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COLÓQUIO: A FILOSOFIA NO ENSINO SECUNDÁRIO O novo programa de 12.° Ano Nos dias 22 , 23 e 24 de Março de 1995 realizou - se, em Coimbra, na Faculdade de Letras, o V Encontro de Formação Educacional . As sessões sectoriais na área da filosofia estruturaram - se em torno de duas preocupações centrais : reflectir criticamente sobre o actual modelo de formação educacional e abordar algumas questões ( quer ao nível dos conteúdos quer das metodologias) dos novos programas de Introdução à Filosofia e Filosofia. A Revista Filosófica de Coimbra, na sua qualidade de órgão da investigação e de ensino do Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade de Coimbra, não podia ignorar uma iniciativa em que participaram activamente muitos dos seus docentes e o próprio Grupo de Filosofia . Regista igualmente com agrado a participação de colegas de outras Universidades , alguns com responsabilidade directa na elaboração dos novos programas . O Programa de Filosofia (12.° Ano) é, sem dúvida , aquele que representa um corte mais radical com todos os programas anteriores de Filosofia no ensino secundário ao organizar - se em torno da leitura integral de textos filosóficos . A Revista Filosófica de Coimbra, sem deixar de ser órgão de investigação , não se quer alhear dos problemas mais directamente ligados à actividade profissional dos professores de filosofia, sem paternalismos . Aproveitando a ocasião deste V Encontro de Formação Educa- cional ea disponibilidade do Prof. Doutor José Enes e do Mestre Alfredo Reis em fornecer , em tempo útil, o texto escrito das suas intervenções no Colóquio sobre o Programa de Filosofia (12.° Ano), a Revista Filosófica de Coimbra, o seu modesto contributo para o debate publicando estes textos de uma oportunidade indiscutível. ANTÓNIO MANUEL MARTINS Revista Filosófica de Coimbra - ti.' 7 - vol. 4 (1995 ) pp. 163-163

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COLÓQUIO: A FILOSOFIA NO ENSINO SECUNDÁRIO

O novo programa de 12.° Ano

Nos dias 22 , 23 e 24 de Março de 1995 realizou - se, em Coimbra, naFaculdade de Letras, o V Encontro de Formação Educacional . As sessõessectoriais na área da filosofia estruturaram - se em torno de duas preocupaçõescentrais : reflectir criticamente sobre o actual modelo de formação educacional eabordar algumas questões (quer ao nível dos conteúdos quer das metodologias)dos novos programas de Introdução à Filosofia e Filosofia.

A Revista Filosófica de Coimbra, na sua qualidade de órgão da investigação

e de ensino do Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade de Coimbra, não

podia ignorar uma iniciativa em que participaram activamente muitos dos seus

docentes e o próprio Grupo de Filosofia . Regista igualmente com agrado a

participação de colegas de outras Universidades , alguns com responsabilidade

directa na elaboração dos novos programas . O Programa de Filosofia (12.° Ano)

é, sem dúvida , aquele que representa um corte mais radical com todos os

programas anteriores de Filosofia no ensino secundário ao organizar- se em torno

da leitura integral de textos filosóficos . A Revista Filosófica de Coimbra, sem

deixar de ser órgão de investigação , não se quer alhear dos problemas mais

directamente ligados à actividade profissional dos professores de filosofia, sem

paternalismos . Aproveitando a ocasião deste V Encontro de Formação Educa-

cional e a disponibilidade do Prof. Doutor José Enes e do Mestre Alfredo Reis

em fornecer, em tempo útil, o texto escrito das suas intervenções no Colóquio

sobre o Programa de Filosofia (12.° Ano), a Revista Filosófica de Coimbra, dá

o seu modesto contributo para o debate publicando estes textos de uma

oportunidade indiscutível.

ANTÓNIO MANUEL MARTINS

Revista Filosófica de Coimbra - ti.' 7 - vol . 4 (1995 ) pp. 163-163

LEITURA INTEGRAL: PORQUÊ? COMO?

JOSÉ ENES

O título 1 questiona, de uma forma sucinta, clara e certeira, o Programada Filosofia do XII Ano. Pergunta pelas razões que fundaram a suaproposta, e pelos princípios, regras e práticas que o definem e fecundam.São duas perguntas capitais que nascem do espanto, suscitado pelanovidade estrutural e metodológica na perspectiva da tradição e do passadopróximo do ensino secundário da filosofia.

Era previsível que uma inovação, aparentemente tão radical e inespe-rada numa curta retrospectiva, provocasse uma incómoda perplexidade queo texto do Programa só por sí não estaria apto a elucidar. Os problemassurgidos na sua aplicação experimental viriam naturalmente não sóacumular obstáculos a uma correcta compreensão, mas também pôr adescoberto lacunas e incorrecções. Na sequência destas suposições, aquelasduas perguntas trarão, assolapada na sua formalidade breve e incisiva, umanumerosa e complexa questionação. A elaboração do meu discursoalmejou contribuir para o seu esclarecimento.

As duas perguntas incidem expressamente sobre a leitura integral.E, na verdade, o parágrafo 4.5 do Programa apresenta, sob este título, ométodo de leitura a empregar na utilização da obra filosófica como textoescolar, considerando-o como núcleo essencial do processo didático doprograma. O método, aliás, deve entender-se como a globalidade desteprocesso didático, ou seja, a funcionalidade estrutural das operações emeios do ensino e da aprendizagem, enquanto produtivos da acquisiçãodo saber. Para além do método, o programa inclui a definição de objec-

Foi o título, proposto pela Comissão Organizadora do V Encontro de Formação

Educacional, para a exposição do colóquio sobre o Programa de Filosofia do 12° ano,

efectuado no dia 24 de Março de 1995, na Faculdade de Letras da Universidade de

Coimbra.

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tivos e conteudos didáticos, tendo em vista as metas de educação e de

formação profissional estabelecidas pelos sistemas de ensino, a ordenação

no espaço e no tempo das fases e actividades da organização lectiva, e

bem assim as normas referentes à utilização de textos, de tecnologias e

de práticas.A leitura integral, portanto, constitui uma parte, a mais importante e

efectiva, do método, e este, por sua vez, é uma parte do programa, comoprojecto ou plano escrito do ensino da disciplina, a Filosofia do 12° ano.

Posso entendê-la como sinédoque; mas vejo também que, na sua accepção

própria, ela pode expressar a intenção de se propor como tema exclusivo

de aprofundamento. Todavia, mesmo neste sentido, para que me inclino,

a via para uma compreensão aprofundada não se descobrirá senão a partirdas razões que determinaram a decisão de adoptar a leitura integral comomatriz metodológica. Ora tais razões não se encontram só, nemprincipalmente, nas virtualidades desta matriz, mas sobretudo, e emprimeira instância, nos pressupostos e regras formulados pelos outrosparágrafos do texto programático.

