nossos problemas, problema urbano de hoje, problema de todo o mundo. Nós, com toda a nossa inteligência, nossa espiritualidade, projeção, criadores de catedrais, de sinfonias, deixamos um rastro infame diante da natureza, que é preciso ser corrigido agora. Não fique pensando que eu não sou atento a todos os mecanismos modernos de comunicação, eu assisto à televisão todas as noites, até a madrugada, e me preocupo muito. E assisto como quem está assistindo a uma novela. Em vez de eu assistir a uma novela da Globo, que eu execro, eu assisto ao noticiário, que é uma novela muito mais rica, entende? E vejo que o

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mundo está caminhando exatamente para problemas sérios de meio ambiente. Por exemplo, a China, com todo o seu desenvolvimento, com tudo o que eles conseguiram fazer de prodigioso em matéria de desenvolvimento, deixou as cidades chinesas industrializadas irrespiráveis, é completa poluição. A cidade de São Paulo, a mesma coisa, e os rios todo poluídos. Eu vi ontem na televisão: fizeram uns bonecos de plástico, um homem de cueca e camiseta como se fosse dar um salto no rio Tietê. Você viu que coisa significativa? Se der um mergulho ali, você morre. Não é que vai bater com a cabeça em coisa nenhuma, mas vai ser um mergulho na merda.

O senhor, então, deve estar acompanhando a política.

Claro que eu estou acompanhando a política. Apenas vou lhe dizer que eu acho que é uma balbúrdia total, mas não vou dizer que essa balburdia só acontece no Brasil. Eu acho que o país, e é um grande país, está nas mãos de pessoas muito pequenas, que não estão absolutamente no nível de comando do que seja a complexidade de um país e a complexidade da própria estrutura mundial, que necessita de pensadores, de gente que pense. Não é uma pessoa qualquer que pode ser presidente da República. Mas isso eu acuso o presidente francês, que é um boboca, entende? Eu acuso qualquer um, não é só os daqui não. Eu tenho uma simpatia muito grande - e esperava muito, ainda espero e também espero até que ele saia com vida – por Barak Obama, o americano. Fiquei felicíssimo quando ele foi eleito, a primeira e a segunda vez, e espero muito dele. Primeiro porque ele é um pacifista, é um homem que conseguiu retirar do Iraque as tropas americanas que estavam lá numa guerra inglória, absolutamente numa guerra absurda. Segundo porque ele tem se mantido contra tudo e contra todos ainda criando uma pacificação dentro do americano, dentro daqueles problemas todos que existem nos Estados Unidos, que é um vastíssimo acampamento das mais diferentes etnias e cultos, etc. É um país dificílimo de ser governado, mas ele tem levado de uma maneira razoável e eu estou torcendo é para que ele chegue com vida até o fim do seu mandato. Que ele possa escapar daquilo com vida e talvez usufruir, que ele é humanista, escrevendo suas memórias.

Para o Brasil, o senhor falou em uma pessoa que pense, mas me detalhe mais que pessoa seria essa.

Não vou de forma nenhuma falar sobre nome. Você pode eleger uma pessoa, mas ela vai depender das pessoas com as quais se cerca. Diga-me com quem andas que eu te direi quem és. Verifique bem que os nossos atuais políticos não estão rodeados de gente da melhor espécie, mas muito pelo contrário, estão num caminho péssimo. Então se tivessem bons conselheiros para fazer um bom governo. Não precisa você próprio ir construir e pegar com a mão. Veja o seguinte: ninguém sabe quem foram os construtores das catedrais na Europa, ninguém sabe qual foi o arquiteto. Eles se confundiam com os

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pedreiros, escultores, vitralistas, com toda aquela gente, e era feita não só de uma geração, não. Uma catedral daquela durava cerca de 300 anos para ser feita. Passava de geração em geração. Então, essas coisas são construídas num anonimato, mas era preciso haver um centro que era a fé, e que removia montanhas, que acaba realizando. O que nós precisamos é de um conjunto de gente... Tem uma candidata que fala em homens de bem e que está sendo ridicularizada, mas ela talvez não tenha encontrado o nome certo. Ela tem razão.

Como é sua relação com a internet? Tem alguma experiência?

Nenhuma. Minha experiência com a internet é a minha filha mais moça que eu cultivo como uma flor rara, porque ela é quem me introduziu a esse mundo e tem colaborado muito. Hoje é indispensável a qualquer pessoa. Existe até uma frase: ‘se você não está na internet, você está morto’. Eu assino embaixo.

Ela está lhe trazendo essa vida, então?

Ah, ela é quem está. Ela é sensível, que a própria geração dela pertence a isso. É um meio de comunicação moderno, atual, você não tem outro.

Sobre o movimento armorial, me fale um pouco daquela época; sobre a motivação.