1. Razões decisórias da opção metodológica

A primeira fonte de razões brota das funções de continuidade e decomplemento que liga o ensino da Filosofia do 12° ano ao da Introduçãoà Filosofia dos 10° e 11 °, no quadro jurídico e pedagógico do sistema doensino secundário. Com efeito, ambas as disciplinas constituem um mesmoe único plano de ensino da filosofia, que as une e ordena para a pros-secução do mesmo objectivo global: prestar, à educação humana e àformação intelectual das gerações portuguesas, o contributo próprio dosaber filosófico, em coordenação integrante com os das outras disciplinas.

O novo programa da Introdução à Filosofia assumiu, como fundamentoda ordenação pedagógico-didática, o estatuto de componente de formaçãogeral em parceria com a língua materna. Foi uma decisão histórica dalegislação portuguesa, na qual resplandece a sábia compreensão danatureza do saber filosófico e da sua íntima e originária ligação à línguamaterna, na medida em que é através desta que o homem recebe e assimilao património cultural e a memória existencial da comunidade a quepertence.

É através da língua que o homem tem discurso da sua própria cons-ciência e do mundo e é através das estruturas linguísticas que os discursosganham a virtuosidade conceptiva e expressiva dos actos cônscios e doque neles e por meio deles o homem percebe e entende. Mas nenhumdiscurso carece tanto da língua materna como o filosófico. Pois é só

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através dela que o filósofo alcança o mais alto acume da reflexãointerpretativa e analítica do próprio pensamento e da diferença mundi-videncial que ela mesma comporta como o acréscimo de realidade que épertença e identificação da personalidade de um povo. Por sua vez, emvirtude desta dependência, a Introdução à Filosofia deve ser, de entre asdisciplinas não linguísticas, aquela que mais criativamente contribua paraque o português se torne a disciplina mais atraente e mais formativa dascompetências e da personalidade dos alunos.

Uma outra característica do programa é ordenar o processo didáticoda Introdução à Filosofia a partir da consciencialização de vivênciasfilosóficas, organizadas tematicamente por unidades programáticas emcorrespondência às tradicionais partes da Filosofia. Oferece-se, assim, aperspectiva englobante do saber filosófico. Por outro lado, como asvivências filosóficas nascem em todos os domínios das ciências e das artese algumas são dimensões filosóficas de vivências científicas e artísticas,abre-se também o horizonte transdisciplinar. Destarte, o processo didáticoda Introdução à Filosofia pode e deve assumir a função integradora namentalização das competências discursivas induzidas pelas outrasdisciplinas. A exigência de tal função vem virtualmente formulada naconsignação dos objectivos notavelmente exarada no artigo 9° da Lei deBases do Sistema Educativo. Entenderam-no assim os planificadores dasescolas profissionais que para o exercício de tal função idearamprecisamente a "disciplina de integração". Em comparação com o seuplano, nos casos que me foram dados a conhecer, o novo programaimprime à Introdução à Filosofia uma superior virtuosidade funcional.Tanto mais que a própria integração pedagógica e didática dos diversostemas, que os respectivos programas incluem, implica funções noéticas denatureza filosófica. Por isso mesmo, a leccionação de tal disciplina temsido, com muito acerto, confiada de preferência a professores de filosofia.

A prossecução de tais objectivos e o exercício de tais funções farãoda Introdução à Filosofia a disciplina mais motivadora e formativa,principal responsável pelo sucesso da aprendizagem, pelo desenvolvimentodo raciocínio, da reflexão e da curiosidade científica, pela descoberta eassimilação dos valores éticos e estéticos e pela indução das atitudes deabertura de espírito e de adaptação à mudança.

O ensino da Filosofia do 12° ano deverá, não só tomar em conside-ração estes resultados em ordem à sua programação, senão também dar--lhes continuidade e aperfeiçoamento, não com os mesmos meios efinalidades, mas através de um processo didático específico ordenado paraum objectivo imediato diferente. Diferença esta que é determinada peloestatuto de componente de formação específica do ano terminal dos cursos

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do ensino secundário . Como tais cursos conferem habilitações específicasquer para o ingresso na vida activa quer , o que é a opção mais gene-ralizada , para o acesso a cursos do ensino superior , neles se enceta aformação profissional nas áreas científicas que os denominam . Por estarazão , as competências adquiridas em tais áreas nos dois anos devemalcançar , através do processo didático do terceiro , o nível formalmentecientífico , exigido pela frequência dos cursos do ensino superior.

Na verdade, ao preparar- se para o acesso a um curso de graduação emFilosofia na universidade , o aluno do 12° ano começa a proceder como

um profissional de Filosofia. A fase inicial deste comportamento consiste,precisamente , na acquisição do saber fazer filosofia, ou seja, elaborar, coma cientificidade que lhe é própria , o discurso filosófico . Neste objectivodidático reside o fundamento para a disciplina filosófica do 12° ano sedenominar Filosofia , enquanto que à dos dois anteriores se deu o nomede Introdução à Filosofia.

Este contraste, porém , não se há de entender como se o ensino daIntrodução à Filosofia não induzisse competências de nível científico.Nenhum conhecimento seria filosófico se não fosse dotado de cien-tificidade filosófica . A introdução do novo Programa , sob o título deorientações pedagógico -didáticas , salientando a importância do trabalhodidático sobre o texto escrito , regista o seguinte aviso : Se é através dodiscurso escrito que a Filosofia acede à sua cientificidade própria, emconsequência, os objectivos propostos no Programa só poderão ser cabal-mente conseguidos mediante o contacto directo dos alunos com textos aseleccionar em níveis de especialização e complexidade crescentes:aforismos e sentenças , textos curtos extraídos com pertinência e rigor deobras filosóficas, excertos mais largos e complexos, criteriosamenteescolhidos das obras fundamentais do pensamento filosófico, podemrepresentar o escalonamento da especialização e exigência referidas 2.

E, após admitir que o que mais importa não é tanto a leitura do textofilosófico, mas sim a leitura filosófica do texto, concede em consequênciaque o leque de escolhas possíveis de textos não filosóficos , desde a ficção,à poesia , ao jornalismo , à divulgação científica é praticamente inesgotável.E logo de seguida adverte que se não há-de ignorar que a apropriaçãodo discurso filosófico , na aula, apresenta dificuldades e comporta requi-sitos a que o professor saberá responder, e afirma não parecer demaissalientar que, ao participar activamente na análise , exploração e comen-

2 Programa de INTRODUÇÃO À FILOSOFIA (10%11 ° ANOS), ENSINO SECUN-DÁRIO, /Programas aprovados pelo Despacho n.° 124/ME/91, de 31 de Julho, publicadono Diário da República, 2.' série, n .° 188, de 17 de Agosto/, p. 8.

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tário do texto filosófico, o aluno mergulha no processo originador dopensamento e aí colhe os dados e adquire as performatividades necessá-rias para a elaboração do seu próprio discurso 3. E por fim formula ascompetências a induzir : enriquecer o capital linguístico pessoal, dominaro vocabulário especializado da Filosofia, exprimir com coerência eprecisão o seu pensamento, apreciar criticamente os pontos de vista e asrazões expressas num texto , fruir o prazer intelectual de uma leiturafilosófica serão aptidões que, pouco a pouco, o aluno irá desenvolver 4.

Estes procedimentos e resultados didáticos perspectivam a decisãonuclear do programa de Filosofia como disciplina específica do 12° ano.Com o da Introdução à Filosofia, ambos constituem um único projecto deensino pré - universitário da Filosofia . Em ambas as disciplinas , o objectivodidático específico é a cientificidade do discurso filosófico.. Só a confi-guração e o nível das competências e performatividades diferem, comovimos, em função do estatuto curricular de cada uma. Em ambas, oprocesso didático fundamental é a leitura do texto filosófico. Só que ogénero e a estrutura dos textos, os graus de complexidade e de perfeiçãoque os caracterizam , o método da leitura e a combinação com outros meiose procedimentos dependerão outrossim da configuração e do nível dacientificidade a adquirir.

Ao esboçar a caracterização das competências e aptidões a adquiriratravés do processo didático da Filosofia do 12° ano, afirmei que o aluno

ao matricular-se no curso denominado por esta disciplina enceta a suaformação como profissional de Filosofia , na medida em que a habilitaçãopor este conferida é a competência legal de ingresso num curso superiorde filosofia . Este é o caso paradigmático em relação ao qual se há deordenar o programa e os métodos . Consequentemente , os conhecimentos,competências e habilidades a adquirir no curso secundário são precisa-mente aqueles exigidos pela universidade aos candidatos à matrícula numcurso superior de filosofia ; os quais no sistema de ensino vigente emPortugal são avaliados mediante as provas específicas. A definição de taishabilitações científicas é, pois, competência das universidades que já asavaliaram mediante os exames de admissão . Por conseguinte , na situaçãoactual o processo didático da filosofia do 12° ano deve dar continuidade

ao da Introdução à Filosofia de tal modo que a eficácia didática dos trêsanos corresponda à de um curso vestibular ou propedêutico ao ingressonum curso universitário.

3 O.c., p.9.' Ibidem.

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Partindo da definição do objectivo global, formulada em 3.1, e reco-lhendo as competências, aptidões e habilidades, conceptivas e discursivas,designadas na textualização do método e da sua aplicação, nos parágrafos4.5.1 a 4.5.4, podemos caracterizar a formação filosófica que os alunosdo 12° ano devem receber do ensino da Filosofia, dizendo que ela os háde investir no poder de elaborar criticamente o discurso filosófico, e deo identificar e situar no universo do saber. Aquele poder situar-se eorientar-se discursivamente no universo filosófico não se compõe somenteda competência interpretativa dos discursos: ele jamais será possuido semo entendimento das matrizes filosóficas e das razões históricas que deter-minam e configuram o acontecer do pensamento. Ora tal entendimento sónasce na intimidade dos grandes momentos da história da filosofia.

Reportando-nos, agora, à orientação didática, que antes referi, doseleccionamento, por níveis de especialização e complexidade crescentes,de textos para os alunos dos 10° e 11° anos, vemos que é precisamentreno escalão mais alto, onde termina a leitura da Introdução à Filosofia, queprincipia a leitura integral da Filosofia do 12° ano, ou seja, na meditaçãodas obras fundamentais do pensamento filosófico. Tomar como ponto departida, no processo de aprendizagem da elaboração científica do discursofilosófico, não já excertos progressivamente mais largos e complexos deobras fundamentais, isolados ou organizados em antologias, mas a própriaobra filosófica em si mesma na sua perfeita inteireza.

Na verdade, como se formula no Programa, sendo a obra o textoorganizado numa totalidade discursiva, na qual o saber filosófico seconsuma e concretiza, entendê-la no dinamismo discursivo que a estruturae lhe dá sentido, outra coisa não é senão ter a experiência interpretativada experiência discursiva que a elaborou . A obra filosófica constitui,assim, o modelo, dotado de vida permanente, das capacidades e compe-tências, para cuja aquisição o ensino-aprendizagem de Filosofia há deconduzir o aluno. (4.1) Fazer da obra filosófica o texto de base a ler,interpretar e comentar foi a alternativa que se ofereceu, tanto perante afalta de idoneidade dos programas anteriores em ordem quer à com-plementaridade do programa da Introdução à Filosofia quer à novaformulação do objectivo global para o processo didático da Filosofia do12° ano, como tomando em consideração a escassez de tempo de um sóano lectivo. Seriam três obras, com dimensões adequadas ao tempo lectivo,pertencentes a épocas diferentes, a escolher de uma lista estabelecidano Programa.

São estas as razões que determinaram a decisão de proposta do novoprograma para a Filosofia do 12° ano. São razões intrínsecas à contexturadidática dos dois programas. O desenvolvimento progressivo das capa-cidades e competências dos alunos dos 10° e 11° anos, através de uma

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aplicação bem sucedida do Programa da Introdução à Filosofia, fará surgirneles a opção e o gosto de terminar a sua aprendizagem pre-universitáriada Filosofia mediante a leitura de obras, adequadamente escolhidas, dosgrandes filósofos. A análise despreconceituada e crítica dos objectivos edo articulado programático verificará a estruturação funcional destaresultância . A experiência a confirmará.

2. O método da leitura " integral"

Na primeira sessão de trabalho para a elaboração do novo programada Filosofia do 12° ano, ouvi com surpresa emocionada a proposta da"obra filosófica como texto lectivo", apresentada em termos sucintos poruma colega da Comissão. De momento não percebi a continuidadecomplementar entre os dois programas que depois descobri através daminha participação nos trabalhos da elaboração do programa. A emoçãoda minha surpresa tinha outra origem: é que a proposta continha a retomade um método a cuja aplicação sustentada se ficou a dever alguns dosperíodos mais criativos e esplendorosos da história da filosofia europeiae, em particular , da filosofia portuguesa.