Sobre o movimento armorial há um equivoco baseado no seguinte: o que aconteceu é que não só Ariano [Suassuna] como César Leal, Thomaz Seixas e eu fazíamos um quarteto e nos reuníamos todos os domingos na minha casa. Ariano chamou de Academia dos Emparedados porque nós nos reuníamos e discutíamos sobre os destinos do mundo, arte, poesia, literatura, pintura, politica e, no entanto o mundo nos ignorava. Portanto, é como se nós fôssemos emparedados. Isso gozando um pouco da história da emparedada da rua Nova, que é uma lenda antiga pernambucana, recifense. Esse convívio com Ariano me levou a expor muitas vezes pinturas em exposições do movimento armorial, mas acontece que eu nunca fui um adepto do regionalismo, da arte sertaneja, de todos aqueles elementos de origem que faziam a ideia e o movimento armorial. A essência, o conceito mesmo do que Ariano considerava, a sua paixão por uma arte brasileira. Eu cheguei durante um período muito grande da minha vida a acompanhar esse movimento ao lado dele, mas sem que eu participasse convictamente das suas ideias. As minhas ideias nada têm a ver. De certa forma, quando se diz ‘Brennand, você é armorial, eu respondo de imediato: não, eu sou sexual’. Eu estou no outro lado, oposto, entende? Não tenho nenhuma raiz ligada à ideia de cangaceiro nem de cavalhada, nem de coisas sertanejas. Eu estou muito mais ligado à arte europeia, a certos conceitos existenciais, entende? E eu estava lendo aqui no diário um trecho engraçado que elucida um pouco isso: ‘no dia 4 de fevereiro de 1993, Ariano Suassuna acompanhado de seu filho, Dantas [que trabalhou aqui comigo],

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esteve aqui na fábrica para combinarmos alguns pormenores do texto que ele vai elaborar para o catálogo da exposição de Berlim. Como, por exemplo, quais foram as minhas reais intensões quando fiz o quarteto de comediantes. Tratamos também sobre a escultura O Cinto de Castidade, assim como o significado da grande escultura central O Sequestro. Antes de sair ainda conversamos sobre os futuros pretendentes do trono do brasil. Disse-lhe da minha preferência sobre o grupo de vassouras, sobretudo dom Luís de Orleans e Bragança. Suassuna, nesses últimos tempos, tem se distanciado da causa monárquica. Nessa época, Ariano era monarquista, mas Ariano se transformou em um socialista, passou a ser um militante socialista. Eu conheci Ariano monarquista, compreende? Nós tivemos identidades e depois essas identidades foram se diluindo. A amizade e o respeito por ele continuam os mesmos, pela família dele, por tudo, porque fomos amigos. Eu conheci a mãe e todos os irmãos e filhos de Ariano. Gente de primeiríssima grandeza.

Prefere o silêncio ou os sons?

Eu trabalho ouvindo música. Agora é muito difícil você acreditar num silêncio total.

Há um peso em envelhecer. Que peso é esse? Ou não há?

Se há um peso? Um peso horrível. O envelhecimento verdadeiro, que é na verdade inevitável, faz parte da natureza. As coisas nascem, vivem e morrem. As próprias estrelas, os astros. A gente vê uma estrela, parece que ela está viva, mas ela já morreu. A luz apenas está caminhando. Mas a morte é alguma coisa que não pode ser descrita porque ninguém volta para dizer o que é que aconteceu. Ela é a sensação violenta da vida, é o contrário da vida. Não tem nada que... Eu chego a dizer que a morte é obscena. As cerimônias mortuárias, por mais que denotem respeito, eu acho inadequadas. Fui muito claro no meu testamento: eu quero ser cremado. A presença do corpo que se deteriora não me interessa. Interessa a mim é o pó mesmo. Vai virar pó, por antecipação. Eu que lido com o fogo, desde criança que eu vejo fornos acesos queimando telhas, tijolos, ladrilhos, porcelanas, etc, e como faz ressurgir coisas maravilhosas. Entram medíocres na boca do forno e saem, depois de tantas horas, verdadeiras obras primas. No meu caso, peças que entram modernas e saem depois com dez mil anos. Como se tivesse atravessado todo o tempo e ganho a pátina do tempo, a cor do tempo. A velhice não é boa para ninguém. Não caia nessa. Procure, ao contrário, afugentar a ideia da velhice através do trabalho, dos bons amigos e de tudo o que você puder usufruir ainda. O corpo é o comando de tudo, se ele começa a falhar... Se eu não posso dar uma corrida... Quer coisa mais bela do que uma corrida? É uma coisa linda uma pessoa correr. São lindos os movimentos. O movimento de um macaco, de um guepardo atrás de uma corsa. Ele tem uma velocidade espantosa. Os ursos, apesar de todo o peso, correm tanto quanto o cavalo. É fantástico. E a corrida

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do homem também é admirável. O nado é uma maravilha. Eu cultivei muito na juventude a natação, fiz pesca submarina. Então, como artista eu compartilhava com meus amigos e irmãos, jogava futebol, tênis, voleibol basquete, tudo igualzinho aos outros, não tinha diferença nenhuma. Apenas meus interesses pela literatura e pela pintura foram se intensificando e eu acabei preferindo ir para a Europa. Marcou a minha vida para sempre. Eu não acertava a cesta mais coisa nenhuma. E se ser um pintor é não ser ninguém, então eu sou ninguém.