A organização escolar do ensino da filosofia mediante a leitura da obrafilosófica era teorizada por Hugo de S. Victor no seu Didascalion,recolhendo já uma longa experiência , nos começos da séc. XII que deraminício a um daqueles períodos no qual a obra de São Tomás de Aquino, o"comentador" por antonomásia dos escritos de Aristóteles, representa oapogeu medieval do método, a lectio docentis. Desde jovem tenho sidoum leitor assíduo desta lectio , e conduzido por ela tenho lido as obras deAristóteles, tenho feito a minha lectio discentes. E só assim conseguialcançar o entendimento que hoje possuo do discurso aristotélico. É umensino-aprendizagem à distância de sete séculos, que mantém a suaeficácia através da vida de pensamento que a obra conserva e transmite

no seu discurso escrito.Há, porém, um outro momento cuja evocação vem mais a propósito

quer do tema que nos ocupa , quer do lugar em que nos reunimos . Refiro-

-me ao ensino da filosofia no Colégio das Artes durante a segunda metadedo séc. XVI. Condiz mais com o objecto da nossa questionação porque oColégio foi criado, em 1547, com a finalidade de preparar, nos domínios

da latinidade e da filosofia, candidatos para a admissão à Universidade

de Coimbra. Era, portanto, uma instituição de ensino médio, correspon-

dente ao nível do curso trienal do nosso ensino secundário . Tanto foi assim

que, depois de ter voltado à superintendência disciplinadora e proficientedos jesuítas por dois fugidiços anos, em 1836 foi extinto para dar lugar

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ao Liceu Nacional de Coimbra 5. Ora, no Colégio das Artes, o ensino dafilosofia adoptou a organização em vigor nas instituições congénereseuropeias e veio a atingir o alto nível filosófico e didático do CursoConimbríncense , editado com o título Commentarii CollegiiConimbricensis Societatis Jesu seguido do nome das obras de Aristótelescomentadas em cada um dos seus oito grossos volumes, com excepção doque contém a ética que em vez de comentarii usa disputationes . De maisalto e mais amplo prestígio além fronteiras fruíram as obras de Pedro daFonseca , as quais foram editadas no estrangeiro não integradas no Curso.A teorização e as inovações metodológicas destas obras , em sintonia comas características culturais do Renascimento , prestaram importantecontributo à elaboração e enriquecimento da célebre Ratio Studiorum doscolégios e universidades da Companhia de Jesus. Ainda hoje, o seu conhe-cimento e o seu estudo nos poderão prestar uma preciosa ajuda na procurade soluções para os problemas pedagógicos e didáticos, científicos epráticos que complicam e enervam o nosso projecto didático da Filosofiado XII ano. À nossa disposição tem sido postos estudos valiosos porespecialistas , profundos conhecedores da história e da filosofia dosConimbricenses . 6 Após o momento mais alto do período renascentista,atingido na década de 1580 com a publicação do curso conimbricense, ométodo da lectio entrou em declínio . Já em 1597 Suarez publica asDisputationes Metaphysicae cuja organização expositiva sistemáticaprefigura o modelo dos cursos filosóficos, como os de Soares Lusitano ede João de São Tomás, os quais se vão generalizando ao longo da primeirametade do séc. XVII, se bem que as obras de Pedro da Fonseca tenhamcontinuado a ter várias edições tanto em Portugal como no estrangeiro.

5 José Esteves Pereira, Colégio das Artes e Ensino da Filosofia no Colégio das Artes,in Logos, Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, Verbo, 1, cols. 1042s e 1043-1049.

6 De entre eles quero mencionar , em particular , o Senhor Professor Miguel BaptistaPereira que, no grandioso plano da sua obra sobre Ser e Pessoa (em) Pedro da Fonseca,dedicou o primeiro volume a O método da Filosofa. Obra de pensamento profundo e vastaerudição que interpreta e explana a teoria metodológica e destrinça os procedimentos metó-dicos , com densa e fecunda discursividade. Frequentemente , aliás, me instruo e deleito coma leitura discente dos seus escritos. Refiro também o Senhor Professor Amândio AugustoCoxito, disserto e erudito historiador da filosofia portuguesa renascentista, pelos seusartigos "Método e ensino em Pedro da Fonseca e nos Conimbricenses" ( Rev. Port.Fil.36,1980), e "Lógica e metodologia em Francisco de Cristo e seu contexto renascentista",seguido da edição do manuscrito Methodus, hoc est, docendi ratio, (Biblos, 59, 1983). Naspessoas destes ilustres mestres conimbricenses , a quem junto o Doutor António ManuelMartins por mérito da sua obra sobre Pedro da Fonseca e da sua responsabilidade eactuação neste encontro, presto homenagem à Universidade de Coimbra , glória e matrizdas universidades portuguesas , e ao seu próvido magistério institucional.

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Do modelo dos cursos filosóficos derivaram os manuais e compêndios doensino secundário , que se difundiram na Europa na primeira metade do séc.XVIII e se introduziram em Portugal na sequência da reforma pombalina. 7

No ensino universitário da filosofia, a lectio tem sido adoptada porrazões metodológicas particulares . Heidegger aplicou - a em cursos semes-trais e seminários comentando Aristóteles , Platão, Heraclito, Kant eSchelling , e o génio exegético, com que fazia dizer coisas novas e inova-doras a textos antigos, foi um dos factores da celebridade do seumagistério 8.

A leitura integral não é um método tão novo como nos parecia deinício , nem é tão antiquado que não possua virtualidades actuais, determi-nantes de validade didática na situação presente . Os constituintes destavalidade são, como já referi , a potência discursiva da obra filosófica e aeficácia actuante do método adoptado.

Penso que o texto programático expõe, com suficiente precisão eclareza , a essência e os princípios do método e os respectivos procedi-mentos pedagógicos e didáticos , e os fundamenta com razões teóricas epragmáticas . Quanto à organização concreta e às práticas e meios daleccionação , usa um discurso meramente alvitrante que intende abrir aosprofessores e alunos um amplo campo de iniciativas . Atendendo , porém,ao objectivo proposto a esta exposição há que esclarecer e aprofundaralguns aspectos nucleares e suprir algumas lacunas.

2.1 O sentido de "leitura integral"

Leitura não assumiu a acepção escolar e o respectivo sentido delectio. Por sua vez , a partir deste étimo, as línguas românicas formaramo nome da actividade essencial da escola . Em português , ficou lição.O professor dá, o aluno aprende , a lição. Nesta palavra persiste a memó-ria do método escolar do tempo 9 em que era lendo que o professor dava

7 Ferreira -Deusdado , La Philosophie en Portugal, Extrait de Ia Revue Néo-Scolastique,

Institut Supérieur de Philosophie , Louvain, 1898, pp . 27-46; J. Pinharanda Gomes,

A Renovação Escolástica (1879-1967), / Sep. de ITINERARIUM 1, Braga, 1993, pp. 4ss.

" Miguel Baptista Pereira, Tradição e crise no pensamento do jovem Heidegger, Sep.

de BIBLOS, LXV(1989),Coimbra, pp.349-354.9 Este tempo remonta aos primórdios da escolarização e, por isso mesmo, aos começos

da Civilização Ocidental, quando a escola surge para a formação dos escribas , os primeiros

quadros especializados em ler, escrever e contar. Esta alusão aponta para a função

cientificadora que à leitura e à escrita coube no processo civilizacional . Tem sido o

desenvolvimento sustentado daquela função que ao longo dos milénios vem fazendo

progredir as ciências , a filosofia e as tecnologias mediante a investigação , a invenção e a

formação dos respectivos quadros especializados.

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a lição e o aluno a aprendia , mas perdeu- se a vigência da significaçãonominal da acção do verbo ler. O novo Programa da Filosofia do 12° ano,retomando a leitura da obra filosófica como método de ensino, confere--lhe enquanto nome verbal a acepção e o sentido de lectio . Em tal acepção,

a leitura não se há-de entender como a simples acção de ler. Tal como alectio, a leitura integral , entendida como método de ensino da filoso-fia, há de ser constituida pelos procedimentos interpretativos e analíticosdo texto da obra filosófica , idóneos para a indução da aprendizagemdo aluno.

O adjectivo integral denota uma característica determinante destaidoneidade . Trata-se de uma qualidade perfectiva daqueles procedimentos,cada um de per si e no seu conjunto, tanto na dimensão em que por elesé feita a abordagem da obra filosófica , como na eficácia e no nível do seuexercício operacional . O sentido de integral, aqui , é avocado a partir dalinguagem hermenêutica do discurso jurídico . íntegra é o contextocompleto da lei ou a sua totalidade contextual . Daí se formou a locuçãoadverbial na íntegra, ao dizer que a lei se há-de ler na íntegra.

A leitura integral da obra filosófica , como método de ensino, é aquelaque a lê na íntegra , na totalidade do seu contexto ou na sua intei-reza contextual . Como está exarado no Programa , " legere é ler emplenitude , é intelligere , é ler dentro até ao mais íntimo do texto , é pene-trar integralmente no seu sentido ."(4.5.1) Uma tal leitura , porém, tãoplena , tão profunda e tão compreensiva não se poderá alcançar, senãona medida em que os múltiplos procedimentos lectivos , que a constituem,se integrem também , com reciprocidade interactiva , numa totalidadeoperacional , dotada de eficácia didática . O Programa conclui formu-lando : "Leitura integral da obra filosófica denomina, portanto , a inte-gridade operacional e processual do método que o Programa propõe."(Ibidem)

2.2 Intencionalidade lectiva da leitura integral

Entendendo intencionalidade como a estrutura cônscia do acto cogni-tivo, lectiva designa a configuração discursiva que molda e dinamicamenteunifica as operações específicas da leitura. Esta fórmula coloca-nos peranteo momento fulcral da minha exposição. Será na explicitação clara ecompleta da intencionalidade da leitura integral que encontraremos acompreensão da sua funcionalidade metodológica.

O Didaskalion de Hugo de S. Victor oferece-nos uma matriz metodo-lógica, fecunda como ponto de partida para a nossa pesquisa analítica.Tratando, no cap. VIII do livro III, do aperfeiçoamento da inteligência eda memória (de ingenio et memoria) começa por afirmar que duas são as

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operações que exercitam o a inteligência ou engenho, a saber, a lectio ea meditatio. E tomando a lectio lhe divide os géneros:

Trimodum est lectionis genus docentis, discentis, vel per se inspicientis.Dicimus enim lego libram illi, et lego librum ab illo, et lego librum. 10

"Tríplice é o género da leitura: de quem ensina, de quem aprende, ou

de quem por si mesmo examina. Pois dizemos: leio o livro a ele, leio olivro a partir dele (aprendendo dele), e leio o livro."

A lectio docentis é a leitura do professor enquanto este a faz ao alunocom a finalidade de o ensinar a ler. A lectio discentis é a leitura dodiscípulo enquanto a faz instruido, inspirado e iluminado pela leitura do

professor, com a finalidade de aprender a ler por si mesmo , e poder vir,

ele próprio , a tornar- se competente para ensinar outros a ler. Ambas estas

leituras dependem uma da outra numa reciprocidade interactiva. A leitura

do professor toda se há de dirigir para a leitura do aluno . O sentido desta

direcção vem vectorizado em docere, verbo causativo que significa o

processo accional de fazer alguém saber algo. Este é o mesmo sentido do

grego didásko, do alemão lehren , do inglês teach e do nosso ensinar. Todos

os procedimentos lectivos, que constituem aquele processo accional,

devem ser ordenados para a produção do saber do aluno . Por seu lado, o

verbo disco significa o processo, ao mesmo tempo passivo e activo, de

recepção e assimilação do saber enquanto resultado da acção docente do

professor , ou seja , do tornar- se douto, ciente , sabedor. Doctus, por isso

mesmo, é particípio passado dos dois verbos . Esta relação de verbo

causativo e verbo passivo dá-se também entre lehren e lernen. Nestes

dois casos , a própria relação de génese linguística expressa a unidade

processual da reciprocidade dinâmica existente entre o ensinar e o

aprender . É esta relação que vigora entre a lectio docentis e a lectio

discentis.Aplicando estas duas leituras à obra filosófica obtém - se um método,

estrutural e dinamicamente uno, para o ensino-aprendizagem da filosofia.

Para o novo Programa da Filosofia do 12° ano, porém, o objectivo global

não se atinge somente com a aprendizagem da leitura da obra filosófica

adoptada como texto . A aprendizagem da leitura há de ser feita de tal

modo que através dela se aprenda também a escrever filosofia. Por este

motivo o programa reconhece e põem em relevo a íntima relação que

10 Eruditionis Didascalicae Libri Septem , III, 8, in "Patrologia Latina", CLXXVI,

col.766.

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176 José Enes

existe entre ler e escrever . Ler só se dá sobre o que foi ou está sendoescrito. Escrever implica em si a leitura não apenas como destino mastambém como feitura , pois ninguém escreve senão enquanto lê o que estáescrevendo . É lendo a obra filosófica que se penetra na inteligênciado discurso filosófico, mas só escrevendo se adquire e se manifesta acapacidade de elaborar cientificamente o discurso filosófico. A importânciada escrita , portanto , duplamente se verifica : na aquisição e na avaliaçãodas competências. Aprendendo a ler a obra filosófica- texto, e aprendendo,através desta leitura , a escrever correctamente o discurso filosófico, oaluno será conduzido à aquisição de um conhecimento da filosofia com aamplitude e o nível requeridos pelos objectivos escolares do 12° ano doensino secundário , como acima expusemos.