Sobre dona Deborah...

Dona Deborah é a maior poetisa que eu conheço e uma artista mais importante do que eu. Infelizmente está muito enferma, doente, e eu lastimo muito porque ela é uma pessoa admirável, que eu conheci nos bancos do colégio, exatamente na época em que eu conheci Suassuna, 1945, 1946. Eu estava conhecendo Ariano e conheci Deborah, no Colégio Oswaldo Cruz. E porque eu me aproximei de Ariano? Ele tinha saído do Ginásio Pernambucano e eu tinha saído do Colégio Marista. Ariano, no Ginásio Pernambucano, se dava ao luxo de ter uma biblioteca que ele frequentava e conhecia bastante pintura para conversar comigo, que já era um iniciado sobre pintura. E eu também causei admiração a Ariano pelo motivo de falar com ele sobre literatura como se fosse um escritor ou um aspirante a escritor. Nesta época, no mesmo colégio, que era misto, para mim uma novidade, porque saía de um Colégio Marista - que hoje é misto, mas na época você não podia nem ir até a calçada, para não ter maus pensamentos - eu vi dona Deborah chegando de bicicleta. Ela morava na rua Carlos Chagas e vinha ali por dentro, pelo beco do Padre Inglês, onde morava Ariano, e chegava à rua Dom Bosco, onde tinha o Colégio Oswaldo Cruz. Ela vinha de bicicleta fazendo esse trajeto. Na época não existia tráfego. Era um ônibus ou outro, raríssimos carros, que eu ainda chamo de automóvel, e eram tão poucos que você conhecia quem tinha trocado de automóvel. Então, quando ela chegou pela primeira vez, que a vi, com aqueles olhos claros, ela era baixinha, linda, linda, maravilhosa... Eu tinha um grupo de amigos, queria saber onde ela morava e um dos meus amigos tinha um carro e nós pegamos esse carro quando ela saiu de bicicleta assim que acabou a aula. Nós fomos discretamente seguindo ela, até descobrir onde ela morava. Ela se apercebeu e, no outro dia, foi se queixar ao diretor do colégio, que queria nos expulsar, porque isso era um fato escandaloso. Seguir uma moça... Ela disse ao diretor: ‘figuras absolutamente desinteressantes, quatro cafajestes. Retirando Brennand, o resto não presta para nada’. De qualquer forma ela teve essa fraqueza. Quando ela disse isso, eu fiquei animado, me aproximei dela e daí veio o namoro. Foi a primeira namorada e a mulher com quem eu me casei. Ela ia se formar em direito. Ela tem exatamente a minha idade, 87 anos. É até um pouco mais velha, que ela é de fevereiro, do dia 12 de fevereiro, e eu sou de 11 de junho. Ariano é 16. Somos de junho, Ariano e eu. Pois bem, Deborah já tinha feito o primeiro ano de direito, ia entrar no segundo e eu cometi a

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ignomínia de retirá-la da faculdade, que o desejo maior do pai dela era ter uma filha formada em direito. Ele era médico. Eu retirei-a da faculdade e propus a ela casamento e uma viagem a Paris. Qual moça recusaria? Então, ela viajou comigo.

Foram quantos anos de casamento?

Ah, eu vivi com ela cerca de 20 anos. Depois, eu como artista, comecei a fazer uma série de piruetas que não foram aprovadas, mas nunca deixamos de ser amigos e o meu respeito por ela não tem medida. Além de que hoje me faz uma falta enorme eu não chegar aqui e, de imediato, telefonar para ela, que mais do que um horóscopo era minha condutora. Nas minhas loucuras eu nunca deixei de perguntá-la o que é que eu deveria fazer, para ver se eu escapava com vida, e ela era quem me aconselhava. Nunca deixou de me aconselhar. É a única pessoa que eu posso dizer: se eu fui perdoado por alguém, e isso me deixa muito satisfeito e em paz com a vida, foi por ela, porque ela conhecia meus antecedentes. Nenhum dos outros, nem minhas filhas mais velhas nem as mais novas, conhecem nada da minha vida. O que, aliás, de alguma forma nos proíbe de fazer julgamento a respeito dos nossos pais é a diferença de anos que existe entre eles e nós. Porque - você note - havia entre eu e meu pai uma diferença de trinta anos. Quando ele tinha 50 eu tinha 20. Será que com 20 anos eu podia julgar? Como é que eu ia adivinhar nesse período em que eu nada sabia? É impossível você julgar, mas acontece que dona Deborah conheceu meu pai, conheceu minha vó, todos os meus irmãos, morou na casa onde eu nasci, viajou comigo, conhece todos os meus antecedentes, pecados e virtudes. Não se vê em matéria de guerra onde se diz: ‘fulano protegeu a retaguarda?’. Sem essa proteção de retaguarda você não consegue coisa nenhuma. Ela protegeu a minha retaguarda e eu pude fazer isso aqui, que ela respeitou à distância, sem procurar interferir.