A medida daquela amplitude e daquele nível só poderá perspectivar--se a partir da relação de continuidade e de complementaridade com oprograma da Introdução à Filosofia. Nesse sentido, o novo Programaprescreve : "Na verdade , o ensino-aprendizagem de Filosofia , embora seoriente, directa e especialmente para a cientificidade do discurso filosófico,não deve restringir a perspectiva de universalidade, impressa ao horizontedas unidades temáticas do programa da Introdução à Filosofia . No entanto,a idoneidade e a eficácia do presente programa requerem que tanto ainformação como a abertura à universalidade se processem através da obrafilosófica ."(4.2)

Na verdade , como já referimos , o conjunto das unidades programáticasda Introdução à Filosofia abrange todos os domínios do saber filosóficoe, em cada uma delas, a formulação dos temas nucleares abre-se, nohorizonte da contemporaneidade , à totalidade do respectivo domíniotemático . A consideração histórica , por seu lado , na Unidade histórico--problemática - a Filosofia no tempo, rejeitando embora "qualquer leiturahistoricizante ", tematiza " as matrizes do pensamento ocidental e aFilosofia como reflexo, crítica e interpretação do seu tempo", e propõe "aexploração de um tema , através de autores diversamente situados notempo" a fim de que os alunos possam "adquirir os marcos de referênciahistórico -cultural , que se considerem pertinentes ". 11 A formação filosóficarecebida no 12° ano deve completar e aprofundar esta perspectivaçãohistórica , aquela informação temática e a consideração teórica dosdiscursos e sistemas filosóficos . A obrigatoriedade de utilização de trêsobras, cada uma delas pertencente a uma época histórica diferente, teveem vista tal objectivo.

11 Programa cit. na nota 2, p.17s.

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Leitura Integral : Porquê? Como? 177

A argumentação , que objecta a impossibilidade de o alcançar atravésda leitura integral da obra filosófica , resulta de uma dupla incompreensão.A primeira diz respeito à própria essência discursiva da obra filosóficaenquanto não toma em consideração o nível e a densidade de pensamentoe a importância histórica , exigidos como fundamento para a sua escolhacomo texto de leccionação . Somente a obras, que possuam tais caracterís-ticas, se aplica a justificação formulada nos seguintes termos do Programa:Em si mesma , por virtude da natureza do seu discurso filosófico, a obrapossui uma potencialidade de informação temática e de abertura àuniversalidade do saber filosófico, a qual ultrapassa os limites formaisdo seu texto . Com efeito, a obra situa - se na plúrima contextualidade doconjunto das obras do seu autor e das obras tanto da sua como de outrasépocas, que nela se reflectem ou dela apresentam reflexos, mediantemúltiplas formas de transmissão discursiva . A interpretação hermenêuticaexplorará as dimensões relacionais de tais contextualidades , ao mesmotempo que coopera com a análise dialética na revelação da estruturalógica , linguística e argumentativa da escrita do discurso filosófico.(Ibidem ) A segunda incompreensão reporta - se à essência do métododenominado por leitura integral . Será, por conseguinte , este o momentode pormenorizar e ordenar a exposição dos procedimentos lectivos que aestruturam.

Vou continuar a servir- me da teoria e pragmática de Hugo de S. Victorprecisamente pela vantagem que a sua primitiva simplicidade oferececomo ponto de partida . Segundo a sua doutrina , a lectio como processodidascálico tem a estrutura da expositio . Ler é pôr, diante do olhar dooutro leitor e a partir do texto lido, o que nele está escrito, é ex-pôr. Masesta configuração operacional explicitamente exprime a prolação exposi-tiva ao olhar e ao ouvido inquiridores do leitor- aprendiz . O tratamentolectivo do próprio texto , o qual tira de dentro dele o que nele está escrito,possui outra estrutura : é a interpretatio . Estamos perante uma metáforanoética de matriz comercial : interpres era o intermediário entre compra-dor e vendedor para o estabelecimento negocial do pretium - preço.O procedimento interpretativo é o trato dialogal entre dois interlocutoresmediatizado por um terceiro cuja função é estabelecer o entendimentoentre eles . Falando ao vendedor, o intérprete faz as vezes do compradore defende a pretensão dele; falando ao comprador, representa o vendedore valoriza os interesses dele. A sua estratégia negociai será proceder poraproximações sucessivas até conseguir o acordo entre os dois. Nesta duplarepresentação surge o fundamento da transferência para a linguagemteatral , interpretar uma personagem ou um papel. O intérprete de línguasexerce a função na situação mais simples que entretanto as circunstânciaspodem diversamente complicar.

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No caso da leitura da obra escrita, a interpretatio é, por natureza,complexa. A obra escrita não é um interlocutor, nem mesmo no caso emque o autor participasse na conversação sobre ela. Depois da obra escrita,o seu autor, ao pronunciar-se a respeito dela, não assume senão o papelde leitor ou de intérprete. Nem se pode dizer que o intérprete de uma obraescrita a represente ou faça as vezes dela. Em sentido impróprio se dizque a leitura da obra é uma interpretação dela; no sentido próprio, só o équando feita a outrem para o ensinar a ler, ou seja, enquanto lectiodocentis. Ora esta leitura, que ensina a ler, é um discurso expositivo doque a obra tem para ser lido e de como deve ser lido, é a expositio, nogrego exégesis. É, portanto, um metadiscurso ou uma metalinguagem dodiscurso e da linguagem da obra.

Segundo o Disdakalikon de Hugo de S. Victor, a exposição contém trêsprocedimentos: litteram, sensum, sententiam. Littera, a letra, é umasinédoque derivada de uma metonímia. Primeiro designou a tabuinha, emque se escrevia, depois os caracteres da escrita, as letras do alfabeto,finalmente a própria escrita, a composição literária, a obra escrita e oconjunto de todas as obras escritas, as letras, daí o literato, a literatura.Na linguagem rectórica denomina a fase inicial da "exposição" quedescreve e analisa as partes da obra escrita de modo a fazer ressaltar aconexão discursiva que lhes dá sentido, a cada uma delas e ao seuconjunto. Hugo de S. Victor define-a como congrua ordinatio dictionum,quam etiam constructionem vocamus - a côngrua ordenação das dic-ções (palavras e proposições), à qual chamamos também construcção.A segunda fase é a explanação do sentido daquela fácil e abertasignificação, que a littera traz à superfície - prima fronte praefert.A terceira e a terminal chama-se sententia que é a inteligência maisprofunda e se não encontra senão mediante a exposição e a interpretação,ou seja, através da inquirição hermenêutica, referenciando as contextua-lidades, confrontando as intrepretações contrastantes e decidindo argumen-tativamente as questões. "Aqui a ordem é que primeiro se investigue aletra, em seguida o sentido, por fim a sentença: o que feito, perfeita estáa exposição." - In his ordo est, ut primum littera, deinde sensus, deindesententia inquiratur: quo facto, perfecta est expositio. 12

Como acima aludi, este modelo de lectio atingiu o nível mais alto dediscursividade interpretativa em São Tomás de Aquino, que por issomesmo era também chamado o expositor. Na verdade, a excelência daleitura tomista consistia tanto na erudição e perícia com que restituia aostextos aristotélicos, traduzidos para latim, a legibilidade do seu sentido

12 O.c., co1.771 s.

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original, como também na poderosa e criativa inteligência com que atravésdo seu discurso expositivo desenvolvia e actualizava, no enquadramentocultural da Idade Média, as virtualidades de inteligibilização do discursoaristotélico.

É bem de ver que sendo a exposição dirigida ao aluno, como metalin-guagem didática, a fim de o orientar na aprendizagem ou aquisição decompetência idêntica, cada passo dado pelo mestre, na elaboração de cadauma das três fases, é um convite a fazer o mesmo. Assim se esboça aparticipação activa do aluno através de práticas de leitura e de escrita, deaconselhamento e cooperação com o professor e colegas.

A leitura integral, também, se desenvolve através de duas "exposi-ções", a do professor e a do aluno. Todavia, os procedimentos que ascompõem não podem ser totalmente iguais àqueles utilizados, na IdadeMédia, pela lectio docentis e pela lectio discentis. As razões desta desi-gualdade derivam, em primeira instância, da diferença estrutural dossistemas de ensino em que respectivamante se enquadram. Na Idade Médiaa lectio era usada a todos os níveis do ensino e em todas as disciplinas,cujos respectivos números eram muito inferiores aos de agora. É impen-sável que hoje se ensinasse Física aos alunos do 12° ano através docomentário de uma obra de Bohr, ou de Heisenberg ou de Einstein, comoera possível fazê-lo, no séc. XIII, comentando obras de Aristóteles; nemse pode leccionar gramática por um livro de Chomsky, como então se faziacom as Institutiones de Prisciano. Ocorre a mesma impossibilidadedidática em relação à Introdução à Filosofia dos 10° e 11° anos. E a últimainstância em que se funda esta discrepância é a diferença estrutural danossa sociedade em relação à medieval, a qual também fundamentalmenteresulta do estádio, em que nos encontramos, na evolução das ciências, dasartes e das tecnologias. A multiplicação e o aprofundamento das especia-lidades, a aceleração do ritmo de inovação e de crescimento em todos osdomínios do saber exigem o aumento da duração da escolaridade e damultiplicidade disciplinar dos planos de estudo, forçando assim o recursoaos manuais e compêndios e ao aperfeiçoamento científico e tecnológicodas didáticas.

O mesmo se passa em relação à leitura integral. Desde os princípiosdo séc. XIX, a linguística e a hermenêutica tanto se desenvolveram quese dividiram em especialidades, algumas das quais se transformaram emdisciplinas filosóficas, como a filosofia da linguagem e a hermenêuticafilosófica. Ressurgiram, mais recentemente, as retóricas seja como teoriasda obra literária, ou como teorias da argumentação. A grandiosa tradiçãoaristotélica e escolástica da lógica formal recebeu um inovador acréscimode virtuosismo analítico e discursivo, sobretudo através da matematizaçãooperada por Frege e Russell e da analítica de Quine. Esta evolução criou

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novas competências de penetração cognoscitiva na estrutura e no funcio-

namento das línguas, dos discursos e das obras escritas nos mais variados

domínios do saber, mas em especial nas obras literárias e filosóficas.

Os planos de estudo das licenciaturas têm incluido a hermenêutica

filosófica, e outras disciplinas, como a Introdução à Filosofia, a Ontologia

e a História da Filosofia Contemporânea, a compreendem nos seus pro-gramas, e a Filosofia da Linguagem é também apresentada como opção

com frequência escolhida. Nos estágios, os futuros professores de Filosofiano secundário, de há anos, vêm recebendo a formação teórica e prática

nos métodos e técnicas do ensino, numa didática por objectivos, pelaparticipação activa dos alunos, pela utilização de textos para desenvolverneles a capacidade de interpretação e de elaboração do discurso escrito.Nos cursos de licenciatura em Filosofia é prática corrente a leitura e ocomentário a obras e a textos na leccionação de quase todas as cadeiras.Prática esta que mais se intensifica e metodicamente se orienta para acientificação das competências nos mestrados de Filosofia, cuja frequênciafelizmente, desde os começos, tem sido procurada e mantida por numero-sos professores do ensino secundário. As dissertações para a obtenção dograu são programaticamente elaboradas mediante a interpretação e aquestionação de obras de filósofos. Um número significativo de profes-sores do secundário se tem distinguido pela autoria de manuais e de outrostextos didáticos, uma notável actividade editorial a que a entrada em vigordo novo Programa de Introdução à Filosofia proporcionou a manifestaçãode uma impressionante produtividade. Em face deste conjunto de índicesde formação e cultura filosóficas não deixarão de ter valor positivo asnumerosas publicações de obras filosóficas, em grande parte traduzidas,a que os editores portugueses se vêm dedicando, uma vez que para a quasetotalidade delas os possíveis compradores só poderão ser professores eestudantes de filosofia.

Se atendermos, ainda, ao costume escolar de os professores, antes deacederem à leccionação da Filosofia do 12° ano, leccionarem os programasdos dois anos anteriores, prática esta que exercita e completa ascompetências, adquiridas pela formação universitária, e funciona comopreparação para as tarefas lectivas do último ano do curso secundário,ficamos perante um conspecto conjuntural positivamente favorável aosucesso da aplicação da leitura integral como método de ensino para aFilosofia do 12° ano. As experiências de experimentação do Programa, jácumpridas, confirmam tal previsão.

Com efeito, há indícios suficientes para se pensar que os actuaisprofessores de Filosofia, na sua generalidade, possuem a competênciarequerida pelo novo Programa. Em relação aos procedimentos lectivos,

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formulados nos cap. 5 e 6 como integrantes da leitura integral, penso queas seguintes considerações podem contribuir para um esclarecimento útil.

O princípio fundamental é que o professor organize e oriente asactividades, com que ele e os alunos participam na elaboração da leiturada obra, de tal arte que estes sejam conduzidos à compreensão dopensamento filosófico e à apreciação da expressividade discursiva dalinguagem.

Cumpre ao professor introduzir os alunos no conhecimento doconjunto das obras filosóficas do autor, da sua importância na história dafilosofia, e do lugar e papel que naquele conjunto cabem à obra-texto.É evidente que esta introdução pode ser também participada pelos alunoscom pequenos estudos escritos usando bibliografia adequada. É didáticae pedagogicamente importante que os alunos adquiram admiração pelofilósofo e pela sua obra.

As competências de análise textual, linguística, lógica e argumentativa,de interpretação dos sentidos do discurso, de questionação crítica e dedescoberta das vivências filosóficas, formal e virtualmente expressas naobra, deverão ser procuradas e desenvolvidas através de frequentesexercícios escritos e orais, individuais e de grupo, de tal modo orientadosque através deles, também, se cultivem as virtudes hermenêuticas dorespeito pela integridade textual e da valorização da riqueza polissémicado discurso. Um cuidado que se há de sempre ter, tratando-se de obrastraduzidas para português, é verificar a fidelidade ao sentido do original.

O resultado final, que satisfatoriamente corresponderia à expectativaprogramática, seria a composição, pela junção ordenada dos trabalhosescritos, de uma "exposição" colectiva de cada uma das três obras.A participação dos alunos na elaboração de cada uma delas teria permitidoa avaliação contínua individual; e as três exposições formariam umdocumento de grande importância para o professor, que poderia, atravésdele, avaliar e aperfeiçoar progressivamente a sua docência.

3. Algumas limitações

O texto do Programa apresenta formulações não suficientementeamadurecidas e é omisso de aspectos didaticamente impreteríveis. Porcausa da sua particular importância, darei o meu parecer apenas sobre doiscasos.

O primeiro diz respeito à seguinte norma, exarada no cap. da Organi-zação Lectiva, em 6.1: O professor não deverá encetar a leitura integralda obra sem se certificar de que os alunos possuem e dominam noessencial as técnicas de leitura e de interpretação, a um nível que dê

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garantia de sucesso no ensino-aprendizagem. O professor utilizará osmeios adequados a suprir as lacunas verificadas, nomeadamente atravésde algumas lições ou pequenos cursos. Julgo estas prescrições erradas.

As deficiências categoriais, teóricas e práticas, que os alunos manifestem,irão sendo supridas nas ocorrências oportunas ao longo do exercício dasactividades lectivas. É este mesmo exercício, orientado e corrigido, oprocesso mais eficaz de aprendizagem.

No segundo trata-se de uma omissão, cometida no capítulo dosPrincípios Programáticos, tio parágrafo 4.4 que expõe os critérios para aselecção das obras. O processo selectivo não tomou em consideração aidoneidade de obras em ordem à integração da Filosofia como compo-nente curricular dos cursos que dão acesso ao ensino superior de outrasdisciplinas. Consequentemente, o articulado programático também a nãomencionou. E destas omissões pode resultar a diminuição do número doscursos que têm integrado nos seus currículos a Filosofia, numa altura emque o interesse recíproco postulava, antes, o seu aumento. Para a filosofia,que desta cooperação receberia a intensificação e o alargamento doseu estudo e para as outras ciências cuja aprendizagem se tornariamais proficiente, na presente conjuntura cultural que exige a inter- e atransdisciplinaridade na investigação e na formação dos quadros.

Mesmo com respeito à própria formação filosófica, no enquadramentoda situação actual, outras obras, quer dos autores contemplados quer deoutros, poderiam apresentar maior idoneidade pedagógica e didática.A escolha feita foi grandemente condicionada pela falta de obras filosó-ficas em língua portuguesa, adequadas aos objectivos do método e àorganização escolar programada. Este problema foi consciencializado ediscutido durante os tabalhos de elaboração do programa e alguns passosse deram para encontrar uma solução, mas foram esforços baldados. 13

13 A Comissão, criada para a elaboração das propostas dos dois programas, teve umaactuação, em relação ao da Filosofia do 12° ano, assaz diversa daquela que usou com oprimeiro programa. Os trabalhos da Comissão foram suspensos sem que a proposta doPrograma da Filosofia do 12° ano houvesse sido apresentada às escolas a fim de recebera crítica e as sugestões dos professores, como havia sido feito com o programa daIntrodução à Filosofia, em relação ao qual a Comissão pode ainda apreciar os resultadosda experimentação do Programa nas escolas que a fizeram. Fui encarregado de elaborarpropostas de redacção do texto programático, a fim de serem apreciadas e corrigidas pelaComissão. Aceitei ainda o encargo de preparar a tradução das obras de S. Tomás de Aquinoe de M. Heidegger, seleccionadas para servirem de texto escolar. As doenças e os trabalhos,que imprevistamente me afligiram durante os dois anos seguintes, não me consentiram aexecução dessas tarefas. Nunca recebi um exemplar da proposta de programa entregue

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Leitura Integral : Porquê? Como? 183

A leccionação da Filosofia no ensino secundário , tanto em Portugalcomo em outros países europeus , é profundamente afectada por factoresde diversa ordem e natureza . Na verdade , a nossa experiência do ensinotestifica o efeito inibitório de certos complexos e atitudes comportamentaisdos estudantes , os quais resultam das características culturais, sociais eeconómicas dos grupos populacionais a que eles pertencem. As ideologiase os interesses políticos das forças , que influenciam a actuação governa-mental , têm-se reflectido no ensino da Filosofia nas escolas, por medidasque ou o favorecem ou o prejudicam ou, até, o proibem . Por exemplo, avia de acesso , só pelas humanidades , a cursos universitários de Filosofiaprejudica , de diversos modos, o seu ensino quer secundário quer superior.Aquela exclusividade legal não é de todo alheia ao complexo inibitivoda abertura às hodiernas ciências e tecnologias , o qual é inerente aosdiscursos das chamadas filosofias da subjectividade.

São problemas que interessam ao tema do meu discurso , mas excedemos seus limites. Espero que ele tenha correspondido aos objectivos e àsexpectativas de quem me conferiu a honra de o haver proferido.

ao Ministério da Educação pelo Instituto de Inovação Educacional que teve a seu cargo o

apoio logístico à Comissão. Fiquei, apenas , com a última versão de texto que apresentei

e foi assumida na generalidade . No essencial , corresponderá ao texto programático

aprovado pelo Ministério.

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